UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ
CENTRO DE EDUCAÇÃO
Ver
a educação
BELÉM
SEMESTRE
Ver a educação, Belém, v. 4, n. 2, p. 1-109, jul./dez., 1998
Título e texto amparados pela Lei N° 5988, de 14 de dezembro de 1973
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Coordenação Editorial: Eunice Ferreira dos Santos
Capa: Alberto Damasceno (concepção)
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Formatação: João Carlos Moraes/Lia Prado
Periodicidade: Semestral
Correspondência:
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Ver a educação. V. 4, n.2
(jul./dez. 1998). - Belém: UFPA/
Centro de Educação, 1998 - Semestral.
ISSN: 1413-1498
1. Educação - Periódicos
CDD. 370.5
SUMÁRIO
Colocando Questões ao Paradigma da Modernidade
5-36
Maria Tereza Soler Jorge
Sílvia Nogueira Chaves
Adair Mendes Nacarato
Mudanças na Produção, Qualificação para o
Trabalho e Reestruturação para o Ensino Médio
37-58
Paulo Corrêa
Avaliação da Aprendizagem Escolar: uma proposta
de ultrapassagem do autoritarismo na sala de aula
59-76
Eunice Léa de Moraes
Maria Célia Conceição
Maria de Nazaré Viana
Racionalismo e Empirismo na Construção
de Conhecimentos Biológicos
77-95
Sílvia Nogueira Chaves
A Pedagogia de Deus: cristianismo militante e
educação em Frei Betto (1969-1971)
Humberto Cunha
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97-109
Colocando Questões ao Paradigma
da Modernidade
Maria Tereza Soler Jorge
Sílvia Nogueira Chaves
Adair Mendes Nacarato
1 – INTRODUÇÃO
Estamos no fim de um ciclo de hegemonia de uma certa ordem
científica. Partindo dessa tese, Boaventura Santos (1988) constrói seu
percurso analítico sobre o momento atual da ciência.
A crise paradigmática e o novo paradigma emergente, segundo o
autor, são desencadeados tanto por fatores endógenos quanto exógenos
à ciência. Fatores que se entrecruzam num emaranhado de relações, ora
enfocados pela via econômico-social, ora pela epistemológicometodológica.
Neste jogo de interdependências, o panorama da modernidade
vem se alterando e junto com ele os pressupostos da ciência moderna. A
crença na objetividade, na racionalidade universal, as dicotomias mentecorpo, homem-ambiente, natural-social que mobilizavam e orientavam
a produção do conhecimento já não são suficientes para explicar a
complexidade do universo.
A escola, por sua vez, em consonância com tais pressupostos,
vem sofrendo reflexos dessas transformações. A busca da unidade
teoria-prática e o incentivo constante a práticas interdisciplinares
sinalizam mudanças de rumo em ações e intenções pedagógicas. Razões
essas que julgamos importantes para que nós professores localizemos
elementos desencadeadores dessa tão anunciada pós-modernidade e
vislumbremos seus possíveis desdobramentos no âmbito educacional.
Contudo, pós-modernidade não é um termo de significado
consensual, ao contrário, a polissemia que prevalece em tomo dessa
denominação tem gerado inúmeras versões e compreensões das
manifestações políticas, econômicas e sociais desse movimento no
mundo contemporâneo (Jameson, 1996; Lyotard, 1990, Harvey, 1992).
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.5-36, jul./dez., 1998
Maria Tereza Soler Jorge et al.
6
Tal diversidade nos levou à discussão, neste texto, sobre a idéia
de pós-modernidade defendida por Boaventura de Souza Santos, dada a
coerência de sua obra e, especialmente, a sua ampla aceitação e
divulgação no meio educacional brasileiro1.
Optamos, ainda, por centrar a análise nos aspectos teórico-sociais
que possibilitaram a emergência e a crise da ciência moderna, sem
perder de vista, entretanto, o cenário político e econômico que
viabilizaram a consolidação e a universalização do modelo científico
que, segundo Boaventura Santos, precipita-se num mar de
perplexidades.
Antes de delinearmos a crise da ciência moderna, julgamos
necessário caracterizá-la, brevemente, desde o berço até à sua
maturidade. Nessa perspectiva, nosso exercício reflexivo consistirá em
mapear a trajetória da ciência moderna ao longo de sua história no
ocidente, tomando como base três fases: a emergência do paradigma da
modernidade e seu apogeu; a crise desse paradigma; e a emergência de
uma nova ordem científica, a qual Boaventura Santos denomina de PósModernidade (por falta de melhor opção).
Para tanto, na primeira unidade desse trabalho, discutiremos a
instituição das bases teórico-metodológicas da ciência moderna até ao
seu apogeu, alavancado pelo florescente capitalismo europeu. Em
unidade subseqüente, abordaremos as condições teóricas e sociais que
desencadearam a crise da modernidade e, em seguida, o prenúncio e as
perspectivas da nova ordem emergente.
2 - BASES TEÓRICO-METODOLÓGICAS DA CIÊNCIA
MODERNA
A Renascença inaugura o início da idade moderna. E se na idade
média as teses aristotélicas, assumidas pela escolástica, corroboravam o
teocentrismo dominante, no renascimento a valorização do homem e de
suas produções é a tônica. Ou seja,
Na nova visão de mundo que veio substituir a medieval, o
homem, no seu sentido mais genérico era a preocupação
1
Cf Santos (1988,1989,1994,1996).
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.5-36, jul./dez., 1998
Colocando questões ao paradigma da modernidade
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central. As relações Deus-homem, que eram enfatizadas
pelo teocentrismo medieval, foram substituídas pelas
relações entre o homem e a natureza. Isso significava,
com relação ao conhecimento, a valorização da
capacidade do homem de conhecer e transformar a
realidade (Andrey, 1994, p. 170).
Essa nova concepção liberta o homem das amarras teleológicas,
isto é, da idéia de um mundo estruturado, estático, finito,
hierarquicamente ordenado c exogenamente controlado. A humanidade
já pode construir sua própria história, alterar o curso dos fatos e intervir
na realidade.
Tal mudança de perspectiva provoca alterações no eixo de
gravidade do conhecimento, caracterizado pelo abandono de um saber
contemplativo rumo ao pragmatismo. Neste contexto, o inglês Francis
Bacon e o francês René Descartes representam os grandes teóricos
dessa nova visão de mundo no que tange ao seu modo de produção, isto
é, ao método.
Apesar de defenderem formas diferenciadas de acesso ao real,
Bacon e Descartes têm em comum a crença numa realidade cognoscível
e num conhecimento verdadeiro que só é acessível por meio de ação
sistemática e metódica sobre o real.
Enquanto Bacon acredita que a indução (observação corrigi da
pela experimentação controlada) é o método adequado para alcançar o
verdadeiro conhecimento, Descartes centra na razão sua conduta
metódica. Confiantes na observação e na razão, Bacon e Descartes saem
em busca de desvendar a ordem universal, na qual estão subjacentes
todos os fenômenos da natureza.
Contrário ao pensamento medieval que acreditava numa
ordenação transcendental, a ciência renascentista está em busca de
ordem e leis materiais expressas em caracteres matemáticos, tal como
propugnava Galileu. Essa busca de regularidades mecânicas objetivava
prever, controlar e transformar a natureza. Finalidades plenamente
harmonizadas com o ideário capitalista emergente.
Apesar dessa afinidade, a ciência moderna nasce paralela à nova
ordem econômica capitalista. Contudo, a Revolução Industrial,
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notadamente a inglesa e a francesa, se encarrega de promover o enlace
entre ciência e capital.
Esse enlace desenvolveu-se ao longo do século XVIII e
consolidou-se no século XIX. Neste período, especialmente na segunda
metade do século XVIII, predominava o pensamento liberal profundamente marcado pela ascensão econômica e política da classe burguesa.
As características fundamentais do período Iluminista eram a
veneração
pela
ciência,
o
empirismo,
o
racionalismo,
antitradicionalismo e otimismo utópico (Mondim, 1982). No âmbito
social, três valores básicos compunham o ideário burguês: liberdade,
individualismo e igualdade.
A idéia de liberdade vinculava-se à defesa do livre comércio e da
livre concorrência, até então contidos pela política mercantilista da
monarquia contrária aos interesses burgueses de expansão econômica
capitalista.
O individualismo surgiu a reboque da noção de liberdade que
pregava, também, a educação livre, suprimida da influência do clero e
da monarquia. Vale ressaltar que o pensamento iluminista francês não
desfrutava de consenso no que diz respeito a quem se destinava a
educação livre. Voltaire e Rousseau, por exemplo, defendiam a
educação apenas para a alta burguesia; já Diderot pregava a instrução
para todos.
A questão relativa ao que ensinar e para quem ensinar
constituiu um ponto de divergência entre pensadores
desse período. Alguns deles defendiam a idéia de
diferentes tipos de educação para indivíduos de diferentes
classes sociais, sendo que aqueles que pertencessem a
classes sociais mais pobres deveriam receber menos
'instrução' e mais treinamento em atividades manuais
(Andrey, 1994, p. 285) (destaque no original).
Desta forma, podemos perceber que a noção de igualdade
defendida no ideário burguês limitava-se aos seus concidadãos não se
estendendo à massa.
No tocante à educação, o pragmatismo inglês foi mais eficiente
em atender aos interesses capitalistas. Nesse período na Inglaterra, a
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Colocando questões ao paradigma da modernidade
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escola primária objetivava preparar a classe operária para o trabalho.
Entretanto, a Inglaterra livre de concorrentes externos à sua altura.
decorrente de sua supremacia industrial, não estabelece uma política
global para a ciência e a educação estatal, o que possibilita que a ciência
se desenvolva, de forma empírica, no interior das fábricas para
solucionar problemas de ordem prática e estreitamente relacionados à
produção (Andrey, 1994).
Alicerçando a vinculação ciência-produção, ainda, encontram-se
a herança racionalista e empirista do século XVII. Contudo no século
XVIII, longe de polarizarem o pensamento filosófico empirismo e
racionalismo passam a ser uma questão de ênfases.
Entretanto, se no cartesianismo clássico os sentidos são
enganosos e só a razão é confiável, no iluminismo a razão não prescinde
da observação e o inverso também é verdadeiro. Excetuando Berkeley
que levava seu empirismo ao extremo do imaterialismo, os iluministas
partilhavam a crença na conjugação entre razão e observação como
elementos necessários para o desvendamento da realidade, atribuindo
ora a uma, ora a outra, o papel central nesse processo, constituindo o
que Löwy (1996) chama de fertilização recíproca.
Apesar da relativização entre essas duas correntes teóricas, ainda
predominavam e consolidavam-se como características essenciais da
ciência os princípios da neutralidade, da objetividade ou da
subjetividade abstrata2, da quantificação e do fracionamento metódico.
Com essas características, a ciência moderna rompe com o senso
comum que, mergulhado numa subjetividade contextual, encontra-se
despreparado para apreender o real metódica e racionalmente.
No campo das ciências naturais, as idéias de Galileu
desenvolvem-se e seu método matemático é seguido não só na física
quanto na química e na biologia. Na física, Isaac Newton desenvolve
sua teoria sobre gravitação e movimento planetário baseado em estudos
matemáticos que tinham como alicerce a noção de universo regido por
leis mecânicas.
2
Note-se que ambas, objetividade e subjetividade abstrata, fundam-se na proposição de
uma ciência universal garantida tanto pela imparcialidade da observação quanto por
uma razão inerente ao homem e independente de contexto.
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A quantificação é introduzida na química por Lavoisier em seus
estudos sobre o flogístico. Partindo de experimentos controlados sobre
o processo de combustão de substâncias, Lavoisier consegue
desmistificar a teoria do flogístico dando um grande passo para o futuro
entendimento da natureza corpuscular da matéria.
Além de grande relevância para a química, esse estudo e outros
envolvendo processamento de metais foram de suma importância para o
desenvolvimento da indústria metalúrgica da época, estreitando os laços
entre a produção científica e a de bens de consumo (Vidal, 1986).
Na biologia, o evolucionismo começa a ganhar adeptos, dentre
eles: Lamarck, Buffon e Erasmus Darwin (avô de Charles Darwin). A
idéia de mutabilidade das espécies vinha ao encontro dos anseios
iluministas principalmente em dois aspectos: pautava-se na concepção
de desenvolvimento da humanidade (progresso das espécies), em
particular, casando-se perfeitamente com o otimismo da época. Além
disso, consistia numa lei natural que negava o fixismo teológico da
tradição clerical.
É nessa efervescência cultural que se desenvolve a certeza de que
o progresso da ciência traria respostas a muitos problemas da
humanidade, dentre eles: a miséria e a morte. Contudo, os progressos
advindos da ciência, longe de solucionarem o problema da miséria,
vinculam-se ao sistema produtivo e ampliam as possibilidades de
acúmulo e concentração de capital nas mãos de poucos. Nessa ciranda
de interesses, a ciência vai cada vez mais distanciando-se da promessa
de progresso global para dedicar-se à solução de problemas produtivos.
Assim, no século XIX com a emergência do capitalismo liberal,
explodem com grande violência as contradições do projeto de
modernidade: entre a solidariedade e a identidade, entre a justiça e a
autonomia, entre a igualdade e a liberdade (Santos, 1996, p. 80).
Contradições que foram superadas na época, pela identificação das leis
naturais com as sociais3.
3
Desde o século XVIII, a supremacia das ciências, especialmente as da natureza em
relação a outras formas de pensamento encontra-se relativamente consolidada e os
procedimentos adotados pelas ciências naturais passam a constituir o modelo
hegemônico de acesso ao real.
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Colocando questões ao paradigma da modernidade
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Na busca de um conhecimento legítimo (ou de legitimação dele),
os teóricos do mundo social, dentre eles Condorcet e Saint-Simon,
assumem o modelo das ciências naturais como a forma ideal de estudar
a sociedade. Nesses termos, defendia-se a idéia de que a sociedade
humana é regida por leis naturais, independentes da vontade e da ação
humana, tal como a lei da gravidade ou do movimento da Terra em
torno do Sol (Löwy, 1996, p. 36). O corolário dessa idéia pode ser
encontrado no positivismo oitocentista de Comte.
O casamento entre leis mecânicas e leis sociais veio legitimar as
diferenças sociais como algo inerente à natureza e que o homem ou a
sociedade não poderiam alterar. Esse determinismo natural, biológico,
fortalecido pela Teoria da Seleção Natural de Darwin resolvia, assim,
no plano teórico, as condições de um projeto de modernidade que tinha
(tem) no acúmulo e centralização do capital seu verdadeiro
determinismo: o econômico.
O século XX traz o que Boaventura Santos (1996) chama de
capitalismo organizado. Nele ocorre a transição da idéia de
modernidade para a de modernismo. Esta última caracterizada, entre
outras coisas, pela centralização e concentração do capital industrial,
financeiro e comercial em cartéis e pela busca cada vez mais intensa da
especialização funcional.
No âmbito das ciências, o conhecimento é cada vez mais
fragmentado. Tal fragmentação traduz-se num processo de especialização crescente nas diversas áreas do conhecimento, gerando alienação
e descompromisso do cientista com o produto e uso de seu trabalho.
Surge a figura do ignorante especializado que detém uma fatia
mínima de conhecimento sobre o seu domínio, e que mergulhado num
tecnicismo mecânico, tal qual o operário na linha de montagem, perde o
controle e a dimensão da totalidade de seu ofício.
Neste contexto, a ciência está cada vez mais a serviço do capital,
transformando-se ela mesma no meio de produção e na mercadoria a ser
consumida. Pululam nos meios de comunicação, nas lojas, nos
supermercados, produtos autorizados pela comunidade científica que
vão desde óleos comestíveis e cremes dentais até a móveis anatômicos e
equipamentos eletrônicos. Neste jogo de sedução, cabe questionarmos:
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quem é o produto que o consumidor quer adquirir: o equipamento ou o
rótulo da ciência?
Todavia, junto com a explosão de consumo, a promessa de
progresso da modernidade trouxe em seu conjunto o mecanismo da
exclusão. O capitalismo no afã de antecipar necessidades de consumo
criou demandas que a massa já não tem condições econômicas nem
intelectuais de absorver.
Na ciência, as relações causa-efeito, os sistemas duais tão caros à
modernidade, já não conseguem explicar nem a relatividade e a
simultaneidade de Einstein, nem a incerteza de Heisenberg, nem a
interatividade dos sistemas biológicos.
3 - A CRISE DO PARADIGMA DOMINANTE
Vivemos em uma época de grandes mudanças e perplexidades.
As novas tecnologias inseridas no mundo do trabalho estão provocando
profundas transformações nos modos de produção, levando os
estudiosos a dizerem que estamos vivendo a 3º revolução industrial. Ao
mesmo tempo em que crescem as possibilidades de o homem ser
liberado do trabalho mecânico, o desemprego aflige milhões de pessoas
em todo o mundo; o capitalismo sob a égide do neoliberalismo atinge
todos os rincões do planeta, se tomando, no plano econômico, a força
hegemônica, principalmente após a queda do pretenso socialismo no
Leste europeu; os meios de comunicação e os publicitários levam
desejos de consumo padronizados às mais variadas partes do mundo,
transformando, em poucos anos, culturas locais de tradição milenar; as
mudanças nos valores de tempo e espaço levam-nos a assumir os mais
variados papéis de um momento para o outro, fazendo da esquizofrenia
a normalidade; ao mesmo tempo parecem estar em crise também as
teorias que tentavam buscar uma coerência nas múltiplas manifestações
presentes no mundo contemporâneo.
Autores como Foucault, o mais importante precursor das hoje
chamadas idéias pós-modernistas, e Lyotard negam a possibilidade de
uma metalinguagem ou de uma metateoria mediante a qual as coisas
possam ser explicadas e representadas. Ambos colocam as
metanarrativas (esquemas interpretativos amplos como os produzidos
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.5-36, jul./dez., 1998
Colocando questões ao paradigma da modernidade
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por Marx ou Freud) como necessariamente totalizantes. Lyotard define
o pós-moderno como a "incredulidade diante das metanarrativas".
Segundo este autor, os jogos de linguagem". ou seja, os vários discursos
presentes no meio social são igualmente legítimos dentro de seus
próprios contextos. "A atomização do social em redes flexíveis de jogos
de linguagem sugere que cada um pode recorrer a um conjunto bem
distinto de códigos, a depender da situação em que se encontrar (em
casa, no trabalho, na igreja, na rua ou no bar, num enterro, etc.)"
(Harvey, 1992, p.51).
Essas perplexidades, em alguns momentos históricos, se
traduzem em ações fundamentais para mudanças teóricas e sociais
como foi o movimento estudantil de 68, e em outros momentos em
paralisia frente ao poder do neoliberalismo econômico e da cultura de
massas que nos subjuga.
Qual o caráter da crise que estamos vivendo? Representa o nascer
de uma nova organização da sociedade? Ou é o capitalismo em seu mais
alto estágio de desenvolvimento?
Numa tentativa de responder a tais questões, Boaventura Santos
(1988, 1989, 1996) levanta as condições teóricas e as distingue das
condições sociais sinalizadoras da crise do paradigma. Iniciaremos pela
discussão das questões teórico-metodológicas.
Ao analisar a complexidade da discussão sobre a ciência no
mundo atual (pós 2º guerra mundial), Boaventura Santos evidencia
sinais de uma profunda crise no modelo de racionalidade que subjaz à
forma como a ciência moderna está constituída. Ele distingue as crises
da ciência em dois tipos: crises de crescimento e crises de
degenerescência.
As crises de crescimento, para usar uma expressão de
Kuhn (19 70: 182), têm lugar no nível da matriz
disciplinar de um dado ramo da ciência, isto é, revelamse na insatisfação perante métodos um conceitos básicos
até então usados sem qualquer contestação na disciplina,
insatisfação que, aliás, decorre da existência, ainda que
por vezes apenas pressentida, de alternativas viáveis
(Santos, 1989, p. 17-18) (destaque no original).
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.5-36, jul./dez., 1998
Maria Tereza Soler Jorge et al.
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As crises desse tipo revelam o crescimento e vigor de uma dada
disciplina das ciências e, por isto, dão ênfase à autonomia e ao grande
valor da ciência entre outras formas de conhecimento. Os métodos e
conceitos da disciplina em crise se tomam insuficientes para seu próprio
crescimento. Se torna necessário o desenvolvimento de um novo
arcabouço conceitual ou técnico, porém, ainda dentro da forma de
conhecer o mundo predominante na época. A química após Lavoisier é
um exemplo de deslocamento paradigmático dentro da própria química
que não resultou em uma mudança na forma de interpretar o mundo
como um todo.
As crises de degenerescência são crises do paradigma,
crises que atravessam todas as disciplinas, ainda que de
modo desigual, e que atravessam a um nível mais
profundo. Significam o pôr em causa a própria forma de
inteligibilidade do real que um dado paradigma
proporciona e não apenas os instrumentos metodológicos
e conceituais que lhe dão acesso. Nessas crises, que são
de ocorrência rara, a reflexão epistemológica é a
consciência teórica da precariedade das construções
assentes no paradigma em crise e, por isso, tende a ser
enviesada no sentido de considerar o conhecimento
científico como uma prática de saber entre outras, e não
necessariamente a melhor (Santos, ibid., p. 18).
Das crises de degenerescência, emergem formas novas de
conhecer e interpretar todo o real. Não são apenas ramos da ciência que
se mostram em crise, é o modo de pensar sobre o mundo que sofre
profundas alterações.
Não é fácil determinar se num dado período histórico a crise da
ciência é de crescimento ou de degenerescência, a não ser de forma
retrospectiva das conseqüências das mudanças provocadas pelo novo
paradigma. Desta forma, hoje podemos perceber que Galileu Galilei e
Newton foram os precursores de um novo modo de conhecer e pensar
sobre o universo e, por isto, são os representantes de uma mudança
paradigmática conseqüente de uma crise de degenerescência. Qual o
tipo de crise que estamos vivendo? Não há convergência de opiniões
entre filósofos e cientistas. Alguns sequer aceitam a palavra crise para
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.5-36, jul./dez., 1998
Colocando questões ao paradigma da modernidade
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caracterizar o momento científico atual. Boaventura desenvolverá em
seus trabalhos os argumentos para defender o ponto de vista de que
vivemos em uma fase de crise de degenerescência, a qual determina,
inclusive, o tipo de reflexão epistemológica hoje privilegiada. Para ele,
"a crise da ciência é, assim, também a crise da epistemologia" (Santos,
ibid. p.l9). Para caracterizar o tipo de crise em que vivemos coloca:
(...) defenderei nesta seção: primeiro, que essa crise é
não só profunda como irreversível; segundo, que estamos
a viver num período de revolução científica que se iniciou
com Einstein e a mecânica quântica e não se sabe ainda
quando acabará; terceiro, que os sinais nos permitem tão
só esperar acerca do paradigma que emergirá deste
período revolucionário, mas que, desde já se pode
afirmar com segurança que colapsarão as distinções
básicas em que assenta o paradigma dominante (...)
(Santos, ibid., p.54).
Os motivos e condições que mostram a degenerescência do
paradigma dominante e a emergência da necessidade de um novo
paradigma são vários, fundamentalmente conseqüências do grande
avanço do conhecimento científico propiciado pelo paradigma
dominante. O aprofundamento do conhecimento colocou em cheque os
seus próprios limites, tanto em termos estruturais (possibilidades de
conhecer cada vez com mais exatidão) quanto em termos filosóficos e
sociais (para onde está nos levando esse tipo de conhecimento?).
Boaventura aponta quatro condições teórico-metodológicas que
evidenciam a crise do paradigma dominante. A primeira condição
teórica é: Einstein "constitui o primeiro rombo no paradigma da ciência
moderna" (Santos, 1988, p. 54) com suas proposições a respeito da
relatividade simultaneidade. Einstein demonstra que a simultaneidade
de acontecimentos ocorridos no mesmo lugar é diferente da
simultaneidade de acontecimentos distantes, principalmente se esses
acontecimentos estão separados por distâncias astronômicas.
(...) Não podemos comparar o tempo em dois lugares
diferentes sem enviar de um outro um sinal cuja
passagem, por sua vez, levará tempo. Em resultado disto,
Einstein mostrou que não há um 'agora' universal; existe
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.5-36, jul./dez., 1998
Maria Tereza Soler Jorge et al.
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apenas um 'aqui e agora' para cada observa-dor (.). Na
Física Relativista de Einstein, o tempo não é, pois, uma
conseqüência estrita do conceito universal antes e depois.
Acontecimentos em espaços próximos, podem aparecer
em determinada ordem a um observador, podem aparecer
a outro numa ordem oposta. (Bronowski, 1977, p.62)
A partir da Teoria da Relatividade, o tempo e espaço absolutos de
Newton, pilares dos fundamentos da ciência moderna, deixam de
existir; também é colocada em dúvida a idéia de causa, um dos alicerces
do conhecimento moderno. Para que um acontecimento seja
considerado causa, ele deve anteceder à sua conseqüência. Como o
antes e o depois passam a relativos, a concepção de causa e efeito deixa
de ser independente do observador, isto é, absoluta.
A segunda condição teórica para a crise da ciência moderna
aparece com a Mecânica Quântica. Um dos postulados básicos da
mecânica quântica formulado por Heisenberg e Bohr conhecido como
Princípio da Incerteza de Heisenberg é que não é possível medir ou
observar um objeto sem interferir nele "não se podem reduzir
simultaneamente os erros da medição velocidade e da posição das
partículas; o que for feito para reduzir o erro de uma das medições
aumenta o erro da outra" (Heisenberg, apud Santos, 1987, p. 55). Ou
seja, o objeto depois de observado não é mais o mesmo que antes da
observação. A ciência moderna, essencialmente cartesiana, defendia a
separação sujeito/objeto do conhecimento como essencial à obtenção do
verdadeiro conhecimento. O Princípio da Incerteza mostra que essa
distinção é bem mais complexa do que formulada nos termos
cartesianos e que o conhecimento exato não é possível, sendo portanto
as leis da física apenas probabilísticas. Ou seja, a visão Newtoniana
deixa de ser viável, uma vez que os fenômenos da natureza não
funcionam como os mecanismos de um relógio, com uma exatidão que
independe dos olhos do observador não podendo ser dissecados para
estudo e previstos em suas conseqüências.
A terceira condição teórica questiona o rigor dos meios formais
em que as ciências "exatas" se expressam: o rigor da matemática. Uma
das grandes preocupações dos matemáticos no final do séc. XIX e início
do século XX foi a fundamentação da ciência matemática. Uma das
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.5-36, jul./dez., 1998
Colocando questões ao paradigma da modernidade
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correntes que buscou essa fundamentação teórica para a área foi O
formalismo, escola criada por volta de 1910 pelo matemático alemão
David Hilbert. Uma das tentativas básicas do formalismo foi a criação
de "uma técnica matemática por meio da qual se poderia demonstrar
que a matemática está livre de contradições" (Snapper, p. 85). Para
Hilbert, "se o pensamento matemático é defeituoso, onde acharemos
verdade e certeza?" (apud, Davis & Hersh, p. 387). Uma das principais
teses de Hilbert, baseada no rigor do séc. XIX, era a de que é possível
provar que os axiomas da aritmética são consistentes - que um número
finito de passos lógicos baseados neles nunca pode levar a resultados
contraditórios. No entanto, Kurt Gödel, jovem matemático austríaco,
mostrou que dentro de um sistema rígido podem ser formuladas
proposições que são indecidíveis ou indemonstráveis dentro dos
axiomas do sistema, ou seja, dentro do sistema existem certos
enunciados precisos que não podem ser provados ou negados. Logo,
não se pode ter certeza de que os axiomas da aritmética não levarão
a contradições.
Embora não exista nenhuma prova de Gödel numa linguagem
apropriada a não especialistas, sabe-se que ela representou o abalo da
escola de Hilbert. O artigo de Gödel, tratando da 'completude,
decibilidade e consistência abriu um período de crise nas questões dos
fundamentos matemáticos - o rigor matemático estava em
questionamento.
A quarta condição teórica da crise do paradigma da ciência
moderna é constituída pelo avanço do conhecimento nos campos da
microfísica, da química e da biologia nos últimos vinte anos. Novos
pressupostos estabelecidos pelos avanços nessas disciplinas questionam
em profundidade as concepções de matéria e natureza herdadas da física
clássica.
"Em vez da eternidade, a história; em vez do
determinismo, a imprevisibilidade; em vez do
mecanicismo, a interpenetração, a espontaneidade e a
auto-organização; em vez da reversibilidade, a
irreversibilidade e a evolução; em vez da ordem, a
desordem; em vez da necessidade. criatividade e o
acidente" (Santos, ibid., p.56).
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.5-36, jul./dez., 1998
Maria Tereza Soler Jorge et al.
18
A reflexão sobre essas condições, propiciadas pelo
desenvolvimento da ciência dentro do paradigma atualmente dominante,
trouxe problemas para a reflexão epistemológica cuja solução não pode
ser encontrada dentro do próprio paradigma que os originou. Entre esses
problemas, Boaventura destaca dois como principais: os conceitos de lei
e causalidade e o "aviltamento" da natureza pela ciência moderna.
Os conceitos de lei e causalidade tão caros à ciência moderna
são colocados sob questão pelas novas teorias científicas. Desde Galileu
- e principalmente depois que Newton estabeleceu grandes leis que
regem os movimentos tanto dos objetos na Terra quanto dos grandes
corpos celestes - a ciência tem se configurado principalmente como a
procura de regularidades e estabelecimento das relações de causa e
efeito. A partir do momento em que a concepção mecanicista de que a
natureza funciona regularmente como os mecanismos de um relógio,
independentemente de seus observadores, deixa de ter o vigor dos
últimos 200 anos. Fundamentar o conhecimento na procura de leis e
causas dos fenômenos passa a ser algo problemático.
A natureza é extremamente complexa, viva e mutante. Num
mesmo fenômeno intervêm múltiplos fatores. Para a procura de leis
gerais e regulares, a ciência tem tido, como método de trabalho, a
necessidade de isolar o objeto ou o fenômeno estudado apenas nos
aspectos que interessam ao observador, em geral, quantificando-os e
traduzindo-os para a linguagem matemática. Desta forma, a ciência
moderna tem transformado a natureza numa caricatura pobre e
previsível. Nas palavras de Boaventura: "o conhecimento científico
moderno é um conhecimento desencantado e triste que transforma a
natureza num autômato, ou, como diz Prigogine, num interlocutor
terrivelmente estúpido" (1988, p.58). Este é o segundo grande tema que
emerge da crise da racionalidade científica predominante e que tem
pautado a reflexão epistemológica atual.
O fato desses dilemas teórico-metodológicos estarem presentes
nas reflexões de grande parte dos cientistas - ao lado do crescente
questionamento tanto por parte da comunidade científica quanto da
sociedade como um todo - sobre os atuais compromissos da ciência com
os centros de poder industrial e econômico, é sinal de que a crise da
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.5-36, jul./dez., 1998
Colocando questões ao paradigma da modernidade
19
ciência não poderá ser resolvida dentro da ordem conceitual, social e
econômica hoje vigentes.
Ao mesmo tempo em que o desenvolvimento da ciência moderna
trouxe enormes modificações conceituais e meto do lógicas sobre a
forma de compreender a realidade, sua inserção nos aspectos sociais,
econômicos e culturais da sociedade do século XX provocou
conseqüências tão profundas que as próprias teorias sociais que
procuravam explicar o desenvolvimento das sociedades modernas se
encontram no momento frente a grandes perplexidades.
Embora os teóricos tenham grandes divergências sobre o que
caracteriza o pós-moderno, é comum entre eles apontar como um ponto
de inflexão nos rumos do pensamento sobre a modernidade o espanto
frente à barbárie demonstrada por povos "civilizados", durante a 2º
Guerra Mundial. "Os gritos dos assassinados (sob o domínio nazista e
stalinista) ecoaram a pouca distância das universidades: o sadismo
aconteceu a uma quadra dos teatros e museus. (...) Sabemos agora que
uma pessoa pode ler Goethe ou Ri/Ice à noite, que pode tocar Bach e
Schubert e cumprir a rotina de trabalho de Auschitwz pela manhã
(Steiner, 1988, p. 15). Nesse episódio recente da história da
humanidade, pode-se dizer que a cultura, o conhecimento, a ciência e o
desenvolvimento das forças produtivas longe de cumprirem com os
ideais da modernidade (ou foram conseqüências desses próprios ideais?)
transformaram a razão nas formas mais puras de irracionalismo. Nas
palavras de alguns estudiosos da condição pós-moderna:
Boaventura Santos escreve que:
(...) não resta dúvida de que o que a ciência ganhou em
rigor nos últimos quarenta ou cinqüenta anos perdeu em
capacidade de auto-regulação (...) quanto às aplicações
(da ciência), as bombas de Hiroshima e Nagasaki foram
um sinal trágico, a princípio visto como acidental e
fortuito, mas hoje, perante a catástrofe ecológica e o
perigo do holocausto nuclear cada vez mais visto como
manifestação de um modo de produção da ciência
inclinado a transformar acidentes em ocorrências
sistemáticas (1987, p.59).
Nas palavras de Lyotard:
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.5-36, jul./dez., 1998
Maria Tereza Soler Jorge et al.
20
O meu argumento é o de que o projeto moderno (da
realização da universalidade) não foi abandonado e
esquecido, mas destruido, 'liquidado '. Há diversas
formas de destruição, diversos nomes que a simboli-zam,
'Auschwitz' pode ser considerado como um nome
paradigmático para o 'inacabamento' trágico da
modernidade. (...) Em 'Auschwitz' foi fisicamente
destruido um soberano moderno: todo um povo. E o
crime que inaugura a pós-modernidade, crime de lesasoberania, já não regicídio, mas populicídio (distinto de
etnocídios) (1993, p. 32-33).
David Harvey ao explicitar a crise das idéias modernas:
O século XX - com seus campos de concentração e
esquadrões da morte, seu militarismo e duas guerras
mundiais, sua ameaça de aniquilação nuclear e sua
experiência de Hiroshima e Nagasaki - certamente deitou
por terra esse otimismo (do Iluminismo). Pior ainda, há a
suspeita de que o projeto do iluminismo estava fadado a
voltar-se contra si mesmo e transformar a busca de
emancipação humana num sistema de opressão universal
em nome da libertação humana. (u) Saber se o projeto do
iluminismo estava ou não fadado desde o começo a nos
mergulhar num mundo kajkiano, se tinha ou não de levar
a Auschwitz e Hiroshima (.) são questões cruciais (1992,
p. 23-24).
Decorridos 50 anos do final da 2º grande guerra, podemos
constatar que o espanto frente ao irracionalismo, à barbaridade e à
conivência não se transformou em exemplo a pedir novos rumos de
desenvolvimento possíveis de evitar novas tragédias. Ao contrário, o
perigo de uma catástrofe nuclear capaz da destruição do planeta esteve
presente até há pouco tempo. Seu abrandamento com o final da guerrafria não significa estarmos de todo livres desse risco.
Assistimos, nestes poucos anos que faltam para o fim do milênio,
a realidades bem distantes dos ideais de fraternidade, progresso,
felicidade e justiça, tão caros ao Iluminismo. Convivemos com o
avanço dos particularismos nacionalistas e religiosos traduzidos em
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.5-36, jul./dez., 1998
Colocando questões ao paradigma da modernidade
21
guerras cruentas. Fome e miséria absolutas convivendo com padrões de
consumo sofisticados. Proliferação dos misticismos como formas de
sobrevivência num mundo desencantado. Individualismo exacerbado ao
lado da perda quase total da personalidade individual. A falta de ética
expressa na ética da vantagem pessoal. A contínua violação dos direitos
humanos, por exemplo, no Brasil, o extermínio dos pobres no campo ou
nas prisões das grandes cidades; nos Estados Unidos, a discriminação
de negros e latinos; na Europa, o fascismo contra os trabalhadores
imigrantes.
Boaventura inicia seu livro "Pela mão de Alice" descrevendo um
quadro sucinto do momento que vivemos:
(...) a década de oitenta é sem dúvida uma década para
esquecer. No seu decurso aprofundou-se, nos países
centrais, a crise do Estado Providência que já vinha da
década anterior e com ela agravaram-se as desigualdades
sociais e os processos de exclusão social (30% dos
americanos estão excluídos de qualquer esquema de
segurança social) de tal modo que estes países assumiram
algumas características que pareciam típicas dos países
periféricos. Daí o falar-se do terceiro mundo interior. Nos
países periféricos agravamento das condições sociais, já de
si tão precárias, foi brutal. A dívida externa,
desvalorização internacional dos produtos que colocam no
mercado mundial e decréscimo da ajuda externa, levou
alguns destes países ao colapso. Na década de oitenta,
morreram de fome na África mais pessoas que em todas as
décadas anteriores do século. Se as assimetrias sociais
aumentaram no interior de cada país, elas aumentaram
ainda mais entre o conjunto dos países do Norte e o
conjunto dos países do Sul. Esta situação que alguns
festejaram ou toleraram como a dor necessária do parto de
uma ordem econômica finalmente natural e verdadeira, isto
é, neoliberal, foi denunciada por outros como uma
desordem selvática a necessitar ser substituída por uma
nova ordem econômica internacional (Santos, 1994, p.19).
Para Boaventura Santos, ao mesmo tempo em que a modernidade
cumpriu em excesso algumas de suas promessas - desenvolvimento
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.5-36, jul./dez., 1998
Maria Tereza Soler Jorge et al.
22
enorme da ciência e tecnologia; ampliação da mercadorização da vida;
integração do planeta todo na economia capitalista mundial;
racionalização de praticamente todas as instâncias da vida do indivíduo
- não terá condições de realizar as suas promessas de emancipação. E
isso em conseqüência do atrelamento da modernidade ao
desenvolvimento capitalista: suas possibilidades foram reduzidas às
possibilidades do capitalismo. O progresso da humanidade passou a ser
concebido como acumulação capitalista e a natureza e o homem se
transformaram em meros fatores de produção.
A crise na realidade desencadeia a crise nas formas tradicionais
de interpretação dessa realidade:
"a rapidez e a intensidade com que tudo tem acontecido
se, por um lado, torna a realidade hiper real, por outro
lado, trivializa-a, banaliza-a, uma realidade sem
capacidade para surpreender ou empolgar. Uma
realidade assim torna-se fácil de teorizar, tão fácil que a
banalidade do referente quase nos faz crer que a teoria é
a própria realidade com outro nome, isto é, que a teoria
se auto-realiza" (Santos, ibid., p.20).
Boaventura ao nos apresentar os desafios colocados pela crise das
teorias, mostra a necessidade de "criatividade teórica", "proximidade
critica" e "envolvimento livre" como posturas para pensarmos as saídas
possíveis e utópicas. Apresenta 5 desafios denominando-os:
"perplexidades produtivas". .
A primeira perplexidade: ao mesmo tempo em que os
problemas mais cruciais das agendas políticas, tanto intra quanto inter
países e continentes, são de natureza econômica, a teoria e a análise
sociológica dos últimos anos tem valorizado o político, o cultural e o
simbólico, isto é, "têm vindo a desvalorizar os modos de produção em
detrimento dos modos de vida" (Santos, ibid., p.21). Essa tendência se
reflete na desvalorização do marxismo como perspectiva de análise e
aponta para importantes questões levantadas por Boaventura:
"será esta contradição não apenas aparente, mas também
real? E se assim for, estaremos a falhar o alvo analítico e
a cavar a nossa própria marginalidade? Ou será, pelo
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.5-36, jul./dez., 1998
Colocando questões ao paradigma da modernidade
23
contrário, que estes diferentes fatores e conceitos e as
distinções em que assentam(economia, política, cultura),
.todas legadas pelo século XIX, estão hoje superados e
exigem uma reconstrução teórica radical? E nesse caso,
como fazê-la? " (Santos, ibid, p. 21)
A segunda perplexidade consiste no confronto entre nossos
pontos de vista ao analisarmos os problemas sociais, ainda muito
centrados na idéia de Estado e Nação, e a enorme transnacionalização e
intemacionalização da economia, das formas de comunicação e
informação, da propagação planetária de símbolos e valores culturais e
inclusive de pessoas como trabalhadores migrantes entre os vários
países. Frente a esse quadro Boaventura questiona:
"Será então o Estado nacional uma unidade de análise
em vias de extinção ou, pelo contrário, é hoje mais
central do que nunca, ainda que sob a forma ardilosa da
sua descentralização? Quais são as responsabilidades
especificas da sociologia, uma disciplina que floresceu
com o intervencionismo social do Estado? Será que o
intervencionismo social do Estado vai assumir nos
próximos anos a forma de intervencionismo não estatal?
Será que o Estado vai criar a sociedade civil à sua
imagem e semelhança? Será que a sociologia é parte da
armadilha ou parte do mecanismo que a permite
desarmar?" (Santos, ibid, p. 22).
A terceira perplexidade: ao mesmo tempo em que as teorias
sociais têm, nestes últimos dez anos, privilegiado o indivíduo e sua vida
privada, seus modos e estilos de vida, sua biografia e trajetória pessoais,
isto é, o micro em detrimento do macro, na sociedade capitalista
avançada nunca o indivíduo foi tão despersonalizado. Sua vida íntima,
suas práticas sexuais, seus movimentos e opiniões nunca foram tão
devassados. Seus gostos e escolhas hoje são completamente
padronizados. Frente a isso:
"Será que é só aparente essa contradição? Será que a
distinção indivíduo-sociedade é outro legado oitocentista
de que nos devemos libertar? Será que pelo contrário,
nos libertamos cedo demais do conceito de alienação?
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.5-36, jul./dez., 1998
Maria Tereza Soler Jorge et al.
24
Como fazer vingar a preocupação tradicional da
sociologia com a participação e a criatividade sociais
numa situação em que toda a espontaneidade do minuto
um se transforma. no minuto dois, em artefato mediático
ou mercantil de si mesma?" (Santos, ibid., p. 22)
A quarta perplexidade surge em função da contradição
(aparente?) entre a vitória da "democracia" como credo a ser defendido
nas mais variadas partes do mundo - marcado pelo fim de grande parte
das ditaduras, pela queda da idéia de "ditadura do proletariado" e pela
postura que instituições internacionais de concessão de créditos têm
tomado no sentido de atrelar a ajuda financeira à vigência de regimes
democráticos - e a crise vivida pela própria legitimação da democracia:
ausência de vontade de participação, apatia frente à atuação dos órgãos
de representação democrática, descrença em relação aos poderes
constituídos. Ao mesmo tempo, liberalismo econômico e democracia
não têm tido uma boa convivência histórica. Então nestes tempos de
neoliberalismo:
"Será que o triunfo da democracia, que liquidou o
conflito Leste-Oeste, se articula com o triunfo do
neoliberalismo de que resultará o agravamento do
conflito Norte-Sul? Será que estes dois triunfos conjuntos
vão criar novos conflitos Norte-Sul tanto dentro do Norte
como do Sul? Como vamos analisar as sociedades que
são o Sul do Norte (por exemplo, Portugal) ou o Norte do
Sul (por exemplo, o Brasil)?" (Santos, ibid., p. 23).
A quinta perplexidade apresentada por Boaventura Santos
propõe uma reflexão sobre um movimento aparentemente paradoxal: ao
mesmo tempo em que se intensificam as relações sociais transnacionais
e globais, ultrapassando fronteiras quase sempre fundadas na idéia de
território nacional, com seus costumes, língua, história e ideologia,
assiste-se à revitalização de identidades fundadas na identificação com
as raízes territoriais (reais ou mesmo simbólicas). As identidades
regionais e locais são enfatizadas mesmo, e principalmente, por grupos
de indivíduos vivendo fora de seus países: fundamentalistas islâmicos
em Paris, Sihks em Londres. Este movimento também apresenta outras
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.5-36, jul./dez., 1998
Colocando questões ao paradigma da modernidade
25
contradições: a desterritorialização de indústrias, mercadorias e
costumes aumentam a liberdade de escolhas daqueles que têm a
iniciativa dos processos transnacionais - os executivos das grandes
indústrias, os agentes do mercado financeiro, o cientista que participa de
congressos, o turista - o que não implica, muito ao contrário, em
maiores possibilidades de liberdade para os que sofrem esse movimento
como um processo compulsório, isto é, os refugiados, os emigrantes à
procura de empregos., os índios e camponeses deslocados de seus
territórios nativos. Frente a isso:
"Será que esta dialética de territorialização/
desterritorialização faz esquecer as velhas opressões? E
será que a velha opressão e classe - de que a sociologia
internacional corre o risco de se esquecer
prematuramente -, porque transnacionalizável, faz
esquecer, ela própria, a presença ou até o agrava-mento
de velhas e novas opressões locais, de origem sexual,
racial ou étnica?" (Santos, ibid. p. 24).
Esse painel das condições de crise, longe de nos levar a uma
postura de imobilismo pessimista, é propício à reflexão sobre a
conformação de um novo paradigma a uma nova sociedade. Para
Boaventura: "(..) uma oportunidade única para a criatividade teórica e
para a transgressão metodológica e epistemológica" que será "(..)
desperdiçada se a liberdade criada pela ausência dos dogmas teóricospolíticos for asfixiada pelos sempre velhos e sempre novos dogmas
institucionais-fácticos" (Santos ibid., p. 21).
4 - O PARADIGMA EMERGENTE
Boaventura Santos prescreve um novo paradigma que ele
denomina Paradigma prudente para uma vida decente e reconhece que
não deixa de ser uma especulação e produto de uma síntese pessoal, de
imaginação sociológica. É uma especulação por estar se falando do
futuro e uma síntese pessoal pois outras sínteses são possíveis, sob
outros pontos de vista. É um paradigma que reflete um momento de
transição - a relação entre o moderno e o pós-moderno que é uma
relação de contradições, em que não há ruptura total do moderno e nem
continuidade linear.
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.5-36, jul./dez., 1998
Maria Tereza Soler Jorge et al.
26
O novo paradigma não pode ser apenas científico; precisa
também ser social. Ele é anunciado através de quatro teses.
4.1 - Tese 1: Todo Conhecimento Científico-Natural é Científico
Social
O conhecimento do paradigma emergente tende a romper com a
dicotomia entre ciências naturais e ciências sociais. Essa ruptura se
evidencia pelas recentes discussões no campo da física e da biologia
sobre as distinções entre orgânico/inorgânico, seres vivos/matéria inerte
e humano/não-humano. As novas teorias, de vocação holística, tentam
superar as inconsistências entre a mecânica quântica e a teoria da
relatividade de Einstein, introduzem na matéria os conceitos de
historicidade e de processo, de liberdade, de autodeterminação e até de
consciência que antes o homem e a mulher tinham reservado para si"
(Santos, 1988, p. 6). Conceitos como: 'dimensão psíquica da natureza'
(Bateson); 'consciência da natureza' (G. Chew); 'inconsciente coletivo'
(Jung); 'interações locais e não locais na física das partículas, a partir da
idéia de sincronicidade jungiana' (Capra); 'teoria da ordem implicada,
que concebe a consciência e a matéria interdependentes e ligadas sem
nexo de causalidade' (D. Bohm) revelam um relativo colapso das
distinções dicotômicas dominantes na modernidade.
Para Boaventura Santos, não é suficiente apenas a tendência de
superação entre ciências naturais e sociais, mas sobretudo refletir sobre
o sentido e conteúdo dessa superação e sob que égide ficará o novo
paradigma: sob a égide das ciências naturais ou a das ciências sociais.
Estas reflexões apontam sinais ambíguos para o futuro. De um lado, há
os que postulam a emergência de um novo naturalismo centrado no
privilegiamento dos pressupostos biológicos do comportamento
humano (1988, p. 61), ficando a superação da dicotomia ciências
naturais/sociais sob a égide das ciências naturais. Contra esta posição,
pode-se objetar que, levando em consideração a concepção do
paradigma da modernidade, as ciências naturais só vêem do futuro
aquilo em que ele repete o presente (1988, p. 62). Entretanto, o autor
chama a uma reflexão mais profunda sobre o conteúdo dos últimos
progressos das ciências naturais, principalmente no conceito de matéria,
em que se vê o uso de conceitos, teorias, metáforas e analogias das
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.5-36, jul./dez., 1998
Colocando questões ao paradigma da modernidade
27
ciências sociais. Os modelos explicativos das ciências sociais têm-se
enraizado, principalmente, no campo teórico da biologia. Além disso,
percebemos que algumas dessas teorias formuladas no campo das
ciências naturais têm sido aplicadas em teorias sociais. Por exemplo,
Peter Allen aplica a teoria das estruturas dissipativas aos processos
econômicos e à evolução das cidades e das regiões. Há pois uma
interdependência das duas áreas.
Para os que postulam que a superação da dicotomia ciências
naturais/sociais fique sob a égide das ciências sociais, deve-se levar em
consideração, na opinião de Boaventura Santos, que a constituição das
ciências sociais ocorreu sob duas vertentes: uma vinculada à
epistemologia e à metodologia do positivismo e outra de vocação
antipositivista, mais pujante que a primeira, pois vem de uma reflexão
filosófica complexa, fenomenológica, interacionista, mito-simbólica,
hermenêutica, mas que traz subjacente uma visão mecanicista da
natureza. Esta segunda vertente é a mais indicativa de ser ela o modelo
das ciências sociais no momento de transição para a pós-modernidade.
Embora ela carregue uma visão de homem contraposta à visão de
natureza, já ultrapassada, os seus elos com o passado são menos fortes
do que com o futuro.
Devemos analisar o sentido global da revolução científica. Os
obstáculos até então apontados para a cientificidade das ciências sociais,
causa do seu atraso em relação às ciências naturais e o seu caráter préparadigmático, segundo Kuhn, devem, na opinião de Boaventura
Santos, serem revistos. Mesmo porque, o que era apontado como causa
do atraso das ciências sociais é hoje a causa do grande avanço nas
ciências naturais.
Percebemos uma revalorização nos estudos humanísticos,
entretanto, a própria humanidade deverá ser transformada. Esta
concepção humanística é que, provavelmente, colocará as ciências
sociais como a catalisadora da fusão das duas ciências, colocando
também a natureza no centro da pessoa, passando-se a entender a
natureza como sendo humana.
Esse novo paradigma emergente se constituirá de algumas
categorias matriciais, consideradas como categorias de inteligibilidade
universais: a analogia textual (objeto de estudo da filologia), a lúdica, a
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.5-36, jul./dez., 1998
Maria Tereza Soler Jorge et al.
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dramática e a biográfica. O mundo, que hoje é natural ou social e
amanhã será ambos, visto como um texto, como um jogo, como um
palco ou ainda como autobiografia (Santos, 1988, p. 63).
4.2 - Tese 2: Todo Conhecimento é Local e Total
Uma das características mais marcantes da modemidade foi a
especialização do conhecimento, gerando a parcelização, a
disciplinarização e o reducionismo arbitrário do mesmo. Embora os
seus efeitos já tenham sido reconhecidos, as medidas propostas para
corrigi-los não têm obtido sucesso uma vez que não é possível encontrar
soluções dentro do próprio paradigma dominante, pois este é o principal
problema e do qual decorrem os demais.
No paradigma emergente, o conhecimento é total e também local.
A fragmentação do conhecimento não é mais disciplinar, é temática:
comunidades concretas, com projetos de vida locais, geram temas que
permitem que os conhecimentos progridam ao encontro uns dos outros,
na busca de novas e variadas interfaces Este conhecimento é total
porque reconstitui os projetos cognitivos locais salientando-lhes a sua
exemplaridade, e por essa via transforma-os em pensamento total
ilustrado (Santos, 1988, p.66). A ciência emergente além de anal6gica é
tradutora, pois incentiva as novas teorias desenvolvidas localmente a
emigrarem para outros lugares cognitivos, podendo ser usados fora do
contexto (Santos, 1988, p. 66). Trata-se de um conhecimento concebido
através da imaginação e generalizado através da qualidade e
exemplaridade. Trata-se da reconstrução de racionalidades locais,
adequadas às necessidades locais, conscientes da irracionalidade global,
mas também conscientes que só podem combatê-la localmente. Quanto
mais global for o problema, mais locais e mais multiplicamente locais
devem ser as soluções (Santos, 1996, p. 111).
A metodologia subjacente ao paradigma emergente é
caracterizada por uma transgressão metodológica: é um conhecimento
sobre as condições de possibilidade de ação humana, num espaço e
tempo locais. Há pois uma pluralidade de métodos e a inovação
científica consiste em aplicar tais métodos fora do seu habitat natural.
Não existe mais um estilo unidimensional de fácil identificação, mas a
presença de vários estilos se interpenetrando. As interações e
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.5-36, jul./dez., 1998
Colocando questões ao paradigma da modernidade
29
intertextualidades organizadas em tomo de projetos locais serão uma
das características do conhecimento pós-moderno. O conhecimento pósmoderno privilegia o próximo e não o real; é um conhecimento que
aspira à oralidade, à comunicação face-a-face, é situacional e
contextual. Trata-se de um localismo relativamente desterritorializado
e, neste sentido, é também um localismo internacionalista (Santos,
1996, p. 105).
4.3 - Tese: Todo Conhecimento é Autoconhecimento
Uma das principais características da ciência moderna foi a
distinção sujeito/objeto. Se nas ciências naturais essa distinção foi mais
pacífica pois um conhecimento objetivo não poderia ter interferência de
valores, o mesmo não ocorreu nas ciências sociais. Na antropologia, a
grande distância empírica entre o sujeito - o antropólogo, o europeu
civilizado - e o objeto de pesquisa - o povo primitivo, o selvagem - teve
de ser encurtada pelo uso de metodologias que permitiam uma maior
proximidade entre ambos: a etnografia e a observação participante. Na
sociologia, esse distanciamento que não existia anteriormente - era o
europeu estudando seus concidadãos - passou a ser uma exigência com
o uso de metodologias como: inquérito sociológico, análise documental
e entrevista estruturada.
Este status quo metodológico das ciências sociais bem como a
distância social entre antropologia e sociologia foram questionados e
transformados - uma passou a se utilizar dos métodos da outra,
buscando o rompimento da dicotomia sujeito/objeto.
Nas ciências naturais, ocorre a primeira ruptura dessa dicotomia
com a física quântica - o ato e o produto do conhecimento são
inseparáveis - e essa discussão estará presente nos avanços da
microfísica, da astrofísica e da biologia.
Podemos afirmar hoje que o objeto é a continuação do
sujeito por outros meios. Por isso, todo o conhecimento
científico é autoconhecimento. A ciência não descobre,
cria, e o ato criativo protagonizado por cada cientista e
pela comunidade científica no seu conjunto tem de se
conhecer intimamente antes que conheça o que com ele se
conhece do real. Os pressupostos metafísicos, os sistemas
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.5-36, jul./dez., 1998
Maria Tereza Soler Jorge et al.
30
de crenças, os juízos de valor não estão antes nem depois
da explicação científica da natureza ou da sociedade. São
parte integrante dessa mesma explicação (Santos, 1988,
p. 67)
No paradigma emergente, a ciência tem um caráter
autobiográfico e auto-referenciável. A chave para o entendimento do
mundo está numa ciência contemplativa, mais do que ativa, marcada
pela incerteza do conhecimento. A criação científica aproxima-se da
criação literária ou artística - a dimensão ativa da transformação do real
(o escultor a trabalhar a pedra) será subordinada à contemplação do
resultado (a obra de arte); o discurso científico aproxima-se do da
crítica literária - que atualmente ganha nova dimensão, pois não há mais
a supremacia do autor ou do crítico, mas uma batalha entre dois
sujeitos, um é a tradução do outro; ambos criadores de textos, lhas
escritos em linguagens distintas. O conhecimento científico no
paradigma emergente é ressubjetivado; há um movimento no sentido de
maior personalização no trabalho científico.
4.4 - Tese 4: Todo Conhecimento Científico Visa a Constituir-se
num Novo Senso Comum
A ciência pós-moderna tentando romper com a racional idade
científica da modernidade sabe que nenhuma forma de conhecimento é,
em si mesma, racional; só a configuração de todas elas é racional
(Santos, 1988, p. 70).
Ao dialogar com outras formas de conhecimento, Boaventura
Santos resgata o senso comum como sendo uma forma de conhecimento
que, se interpenetrado pelo conhecimento científico, pode ser a origem
de uma nova racionalidade da pós-modernidade. Para que isto ocorra,
deverá haver uma inversão da ruptura epistemológica, ou seja, enquanto
na modernidade.
a ruptura epistemológica simboliza o salto qualitativo do
conhecimento do senso comum para o conhecimento
científico; na ciência pós-moderna o salto mais importante
é o que é dado do conhecimento científico para o
conhecimento do senso comum (Santos, 1989, p.70).
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.5-36, jul./dez., 1998
Colocando questões ao paradigma da modernidade
31
Para se ter uma melhor compreensão desta tese de Boaventura
Santos, faz-se necessário explicitar como ele analisa o senso comum e o
que considera inversão de ruptura.
O conceito filosófico de senso comum surge no século XVIII,
representando o embate ideológico da burguesia emergente contra o
irracionalismo do regime vigente e, por ser burguês, tinha uma dupla
implicação: senso médio e senso universal. Mas, por estar ligado à
ascensão da burguesia, tão logo essa classe assume o poder, o conceito
filosófico de senso comum é desvalorizado, passando a significar
conhecimento superficial e ilusório. E, segundo Boaventura Santos, é
contra esse senso comum que surgem as ciências sociais no século XIX.
Para as ciências naturais, ele não representava nenhum problema pois
foi, desde o início, recusado. O mesmo não aconteceu com as ciências
sociais que sempre tiveram com o senso comum uma relação complexa
e ambígua, pois, por um lado, correntes como a fenomenologia,
ernometodologia e o interacionismo simbólico não propunham ou não
achavam desejável a ruptura com ele; por outro lado, as correntes
dominantes favoráveis à ruptura tinham sobre o senso comum
concepções diferentes, salientando ora a sua positividade, ora a sua
negatividade. Além disso, é usual uma teoria sociológica erguida contra
ele ser considerada, pela posterior, senso comum ainda não elaborado.
Outro conceito importante da filosofia - ruptura epistemológica foi introduzido por Gaston Bachelard para explicar a descontinuidade
no conhecimento científico. Quando os conceitos, procedimentos e
instrumentos existentes não são adequados ou não explicam o que está
sendo estudado, está-se, de acordo com Bachelard, diante de um
obstáculo epistemológico' e, para superá-lo, há necessidade de uma
ruptura epistemológica. Esta ruptura conduz à elaboração de novas
teorias e métodos que influenciam o conhecimento existente.
Um dos obstáculos epistemológicos para Bachelard é o senso
comum. A ciência se opõe absolutamente à opinião (apud Santos, 1989,
p. 31). É preciso romper com toda forma de conhecimento que seja
vulgar, espontânea e de experiência imediata; somente com a ruptura é
que será possível o conhecimento científico, racional e válido.
Para Boaventura Santos, a ruptura epistemológica bachelardiana
interpreta fielmente o modelo de racionalidade do paradigma
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.5-36, jul./dez., 1998
Maria Tereza Soler Jorge et al.
32
dominante, representando o máximo de consciência possível do
paradigma da ciência moderna (Santos, 1989, p. 35). No entanto, esta
ruptura só é compreensível dentro desse paradigma, pois ele se coloca
contra o senso comum e pressupõe uma única forma de conhecimento
válido que dicotomiza sujeito/objeto, teoria/prática, ciência/ética e
reduz o universo a elementos observáveis e quantificáveis. A partir da
sua leitura de crise dentro do paradigma dominante, Boaventura Santos
afirma que o processo histórico da crise final do paradigma da ciência
moderna iniciou-se já e iniciou-se pela crise da epistemologia que
melhor dá conta do paradigma: a epistemologia bachelardiana.
(Santos, 1989, p. 36). Desta forma, o autor concebe um reencontro da
ciência com o senso comum e anuncia: uma vez feita a ruptura epistemo
lógica, o ato epistemológico mais importante é a ruptura com a ruptura
epistemológica (Santos, 1989, p. 36). Não tem sentido opor senso
comum e ciência, pois:
"O senso comum faz coincidir causa e intenção; subjazlhe uma visão do mundo assente na ação e no principio
da criatividade e da responsabilidades individuais. O
senso comum é prático e pragmático; reproduz-se colado
às trajetórias e às experiências de vida de um dado grupo
social e nessa correspondência se afirma de confiança e
dá segurança. O senso comum é transparente e evidente;
desconfia da opacidade dos objetos tecnológicos e do
esoterismo do conhecimento em nome do princípio da
igualdade do acesso ao discurso, à competência cognitiva
e à competência lingüística. O senso comum é superficial
porque desdenha das estruturas que estão para além da
consciência, mas, por isso mesmo, é exímio em captar a
profundidade horizontal das relações conscientes entre
pessoas e coisas. O senso comum é indisciplinar e
imetódico; não resulta de uma prática especificamente
orientada para o produzir; reproduz-se espontaneamente
no suceder cotidiano da vida. Por último, o senso comum
é retórico e metafórico; não ensina, persuade" (Santos,
apud Santos, 1989, p. 40).
Percebemos, assim, que para Boaventura Santos, o senso comum
tem características positivas e pode se constituir em elemento de
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.5-36, jul./dez., 1998
Colocando questões ao paradigma da modernidade
33
emancipação. Desta forma, simplesmente romper com a epistemologia
bachelardiana significa deixá-lo como estava antes dela. Daí a proposta
de dupla ruptura, pois esta visará à transformação tanto do senso
comum quanto da ciência.
Com essa dupla transformação pretende-se um senso
comum esclarecido e uma ciência prudente, ou melhor,
uma nova configuração do saber que se aproxima da
phronesis aristotélica, ou seja, um saber prático que dá
sentido e orientação à existência e cria o hábito de
decidir bem (Santos, 1989, p. 41).
O senso comum interpretado pelo conhecimento científico pode
estar na base de uma nova racionalidade, a qual não despreza a
tecnologia produzida pelo conhecimento mas que dela se apropria para
traduzir-se em sabedoria, em melhoria de vida.
A nova configuração do saber é, assim, a garantia do
desejo e o desejo da garantia de que o desenvolvimento
tecnológico contribua para o aprofundamento da
competência cognitiva e comunicativa e, assim, se
transforme num saber prático e nos ajude a dar sentido e
autenticidade à nossa existência (Santos, 1989, p. 42).
O paradigma proposto por Boaventura Santos aponta sinais para
o futuro. O caos instaurado pela modernidade, longe de ser negativo,
revela-se num horizonte amplo de possibilidades que se concretizarão
pelas miniracionalidades locais, pelas lutas protagonizadas por grupos
sociais congregados, pela busca de subjetividade, da identidade e da
multiculturalidade.
5 - SOBRE A EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS
Embora a crise da modernidade e conseqüentemente, os
presságios da pós-modernidade aqui delineados não sejam de plena
aceitação entre os teóricos, é fato que este final de século tem apontado
para uma série de transformações de ordem científica, política,
econômica e social. E a escola na condição de espaço social não tem
passado incólume a tais transformações, especialmente porque o
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.5-36, jul./dez., 1998
Maria Tereza Soler Jorge et al.
34
modelo de ciência ora em crise tem fornecido ao longo da história dessa
instituição, categorias centrais que deram origem às várias versões da
teoria e das práticas educacionais (Giroux, 1993, p. 42).
Nesse sentido, as questões discutidas ao longo do texto são
importantes passos que nós professores devemos dar rumo à (re)
construção de práticas educacionais mais alinhadas com este novo
contexto social. Especialmente nós professores de ciências, uma vez
que a ciência moderna penetrou e norteou a educação científica de
nosso século.
A crença num conhecimento construído a partir de cuidadosas
observações da natureza; conhecimento neutro em relação a interesses
sociais e destinado a eliminar outras formas de conhecimento menos
verdadeiro”, apesar de tão questionado por muitos cientistas e filósofos,
nestas últimas décadas, ainda persiste no ensino escolar de ciências.
Que dilemas e desafios o novo modelo impõe ao ensino de
ciências? Que novos rumos curriculares, metodológicos sugere? Que
visão de homem, ambiente e sociedade propõe? Estas são questões que
devem constituir a pauta de discussão sobre o futuro da educação em
ciências, se quisermos romper com o modelo de ciência moderna.
Nesta perspectiva, enquanto professores de Ciências, podemos
sintetizar nossos desafios de como:
• superar visões mecanicistas de mundo em prol de abordagens
mais globais, integrais;
• romper com a clássica dicotomia natural social ao discutir
problemas ambientais;
• abordar fenômenos como processos e não como relações
causais;
• valorizar conhecimentos locais, grupais, sem perder de vista a
articulação com sistemas mais amplos de compreensão do
mundo e, por fim;
• construir um ensino que propicie ao aluno/cidadão compreender
a "linguagem" da ciência e munido desse instrumental possa
avaliar e posicionar-se diante de problemas éticos advindos da
utilização e apropriação de conhecimentos científicos.
Julgamos, portanto, essencial que reflexões sobre o rumo da
ciência e, conseqüentemente, do destino da própria humanidade,
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.5-36, jul./dez., 1998
Colocando questões ao paradigma da modernidade
35
questões intrínsecas à educação em ciências estejam presentes nas
discussões de todas as pessoas, considerando que o ensino de ciência é
um canal privilegiado para socializar esse debate.
Para isto, é indispensável que tais questões sejam contempladas
nos procedimentos metodológicos adotados no ensino fundamental e
médio de ciências e, principalmente, nos cursos de formação de
professores, se não quisermos permanecer meros espectadores na
definição de políticas norteadoras para a educação em ciências e,
sobretudo, se quisermos participar da construção de uma ciência
prudente para uma vida decente (Santos, 1988, p. 60).
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Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.5-36, jul./dez., 1998
Mudanças na Produção, Qualificação para
o Trabalho e Reestruturação Curricular
para o Ensino Médio
Paulo Corrêa*
O
capitalismo
(é)
uma
força
constantemente revolucionária da história
mundial, uma força que reformula de maneira
perpétua o mundo, criando configurações novas e,
com freqüência, sobremodo inesperadas. A
acumulação flexível se mostra, no mínimo, como
uma nova configuração, requerendo, nessa
qualidade, que submetamos a escrutínio as suas
manifestações com o cuidado e a seriedade
exigidos...
(David Harvey)
1 – INTRODUÇÃO
As tendências recentes do processo de trabalho engendradas pela
reestruturação produtiva em que nos encontramos atualmente seduzidos
a cedermos ao apelo de inserção comandado pelos países econômica e
tecnicamente hegemônicos - representam um grande desafio não
somente ao campo das iniciativas econômicas e do imperativo mercado
lógico que as dinamizam, mas principalmente às políticas públicas
sociais, pois estas vêm sendo concebidas como iniciativas que
prospectam solucionar os problemas e iniqüidades geradas com a
economia de mercado.
*
Professor de História da Educação/Centro de Educação da Universidade Federal do
Pará. Especialista em Educação e Problemas Regionais. Mestre em Educação:
Supervisão e Currículo (PUC-SP). Doutorando em Educação: Currículo (PUC-SP).
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.37-58, jul./dez., 1998
Paulo Corrêa
38
No conjunto dessas discussões, situa-se o sistema educacional
elemento que se tomou bastante problemático e complexo em termos da
função social que deve cumprir, enquanto parte integrante do processo
de modernização tecnológica. Processo demandado aos países cuja
expansão econômica se encontra obstruída por falta de modelos
ajustáveis de desenvolvimento dinâmico capazes de tomá-la flexível e
mundialmente competitiva.
Historicamente, o Estado brasileiro tem interpretado a idéia de
desenvolvimento como princípio fundamental através do qual seria
possível instituir a "sociedade ideal", onde os indivíduos, submetidos
aos refinamentos tecnológicos, impulsionariam o funcionamento
ordenado e harmônico da mesma. Contudo, a satisfação desse
imperativo conduziu muitos pensadores modernos, como Augusto
Comte, a tecerem verdadeiras apologias a respeito das técnicas de
controle do mundo natural, em cujos princípios e leis se
consubstanciariam as atitudes morais da humanidade. Esta alicerçada
sob a lógica da ordem social apresentada como eixo potencializador de
progresso e bem-estar social.
Nessa corrida desenfreada em busca de maior elevação
tecnológica, os projetos de desenvolvimento dos países que desejassem
ascender na escala econômica precisavam, igualmente, espelhar-se nos
padrões utilizados por aquelas sociedades onde o progresso se tomara
uma realidade. Por isso, a política brasileira de desenvolvimento foi
sendo desencadeada de forma submissa e dependente em relação
àqueles países cuja expansão científica já se encontrava bem mais
consolidada, com status e legitimidade em porções mundiais.
Foi com esse afã que se passou a utilizar medidas visando à
integração do modelo de desenvolvimento brasileiro aos mesmos
parâmetros que presidiam a tessitura dos mercados internacionais. As
rupturas no interior do sistema produtivo nacional, portanto,
impulsionaram profundas e complexas modificações na maneira de se
conceber a organização escolar, bem como a função que a mesma seria
designada a preencher em cada momento histórico concreto e em
consonância com políticas públicas específicas.
Ao analisar a trajetória histórica da república brasileira,
Kawamura (1990, p. 36) diz que a dependência científica e tecnológica
reflete todo um conjunto de relações sociais e políticas que necessitam
ser compreendidas a partir do contexto onde elas foram produzidas.
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.37-58, jul./dez., 1998
Mudanças na produção, qualificação para...
39
Conforme o entendimento elaborado pela referida autora, "tanto a
educação quanto a ciência e tecnologia compreendem processos
culturais estreitamente conectados ao processo produtivo e aos
interesses políticos".
Nessa perspectiva, este estudo será direcionado para a análise da
relação existente entre a estrutura curricular e a função social do sistema
de ensino no mundo contemporâneo, examinando-se as transformações
do processo produtivo e a qualificação do trabalhador como elementos
de referência auxiliares na compreensão da direção que o Estado
brasileiro tenta atribuir à educação, no momento atual, em especial às
políticas relativas ao ensino médio, onde a questão do vínculo entre
educação e trabalho adquire patamares críticos diante da nova dinâmica
circunscrita pelo capital.
2 - MUDANÇAS NA PRODUÇÃO E EXPANSÃO DA ECONOMIA
DE MERCADO
...O movimento mais flexível do capital acentua o
novo, o fugidio, o efémero, o fugaz e o contingente
da vida moderna, em vez dos valores mais sólidos
implantados na vigência do fordismo.
(David Harvey)
O paradigma fordista de "produção em massa para um consumo
de massa", que passou a ser esboçado na Europa a partir de 1914 e
predominou hegerilônico até 1973, era marcado pela rigidez e
racionalização do processo de trabalho cujo objetivo consistia, em
última instância, "na solução dos males a que o capitalismo estava
exposto". Os fundamentos dessa política de controle e gerência do
trabalho estavam assentados na "separação entre gerência, concepção,
controle e execução". Dentro de tal perspectiva, o Estado foi requisitado
a incorporar como obrigações essenciais as seguintes linhas mestras:
Controlar ciclos econômicos, fornecer um forte
complemento ao salário social com gastos de
seguridade social, assistência médica, educação,
habitação etc., o poder estatal era exercido direta
ou indiretamente sobre os acordos salariais e os
direitos dos trabalhadores na produção e as
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.37-58, jul./dez., 1998
Paulo Corrêa
40
reformas de intervencionismo estatal variavam
muito entre os países capitalistas avançados
(Harvey, 1992, p. 121).
Portanto, ao lado da produção em larga escala, o Estado deveria
ter uma economia fortemente regulamentada que fosse capaz de
compatibilizar o aumento da produtividade com crescimento econômico
e bem-estar social. Assim, não restam dúvidas quanto ao fato de que "o
progresso internacional do fordismo significou a formação de
mercados de massa globais e a absorção da massa da população
mundial fora do mundo comunista na dinâmica global de um novo tipo
de capitalismo" (Ibid, p. 131).
Sob a luz dos pressupostos norteadores da matriz fordista, os
países ávidos pela superação do atraso e estagnação econômica na qual
estavam envoltos foram, igualmente, encampados como espaços
econômicos e culturais "carentes" de um processo produtivo
fundamentado em bases tecnológicas que, uma vez adquiridas,
permitiriam a superação da crise política e consolidariam a estabilidade
social.
Os países que cederam a esse apelo desenvolvimentista foram
submetidos a processos produtivos cujas relações de trabalho voltavamse para a acumulação de capitais. No que se refere à realidade brasileira,
o modelo de produção fordista impulsionou o surgimento de uma
economia baseada não mais no padrão agrário-exportador existente
desde o período colonial, mas na substituição das importações advindas
com o processo de expansão industrial, executado pelos governos
populistas que buscavam atingir a soberania nacional mediante
reestruturação do seu modelo produtivo.
A introdução de novas tecnologias como instrumentos
imprescindíveis à resolução da crise econômica e social trouxe de volta
o debate acerca das finalidades para as quais o sistema escolar deve
estar dirigido. Com isto, questiona-se a função da educação e a
contribuição que a mesma poderá oferecer tendo em vista a
implementação de um modelo produtivo de base flexível que possa
romper com a cultura de produção rígida instituída pelo paradigma
fordista.
Analisando "a transformação político-econômica do capitalismo
do final do século XX", Harvey elenca uma série de considerações no
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.37-58, jul./dez., 1998
Mudanças na produção, qualificação para...
41
intuito de mostrar que a rigidez no controle produtivo constitui-se
herança maléfica, fruto do fordismo, que tem impedido a plena
realização do capitalismo e, enquanto tal, precisa ser substituída por
uma proposta de aceleração diversificada do setor produtivo.
Desta maneira, emerge a proposta de acumulação flexível, não
apenas como resposta ao processo rígido de trabalho, mas também
como uma iniciativa que busca minimizar o poder reivindicatório dos
movimentos sindicais que se consolidaram durante o modelo anterior.
Esta nova proposta, conforme entende esse autor, "é marcada por um
confronto direto com a rigidez do fordismo. Ela se apóia na
flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos
produtos e padrões de consumo". Ele ressalta ainda que:
"A acumulação flexível parece implicar níveis
relativamente altos de desemprego 'estrutural',
rápida destruição e reconstrução de habilidades,
ganhos modestos de salários reais e o retrocesso
de poder sindical - uma das colunas políticas do
modelo fordista" (Ibid, p. 140).
A defesa desse padrão produtivo, portanto, coincide com a nova
fase vivida pelo capitalismo que procura na flexibilidade do mercado as
possibilidades de contornar suas crises. Dentro do cenário construí¬do a
partir da acumulação flexível, é preciso ressaltar ainda a idéia se¬gundo
a qual Harvey considera que:
O mais interessante na atual situação é a maneira
como o capitalismo está se tornando cada vez mais
organizado através da dispersão. da mobilidade
geográfica e das respostas flexíveis nos mercados
de trabalho, nos processos de trabalho e nos
mercados de consumo, tudo isso acompanhado por
pesadas doses de inovação tecnológica, de
produto institucional (Ibid, p. 150-1).
As estratégias inovadoras apresentadas na atual dinâmica de que
se reveste o sistema capitalista precisam de solo fértil para tomarem-se
viçosas, e os países localizados nos níveis periféricos do mercado
mundial - como o caso da América Latina, em particular - passam a ser
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.37-58, jul./dez., 1998
Paulo Corrêa
42
percebidos como alvos privilegiados das políticas econômicas e sociais
que lhes são endereçadas.
No caso específico da realidade brasileira, o estabelecimento do
golpe militar, a partir de 1964, representou uma resposta aos percalços
causados pela política populista, a qual pretendia superar os conflitos
vividos em seu interior através do incremento da produção sob base
industrial nacionalista. O regime autoritário procurou estabelecer a
internacionalização da economia brasileira e se empenhou para impor a
rigidez no que se refere às relações políticas internas, mas flexibilizou
as regras econômicas a fim de permitir o ingresso de capital externo
como critério indispensável para alcançar o estágio da modernização
produtiva.
É nessa medida que o modelo de acumulação flexível, ao oferecer
capital financeiro, tecnológico e cultural como eixo do
desenvolvimento, interpõe-se como princípio estratégico norteador do
processo de trabalho de novo tipo, fixado a partir de tecnologias
refinadas e poupadoras de mão-de-obra. Este processo impõe ao
trabalhador uma formação fundamentada em conteúdos gerais que
permitam seu treinamento para o exercício de funções polivalentes. Daí,
porque, o sistema educacional é acionado para responder a tais
solicitações emanadas do setor empresarial.
Assim, a reestruturação do processo produtivo proposta pela
acumulação flexível precisa ser compreendida como uma das
metamorfoses que o mundo do trabalho enfrenta no intuito de viabilizar
a permanência e recomposição do capitalismo, enquanto modelo
perfeito de regulação econômica e social. Não significa, portanto, a
transformação qualitativa de seus fundamentos.
Como se pode perceber, o sistema capitalista revela-se
profundamente dinâmico e em sintonia com as condições históricas que
plasmam a existência humana. Este ponto se revela ainda mais
intrigante, especialmente quando Harvey destaca algumas
características essenciais que permeiam o modo capitalista de produção
e ajudam a conferir-lhe hegemonia, quais sejam:
a) O capitalismo é orientado para o crescimento,
pois só através deste os lucros podem ser
garantidos e a acumulação do capital. sustentada;
b) o crescimento sempre se baseia na diferença
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.37-58, jul./dez., 1998
Mudanças na produção, qualificação para...
43
entre o que o trabalho obtém e aquilo que cria; c)
o capitalismo é, por necessidade, tecnológica e
organizacionalmente dinâmico e isso ajuda na
modificação da dinâmica da luta de classes (Ibid,
p. 166-9).
Os elementos até aqui apresentados revelam que a cultura
capitalista prioriza o conhecimento e o saber, sobretudo o tecnológico,
como matéria emblemática a partir da qual se edifica sua racionalidade
produtiva. Sua máxima consiste no fato de que "todo saber deve estar
revestido de utilidades práticas e instrumentais". Sendo assim, a
política de formação dos recursos humanos jamais é postergada, pois o
êxito nos objetivos de acumulação dependem da qualificação/
requalificação dos indivíduos que ocuparão os postos de trabalho.
Neste sentido, aumentam as exigências por maior escolarização e
o Estado é chamado a repensar sua política educacional, a fim de poder
ajustá-la às prerrogativas postas atualmente em curso sob a inspiração
do modelo de acumulação flexível. Deste modo, face às dificuldades
encontradas no processo de trabalho, o discurso da qualificação do
trabalhador assume proporções significativas e a responsabilidade pela
inoperância do sistema produtivo é concebida como conseqüência de
três fatores básicos: a) ineficiência técnica dos meios de produção; b)
rigidez na formação do sujeito trabalhador; c) inadequação do sistema
educacional ao processo de expansão econômica.
Estes fatores em conjunto são assumidos pelo novo modelo
produtivo como elementos centrais do processo de desenvolvimento
socioeconômico, daí porque precisam estar direcionados para um
mesmo fim. Neste contexto, deve-se desencadear o rompimento com o
processo produtivo e com as estruturas educacionais tradicionais que
sustentam a sociedade, objetivando tomá-la dinâmica e competitiva no
mercado internacional.
3 - A QUALIFICAÇÃO DO TRABALHADOR À LUZ DO MODELO
DE ACUMULAÇÃO FLEXÍNEL
As constantes crises vivenciadas hoje no processo de trabalho
impõem para o capitalismo a necessidade de repensar os canais
legitimadores que auxiliam na reprodução de seu ideário - e a escola é
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.37-58, jul./dez., 1998
Paulo Corrêa
44
um deles. As sociedades que pretendem firmar-se como espaços
economicamente equilibrados são conclamadas a formular estratégias
políticas que lhes permitam acompanhar o processo de globalização
econômica. Este fato, contudo, exige que o Estado redefina suas metas
assim como a destinação social de seu sistema educacional.
O modelo de acumulação flexível procura romper as fronteiras
econômicas e culturais que ainda vicejam nos países subdesenvolvidos.
Para tanto, institui as categorias de qualidade, produtividade,
competitividade e equidade social como diretrizes norteadoras de sua
estratégia de ação. É com base em tais elementos que a formação
profissional precisa estar sedimentada a fim de poder integrar os
trabalhadores - aqueles que, devido ao aperfeiçoamento tecnológico,
conseguirem permanecer em seus postos de serviço - ao setor produtivo.
No que concerne ao uso da mão-de-obra, a idéia de flexibilidade
assume uma dupla conotação: a primeira se refere à flexibilidade
quantitativa, destinada ao enxugamento do quadro de pessoal da
empresa; a outra vertente diz respeito à flexibilidade funcional, voltada
para os indivíduos que permanecem empregados e que implica na
polivalência de funções dos trabalhadores que melhor se inseriram nas
novas formas de organizar a produção (Baltar, Proni, 1996, p. 111-2).
Portanto, o surgimento de novas tecnologias e seu uso como
potencializadoras de acúmulo de capitais aos países que as dominam
afetam profundamente as relações de trabalho, especialmente na
realidade de países em fase de desenvolvimento. No entendimento dos
autores citados, este fenômeno tem ligação direta com a questão da
relação entre ocupação e escolaridade, chegando às seguintes
conclusões:
... qualquer que seja o grau de instrução, a chance
de ser desligado do emprego diminui conforme
aumenta o tempo de serviço na firma. Mas, a
redução é tanto maior quanto menor o grau de
instrução. Ou seja, o empregado com baixo nível
de escolaridade tem alta probabilidade de perder
o emprego e acumular tempo de serviço na firma.
Contudo, os que conseguem preservar o vínculo
empregatício têm, progressivamente, maiores
chances
de
permanecer
no,
mesmo
estabelecimento, e essa probabilidade tende a se
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.37-58, jul./dez., 1998
Mudanças na produção, qualificação para...
45
igualar à dos empregados com maiores níveis de
instrução (Ibid, p. 125).
No caso específico do Brasil, a idéia de flexibilização vem sendo
incorporada de modo contraditório. Os trabalhadores com baixa
escolaridade são submetidos a freqüentes mobilidades no âmbito da
ocupação formal e percebem uma base salarial relativamente pequena,
dado o nível de instrução em que se encontram. Isto indica que o
processo de inovação tecnológica vem acompanhado de uma forte dose
de exclusão social daqueles indivíduos limitados em seu saber, e cujas
oportunidades educacionais lhes têm sido histórica e sistematicamente
negadas ou concedidas em doses homeopáticas.
Parece estar claro que os objetivos a que se propõe o modelo de
produção flexível consistem em alcançar "maior e melhor produção
com um quadro funcional menor e melhor preparado". Isto quer dizer
que o nível de exigência qualificacional é aumentado em sentido
vertical, provocando redefinições nas estruturas das relações de
trabalho, as quais passam a requerer novas habilidades do trabalhador
quanto ao desempenho de suas funções.
Diante destas exigências, o perfil do trabalhador ganha uma nova
dimensão que não se limita ao preparo específico para a execução de
tarefas previamente estabelecidas. Para os "homens de negócio" que
tentam contemporizar suas atividades empresariais com os desafios da
economia globalizada, toma-se necessário "um trabalhador com uma
nova qualificação que, face à reestruturação econômica sob nova base
técnica, lhes possibilite efetivar a reconversão tecnológica que os torne
competitivos no embate da concorrência intercapitalista" (Frigotto,
1995, p. 38).
A concretização desse projeto precisa estar em sintonia com a
estrutura atual do processo produtivo marcado pela idéia de
flexibilização, em que a qualificação do trabalhador assume outra
dimensão:"Não basta, pois, que o trabalhador de 'novo tipo' seja capaz
de identificar e de resolver os problemas e os imprevistos, mas de
resolvê-los em equipe." Portanto, os critérios para obtenção de
produtividade e competitividade demandam a construção de uma nova
imagem ideal do trabalhador e as características básicas que passam a
defini-lo são: "boa formação geral, atento, leal, responsável, com
capacidade de perceber um fenômeno em processo, não dominando,
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.37-58, jul./dez., 1998
Paulo Corrêa
46
porém, os fundamentos científicos-intelectuais subjacentes às diferentes
técnicas produtivas modernas" (Pinto apud Frigotto, 1995, p. 53).
Como se pode notar, o perfil do novo operário padrão, delineado
com base nos princípios requeridos pelo atual modelo de produção,
tenta conferir ao trabalhador auto-satisfação, abnegação e
contentamento para desempenhar bem suas funções no intuito de elevar
os índices de produtividade empresarial. Neste ritmo que passa a marcar
a disciplina do trabalho, "flexibilidade, versatilidade. liderança,
princípios de moral, orientação global, hora de decisão, comunicação,
habilidade de discernir, equilíbrio físico-emocional..." (Frigotto, 1995,
p. 54) são componentes fundamentais que necessitam ser incorporados
na formação desses indivíduos. Isto cria sérias implicações à estrutura
organizacional que constitui o funcionamento da escola brasileira.
A ausência de sintonia entre os objetivos educacionais e as metas
empresariais tem conduzido os representantes deste último setor a
interferir no sistema escolar brasileiro de modo a adequá-lo à esfera
produtiva. Na compreensão dos grupos empresariais à frente desse
movimento em favor do atrelamento da educação à lógica do mercado,
os distúrbios, aos quais se encontra submetida a indústria brasileira,
somente serão superados a partir de uma correspondência entre o
mundo da escola e a realidade da empresa. No entanto, a satisfação
destes interesses implica a realização de reformas educacionais que
possam consolidar essas aproximações.
4 - A REFORMA CURRICULAR ATUALMENTE EM MARCHA: O
Paradoxo da Profissionalização no Ensino Médio
A década de 70 marcou um período de grandes debates que
puseram em dúvida a funcionalidade do sistema de ensino brasileiro em
vigor naquele momento. As modificações tangenciadas para o campo
educacional tentavam imputar-lhe um rumo diferenciado respaldado na
idéia de profissionalização compulsória, de modo que esta fosse capaz
de incrementar o potencial de produtividade do setor industrial como
um dos requisitos fundamentais para o ingresso do país numa economia
internacionalizada.
Desde então, a questão do ensino médio vem sendo considerada
como um ponto bastante delicado, cuja finalidade está marcada por duas
posições emblemáticas que tentam dar-lhe configuração específica,
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.37-58, jul./dez., 1998
Mudanças na produção, qualificação para...
47
quais sejam: a primeira delas considera-o como uma fase intermediária
de contato e assimilação do patrimônio cultural, cujo objetivo consiste
em encaminhar os indivíduos para o ingresso nas universidades - nesta
fase a educação desempenha uma função humanística voltada para a
reprodução da sociedade dominante. Uma outra ver tente pensa esse
nível de ensino como um momento de preparação dos cidadãos para que
os mesmos sejam direcionados ao mercado de trabalho. Segundo os
representantes deste último grupo, a educação passa a ser concebida
como potencializadora de desenvolvimento econômico e social, por isto
suas funções precisam estar plenamente adequadas às questões técnicas
e operacionais que permitam uma qualificação eficiente dos sujeitos que
dela participam.
Muito embora os governos populistas, que se sucederam no
Brasil durante os anos 30 a 64, tivessem desenvolvido tentativas no
sentido de vincular o sistema educacional aos objetivos empresariais, a
atribuição desse segundo olhar sobre educação somente atingiu
legi¬timidade a partir do momento em que o golpe militar de 1964
permitiu maior interferência e representatividade política aos setores
empresariais que vêem, na educação, o caminho para o progresso
econômico.
Ao refletir sobre o projeto social montado pelos governos
militares, Maria Inêz de Souza considera que eles pretenderam construílo em sintonia com os interesses econômicos internacionais. Assim, no
entendimento do novo grupo político articulado no poder, um enfoque
especial é dado à educação pois
as necessidades educacionais são olhadas em
função apenas da funcionalidade econômica,
limitando o seu atendimento às características do
esquema produtivo dá país... O enfoque econômico
fez com que a educação fosse considerada, pois,
como indústria de prestação de serviços (Souza,
1981, p. 114-5).
Dentro dessa nova configuração, a educação não era considerada
única e exclusivamente como um elemento fundamental na difusão do
arcabouço cultural da humanidade. E ela, deveria igualmente cumprir
uma função de integração e segurança nacional, haja vista que a
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.37-58, jul./dez., 1998
Paulo Corrêa
48
absorção da demanda educacional no mercado de trabalho começou a
ser um fator preocupante. Assim, no que se refere à interferência
empresarial na estrutura e funcionamento do ensino, a autora ressalta
que nessa época:
A maior critica que se fez foi em relação ao ensino
médio, considerado na época como um dos fatores
de imobilidade social e rigidez dos estratos da
sociedade nacional, um entrave à estratégia global
de desenvolvimento por não atender às
necessidades reais do País apenas satisfazia a
uma clientela privilegiada socialmente e não ao
mercado econômico (Ibid, p. 117).
As mudanças no eixo condutor político em nível mundial e local,
portanto, abriram espaços para que fosse repensada a política
educacional no país sob os auspícios da política econômica. A
materialização de tais metas foi buscada na adoção da ciência e
tecnologia como fontes essenciais, em cujos parâmetros se alicerçaria o
desenvolvimento nacional. Este fato acabou por impulsionar a
necessidade de se operar modificações nos componentes curriculares, a
fim de tomar mais dinâmico o processo educacional no intuito de
assegurar a viabilidade do mercado.
As reformas universitárias (Lei no 5.540/68) e a do ensino de 1° e
2° graus (Lei n° 5.692/71) constituíram-se exímios exemplos da
preocupação que o Estado passou a ter em relação à concepção de um
currículo voltado para a satisfação das demandas requeridas pelo
processo de expansão capitalista. A introdução da ciência e tecnologia,
enquanto mediadoras das relações econômicas e culturais, criou limites
à predominância de tendência humanista como paradigma norteador do
projeto educacional instituído na fase pós-64.
Este ponto revela que o currículo é um produto histórico marcado
por relações de gênero e poder, porque ele incorpora as manifestações
feitas pela sociedade e as traduz sob a forma de disciplinas, atitudes
morais, comportamento social, valores ideológicos, o tipo de saber que
precisa ser absorvido, etc. Ele é dotado de componentes ideológicos que
podem permitir a manutenção da hegemonia de determinado grupo
social, mas está embebido de componentes transformadores posto que é
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.37-58, jul./dez., 1998
Mudanças na produção, qualificação para...
49
síntese de múltiplas determinações marcadas por antagonismos. Ao
pretender identificar qual o tipo de relação que se estabelece entre
currículo e poder, Michael Apple é enfático ao mostrar que:
... o currículo não existe como um fato isolado. Ao
invés, ele adquire formas sociais particulares que
corporificam certos interesses que são eles
próprios os resultados de lutas contínuas dentro e
entre os grupos dominantes e subordinados. Ele
não é resultado de algum processo abstrato, mas é
o resultado dos conflitos, acordos e alianças de
movimentos e grupos sociais determinados (Apple,
1989, p. 47).
Portanto, O currículo consiste num produto cultural que visa
difundir valores e práticas através das quais se possa implementar certo
ideal de sociedade. Ele está entrecortado por interesses conflitantes e
isto lhe confere um caráter discriminatório, à medida que se entretece
com a luta de classes e as questões de gênero. Ele funciona como uma
espécie de contrato social no qual os indivíduos recebem as credenciais
que lhes possibilitam integrar o conjunto da sociedade. Todavia, entre a
formalidade preestabelecida em seu interior e sua funcionalidade existe
um grande hiato, pois o momento em que esta última se realiza está
marcado por relações tácitas imprevistas quanto à elaboração do
currículo.
A política educacional veiculada atualmente traz à tona mais uma
vez a necessidade de se repensar o ensino médio. Isto conduz a novas
reflexões acerca do modo como se constituirá o currículo e a que
interesses procurará ele atender. A funcionalidade e a vinculação desse
nível de ensino ao mercado de trabalho são concebidas como maneiras
possíveis de se superar as crises pelas quais passam os setores
produtivos em escala mundial.
Ao perpassar a estrutura e o funcionamento do sistema
educacional brasileiro, a rigidez, a especialização e a fragmentação das
atividades propugnadas pelo fordismo deixaram marcas indeléveis na
formação daqueles sujeitos que foram submetidos a essa dinâmica.
Quanto mais limitado em seu saber, melhor seria a capacidade do
trabalhador para executar tarefas no interior de empresas, fábricas e
instituições burocráticas.
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.37-58, jul./dez., 1998
Paulo Corrêa
50
O debate atual, contudo, está marcado por uma preocupação
encetada na direção da formação geral do indivíduo, de modo que possa
adquirir habilidades básicas mais flexíveis e se tome treinável à
ocupação de funções diferenciadas no sistema produtivo. Com isto, o
ensino médio é convocado a reconceptualizar-se tendo em vista atender
aos novos patamares qualificacionais suscitados pela globalização
econômica.
Segundo as recomendações feitas pelos participantes do
Seminário sobre Educação Fundamental e Competitividade Empresarial, as atuais diretrizes educacionais defendem a necessidade de
"considerar a educação não só sob o prisma da
competitividade empresarial, mas principalmente
como instrumento indispensável para a cidadania
e o desenvolvimento pleno das potencialidades
humanas, com o propósito de constituir uma
escola pública de qualidade" (Silva Filho, 1994, p.
90-1).
É a partir da óptica empresarial que vêm se articulando as
mudanças ensejadas para o campo educacional. A proposta de criação
de novos parâmetros curriculares para nortear o processo educativo
surge como expressão dessas demandas, as quais não se limitam a
interesses locais, mas incorporam-se ao ajustamento global
desencadeado pelo bloco daqueles países considerados desenvolvidos.
Inserido nesse debate, e em consonância com a concepção de
produção emergente, o ensino médio deverá responder satisfatoriamente
aos atuais desafios da competitividade econômica. Mas para isto,
necessita redimensionar seus objetivos, pois a Nação brasileira está em
risco de exclusão econômica devido ao atraso cultural e à existência de
um sistema escolar extemporâneo.
4.1 - Políticas Públicas para o Ensino Médio: as novas tendências em
curso
No debate promovido durante a realização da 19ª Reunião Anual
da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação
(1996), a palestra proferida por Acácia Zeneida Kuenzer pôs em
evidência o que se pode chamar de "o estado da arte" em relação ao
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.37-58, jul./dez., 1998
Mudanças na produção, qualificação para...
51
quadro vivenciado na atualidade pelo "ensino médio no contexto das
políticas públicas de educação no Brasil". Na introdução que faz nesse
documento, ela diz que o ensino médio continua "sem identidade", e
que sua história no Brasil "é a história do enfrentamento da tensão
entre educação geral e educação especifica" (Kuenzer, 1996, p.I-2).
Para compreender a nova definição que será atribuída ao ensino
médio, Kuenzer procura extrair da proposta educacional defendida por
Darcy Ribeiro e do Projeto de Lei 1603/96, proposto pela Secretaria de
Educação Média e Tecnológica ligada ao MEC, os elementos
fundamentais que balizam a sua estruturação.
Ela nos informa que o PL 1603/96 nasceu de discussões do
Ministério da Educação juntamente com o Ministério do Trabalho, e
dispõe sobre educação profissional tendo em vista a criação de um
Sistema Nacional de Educação Profissional. O PL se apresenta como
uma resposta formal do Estado com o objetivo de possibilitar "a
integração da economia brasileira à globalização e às decorrentes
demandas de formação de um trabalhador de novo tipo" (Ibid).
Por meio da Secretaria de Formação e Desenvolvimento
Profissional (SEFOR), o Ministério do Trabalho busca aplicar uma
política que dê conta de ''promover a consolidação da estabilidade
econômica do país e a construção do desenvolvimento sustentado,
tendo por base a equidade social". No entanto, a realização desse
projeto implica a superação de alguns desafios básicos do tipo:
1)integrar a política de educação profissional à
política pública de emprego, trabalho e renda
voltados para o desenvolvimento sustentado; 2)
definir com precisão o foco de educação
profissional, de modo a caracterizar-se como
atividade com início, meio e fim, sobre a premissa
da empregabilidade entendida não como simples
capacidade de obter emprego, mas de manter-se
em um mercado de trabalho em constante mutação
(Ibid, p.5).
No conjunto da nova política de formação profissional, o
Ministério do Trabalho passa a ser
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.37-58, jul./dez., 1998
Paulo Corrêa
52
"responsável pela articulação da política de
emprego, trabalho e educação profissional no país,
a ser expressa em um programa integrado de
qualificação e requalificação, com objetivos bem
definidos, tendo como clientela privilegiada os
desempregados e os excluídos" (Ibid., p.6).
A incorporação dessa demanda requer que se repense o
significado e função do ensino médio o qual, ainda, "constitui-se uma
oferta seletiva com finalidades propedêuticas".
Tendo em vista o registro desses pontos críticos, o MEC se
oferece para dirigir o
"processo de redefinição do ensino médio, buscando
definir as modalidades de educação acadêmica e
profissional, através de um modelo flexível, rever os
currículos, redefinindo as funções da União, do
Estado, dos Municípios e do Setor Produtivo".
Para resolver o problema político-pedagógico das Escolas
Técnicas e Centros Federais de Educação Tecnológica, foram lançadas
duas propostas direcionadas para:
a) a retirada da formação acadêmica da educação
tecnológica, criando duas redes no âmbito do ensino
médio: uma de educação acadêmica e outra de
escolas e instituições voltadas para a educação
tecnológica em caráter complementar, privilegiando
a criação de centros de educação profissional para
cursos concomitantes ou posteriores, criando-se os
pós secundários;
b) a superação da distinção entre educação geral e
especial, através de uma base comum nacional
modulada, porém dirigida a áreas de conhecimento
complementadas por educação técnica estruturada
ou modular; a estruturada obedece à seriação, de
modo a assegurar as bases científicas, instrumentais
e tecnológicas; a modular seria constituída por uma
oferta de módulos (conjunto de disciplinas) que
dariam formação profissional em partes orgânicas
que, no todo, formariam o técnico (Ibid, p. 9).
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.37-58, jul./dez., 1998
Mudanças na produção, qualificação para...
53
No que se refere à reestruturação curricular, a gestão da rede
federal de educação tecnológica propõe-se operacionalizar a "separação
da parte profissional da parte acadêmica". Segundo o entendimento
estabelecido por Kuenzer, as redefinições em curso se coadunam com a
"idéia de equidade, como demanda de justiça social com eficiência
econômica". Fato este que, na opinião da autora,
reduz o papel do Estado a assegurar condições,
através de financiamento, apenas para os setores
geralmente excluídos, como as minorias étnicas,
pobres e mulheres, com efeito corretivo para tornar
pobres e ricos igualmente competitivos, desde que
assegurada a sua competência, uma vez que o
tratamento universal significa desperdício de
recursos, pois nem todos têm a competência
acadêmica necessária para a continuidade dos
estudos (Ibid, p.15).
Na configuração assumida pela proposta de formação profissional
idealizada pelo Ministério da Educação junto com o Ministério do
Trabalho, deve existir uma política de "estímulo à participação dos
empresários na gestão da escola como forma de adequar os
currículos". Ao lado dessas medidas, há que se acrescentar o "fomento
da oferta privada, para complementar a ação do Estado e como meio
de controlar os custos do aumento das matrículas nos estabelecimentos
púbicos" (Ibid, p.18).
As análises feitas por Acácia Kuenzer revelam que o MEC, com
formulação das atuais políticas públicas voltadas para o ensino médio
brasileiro,
adota uma postura de contenção da demanda com
relação à continuidade dos estudos a partir de um
conceito elitista de competência, propondo a
educação
profissional
como
forma
de
assistencialismo e compensação para os pobres e
desvalidos da sorte, que, incapazes de estudar, têm
que aprender a trabalhar (Ibid, p. 20-1).
Tendo em vista atingir esses propósitos é que o Projeto de
Lei 1603/96 define que a educação profissional deve estar
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.37-58, jul./dez., 1998
Paulo Corrêa
54
"voltada prioritariamente para aqueles trabalhadores adultos
desescolarizados, desempregados ou excluídos do mercado de
trabalho". Ela passa a ser "elemento essencial para o próprio resgate
da cidadania no processo de democratização da sociedade", por meio
do oferecimento de uma modalidade de educação ao trabalhador
"barata, aligeirada e ineficaz" (Ibid, p. 25).
Face à constatação da dependência do Brasil em relação aos
atuais princípios neoliberais postos em ação pelo Banco Mundial,
Kuenzer considera que
"o país não tem um Plano Nacional com políticas
sociais e produtivas que defina como e sob que
condições
participa
desta
etapa
de
desenvolvimento que, como as anteriores, não é
necessariamente irreversível" (Ibid, p. 26).
Segundo estudo realizado pela pesquisadora, as medidas
indicadas pelo PL 1603/96 provocarão a "separação das vertentes
técnica e acadêmica", e recolocarão a "dualidade estrutural, criando
inclusive duas redes, reguladas por legislações equivalentes: a LDB e a
da Educação Profissional” (Ibid, p.26).
Os elementos absorvidos dessas reflexões mostram as diferentes
mediações que perpassam a definição de um "parâmetro curricular" e
indicam que a produção deste é fruto das contradições e ambigüidades
conformadoras do sistema social. Neste sentido, o significado que vem
sendo pensado para o ensino médio revela-se uma opção retrógrada e
caduca, pois ao primar pela segmentação entre formação geral e
específica através de "sistemas paralelos de educação", coloca-se na
contramão da história, oferecendo-se mesmo como resistência ao novo
modelo de produção flexível que ao mesmo tempo procura justificar.
Assim, o dilema sobre a identidade ideal da qual deverá se
revestir o ensino médio permanece como uma questão intrigante e
desafiadora. O debate não se exaure com as atuais medidas que
intentam tomá-lo um meio eficaz na contenção da demanda
escolarizada dirigida para o acesso aos cursos de nível superior e na
formação técnica profissional dos desvalidos e desprovidos de sorte,
excluídos do sistema escolar formal. Isto para poder incorporar esta
demanda como força produtiva no mercado de trabalho competitivo.
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.37-58, jul./dez., 1998
Mudanças na produção, qualificação para...
55
A oferta de uma organização escolar desse tipo pode ser pensada,
então, sob o prisma da regulação social do contingente de indivíduos
em idade escolar que precisa ser absorvido na estrutura educacional, sob
pena de aumentar o fosso entre formação profissional e as
possibilidades de ingresso no mercado de trabalho.
4.2 - O Ensino Médio Face à Retórica da Qualidade
A questão da funcionalidade e adequação do sistema educacional
ao jogo proposto pela lógica produtiva, que tenta redefinir um novo
estágio à acumulação de capital, vem assumindo espaço privilegiado
nos foros de debates que apontam para a necessidade de se constituírem
políticas públicas capazes de atender aos atuais reclames emanados da
iniciativa privada. Dentro destas preocupações, o sentido da educação
passa a ser questionado devido ao distanciamento em que esta se
encontra frente ao processo de produção.
O aceleramento do processo tecnológico tem exigido, por parte
dos países subdesenvolvidos, o delineamento de mudanças
significativas não apenas em relação às formas de organização
produtiva requeridas para os setores empresariais de modo a manter-se
competindo no mercado, mas igualmente há um aumento na demanda
de qualificação do sujeito trabalhador. Fato este que remete à
compreensão da estrutura educacional e do papel que a mesma deverá
assumir diante da atual tendência.
Um dos pontos vitais em tomo do qual vem se configurando o
debate sobre a relação entre educação e trabalho cruza-se com o
discurso difundido pela óptica da qualidade total. Este discurso visa a
atingir maior eficiência na produção, mediante investimento na
formação do trabalhador de novo tipo.
O aumento nos critérios qualificacionais exigidos para o
trabalhador indica a necessidade de a escola brasileira passar a marcar
um encontro com sua própria época. Em conformidade com os
fundamentos do atual modelo produtivo, essa contemporaneidade,
todavia, deve se fazer através da lógica implícita nas diretrizes
demarcadas pela qualidade total, transposta para o campo educacional a
partir de dois vetores complementares:
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.37-58, jul./dez., 1998
Paulo Corrêa
56
o deslocamento do problema da democratização
ao da qualidade e a transferência dos conteúdos
que caracterizam a discussão sobre a qualidade
no campo produtivo-empresarial para o campo
das políticas educacionais e para a análise dos
processos pedagógicos (Gentili, 1995, p. 116).
A assimilação deste discurso pelo sistema educacional
caracteriza-se como a única saída possível para os graves problemas que
assolam a organização escolar brasileira. Dentro de tal perspectiva, as
diferentes instituições responsáveis pela educação devem investir-se do
espírito da competitividade empresarial pela qual, apenas, os melhores
produtos passam a ser imediatamente absorvidos na estrutura
ocupacional devido à qualidade de seus serviços e à disponibilidade de
recursos necessários para adquiri-los.
Os Parâmetros Curriculares atualmente delineados para o sistema
educacional brasileiro guardam estreitas relações com o processo de
reconversão produtiva mundial. As novas políticas públicas hoje
desenvolvidas pelo Ministério da Educação e Cultura já evidenciam
essa tendência, à medida que o referido Órgão procura definir um
programa de educação tecnológica voltado para a formação e
especialização de técnicos de nível médio. Estes devem ter um mínimo
de educação geral e o máximo de domínio das técnicas específicas
necessárias à eficiência na produção.
Dada a incongruência para a implementação de um modelo de
desenvolvimento flexível, o ensino médio emerge como uma das
modalidades educativas responsáveis pelo grandioso "mal-estar da
modernidade". É imperioso, pois, adaptá-lo ao sistema produtivo
atribuindo outra concepção à sua estrutura e funcionalidade.
O ensino médio ascende novamente como o pivô dos debates
acerca do eixo condutor a ser dado ao projeto educacional do país. É
para ele também que as iniciativas empresariais têm sido direcionadas
com o objetivo de redimir o capitalismo dos males provocados por um
sistema escolar ineficaz e de qualidade duvidosa. Assim, à luz das
atuais mudanças requeridas pelo modelo de acumulação produtiva,
vincular a educação ao mercado de trabalho revela-se como a condição
fundamental para evitar que a nação brasileira seja excluída do processo
de globalização econômica em curso.
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.37-58, jul./dez., 1998
Mudanças na produção, qualificação para...
57
Não obstante as críticas ensaiadas pelos empresários em relação à
funcionalidade do sistema escolar brasileiro, é preciso dar conta de que
as políticas públicas voltadas para o atendimento educacional, no nível
de ensino médio, ainda continuam a representar sérios desafios que não
se restringem apenas à questão de sua identidade ou vinculação ao
mercado de trabalho, mas refere-se igualmente à qualidade de sua oferta
por parte do poder público.
Portanto, segundo a óptica da globalização signatária da
qualidade total, a inviabilidade do sistema educacional brasileiro e sua
extemporaneidade, face aos atuais desafios do momento, podem tomar
o Brasil "uma nação em risco" de ser suplantada pelo progresso. Neste
sentido, as reformas curriculares passam a ganhar maior ênfase, pois é a
partir das mudanças no interior do currículo nacional que se espera
forjar um sistema escolar de qualidade e eficiente, cujos princípios não
devem destoar da lógica empresarial.
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.37-58, jul./dez., 1998
Paulo Corrêa
58
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política educacional após 1964. Petrópolis-RJ: Vozes, 1981.
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.37-58, jul./dez., 1998
Avaliação da Aprendizagem Escolar:
uma proposta de ultrapassagem do
autoritarismo na sala de aula
Eunice Léa de Moraes*
Maria Célia Conceição**
Maria de Nazaré Viana***
mas neste caso como em qualquer outro o que
é errado também é acreditar que, pelo fato de
não podermos fazer tudo, não podemos nem
somos obrigados afazer.
Anthony Flew
Pensar Direito (Ou, será que eu
quero sinceramente estar certo?)
1 – INTRODUÇÃO
A escolha do tema "Avaliação da Aprendizagem Escolar: uma
proposta de ultrapassagem do autoritarismo na sala de aula" deve-se à
constatação de que a avaliação da aprendizagem é, sem dúvida, uma das
maiores dificuldades com que se depara o professor, no processo
instrucional. A atividade docente, muitas vezes, fica sem respostas
claras a perguntas como "O que avaliar?", "Para que avaliar?", "Como
avaliar?" e "Quando avaliar?".
A avaliação como uma atividade histórica própria do homem, na
qual ele tem que optar ou escolher para uma tomada de decisão, remete
os educadores a uma preocupação: a avaliação escolar.
*
Socióloga. Professora do Centro de Educação da UFPA /Pesquisadora Associada do
NAEA/UFPA
**
Socióloga. Técnica da SEDUC
***
Socióloga. Técnica da SECULT
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.59-76, jul./dez., 1998
Eunice Léa de Moraes, et al.
60
Aliado a estas questões, está o fato de que o conceito avaliação
ainda é muito controvertido entre os educadores e se constitui uma das
maiores dificuldades encontradas por professores e alunos. Entendemos
que o "modelo social", no qual estamos inseridos, tem grande influência
sobre as concepções de avaliação.
Geralmente, tudo isto é referenciado por uma visão muito
tradicional de avaliação, em que a aprendizagem é quantificada e
mensurada através de instrumentos convencionais: provas, testes e
outros do gênero.
Neste sentido,
A avaliação sempre pressupõe uma relação de
poder (admissão. sanção seleção, exclusão, etc)
cujas regras ou critérios são, em geral, utilizados
como elementos de legitimidade das atividades ou
decisões avaliativas. A objetividade de uma
avaliação é relacionada à aplicação racional de
um critério que, sempre, possui algum caráter
arbitrário. A negação desses fatores e a
objetividade absoluta das avaliações pertencem ao
antigo ideário positivista (Thiollent, 1984, p. 49).
Para se imprimir uma postura crítica sobre avaliação, é necessário
que sejam explicitados, qualitativamente, os critérios utilizados e
elucidadas as suas implicações nas relações de poder no seio das
instituições, sem perder de vista que essas relações, no nível micro da
sala de aula, professor/aluno, dentro dos limites da escola, como se
pretende estudá-las, não se dão de modo isolado e simples, mas refletem
relações complexas da sociedade, originadas da própria estrutura de
classes numa formação social onde predominam as relações de
dominação/subordinação e o papel desempenhado pelo Estado não pode
ser simplificado ou omitido.
Outros aspectos da avaliação que despertaram interesse para este
estudo foram os seus fatores de seletividade e discriminação,
características que permeiam o sistema educacional. A política
educacional, no conjunto das políticas governamentais, é discriminada
inclusive na pequena parcela orçamentária que a União destina à
educação. Há, ainda, que considerar o desrespeito à Constituição no que
se refere ao ensino gratuito para todos e ao direito do homem à
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.59-76, jul./dez., 1998
Avaliação da aprendizagem escolar: uma proposta...
61
educação. Na prática, um grande contingente da população
escolarizável não tem acesso à escola ou, se tem, é expulsa nas
primeiras séries do 1º grau. Zaia Brandão, ao analisar evasão e
repetência no Brasil, no período de 1974/78, diz que no Brasil, para o
período considerado, de cada 1000 crianças que iniciam a primeira
série, apenas 438 chegam à segunda, 352 à terceira, 297 à quarta e
apenas 294 à quinta. Poder-se ia estimar que, dessas 1.000 crianças
iniciais, apenas 180 chegariam a concluir o 1º grau (Brandão, 1983, p.
22).
Nos limites do nosso estudo, examinaremos uma proposta de
avaliação entendida como um processo dinâmico e representativo, com
critérios estabelecidos a partir do consenso entre professor/aluno e na
medida em que a avaliação escolar tem uma função dialética, crítica e
conscientizadora, na qual a experiência vivida por todos os agentes
envolvidos no sistema de ensino deve ser considerada. Para que a
avaliação escolar "... assuma o seu verdadeiro papel de instrumento
dialético de diagnóstico para o crescimento, ela terá que se situar e
estar a serviço de uma pedagogia que esteja preocupada com a
transformação social e não com a sua conversão" (Luckesi, 1984, p.
14-15). Neste sentido, pretende-se suscitar, em nível micro, uma
reflexão/ação sobre a prática educacional da avaliação na
aprendizagem.
2 - AVALIAÇÃO: Um Pouco da História
A avaliação, enquanto atividade histórica do homem, tem uma
longa história. Em educação, a sua história é mais recente.
A avaliação dos resultados da escolaridade, do currículo e do
planejamento desenvolvidos pela Escola surgiu como idéia nos Estados
Unidos, na década de 30, e parece ter sido uma forma de reação à
atribuição aleatória de notas como medida do trabalho escolar. Esta
avaliação parte de uma filosofia de educação que focaliza o aluno não
apenas como um conjunto de habilidades e conhecimentos, ou seja, o
aluno não é apenas um conjunto de informações. A partir daí, os
objetivos educacionais foram ampliados e os rígidos ''testes objetivos"
foram perdendo sua força e razão de ser. A estimativa do trabalho pelos
educadores foi acrescida de preocupações com outros atributos, como:
"atitudes, interesses, ideai8, formas de pensar e de trabalhar, a
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.59-76, jul./dez., 1998
Eunice Léa de Moraes, et al.
62
adaptação pessoal e social tanto dos professores como dos alunos"
(Martins, 1980, p. 85).
Posteriormente, vários projetos foram desenvolvidos dentro do
mesmo enfoque, sendo que o objetivo não era apenas medir resultados,
mas obter melhores informações sobre outros aspectos que interferiam,
prejudicavam ou melhoravam o rendimento escolar. Dentre os maiores
projetos sobre o assunto, Martins (1980) faz referência ao Projeto "O
Estudo de Oito Anos", patrocinado pela Associação de Educação
Progressiva. O autor considera que esse projeto introduziu novas idéias
instrumentais e técnicas de avaliação.
Após a II Guerra Mundial, os estudos sobre avaliação
educacional foram dirigidos para pesquisa "cuja orientação era permitir
maior envolvimento do pessoal que trabalha nas escolas, com a
finalidade de melhorar, também, dessa forma, o processo de avaliação
educacional" (Ibidem).
No Brasil, a partir das Reformas Universitárias e das de 1º e 2º
graus, na década de 70, a avaliação vem sendo alvo de discussões,
desde que a qualidade do ensino passou a ser questionada.
A grande maioria das abordagens feitas é baseada em enfoques
teóricos dentro de um pedagogismo autoritário, sem haver um
questionamento profundo sobre a finalidade dos mecanismos
empregados e os resultados dessas avaliações.
3 - OS NÍVEIS DA AVALIAÇÃO
Segundo Bemadete Gatti (1977, p. 41),
"dentro de contexto educacional, existem vários
níveis de avaliação educacional: avaliação em
nível de sistema, em nível de programas
educacionais, em nível de pesquisa educacional e
em nível de acompanhamento do professor em sala
de aula".
Como bem expressa Thiollent (1984, p. 48),
"no contexto educacional, a avaliação é uma
dimensão permanentemente presente, tanto em
nível individual (alunos, professores) quanto em
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.59-76, jul./dez., 1998
Avaliação da aprendizagem escolar: uma proposta...
63
nível coletivo (escolas, sistemas pedagógicos, etc).
A escolha e a justificativa dos critérios de
avaliação são geralmente relacionadas a objetivos
práticos: seleção, reformas, etc".
O problema da avaliação pauta-se no pressuposto de que ela se dá
numa relação de poder (admissão, sanção, seleção, etc). E um dos níveis
em que essa relação é mais conflitante é o acompanhamento do
professor em sala de aula, onde a relação se manifesta de forma
autoritária e subalterna, consecutivamente, sem reciprocidade dialética.
Fundamentalmente, por trás da avaliação autoritária estão as relações
autoritárias: professor-aluno, professor-povo, aluno-povo.
Segundo Nidelcoff, professor-povo se caracteriza por ter uma
prática avaliativa em que os fatores sociais do rendimento escolar são
levados em conta; avalia como um educador, não como um transmissor
de informação; interessa-se pelos alunos enquanto pessoas e não
enquanto "intelectos", valorizando as suas atitudes, dedicação e
res¬ponsabilidade. Para a autora, a memorização não é o mais
importante na aferição, mas a capacidade crítica e explicativa do aluno;
o estímulo à superação das dificuldades e ao desenvolvimento do
espírito de autocrítica substituem os instrumentos de avaliação que
causam temor. Neste sentido, o aluno e o grupo são conduzidos a uma
perspectiva de auto-avaliação.
Paulo Freire quanto a esta posição afirma que, "a educação
problematizadora se faz, assim, num esforço permanente através do
qual os homens vão percebendo, criticamente, como estão sendo no
mundo com que e em que se acham". Dá-se num exercício de
criticidade, pois a auto crítica está associada à auto-avaliação; a como
pensar sobre si mesmo, numa relação que envolve os outros e o mundo.
Duas realidades se colocam em tensão: manter um alto nível de
rendimento, ou baixar o nível de exigências a um rendimento médio do
grupo. Aí, os professores e alunos se vêem diante do problema da
promoção de série. Nesta perspectiva, acredita-se que o mais
importante, em nível do 1º grau, é reter, o mais possível, a criança na
escola para que ela aprenda o máximo que puder e até onde puder,
nesses anos, respeitando o seu ritmo e as suas possibilidades.
Segundo Althusser (1977),
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.59-76, jul./dez., 1998
Eunice Léa de Moraes, et al.
64
"é através da aprendizagem de alguns saberes
práticos (savoir-faire), envolvidos na inculcação
massiva da ideologia da c/asse dominante, que são
em grande parte reproduzidas as relações de
produção de uma formação social capitalista, isto
é, relações de explorados com exploradores e de
exploradores com explorados".
A relação pedagógica autoritária que acontece em sala de aula
entre professor e aluno não é uma relação especificamente escolástica.
Essa relação se passa em toda a sociedade de modo geral e nos
indivíduos quando se relacionam com outros indivíduos, sejam eles de
classe dominada ou dominante, desde que haja uma relação de
hegemonia. Verifica-se que a avaliação, que objetiva acompanhar o
processo de aprendizagem escolar durante esse processo, serve tanto
para planejamento e re-planejamento da atividade de professores e
alunos quanto para aferição de graus.
Atendendo a esta finalidade, perpassam variáveis que interferem
no ponto fundamental da questão avaliativa: a tomada de decisão. É no
âmbito desta tomada de decisão que, geralmente, a autoridade do
professor se reveste de autoritarismo, numa explícita demonstração de
poder, impedindo que a relação se dê numa perspectiva dialógica e
recíproca.
A prática da avaliação escolar, dentro do modelo
liberal conservador, terá que, obrigatoriamente,
ser autoritária, pois que esse caráter pertence à
essência dessa perspectiva de sociedade, que exige
controle e enquadramento dos indivíduos nos
parâmetros
previamente
estabelecidos
de
equilíbrio social, seja pela utilização de coações
explícitas, seja pelos meios sub-reptícios das
diversas modalidades de propaganda ideológica
(Luckesi, 1984, p. 5).
A avaliação educacional, dentro desse enfoque, é um instrumento
disciplinador do comportamento cognitivo, afetivo e social do educando
na escola.
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.59-76, jul./dez., 1998
Avaliação da aprendizagem escolar: uma proposta...
65
Por outro lado, a educação não responde aos anseios da
população numa sociedade em que a desigualdade parte da base, ou
seja, das relações de produção do modelo capitalista ao qual está
subordinada.
A educação, a escola e os processos educacionais observados na
sociedade, longe de se constituírem fatos universais, são uma criação
histórica da sociedade burguesa e cumprem funções determinadas por
sua criação.
Está presente, nesse caso, a questão do significado político da
problemática educacional, ou seja, é radicalmente prioritário, em
relação às questões didático-pedagógicas, discutir o significado da
educação no contexto da vida social concreta, uma vez que a educação
deve ser o agente da vida social e política da nação. Assim, todo projeto
educacional é, necessariamente, um projeto político, e não há como
evitá-lo.
A prática da avaliação é autoritária e reflete a característica do
contexto em que se situa. A vida social, econômica, política e cultural
do país guarda um ranço do autoritarismo que envolve a nação, com
mais vigor, nesses últimos 20 anos. Assim, a educação e as práticas
educativas escolares são caracterizadas por apresentarem processos
distanciados da realidade, passivos e autocráticos. Neste contexto, situase a avaliação da aprendizagem escolar, tendo presentes as variáveis da
relação educativa: o ritual pedagógico, a autoridade do professor e o
poder.
Em uma perspectiva educacional transformadora, o conhecimento
humano acumulado se transforma constantemente dentro de uma
vivência histórica e evolutiva, à medida que as experiências vivenciadas
em sala de aula surgem de um consenso dialógico entre professores e
alunos. Desse modo, se o ensino é significativo, a avaliação escolar, por
sua vez, deixará de ser autoritária, seletiva, hierárquica, individual,
competitiva e baseada apenas em critérios quantitativos, "terá que ser
democrática e a serviço de uma pedagogia que esteja preocupada com
a transformação da sociedade, a favor do ser humano, de todos os
seres humanos, igualmente" (Luckesi, 1984, p. 6).
Enfim, a avaliação escolar deve conter em sua essência a
transformação das relações humanas, permitindo que todos os agentes
diretamente envolvidos no processo educativo se modifiquem. Deve
haver crescimento através da formação da consciência critica, ou seja,
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.59-76, jul./dez., 1998
Eunice Léa de Moraes, et al.
66
"um levantamento dos erros cometidos. das formas
de enfrentá-los. sendo um modo eficiente de
melhorar os métodos empregados. Uma avaliação
dinâmica, portanto. não teria somente a função da
verificação da aprendizagem
cada aula estará
significando um aprendizado e sua avaliação
constante" (Laterza, 1980, p.68)
Desse modo, a avaliação de simples estimativa passaria a ser,
antes de tudo, diagnóstica, representativa, contínua e estaria voltada,
principalmente, para os aspectos qualitativos da aprendizagem enquanto
auto educadora e conscientizadora. Estes tipos de avaliação se inserem
numa pedagogia libertadora, dentro de um modelo social transformador.
"Com a função diagnóstica, a avaliação constitui-se num
momento dialético do processo de avançar no desenvolvimento da
ação, do crescimento para a autonomia, do crescimento para a
competência, etc." (Luckesi, 1984, p. 8). A avaliação assim entendida é
aquela em que se pergunta e sabe-se para que servirão as respostas; não
é definitiva, uma vez que o homem e a educação são inacabados. Dá-se
sempre de forma provisória; é dinâmica e serve como parada para
pensar a prática e retomar a ela; auxilia o avanço e o crescimento. O
educando é reconhecido como um sujeito humano histórico.
A avaliação se tomará instrumento de identificação de novos
rumos, visto que detecta e localiza possibilidades de encontrar caminhos
novos; auxilia o educando a encontrar a sua autonomia, garantindo-lhe
relações de reciprocidade em lugar de subalternidade.
Ressalte-se que a auto-avaliação é condição primordial para a
avaliação diagnóstica.
A avaliação é representativa e tem um significado de globalidade.
Abrange uma multiplicidade de variáveis, de situações, envolvendo
todos os agentes do processo educativo, ou seja, avaliação:
• professor-aluno;
• aluno-professor;
• aluno-aluno;
• professor-professor;
• da escola e suas condições físicas, administrativas e
pedagógicas; ou, ainda,
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.59-76, jul./dez., 1998
Avaliação da aprendizagem escolar: uma proposta...
67
• auto-avaliação;
• avaliações individuais;
• avaliações em grupo.
4 - O PENSAMENTO DE ALGUNS EDUCADORES SOBRE
AVALIAÇÃO
A educação e a escolarização não são práticas neutras. São
instituições ideologicamente utilizadas para manter e conservar a
estrutura social dominante de modo que os homens tenham de
reproduzir a sua vida material, os seus valores, a sua visão de mundo e
de homem. Tratando-se de uma sociedade como a brasileira, essas
instituições reforçam a permanência do modo de produzir moldes
capitalistas e, conseqüentemente, a prática educativa reforça esse tipo
de sociedade.
Neste sentido, a "avaliação educacional em geral e a avaliação
em "especial são meios e não fins em si mesmos, estando, desse modo,
delimitadas pela teoria e pela prática que às circunstancializaram"
(Luckesi, 1984, p. 1). Quer dizer que a prática pedagógica traduz um
modelo teórico do mundo e da educação e não é realizada
gratuitamente. Ela serve a esse modelo. Cabe romper esse limite e
colocá-la a serviço de uma pedagogia que entenda a educação como
mecanismo de transformação social, como mediadora que, em conjunto
com outras práticas sociais, pode contribuir para esta transformação.
Um outro aspecto muito importante que se liga à questão da
avaliação se expressa no trinômio: disciplina, autoridade e liberdade.
Paulo Freire e Sérgio Guimarães situam bem esta problemática ao
afirmarem "... a disciplina é absolutamente fundamental, mas, desde
que ela seja a expressão de uma relação harmoniosa entre pólos
contraditórios, que são a autoridade e a liberdade" (1984, p. 18).
Talvez esta "harmonia", na prática, se expresse por um confronto
respeitoso de pessoas diferentes, cada qual consciente de seus limites,
seu poder, suas necessidades e sua liberdade. Se há conflito, ele é
também "uma forma de sociabilidade", como diz Marilena Chauí.
Diante de uma escola que homogeneiza a heterogeneidade de seu
alunado,
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.59-76, jul./dez., 1998
Eunice Léa de Moraes, et al.
68
"... a injustiça do sistema de avaliação é: são
crianças diferentes; o ritmo de aprendizagem é
diferente; a bagagem de cada criança é diferente;
e, no entanto, na hora da avaliação, são colocadas
todas diante de uma mesma régua, de uma mesma
prova, e aí o que vale é o desempenho em relação
a essa prova" (Freire e Guimarães, 1982, p. 27).
Não se atenta, dessa forma, para a classe social dos alunos, para
suas experiências de vida, para o seu ritmo e tempo de aprendizagem.
"Um outro aspecto nesse jogo injusto no processo
de avaliação e no processo de aprovação e
reprovação que a escola faz, da promoção, como
chamam, de uma série para outra, é todo o
problema da linguagem" (Ibidem, p. 30).
visto que há grande diferença entre a Língua Portuguesa falada em casa
e a linguagem oficial presa às regras gramaticais, confrontada com um
tipo de vocabulário que corresponde à prática da classe social
dominante e não, por exemplo, à prática de linguagem do menino e da
menina oriundos da zona periférica das cidades e dos grupos sociais
menos favorecidos. Isto é, na escola, fala-se através dos conceitos e do
concreto pela abstração, sem relacioná-los com a realidade da vida
cotidiana, embora as crianças de zonas periféricas e de camadas
dominadas tenham uma linguagem concreta da vida.
Para Bernstein (apud Magalhães, 1970), a importância da
linguagem para a socialização tem manifestação na origem
socioeconômica. Com á hipótese do déficit lingüístico, utiliza como
abordagem o código da fala, estando ligado à noção de estrutura social.
Divide a sociedade em duas classes sociais e cada uma delas falando o
seu código correspondente, embora essa noção de código lingüístico
também seja definida por critérios psicológicos supondo que uma
deficiência lingüística implica em deficiência cognitiva.
Então, a estrutura social dá origem à comunicação através do
modo de falar que, por sua vez, permite o acesso a privilégios sociais
àqueles que usam o "código elaborado" (linguagem "oficial/classe
média)" enquanto àqueles que usam o "código restrito" (classe operária)
são vetados esses privilégios. Assim, a desigualdade social é explicada
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.59-76, jul./dez., 1998
Avaliação da aprendizagem escolar: uma proposta...
69
pela característica da fala. Segundo Bernstein (apud Magalhães, 1970),
o aperfeiçoamento da fala poderia compensar essa desigualdade social.
Mas, a escola usa como critério de avaliação o domínio da
linguagem abstrata e não o da linguagem concreta. A questão da classe
social é mostrada. Cabe, então, uma discussão com os educandos a
respeito dos critérios de avaliação.
No que se refere ao mecanismo de controle e de conformizar os
alunos, são utilizados mecanismos de avaliação. Isto fica espelhado
quando Wagner Rossi (1978, p. 126) afirma:
A forma mais elaborada de controle sobre
eventuais "disfunções" da escola a um tempo
perfeitamente
adequada
à
administração
burocrática (nacional e legal), e revelando-se
enganosamente "técnica", "objetiva" de modo a
parecer justa e democrática, encontra-se na
extensão dos programas e técnicas de avaliação
do desempenho dos professores, cursos e escolas,
no âmbito educacional. A avaliação formal, na
escola, sempre foi instrumento de controle
utilizado pela pedagogia tradicional para
conformizar o aluno.
Segundo Magda Soares, grande parte da bibliografia educacional
considera a avaliação como "científica", "neutra" e rigorosamente
"técnica", servindo para minimizar a situação escolar estabelecida
socialmente a uma relação objetiva entre o educando e o conhecimento,
e com isso encobre outros fatores que agem na referida relação.
A avaliação é dissimuladora e mistificadora, porque ao invés de
medir, como propala os méritos dos alunos, na realidade, mede o
processo de socialização. Apesar de enfocar sempre uma coerência
entre a avaliação e as condições culturais do educando, suas funções
sociais exercidas no sistema educacional apresentam mecanismos de
seleção, escolhendo uns e rejeitando outros, através de um processo de
eliminação que escamoteia a relação com a hierarquia social, com sua
suposta objetividade. Nega uns por não acompanhar todos.
Para Carlos Rodrigues Brandão (1984), a avaliação tem a função
de legitimar e efetivar a "ordem hierárquica do trabalho". Na verdade, a
avaliação serve de controle e legitimação do poder.
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.59-76, jul./dez., 1998
Eunice Léa de Moraes, et al.
70
Michel Jean-Marie Thiollent (1984, p. 49) considera que a
avaliação é toda "forma de raciocínio", desde que haja uma comparação
de um fato em relação a regras, critérios pré-estabelecidos e
selecionados entre aqueles possíveis de ser aplicados.
Toda avaliação teria que conter aspectos qualitativos e
quantitativos agrupados. Nos aspectos qualitativos há história, contexto,
relação mutuamente crítica.
À avaliação, sempre, antecede uma relação de poder, pois os
critérios estabelecidos são legitimadores das decisões avaliativas. Estes
critérios são sempre arbitrários se ignoram que no ser humano, em
geral, há o ser humano aqui e agora.
Uma postura crítica, em matéria de avaliação,
exige que sejam qualitativamente explicitados os
critérios utilizados e desvendadas as suas
implicações ao nível das relações de poder no seio
da interação e das instituições. Na avaliação há
um padrão único e independente de uma definição
institucional ou de uma concepção do saber
(Ibidem):
Pedro Demo (1984) considera a avaliação como uma das etapas
do planejamento e de execução de políticas. Na realidade, a avaliação é
um componente do processo, porque toda proposta teórica e prática
resulta de avaliações. Como etapa, a avaliação não pode ser isolada da
relação entre meios, fins, diferenças sociais e pessoais, teoria, prática.
Considera, ainda, avaliação como meio de controle do que foi
planejado com o que está sendo executado e que, na maioria das vezes,
há divergência entre teoria e prática. Um outro problema da avaliação é
ser feita apenas pelos planejadores e executores; a "clientela" alvo não
participa da avaliação. Com isso, aparecem dados distorcidos nos
relatórios, falseando a situação real. Num posicionamento crítico, surge
a avaliação participativa, em que os interessados participam, pois são os
"necessitados que entendem de suas necessidades". O ponto
fundamental é que a clientela a ser beneficiada avalie o que se pretende
fazer com ela. Por maiores que sejam os problemas, é necessário que a
clientela participe de todas as fases do processo. Um critério básico da
avaliação participativa é a "autopromoção" no sentido de autogestão e
"co-gestão" da comunidade envolvida.
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.59-76, jul./dez., 1998
Avaliação da aprendizagem escolar: uma proposta...
71
Bárbara Freitag (1984), ao analisar o desenvolvimento histórico
brasileiro, aponta o fato de a educação ter passado por um processo de
valorização constante, como uma força estratégica para a consolidação
do capitalismo no país. Essa valorização é, muitas vezes, confundida
com a democratização do ensino. Na realidade, acontece o que Zaia
Brandão e outros autores (1983), em um estudo exaustivo, no período
de cinco anos, sobre evasão e repetência no Brasil (1º grau), tratam a
respeito da seletividade social dentro da escola afirmando que "a
democratização do acesso não é garantia de democratização do ensino".
O tipo de avaliação que os professores trabalham nas escolas
evidencia uma formação específica. Além disto, o uso exacerbado de
poder perpassa em todas as relações que as pessoas mantêm em nível
global, significando que há uma rede de dispositivos no sistema
capitalista, da qual nada ou ninguém escapa, que é o poder. No sistema
educacional, ele existe e é mais perceptível na relação professor/aluno
dentro da sala de aula.
Michel Foucault (1979), estudando a formação histórica das
sociedades capitalistas, através de pesquisas minuciosas sobre o
surgimento da violência nas prisões, evidenciou a existência de formas
de exercícios de poder que não emanam diretamente do Estado, embora
estejam a ele articuladas e que são indispensáveis para sua sustentação e
atuação eficaz. O autor distingue cinco operações responsáveis pela
seletividade escolar:
"relacionar os atos, os desempenhos, os
comportamentos singulares a um conjunto que é
ao mesmo tempo campo de comparação, espaço de
diferenciação e princípios de uma regra a seguir...
medir em termos quantitativos e hierarquizar em
termos de valor as capacidades, o nível, a
"natureza" dos indivíduos. Fazer funcionar,
através dessa medida "valorizadora", a coração
de uma conformidade a realizar" (ibidem).
Ou seja, uma avaliação hierarquizada que enfatiza as qualidades e
defeitos, as competências e incompetências, castigo e recompensa.
Enfim, classificador que determina os "bons" e "maus" alunos do
sistema educacional.
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.59-76, jul./dez., 1998
Eunice Léa de Moraes, et al.
72
Se no campo educacional fossem levantadas as inúmeras
situações de evasão, reprovação e repetência, é bem provável que
muitas delas estivessem ligadas direta ou indiretamente a problemas
avaliativos. Pois a rigorosidade e arbitrariedade com que os
instrumentos quantitativos são aplicados na escola contribuem para que
muitos alunos se afastem ou tropecem nas "armadilhas" daqueles que se
dizem "professores".
5 – CONCLUSÕES
Este quadro teórico é uma crítica à Teoria da Educação
Autoritária. De autor a autor; repassa a linha teórica de que a educação e
a avaliação estão centradas em uma relação de sujeitos (sujeito aluno,
sujeito mestre, sujeitos todos os atores da escola). Tal relação, na
prática, supõe que, ao educar, o educador se educa e, ao ser educado, o
educando educa também. Desse modo, a avaliação se toma mútua e
permanente, sem hora marcada, sem cartas marcadas; todos são
avaliadores, auto-avaliadores, avaliados. Daí, espera-se um ponto de
vista teórico que ilumine a prática avaliativa e suas conseqüências.
Supondo-se que um dos componentes dos problemas de exclusão
dos alunos é a avaliação escolar autoritária e que tal exclusão se
relaciona com uma teoria de educação, na qual a evasão é um
subproduto da avaliação autoritária, então podemos formular o seguinte
esquema da relação:
1. Teoria da Educação
Autoritária (TEA)
2. Teoria da Educação
Não Autoritária
(TEÑA)
Avaliação Autoritária
(AA)
Avaliação Não
Autoritária
(AÑA)
Evasão Autoritária
(EA)
Não Evasão Não
Autoritária
(EÑA)
Na primeira situação, as relações educativas ocorrem assim:
Professor
Aluno
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.59-76, jul./dez., 1998
Avaliação da aprendizagem escolar: uma proposta...
73
O professor avalia o aluno usando todo poder. Existe um
julgamento de uma pessoa, para promover ("premiar") ou reprovar
("punir"). Neste caso, a avaliação é extrema, aparente, parcial e
definitiva, limitando-se à sala de aula, através do uso dos instrumentos
tradicionais de mensuração. Deste modo, a evasão autoritária é medida
(estatisticamente) apenas no aspecto quantitativo; somente o aluno é
responsabilizado pelo fracasso escolar; não é considerado o contexto
socioeconômico, político, histórico e cultural e as relações educacionais
com o "soberano" mestre.
Na segunda situação, as relações educativas se apresentam assim:
Professor: Aluno
O poder da avaliação passa a ser dividido entre o professor e o
aluno numa relação dialética de decisões, podendo aparecer vários
julgamentos, tanto do professor que também avalia, (é avaliado, se autoavalia) quanto do aluno (que se auto-avalia, avalia, é avaliado) num
processo contínuo, recíproco, externo e interno, ultrapassando a ação e
os agentes da sala de aula.
A evasão não autoritária, sem deixar de considerar os aspectos
quantitativos, se detém, com mais cuidado, nos aspectos qualitativos,
atentando para variáveis que interferem na relação educativa e na
tomada de decisão que diz respeito ao autoritarismo e ao poder do
professor, bem como ao medo e à submissão dos alunos ao processo de
admissão, sanção, seleção e expulsão.. Assim, a avaliação perde o seu
caráter definitivo, assumindo um caráter provisório porque não
considera os excluídos como definitivos, como irrecuperáveis, e a
escola toma-se também um pólo de atração e não só de repulsão.
A prática educativa reconstruí da considera variáveis como:
práticas não rotineiras, renovação de recursos materiais e humanos e
processos avaliativos. Isto implica uma reconstrução inovadora da
escola, recentrada nas relações entre seres humanos que crescem juntos,
ou seja, o aluno aprende com quem tem o papel de mestre e vice-versa.
Os papéis são atribuídos ou adquiridos e a história das pessoas que
interagem é mais que os seus papéis: é uma história coletiva que não
cresce sem a biografia de cada ser humano. Tal biografia
internalizadora (ou história pessoal) é processada pela teia das decisões,
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.59-76, jul./dez., 1998
Eunice Léa de Moraes, et al.
74
dos projetos, das utopias da existência das pessoas - a idade jovem ou
adulta não elimina a sede de auto-afirmação e de dignidade, embora
muitas vezes estas sejam espoliadas pelos controles institucionais
ligados à exclusão e à punição (Michel Foucault, 1977).
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Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.59-76, jul./dez., 1998
Racionalismo e Empirismo na Construção
de Conhecimentos Biológicos
Sílvia Nogueira Chaves1.
1 - CIÊNCIA E FILOSOFIA: Uma Necessidade?
Discussões em tomo da delimitação entre saber do senso comum
e saber científico vêm avolumando-se no meio acadêmico. Questões
como a que Chalmers (1993) propõe - o que é ciência afinal? - têm sido
a tônica das reflexões epistemológicas relativas aos critérios que
atribuem ao conhecimento o status de cientificidade.
Vale ressaltar que, apesar de sua atualidade, tal questão não é
recente. Modelos filosóficos explicativos da realidade, que visam à
compreensão e ao desvendamento- dos fenômenos naturais e sociais,
têm sido propostos desde a Grécia antiga.
Nesse período, podemos encontrar, por exemplo, a polarização de
critérios de verdade, ora centrados na razão individual, como o modelo
socrático; ora na sociedade, na perspectiva sofismática, ou ainda, na
razão e na percepção de Platão e Aristóteles, respectivamente. Neste
embate, o método de produção de conhecimento emerge como fator
determinante na demarcação entre ciência e senso comum.
Para alguns filósofos, dentre eles, Francis Bacon e René
Descartes, a veracidade do conhecimento está radicada em seu modo de
produção, isto é, no método. Assim, a ciência identifica-se
univocamente com a ação metódica.
1
Professora Assistente II do Depto de Métodos, Técnica e Orientação da Educação do
Centro de Educação da UFPA. Mestre e Doutoranda em Educação pela Faculdade de
Educação da UNICAMP.
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.77-95, jul./dez., 1998
Sílvia Nogueira Chaves
78
Estas questões de cunho filosófico que têm atravessado toda a
história da humanidade, e que até hoje ocupam lugar de destaque entre
epistemólogos do mundo todo, parecem não ter penetrado no meio
escolar.
Nos cursos de formação científica2, não encontram guarida
discussões epistemologicas acerca da natureza do conhecimento
biológico produzido e acumulado ao longo dos séculos3.
A esta altura um atento leitor poderia questionar: para o cientista
é imprescindível conhecer filosofia? Estabelecer reflexões com idéias já
ultrapassadas pela ciência?
Possivelmente qualquer profissional que tenha passado pelos
cursos de formação científica, nos quais esse tipo de abordagem não
esteve presente, responderia, igualmente, não para as duas perguntas.
Neste caso, cabe ainda outra questão: por que, então, escrever sobre
aspectos teóricos-metodológicos da construção do conhecimento? Por
que investir tempo em rastrear conceitos biológicos há muito
abandonados?
Respostas a estas questões não são tão objetivas quanto as
primeiras. Porém, explicando o ponto de vista, tem-se que a filosofia e a
história da ciência, de certo, não se constituem "equipamentos
operacionais" do cientista, o que representa dizer que em situações de
laboratórios, por exemplo, conhecimentos históricos ou filosóficos
desempenham papéis limitados. Mas quem disse que ciência só se faz
em laboratórios? Mais que operador de equipamentos, o cientista deve
ser um intelectual de sua área de conhecimento e que faz opções
filosóficas, políticas e sociais antes de submeter-se aos "fatos".
Contudo, só podemos optar se conhecermos as opções, caso
contrário apenas seguiremos rituais dogmaticamente ensinados tidos
como única forma de produção de saber.
Para compreender a ciência hoje, torna-se
necessário recuperar sua história, reconhecer em
2
Apesar de entender a abrangência deste termo, no presente trabalho ele será utilizado
para referir-se exclusivamente aos cursos de formação na área das ciências naturais.
3
Refiro-me às discussões no âmbito dos Cursos dos quais tenho participado dos dois
lados da mesa, ou seja, aluna e professora.
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.77-95, jul./dez., 1998
Racionalismo e empirismo na construção de...
79
sua historicidade as raízes que originam e
determinam o movimento que hoje lhe é peculiar, e
mais, buscar neste movimento a construção da
própria história-reconhecer a ciência como
construção que é infinita e que pode ser
direcionada a partir do conhecimento de seus
determinantes; compreender a ciência em sua
própria história implica, assim, a possibilidade de
compreendê-la hoje e a possibilidade de dar uma
direção à construção de seu futuro (Andery, 1994,
p.437).
Nesta perspectiva, a história e a filosofia jogam papéis cruciais. É
por meio da história da produção do conhecimento científico que vamos
"beber na fonte" das opções filosóficas que marcam a construção da
biologia de hoje. É o abandono do vitalismo e a opção pelo
mecanicismo clássico que, a priori, desencadeiam o entendimento da
vida nos níveis celular e molecular, por exemplo.
É a história que nos permite conhecer a ciência como construção,
no lugar de descoberta; como conflito de idéias, contradições, no lugar
de consensos e superações, desmistificando-a e revelando-a como
produção ideológica, humana.
Este é o propósito deste exercício reflexivo, sem a pretensão,
contudo, de reconstituir uma história da biologia, muito menos da
filosofia clássica. Trata-se, unicamente, de perceber os reflexos de dois
sistemas filosóficos, Empirismo e Racionalismo, na construção de
alguns conceitos biológicos. Com esta finalidade, é feita uma
abordagem sobre os postulados básicos desses sistemas, a partir das
com concepções de seus "genitores": Francis Bacon e René Descartes,
respectivamente.
Na unidade seguinte, o desafio está em compreender a penetração
destas duas concepções na elaboração do conhecimento biológico com
algumas incursões na história da biologia. Por fim, uma breve reflexão
sobre a relevância de se abordar a história e a filosofia da ciência no
ensino de ciências.
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.77-95, jul./dez., 1998
Sílvia Nogueira Chaves
80
2 - DA OBSERVAÇÃO À RAZÃO: A Emergência da Ciência
Modema4
Francis Bacon e René Descartet são herdeiros de um movimento
intelectual, o Renascimento, que redimensionou e redirecionou a
história da humanidade. Este período caracterizado pela riqueza e
multiplicidade de idéias acerca da relação homem-naturezaconhecimento encontra, nestes personagens, dois grandes teóricos que
com suas formas distintas de perceber tal relação acabam por instituir,
juntamente com Galileu, as bases metodológicas da ciência moderna.
Bacon e Descartes são os genitores da ciência moderna no que
tange ao seu modo de produção, isto é, ao método. E como nos diz
Andery (1994, p. 438) é por meio da
"análise dos métodos que originam as explicações
cientificas que podemos desvendar as exigências
com as quais a ciência se defrontou, as
possibilidades de soluções que se entreviam e os
rumos efetivamente trilhados pelo empreendimento
cientifico"
que compreenderemos a ciência hoje. Nesta perspectiva, vale a pena
mergulhar no movimento das idéias passadas que contribuíram para
constituição das concepções atuais.
A Renascença inaugura o início da idade moderna. Se na idade
média as teses aristotélicas, assumidas pela escolástica, corroboravam o
teocentrismo dominante, no Renascimento a valorização do homem e de
suas produções é a tônica.
4
Quando me propus a revisitar as idéias filosóficas emergentes no século XVII, mais
especialmente aquelas postuladas por Bacon e Descartes, uma questão teimava
sobrepor-se às minhas reflexões - parafraseando Freire-Maia (1988), questionava-me:
Vale a pena ler Bacon e Descartes ainda hoje? Como julguei que esta poderia ser uma
questão também para o leitor, decidi explicitá-la no texto objetivando elucidar o
percurso interpretativo que me levou a esta empreitada. Newton Freire-Maia se propõe
questão semelhante em relação ao Naturalista Charles Darwin, cujas idéias sobre
evolução dos seres vivos são consideradas, em parte, ultrapassadas pelos evolucionistas
atuais.
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.77-95, jul./dez., 1998
Racionalismo e empirismo na construção de...
81
Na nova visão de inundo que veio substituir a
medieval, o homem no seu sentido mais genérico
era a preocupação central. As relações Deushomem que eram enfatizadas pelo teocentrismo
medieval foram substituídas pelas relações entre
homem e natureza. Isto significava, com relação
ao conhecimento, a valorização da capacidade do
homem de conhecer e transformar a realidade
(Andery, op. cit., p. 170).
Esta nova concepção liberta o homem das amarras teleológicas,
da idéia de um mundo estruturado, estático, finito, hierarquicamente
ordenado e "exogenamente" controlado. A humanidade já pode
construir sua própria história, alterar o curso dos fatos e intervir na
realidade. Tal mudança de perspectiva provoca alterações no "eixo da
gravidade do conhecimento" e se caracteriza pelo abandono de um
saber contemplativo rumo ao pragmatismo.
É com o intuito de se produzir uma ciência eminentemente
prática, que permita ao homem adquirir controle perfeito sobre a natureza, que Francis Bacon propõe seu método científico (Mondin, 1981).
Francis Bacon, cidadão inglês, nascido em 1561, foi claramente
influenciado pelo momento político e social de seu tempo. Numa
Inglaterra em incipiente processo de industrialização, a proposição de
uma ciência prática vinha ao encontro das necessidades do capitalismo
emergente.
"Saber é poder" dizia Bacon. E "saber verdadeiramente é saber
pelas causas". Esta última asserção é uma crítica explícita ao
aristotelismo que, segundo Bacon, subordinava a experiência à
verificação das causas, à dedução silogística.
Como alternativa metodológica, Bacon sugere a indução para
obtenção do conhecimento. Nesta perspectiva, dizia que é preciso
interpretar a natureza e não antecipá-la como prega a conduta dedutiva.
Para interpretar a natureza, é necessário realizar inúmeros experimentos
ordenados, de onde os axiomas seriam extraídos (Andery, 1991). Bacon
propõe, então, uma série de procedimentos metodológicos que
conduzirão ao verdadeiro conhecimento.
Contudo, antes de lançar-se à busca da verdade, o homem deveria
corrigir algumas tendências que poderiam acarretar equívocos na
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.77-95, jul./dez., 1998
Sílvia Nogueira Chaves
82
produção do conhecimento. Estas tendências foram descritas por Bacon
sob a figura de quatro ídolos: da tribo, da caverna, do foro e do teatro.
Os ídolos da tribo seriam as falhas inerentes à própria natureza humana,
tanto dos sentidos quanto do intelecto. Falhas estas facil¬mente
corrigíveis pela experimentação (Andery, op. cit.)
Os ídolos da caverna representam o que na linguagem atual
costumamos chamar "óculos conceituais": são todas as pré-concepções
oriundas das leituras, hábitos e história de vida do pesquisador.
No terceiro tipo de ídolos, o do foro, Bacon chama a atenção para
as distorções que o uso da linguagem pode acarretar na produção do
conhecimento. As palavras muitas vezes representam limites às
concepções, uma vez que pensamos sobre as coisas a partir das palavras
de que dispomos para expressá-las (Andery, op. cit.). As palavras
podem, ainda, representar obstáculos por terem caráter polissêmico, ou
seja, os múltiplos sentidos vinculados à determinada palavra podem
levar a leituras, a interpretações equivocadas dos fatos e,
conseqüentemente, à produção de um falso conhecimento.
Finalmente, os ídolos do teatro que academicamente costuma":
mos chamar de referencial teórico. Tais ídolos poderiam guiar as
observações destituindo-as de seu caráter factual, limitando a
objetividade desejável na elaboração do saber.
A natureza dos obstáculos epistemológicos, os quais Bacon
denominou "ídolos", revela que o método baconiano tinha por:
intenção, a neutralidade; percurso, a indução; conduta, a descrição
objetiva; critério de verdade, a sensação corrigida pela experimentação
controlada; e por finalidade, o conhecimento verdadeiro e prático.
Vale ressaltar que apesar de defender uma ciência prática, Bacon
não faz apologia ao ultilitarismo. Neste aspecto, deixa claro que os
experimentos lucíferos (os que iluminam questões teóricas) são tão
importantes quanto os frutíferos (que têm aplicabilidade imediata) na
descoberta das causas e dos axiomas (Novum Organum, I afor. 99).
Os grandes méritos de Bacon estão numa proposição de uma
ciência prática no lugar de contemplativa; na sistematização da ciência
de um método próprio para as ciências experimentais e, sobretudo, na
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.77-95, jul./dez., 1998
Racionalismo e empirismo na construção de...
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crença da capacidade humana de produzir ciência. Uma ciência
reveladora5 do real (Mondin, 1981).
É a ênfase na experimentação como forma de obtenção de
conhecimento verdadeiro que o filia ao empirismo clássico que,
juntamente com o racionalismo cartesiano, constitui a base
metodológica da ciência moderna.
A outra "asa" para que a ciência moderna alçasse vôo foi
arquitetada por René Descartes, filósofo francês, nascido em 1596, e
fiel herdeiro do pensamento renascentista. A valorização do homem
como ser pensante capaz de produzir conhecimentos verdadeiros e úteis
perpassa toda sua obra, sobretudo, como nos diz Fateaud, em seu
prefácio ao "Discurso do Método". Mais que herdeiro do Renascimento,
Descartes foi contemporâneo de uma prodigiosa revolução científica, da
qual (eu acrescentaria) foi também um de seus artífices.
Assim como Bacon, Descartes acreditava na possibilidade de se
conhecer a realidade e de se chegar a verdades. Entretanto,
contrariamente a Bacon, afirmava que essas capacidades somente
seriam alcançadas, em sua plenitude, pelo uso da razão pois os sentidos
são enganosos. Razão essa inerente a todos os homens, diferindo apenas
no modo de cada um conduzi-la, pois:
bom senso ou razão, é por natureza igual em todos
os homens; e portanto a diversidade de opiniões
não decorre de uns serem mais razoáveis que os
outros, mas somente de que conduz)mos nossos
pensamentos por diversas vias e não consideramos
as mesmas coisas" (Discurso do Método, 1).
Desta forma, para se construir um conhecimento verdadeiro, no
entender de Descartes, é essencial saber conduzir o pensamento por
meio de um método, que por sua vez está calcado na razão.
Tal qual Bacon, Descartes contrapõe-se à tradição contemplativa
da escolástica e sobre isto diz:
5
A palavra 'reveladora' busca retratar a concepção baconiana de que o homem por meio
do conhecimento não constrói a realidade, apenas a revela.
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.77-95, jul./dez., 1998
Sílvia Nogueira Chaves
84
... é possível chegar a conhecimento muito úteis à
vida, e que ao invés dessa filosofia especulativa
ensinada nas escolas, pode-se encontrar uma
filosofia prática, mediante a qual, conhecemos a
força e as ações do jogo, da água, do ar, dos astros
dos céus e de todos os corpos nos rodeiam, tão
distintamente como conhecemos os diversos ofícios
de nossos artesão poderíamos empregadas do
mesmo modo em todos os usos a que são adequados
e assim nos tonamos com que senhores e professores
da natureza (Discursos do Método, XI).
Para conhecer e conseqüentemente dominar a natureza, descarte
opta pelo método dedutivo justificando sua opção do seguinte termo.
A experiência das coisas e falaz, ao passado que a
dedução, isto é, assim simples ilação de uma coisa
de outra pode certamente ser omitida, se não for
percebida, mas não pode ser mal feita por um
intelecto que tenha alguma capacidade de raciocínio
(...) na verdade os enganos que pode acontecer aos
homens, não aos animais, não procedem nunca da
ilação má, mais unicamente de serem supostas certa
experiência pouco compreendida ou serem emitidos
juízos e refletidos e sem fundamento (In: Mondim,
1981, p. 66).
Além de aponta um método dedutivo como apropriado ao
desvendamento da verdade, descartes propõem preceitos metodológicos
com esta finalidade. Estes consistem em quatro etapas, denominadas
por seus comentadores: Intuição, analise, síntese numeração.
A intuição propõe que nunca devemos aceita alguma coisa como
verdadeira sem a que há conheçamos evidentemente como tal, o que só
é possível se fragmentamos um problema em tantas partes menores
quanto possível o que se constitui no momento da analise.
Após a decomposição do problema em parte menor, e preciso
ordena essas parte da simples a mais complexa a fim de pode entendêlas em síntese. Por ultimo, devemos fazer numerações tão complexas e
revisão tão gerais que se tenha certeza de nada omiti (Discuso do
Método, II).
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.77-95, jul./dez., 1998
Racionalismo e empirismo na construção de...
85
Se para o empirismo a experimentação é o instrumento de
análise, para o racionalismo cartesiano a matemática, especialmente a
geometria, é o instrumento por excelência. Os dois últimos preceitos
enunciados deixam entrever essa opção. "Assim, a busca de idéias
claras e distintas6 tem por modelo não o raciocínio lógico, mas o
matemático (Andery. 1994, p. 201).
Nesta perspectiva, Descartes exclui da ciência todo o
conhecimento não acessível por meio de tratamento matemático.
Sensações não matematizáveis como cor, odor, som, jamais assumiriam
o estatuto de dado científico. Ao passo que comprimento, largura,
espessura, propriedades mensuráveis da matéria e o movimento
(excluindo-se a noção de tempo) constituem-se elementos concretos
apreensíveis pela razão.
Interessante notar que apesar de Galileu estar mais estreitamente
ligado a Bacon na construção de uma ciência indutiva, é na idéia de que
o universo está escrito em linguagem matemática defen¬dida por
Galileu que Descartes encontra a grande fonte de um método dedutivo.
O que permite perceber que a produção do saber está longe da
linearidade. Não há adesões ou rejeições verdadeiramente integrais; é
no jogo das contradições que emergem novas idéias sendo, portanto, "o
velho" constitutivo "do novo".
A crença num mundo regido por leis universais escritas em
linguagem matemática revela a concepção mecanicista de Descartes.
(...) a noção aristotélica de um universo finalista,
hierarquizado, em que cada coisa tem sua função
e seu lugar, e onde a terra é o centro, é destruída
por Descartes, que põe em seu lugar extensão sem
limite e sem fim ou matérias sem fim nem limites...
(Koyré In: Andrey, op. cit.; p. 203).
Se na idade média o universo estava submetido a leis divinas, a
partir do Renascimento o mundo passa a ser controlado por leis
6
A clareza e a distinção das idéias eram tidas por Descartes como critérios de verdade.
Para obter maiores detalhes sobre essa questão, ver Mondim, B. Curso de Filosofia. São
Paulo: Edições Paulinas, v. 2, 1981.
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.77-95, jul./dez., 1998
Sílvia Nogueira Chaves
86
mecânicas. Nesta perspectiva, o finalismo aristotélico é substituído pela
noção de mecanismo.
A questão relativa à idéia de um universo regido por leis
mecânicas é: esta concepção não cai nas malhas do determinismo tanto
quanto a visão aristotélica? Pois até a própria mecânica encontra-se no
limite do possível, do tangível, do imanente. Em que medida esta
concepção, também; não cerceia a possibilidade de uma história
construída, no lugar de uma, apenas, executada? Respostas a estas
questões emergem no século XIX com o redirecionamento do
conhecimento proposto pelas teorias materialistas.
Importa lembrar que o mecanicismo encontrou ressonância tanto
no pensamento racionalista quanto no empirista. Thomas Hobbes,
empirista inglês, é um clássico exemplo de adesão ao mecanicismo.
Entretanto, diferentemente de Descartes, Hobbes estendia o
mecanicismo a consciência humana. Para Hobbes, "até mesmo a
consciência, ou a alma, humana, teria sua origem no movimento de
minúsculas particulas cerebrais" (Gaardner, 1995, p. 249).
Contudo, Descartes estabelecia nítida distinção entre as forças
que atuavam sobre o corpo e a alma. Para ele, o homem é um ser dual.
Sobre o corpo, que é a extensão, atuam as leis universais do movimento,
mas a "alma é uma substância, cuja essência ou natureza é pensar e
que para existir no necessita de nenhum lugar nem depende de coisa
alguma material. De sorte que é (u.) inteiramente distinta do corpo"
(Discurso do Método, IV). Não estando submetida, portanto, às leis
materiais.
Contraditoriamente, esta máxima cartesiana pode ser vislumbrada
posteriormente na concepção vitaliza que juntamente com a mecanicista
irão polarizar as discussões sobre a natureza da matéria viva, no século
XVIII7.
Como podemos perceber, apesar das evidentes distinções entre as
propostas metodológicas de Bacon (empirista) e Descartes
(racionalista), é a crença numa realidade cognoscível e apreensível pela
experimentação ou pela razão embutida nestas duas formas de conceber
7
A contradição não está na filiação de Descartes ao mecanicismo no que diz respeito
aos fenômenos físicos, mas ao vitalismo quando se trata da matéria viva. Contradição
que se esclarece no dualismo alma/corpo proposto pelo cartesianismo.
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.77-95, jul./dez., 1998
Racionalismo e empirismo na construção de...
87
o mundo, que possibilita inicialmente a construção de um conhecimento
sistematizado sobre os fenômenos naturais e sociais que constituem a
história da humanidade.
Em síntese, é a capacidade humana dê conhecer o real que
permite a emergência da ciência moderna. Dentro da qual, a Biologia.
3 - DA RAZÃO À EXPERIMENTAÇÃO: A construção de
Conhecimentos Biológicos
A Biologia se estabelece como ciência, com objetivos e
procedimentos de investigação próprios somente no século XIX.
Entretanto, isto não quer dizer que a vida enquanto fenômeno não tenha
sido alvo de especulações anteriores.
Na Grécia antiga, por exemplo, encontramos inúmeros estudiosos
dos processos vitais. Dentre eles, Anaximandro (610-545 a.C.)
interessado na origem dos seres vivos; Empédocles (510-450 a.c.) tido
com um dos precursores da Ecologia; Alcméon de Crotona (aprox. 500
a.C.) e Hipócrates (459-337 a.C.) que se ocuparam da anatomia e da
fisiologia; Aristóteles (384-322 a.C.) que se dedicou em várias obras
(história dos animais, as partes dos animais, a geração dos animais) ao
estudo dos seres vivos (Théodorides, 1984).
Contudo, é a partir do Renascimento com o crescente
deslindamento entre ciência e religião que surge a possibilidade de se
entender a vida em bases materiais. É a compreensão dos processos
vitais por meio de suas propriedades intrínsecas, libertos de concepções
transcendentais, que viabiliza o estudo da matéria viva.
Todavia, esta transformação não se dá de forma linear nem absoluta.
Apesar de ter-se afastado das concepções transcendentais de vida, a
biologia ainda se depara com análises mecanicistas, reducionistas dos
processos vitais, pois,
contrariamente ao que freqüentemente se imagina
a biologia não é uma ciência unificada. A
heterogeneidade dos objetos, a diversidade dos
interesses, a variedade das técnicas tudo isto
contribui para multiplicar as disciplinas (Jacob,
1993, p. 14).
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.77-95, jul./dez., 1998
Sílvia Nogueira Chaves
88
Em função desta heterogeneidade, é possível encontrar-se
múltiplas tendências metodológicas na trajetória da construção do
conhecimento biológico. Entretanto, esta incursão na história da
Biologia limita-se à análise de algumas disciplinas biológicas, buscando
perceber em seus métodos de produção traços das concepções
empiristas e racionalistas tratadas na unidade anterior.
A fisiologia é uma das disciplinas da Biologia em que as opções
teórico-metodológicas são bastante evidentes em sua trajetória de
construção. Assim, vamos encontrar, até meados do século XIX,
análises fisiológicas de cunho dedutivista. Isto porque até este período o
estudo dos processos vitais estava fortemente vinculado a descrições
anatômicas das estruturas orgânicas. Radl (1988, p. 72) nos conta que
"Os fisiólogos alemães daquele tempo deduziam em grande parte suas
teorias fisiológicas da anatomia, convencidos de o conhecimento da
construção do corpo era suficiente para compreender sua atividade.
Tal conduta revela a concepção de causalidade presente neste tipo
de análise. Causalidade, não no sentido amplo de causa primordial
determinante e teleológica, mas de relação causa-efeito na qual o
conhecimento é produzido a partir dos efeitos de onde as causas são
deduzidas.
Até a primeira metade do século XIX, as técnicas de vivissecção
não eram utilizadas nos estudos anátomo-fisiológicos; elas foram
difundidas posteriormente pelo fisiólogo Claudc-Bernard. Isto significa
que naquele tipo de estudo os organismos eram examinados mortos, o
que impossibilitava análises "in vivo" dos processos fisiológicos, e por
este motivo eram deduzidos das características morfológicas dos
órgãos.
Assim, o motivo ou causa do coração ser oco e ligado a pequenos
canais (vasos), por exemplo, residia no fato deste órgão prestar-se à
função de armazenar sangue e despejá-lo nos vasos. Estes, por sua vez,
conduziriam aquele fluido às mais longínquas partes do corpo. Vale
mencionar' que este mesmo raciocínio (dedutivo) foi empregado por
Descartes na descrição da pequena circulação ainda no século XVII
(Discurso do Método, V).
Aliados à concepção racionalista, podemos notar traços
mecanicistas e antropocentristas neste processo de dedução.
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.77-95, jul./dez., 1998
Racionalismo e empirismo na construção de...
89
Mecanicista porque o nexo de causalidade evoca a noção de mecanismo
e da qual a vida resulta da somatória do funcionamento das
engrenagens. Antropocentrista, uma vez que nesta concepção os
processos naturais obedecem à mesma ordem dos construtos humanos,
em que cada coisa é planejada e construída para desempenhar
determinada função.
A concepção racionalista pode ser encontrada, também, nos
estudos morfológicos sobre animais e vegetais no início do século XIX.
Neste período, os serem eram descritos segundo os padrões geométricos
e baseados na quantificação de caracteres morfológicos.
Alguns autores, como "o zoólogo alemão H. G. Bronn, buscaram
normas geométricas na organização do organismo" (Rald, 1988, p. 22).
Nees V. Esenbeck, botânico alemão, dedicou-se em sua obra "Doutrina
morfológica geral da natureza" a reduzir as formas orgânicas,
especialmente os vegetais, a esquemas fundamentalmente geométricos
(Ibidem, p. 225).
O que é essa tendência, se não a concepção de que a natureza
obedece à ordem universal escrita em linguagem matemática, defendida
por Galileu e apropriada pelo racionalismo cartesiano?
A Embriologia do século XVIII é outra área da Biologia na qual
se percebe traços das concepções empirista e racionalistas, sendo que
esta última penetra, na Biologia, pela vertente do vitalismo. No campo
da Embriologia, a polêmica instala-se entre as concepções "Préformistas" e "Epigenesista".
Segundo o Preformismo, teoria defendida por Marcello Malpighi,
Charles Bonnet e Albrecht Von Haller, os seres vivos já estariam
formados no interior do óvulo ou do esperma humano restando à
fecundação apenas a função de desencadear o processo de maturação do
indivíduo. Esta teoria de caráter vitalista proclamava ser "no dizer de
seu eminente porta-voz (Charles Bonnet) o maior triunfo da razão
sobre os sentidos" (Gould, 1987, p. 201). Isto porque, contrariamente
aos Preformistas, os Epigenesistas acreditavam que a complexidade da
forma adulta dos seres desenvolve-se gradualmente no embrião, não
estando, portanto, pré-determinado no ovo, uma vez que suas
observações evidenciavam não haver nenhum "homúnculo" preformado
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.77-95, jul./dez., 1998
Sílvia Nogueira Chaves
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no interior do zigoto. Esta polêmica subjaz à adoção de diferentes
métodos de abordar o objeto de investigação.
Os preformistas haviam realizado observações tão acuradas sobre
o desenvolvimento embrionário quanto os epigenesistas. Estes,
entretanto, não as interpretavam literalmente como aqueles. Neste
tocante, os preforrnistas "... insistiam em investigar 'o que havia por
detrás das aparências', Diziam que as manifestações visuais do
desenvolvimento eram enganosas" (Gould, op. cit., p. 202).
Estas formas de conceber o desenvolvimento embrionário dos
seres revelam duas claras filiações filosóficas. O Epigenesismo filia-se
ao Empirismo/indutivismo porque defende a supremacia dos sentidos
no processo de observação; o Preformismo ao Racionalismo/
dedutivismo por sustentar que as aparências são enganosas e podem
obscurecer a razão. Sobre isto Bonnet escreve: Não conte o tempo em
que os seres organizados começam a existir pelo tempo em que
começam a ficar visíveis; e não restrinja a natureza segundo os
estreitos limites de nossos sentidos e instrumentos" (Ibidem, p. 202).
A polêmica vai gradativamente assumindo novos contornos a
partir da proposição da teoria celular, no século XIX, e a elucidação das
bases genéticas da hereditariedade, no século XX.
Todavia, apesar da "história oficial" contida nos livros didáticos
de Biologia apresentar os Preformistas como os derrotados e os
Epigenesistas como os heróis, a idéia de que a complexidade não pode
surgir da matéria-prima informe - tem de haver algo que regule o
desenvolvimento no interior do ovo, defendida pelos primeiros - está
correta.
O equívoco dos preformistas foi atribuir às 'possíveis' estruturas
preformadas a função reguladora do desenvolvimento, quando hoje
entendemos que tal função é exercida pelo material genético
armazenado nas células em forma de código.
Tal análise permite-nos refletir sobre a complexidade dos
processos de produção do conhecimento, evidenciando que a ciência
não se constrói sob os auspícios do consenso (nem tampouco brota da
cabeça de alguns iluminados), ao contrário,
As mudanças que ocorrem nas teorias não são
simples resultados derivados de novas descobertas,
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.77-95, jul./dez., 1998
Racionalismo e empirismo na construção de...
91
mas um trabalho de imaginação criativa
influenciado por forças contemporâneas sociais e
políticas. Não devemos julgar o passado através das
lentes anacrônicas de nossas convicções aclamando
como heróis cientistas que julgamos certos,
mediante critérios que não têm nada a ver com as
preocupações deles (Ibidem, p. 199).
A partir da segunda metade do século XIX, o indutivismo, já
amplamente utilizado pela física, passa a fazer parte, mais efetivamente, do roteiro de estudo dos processos vitais. A publicação de duas
obras de filosofia marcam a transição da, então, História Natural
dedutivista para a Biologia indutivista. A primeira delas é o Curso de
Filosofia Positiva, de August Comte, publicada na França em 1830, na
qual o autor adere ao indutivismo baconiano dizendo que
"Todos os bons espíritos repetem, desde Bacon, que
somente são reais os conhecimentos que repousam
sobre fatos observados. Essa máxima fundamental é
evidente e incontestável, se for aplicada, como
convém, ao estado viril de nossa inteligência" (In:
Ardery, 1994, p. 386).
A segunda obra é de J.St.Mill cujo título é Sistema de lógica
dedutiva e indutiva, publicada em Londres em 1843, na qual Mill
defende, em oposição à Filosofia Naturalistas8, o conhecimento
produzido a partir do entendimento das causas geradoras dos
fenômenos.
No campo da Biologia, particularmente na fisiologia, essa
transição é marcada pela difusão das idéias do fisiplogista francês
Claude Bernard que propugna uma Biologia experimental, ativa, em
que o experimentador possa intervir, alterar condições, analisar e
controlar variáveis. Por fim, a intervenção no lugar da descrição (Jacob,
1983,. p. 188).
8
Segundo Radl (1988), a Filosofia Naturalista tinha convicção no poder da razão sobre
a natureza. Devendo, portanto, os fenômenos naturais serem estudados sobre bases
racionalistas.
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.77-95, jul./dez., 1998
Sílvia Nogueira Chaves
92
Segundo Delouya (1994), foi Claude Bernard quem preparou as
bases da biologia moderna, no plano experimental e filosófico, ao
distinguir entre a vida (biológica) e os mecanismos nela operantes,
tornando a biologia uma disciplina ciência.
Na Inglaterra, Charles Darwin, em consonância com o
movimento econômico-social de um capitalismo em franco
desenvolvimento, propõe a teoria da "seleção natural”9. Se essa teoria
fortalece o que há de mais perverso no mundo social, isto é, a
legitimação das diferenças sociais como inerentes à capacidade de
adaptação dos indivíduos, para a biologia ela representa em última
análise a possibilidade de um mundo mutável, onde os seres,
especialmente o homem, não estão submetidos a leis mecânicas, mas
em interação com o mundo natural.
Ao propor a seleção natural como fator evolutivo, Darwin
introduz a noção de contingência no campo dos fenômenos naturais,
resignificando as relações de causa-efeito tão debatidas por empiristas e
racionalistas.
Efeitos não revelam causas, nem tampouco causas explicam
efeitos. Nesta nova perspectiva, é no âmbito das interações entre os
elementos envolvidos nos processos naturais que os fenômenos são
compreendidos.
Interessante perceber que apesar de Darwin ter adotado por
conduta metodológica a indução, revelada em suas inúmeras anotações
sobre os fenômenos naturais e insinuada pela epígrafe, 'assinada' por
Bacon, de sua mais famosa obra (Origem das espécies), parece ter sido
a partir de deduções extraídas de princípios propostos em teorias préexistentes que ele encontrou inspiração para elaborar sua Lei da Seleção
Natural10.
Esta breve passagem por alguns momentos da história da
Biologia revelam que as "idéias antigas" podem nos ensinar muito da
ciência atual. Sobretudo podem contribuir para a desmistificação da
ciência como forma neutra e positiva de construção do saber.
9
Consultar BIZZO, N.M. O que é darwinismo. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1989.
Isso, a meu ver, demonstra que não há um modelo único e eficiente de produção do
saber e que a ciência é resultante de um misto de criatividade, reflexão, observação,
dedução e, sobretudo imaginação.
10
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.77-95, jul./dez., 1998
Racionalismo e empirismo na construção de...
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4 - ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE HISTÓRIA E FILOSOFIA DA
CIÊNCIA NO ENSINO DE CIÊNCIAS
A Filosofia e a História da Ciência têm passado ao largo das salas
de aulas dos cursos de graduação em Biologia. A situação não é
diferente no ensino de ciências, no âmbito de 1º e 2º graus. Em ambos
os casos, o conhecimento científico tem sido tratado de forma factual, a
histórica e fragmentada. Os aspectos históricos evocados são
apresentados de forma linear - é comum encontramos nos livros
didáticos de ciência, por exemplo, uma história de superação de idéias,
isenta de conflitos, neutra, descolada do contexto político-social no qual
um dado conhecimento foi produzido. Uma história de tolos e heróis
como nos diz Gould (1987).
Nesta perspectiva, é freqüente encontramos na história do
evolucionismo, por exemplo, Lamarck apresentado como o grande
derrotado, o tolo que propôs idéias absurdas acerca da hereditariedade a lei do uso e do desuso e a transmissão dos caracteres adquiridos.
Darwin, ao contrário, é o herói, o descobridor por excelência que
dedicou sua vida à causa científica.
Contudo, a história, não a factual mas a processual, nos mostra
que grande parte das idéias propostas por Lamarck, incluindo as citadas,
foram encampadas e utilizadas nas teorias darwinistas (Freire-Maia,
1982).
Ainda sobre o evolucionismo, a "história oficial", contida nos
livros didáticos, apresenta o mutacionismo de Hugo De Vries como
tendo emergido em complementação ao selecionismo proposto por
Darwin, omitindo que o conflito entre tais idéias perdurou por quase
meio século até ao advento da Teoria Sintética (Chaves, 1993).
Este tipo de abordagem, em que o conhecimento é divulgado
envolto numa aura de neutralidade, favorece a elaboração, por parte dos
estudantes, de concepções místicas e míticas relativas ao conhecimento
científico, o que pode desencadear, sobretudo, afastamento da carreira
científica no processo de escolha profissional ou, ainda, grandes
desilusões11. Afastamento, porque numa ciência produzida por "heróis"
11
Como as que presenciei em meus alunos do curso de Biologia, na graduação/UFPA.
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.77-95, jul./dez., 1998
Sílvia Nogueira Chaves
94
não há lugar para "pessoas comuns". Desilusões, porque a carreira
científica nada tem a ver com a imagem fantasiosa que é veiculada nos
livros didáticos.
Neste aspecto, a história e a filosofia da ciência poderiam
contribuir para desmistificar a imagem da ciência e dos cientistas. Além
disto, algumas pesquisas têm enfocado a contribuição pedagógica da
filosofia e história da ciência no processo de elaboração conceitual de
conteúdos científicos pelos estudantes (Kinnerar, 1991; Stinner and
Williams, 1993; Duveen and Solomom, 1994; Jesen and Finley, 1995).
Tal contribuição diz respeito, entre outras coisas, à facilitação da
aprendizagem de determinados conceitos desencadeada pela
identificação das dificuldades encontradas pelos alunos com aquelas
que se deparam os cientistas, no processo de produção do
conhecimento, e a forma como foram superadas.
Isto, contudo, não pressupõe uma identificação direta dos
obstáculos epistemológicos enfrentados pelos cientistas com as
dificuldades pedagógicas dos estudantes, mas apenas uma analogia
possível de finalidade educativa.
No entanto, enfatizamos que para utilizar filosofia e história da
ciência em sala de aula, na perspectiva aqui defendida, é essencial que
no processo de formação do profissional do ensino tal perspectiva seja
contemplada. Tarefa que cabe a nós, professores universitários, discutir,
a fim de que, no lugar de "heróis", possamos formar profissionais
competentes.
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
ANDERY, Maria Amália. et al. Para compreender a ciência. 53 ed. Rio
de Janeiro: Espaço e Tempo, 1994.
BACON, Francis. Novum ornanum. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural,
1979 (Os pensadores).
CHALMERS, A. F. O que é ciência afinal? São Paulo: Brasiliense,
1993.
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.77-95, jul./dez., 1998
Racionalismo e empirismo na construção de...
95
CHAVES, S. N. Evolução das idéias e idéias de evolução: a evolução
dos seres vivos na ótica de alunos e professor de Biologia do ensino
secundário. Campinas: Faculdade de Educação UNICAMP, 1993
(Dissertação de mestrado).
DELOUY A, D. A Filosofia da Biologia à luz da biologia molecular.
Cad. Hist. Fil. Cio Campinas, série 3, 4, n. 1, p. 51-59, 1994.
DESCARTES, R. O Discurso do método. São Paulo: Martins Fontes,
1989.
DUVEEN, J., and SOLOMON, J. The great Evolution trivial: use of
role play in classrom. Journal of Research in Science Teaching v. 31,
n. 5,p. 575-582, 1994.
FREIRE-MAIA, Newton. Do darwinismo de Darwin ao darwinismo
moderno. Ciência e Cultura. São Paulo, V. 34, nº 2, p. 147-150,
1982.
_________. Teoria de evolução: de Darwin à teoria sintética. Belo
Horizonte: Itatiaia, 1988.
GAARDER, J. O mundo de Sofia. São Paulo: Companhia das Letras,
1995.
GOULD, S. J. Darwin e os grandes enigmas da vida. São Paulo:
Martins Fontes, 1987.
JACOB, E. A lógica da vida: uma história da hereditariedade. Rio de
Janeiro: Graal, 1983.
JENSEN, A. And FINLEY. N. F. Teaching Evolution using historical
arguments in a conceptual change strategy. Science Education: 79
(2) 147-166, 1995.
KINNEAR, F. J. Using an Historical perspective to enrich the teaching
of linkage in genetics. Science Education v. 79, nº 2, p. 124-166,
1995.
MONDIN, B. Curso de Filosofia, v. 2, São Paulo: Edições Paulinas,
1983.
RADL, E. M. História de Ias teorias biológicas. V. 2, Madri: Alianza
Editorial, 1988.
STINNER. A. and WILLIAMS, H. Conceptual change, history, and
science stories. lnterchange. v. 24, nº 1 e 2, p. 87-103, 1993.
THÉODORIDES, J. História da Biologia. Lisboa: Edições 70, 1984.
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.77-95, jul./dez., 1998
A Pedagogia de Deus: cristianismo
militante e educação em Frei Betto
(1969-1971)
Humberto Cunha
1 – INTRODUÇÃO
Frei Betto, jornalista, escritor, teólogo e líder católico, nas duas
últimas décadas, vêm repercutindo na educação nacional, por sua
atuação como educador popular junto a lideranças sindicais,
comunitárias e religiosas e, também, pela influência que exerce sobre
ordens religiosas, quase sempre proprietárias de estabelecimentos de
ensino.
Este trabalho versa sobre o livro de Frei Betto, Das Catacumbas:
cartas da prisão (1969-1971), procurando sistematizar as falas deste
pensador a respeito de Educação. Frei Betto tem uma obra da ordem de
três dezenas de livros. Opto por Das Catacumbas, como fulcro deste
trabalho, por ser este o seu primeiro livro publicado no Brasil,
agregando cartas escritas, no cárcere, a parentes, amigos e religiosos.
Estas cartas versam sobre assuntos gerais, nos quais é possível descobrir
uma preocupação com a educação.
A metodologia utilizada para a pesquisa das idéias educacionais
no livro investigado devo-a a Manacorda (1990). Esta comunicação,
todavia, tem amplitude mais restrita que a feita por Manacorda sobre as
idéias educacionais de Gramsci. Limito-me a listar momentos, nas
cartas de Frei Betto, em que a temática Educação está presente, de
modo explícito ou não. A partir desta listagem, organizo um inventário,
com base no qual abstraio as idéias educacionais que estou
denominando Pedagogia de Deus.
Não posso dizer que realizo a exegese das idéias do autor acerca
da educação. Simplesmente, lanço um olhar em direção a. Que outros
olhares nos tragam outras falas!
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.97-109, jul./dez., 1998
Humberto Cunha
2 - INVENTÁRIO DO TEMA EDUCAÇÃO EM FREI BETTO
(1969-1971)
10000
Educação na sociedade civil
10100 Papel educativo da solidariedade
10200 Comunidade e educação
10300 Equipe
10400 Viagem - aquisição cultural
10500 Ação pedagógica do teatro
10600 Condições materiais para o estudo
10700 Cinema como recurso pedagógico
20000 Educação na prisão
20100 Cartas da prisão como pedagogia
20200 Vida na prisão
20300 Ócio
20400 Disciplina
20500 Trabalho
20600 Estudo
20700 Esporte
20800 Vida Coletiva
20900 Solidão
21000 Prisão educa ou degrada?
21100 Educação na prisão: elevação intelectual
30000 Educação da criança
30100 Objetivo e circunstâncias da educação infantil
30200 Educação e formação de valores burgueses
10300 Redimensionando valores da educação
30400 Como se ensina a história oficial
30500 História infantil como pedagogia
40000 Pedagogia de Deus
40100 Deus age na história
40200 Educação como princípio e ação do cristão
40300 Imitação do Mestre
40400 Educação e vida religiosa
40500 Papel da Igreja no passado
40600 Educação e assistencialismo
40700 Capital e escolas cristãs
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.97-109, jul./dez., 1998
98
A pedagogia de Deus: cristianismo militante...
99
3 - BETTO - EDUCADOR CRISTÃO MILITANTE
Um Deus que age na história, deixando o exemplo; um homem
que executa o plano de Deus, transferindo ao restante da humanidade o
exemplo do Mestre. Podemos resumir desta forma a proposta
pedagógica de Frei Betto.
Como todo resumo, este, que apresento, corre o risco de
empobrecer o pensamento que lhe serve de matriz. Advirto, portanto,
para o seu caráter: simples ponto de partida de uma aventura maior; de
resgate de idéias educacionais dispersas ao longo de vários textos
escritos por Frei Betto sem a intenção de falar de Educação.
O ponto de partida: há, em Frei Betto, uma pedagogia de Deus.
Um Deus que exige dos seus fiéis que o imitem, portanto, cabe ao
cristão agir como fermento na massa, copiando a pedagogia de Deus
para que todo ser humano seja capaz de perceber os desígnios do
Criador, o plano de Deus. A educação é, para o cristão, princípio e ação.
Em Frei Betto o cristão é um educador.
A imitação de Cristo indica o caminho da pobreza, da humildade,
do sofrimento entendido como entrega pessoal a uma vida de luta para
melhorar a situação do pobre, retirá-lo do sofrimento desnecessário e
provocado pela ganância de alguns homens - os burgueses. Ser pobre,
sofrer pelo Cristo, não tem em Betto um sentido piegas. Aliás, ele alerta
para os perigos da religião enquanto alienação (Frei Betto, 1978, p. 128130). Se não existisse burguesia, se uns não se colocassem em
superioridade sobre outros, o sofrimento desnecessário desapareceria.
Ocorre que a Igreja, que seria a forma coletiva da imitação de Cristo,
desviou-se do caminho do Mestre, sentou-se demais à mesa dos ricos,
lava os pés dos pobres apenas por ritual. Que desafio esta atitude, esta
história, coloca aos cristãos? É o que Frei Betto tenta responder.
Uma forma privilegiada de resposta é a dedicação à vida
religiosa, embora não apareça em Betto qualquer concessão aos não
religiosos. O cristão não religioso não é cristão de meio-expediente,
apenas o religioso o é de forma especial. Aqui, de novo, é preciso
distinguir o sentido dos termos: Frei Betto defende uma vida religiosa
dinâmica, que mude conforme a geografia e caminhe com a história.
Seu ideal é um mundo onde todos serão religiosos e todos serão seres
comuns.
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.97-109, jul./dez., 1998
Humberto Cunha
100
Nada mais de claustros e de fobias. O ideal, ele o diz, não é o real hoje.
É Utopia.
Não haverá necessidade de votos, a própria
exigência da vida comunitária e do trabalho fará
com que assim seja. Isso contribuirá para a
revalorização do sacramento do engajamento
cristão, o Crisma. Eliminada a estratificação
social, dentro da Igreja perderá o sentido tudo
aquilo que se assemelha a uma casta ou classe.
Será então o fim da instituição religiosa na Igreja.
Haverá tão somente os cristãos reunidos em volta
do seu bispo. Toda a comunidade cristã em nada
diferirá do resto da comunidade humana, senão no
testemunho da ressurreição do Senhor. Viverá e
trabalhará com os demais homens, sem que nada
os separe, exceto a consciência de servir pelo
nome de Jesus. A Igreja existirá no seio do mundo
e o mundo será consagrado pela presença da
Igreja (Frei Beno, op.cit.,p.174).
É preciso, então, uma fase de transição. Começar a tirar a Igreja
dos palácios, fazê-la freqüentar as prisões, evangelizar os prostíbulos,
tirar os religiosos dos conventos, celebrar na pequena comunidade, fugir
dos rituais estandardizados da conveniência.
Se cabe ao cristão viabilizar a Pedagogia de Deus, para Betto o
melhor caminho não é a propriedade de colégios, embora a profissão de
professor lhe pareça adequada para realização do sacramento da
educação. Educação que tem sido assistencialista - mata a fome do
pobre cada dia, mas não lhe ensina o caminho da despensa. Uma
edu¬cação que é preciso romper. Buscar uma nova educação, que
liberte, que dê ao pobre a condição de saber porque. é pobre e o sentido
de organização para a ruptura:
A Igreja mantém uma infinidade de obras
assistenciais: colégios, hospitais, creches... [...] E
na medida em que essas obras (ou o gesto altruísta
do rico da Sardenha) aliviarem o sofrimento de
alguns pobres, estarão, ao mesmo tempo,
colaborando para que surjam outros tantos
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.97-109, jul./dez., 1998
A pedagogia de Deus: cristianismo militante...
101
pobres. É um círculo vicioso que só pode ser
perfurado pela raiz, ou seja, pela alteração das
relações de produção existentes na sociedade:
(Ibidem, p. 53).
Como realizar uma educação libertadora, permanecendo
proprietários de enormes estabelecimentos de educação que vivem o
dilema de capitalizar-se ou sucumbir? Este o segundo enigma que Frei
Betto faz a Esfinge pronunciar.
A bibliografia especializada dirá que somos um país de
capitalismo tardio, produto de colonização, com um forte patriarcalismo
não apenas econômico, mas cultural e político; de tradição religiosa e
educacional jesuítica, tomista e' bacharelesca (Alencar; 1985; Campos;
1968; Dowbor, 1982; Faoro, 1984; Fernandes, 1981;.Giles, 1987). As
palavras de Frei Betto parecem soar de um outro mundo, um mundo de
escândalo. Beto percebe-o e é pedagogo com os pedagogos. Explica, a
cada carta, a sua posição. Mostra que o Papa está de acordo com ela;
que os superiores da sua Ordem também; que o arcebispo da sua
jurisdição o apóia e o visita. Betto pratica a Pedagogia de Deus,
primeiro, com os de casa.
Frei Betto opina sobre a educação das crianças da sua família e
em geral. Prega a educação na fé, a qual se fará mais pelo exemplo e
pela palavra que pelo ritual. O sacramento deve ser vivido e não
instrumentalizado. Primeira comunhão? Só se a- criança pedir. Preparar
para viver no mundo, não ter medo das circunstâncias que a vida
oferece. Educar nos valores da solidariedade que vê no outro a figura de
Cristo e é capaz de despir-se, até do essencial, para que uma situação de
injustiça não permaneça.
Educar é sugerir o olhar da criança em direção ao futuro e não
trazer-lhe o passado como peso morto. A história segue, mas, como se
ensina a História oficial!?
Frei Betto sugere aos pais, aos irmãos, aos religiosos, um know
how de Educação. Vai além, escreve às crianças e lhes conta pequenas
histórias. Histórias moralistas? Talvez, mas, com competência.
Historinhas nas quais a mensagem transparece pela via de um estilo
bem cuidado e de uma linguagem simples, sem ser vulgar nem redutor
de conteúdos. Suas histórias infantis são de uma riqueza simbólica, no
âmbito da mitologia cristã e dos ideais e valores da humanidade.
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.97-109, jul./dez., 1998
Humberto Cunha
102
No dia em que você nasceu, houve uma reunião no
céu. O Senhor convocou os anjos para escolher
aquele que deveria acompanhá-lo ao longo da
vida. Os anjos compareceram em grande número.
Embora quase "todos já tivessem uma ocupação
definida, nada impedia que qualquer um fosse
substituído em sua tarefa, desde que houvesse uma
justificativa convincente. Ultimamente, os caos. de
substituição eram freqüentes, pois certas tarefas
pareciam demasiado difíceis para os fiéis
servidores de Deus.
O Senhor anunciou que uma menina nascera
cercada de amor e que, a ela, seriam concedidos
muitos dons - restava destacar um anjo que
cultivasse, com carinho, toda a beleza e a bondade
que haviam sido depositadas no coração da
menina [...].
O Senhor consultou suas anotações e verificou que
não havia mais nenhum anjo escrito como
candidato. Diante dos dois primeiros, os outros
haviam retirado seus nomes. Ia dar por encerrada
a sessão, quando um anjo muito popular levantou
o braço e pediu a palavra. Era o Anjo do Amor:
- Pela longa experiência que trago através dos
séculos, posso assegurar que é impossível haver
paz e liberdade, se não houver amor. Os
problemas do mundo só encontrarão solução
quando a paz, a liberdade e o amor estiverem
unidos. É preciso que trabalhemos juntos.
Ofereço-me também para levar amor à Juliana.
No dia em que você nasceu, Juliana, os três anjos,
como os reis magos, apresentaram-se em sua casa.
No céu, o Senhor acendeu mais uma estrela
(Ibidem, p.153-154).
Betto, quando trata da Infância, parece estar tratando da sua
própria infância: relata os valores burgueses adquiridos por uma
formação infantil que ele valoriza, mas redimensiona. E é nesta nova
dimensão que ele estabelece a sua proposta educacional para as novas
gerações. Proposta educacional que não é diferente daquela da
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.97-109, jul./dez., 1998
A pedagogia de Deus: cristianismo militante...
103
sociedade em geral. Em Frei Betto, não há dicotomia entre fé e política,
assim como a construção do mundo ideal da criança tem de guardar
coerência com o que se espera dela na vida adulta.
Betto reconhece que existem não-cristãos e que eles têm o direito
de existir, mas acredita que o mundo do cristão não tem de ser diferente
do mundo de todos os homens. O Reino de Deus é aqui, se constrói
aqui, na comunhão de cristãos e não-cristãos. O diálogo cristãomarxista adquire um estatuto de centralidade no seu discurso acerca da
construção do Reino. Esta centralidade foi percebida, anos depois, no
livro Fidel e a Religião (Frei Betto, 1985), embora já perpassasse o
conjunto das cartas ora sob análise.
Para Frei Betto, o Reino de Deus não terá Estado; será de
sociedade civil emergida do contingenciamento histórico da luta de
classes e da herança cultural do egoísmo:
Nada disso, porém, interessa à minha vocação
cristã. A história não se faz de aparências, mas de
opções. É preciso escolher e é impossível agradar
aos dois lados.[..] Sei o quanto é difícil viver de
futuro. Os que vivem do passado e querem a todo
custo preservar o presente (como se isso fosse
possível), tudo fazem para nos destruir. [...] Há
que ser coerente e corajoso, engajado na linha do
futuro, pois é lá que se situam as promessas de
Deus. (Ibidem, p. 41).
Essa caminhada é a atitude do cristão. Jesus veio
anunciar-nos o Reino de justiça e paz. Cada um
participa, à sua maneira, conforme os talentos
recebidos, da busca e da edificação desse Reino.
Ele não se edificará fora da história: ele é o
próprio desfecho final da história. Por isso, a
nossa caminhada-para-o-Reino só pode ocorrer
dentro dos acontecimentos históricos. Evitá-los é
cair no fatalismo e negar a promessa divina. É
anular o anúncio da ressurreição. (Ibidem, p. 41).
Inserido na história, Cristo a transcende. E é nesse
ponto que a liberdade do cristão se completa. A
encarnação é seguida da ressurreição. Por isso,
falamos aos nossos companheiros que, enquanto
houver um homem oprimido, seremos sempre
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.97-109, jul./dez., 1998
Humberto Cunha
104
subversivos. Nosso compromisso não é com esta
forma de governo, com aquelas relações de
trabalho ou com tal ideologia. É com a pessoa
humana, cuja dignidade conhecemos na medida
mesmo em que nós ela é negada. (Ibidem, p. 43).
A pedagogia só tem sentido se preparar os seres humanos para a
construção de uma humanidade feliz. Em que condições a sociedade
civil opressa e opressiva se educa para humanidade feliz, liberta,
amorosa? Em Frei Betto, há na pedagogia da liberdade um lugar
ontológico para a solidariedade, a qual vem da vida e da reflexão sobre
a prática na comunidade, no trabalho em equipe. Não são comunidades
desligadas do mundo, estas não existem, senão no idealismo de alguns.
Por isto, são atingidas pela força do cinema, pela dramaticidade
do teatro, etc.
Viajar, conhecer outros povos, outras culturas, intercambiar, eis
um meio seguro de conhecer pessoas humanas, recolher elementos para
o conhecimento da pessoa humana. O estudo tem de ser feito na vida e
também nos livros. Quanto a estes, não. se deve abandoná-los sob o
pretexto da falta de condições adequadas para lê-los e refletir. Contudo,
é preciso buscar as melhores condições materiais para que a
aprendizagem se dê com maior produtividade.
Há nas cartas bettianas uma visão de vivência religiosa
inculturada. Estamos na América Latina, locus de uma dominação
colonial que a Igreja ajudou a perpetrar. É preciso remar na direção
oposta, contrariar esse eurocentrismo (Gonzáles e Velasco, 1992):
Às vezes, eu penso que a Igreja tem uma enorme
capacidade de perdoar e absolver as situações
históricas, mas uma flagrante incapacidade de
promovê-las, de incentivá-las ou de evitá-las quando
vêm estigmatizadas pelo mal (Frei Betto, 1978, p.
138).
O juridicismo penetrou de tal forma na Igreja
latina, que as normas passaram a determinar a
vida das pessoas e não o contrário, como deve ser.
[...] De fato, tanto o Estado quanto a Igreja
tiveram, na América Latina, forte influência do
Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.97-109, jul./dez., 1998
A pedagogia de Deus: cristianismo militante...
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código civil de Napoleão e das normas emanadas
das instituições européias. Isto por um motivo
muito simples: nós fomos colonizados pelos
europeus e não pudemos repetir a experiência dos
gregos que impuseram sua cultura aos romanos
que os dominaram. Os europeus não nos
trouxeram “a" civilização, mas de fato nos
impuseram a sua civilização (Ibidem, p. 154-155).
A Igreja deve definitivamente abandonar os
privilégios que ela recebeu da sociedade. Tornarse uma Igreja pobre uma Igreja dos pobres e,
sobretudo, uma Igreja de pobres. Os ricos que
quiserem ingressar nela, deverão necessariamente
passar pelo fundo da agulha (Ibidem, p. 161).
Frei Betto escreve da prisão. Por que escreve?
Certamente por necessidade sentimental e pela convicção
religiosa de que a família é o núcleo formador e a âncora do espírito.
Mas, suas cartas vão além. São o verbo do profeta. Pretendem educar,
têm destinação pedagógica. Ao recomendar a leitura de São Paulo
(Ibidem, p. 171), imita o Mestre imitando o servo do Mestre. As cartas
de Frei Betto são cartas pedagógicas, instrumentos da Pedagogia de
Deus. Consciência pedagógica que recupera da Igreja dos anos 70 a
semente da Ação Católica dos anos 60:
Mas não é sobre culinária que eu quero lhe falar
hoje. Como as notícias da prisão resultam de
nossas experiências e reflexões, devo dizer que
hoje pensei muito nesse meio ano de cadeia já
vivido (Ibidem, p. 62).
Fiquei muito feliz em receber a sua carta. Você
está escrevendo muito bem e com uma letra ótima.
O negócio é esse: faça sempre ditado e cópia,
Você conhece a história 'do rei que fez um
concurso para saber quem era capaz de descrever
com menos letras possíveis as maravilhas do
universo? (Ibidem, p. 85).
Nada como ter fé no Espírito Santo. Muito boa a
nova diretoria da CNBB. Acabou-se o primado do
cardinalato. A direção deixou de ser um cargo de
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autoridade, para ser uma tarefa executiva. Creio
que a década de 70 será decisiva para a Igreja no
Brasil. A impressão que tenho é que, só agora,
começamos a colher os frutos das sementes
lançadas pela Ação Católica, da década de 60.
Mas ainda são frutos tenros, tímidos, de uma
árvore que, por vezes, balança ao sabor dos ventos
(Ibidem, p. 131).
Betto reflete sobre a indagação que tantos já fizeram, que a
imprensa e os parlamentos têm de debater com freqüência - a prisão
recupera e educa? Não, é o seu parecer, a prisão se destina a destruir o
ser humano, isolar e definhar a sua personalidade. Mas, a prisão pode
ser mais um momento de auto-educação, se o preso já traz em si o
germe da liberdade e pretende desenvolvê-lo. Seus princípios se
fortalecerão, seus valores serão checados. Irá para o lixo o que não
corresponder à realidade. o prisioneiro é um ser humano e deve lutar
pela sua dignidade. Como contribuição aos demais, realizar ações
educativas (cursos, debates) que visem a elevar o nível intelectual dos
presos, evitada a manutenção de situações de dominação por monopólio
do saber.
Uma vez estive a 5300 metros de altitude. Não vi
neve, tudo era gelo puro. Faltaram-me oxigênio e
agasalhos próprios. Inexperiente, tomei uma dose
de uísque puro. Meu coração começou a bater tão
forte, que tive a impressão de que ele ia saltar pela
boca. Desci dos Andes, junto ao lago Titicaca, na
carroceria de uma velha camioneta saculejante
direto para uma bomba de oxigênio. Hoje, vivo a
experiência inversa.
Aqui há oxigênio, mas nenhuma ventilação. A cela
possui duas grades de ferro cobertas por um
alambrado. Ao meio da porta maciça, há uma
abertura gradeada. O resto é o oxigênio que
trazemos em nós, uma força que nos coloca acima
dessa situação de opressão e permite-nos enfrentála com coragem.
Muitas pessoas que nos visitam se perguntam se
seriam capazes de suportar a prisão. De fato,
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temos visto aqui dentro casos de profunda
depressão e até mesmo de loucura. Durante a
madrugada, o presídio é o retrato do inferno.
Gritos, batuques, cantos desesperados ecoam pelo
pavilhão
como
explosões
de
corações
amargurados.
Esta é a manifestação habitual dos presos comuns,
com quem estamos misturados. Os presos políticos
têm mais resistência. É uma enorme solidariedade.
Ninguém está só entre nós (Ibidem, p. 125-126).
Fugir do ócio, da elocubração sobre o dia da saída; construir sua
liberdade interior; autodisciplinar-se pela prática do Yoga, de ginásticas,
de esportes; trabalhar para passar o tempo, para manter o próprio
sustento, para sustentar famílias de companheiros presos; fazer o
próprio alimento, lavar o chão, a própria louça; participar dos trabalhos
coletivos; ter vida coletiva; estudar, debater com os companheiros;
combinar a vida coletiva com momentos de solidão, para refletir e
meditar; se em isolamento prolongado, conversar alto, planejar algo
prático e realizá-lo mentalmente, para fugir da loucura e da inação;
saber negociar com a direção dos presídios, mas nunca aceitar qualquer
imposição que lhe venha retirar a dignidade de pessoa humana.
Certamente, na visão de Frei Betto, o prisioneiro não hiberna nem
cai num limbo: irá vivo para o Inferno ou constituirá em meio ao
sofrimento o seu Paraíso.
Frei Betto, o das cartas da prisão, não é um cristão e educador e
militante. Ele é um cristão educador militante. Acompanhá-lo em sua
jornada de autoconstrução pelos presídios da ditadura militar é uma bela
aventura. Pode-se discordar dele, mas é um excelente companheiro de
viagem:
Contudo, o mais dramático, desafiador e curioso,
não é que os cristãos vivam fora do clima da
Páscoa, mas sim que muitos não-cristãos vivam
dentro desse clima, mesmo sem crerem em
qualquer perspectiva, além do momento de
consumarem suas vidas, num sacrifício a que estão
dispostos. Sem dúvida, essas pessoas não agem
fora da influência da graça. Cada dia cresce o
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número delas. Vivem a Palavra de Deus, sem nela
crer.
Meditando nessa relação cruz-ressurreição,
procuramos viver aqui a nossa Semana Santa, e
nos preparamos para a Páscoa. A prisão dá um
sentido todo especial à nossa vida litúrgica.
Coloca-nos em contato direto com a paixão de
Cristo, pois nos faz participantes dela. E leva-nos
a acreditar ainda mais na realidade da Páscoa
(Ibidem, 1978, p. 142).
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Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.97-109, jul./dez., 1998
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