1º Semestre de 2009 Revista
FACOM
Nº21
Uma ciência integral,
um propósito comum
José Correa Leite
Resumo
Abstract
Este artigo retoma as afinidades eletivas entre o desenvolvimento da ciência e da modernidade como sistema modulado pelo
desenvolvimento do mercado mundial capitalista, mostrando como qualquer alternativa para
a convergência de crises que marca a atualidade
(tem a crise ambiental como a mais grave) exige a
constituição de uma nova visão de mundo, um novo
paradigma epistemológico. Isto exigirá a superação
de uma característica central do modo científico de
pensar estabelecido por Galileu e Newton, já amplamente questionado na comunidade científica,
mas ainda amplamente presente na vulgata da ciência transmitida pela mídia, a rígida separação entre fatos e valores, conhecimento objetivo do mundo e produção de sentido.
This article retakes the elective affinities
between the development of science and
modernity as a system modulated for the
development of the capitalist global
market. It explain that any alternative
for the convergence of crises that
marks the present time (with the
environmental crisis as most
serious) demands of a new vision of
world, a new epistemological paradigm.
This will demand the overcoming of a central
characteristic of the scientific paradigm
established by Galileu and Newton, already
surpassed in the scientific community,
but still widely present in the vulgata of
the science transmitted for the media, the
rigid separation between facts and values,
objective knowledge of the world and
production of meaning.
Palavras-chave: Ciência, Conhecimento, Significado, Sentido, Visão de Mundo, Ecologia, Humanismo
Keywords: Science, Knowledge, Meaning,
Sense, World Vision, Ecology, Humanism.
A modernidade constitui um sistema coerente organizado a partir do mercado mundial, dinâmico e intrinsecamente concentrador de riquezas. Ela foi se organizando, ao longo do último
século, a partir da associação entre o industrialismo generalizado e o consumismo, de um lado,
e a tecnociência, de outro, ambos geridos por finanças cada vez mais globais. Mas um salto
de qualidade ocorre agora na medida em que este sistema estabelece uma relação predatória
com a biosfera planetária até o limite da sua aniquilação (no que importa para nossa espécie),
que torna sem sentido a idéia de progresso humano reduzido ao avanço dos poderes societários sobre os fluxos de matéria e energia.1
A modernidade já realizou a parcela de suas promessas que podia, efetivamente, implementar.
A convergência de crises que vivemos (ambiental, econômica, energética, alimentar, hídrica)
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mostra que ela desencadeou forças (produtivas
e destrutivas) e dinâmicas (avanços qualitativos
do conhecimento, abundância, crescente impacto e interdependência entre a humanidade e a
biosfera planetária de conjunto) que já não podem ser contidas ou resolvidas em seus marcos,
que remetem para além de sua lógica; a manutenção do seu enquadramento básico revela-se,
em face da presença destes elementos, cada vez
mais destrutiva. Mas se uma nova forma de civilização é necessária, ela não poderá se viabilizar
simplesmente como rejeição de alguns aspectos
do mundo moderno, mas como sua superação
sistêmica, remetendo para uma nova organização social, um novo sistema relações globais e
também uma nova infra-estrutura mental e seus
valores explícitos e implícitos.
Toda grande mudança histórica do passado
envolveu alteração profunda das formas
de produção de sentido e de apreensão do entorno, da visão social de
mundo dos envolvidos, das suas
formas básicas de conhecimento
e significação, rompendo com grilhões que aprisionavam o pensamento anterior. Esta é, de fato, uma das características da emergência de uma nova
civilização, ainda mais evidente quando se
pretende que isso se dê como resultado de
uma revalorização da atividade política. Quando
os gregos passaram a viver em cidades-estado
e a desenvolver relações políticas, tiveram que
inventar, nos séculos VI e V a.C., a filosofia –
pois sua existência não era mais compreensível,
para os setores mais ativos das pólis, a partir do
pensamento mítico, o que por sua vez alavancou
o desenvolvimento das relações políticas (como
demonstraram Vernant e Meier). Da mesma forma, a vida na modernidade demandou, depois
do final do século XV, com o questionamento da
visão de mundo estruturada pela fusão do cristianismo e do aristotelismo (Koyré), a invenção
de uma nova forma de conhecimento, que afinal
emergiu, sob a forma do pensamento científico,
experimental e quantitativo, no século XVII e se
tornou inseparável do capitalismo, do individualismo, dos estados nacionais e da política moderna, alavancando estas dimensões da existência contemporânea.
As condições históricas do presente demandam
hoje, como requisito para o avanço no processo
“civilizatório”, a sistematização e difusão de um
novo entendimento da vida, uma nova visão social de mundo, uma nova compreensão do ser humano e de sua relação
com a natureza, a sociedade e o conhecimento, apta a nos fornecer orientações
no âmbito expandido, planetário, em que
se apresenta agora a comunidade humana – mais poderosa do que nunca, mas
sem parâmetros para utilizar este poder,
destruindo celeremente a vida na Terra.
O parâmetro anterior, oriundo do mundo
industrial, estrutura-se tendo o mercado
como mecanismo de alocação de recursos em um mundo de escassez, engendrando crescente arrogância e hybris,
perdendo racionalidade na medida em
que transitamos, nas últimas décadas,
para fora da escassez. Sem uma forma
de compreendermos nossos problemas à
altura das transformações que o mundo
exige, estamos condenados a repetirmos
velhas fórmulas e nos recolocarmos em
sucessivos impasses. Esta forma de conhecimento que necessitamos – poderíamos chamá-la de uma “ciência integral”
para retomar com outro nome o projeto
que foi, em sua época, o de Galileu, o de
uma “ciência nova” – terá, como as formas do passado, que fornecer não só
uma epistemologia própria (fundamentando critérios de verdade ou validade
das afirmações), mas também sua cosmologia (como vemos o mundo e nos
relacionamos com ele), ontologia (o que
pode ou não existir e sob que formas)
e ética (que valores devemos perseguir
na existência humana) práticas, além de
ajudar a plasmar os novos processos de
subjetivação e orientar a tomada de decisões em uma sociedade sustentável.
Se é uma ilusão pretendermos mudar o
mundo a partir de uma reforma moral dos
indivíduos que ignore a política e o poder,
é igualmente ingênuo querermos transitar para outra sociedade sem colocarmos
a disputa de idéias na sua acepção mais
ampla no coração da atividade política,
de fato aceitando as premissas e fundamentos do mundo moderno e reduzindo a
política real à manipulação das disputas
de poder nestes marcos.
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Toda ação humana pressupõe a adesão não só
a teorias como também a valores, concepções
morais e formas de entendimento – a visões de
mundo no sentido forte do termo. Um forte movimento de mudança tem que estar alicerçado em
uma produção comum de sentido, propósito, finalidade, em um novo processo de significação.
A ciência, sua vulgata e a perda de sentido na
modernidade
A ciência, que se impôs como a visão de mundo
moderna, nos forneceu a chave para a compreensão e o domínio da natureza. Se hoje algumas
de suas premissas fundadoras nos parecem
simplistas, no passado elas foram revolucionárias em termos cognitivos e práticos, dando à humanidade poderes antes considerados divinos
(tornamo-nos “deuses de prótese”, diria Freud),
prometéicos ou fáusticos, e impulsionando um
salto moral na trajetória da nossa espécie.
Maquiavel fundou o pensamento moderno buscando “entender as coisas como elas são”, separando este entendimento das avaliações dos
comportamentos morais (com a valoração da
política medida pelo que seria depois conhecido como razão de estado). É neste terreno que
se formou no século XVII, a ciência moderna,
experimental e quantitativa, consolidando a separação entre fatos e valores, portadora de verdades comprovadas, desvendando os segredos
da natureza – um livro escrito em linguagem matemática, diria Galileu – e portanto (pensou-se
cada vez mais) tornando-a passível de previsão
e controle. Como afirmava seu contemporâneo,
o chanceler Bacon, “conhecimento e poder são
para o homem uma única coisa” (Novum Organum, livro 1, aforismo 3). Esta ciência “dura”
– nascida da crise pirrônica dos séculos XVI e
XVII, em uma Europa dilacerada pela disputa
entre crenças religiosas e ansiando por certezas
em um mundo em que nenhuma forma pré-estabelecida de conhecimento parecia mais oferecer segurança ou garantias – sempre pretendeu
neutralidade axiológica, buscando separar rigorosamente aquilo que é daquilo que aspiramos.
Ela foi, como colocou Descartes, uma “filosofia
prática, pela qual, por conhecer a força e a ação
do fogo, da água, do ar, dos astros, dos céus e
de todos os outros corpos que nos cercam... poderemos empregá-los em todos aqueles usos a
que são apropriados, tornando-nos assim como
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que mestres e possuidores da natureza”
(Discurso sobre o método, parte VI).
Ela forneceu os alicerces epistemológicos para o revolucionário movimento de
idéias que foi o Iluminismo, com sua valorização da razão e da universalidade
– com suas formulações sobre o direito
natural e declarações generosas sobre
a liberdade, a igualdade e a fraternidade
de todos os seres humanos. O mesmo
vale para a posterior Revolução Industrial, embora aqui os termos do debate
tenham que ser matizados. Não estamos
falando sobre a dimensão normalmente tratada por historiadores como Hobsbawn ou Kuhn, que constatam, corretamente, que a Revolução Industrial não foi
uma aplicação técnica das descobertas
científicas anteriores (a engenharia é um
empreendimento do século XIX). Mas a
Revolução Industrial inglesa (ocorrida na
segunda metade do século XVIII) se deu
no interior do universo cognitivo criado ou
consolidado pela Revolução Científica ao
longo do século XVII: mecânico, atomista, determinista, valorizando as práticas
experimentais, que tinha em Newton seu
grande herói intelectual. Deu-se no marco da consolidação de uma mentalidade
anterior à própria Revolução Científica,
que a pressupunha, onde já imperava
“um novo modo, mais puramente visual e
quantitativo do que o antigo, de perceber
o tempo, o espaço e o ambiente natural”
que, segundo Crosby (A mensuração da
realidade, p. 211), vem do final do feudalismo e se consolida no final do século XVI, mentalidade que teria dado aos
europeus habilidades administrativas,
comerciais, navais, militares e industriais
decisivas para imporem sua supremacia no mundo. Deu-se, para retomarmos
uma formulação de Koyré, no marco de
uma cosmologia em que o homem não
vivia mais no interior de um “mundo fechado”, mas sim de um “universo infinito”.
No mundo mecânico e atomístico em que
a humanidade passou a viver depois de
Descartes e Newton, a ciência reduzia o
papel do acaso na existência, dissolvia
o cosmos – como totalidade abarcando também o divino e o transcenden-
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te, portadora de sentido para todas as coisas,
e agora substituído pelo universo imanente da
res extensa, da necessidade bruta – e surgia
como garantia de verdades demonstráveis, estabelecendo uma enorme superioridade sobre
os conhecimentos baseados na fé ou na argumentação descolada da experiência. A ciência
baseada em evidencias empíricas demonstraria
sua efetividade e empoderaria a sociedade moderna frente à natureza, desencantada e tomada
como substrato inerte da ação humana, atingindo seu ponto culminante com a formulação, por
Darwin, da evolução por seleção natural – momento decisivo da eliminação da teleologia da
esfera da ciência. O positivismo foi o corolário
desta identificação entre ciência e verdade, separando a objetividade que a ciência propiciava
no entendimento dos fatos da subjetividade dos
juízos de valores e das crenças, apoiado na convicção de que a humanidade teria, com a ciência
moderna, se assenhorado de poderes capazes
de moldar a natureza em função de seus desígnios. Uma nova epistemologia, cosmologia e ontologia se reforçavam mutuamente, separadas
de uma ética explícita (mas carregando uma implícita). No final do século XIX, esta ciência alavancava o desenvolvimento tecnológico e logo
estabelecia as bases para o surgimento de uma
esfera tecno-científica.
As práticas científicas concretas, na medida
em que se desenvolviam fieis ao seu projeto
de entender e controlar o mundo, foram dissolvendo algumas destas crenças em segmentos
da comunidade científica e apreendendo pouco
a pouco o caráter complexo do universo. Uma
modificação qualitativa do que se entendia ser
a prática científica explodiu no século XX, em
especial com a mecânica quântica, estimulando
uma revisão da idéia de “Ciência” nos círculos
especializados e abrindo espaço para algo que
talvez pudesse ser designado como uma multiplicação de “ciências”. Isso, todavia, nunca levou
a uma redefinição ampla, em escala social, da
concepção inicial de ciência, mecânica, atomística, quantitativa e “neutra”, buscando separar
fatos de valores como garantia de objetividade,
cada vez mais difundida como vulgata para parcelas crescentes da sociedade. Esta ciência,
magicamente portadora de um futuro radiante
para a humanidade, em que todos nossos problemas seriam solucionados por meios técnicos
cada vez mais poderosos, tornou-se, como bem
perceberam os frankfurtianos, um mito
com existência real, embasado no predomínio da razão instrumental na civilização
capitalista industrial. Esta ciência-mito
tem uma dupla face. De um lado, estimula a efetivação de todo tipo de sonhos (da
derrota de doenças terríveis e extensão
da vida ao transporte veloz e a comunicação instantânea) e pesadelos (das
armas de destruição em massa à industrialização completa da vida) tecnológicos, que se transformaram na tecnosfera
contemporânea e modulam boa parte da
pesquisa científica. De outro, o mito continua presente como desejos-fantasias
nas capas das revistas jornalísticas semanais, que hoje prometem “a cura do
câncer”, “transplantes de órgãos a partir
de células tronco” e “vidas saudáveis de
150 anos”, como há dez anos prometiam
a decifração do “livro da vida” e a “cura
de todas as doenças”, e há trinta anos
prometiam a “colonização da Lua e viagens à Marte” e a “vida no fundo do mar”.
Assim, diferente do pensamento mítico,
da religião e da filosofia, que a antecederam como formas totalizadoras de conhecimento, a ciência cresceu e se tornou
hegemônica no entendimento do mundo
como portadora da promessa de controle
da natureza, mas não como portadora explícita de valores – dos parâmetros para
se definir o certo e o errado, o bom e o
mau, o justo e o injusto, para estabelecer
propósitos de vida... Mas não é possível
ao ser humano viver sem atribuir sentido.
Os projetos políticos (e existenciais) da
modernidade tiveram, assim, tanto que
assumir os valores implícitos na proposta
original da ciência (“verdade”, “controle
das condições de existência”, “desempenho”, “objetividade”, “neutralidade”) como
continuar recorrendo aos sistemas de valores herdados das visões de mundo do
passado, as religiões e filosofias.
As visões de mundo antes dominantes
foram formadas no período denominado
por Jaspers de Era Axial, a partir do século VI a.C., como respostas historicamente
situadas à crise do pensamento mítico,
até então vigente. As religiões – designação que recobre realidades cosmológi-
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cas, axiológicas e éticas muito diferentes nos reinos e impérios do Oriente Médio, Pérsia, Índia e
Extremo Oriente – e as filosofias – nas cidadesestado das Bacias do Mediterrâneo que conheciam uma vida política – foram constituídas para
restabelecer a identidade e os processos de significação dos membros de distintas sociedades
antigas em lugar dos sistemas de “pensamentos
selvagens” anteriores. Mas as filosofias e religiões foram murchando e perdendo vigência na
Cristandade como formas efetivas de conhecimento, entendimentos totalizadores do mundo,
na medida em que os europeus se colocaram no
centro da formação da nova economia-mundo,
engendraram o capitalismo como sistema social
maquínico, construíram novas relações cada vez
mais instrumentais com a natureza e deslancharam a dinâmica da modernidade. O novo mundo
que se constituiu a partir de 1492 demandava
uma nova forma de conhecimento, que permitisse aos europeus, que o dominavam, administrarem sua existência – forma afinal encontrada,
depois de 150 anos de disputas entre a visão de
um universo regido por leis da filosofia natural
apreensíveis pela matemática (simbolizado por
Copérnico) e o naturalismo mágico ou vitalista
(simbolizado por Paracelso), na “ciência nova”
de Galileu e Newton.
A Ciência (experimental e quantitativa) tornouse inseparável da modernidade, fornecendo os
alicerces de sua instituição material e imaginária.
A Revolução Industrial consolidaria este entendimento do mundo, fornecendo um estímulo irresistível à ciência: ela se tornava cada vez mais
necessária para gerar lucros para as grandes
empresas industriais. Desde o final do século
XIX, ciência e técnica se combinavam nos departamentos de pesquisa das grandes corporações.
Alimentada também por vultosos investimentos
governamentais (afinal a pesquisa científica e
sua aplicação na produção de armamentos se
pôs, cada vez mais, no coração da “segurança nacional”), uma vasta esfera tecno-científica
tornou-se central no mundo capitalista/moderno. A mediação entre a sociedade e a natureza
passou a ser exercida, cada vez mais, por complexos sistemas peritos, que possibilitam a vida
urbana, fornecem energia, propiciam transportes
e circulação de pessoas e mercadorias em escalas gigantescas, viabilizam a comunicação e
oferecem, para as parcelas afluentes da humanidade, uma vida cada vez mais confortável (mas
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trazendo também novos riscos, de alta
conseqüência). Do nascimento à morte,
a vida das parcelas dominantes da sociedade se desenvolve hoje em casulos
dependentes da tecnociência e o próprio
Homo sapiens se torna objeto da técnica,
que assiste sua concepção e nascimento, medicaliza sua vida, modula seu comportamento e sua vida sexual e afetiva e
estende sua existência (o “homem como
objeto da técnica” para Hans Jonas).
E estas ciência e técnica flanqueiam,
agora, novos umbrais, graças à revolução da informática e das novas tecnologias de comunicação, que tanto aceleraram a produção, circulação e acesso a
uma cultura cada vez mais sofisticada e
sedutora (com a banalização da imagem)
como alavancaram e globalizaram a circulação de informações e a produção do
conhecimento científico (e de sua aplicação técnica). As tecnologias da informação alteraram a organização econômica
e modificaram o cotidiano de bilhões de
pessoas. Mas também viabilizaram novos ramos de pesquisa (genética, biotecnologias, nanotecnologias, análise
dos sistemas complexos...) e trouxeram
novas promessas fáusticas – além de novas ameaças, maiores e mais catastróficas do que nunca (como as iniciativas de
geoengenharia planetária ou o terrorismo
com armas biológicas).
Mas embora a ciência praticada tenha se
tornado cada vez mais complexa e distante de seu modelo inicial, ela continuou
assimilada pelo imaginário social no seu
formato original: portadora de certezas
em um mundo de incertezas e instabilidade, neutra e objetiva, porque baseada na separação de fatos e valores. No
senso comum, um conhecimento neutro,
que pode ser usado para o bem ou para
o mal. Esta vulgata – que amesquinha
o trabalho de desconstrução de mitos e
certezas das grandes mentes que construíram a visão de mundo científica nos
primeiros séculos da modernidade – é
também uma caricatura da ciência realmente praticada na produção do conhecimento de ponta sobre o universo e a
vida, embora por vezes espelhe bem a
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produção científica normal, altamente especializada, parcelizada e bastante associada à técnica modulada pelas necessidades do mercado
e controlada por patentes. Sua prevalência e o
lugar simbólico que ocupa no mundo atual não
são, todavia, um acaso. Estão estreitamente ligados à busca de controle técnico localizado das
várias esferas da existência. É necessário tornar
a realidade mecânica, para torná-la instrumental, previsível e manipulável. Uma causalidade
probabilística não garante, para além de âmbitos
técnicos limitados, nem controle, nem resultados
seguros, passíveis de serem transformados em
mercadorias...
Por não ser produtora de sentido, a ciência não
eliminou nem a religião, nem a filosofia, que subsistiu de forma implícita ou explícita. Em lugar algum isso ficou mais explícito do que nas ciências
humanas ou sociais. A concepção original de ciência, apesar de todas ambições (mecanicistas,
positivistas, funcionalistas e estruturalistas), era
impraticável na análise da sociedade. Para que
algo aproximado pudesse existir, foi necessária
uma reciclagem da filosofia e sua reforma, pela
atribuição do caráter de verdade científica a uma
crença (filosófica), a idéia da história como progresso humano; liberalismo e marxismo, capitalismo e socialismo compartilhavam esta mesma
crença, na qual o progresso econômico foi gradativamente deslocando o progresso moral ou
da razão do lugar central que tinha no Iluminismo. O critério maior de legitimação de qualquer
governo tornou-se o crescimento econômico,
sua capacidade de aumentar o acesso de sua
população a bem materiais (ou aquilo que o consumismo e a cultura da descartabilidade considera um aumento do bem-estar). Mesmo para o
marxismo – com exceções, como Mariátegui ou
Benjamin – era bom o que impulsionava os fins
últimos do desenvolvimento das forças produtivas, do fortalecimento da classe trabalhadora,
nos parâmetros da racionalidade instrumental
difundida pela Ciência moderna, o que lhe criou
uma grande dificuldade para a reflexão ética!
Hoje o “progresso” não é mais auto-evidente,
não pode mais ser tomado como um valor em
si. Muito do que é chamado de progresso (a começar pela acumulação generalizada de bens
de consumo duráveis identificados com conforto
e status social, pela geração de energia de fontes fósseis e pela maneira como grande parte da
humanidade se desloca pelo planeta nos atuais
sistemas de transporte – ou seja, a maioria da atividade produtiva atual) está destruindo grande parte dos ecossistemas
do planeta e produzindo uma extinção em
massa de espécies, que poderá arrastar
consigo a humanidade. Não é necessário, todavia, nem mesmo chegarmos ao
neoliberalismo e à crise ecológica para
questionarmos o progresso. Basta recordarmos que o século XX foi a época mais
violenta da história humana, marcada do
início ao fim por genocídios – dos armênios aos ruandenses, passando pelos então ultramodernos campos de extermínio
nazistas – e pela ameaça do holocausto nuclear, e que Auschwitz e Hiroshima
cristalizavam as técnicas mais modernas
de sua época.
A modernidade organizada a partir do
sistema auto-télico que é o capitalismo
construiu as formas de conhecimento necessárias para sua efetivação e suprimiu
aquelas que não lhe eram funcionais. A
vulgata da ciência funcionou e ainda funciona, principalmente para as camadas
afluentes e globalizadas da humanidade,
como a visão estruturante de sua relação
com o mundo. Isso tem uma parcela de
responsabilidade não desprezível por nos
encontrarmos, neste momento em que
estamos em uma encruzilhada inédita
para nossa espécie, frente a um cenário
mental tão desalentador: a incapacidade
de as instituições estabelecidas fornecerem uma medida estratégica para a ação
humana para além da quantificação mercantil; as parcelas afluentes da humanidade mergulhadas na voragem consumista e agentes ativas da destruição da
vida no planeta; vastas legiões de miseráveis passivas e desesperançadas, muitas vezes regredindo à fundamentalismos
religiosos; uma cultura, tornada descartável, funcional para estimular a expansão
permanente da produção industrial, mas
que já não oferece aquilo que toda cultura do passado oferecia, parâmetros estáveis para a produção de sentido, para a
existência e a atividade humanas.
No mundo cada vez mais sem sentido em
que vivemos, o descontrole e a hybris expressos na globalização são percebidos
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por parcelas cada vez maiores das populações,
que intuem que esta civilização gera uma irracionalidade sistêmica crescente. Mas as próprias vidas destas pessoas parecem tornar-se cada vez
mais sem propósito – sem que elas vislumbrem
alternativas dotadas de credibilidade. O consumo, o espetáculo, o individualismo e os modismos não são suficientes para dar um significado
denso à existência humana, gerando uma crise
no processo de identificação do indivíduo com a
sociedade. “Não existe uma auto-representação
da sociedade como centro de sentido e de valor, uma sociedade como que inserida em uma
história passada e uma história por vir, dotada
ela mesma de sentido, não ‘por si mesma’, mas
pela sociedade que constantemente a re-vive e
a re-cria dessa forma” (Cornelius Castoriadis, A
ascensão da insignificância, p. 156).1 Esta perda
de sentido é uma dimensão central da crise de
civilização em que estamos mergulhados.
A sociedade atual, é certo, continua reproduzindo crenças milenares que tem a adesão – profunda ou superficial – de bilhões de pessoas.
Mas, fundamentalmente, produz um sentido banal para a existência de seus membros afluentes
(e influentes): o hedonismo, o narcisismo, o darse bem e a busca de gozos privados são difundidos obsessivamente, produzindo ansiedade
permanente nas pessoas.
As opiniões, posições e desejos destas camadas se tornam cada vez mais volúveis e estes
indivíduos “leves”, libertos dos imperativos das
tradições e do peso do passado, são apresentados por alguns como pessoas mais livres. Lipovetsky caracteriza a sociedade atual como
“pós-moralista”, devido ao “crepúsculo do dever”
e ao desenvolvimento da “ética indolor dos novos tempos democráticos”. Giddens vai falar da
“intimidade como democracia” e da prevalência
da política dos estilos de vida.
Mas estas são variedades modernas do individualismo possessivo ligadas a uma cultura que
se tornou uma mercadoria entre outras, em circulação permanente, não oferecendo mais referências estáveis às pessoas. Se elas captam
uma dimensão da existência de certas parcelas
da sociedade, nada dizem sobre os grandes dilemas do mundo atual. Ou, se o fazem, é pela
negativa: a formação de estruturas de personalidade manipuladoras e manipuláveis, que reificam os seres humanos, incapazes de empatia
ou identificação com o outro (Adorno), que fa-
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zem do desempenho demandado pelo
sistema seu princípio de realidade (Marcuse), que consomem significados e experiências de vida através das imagens
presentes em tudo e, antes de mais nada,
em uma cultura efêmera, desprovida da
densidade que a cultura ligada à vida vivida sempre teve (Debord).
Mas as crises que se assomam em uma
grande crise sistêmica demandam outra
organização do mundo social e psíquico,
outro modelo de civilização. O horizonte
hoje colocado é o da ruptura não apenas
com o capitalismo globalizado, mas com
a civilização moderna. Na disputa política
e de idéias dos últimos duzentos anos, a
modernidade – expressa quer nos capitalismos, quer nos socialismos – representou o aprimoramento humano, a melhoria, o desenvolvimento e seus inúmeros
sinônimos frente ao “antigo regime”, à
“velha ordem”, às formações sociais arcaicas, pré-capitalistas ou a um capitalismo considerado “primitivo” para as forças
produtivas disponíveis para a humanidade. É nesta ótica que socialistas se apresentavam como as forças do “progresso”
contra a “reação” e se alinhavam com
outras forças progressistas contra os reacionários. Até bem recentemente, como,
por exemplo, na disputa conceitual travada no pensamento social dos anos 1980,
frente a pós-modernismos considerados
apologistas da ordem neoliberal, a esquerda sempre se colocava como defensora da modernidade – identificada com o
projeto iluminista. Mas não é necessário
sublinhar que, se tomamos a modernidade como uma época histórica, nada representa melhor a culminância do projeto
moderno na época de seu esgotamento,
no terreno das idéias, do que o pós-modernismo relativista, sua afirmação irrestrita do construtivismo social e seu culto
dos fragmentos, em que culturas e estilos
de vida são consumidos em um mercado
de significados.
O fato de a humanidade ter-se tornado
mais poderosa em sua capacidade de
manipular matéria e energia não significa
que ela tenha se tornado mais sábia! Isso
só resultaria de novas instituições sociais
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e de novos processos de subjetivação, que teriam que constituir seres humanos muito distintos dos atuais. E da difusão pelo tecido social de
uma compreensão muito mais abrangente e integrada dos processos da natureza e sociedade,
hoje chapada e unidimensional, de um conhecimento do mundo muito mais profundo.
Pistas para uma ciência integral
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O diagnóstico traçado até aqui obriga, para sermos responsáveis, que trabalhemos pela construção de saídas coletivas nos diversos âmbitos
– e, nos marcos que discutimos aqui, inicialmente no âmbito “filosófico”. Quais os caminhos para
superarmos uma situação epistemológica e axiológica tão deprimente? Como pode emergir uma
nova forma de conhecimento capaz de fornecer
parâmetros melhores para orientar nossa atuação individual e coletiva? Quaisquer respostas
que formulemos são aproximações tateantes e
incertas, esboços de caminhos que só se revelarão falsos ou verdadeiros a posteriori, se forem
efetivamente percorridos pelas sociedades atuais ou futuras; de outra maneira, terão sido apenas potenciais não efetivados.
Nossa época demanda uma visão de mundo
qualitativamente mais integrada e complexa, distinta daquelas hoje em circulação, capaz de totalizar uma apreensão e vivência muito mais plena
da natureza, oferecer uma compreensão menos
idealizada da história humana, da sociedade e
da ciência moderna, colocar em perspectiva as
demais formas de conhecimento e a inserção social do próprio conhecimento, situar o indivíduo o
mundo, confrontá-lo com sua condição limitada
e orientar sua ação. Temos necessidade de uma
revolução epistemológica prática, uma nova forma de conhecimento capaz de superar em diversas áreas a separação entre fatos e valores,
capaz de buscar ao mesmo tempo apreender da
forma mais rigorosa a realidade e reconhecer
sua relação com valores estruturantes de significado para a humanidade, restabelecendo uma
idéia de propósito e sentido comum à atividade
humana.
As formas de conhecimento são invenções sociais, somente possíveis em algumas circunstâncias históricas únicas. Não ajuda muito especular abstratamente sobre estas condições;
devemos, pelo contrário, mostrar as transformações que vem se dando no terreno epistemoló-
gico contemporâneo, para evidenciarmos
como elas podem apontar um novo marco cognitivo, capaz de lidar com muitos
aspectos da existência não apreendidos
pelas formas passadas de conhecimento.
E não podemos deixar, neste percurso,
de partir da ciência, a forma de conhecimento dominante que herdamos, embora
ela não baste para dotar a humanidade
da sabedoria necessária para enfrentar
os desafios do presente – Habermas vai
destacar (em “Fé e saber”) o papel civilizador desempenhado pelo senso comum
de uma opinião pública democraticamente esclarecida pela ciência, que terá um
impacto tanto maior quanto mais próximos do nosso cotidiano forem estes conhecimentos científicos, embora o filósofo não problematize a ciência necessária
para cumprir hoje este papel.
Há, em primeiro lugar, um desenvolvimento interno da própria ciência, em seus ramos de ponta, que caminhou para fora do
modelo axiológico, cosmológico e ontológico proposto pela física newtoniana. Este
modelo tinha se infiltrado gradativamente
no “mundo da vida” moderno oferecendo
uma falsa mas muito eficiente âncora de
segurança existencial para a visão secular de mundo. Mas ele foi sendo solapado
até o ponto de deixar de existir na pesquisa. Uma reforma inicial deste sistema foi
empreendida pela física einsteiniana com
a introdução do espaço-tempo pela relatividade geral. Mas foi a introdução da função de onda pela mecânica quântica que
nos conduziu a um mundo que obedecia
uma lógica probabilística. As implicações
filosóficas das descobertas de Planck,
Bohr, Dirac, Heisenberg e Schorödinger
na primeira metade do século XX pareceram chocantes e inaceitáveis até mesmo
para um dos formuladores originais da
mecânica quântica, Einstein – que tentou, sem êxito, nos assegurar que deus
não é um jogador de dados compulsivo.
Todavia, se não tínhamos mais no mundo
dos fenômenos quânticos uma causalidade determinista, ele continuava inserido em uma perspectiva geral passível
de cálculo e manipulação técnica para
produzir efeitos controlados (das armas
1º Semestre de 2009 Revista
nucleares aos circuitos integrados, do laser à
aparelhos de tomografia). Uma terceira ruptura, ainda mais profunda, em geral associada à
figura de Prigogine, foi a introdução da flecha
do tempo (do tempo irreversível) como aspecto
central da realidade pela física dos processos de
não-equilíbrio (que levou a conceitos novos de
ampla utilidade como os de auto-organização e
estruturas dissipativas) e pelo desenvolvimento
dos sistemas dinâmicos instáveis – que constata
que a irreversibilidade e o fluxo do tempo são
fenômenos ontológicos incontornáveis, dando
para parte das leis da natureza o sentido de possibilidades e não mais de certezas.
É temerário retomarmos em um parágrafo, ainda
mais para alguém de fora das ciências naturais,
o significado destas descobertas para a física em
primeiro lugar, mas também para a química, cosmologia, meteorologia, etc, disciplinas que foram
sendo obrigadas à romper com a idéia de uma
natureza mecânica e atomista, regida por um
determinismo linear e pela previsibilidade, onde
o limite para a previsão seria nosso precário conhecimento da realidade, para captar fenômenos
e níveis de existência mais básicos regidos por
lógicas probabilísticas e dinâmicas complexas,
marcadas por processos emergentes, caóticos e
de autopoiese (Maturana e Varela).
Os fenômenos probabilísticos são, há muito,
conhecidos na vida cotidiana em experiências
como os jogos de azar ou os limites da precisão das medidas. Mas as questões colocadas
em voga no século XX alteram profundamente
a compreensão da realidade no seu nível mais
fundamental, ontológico. E esta lógica passa ser
cada vez mais aplicada não apenas à biologia
(surgimento e evolução da vida) e à ecologia
(nas dinâmicas das populações), mas também a
fenômenos sociais (na análise de comportamentos coletivos, do trânsito às multidões, passando
pela lógica de mercado).
A imagem do mundo, ontologia e cosmologia desenhadas pela ciência até o século XIX seriam
pálidas simplificações, até mesmo caricaturas,
se comparadas com aquelas que a ciência foi
impulsionando no último século.
O que é a matéria, o que é o universo, o que é a
vida, o que é a inteligência, como se constituíram
e vêm se modificando são, todas, questões científicas maiores cujas respostas cada vez mais
complexas (e sempre resultantes de trajetórias
cheias de avanços e impasses) oferecem hoje
FACOM
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uma imagem do mundo contra-intuitiva,
probabilística, de interdependência –
avassaladora e nada confortante para os
seres humanos que buscam certezas e
um lugar especial no universo.
O que significa para os não especialistas, por exemplo, dizer que o universo
é constituído de 5% de matéria comum,
23% de matéria escura e 72% de energia escura? – sendo que nem mesmo os
cientistas sabem o que seja a matéria e
a energia escuras. Mas o aspecto decisivo é que grande parte das implicações
destas descobertas ou debates não fica
restrito aos cientistas, mas vaza da ciência para o senso comum, influenciando
aos poucos, mas de forma profunda, as
crenças e conhecimentos da população
como um todo (como podemos observar,
por exemplo, com um tema mais consolidado, como o do darwinismo).
Estamos, pois, longe dos discursos pósmodernos sobre “o fim da ciência”; suas
fronteiras são, ao invés disso, mais amplas do que jamais o foram, com uma
nova era de descobertas se abrindo em
vários campos ligados às perguntas fundamentais e mesmo existencialmente
decisivas (por exemplo, a pesquisa por
planetas extra-solares persegue hoje,
de forma prática, a resposta à questão
da existência da vida fora da Terra). Isso
não remete tampouco para qualquer reconciliação com a religião ou o mito, mas
para terrenos ainda mais inóspitos e instáveis, de modo que é fácil compreendermos porque a imagem que se difunde da
ciência é a da proposta newtoniana. No
abismo entre a multiplicidade de ciências
complexas, o que elas nos revelam e a
perplexidade perante as questões que
nos trazem, de um lado, e a difusão saturada da vulgata pela mídia e pelo sistema
escolar, de outro, a maioria da população
continua agindo com base em um senso
comum contraditório que por vezes ignora aspectos básicos das ciências. Isso
permite entender porque mesmo a idéia
simples da modificação imanente da vida
explicada pela evolução por seleção natural esteja hoje sob o ataque religioso do
criacionismo! Mas para os formuladores
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Revista FACOM 1º Semestre de 2009
e formadores da opinião pública estes debates
mais sofisticados podem modelar e remodelar
uma visão do mundo.
A ciência cumpriu bem demais, neste terreno,
sua missão, remetendo-nos para um universo
que a humanidade considera, pelos valores que
embasam as visões de mundo hoje dominantes,
aterrador e inaceitável – um universo que só poderia ser amplamente assimilado nos marcos de
outra cosmologia, outra ontologia e, fundamentalmente, de outra ética. Mas é claro que esta
ciência de ponta da atualidade só terá o alcance
potencial que lhe damos se for apresentada de
forma distinta para um público amplo de forma
que as implicações existenciais e axiológicas
que coloca sejam aceitas, permitindo a aceitação
da fragilidade da vida e da condição humana.
Temos, em segundo lugar, as conclusões de
mais de dois séculos de debates da filosofia
das ciências. A separação de fatos e valores e
a neutralidade axiológica sempre foram assumidas pela ideologia da ciência e pela filosofia espontânea dos cientistas como um de seus traços
fundantes. Mas esta imagem não pode ser conciliada com a realidade. Desde Thomas Kuhn,
ficou por demais estabelecido o caráter histórico
do empreendimento científico (ainda que para
Kuhn esta evolução não signifique seu enraizamento na história social mas seja o resultado da
descrição da história interna da ciência, de seus
paradigmas, que são patrimônio de uma comunidade de pesquisadores).
A ciência se transforma na medida em que as comunidades científicas assumem novos paradigmas, que oferecem os programas de pesquisa
normais, em torno dos quais trabalham a quase totalidade dos cientistas. Estas comunidades
são componentes estratégicos da enorme camada de peritos que integram a esfera tecnocientífica que hoje media a relação da sociedade global
com a natureza, trabalhando o projeto de eliminar o caráter natural da natureza, constituir um
mundo purgado da natureza – tomada por uma
busca de onipotência, em uma espécie de hybris
que tem afinidades eletivas com a dos mercados
sem controle.
Embora a ciência normal tenha se pretendido
desprovida de valores (apesar de ter na eficácia e no controle da natureza seus valores fundamentais, tematizados na origem por Bacon),
ela é permeada por aspectos normativos. Hugh
Lacey vai, procurando salvaguardar a objetivi-
dade da ciência frente aos relativismos,
elaborar uma lista de valores cognitivos
abrangentes (desdobrados em inúmeros
outros), utilizados na escolha de paradigmas ou estratégias: adequação empírica,
consistência, simplicidade, fecundidade
(fertilidade), poder explicativo e verdade
ou certeza; ele as distingue das “virtudes
científicas” que fundamentam uma autonomia da ciência, como objetividade,
distanciamento, honestidade, integridade, razoabilidade, submissão à evidência
(Valores e atividade científica, cap.III). Os
valores cognitivos que garantem a objetividade do empreendimento científico
são aqui distintos dos valores sociais que
orientam a escolha das linhas e temas de
pesquisa. Hilary Putnam retoma a tradição pragmatista (e Pierce) para lembrar
que toda a experiência é permeada de
valor e normatividade; a ciência é carregada de valores epistêmicos: coerência,
plausibilidade, razoabilidade, simplicidade, naturalidade, beleza de uma hipótese, sucesso preditivo passado, etc (O
colapso da verdade e outros ensaios, cap
2). “O conhecimento dos fatos pressupõe
o conhecimento dos valores”, conclui Putnam, apesar de “a história da filosofia da
ciência da última metade do século ter
sido amplamente uma história das tentativas [com Popper, Reichenbach, Carnap,
Quine]... de evadir-se dessa questão”
(cap.8, p. 191-2).2
Se as ciências são portadoras de valores,
cabe perguntar que valores almejamos
para esta atividade, além das “virtudes
científicas”; uma pergunta que remete, de
fato, para a questão de que ciência precisamos e desejamos. Em termos menos
abstratos, será que a lógica da pesquisa científica, nas suas culturas teóricas,
seus resultados e nos sistemas técnicos
decorrentes seria a mesma se o objetivo é o controle de processos naturais,
medidos em termos de menor dispêndio
de energia, tempo e custo, considerando
que os recursos naturais são, para fins
práticos, inesgotáveis e a biosfera não é
ameaçada pela atividade humana?; ou
se o objetivo é a geração de energia e
a organização de sistemas de transpor-
1º Semestre de 2009 Revista
tes sem emissão de carbono e a preservação da
biodiversidade do planeta, produzindo o mínimo
impacto sobre a biosfera já que a humanidade a
está desestabilizando de maneira catastrófica?
Estas não são questões em uma primeira abordagem científicas, mas são também questões
científicas, com as quais a comunidade científica
não pode lidar apenas na condição de cidadã, já
que envolvem empoderamento e expertise técnica em suas áreas, definições que não podem ser
tomadas apenas por critérios democráticos, etc.
Devemos ampliar a educação científica da sociedade e o controle social sobre as atividades tecno-científicas; todavia isso não elimina o papel
central que os “especialistas” terão não apenas
nos debates de prioridades sociais, mas também
na sua viabilização em termos científicos e tecnológicos. E isso requer que esta comunidade
esteja mobilizada em torno de outros valores,
que ela os coloque no centro de sua atividade
de pesquisa.
Em terceiro lugar, presenciamos hoje, nas discussões dos movimentos sociais sobre as ciências naturais e a tecnologia, um questionamento
da separação entre valores e fatos, definições
morais e conhecimento científico ou, como colocava Weber, a racionalidade substantiva e a
racionalidade formal. É esta que, na modernidade, avança com o mercado e a administração
impessoal. Heidegger vai deslocar a ênfase da
administração para a tecnologia: a “jaula de ferro” da burocracia de Weber vai se transformar
em todo o sistema tecno-científico que conforma
a vida material moderna: de realidade neutra,
a tecnologia passa a ser vista como dotada de
um valor fundamental, a pura dominação. Este
debate foi herdado por Adorno e Horkheimer, na
saída da Segunda Guerra Mundial, em particular na Dialética do esclarecimento, que retrata
de forma brilhante a transformação da razão em
mito e a dominação cada vez mais destrutiva da
natureza pela humanidade alienada, mas sem
oferecer nenhuma rota de escape da onipresente dominação da razão transformada em técnica. É Herbert Marcuse que se recusa a aceitar
esta aporia e propõe uma mudança no caráter
da instrumentalidade, coerente com os objetivos
de emancipação, uma “tecnologia da libertação,
produto de uma imaginação científica livre para
projetar e produzir as formas de um universo humano sem exploração e exaustão” (An essay on
liberation, p. 19).3
FACOM
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O problema transforma-se, então, não só
no que a tecnologia está fazendo conosco, mas na questão política do que nós podemos fazer com a tecnologia realmente
existente à nossa volta e que tecnologia
queremos para o futuro. Os imperativos
sociais fundamentais são internalizados
como orientações de prioridades para a
pesquisa científica e como culturas técnicas determinadas. É colocado como
uma questão prática que o problema
da ciência, da técnica e dos valores se
torna passível de solução. Quando, por
exemplo, movimentos camponeses ou
ambientalistas de todo o mundo afirmam
que as sementes incorporam valores e os
contrapõem aos valores que legitimam a
Monsanto. Ou quando as comunidades
de software livre questionam a eficácia
dos softwares proprietários, enfatizando
que a mobilização colaborativa é mais
eficaz para gerar conhecimento, compartilhá-lo e produzir um desenvolvimento técnico mais horizontal. Ou ONGs se
perguntam sobre o sentido da pesquisa
de ponta por corporações farmacêuticas
se as patentes impedem que centenas de
milhões de pessoas tenham acesso aos
medicamentos de que necessitam para
as doenças negligenciadas, enquanto
bilhões são investidos em sofisticar e reciclar remédios de uso contínuo, aumentando cada vez mais a parcela de gastos
com saúde nas economias de mercado e
impedindo que a população pobre tenha
acesso também aos medicamentos para
estas doenças. Depois de um século de
experiências traumáticas com o uso destrutivo da tecnologia de ponta, produzida
por determinadas orientações de pesquisa das ciências duras, da energia nuclear à genética, elas deixam de ser vistas
como neutras, para se tornarem o foco de
disputas políticas intensas, que buscam
reinseri-las em outras culturas técnicas,
organizadas a partir de imperativos distintos da produção de armas ou consolidação de monopólios.
Evidentemente, de nada ajuda tomarmos
a discussão da forma esquemática com
que ela aparece nas páginas dos jornais.
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As pesquisas com transgênicos, por exemplo,
não são, em termos rigorosos, um mal em si ou
o princípio da precaução deveria ser aí tomado
de forma tão estrita que paralisasse toda investigação, mas estes quase nunca são os pontos
fulcrais em debate (ao contrário do que se alega). Nenhum geneticista trabalhando para as
grandes corporações de agronegócios ou nas
universidades em associação com elas deveria
poder, honestamente, pretextar que seu trabalho
represente o avanço do conhecimento humano ignorando que ele contribui para uma vasta
maquinaria econômico-social que está retirando
de bilhões de camponeses o controle das condições de sua existência.
Conceber as ciências e as técnicas como campos de disputa de interesses, valores e rumos da
civilização industrial e pós-industrial – superando
tanto a visão ingênua da sua neutralidade (que
é um problema distinto da sua objetividade e reprodutibilidade), como a ideologização primária
que as vinculavam mecanicamente a interesses
de classe – se tornou central para movimentos
sociais que dialogam com centenas de milhões
de pessoas pelo mundo afora. Mas temos que
reconhecer o tamanho do desafio: quase todos
os programas de pesquisa científica, seus parâmetros de avaliação e as culturas técnicas existentes são hoje muito mais um obstáculo do que
um ponto de apoio para a luta por uma sociedade sustentável.
Em quarto lugar, temos a situação das ciências
sociais. O entendimento do mundo e da existência humana foi, ao longo dos últimos dois
séculos, gradativamente separado da religião
e secularizado. Navegando entre a vulgata das
ciências nascidas da revolução newtoniana (depois reforçada pela darwinista), cada vez mais
poderosa, e as ideologias oriundas das filosofias
políticas, as ciências humanas moldaram uma
apreensão “progressista” da sociedade e, nesta
medida, auxiliaram na produção de sentido pelos
indivíduos. Elas reivindicavam, em consonância
com a razão, um estatuto de cientificidade, coerente com um horizonte mais amplo de futuro a
ser construído, difundido por toda a vida social e
alimentando uma dinâmica de disputa de idéias
e projetos – um sentido de história, tão forte entre
a Revolução Francesa e último quarto do século
XX. Mas este impulso durou enquanto o capitalismo estava sendo desafiado por uma alternativa socialista vista como concreta por amplos se-
tores da sociedade e apresentava, nesta
disputa, alguma capacidade inclusiva; ele
se esvaiu com a globalização neoliberal
e o colapso dos socialismos burocráticos.
Agora, a constatação do fracasso do mito
moderno do progresso, compartilhado de
maneira quase universal, criou um profundo impasse epistemológico nas humanidades, enquanto a inércia reproduz os
velhos paradigmas herdados do século
XIX e da virada para o século XX (ou suas
reatualizações). As crises do presente se
avolumam sem que qualquer alternativa
política real, que alimentava o pensamento crítico, cresça e ocupe o vazio. Em
termos kuhnianos, a ciência social normal
não faz mais sentido como antes e outro
paradigma deveria ser utilizado; mas somente se ele puder ser proposto de forma
coerente, com mais poder explicativo que
o antigo...
Por fim, em quinto lugar, atingimos, com a
questão ambiental, um patamar que nos
remete inequivocamente para além da
lógica da modernidade. Temos aqui uma
determinação que subsume, hoje, todos
os demais níveis da existência social.
Boa parte da comunidade científica concernida no estudo do sistema Terra concluiu, a partir das suas áreas de conhecimento e dentro de todos os limites deste
conhecimento que já debatemos, que a
biosfera do Planeta Terra está no limiar
de uma “mudança de estado” devido à
conjugação dos impactos dos processos
industriais e do modo de vida consumista sobre as dinâmicas do “sistema Terra”
(atmosfera, mares, temperatura). Efetivada, esta mudança será, pela sua rapidez,
catastrófica para quase todos os seres
vivos do planeta e para a humanidade.
Evitar esta mudança ou atenuar seus
impactos é o imperativo maior na defesa
do que podemos considerar de “civilização” e impõe uma rápida mudança tanto
nas matrizes de energia e transportes da
sociedade atual, como na ruptura com o
consumismo. O problema se torna, todavia, mais dramático porque todos sabemos dos enormes obstáculos que se
opõem a isso.
1º Semestre de 2009 Revista
Daí o paradoxo que vivemos: a ecologia é uma
ciência natural na acepção forte do termo, nascida como um ramo da biologia na esteira do
darwinismo na segunda metade do século XIX,
mas estruturada no século XX dentro de uma
lógica complexa. Mas é esta ciência que está
hoje no coração da Política, dos debates de sociedade mais vitais e estratégicos. Ao colocar-se
o problema macro da relação entre a sociedade global e a biosfera planetária, ela constata
a inviabilidade da continuidade do uso de combustíveis fósseis, do industrialismo e do consumismo... a inviabilidade a longo prazo do mundo
hoje existente.
Mas o paradoxo se amplia porque nenhum conhecimento ou sistema de idéias científico alia a
análise da realidade viva (inclusive da sociedade humana no mundo) com a defesa de valores
tão explícitamente como a ecologia. Trata-se de
uma compreensão “objetiva” dos sistemas vivos
desenvolvida a partir da valorização da diversidade da vida, que portanto enfatiza a importância da preservação desta diversidade, das
condições de sustentabilidade dos diferentes
ecossistemas, etc. E é ela que se coloca no centro da análise do mundo atual e de suas contradições, justificando a necessidade e urgência de
outra forma de civilização. Qualquer que seja a
apreciação que se tem da obra de James Lovelock, a defesa de Gaia, a preservação de certas
características da biosfera planetária é um prérequisito para a própria possibilidade de sobrevivência da nossa espécie em marcos que possamos nos reconhecer como humanos. Porque
projetando os futuros possíveis, isso não está
mais dado em quaisquer condições: alguns se
jogam de braços abertos nos delírios tecnocráticos e na vertigem do pós-humano, sonhando
com a passagem pela singularidade (ou convergência tecnológica) ou com o surgimento de
máquinas espirituais (Kurzweil). Mas, de outro
lado, a ecologia acolhe, no diagnóstico do que
é necessário para preservar a vida, numerosas
ciências “duras” (climatologia, metereologia, planetologia, biologia, zoologia, botânica, oceanografia, etc), podendo conduzi-las para direções
muito diferentes dos pesadelos da tecno-ciência.
É entre estes dois caminhos que a humanidade
terá que escolher. Em um caso, o conhecimento
dominante será o oferecido pela ciência clássica.
Em outro, por uma ciência integral, onde a ecologia terá um papel estruturante não apenas como
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uma ciência normal, mas como fonte da
sabedoria necessária para reestruturar
as condições de existência humanas.
A partir da ecologia adentramos outro terreno axiológico, invisível para o mundo
moderno. Nele comparecem a questão
da sustentabilidade, dos direitos da natureza e dos animais, da responsabilidade
dos seres humanos de hoje para com as
gerações futuras (para Hans Jonas o coração da ética contemporânea). Era uma
questão que já tinha sido corretamente
intuída, há mais de duas décadas, por
Perry Anderson, que lembrava que “as
relações entre natureza e história trazemnos para o momento constitutivo, longamente adiado, da moralidade socialista”.
Em síntese, podemos constatar que a
lógica complexa da realidade natural e
social e os conhecimentos da ciência de
ponta estabelecida para compreendê-la
vêm sendo gradativamente apropriados
pela sociedade contemporânea – tanto por setores da comunidade científica
como por uma série de movimentos sociais, que rompem na prática com o mito
da neutralidade axiológica. Isso tem,
todavia, pouca relação com o lugar simbólico ocupado pela imagem dominante
mitificada da ciência na fundamentação
do mundo atual, que deve ser combatida
pelos movimentos sociais e pela própria
comunidade científica.
Necessitamos, na encruzilhada histórica
em que adentramos, de outros programas
de pesquisa, outra lógica de valoração do
trabalho científico, outro tipo de intervenção
dos membros da comunidade científica na
esfera pública (consideremos, por um instante, a forma como tem atuado James
Hansen na questão da mudança climática...). A ecologia – uma ciência voltada não
para o controle e a dominação da natureza
mas para o entendimento das condições
de preservação da vida – oferece um enquadramento macro para a reorganização
do conjunto da esfera tecno-científica e da
própria sociedade. Oferece também um
paradigma de ciência muito mais útil para a
vida prática da humanidade, na atualidade,
do que o modelo newtoniano ainda difundido e tão instrumentalizado pelo poder.
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Isso não elimina o impulso científico de decifrar
os mistérios da existência (que os confrontou
desde o século XVII como estamos agora fazendo, da física de partículas à cosmologia, da
genética à paleontologia, da metereologia à planetologia?) e oferecer novos poderes à humanidade, reduzindo as incertezas e melhorando
suas condições de vida. Mas isso deve ser radicalmente desconectado do enquadramento da
ciência pela tecno-ciência mercantil, das ambições fáusticas ou prometéicas de moldarmos a
natureza segundo nossas fantasias ou fazermos
da acumulação de bens industriais, tornados
símbolos de status, o propósito da vida.
A ciência nova e integral que necessitamos para
nos orientar no trânsito para outra civilização
deve partir da constatação de que somos parte dos sistemas vivos e dependemos deles para
continuarmos a existir; que devemos alcançar
alguma espécie de equilíbrio na relação com a
biosfera do planeta; que nossos conhecimentos
são limitados e que, em muitos casos continuarão sendo, porque parte importante daquilo que
existe segue uma lógica probabilística; que esta
imprevisibilidade deve ser vista por nós como
parte do encanto da existência; e que tudo isso
exige assumirmos outros valores na base desse
conhecimento objetivo do mundo e da produção
de sentido a ela associada.
Um propósito comum
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Devemos agora retomar nosso problema maior:
vivemos uma civilização que não oferece aos
seus membros um sentido de vida na acepção
forte do termo. Na sua ausência, vale tudo. O que
emerge das ciências de ponta é uma visão da
existência como processos complexos, dos quais
temos um conhecimento limitado e um controle
ainda menor. É a necessidade ver-nos como parte
integrante da biosfera do planeta e, se queremos
sobreviver, solidários com ela. Esta compreensão
não nos oferece apenas o melhor conhecimento
possível da realidade, mas também uma apreensão do nosso lugar no universo, uma definição do
que pode ou não pode existir ou ser feito e uma
nova escala de avaliação moral da ação humana
em sociedade frente à natureza. Mas esta ciência,
se vier a se impor como paradigma dominante,
ainda não é, em si mesma, suficiente para oferecer um prumo para a ação dos indivíduos uns
frente a outros em sociedade.
A linha que separa a ciência das outras
formas de conhecimento é, neste nível,
bastante tênue, e deverá ser cruzada
conscientemente pela comunidade científica, dotando-se de objetivos e propósitos que não emergem da própria ciência
(como percebeu Lovelock, quando viu
sua teoria de Gaia como sistema autoregulado ganhar contornos míticos – que
ele rejeita veementemente). Porque a crítica do progresso, ou pelo menos à visão
de progresso construída nos últimos dois
séculos – subjacente a toda a discussão
que fizemos até este ponto – traz à tona
um problema de enorme complexidade e
abrangência. A crença no progresso sempre esteve baseada não apenas no avanço científico, mas, antes de tudo, em uma
convicção filosófica, no humanismo, para
Erich Fromm, na sua “expressão mais
simples, a crença na unidade da raça humana e na possibilidade de o homem se
aperfeiçoar a si mesmo através do próprio esforço”. Era, de fato, o humanismo
que oferecia a base filosófica subjacente
a todo movimento de reforma social que
procurava realizar a idéia de perfectibilidade humana na história, desde que esta
idéia foi formulada pela primeira vez pelos filósofos cristãos do Renascimento,
no século XV. Embora suas raízes possam ser encontradas nos filósofos gregos, nos profetas hebreus e na pregação
de Cristo, este humanismo floresceu na
modernidade, se tornando constitutivo
do nosso pensamento filosófico e político com Pico della Mirandola, fornecendo
os valores e as justificativas de todas as
propostas utópicas depois de Thomas
Morus, que afirmou pela primeira vez a
igualdade fundamental de todos os seres
humanos frente à idéia até então vigente
da desigualdade inata. Dos niveladores
da Revolução Inglesa aos socialistas do
século XX, passando pelos iluministas,
todo pensamento social progressista foi
humanista. Seria possível sustentar, sem
o alicerce do progresso (que é distinto da
possibilidade de aperfeiçoamento da vida
humana em sociedade), um projeto político emancipador?
1º Semestre de 2009 Revista
A idéia da ecologia como valorização da diversidade da vida não é suficiente para fundamentar a defesa da vida humana, dar-lhe qualquer
destaque perante as outras espécies animais ou
embasar um comportamento moral perante outros seres humanos – em especial quando nossa
espécie está produzindo uma grande extinção
em massa da vida na Terra. O humanismo, que
fez isso em grande parte da época moderna, foi
sendo corroído não só pelo mercado, pela barbárie moderna (dos genocídios das populações
americanas a Auschwitz e Hiroshima!) e pela crise do progresso, mas também pelo trabalho de
desconstrução, pelo pensamento social e filosófico, das fontes transcendentais de sentido. Marx,
Nietzsche e Freud, cada um deles fixando cada
vez mais a humanidade na imanência da natureza e da cultura, mostraram que todas as idéias
são construções sociais e históricas, sujeitas à
injunções de classe, de poder, dos desejos dos
indivíduos. Se o homem e a mulher fazem-se a si
próprios, como afirma a antropologia, eles também estabelecem seus valores. São os desejos
humanos que engendram os valores humanos.
Os atributos e potencialidades da espécie humana são efetivados no curso da história, sempre
abrindo ou fechando possibilidades de desenvolvimento, de acordo com as instituições estabelecidas pelos seres humanos e os agenciamentos
de subjetividade que elas propiciam. Daí emerge uma idéia da incompletude (assim como de
incerteza) do ser humano, caracterizado por um
processo permanente de humanização potencial,
bem como pela possibilidade de desumanização.
Sartre, otimista, dizia: “somos seres que se debatem para estabelecer relações humanas e para
chegar a uma definição do homem... buscamos
viver juntos, como homens, buscamos ser homens. Por conseqüência, é através desta procura
que podemos considerar nosso objetivo. Noutras
palavras: nosso objetivo é atingir um corpo constituído no qual qualquer um seja um homem e no
qual as coletividades sejam humanas”.
O humanismo expressa, assim, não valores absolutos, mas o processo pelo qual buscamos
como espécie realizar, em cada contexto histórico e social, aquilo que podemos, neste momento, ser – nossas potencialidades. Na filosofia
política, isso já foi apresentado como nossa essência como seres genéricos que podem, com
a modernidade, verem-se como senhores de si
mesmos, superando sua condição heterônoma.
FACOM
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Mas os desesperançados não podem verse como construtores de seu próprio destino, nem ter qualquer identificação com
um projeto filosófico sofisticado. Para
eles, esta resposta filosófica é insuficiente; suas angústias encontram respostas
no terreno religioso, capaz de oferecer
absolutos aos fiéis, como indica o crescimento dos fundamentalismos religiosos. A filosofia se formou, frente ao mito,
como resposta alternativa à religião para
a produção de significado para os seres
humanos no contexto da centralidade da
vida política, seja na Grécia seja como na
modernidade, e só pode se sustentar se
a política for colocada no coração da vida
social. É a vitalidade do debate político e
da esfera pública que cria condições para
o rechaço dos absolutos.
Entramos em uma era de crise e de grandes dilemas que certamente estimulam
a retomada prática dos debates de modelo de civilização e da disputa política
por eles. A política pode, pois, voltar a
se colocar no centro da condição humana contemporânea e demandar um conhecimento capaz de sintonizá-la com o
presente e com os poderes de que a humanidade agora dispõe. Porém, para que
esta disputa tenha um desfecho positivo,
uma nova visão de mundo terá que estabelecer sua hegemonia, tornando-se o
senso comum para parcelas significativas
da sociedade.
Mas não podemos dizer que a construção
de um sentido comum para uma espécie
humana – obrigada, nesta quadra histórica, a se confrontar com a fragilidade de
sua humanização e seus limites como
comunidade planetária – resultará tão
somente de uma filosofia política que se
apóie nos conhecimentos fornecidos pela
ecologia. Uma nova visão de mundo não
surge da justaposição de conhecimentos/
crenças já estabelecidos, mas de sua fusão em algo novo, não planejado. Tratase, sempre, de um fenômeno de “emergência”, do surgimento do novo a partir
de propriedades imprevistas a partir dos
elementos antes disponíveis.
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Há, na espécie humana, uma tensão permanente entre os impulsos, as possibilidades e as fantasias de nossa imaginação (a dimensão menos
compreendida de nossa capacidade simbólica,
que inclui tanto nossa afetividade e criatividade, como nossa destrutividade), parte das quais
sempre se efetivam na vida, e o caráter social
inato de nossa espécie (afinal somos animais sociais, como todos os nossos parentes primatas)
que se expressa na moral comum que fomos
acumulando, com altos e baixos, na história.
É essa “humanização”, para alguns ligada a valores transcendentes, essências ou absolutos, para
outros construção humana no seu devir, o universal concreto – contestável, incerto, sempre em
disputa, mas muito real – sobre o qual podemos
nos apoiar para defender os direitos humanos,
construir relações de respeito e solidariedade entre indivíduos e culturas, sobreviver e talvez melhorar como espécie, pelos agenciamentos que
novas instituições venham a permitir.
Sem isso, todo o poder sobre a natureza se expressa principalmente como capacidade destrutiva, como predação do planeta, como enfatiza a
ecologia profunda.
Há muito em jogo nos complexos conflitos dos
dias que correm, como bem perceberam os filósofos contemporâneos (veja-se, por exemplo, o
debate Sloterdijk, Fukuyama, Habermas e Gorz).
Em um contexto histórico em que nossa capacidade destrutiva é tão ressaltada, o antigo pânico
do pensamento conservador a respeito da perda
de controle da sociedade por parte dos tementes
a Deus, dos sábios, dos aristocratas ou simplesmente dos poderes estabelecidos produz o ressurgimento de todo tipo de tentações autoritárias,
algumas sob formas “modernas” e “sofisticadas”.
Se o humanismo é uma forma de domesticação
da fera humana, por que não medicamentalizar o
controle social? Por que não adotar formas mais
eficazes, industriais, de domesticar homens que
a engenharia genética promete disponibilizar?
Por que não nos entregarmos às promessas da
tecno-ciência capitalista?
O medo da utopia, de que fala Jameson, ganha
hoje, com a estruturação concreta de uma comunidade humana planetária, novas determinações, que Bauman expôs com propriedade. “Se
a miséria que [antes] podíamos não apenas ver,
mas também mitigar ou curar, nos lançava numa
situação de escolha moral capaz de ser administrada pela ‘expressão soberana da vida’ (mes-
mo que isso fosse dolorosamente difícil),
[agora] o fosso crescente entre aquilo de
que (indiretamente) nos tornamos conscientes e aquilo que podemos (diretamente) influenciar eleva a incerteza que
acompanha todas as escolhas morais a
alturas sem precedentes, nas quais nossos dotes éticos não estão acostumados
e talvez nunca sejam capazes de operar.
A partir dessa dolorosa percepção de
impotência, talvez insuportável, ficamos
tentados a correr em busca de abrigo.
A tentação de converter em ‘inatingível’ o
que é ‘difícil de administrar’ é constante, e
crescente...” (Amor líquido, p. 119).4
Construir as formas de pensamento e as
instituições democráticas para lidar com
esta “impotência”, com esta realidade “difícil de administrar” que é, por vários motivos, transformada em “inatingível” – ‘supraliminar”, como chama Gunter Anders –,
leva tempo, mas o tempo humano não é
linear, é o resultado das experiências vividas, e a velocidade de todos os processos nos quais estamos imersos está se
acelerando brutalmente, numa escala que
nunca aconteceu antes. O mundo contemporâneo está propiciando a realização
de experiências comuns a toda humanidade, agora integrada por redes globais
de produção e comunicação, pelas quais
circulam não só os fluxos de poder e informação do capital, mas também de pensamento e cultura, imaginação criativa e
ação contra-hegemônicos.
Mas é necessário um ponto para catalisar isso – uma nova forma de entender
o mundo que seja simultaneamente uma
ciência e uma filosofia (política e prática),
que seja um saber a orientar a pesquisa
de ponta e atividade das pessoas comuns.
Não podemos construir uma visão de
mundo como uma mensagem de fé,
uma revelação, uma proposta teórica ou
um experimento de laboratório. Mas podemos estimular o diálogo entre todos
aqueles que, partindo da crença em essências e valores transcendentais, afirmam a prioridade de defesa da vida e
da dignidade humanas; que, partindo do
entendimento filosófico da incompletude estrutural da nossa espécie, buscam
1º Semestre de 2009 Revista
avançar em sua humanização; com os que pela
criação artística ou pelo erótico buscam a beleza e o êxtase – porque o ser humano é a fonte
do fato estético e a sexualidade, o erotismo e o
amor inseparáveis da condição humana; com
todos que se opõem à monocultura das mentes e sustentam o reconhecimento prático da
diversidade cultural, em especial na aceitação
dos direitos coletivos das comunidades; e com
o pensamento científico que compreende de forma cada vez mais profunda as determinações e
condicionamentos biológicos de nossos desejos,
aspirações e comportamento moral, bem como
das mediações que a cultura (entendida como
parte específica da natureza humana e não em
oposição a ela) impõe a isso. É no cruzamento de vários saberes científicos e filosóficos, de
percepções estéticas e espirituais, que a humanidade – ou, de maneira mais concreta, o direito
de todos à boa vida humana (“sumak kawsay”
em quéchua, normalmente traduzido por “bem
viver”) – pode ser assumida como um valor em
si, de fato, com o qual possamos nos identificar
plenamente, em pé de igualdade com a defesa
da vida em toda a sua diversidade sustentada
pela ecologia.
O humanismo de nossa época, ou melhor, o vetor resultante dos vários humanismos, não pode
assim ser mais o mesmo do passado, dado por
uma humanidade abstrata tomada por delírios de
onipotência, mas a apreensão concreta de uma
humanidade que se compreende compartilhando o planeta com todo um conjunto de formas
de vida e se reconhecendo como diversa e frágil.
É só desta convergência de ciências e saberes
em um mesmo corpo de entendimento do mundo, dos fatos sociais e da nossa relação com a
biosfera que poderemos conformar um propósito
comum para a humanidade na perigosa travessia histórica em que estamos.
1
Este texto foi apresentado no Fórum Mundial Ciência
e Democracia, realizado em Belém nos dias 24 e 25
de janeiro de 2009. Sua temática é um prolongamento
do artigo “Ecologia, tecnologia e conhecimento”, publicado na revista FACOM, nº 19, do 1º semestre de
2008. Agradeço a leitura atenta de Marcos Barbosa de
Oliveira, nos acordos e desacordos que pontua.
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José Correa Leite
18
Professor de Filosofia e Sociologia da Comunicação na FACOM-FAAP. Mestre e Doutor em
Ciências Sociais pela PUC.
É um dos promotores do processo Fórum Social
Mundial e do Movimento Ecologia Urbana.
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