CENTRO UNIVERSITÁRIO DO NORTE – UNINORTE
PRÓ-REITORIA ACADÊMICA
DIRETORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO e PESQUISA
COORDENAÇÃO DE PESQUISA STRITO SENSU
Daniel Jordano Miranda
Luiz Guilherme Melo
Mário Bentes
A ADAPTAÇÃO DA LINGUAGEM JORNALÍSTICA TRADICIONAL PARA
O FORMATO HISTÓRIAS EM QUADRINHOS (HQs)
Manaus
2009
CENTRO UNIVERSITÁRIO DO NORTE – UNINORTE
PRÓ-REITORIA ACADÊMICA
Daniel Jordano Miranda
Luiz Guilherme Melo
Mário Bentes
A ADAPTAÇÃO DA LINGUAGEM JORNALÍSTICA TRADICIONAL PARA
O FORMATO HISTÓRIAS EM QUADRINHOS (HQs)
Manaus
2009
2
Daniel Jordano Miranda
Luiz Guilherme Melo
Mário Bentes
A ADAPTAÇÃO DA LINGUAGEM JORNALÍSTICA TRADICIONAL PARA
O FORMATO HISTÓRIAS EM QUADRINHOS (HQs)
Relatório Final apresentado para obtenção de nota na
disciplina Projeto Experimental II, ministrada pela Profa.
Msc. Leila Ronize, do Curso de Comunicação
Social/Habilitação em Jornalismo, do Centro Universitário
do Norte (Uninorte).
Manaus
2009
3
P659a PINTO NETO, Mário Bentes Braule.
A adaptação da linguagem jornalística tradicional para o
formato Histórias em Quadrinhos (HQs) / Mário Bentes Braule
Pinto Neto, Daniel Jordano da Silva Miranda e Luiz Guilherme
Melo de Souza. – Manaus: Uninorte, 2009.
58f. il ; 30cm.
Projeto Experimental (Graduação) - Centro Universitário do
Norte.
Curso de Comunicação Social com Habilitação em Jornalismo.
Orientadora: Profª MSc Leila Ronize
1. Jornalismo 2. Jornalismo Literário 3. Cultura Popular 4.
Artes visuais I. Título.
CDD 070.981
4
Daniel Jordano Miranda
Luiz Guilherme Melo
Mário Bentes
A ADAPTAÇÃO DA LINGUAGEM JORNALÍSTICA TRADICIONAL PARA
O FORMATO HISTÓRIAS EM QUADRINHOS (HQs)
Prática Editorial, apresentado para obtenção de nota na disciplina Projeto
Experimental II do Curso de Comunicação Social/Habilitação em Jornalismo, do
Centro Universitário do Norte (Uninorte).
Aprovada em ________/_______/_______
___________________________________________
Leila Ronize, MSc
Centro Universitário do Norte – Uninorte
5
DEDICATÓRIA
À minha mãe, Leila Maria, que me deu a vida e
trabalhou para me tornar no homem que sou hoje e por
ter paciência nas diversas horas que ocupei seu
computador e sua Internet.
Mário Bentes
Dedico primeiramente a Deus, único Senhor e Salvador
que permitiu que chegasse até aqui. Também dedico a
minha mãe, pois sem ela não conseguiria trilhar o
caminho; a meu pai e a todas as pessoas que direta ou
indiretamente colaboraram para a minha formação
acadêmica e profissional. Tenham certeza que sempre
farei o melhor.
Daniel Jordano Miranda
Dedico este projeto a Deus, em primeiro lugar, que
permitiu que eu chegasse aqui e que me fortaleceu
durante esses quatro anos de caminhada; aos meus avós,
Afonso Furtado e Raimunda Furtado, que acompanharam
quase toda minha trajetória e agora assistem essa
conclusão de um lugar muito especial; aos meus pais,
Rui Guilherme e Rosangela Melo, pelo apoio
incondicional que me deram nesse período de minha
vida; aos meus amigos pelas palavras de incentivo e a
todas aquelas pessoas que, direta ou indiretamente,
contribuíram para a minha formação.
Luiz Guilherme Melo
6
AGRADECIMENTO
Agradecemos
À nossa orientadora e sempre professora Leila Ronize,
que teve a paciência de nos traçar os caminhos a
percorrer.
À jovem Nathaly Leite, que evocou o espírito natalino
de seus alunos do Cetam para que eles participassem do
trabalho como membros da amostra populacional da
metodologia deste trabalho.
À desenhista Ana Paula Castro, que pôs o coração na
ponta do nanquim e ajudou a evitar que sonhos se
tornassem pesadelos.
Ao amigo Márcio Alexandre, que pôs ao nosso dispor
os seus saberes ocultos dos programas de edição gráfica
para a elaboração de nosso produto experimental.
Ao amigo Jacob Leonardo, por estar sempre presente.
Ao professor e amigo de quase vinte anos Ataide Junio,
por sua ajuda na nada fácil revisão deste trabalho.
7
EPÍGRAFE
“Escrever para quadrinhos é mais ou menos como escrever poesia. Você tem de adaptar seus
pensamentos para uma forma bastante rígida e usá-la tão fluentemente que os leitores não
fiquem cientes de sua artificialidade”.
Dennis O‟Neil, Guia Oficial DC Comics – Roteiros, página 10.
8
RESUMO
O projeto referente à Prática Editorial do tema “A adaptação da tradicional linguagem jornalística
para o formato Histórias em Quadrinhos” apresenta embasamento teórico para afirmar que o
modelo de linguagem vigente no jornalismo brasileiro, como a conhecida estrutura da Pirâmide
Invertida, não é mais atraente ao grande público, fato constatado pela notável queda dos índices de
circulação e receitas dos periódicos mais importantes do mundo. Paralelamente, observa-se que o
perfil do próprio público vem mudando ao longo do tempo e que este passa a exigir formas atrativas
e dinâmicas de informação, algo que é atendido por veículos mais recentes, como a Internet. Mesmo
os modelos tradicionais de veículos de comunicação, como rádio e TV, buscam alternativas neste
sentido para evitar perda de público. A partir da posição de teóricos, propomos a adoção no novos
modelos de transmissão da informação para os impressos, mais especificamente o uso da linguagem
visual sequencial que marca uma das formas de arte e cultura popular mais conhecidas do Século
XX: as Histórias em Quadrinhos.
Palavras-chave: Jornalismo; Jornalismo Literário; Cultura Popular; Artes visuais.
9
ABSTRACT
The project referring to the Editorial Practice of the theme “The adaptation of traditional journalistic
language to Comic Books format” presents theoretical basis to assert that the current language
model in Brazilian journalism, as the Inverted Pyramid, a very well known structure, is no longer
attractive to the general public, a fact verified by notable decreases in circulation and revenue of the
most important magazines in the world. In addition, it is observed that the profile of the public itself
has been changing over time and that now requires attractive and dynamic forms of information,
something that is attended by newer vehicles such as the Internet. Even the traditional models of
media, such as radio and TV, seek alternatives in order to avoid loss of audience. From the position
of theorists, we propose the adoption of the new models of transmission of information to the
printed ones, more specifically the use of sequential visual language that marks one of the forms of
art and popular culture best known in the twentieth century: The Comic Books.
Tags: Journalism, Literary Journalism, Popular Culture, Visual Arts.
10
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...............................................................................................................................................12
1 METODOLOGIA .........................................................................................................................................16
2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA ...............................................................................................................18
2.1 Histórias em Quadrinhos: Uma breve História ......................................................................................22
2.1.1 Nos Estados Unidos.........................................................................................................................24
2.1.2 Quadrinhos no Brasil .......................................................................................................................26
2.2 Jornalismo e Literatura ...........................................................................................................................27
2.2.1 Reportagem: entre informação e entretenimento.............................................................................28
2.2.2 Novo Jornalismo..............................................................................................................................31
2.2.3 Jornalismo Literário no Brasil .........................................................................................................31
2.2.4 Jornalismo Gonzo ............................................................................................................................32
2.3 Ficção e Jornalismo ................................................................................................................................32
2.4 A crônica jornalística: uma atenção especial a um gênero especial .......................................................33
2.5 Exemplos de Jornalismo em HQ ............................................................................................................35
2.5.1 A obra de Joe Sacco: O “Novo” Novo Jornalismo ..........................................................................36
2.5.2 A obra de Héctor Oesterheld ...........................................................................................................38
3 PRODUTO ....................................................................................................................................................40
4 APRESENTAÇÃO DOS RESULTADOS....................................................................................................52
5 CONCLUSÃO E RECOMENDAÇÕES .......................................................................................................54
6 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................58
11
INTRODUÇÃO
A proposta deste projeto experimental é apontar a receptividade, por parte de um segmento
de público específico, da adaptação da tradicional estrutura de informação jornalística para o
formato Histórias em Quadrinhos (HQ), com inserção de elementos visuais e artísticos típicos das
HQs – desenhos de personagens e cenários, quadros narrativos, balões de diálogo e outros – e
técnicas presentes no Jornalismo Literário, a exemplo dos livros-reportagens. Para isso será criado
um livro voltado a esse propósito, no qual reportagens especiais literárias já redigidas pelos autores
deste projeto e outras que serão especialmente apuradas e escritas com esse fim serão adaptadas à
estrutura de roteiros criada pela Produtora DC Comics1, dos EUA.
A principal relevância do tema trabalhado neste projeto está no atual cenário do jornalismo
impresso no Brasil e em outras partes do mundo, onde as mudanças de perfil do público-leitor se
transformam em razão, principalmente, das novas tecnologias em comunicação – ressalte-se a
Internet –, o que tem criado um ambiente desfavorável para jornais e revistas impressas do mundo
inteiro. Tal situação tem se sustentado por conta da insistência de muitos jornais em competir com
veículos online, em vez de adaptar sua estrutura narrativa para o aprofundamento em detrimento de
uma objetividade e agilidade que se torna cada dia mais difícil para os impressos.
Dentro de uma modalidade de prática editorial, este projeto tem como delimitação de tema
“A adaptação da linguagem jornalística tradicional para o formato Histórias em Quadrinhos
(HQs)”, a partir do tema macro “Jornalismo”. A justificativa para a execução deste projeto está na
notável mudança do perfil do público leitor de produtos jornalísticos desde o advento e
popularização da Internet que, somada às crises financeiras globais, tem colaborado para o
agravamento do cenário para o jornalismo impresso em todo o mundo. Atualmente, grande parte do
que é noticiado em jornais diários e revistas já foi, mesmo que superficialmente, abordado por
1
Não houve um critério técnico específico adotado para a escolha do formato em questão, apenas o fato de que a
produtora citada é a única, até onde nossa pesquisa pôde constatar, que possui obra devidamente publicada no
mercado voltada à criação de roteiros para Histórias em Quadrinhos.
12
algum veículo online com pelo menos um dia de antecipação. Tal situação acontece por razões
óbvias: os jornais, revistas e outros meios impressos dependem de recursos físicos, operacionais e
logísticos que veículos online dispensam, como diagramação, impressão e circulação. A
instantaneidade de noticiários de Internet permite que uma notícia, mesmo que não completamente
confirmada, possa ser veiculada, alterada ou atualizada em questão de segundos. Jornais e revistas
impressas não dispõem de tal recurso. Uma vez impressa, a notícia se torna algo perene e eventuais
erros de checagem só podem ser devidamente corrigidos 24 horas depois ou, em casos mais
urgentes, com edições especiais impressas no mesmo dia.
Talvez tenha sido essa razão que tem, ainda hoje, motivado muitos jornais a manterem
equivalentes de seus tradicionais impressos em sites na Internet, onde este último espaço se dedica a
notícias de última hora ou para ratificar informações veiculadas anteriormente, seja nos impressos
ou no próprio veículo online. Mas este novo momento não tem sido suficiente para driblar a crise
que os jornais tradicionais vêm enfrentando. Alguns periódicos, como os estadunidenses Chicago
Tribune, Minneapolias Star-Tribune, Journal Register Co. e Chicago Sun-Times decretaram
falência nos últimos quatro meses somente nos EUA2. No Brasil, a situação não é diferente. No dia
25 de maio deste ano, em comunicado, a Editora JB S.A. anunciou que não mais responderia pelo
centenário Gazeta Mercantil por conta de acúmulo de R$ 200 milhões em dívidas trabalhistas. Em
abril último, o colunista Michael Wolf, em um painel online de discussão, declarou que 80% dos
jornais impressos dos EUA simplesmente desapareceria em 18 meses – tese contestada por alguns
especialistas3.
Em seu livro O Destino do Jornal, o jornalista Lourival Sant‟anna – repórter especial do
Estado de S. Paulo – crê que apenas uma mudança no formato dos jornais pode garantir seus
leitores. Ele argumenta que o atual formato adotado – que obriga os jornais a competirem com
2
Dados do Centro Knight de Jornalismo – Knight Center of Journalism in the Americas
(http://knightcenter.utexas.edu).
3
Idem.
13
veículos online – tende a levar o jornalismo impresso a uma severa redução de receitas, não apenas
por conta das sucessivas crises causadas pelas grandes economias mundiais, mas pela gradual
mudança de perfil dos leitores do século XXI. Ele acredita que o leitor moderno não quer mais
saber “apenas” dos acontecimentos, mas opta pelos detalhes dos acontecimentos – elementos
normalmente dispensados pelos grandes veículos de massa. “A reportagem é a forma natural da
narrativa. Ela é tão velha quanto o homem, quanto o ser humano. E tem um apelo muito forte
exatamente por isso. Desde criança, a gente gosta de histórias porque a gente se identifica, se
compara. A gente viaja junto com o narrador, a gente vive uma outra vida por meio da narrativa.
Então, isso tem um apelo muito grande e pode causar muito prazer. Os jornais podem fornecer ao
leitor, a cada 24 horas, a compreensão dos fatos por meio da história narrada. Eu acho que aí está a
chave para o jornal ter uma sobrevida e encontrar um espaço muito nobre no mercado.”4
Além disso, é inegável que a linguagem em HQ é considerada por muitos como sendo um
formato atrativo ao grande público, sobretudo pelo apelo visual e estrutura popular, o que torna as
HQs ao alcance dos mais variados públicos. Segundo explicam Patati & Braga (2006):
“O impacto cultural dos quadrinhos, mídia barata e de grande alcance de
público, foi tanto imediato quanto duradouro. As histórias em quadrinhos foram, e
são ainda, importante ferramenta na construção do imaginário coletivo dos povos
ocidentais e orientais.” (p. 12).
Nesse sentido, o presente projeto experimental vai buscar validar estes argumentos –
sustentados ainda pelo sucesso de algumas publicações como a Revista Mad, da editora Panini
Comics, que usa da estrutura HQ para fazer críticas humoradas sobre assuntos do cotidiano social e
político brasileiro (Jornalismo Opinativo) e, mais importante, baseado no trabalho do jornalista
4
Em entrevista concedida em 19 de janeiro de 2009 ao sítio eletrônico Portal Amazônia
(http://portalamazonia.globo.com), da Rede Amazônica de Rádio e Televisão, e repercutida pelo Observatório da
Imprensa (http://www.observatoriodaimprensa.com.br).
14
maltês Joe Sacco5, considerado um dos primeiros a ingressar no uso da linguagem de Histórias em
Quadrinhos no ofício do Jornalismo – na forma de produto editorial, no caso, um livro em formato a
ser definido mais adiante. O diferencial, no caso específico deste projeto, é o uso do formato de
roteiros HQ da produtora estadunidense DC Comics para adaptar reportagens especiais literárias.
Sendo assim, suscitamos como indagação norteadora principal deste projeto a possibilidade
da adaptação da tradicional linguagem jornalística literária para o formato Histórias em Quadrinhos
(HQs) sem a perda do caráter de reportagem, por meio do qual propomos, como hipótese primária e
resposta a tal questionamento, que o citado procedimento será considerado satisfatório porque o uso
de recursos gráficos e literários amplia a dimensão visual e a percepção do leitor frente à história
narrada. No aspecto geral, o objetivo da presente proposta é compreender o potencial jornalístico e
informativo a narrativa resultante da adaptação do formato tradicional do Jornalismo Literário para
a estrutura em Histórias em Quadrinhos (HQs), mais especificamente por meio da produção de uma
edição única de uma revista, feita sob as premissas acima descritas.
5
Sacco é autor de trabalhos como “Uma História de Sarajevo” (2005), “Palestina – Uma Nação Ocupada” (2000) e
“Palestina – Na faixa de Gaza” (2003). Todos são livros-reportagem escritas no formato Histórias em Quadrinhos. Joe
Sacco é considerado pioneiro no uso do recurso como gênero jornalístico.
15
1 METODOLOGIA
O método adotado para este projeto experimental foi o dedutivo, porque este “reformula ou
enuncia de modo explícito a informação já contida nas premissas” e “tem o propósito de explicar o
conteúdo das premissas” (Marconi e Lakatos, 2005, p. 92). A natureza da pesquisa foi qualitativa,
haja vista que o projeto pretendia compreender o potencial subjetivo de receptividade da amostra da
população frente ao experimento implementado.
O tipo de pesquisa adotada neste projeto foi a experimental, uma vez que foi implementada
uma manipulação deliberada da realidade (Rudio, 1986, p. 69), no caso a adaptação de reportagens
em estrutura literária para o formato Histórias em Quadrinhos (HQs). A população adotada para a
experimentação abrange estudantes de Ensino Médio da rede pública de ensino e universitários,
tendo como amostra os alunos de idades entre 16 e 25 anos do “Projeto Jovem Cidadão”, do curso
de informática básica e avançada do Centro de Educação Tecnológica do Amazonas (Cetam), e
pessoas da mesma faixa etária consultadas aleatoriamente.
A escolha de toda a amostra citada – cerca de 40 pessoas – partiu do princípio de que esta se
trataria de “parte representativa” da população (Rudio, 1986, p. 62), no caso por entendermos que, o
estrato da população escolhida representa bem o ideal de público a que este projeto se destina. A
amostra em questão será definida como não-probabilística e intencional (Rudio, 1986, p. 63), pois
representaria o “„bom julgamento‟ da população”. Para avaliar os resultados, o produto gerado
experimentalmente a partir das premissas estabelecidas neste projeto foi submetido ao público
supracitado, de modo que este fez uma avaliação prévia e individual. Paralelamente, foi utilizado o
método de observação não-participante, de modo que os autores da pesquisa puderam ter uma
análise visual das reações do público envolvido na pesquisa.
Sobre o conceito de “observação”, dizem Marconi & Lakatos (2005):
“A observação é uma técnica de coleta de dados para conseguir
16
informações e utiliza os sentidos na obtenção de determinados aspectos da
realidade. Não consiste apenas em ver e ouvir, mas também em examinar fatos ou
fenômenos que se desejam estudar.
É um elemento básico da investigação científica, utilizado na pesquisa de
campo e se constitui na técnica fundamental da Antropologia.” (p. 192-193).
A respeito do método de observação chamado “não-participante”, os autores o definem
como um meio onde o pesquisador:
“Presencia o fato, mas não participa dele; não se deixa envolver pelas
situações; faz mais o papel de espectador. Isso, porém, não quer dizer que a
observação não seja consciente, dirigida, ordenada para um fim determinado. O
procedimento tem caráter sistemático” (2005, p. 195).
É importante ressaltar que aos participantes convidados ao processo avaliativo foi solicitado
que levassem em conta quatro elementos para nortear as respostas frente ao produto experimentado:
aspecto visual, linguagem, qualidade da narrativa e similaridade ao texto original.
17
2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
O índice de leitores dos tradicionais jornais impressos vem caindo nos últimos anos.
Especialistas da área de economia, marketing, publicidade e, sobretudo, comunicólogos, têm
discutido as possíveis razões para o crescente número de leitores que, pouco a pouco, abandonam os
jornais impressos como fonte de informação para aderir à Internet. Tal situação se agrava ainda
mais quando se fala do público mais jovem. Nos meses de janeiro e fevereiro de 2000, a Associação
Americana de Jornais realizou uma pesquisa que constatou que 75% dos jovens entre 18 e 24 anos,
de um grupo de mais de quatro mil adultos consultados, afirma preferir a Internet aos jornais
impressos (Noblat, 2004). A mesma pesquisa mostrou que o uso da Internet cresceu 127% entre os
anos de 1997 e 2000, enquanto que o consumo de jornais caiu 12% no mesmo período e os
telejornais nacionais e mundiais registraram baixas de audiência de 14%.
Mas não são apenas os leitores que a Internet está retirando dos jornais. A receita
publicitária, responsável por uma parcela importante da sobrevivência de um periódico impresso
junto ao mercado, começa a migrar significativamente para a chamada grande rede. Até 2010, entre
10 e 30% dos anúncios originalmente destinados aos jornais serão transferidos para anúncios na
web, segundo levantamento realizado em 2001 pela Innovation International Media Consulting
Group (Noblat, 2004).
“Somente nos Estados Unidos, a publicidade online saltou de 200 milhões
de dólares em 1996 para 4 bilhões a 12 bilhões de dólares em 2000, a depender da
fonte que se consulte. É muito dinheiro. E o salto foi muito grande.”
É importante destacar que a Internet não é a única responsável pela queda do consumo de
jornais em todo o mundo. Noblat (2004) acredita que os próprios jornais têm sua parcela de
contribuição para o quadro, pois sua estrutura não estaria acompanhando as notórias modificações
do perfil dos leitores:
18
“A Associação Americana de Jornais vem anotando há 50 anos as queixas
mais comuns dos leitores de jornais. E elas são quase sempre as mesmas. Queixamse os leitores de constantes erros de ortografia, da tinta usada pelos jornais que lhes
mancham as mãos e a roupa, das páginas que soltam quando manipuladas, do
excesso de páginas e do formato dos jornais.” (2004, p. 15).
O mais contraditório é que, apesar das queixas, os jornais não têm se dedicado muito tempo
para pôr em prática as sugestões do público. Segundo argumenta Noblat (2004, p. 15):
“E o que os jornais fizeram ou estão fazendo para atender as reclamações
dos leitores? Pouca coisa. No segundo semestre de 2002, por exemplo, não
chegava a meia dúzia o número de jornais no Brasil que desenvolvia algum tipo de
programa para combater o número de erros de ortografia. Aqui e em toda parte, os
leitores continuam a receber jornais maçudos que nem mesmo os jornalistas
conseguem ler integralmente.”
Diante destas informações preliminares, Noblat argumenta sobre a possibilidade dos jornais
adotarem outro perfil para agradar ao público. Entre as sugestões, estão: a renovação de pautas para
“ganhar mais leitores, principalmente mulheres e jovens”; a publicação de informações que não são
de conhecimento do grande público; a humanização das notícias e abordagem de temas “pela ótica
dos leitores”; “conferir menos importância às notícias de ontem e ocupar-se mais em antecipar as
que estão por vir”; “apostar em reportagens porque são elas que diferenciam um jornal do outro”;
“dar mais tempo aos repórteres para que apurem e escrevam bem”; “publicar textos que
emocionem, comovam, inquietem” e “resistir à tentação de absorver prioridades tão características
da televisão: superficialismo, entretenimento, diversão, busca de audiência a qualquer preço”.
Entretanto, diante do cenário de recusa dos jornais em se adaptar às atuais mudanças de
perfil do público, que almejaria por conteúdo diferente do que circula, e da insistente competição
com a Internet, Noblat (2004) decreta: “Os jornais, contudo, morrerão, sinto dizer-lhes isso. Tal
como existem hoje, tudo indica que morrerão. Só não me arrisco a dizer quando.” (2004, p. 19).
Nem todos os autores, evidentemente, são tão pessimistas. Eduardo Belo (2006) afirma que
os jornais impressos ainda mantêm público fiel, apesar das dificuldades. Porém, ele sustenta as
19
afirmações de Noblat (2004) a respeito das imposições cotidianas das redações, que terminam por
influenciar diretamente no resultado das pautas apuradas, seja por conta do ritmo frenético das
redações – o que exige produção rápida desde a elaboração da pauta até a reportagem pronta –
como pela busca do factual. O resultado imediato desse cenário, segundo Belo (2006) é uma
produção que não permite melhor apuração e aprofundamento dos assuntos.
Mais recentemente, Lourival Sant‟anna (2008) avaliou três jornais de circulação
significativa em território nacional: Folha de S. Paulo (da empresa Folha da Manhã), O Globo
(Organizações Globo) e Estado de S. Paulo (Grupo Estado). No início da década de 2000, segundo
ele, todos os três periódicos citados sofreram sucessivas quedas em seus números de circulação.
Apesar de, na mesma época, os números voltarem a crescer, Sant‟anna afirma ser improvável que
os altos índices de circulação do passado, mais precisamente em meados da década de 90, quando,
segundo o autor, os números de circulação da edição dominical da Folha superavam a cifra de
milhão de exemplares6, seja mais uma vez registrado.
Sant‟anna sustenta a situação dos três jornais como sendo resultantes de tendências não
apenas nacionais, mas um espelho do que vem acontecendo com periódicos importantes em outros
países. Segundo ele, apesar da recuperação da circulação nacional de jornais nacionais registrada a
partir de 2005, fato que se seguiu após uma notável baixa nos índices de circulação que marcou o
período de 2000 e 2004, tal fato não representa uma recuperação de fato, já que o crescimento
registrado não acompanhou o aumento da população. Na verdade, a proporção entre o número de
exemplares e o montante de mil habitantes adultos segue em queda, em todo o país, na mesma
medida em que vem acontecendo em países cujos dados de circulação estão acessíveis à Associação
Mundial de Jornais.
6
Em relação aos altos índices de vendas das edições dominicais da Folha de S. Paulo, Lourival Sant’anna faz uma
ressalva importante. Segundo ele, tais taxas eram impulsionadas “por agressivas políticas de concessão de brindes,
que ficaram conhecidos como ‘anabolizantes’”.
20
Fonte: Associação Nacional de Jornais (ANJ)7.
Para Sant‟anna (2008, p. 18), os números mostram duas situações paralelas: as pessoas estão
lendo menos jornais e, quando o fazem, é por pouco tempo. O autor acrescenta ainda seus próprios
argumentos para fundamentar a situação:
“A queda de circulação, do número de leitores e do tempo de leitura de
jornais coincide com o período de acirramento da concorrência de outros meios de
informação, como a internet, as TVs por assinatura, as emissoras de rádio
noticiosas e até mesmo as revistas semanais informativas.”
Assim como Noblat, Sant‟anna também avalia o fator publicitário dos periódicos frente à
situação desfavorável da circulação no Brasil. Segundo ele, todo o faturamento dos jornais
nacionais caiu entre 2000 e 2003, recuperando-se novamente até 2004. Entretanto, o novo
crescimento registrado de verbas publicitárias destinadas aos jornais foi menor que o aumento dos
montantes registrados a outros veículos de comunicação, como emissoras de TV e de rádio e sites
de internet. Segundo Sant‟anna, apenas as revistas semanais informativas tiveram desempenho
publicitário inferior ao dos jornais. Sant‟anna (2008, p. 39) descreve a situação publicitária e de
7
O gráfico original encontra-se na página 39 do livro “O Destino do Jornal”, de Lourival Sant’anna.
21
circulação dos jornais como fenômeno mundial:
“(...) A queda atinge boa parte dos países mais avançados e mais ricos do
mundo. O número de exemplares por mil habitantes caiu em todos os países do G7, o grupo das sete nações com o maior Produto Interno Bruto (PIB), entre 2000 e
2006. (...)”
O cenário do jornalismo impresso tradicional no Brasil e no mundo, como se pode ver a
partir das informações citadas acima, não é favorável. Diante do quadro, surge a necessidade de se
discutir novas possibilidades editoriais para a manutenção do jornalismo impresso. Uma
possibilidade, levando-se em conta a opinião de Noblat (2004) e Sant‟anna (2008) a respeito do
caráter literário das reportagens, assim como o uso maior do recurso da descrição, seria a adaptação
da estrutura tradicional da reportagem impressa para o formato de Histórias em Quadrinhos (HQs),
no sentido de valorar os detalhes do fato narrado e ampliar seu potencial de apreensão e assimilação
por parte do leitor.
Mas é importante, no entanto, conhecer inicialmente um breve relato do formato HQ e
alguns dos estilos jornalísticos cujas linguagens mais se aproximam do que argumentam Noblat e
Sant‟anna.
2.1 Histórias em Quadrinhos: Uma breve História
A maioria dos especialistas em Histórias em Quadrinhos (HQs) é unânime em afirmar que a
origem remota das HQs são os desenhos que nossos antepassados deixaram nas cavernas no período
Pré-Histórico. Precursores ou não das HQs, os desenhos eram a forma de nossos ancestrais
registrarem suas impressões sobre o seu cotidiano. Essas gravuras, conhecidas como a mais antiga
das artes, ficaram conhecidas como pinturas rupestres.
Bordenave afirma que a linguagem escrita, precedida pelos desenhos nas paredes das
cavernas, foi a forma que o homem antigo criou para vencer a falta de permanência e a falta de
22
alcance:
“Para fixar seus signos o homem utilizou primeiro o desenho e mais tarde a
linguagem escrita. Desenhos primitivos, pintados por homens da era Paleolítica
(entre 35 000 e 15 000 anos antes da era cristã), foram achados em cavernas como
as de Altamira, Espanha, e Dordogne, França. Ali se observam cenas de caça
envolvendo animais e pessoas. Não se sabe se o propósito destas figuras era
mágico, estético ou simplesmente expressivo ou comunicativo.” (2005, p. 26).
Bordenave (2005, p. 26) explica que, para superar o problema do alcance de suas
mensagens, os homens antigos apelaram para “signos sonoros e visuais, tais como o tantã, o
berrante, o gongo, os sinais de fumaça” e que a linguagem escrita teria sido teria sido decisiva neste
sentido. Mas o autor cita ainda o advento do pictograma, uma evolução da linguagem escrita com o
uso de signos que guardam correspondência direta entre a imagem gráfica (desenho) e o objeto
representado. Para exemplificar, Bordenave (2005) diz:
“O desenho de uma mulher significava isso mesmo, mulher; o desenho de
um sol significava um sol, e assim por diante. Os hieróglifos do antigo Egito são
um exemplo de escrita pictográfica.” (2005, p. 26-27).
Porém, com o passar do tempo, o homem sentiu-se limitado por conta da relação direta entre
imagens e objetos, passando a relacionar, posteriormente, imagens a ideias. Tal recurso, mais tarde
denominado de escrita ideográfica, é similar, na estrutura, ao que hoje se conhece como Histórias
em Quadrinhos (HQs).
“A escrita inicialmente seguia a mesma seqüência que a língua falada. Nos
primeiros pictogramas e ideogramas a seqüência dos signos reproduzia a
cronologia dos eventos narrados. Se um caçador jejuava, logo depois reunia as
armas e mais tarde matava um animal, estes eventos sucessivos seriam desenhados
em tal ordem.” (2005, p. 27).
E a própria denominação atual de HQs já a define: uma história narrada em quadros, ou
23
vinhetas, por meio de imagens, com ou sem o auxílio do texto escrito8. No início, o conteúdo das
HQs era predominantemente humorístico, por isso uma de suas denominações é comics, palavra
inglesa que significa “cômico” ou “humorístico”. De acordo com Lanone & Lanone (1995), as
histórias em quadrinhos nasceram nos Estados Unidos e lá foram batizadas de comics, termo que se
universalizou e é usado até hoje. Outro nome muito comum é funnies, que significa “engraçado”. E,
tanto nos Estados Unidos quanto em outros países de língua inglesa, o termo comic strip equivale à
tira cômica ou tira, ou melhor, HQs curtas que geralmente não têm mais de três quadros.
No século XIX, os desenhistas desenvolviam ilustrações para retratar cenas do cotidiano ou
simplesmente contar uma história – com ou sem texto –, que eram publicadas em livros ou na
imprensa. Nessa mesma época, europeus e americanos ensaiavam o nascimento das HQs. Por usar
divisões de quadros e breves textos, o francês Georges Colomb (1856-1945) é apontado por alguns
como o “verdadeiro criador da fórmula que originou as histórias em quadrinhos” (1995, p. 29). O
francês alcançou fama ao criar a “Família Fenouillard”, em 1889. O sucesso dos seus personagens o
obrigou a reeditar as suas inúmeras histórias em um grande álbum em 1893.
2.1.1 Nos Estados Unidos
Nos Estados Unidos, de acordo com Edson C. Romualdo (2000), a primeira gravura
publicada em um jornal que se tem notícia é a de James Gordon Bennet, em 1835. As máquinas de
impressão eram poucos adaptados para reprodução de ilustrações, ninguém entendeu a figura que
ilustrava uma reportagem, pois a mesma apareceu borrada.
No século XIX, as ilustrações logo fizeram sucesso entre os leitores porque saíam do padrão
de publicar apenas textos verbais. Percebendo o sucesso que as gravuras faziam, a partir de 1880,
elas passaram a fazer parte dos jornais americanos e, em 1873, o jornal de Nova York Daily
8
O famoso quadrinista e roteirista estadunidense Scott McCloud define o termo, na obra “Desvendando os
Quadrinhos – História, Criação, Desenho Animação, Roteiro” (2005), como “Imagens pictóricas e outras justapostas
em seqüência deliberada destinadas a transmitir informações e/ou produzir uma resposta no espectador”.
24
Graphic se tornou o primeiro a publicar ilustrações regularmente.
Os jornais Mourning Journal e o New York World, também de Nova York, brigavam
acirradamente por leitores. Por isso investiam em suplementos dominicais, impressos em cores e
desenhos. Quem saiu ganhando com essa disputa foram os caricaturistas e ilustradores que
“passaram a ter um vasto campo para desenvolver sua criatividade” (1995, p. 30).
O Jornal New York World saiu na frente de seu concorrente e publicava, no dia 5 de Maio de
1895, o quadro humorístico The Yellow Kid (“O menino amarelo”), criado pelo desenhista Richard
Fenton Outcault (1863-1928). Desenhado em dois painéis, um colorido e outro em preto e branco,
com o título “At the Circus in Hogan's Alley”, Yellow Kid era um garoto de cabeça grande, orelhudo
e aparência oriental que sempre trajava um camisolão de dormir e morava num cortiço novaiorquino. A partir de 1896, seu camisolão, que sempre trazia mensagens críticas, se tornou amarela
– característica marcante deste personagem.
O Yellow Kid foi o precursor das histórias em quadrinhos, como a conhecemos hoje, graças
à inovação de Oultcault que introduziu os primeiros balões e foi o primeiro a desenhar uma tirinha
em sequência, o que se popularizaria anos mais tarde. Em relação à cor do camisolão do
personagem de Oulcault, a escolha não aconteceu por uma questão estética, mas sim porque,
segundo Lannone e Lannone (1995, p.32), no momento era a única cor que ainda não tinham
conseguido imprimir. Romualdo (2000) fala um pouco da crítica nos quadrinhos de Oultcault:
“O teor crítico das charges e caricaturas ganha espaço nos jornais com a
figura do Yellow Kid (...). Mantendo a tradição das charges políticas, o camisolão
amarelo vestida pela personagem de Outcault exibia frases panfletárias ou cômica a
cada quadrinho (...) o Yellow Kid tornou-se rapidamente a grande atração do jornal
(...) (p. 11-12).
Em 1897, o desenhista americano Rudolph Dirks, do jornal Mournig Journal, retomou a
fórmula consagrada por Outcault: uso de diálogos em balões e sequência de quadros para
desenvolvimento da história. Dirk é autor da primeira série permanente dos quadrinhos, The
Captain and the Kids (“O capitão e as crianças”). As travessuras dos irmãos Hans e Fritz fizeram
25
sucesso e, de acordo com Lanonne & Lannone (1995), a série continua a ser desenhada e distribuída
até hoje, mesmo após o falecimento de seu criador, em 1967, sendo, portanto, as histórias em
quadrinhos mais antigas do mundo ainda em circulação.
A partir da década de 1930, logo após a quebra da Bolsa de Valores em 1929, dá-se início ao
período conhecido como a “A Era de Ouro” (The Golden Age) dos quadrinhos porque foi nessa
época que surgiram os famosos personagens do gênero aventura como Flash Gordon, de Alex
Raymond, Dick Tracy, de Chester Gould, e, no final da década de 1930, o primeiro super-herói que
possuía identidade secreta, Superman, de Siegel e Shuster.
2.1.2 Quadrinhos no Brasil
Há controvérsias entre autores no que diz respeito ao (s) pioneiro (s) do formato HQ
publicado no Brasil. Lanonne & Lanonne (1994) cita a revista “Tico Tico”, lançada pelo jornalista
Luiz Bartolomeu de Souza por meio da editora “O Malho”, em 1905, como a primeira a publicar
quadrinhos do Brasil. A publicação, cujo público-alvo eram crianças, trazia em suas páginas
curiosidades, contos, textos informativos e, é claro, HQs. No início, a revista apenas traduzia as
HQs americanas. Mas, foi nessa publicação que muitos desenhistas brasileiros foram revelados,
entre eles, J.Carlos e Luiz Sá, criador das histórias de “Reco-Reco, Bolão e Azeitona”. A última
edição de “Tico Tico” foi publicada em 1956. A revista influenciou gerações e contava com leitores
ilustres como o poeta Carlos Drummond de Andrade.
Já Patati & Braga (2006) afirmam que o pioneiro da produção de quadrinhos no Brasil
atende pelo nome de Ângelo Agostini, um italiano que publicou, em 1869, o trabalho “As aventuras
de Nhô Quim – um caipira na capital”, nas páginas de Vida Fluminense. Patati & Braga afirmam
que o trabalho de Agostini era uma espécie de histórias em quadrinhos sem quadrinhos, já que
segundo os autores, não havia o que eles chamam de “fio de delimitação de quadros” pois era
realizada com enquadramento quase fixo. Apesar disso:
26
“O talento único de Agostini o tornou precursor não só das HQs como da
charge política e do cartum brasileiros. As gerações que o sucederam tiveram
pouquíssimo acesso à obra deste grande artista. Enquanto vivo, todavia, ele foi de
leitura obrigatória.” (Patati & Braga, 2006, p. 20).
Em 1960, segundo Lanonne & Lanonne (1994) foi publicada a primeira edição da revista “O
Pererê”, de Ziraldo Alves Pinto, que circulou até 1964. E em 1959, a primeira tira do cartunista
Maurício de Souza, que trazia Bidu e Franjinha como protagonistas, foi publicada na Folha da
Manhã. Na década de 1960, Souza criou os novos personagens que viriam a formar a “Turma da
Mônica”. Logo depois, ele lançou as revistas e conseguiu sobreviver à concorrência com os
quadrinhos estrangeiros, em especial os da Disney. Em julho de 2009, Maurício de Souza
comemorou 50 anos de carreira nos quadrinhos.
2.2 Jornalismo e Literatura
Antes de avançarmos a respeito do assunto tratado é importante traçar um paralelo entre a
atividade jornalística e o trabalho literário.
“O jornalista literário não ignora o que aprendeu no Jornalismo Diário.
Nem joga suas técnicas narrativas no lixo. O que ele faz é desenvolvê-lo de tal
maneira que acaba constituindo novas estratégias profissionais. Mas os velhos e
bons princípios da redação continuam extremamente importantes, como, por
exemplo, a apuração rigorosa, a observação atenta, a abordagem ética e a
capacidade de se expressar claramente, entre outras coisas.” (PENA, 2006, p. 1314).
Nos séculos XVIII e XIX, escritores de prestígio tomaram conta dos jornais. Pena (2006)
destaca que não apenas no comandando redações, mas, principalmente determinando a linguagem e
o conteúdo dos jornais. Uma de suas principais ferramentas eram os Folhetins, “um estilo discursivo
que é a marca fundamental da confluência entre Jornalismo e Literatura”. (p.28). Os folhetins eram
um suplemento dedicado à literatura e a diversos assuntos.
Só a partir do “boom” do jornalismo popular, nas décadas de 1830 e 1840, em especial na
27
França e na Grã-Bretanha é que se passou a publicar narrativas literárias, o que possibilitou um
aumento nas vendas (Pena, 2006). Para os escritores, o jornal tornou-se uma excelente fonte de
lucro. Não só pelo dinheiro que recebiam, mas, também, pela visibilidade que ganhavam a partir da
divulgação de suas histórias e de seus nomes nos jornais.
Uma das características do folhetim era o chamado plot, ou seja, a ação era sempre
interrompida num momento decisivo como a hora do beijo, a revelação do nome do assassino etc.
Assim, como as histórias eram publicadas em fascículos, cada edição, cada capítulo, tinha um
momento dramático que só seria resolvido na edição seguinte. Com essa estratégia, os donos dos
jornais prendiam a atenção dos leitores e garantiam que eles comprassem a edição seguinte.
Outra característica marcante do folhetim era a linguagem simples. Tinha de ser assim,
afinal, ele era dirigido a um público vasto, de todas as classes sociais. Além disso, para facilitar a
compreensão dos leitores, os escritores apelavam para a homogeneização cultural, ou seja, para os
estereótipos, para os clichês etc.
Apesar das críticas recebidas pela sua estrutura popularesca, o folhetim democratizou a
cultura, possibilitou o acesso do grande público à Literatura e multiplicou o número de obras
publicadas.
No Brasil, quase todos os escritores do século XIX e começo do século XX passaram pelos
jornais, seja escrevendo romances a conta-gotas ou escrevendo crônicas, como José de Alencar,
Machado de Assis, Raul Pompéia, Joaquim Manoel de Macedo etc.
2.2.1 Reportagem: entre informação e entretenimento
A reportagem jornalística é considerada por muitos como o elo entre a informação objetiva e
o texto literário, assim como pelo entretenimento. Trata-se da forma que Noblat (2004) e Sant‟anna
(2009) julgam ser o meio capaz de combater o crescente desinteresse do público por parte do
jornalismo impresso tradicional. Vamos conhecer um pouco do que pensam alguns autores a
respeito do gênero para traçar similaridades entre este e o formato HQ.
28
De acordo com Rabaça & Barbosa (2002), a reportagem é um conjunto das providências
necessárias à confecção de uma notícia jornalística, que envolve cobertura, apuração, seleção de
informações, interpretação e tratamento, dentro de determinadas técnicas e requisitos de articulação
do texto jornalístico informativo. A reportagem começa na captação e termina na redação, e envolve
o trabalho físico e mental do repórter. Considera-se, então, incorreto denominar a reportagem como
um tipo de texto jornalístico descritivo, mais apurado e amplo, acompanhado com documentação e
testemunhos. “Na verdade, esse tipo de notícia é resultado de uma reportagem, e não a reportagem
em si” (2002, p.638).
A reportagem é um tipo de gênero jornalístico que é mais encontrado nas revistas, como a
Veja (Ed. Abril) e Época (Ed. Globo), só para citar duas das revistas semanais mais conhecidas no
Brasil. Nos jornais diários é mais comum encontrá-las nas edições dominicais9 ou nas edições
especiais10. Além da reportagem em si, que é mais conhecida por ir mais fundo nos temas que as
notícias diárias (ou factuais.) Thais de Mendonça dá uma ampla definição ao gênero reportagem:
“Grande reportagem: busca, redação e publicação de acontecimentos
extraordinários, originais e complexos, com o uso de múltiplas fontes. O repórter
tem mais tempo para apurar as informações. A grande reportagem é a caçada de
acontecimentos incomuns e depende da argúcia, espírito criador do jornalista.
Gênero mais próprio das revistas, descoberto pelos jornais, principalmente para as
matérias de fim de semana, pode ser planejado para um ou mais repórteres. O
repórter deve ter faro para a notícia, sensibilidade na criação de temas, cuidado na
apuração e perfeccionismo na organização dos dados. Situa-se entre o jornalismo
informativo e o literário (...)”.(2008, p.86).
Para explicar o que é reportagem, Pena (2006) se apóia na definição de alguns teóricos.
Destacaremos dois. O primeiro é o professor João de Deus Corrêa, que por meio de um quadro
comparativo entre notícia e reportagem, diz que a reportagem lida com assuntos sobre fatos,
9
As edições de domingo são consideradas “nobres” pela imprensa, pois é quando se permite o uso maior de
reportagens com texto leve e de caráter literário.
10
Como nas que são feitas em virtude de alguma comemoração especial, a exemplo de aniversários de cidades ou
outras datas consideradas importantes no aspecto regional de um veículo impresso qualquer.
29
trabalha com o enfoque, com a interpretação e com a dedução (do geral, que é o tema, ao particular,
os fatos); transforma fatos em assunto, traz a repercussão e o desdobramento; aprofunda; é produto
da intenção de passar uma "visão" interpretativa; focaliza a repetição e a abrangência; procura
envolver; usa a criatividade como auxílio para seduzir o receptor; trabalha com pautas mais
complexas, pois aponta para causas, contextos, consequências e novas fontes.
O segundo é o jornalista Nilson Lage11, que divide a reportagem em três tipos: investigativa,
interpretativa e Novo Jornalismo. A reportagem investigativa parte de um fato para revelar outros
mais ou menos ocultados, e, por meio deles, o perfil de uma situação de interesse jornalístico, como
o caso Watergate12, que rendeu uma série de reportagens feita pelos jornalistas Bob Woodward e
Carl Bernstein e que resultou no impeachment do presidente norte-americano Richard Nixon, em
1974.
A reportagem interpretativa que é o conjunto de fatos observado pela perspectiva
metodológica de determinada ciência, como uma pesquisa qualitativa. E, por fim, o Novo
Jornalismo, que aplica técnicas literárias na construção de situações e episódios para revelar uma
práxis humana não teorizada, como os textos da New Journalism, escritos por jornalistas e
escritores como Truman Capote13 e Norman Mailer.
A partir de agora, vamos conhecer outros gêneros e movimentos jornalísticos deflagrados ao
longo da História que podem ajudar subsidiar a tese a que este trabalho se propõe: o formato HQ
como gênero jornalístico.
11
O original encontra-se em LAGE, Nilson. A Reportagem: teoria e técnica de entrevista e pesquisa jornalística. Rio de
Janeiro: Record, 2001.
12
O caso Watergate foi retratado ou citado nos cinemas em quatro ocasiões. A primeira foi no filme “Todos os
homens do Presidente” (All the President’s Men), de 1974. A segunda foi em 1994, na película “Forrest Gump – O
contador de histórias” (Forrest Gump), onde o personagem principal, interpretado por Tom Hanks, acaba descobrindo
o caso envolvendo Richard Nixon. Outra referência está no filme “Nixon”, de 1995 e dirigido por Oliver Stone, e a
última, mais recentemente, em 2008, foi na obra “Frost/Nixon”, que conta os bastidores da famosa entrevista
concedida pelo então presidente ao jornalista de entretenimento David Frost, em 1977.
13
Trumam Capote é autor do clássico “À sangue frio”, obra de 1966 que registra em detalhes o caso de assassinato
cometido contra uma família na cidade de Holcomb, no interior do Estado do Kansas, nos EUA.
30
2.2.2 Novo Jornalismo
A insatisfação de muitos profissionais da imprensa com as regras da objetividade do texto
jornalístico e a figura do lead14 foi o que proporcionou o advento do Novo Jornalismo
contemporâneo na década de 1960, nos Estados Unidos.
A ideia básica do Novo Jornalismo, segundo o jornalista norte-americano Tom Wolfe15, é
evitar os aborrecidos relatórios que caracterizam a “imprensa objetiva”. Para ele, os repórteres
devem seguir o inverso e serem mais subjetivos.
No manifesto “O Novo Jornalismo”, Tom Wolfe registrou quatro recursos básicos deste
novo modo de fazer jornalístico: reconstruir a história cena a cena; registrar diálogos completos;
apresentar as cenas pelos pontos de vistas de diferentes personagens; registrar hábitos, roupas,
gestos e outras características simbólicas dos personagens. (p.54).
Mesmo assim, segundo argumenta Pena, o trabalho que envolve a vida de um jornalista
literário não é tarefa fácil:
“Não basta aplicar esses recursos para ser um jornalista literário.
Principalmente porque você só conseguirá aplicá-los se for um repórter
extremamente engajado, entrevistando com exaustão cada de seus personagens até
arrancar tudo que puder com o máximo de profundidade possível. Para isso, é
preciso passar vários dias com as pessoas sobre as quais vai escrever. E, no
momento de mostrar os diversos pontos de vistas, sua capacidade de descrição
deve superar os melhores romances realistas (...).” (2006, p.55).
2.2.3 Jornalismo Literário no Brasil
No Brasil, o jornalista, Joel Silveira (1918-2007), foi pioneiro na utilização do estilo
conhecido como Jornalismo Literário. Segundo Pena (2006), ele defendia a ideia de que o estilo
14
Lead – ou “lide” na versão em português – é o nome que se dá ao formato básico da estrutura da notícia, também
conhecida como técnica da “Pirâmide Investida”, onde o jornalista tem que se preocupar em responder a seis
perguntas básicas: O quê?, Quem?, Quando?, Onde?, Como? e Porque?
15
Tom Wolfe é o autor do manifesto de “O Novo Jornalismo”, escrito em 1973.
31
chamado de "grande reportagem", mais do que uma alternativa da imprensa, era a válvula de escape
para toda a voz reprimida na ditadura do Estado Novo (1937-1945). Joel cobriu a Segunda Guerra
Mundial para os Diários Associados, aos 26 anos de idade, e era o correspondente mais jovem entre
os correspondentes da Europa.
2.2.4 Jornalismo Gonzo
O Jornalismo Gonzo pode ser definido como uma versão mais radical do Novo Jornalismo.
O estilo foi criado e popularizado pelo jornalista norte-americano Hunter S. Thompson16, repórter
da revista Rolling Stone, que se suicidou em fevereiro de 2005.
“Jornalismo Gonzo consiste no envolvimento profundo e pessoal do autor
no processo da elaboração da matéria. Não se procura um personagem para a
história; o autor é o próprio personagem Tudo que for narrado é a partir da visão do
jornalista. Irreverência, sarcasmo, exageros e opinião também são características do
Jornalismo Gonzo. Na verdade, a principal característica dessa vertente é escancarar
a questão da impossível isenção jornalística tanto cobrada, elogiada e sonhada pelos
manuais de redação.” (Belo, 2006, p. 57).
No Brasil, o adepto mais conhecido do Jornalismo Gonzo é o jornalista Arthur Veríssimo17.
Ele começou a escrever reportagens em estilo gonzo na revista Trip (Trip Editora) e já foi colunista
na revista Galileu (Ed.Globo).
2.3 Ficção e Jornalismo
O romance-reportagem tem como objetivo a reconstituição fiel dos acontecimentos,
16
Nascido em 18 de julho de 1937, nos EUA, Thompson ficou conhecido pelo envolvimento com drogas e álcool, que
acabavam por influenciar em seu trabalho como jornalista. Seu livro mais famoso é “Medo e Delírio em Las Vegas:
Uma jornada selvagem ao coração do sonho americano” (Conrad, 2007), de 1971, uma narrativa em primeira pessoa
do que deveria ser a cobertura jornalística de uma corrida de MotoCross e uma convenção de promotores públicos
sobre drogas. A narrativa é feita a partir de um personagem fictício, Raoul Duke, mais tarde interpretado no cinema
pelo ator estadunidense Johnny Depp, que acabou tornando-se amigo de Thompson até sua morte, em 20 de
fevereiro de 2005.
17
Em entrevista feita pelo jornalista Gustavo Abdel Massih e publicada no Observatório da Imprensa no dia 12 de
setembro de 2006, Arthur Veríssimo decretou: “Jornalismo gonzo exige pesquisa profunda”.
32
enquanto a ficção jornalística não tem compromisso com a realidade. Muito pelo contrário, apenas a
explora como apoio para a sua narrativa. Enquanto o autor de ficção-jornalística inventa
deliberadamente, o escritor de romances-reportagens “está impregnado pela promessa solene do
Jornalismo de relatar somente a verdade factual, ainda que isso não seja ontologicamente correto.”
(Belo, 2006, p. 114).
A maioria dos autores de ficção-jornalística já trabalhou na imprensa, por isso conhecem os
limites da reportagem e exerceram o pacto da “referencialidade” com o leitor, ou seja, o
compromisso de apenas se ater aos fatos, de forma concisa e objetiva. “O que os levou a escrever
ficção foi exatamente a vontade de romper esse compromisso, sem, entretanto, deixar de usar os
instrumentos do Jornalismo” (2006, p. 115).
Também, há um movimento latino-americano de muito prestígio chamado Realismo
Fantástico, que pode ser classificado como ficção jornalística, ou melhor, ficção que apóia sua
narrativa em fatos do cotidiano. Pena (2006, p. 117) diz que:
“Quando escritores afirmam que a ficção é melhor maneira de
retratar a suposta realidade não estão legislando em causa própria. Como diz
o ditado, a vida imita a arte. As representações ficcionais da realidade
permanecem no imaginário por muito mais tempo do que as narrativas
baseadas em compromissos com a verdade factual, como é o caso do
Jornalismo.”
Entre os maiores representantes do Realismo Fantástico estão seu maior representante, o
jornalista, escritor e Prêmio Nobel de Literatura, Gabriel García Marquez18, o jornalista e escritor
peruano Mario Vargas Llosa e o jornalista brasileiro Carlos Heitor Cony.
2.4 A crônica jornalística: uma atenção especial a um gênero especial
Embora tido como gênero essencialmente opinativo, a crônica assume um caráter que muito
18
Prêmio Nobel de Literatura em 1982, pela obra “Cem anos de Solidão”.
33
se aproxima do que cremos ser o resultado do processo de adaptação de uma reportagem literária
para o formato em Histórias em Quadrinhos (HQs), já que, segundo José Marques de Melo, a
crônica, no Brasil, assume um sentido que mescla o texto informativo e a narração literária:
“Se esse sentido predomina em nosso país, tomando a crônica a
feição de relato poético do real, situado na fronteira entre a informação de
atualidade e a narração literária, o mesmo já não ocorre em outros países.”
(2003, p. 149)
A ressalva que Melo (2003) faz, no entanto, sobre a suposta não ocorrência do gênero em
outros países é apenas conceitual, pois o termo, tal como é usado no Brasil, adquire outras
denominações em diferentes países, embora a essência da aplicação seja a mesma. Na Inglaterra,
diz o autor, o termo equivalente à crônica brasileira é o personal essay ou familiar essay, enquanto
na Alemanha temos a glosa. Já nos EUA, temos como similares as feature stories, human story e
color story, assim como a croniquilla, na Espanha, que, segundo Melo, tem mais similaridades com
o modo brasileiro. Este último, aliás, “pretende ser uma crônica da vida diária”, sendo também
chamada de folhetim – termo que já citamos no item 6.2 Jornalismo e Literatura, página 26.
Melo argumenta que a essência da crônica se vale do real como deixa ou fator de inspiração
para a construção de um relato poético ou descrição literária. E, atualmente, o termo assume papel
específico na atividade jornalística, em algo muito semelhante ao trabalho de adaptação do texto
jornalístico literário para o formato em HQ:
“A crônica moderna gira permanentemente em torno da atualidade,
captando com argúcia e sensibilidade o dinamismo da notícia que permeia toda a
produção jornalística. Ainda que o cronista mantenha, como dia Antônio
Cândido252, „uma conversa aparentemente afiada‟ em torno de questões
secundárias, não vinculadas ao espectro noticioso, isso constitui momento de
pausa, que reflete a trégua necessária à vida social.” (2003, p. 155)
São duas as principais características da crônica, segundo Melo: 1) fidelidade ao cotidiano,
pela vinculação temática e analítica que mantém em relação ao que está ocorrendo, aqui e agora;
34
pela captação dos estados emergentes da psicologia coletiva e 2) crítica social, que corresponde a
“entrar fundo no significado dos atos e sentimentos do homem”.
Entre as diversas classificações de crônicas trazidas por Melo por meio da fundamentação de
terceiros, destacamos uma que cremos trazer em sua essência a síntese da proposta original deste
trabalho de pesquisa. Trata-se da crônica-conto, em que os dois termos, juntos, dão a tônica
conceitual mais adequada do que seria o resultado da adaptação da reportagem literária para o
formato HQ. Segundo Melo (2003), a crônica-conto pode ser assim compreendida:
“Enquanto o primeiro tipo explora a temática do „eu‟ (concentra-se nas
emoções do cronista), o segundo tipo gira em torno do „não-eu‟ (o acontecimento
de que o cronista é apenas narrador, o historiador).” (2003, p. 158 e 159)
Não é a toa que traçamos um importante paralelo entre os gêneros jornalísticos
anteriormente citados e, em especial, a crônica jornalística. Entre todos os conceitos gerais, a
crônica é aquela que mais engendra e abrange nossa proposta. Nas palavras de Melo:
“O cronista que sabe atuar como consciência poética da atualidade é aquele
que mantém vivo o interesse do seu público e converte a crônica em algo desejado
pelos leitores. Atua como mediador literário entre os fatos que estão acontecendo e
a psicologia coletiva. É por isso que muitos cronistas (Drummond em especial)
buscam inspiração no próprio jornal. Realizam uma tradução livre da realidade
principal, acrescentando humor à chatice do cotidiano, à dureza do dia-a-dia. Os
que se afastam do presente e enveredam pelo saudosismo, pela rememoração dos
tempos passados, arriscam perder o público ou o limitam aos seus companheiros de
geração.
Assim sendo, a crônica moderna configura-se como gênero eminentemente
jornalístico.” (2003, p. 156)
2.5 Exemplos de Jornalismo em HQ
Como forma de ilustrar e embasar o projeto em questão, listamos abaixo os maiores
expoentes do Jornalismo em Histórias em Quadrinhos (JHQ) e uma breve análise de seus
respectivos trabalhos, assim como um apanhado sobre os impactos que cada obra trouxe à
sociedade dentro ou pós o período em que foram escritas e/ou publicadas. Começaremos pelo que
35
ficou conhecido como o precursor do formato JHQ, o maltês Joe Sacco.
2.5.1 A obra de Joe Sacco: O “Novo” Novo Jornalismo
Joe Sacco nasceu em 1960, na Ilha de Malta. Uma de suas leituras prediletas na infância e
juventude eram Histórias em Quadrinhos sobre guerras e reedições da revista Mad19. Depois de
formar em Jornalismo pela Universidade de Oregon, nos EUA, em 1981, viajou pelo Oriente
Médio, em meados de 1991, onde coletou informações que mais tarde, em 2002, iriam culminar no
lançamento do primeiro livro da série Palestina20 (editora Conrad), que levaria o jornalista a ser
premiado com o American Book Award21.
Reprodução das capas de “Palestina – Uma Nação Ocupada” e “Palestina – Na Faixa de Gaza”.
Após a publicação do primeiro livro da série Palestine, Sacco ficou conhecido como o
19
No Brasil é editada pela editora Panini Comics.
20
“Palestina – Uma Nação Ocupada” (Palestine – A Nation Ocuppied, 2000) e “Palestina – Na Faixa de Gaza” (Palestine
– In the Gaza Strip, 2003)
21
As informações referentes à vida e obra de Joe Sacco foram consultadas no encarte da obra “Uma História de
Sarajevo” (The Fixer: A Story from Sarajevo, 2003). O título em português foi publicado em 2005, pela editora Conrad.
36
precursor do chamado “New New Journalism” – uma referência a um novo gênero constituído a
partir do Novo Jornalismo, inaugurado por Trumam Capote, com a obra “À sangue frio” (1966), e
outros expoentes do gênero, como Tom Wolfe e Hunter S. Thompson.
O jornalista José Arbex é enfático sobre a obra de Sacco, no que diz respeito à capacidade da
obra de informar o leitor por meio dos recursos visuais típicos das HQs. O prefácio da obra
“Palestina – Uma Nação Ocupada”, disponível no sítio eletrônico da editora Conrad, na Internet 22,
Arbex declarou:
“Joe Sacco prova que não só é possível, como, em certos aspectos, sua
reportagem em quadrinhos é bem mais eficaz do que o tradicional texto jornalístico
ou mesmo histórico/acadêmico. E este é o ponto mais fascinante: com muita
ousadia, Sacco demonstrou a potência de uma linguagem que, aparentemente, é
inadequada para tratar de um tema tão grandioso e terrível como é o conflito na
Palestina. Resta explicar a fonte dessa potência: de onde a história em quadrinhos
extrai a legimitidade para reivindicar para si o estatuto e a dignidade de reportagem
jornalística. Não é uma questão fácil. Muito ao contrário.” (Arbex, 2009)
Mais adiante, Arbex pondera sobre a questão da objetividade jornalística, elemento muito
discutido nas academias de Jornalismo, e que, para muitos teóricos, deveria ser tomado como ponto
principal na chamada práxis jornalística:
“Há, antes de mais nada, um problema formal. O texto jornalístico
tradicional aspira à „objetividade‟ - isto é, ao relato isento dos fatos -, mesmo
sabendo, de antemão, que fracassará em seu intento (não existe „objetividade‟ pura,
independente do narrador, já que o sujeito da enunciação do discurso sempre
deixará sua marca: mesmo a demonstração de um teorema matemático,
completamente impessoal, será marcada pelo estilo do matemático).” (Idem)
Paralelamente, Arbex critica o modo adotado pela suposta “objetividade jornalística”:
22
O texto original pode ser conferido, na íntegra, em
<http://www.conradeditora.com.br/hotsite/palestina/jose_arbex.htm>.
37
“Em sua busca da objetividade inatingível, o texto jornalístico deve adotar
certos procedimentos que garantam, ao máximo, o rigor da informação divulgada, a
fidelidade às „fontes‟ da reportagem, a precisão descritiva. O texto jornalístico quer
se aproximar ao máximo do objeto da reportagem, quer analisá-lo a partir de vários
pontos de vista. Ele se atira, enfim, na direção do objeto. ” (Idem)
Em outro trecho, depois de analisar os aspectos de informações, interpretações e – mais
importante – o poder de contextualizar o leitor sobre os conflitos políticos-religiosos-culturais
existentes na Palestina, Arbex chega a uma conclusão a respeito do trabalho do jornalista Joe Sacco:
“Sacco dá uma cara aos árabes sem cara. Mostra o sofrimento das mães
palestinas, a ansiedade das crianças, o terror dos homens diante de um Exército
formidável, poderoso e fascistóide. Mas ele não faz um „panfleto palestino‟. Ao
contrário, há todo um esforço para mergulhar no componente profundamente
humano da tragédia palestina. Produz seus heróis e seus covardes, suas esperanças
e suas frustrações. Nisso reside a legitimidade e o poder deste livro: no mundo em
que impera as imagens, Sacco produz as suas próprias imagens de mundo para
subverter, questionar uma percepção uniformizada pela grande mídia.
E não será este, precisamente, o objetivo maior de uma grande
reportagem?” (Idem)
Reprodução da capa de “Uma História de Sarajevo”, 2005.
2.5.2 A obra de Héctor Oesterheld
Outro importante expoente das Histórias em Quadrinhos (HQs) é o argentino Héctor
38
Oesterheld que, em 1968, escreveu “Che – Os últimos dias de um herói”23, que conta ainda com os
traços de Alberto e Enrique Breccia. Na nota da edição brasileira do livro, Rogério de Campos
descreve Oesterheld como algo maior que “o maior roteirista da história da HQ argentina ou latinoamericana”. Para Rogério de Campos, o roteirista é um dos primeiros grandes nomes dos
quadrinhos mundiais “a perceber as possibilidades dos quadrinhos como uma espécie de nova
literatura”.
Reprodução da capa de “Che – Os últimos dias de um herói”, edição brasileira de 2008.
O autor não faz qualquer referência do trabalho de Oesterheld como produto jornalístico,
mas os próprios relatos históricos que se sucederam na Argentina após a publicação do livro
mostram o poder informativo e de reconstituição histórico-dramático do trabalho, que acabou
resultando em trágicas consequências24 para o autor e sua família, pois mostra o caráter reflexivo
que toda reportagem precisa ter.
23
O título original era “La Vida Del Che” e foi publicado em 1968, apenas três meses após o assassinato, na Bolívia, do
guerrilheiro argentino Ernesto Guevara. O livro só chegou ao Brasil em 2008 – exatos 40 anos após a morte de Che.
24
A partir de 1976, com apoio formal da Casa Branca, por meio do Secretário de Estado Henry Kissinger, a Ditadura
Militar da Argentina fecha o cerco contra qualquer investida considerada “de esquerda” no país. Pouco a pouco, os
familiares de Héctor Oesterheld vão “desaparecendo” até que ele mesmo é sequestrado pela repressão, em 27 de
abril de 1977. Acredita-se que o roteirista tenha sido morto na prisão, em 1978.
39
3 PRODUTO
Definição conceitual
O produto resultante deste trabalho experimental é uma revista impressa não-periódica, com
formato e estrutura típica das HQs de caráter “especial” comercializadas em todo o mundo. Ela é
composta de duas reportagens especiais adaptadas para o formato de Histórias em Quadrinhos
(HQs), em que cada sequência descrita no texto original será mostrada em quadros, assim como os
trechos de falas ou citações serão exibidos em típicos balões de diálogo.
No mercado editorial das HQs, as publicações “especiais” são aquelas lançadas em épocas
específicas ou de apelo social, cultural ou histórico. Grandes editoras, como DC Comics e Marvel
Comics, costumam lançar edições especiais com a reunião, em uma única edição com encadernação
e impressão de alta qualidade25, tramas e histórias de personagens publicadas originalmente em
edições periódicas.
Descrição do produto
Composta de 24 páginas, sendo 12 folhas do formato A4 em orientação horizontal, o
produto – batizado de JHQ Magazine, em alusão ao gênero Jornalismo em Histórias em Quadrinhos
(JHQ), muito usado por profissionais que trabalham com este gênero – vai abrigar as duas
reportagens em formato HQ, além da capa e uma página dedicada ao Editorial (apresentação do
produto ao público). O público-alvo serão estudantes de Ensino Fundamental, Médio e
Universitários, com faixa etária entre 16 e 25 anos.
25
A qualidade de encadernação e impressão não configura em si o caráter de “especial” de uma publicação HQ, mas
as circunstâncias do período do lançamento.
40
Viabilidade
Além de representar uma prática inovadora no mercado jornalístico local, com apelo da
linguagem visual e textual unidas em imagens sequenciadas, o que garante uma experiência
alternativa de apreciação de histórias por parte do leitor, a produção deste novo formato é viável por
conta também dos custos de produção. A produção total do formato acima descrito deverá custar,
aproximadamente, R$ 1 mil, entre profissionais envolvidos e aspectos relativos à impressão e
distribuição. Levando-se em conta uma tiragem hipotética de mil exemplares do produto com o
valor comercial estipulado em R$ 2, o lucro estimado seria de R$ 1 mil, em uma única tiragem.
Proposta visual
Tipologia
A tipologia “É o processo de criação - a grafia do tipo e sua impressão” (Cesar, 2009, p.84).
Para a revista JHQ Magazine, optou-se por usar uma tipografia funcional que “atende às
necessidades do projeto gráfico a que nos propomos. Quer utilizemos caracteres de tipografia
clássica ou da elementar.” (Collaro, 2007, p. 8).
As tipologias adotadas são:
Century Gothic: tipografia elementar, influenciada pelo abstracionismo construtivista de
Mondrian e Malevitch. Este tipo foi utilizado, pois suas características farão referência as linhas e
formas retas dos quadros onde se encontram os desenhos.
41
Família tipográfica Century Gothic.
Constantia: tipografia de estilo clássico e serifado. Foi utilizado, pois são excelentes para
textos longos, tornando a leitura mais confortável.
Família tipográfica Constantia.
Segoe Print: tipografia artística semelhante aos traços manuscritos. É usada nos textos dos
balões de diálogos e quadros de texto informativo e narrativo.
Família tipográfica Segoe Print.
42
Cores
“Por propiciar contrastes, as cores têm o potencial de transmitir muito mais
que simples sensações; elas são capazes de codificar informações”. (COLLARO,
2007, p. 17).
As cores utilizadas no projeto gráfico da JHQ Magazine são as seguintes: preto, branco e
tons de cinza. Pensou-se nessas combinações de cores por serem comuns nas histórias em
quadrinho das editoras Marvel Comics e DC Comics. Além disso, as cores citadas possuem um bom
contraste entre si. Por sua vez, essas cores colaborarão para que o novo produto possa se diferenciar
das revistas em quadrinhos nacionais, que usam com frequência o colorido em suas páginas e,
principalmente, transmitir a informação do conteúdo jornalístico com seriedade e maior
proximidade do texto-base produzido.
A seguir, uma sequência de imagens para a edição-piloto e experimental da revista JHQ
Magazine, com o modelo de capa, primeira página do editorial, e de miolo:
43
Protótipo de capa da edição-piloto.
44
Página de editorial e expediente.
45
Miolo de página.
46
Miolo de página.
47
Reportagens em formato original
Para que se compreenda e, mais importante, se visualize todos os detalhes que englobam o
processo de adaptação de uma reportagem literária em estilo tradicional para o formato de Histórias
em Quadrinhos (HQs) – uma vez que alguns dos detalhes podem ser subjetivos no sentido de que
não há regras específicas que norteiem o processo adaptativo – serão apresentadas, a seguir, ambas
as reportagens que compõem o produto pertinente a este Relatório de Projeto Experimental. Elas
estão redigidas na estrutura literária tradicional e apresentadas como tal, de modo que fique claro
que não houve uma pré-disposição ou iniciativa antecipada de torná-las “adequadas” ao formato de
HQs.
Reportagem 1: “José: um homem sem passado”
Por Mário Bentes e Luiz Guilherme Melo
Um homem de meia idade está sentado na escadaria de um prédio comercial de
uma grande cidade. Pele morena e abatida, ele permanece em silêncio com os
olhos fixos em um ponto perdido no horizonte. Apesar da agitação daquela
cidade, do vai-e-vem frenético dos transeuntes pela calçada, do entra e sai do
prédio atrás de si, aquele homem de expressão solitária fica assim, em silêncio,
por alguns minutos, até que finalmente desperta quando uma voz repentina
interrompe sua meditação urbana: “Quanto é a manga?”.
O olhar de José Wilson, então, se ilumina como se acabasse de receber a melhor
das notícias. Não importa quem seja; o velho vendedor de frutas se levanta e
atende seu mais novo cliente como se fosse um grande e inesquecível amigo dos
tempos de infância. “As mangas estão bem fresquinhas”, garante José, sorrindo.
Seu cliente, porém, não o olha nos olhos; escolhe as frutas que julga estarem
melhores, paga e vai embora. José Wilson parece não se importar: ele permanece
com o cativante sorriso de poucos dentes até que o desconhecido dobre a esquina
e se perca na multidão.
Completando um ciclo que se repete ao longo de todo o dia, de todas as semanas e
de todos os meses em mais de dez anos, José volta para o silêncio dos seus
próprios pensamentos, enquanto senta novamente nas escadas encardidas do
antigo edifício Antônio Simões, na Avenida Sete de Setembro, Centro de Manaus.
O rosto daquele homem, antes iluminado, volta a se apagar; o sorriso desaparece.
48
E o olhar, outrora atencioso e sincero, volta a se perder num ponto distante e
desconhecido.
Senhor Wilson
Essa é a rotina diária de José Wilson, que, entre outras informações da própria
vida, desconhece a idade. Acredita ter mais de 40 anos. Ele também não sabe mais
o nome da cidade onde nasceu, embora tenha vontade de voltar para visitar os
parentes e amigos. “Não lembro mais o nome da minha cidade, mas sei que é no
Maranhão”, garante. José diz que tem um filho, mas também não lembra o nome
dele nem a idade. "Acho que ele mora em Macapá com a mãe", arrisca,
acreditando ser um jovem de 16 anos.
O sustento
José Wilson mora sozinho em Manaus há pelo menos dez anos – ele também não
sabe precisar o tempo certo. Habita uma casa no Tancredo Neves, na zona Leste.
Não sabe ler ou escrever, mas sabe contar. “Quanto você ganha por mês?”,
perguntamos. José coça a cabeça e dá um sorriso maroto: “Nem sei. Mas dá pra
viver”, diz, com um ligeiro sorriso que volta após uns minutos de apatia.
Aposentadoria? Não, José Wilson trabalha desde a infância – já foi vendedor de
garrafas de mel e servente de pedreiro –, mas não faz ideia do que é ter uma
carteira assinada. Também nunca esteve em uma sala de aula.
De vez em quando, a conversa é interrompida por um ou outro cliente, que olha
para as vistosas mangas rosas maduras cuidadosamente arranjadas num carrinhode-mão forrado com uma folha de papelão. “Só um minuto”, pede José, que vai ao
encontro de seu mais novo freguês com sorrisos, mesmo que ele nem o olhe nos
olhos. Venda realizada, dinheiro recebido, conferido e guardado no caixa – o
bolso de trás da bermuda. As mangas são ensacadas e entregues, e José senta-se
novamente nos degraus das escadas.
“As vendas são boas, não?”, aproveitamos o embalo. “Tem dia que vende bem,
tem dia que não”, pondera. “Mas é bom não ter chefe”, sorri mais uma vez. José
conta que acorda às seis da manhã. Seu primeiro ponto de parada: feira da Panair.
“Às vezes vou na Manaus Moderna ou na feira da banana”. “Para comprar as
mangas?”, e damos um sorriso. “Eu também vendo abacaxi!”, e o sorriso se abre
num momento de felicidade repentina.
Sem chefe, sem regras. Sem apoio
Ele chega ao Centro por volta das dez da manhã, quando julga ser o melhor
momento para as vendas. Como não tem chefe, José escolhe a carga horária de
cada jornada. “Quando o movimento está muito bom, eu fico até às seis da tarde.
49
Às vezes até às seis e meia, no máximo”. José não tem horário certo, não tem
carteira assinada, nem ajuda do governo. “Não recebo nada do governo. Nenhum
tipo de ajuda”, lamenta, com mais uma vez tendo olhar perdido. “Existe alguma
instituição que represente outros que trabalham como você? Um sindicato, uma
organização?”. José apenas balança a cabeça negativamente, sem voltar o olhar.
José Wilson, idade desconhecida, terra natal desconhecida, nome desconhecido do
filho, renda mensal desconhecida. Direitos desconhecidos. “Eu conheço meus
vizinhos e colegas de trabalho. Gosto de conversar no caminho de volta para
casa”, argumenta. “E o que faz para se divertir, senhor Wilson?”, perguntamos
antes de ir. Depois de arriscar algumas respostas, José pensa melhor e dá a versão
definitiva e quase inacreditável para a pergunta: “Vendo frutas”, e cai na
gargalhada.
Reportagem 2: “Sobre moedas e latinhas”
Por Daniel Jordano
Plém, plém, plém... plém, plém, plém.
O som ecoava e a cada passo para o interior do ambiente ele ficava mais alto. Rodoviária
de Brasília, DF, um local com dezenas de ônibus chegando e saindo sem parar. Várias
pessoas andando e falando, frenéticas, seguindo o ritmo da grande cidade. Em uma
espécie de dupla passagem de nível, muitos carros passam ao lado, por cima e sob os pés
dos milhares de usuários do transporte coletivo.
Plém, plém, plém... plém, plém, plém.
Apesar do caos urbano, o som ecoava no local. Um barulho contínuo interrompido apenas
quando alguém depositava as moedas em uma latinha. A pequena lata era segurada por
uma mulher de 50 anos, sentada no chão próximo de uma das escadas da rodoviária.
Dona Maria José, apesar dos 50 anos, aparentava ter uma idade mais avançada: sinais da
vida difícil que levou no sertão do Ceará. Com a pele morena, com saia marrom, camisa
branca de mangas longas e touca na cabeça que cobria seus cabelos quase brancos, dona
Maria estava ali para tentar assegurar o dinheiro do aluguel de R$ 80.
Ela vive em um albergue em Brasiléia, uma cidade-satélite do Distrito Federal, e pede
esmolas na capital federal. Assim como outras cidades-satélites, Brasiléia surgiu quando
os trabalhadores que construíram a capital federal foram obrigados a sair do plano piloto
após as obras.
Como na maioria das cidades ao redor do plano, ruas de barro contrastam com as
avenidas largas e os imensos viadutos de Brasília. Faltam serviços básicos, como infraestrutura e segurança.
A vida de Maria vida nunca foi fácil. Em Juazeiro do Norte, no Ceará, trabalhava desde
50
criança na roça, sempre afetada pela seca. Ela tem oito filhos, dos quais sete a
acompanharam em uma viagem sem passagem de volta, ou melhor, sem passagem
alguma. Dona Maria chegou há dois anos ao Planalto Central, de carona, na carroceria de
muitos caminhões. Uma viagem tão longa para um tratamento de tireóide. A doença deixa
o pescoço de Dona Maria inchado.
Para fazer o tratamento, ela enfrenta filas madrugada adentro a fim de assegurar o
atendimento em um dos hospitais público de Brasília. Nas escadas da movimentada
rodoviária, dona Maria continua sentada com a latinha na mão, um lugar nada apropriado
para quem está doente.
Duas crianças se aproximam de forma curiosa. Segundo dona Maria, são filhos de uma
conhecida, que também trabalha na rodoviária. Elas também pedem esmolas. Tímidas
logo se afastam. Com olhar perdido, dona Maria se lembra do filho mais velho que
deixou no Ceará. Dos filhos que estão na capital federal, apenas um é maior de idade e
trabalha catando papelão.
Por um instante ela deixa a lata com as moedas no chão, cessando por alguns minutos o
barulho que antes ecoava na movimentada rodoviária. Ela se cala, olha para o outro lado
da pista como se toda a história de sua vida contada ali passasse como um filme em sua
memória. O silêncio é interrompido por um pergunta:
– O que a senhora espera daqui pra frente?
Ela, com simplicidade, responde:
– Só quero voltar pro Ceará, depois que conseguir me tratar.
– E o futuro?
Dona Maria responde em um tom desapontado, apensar de ter a pouca idade, fala como se
já tivesse vivido mais de oito décadas.
– Ah, meu filho não sei. Que Deus me leve...
Em uma cidade de ruas largas, repletas de órgãos públicos e autoridades engravatadas, na
Brasília dos carrões, do dinheiro na cueca e da polícia que bate em professores que
protestam, é comum ver várias “Marias”. Pessoas que nas belas ruas tentam apenas
sobreviver. Dona Maria e sua família não são as primeiras e nem as últimas pessoas a
percorrem o “caminho para o Sul”, seja por qual motivo for.
No andar superior da rodoviária, olha-se a cidade em quase sua totalidade, plana ao pôrdo-sol e, de lá, pode-se ver as “casas” do poder e a “casa” de um homem, que também
tem veio do Sertão, foi para São Paulo e agora ocupa o Palácio do Planalto.
Na saída, o som das moedas na latinha volta a ecoar na rodoviária...
Plém, plém, plém... plém, plém, plém.
51
4 APRESENTAÇÃO DOS RESULTADOS
A avaliação do produto experimental descrito neste documento aconteceu ao longo do dia 23
de dezembro de 2009, quarta-feira. O tempo médio26 de apreciação do exemplar da edição-piloto de
JHQ Magazine, desde a capa, texto de editorial/apresentação, expediente e as duas reportagens (nas
versões originais e quadrinizadas) foi de 15 minutos. Como descrito na metodologia deste trabalho,
a análise adotada por parte dos autores foi a observação não-participante, onde foi possível analisar
o comportamento individual das pessoas envolvidas no processo. À primeira vista, todos os
participantes mostraram-se satisfeitos com o produto, fato constatado mediante o comportamento de
cada um.
Em seguida, cada participante do processo foi consultado e sua opinião/depoimento
requisitada. Predominou a avaliação positiva do produto, onde o processo de adaptação da estrutura
tradicional de reportagem literária – elemento também apresentado no produto – para o formato HQ
não apenas foi aceito pela amostra como também foi elogiado e reforçado como alternativa eficaz
de apreensão de conteúdo e assimilação visual, em lugar dos textos tradicionais de jornais
impressos e revistas periódicas.
Para a estudante Kamila Brito, de 19 anos, a história narrada em quadrinhos é mais fácil de
ler. Ela aprova a opção pela linguagem e pela forma como o personagem foi descrito,
principalmente na versão em imagens sequenciadas, o formato de HQ. Opinião similar tem a
programadora Nathaly Leite, de 24 anos, que afirma que a adaptação de um formato para outro
tornou a história “mais interessante”. “A história contada em quadrinhos fica mais interessante,
mais dinâmica. Para ler uma história sem figuras há necessidade de se ter um pouco mais de
„dedicação‟ do que uma em quadrinhos. Apesar de serem as mesmas histórias, quando se passa para
quadrinho, a história cria formas”. Outro participante foi o desenvolvedor de softwares embarcados
26
Não houve sugestão ou restrição do tempo de leitura. Cada participante foi orientado a avaliar o produto “no
tempo que fosse necessário ou do agrado”.
52
Eduardo Bezerra Valentin, de 25 anos. Ele acredita que o formato em quadrinhos foi capaz de
transmitir a mesma mensagem presente no texto original, apesar de crer que o formato em HQ
poderia ter sido visualmente mais explorado. “Deu uma ligeira impressão de que o HQ foi muito
fidedigno ao texto original. Isso no sentido de que poderia ter sido explorado mais os recursos dos
quadrinhos para passar a informação original”, afirma Valentin, fazendo, no entanto uma ressalva:
“Pareceu, em alguns pontos, que o texto original estava meio que corrido no HQ”.
Entre as poucas pessoas consultadas e que, apesar de terem aprovado o formato, preferiram
o texto original está o estudante Emerson Soares, de 25 anos. Ele acredita que o texto original do
produto avaliado é mais rico em detalhes que o quadrinho, pois, segundo ele, o relato em HQ
padece de maior número de personagens. “O texto como um todo foi muito bem elaborado. Parece
o (programa) Profissão Repórter (Rede Globo)”, afirma o estudante.
53
5 CONCLUSÃO E RECOMENDAÇÕES
O uso de desenhos e ilustrações não é uma novidade em jornais impressos do mundo.
Conforme contam Patati & Braga (2006), o pioneiro do uso de personagens feitos a partir de
desenhos foi o norte-americano William Randolph Hearts (1863-1951), que em outubro de 1896
criou The Yellow Kid (O menino amarelo), que obteve imenso sucesso entre os leitores da época.
Foi a partir deste personagem que surgiu também o uso de frases ou dizeres 27 para dar sentido ao
que o personagem queria dizer – algo que mais tarde acabou por se tornar padrão na estrutura das
Histórias em Quadrinhos (HQs) atuais. Mas até aquele período, não havia iniciativa de fazer com
que os quadrinhos fossem além de sua participação em cadernos especiais dos jornais – algo
compreensível, já que as ilustrações em jornais apenas começavam a galgar seus primeiros espaços
nos matinais.
O potencial descritivo das imagens e ilustrações começou a ser explorado pelo jornalismo –
e não apenas pelos jornais – a partir de 1991, quando o jornalista maltês Joe Sacco deu início a uma
jornada pelo Oriente Médio e por todos os territórios ocupados. Seu objetivo era retratar, de forma
inovadora, tudo o que ele veria e ouviria: conversas com fontes, expressões faciais de cidadãos
comuns, sentimentos que apenas o texto, aliada à ausência do recurso de registro fotográfico, não
seria capaz de traduzir. Deste modo, Sacco – aproveitando seu talento único do desenho – acabou
por criar a série Palestina (2002), que por seu ineditismo e caráter revolucionário dentro da
chamada práxis jornalística conquistou leitores e novos adeptos no Jornalismo.
O trabalho contido neste Relatório – a fundamentação teórica e execução prática da
adaptação de reportagens literárias para o formato HQs – não é, portanto, exatamente uma proposta
inovadora, mas sua execução – em uma localidade cujo público consumidor de jornais ainda não
teve a oportunidade de se ver diante de veículos alternativos de comunicação, salvo os tradicionais
27
Hearst usava as próprias vestimentas do personagem – no caso, uma espécie de “camisolão” – como área destinada
às falas do personagem. A inovação conquistou o público do período.
54
jornais impressos locais, nacionais, e produtos jornalísticos de emissoras de TV e rádio – partiu da
inquietude de seus autores em trazer, assim, a novidade a este mesmo público. Mas não se fazia
apenas necessário importar uma ideia consagrada em todo o mundo por meio da experiência de
terceiros; se fazia fundamental criar nossa própria experiência do processo adaptativo e, ainda,
avaliar a assimilação deste novo formato por parte deste público, o público de Manaus. E, como se
pôde constatar no capítulo destinado à apresentação dos resultados, o formato de Jornalismo em
Histórias em Quadrinhos (JHQ) – implementado com a edição-piloto da revista não-periódica JHQ
Magazine – teve excelente recepção por parte da amostra populacional escolhida, algo que apenas
veio provar as premissas levantadas no início deste projeto.
Mas a consideração mais relevante que se deve fazer é quanto ao processo adaptativo do
formato tradicional de reportagem em estilo literário para o a estrutura clássica de HQs. Como é
comum em qualquer tipo de adaptação de linguagem, trechos se perdem e outros são acrescentados.
Em veículos como literatura e cinema, a preocupação com a perda de essência – ou de similaridade
– acontece, em boa parte, por razões de mercado: um Best-seller mal adaptado aos cinemas pode
resultar em baixa de receitas da película (e prejuízo à produtora) e má vontade da crítica
especializada. O mesmo pode acontecer em adaptações semelhantes, como de livros para
montagens teatrais ou outro tipo de veículo. Por mais que parte do público entenda que os processos
adaptativos em si resultem em mudanças, algumas sutis, de linguagem, a preocupação com o
resultado da adaptação permanece constante. A mundialmente conhecida premiação do Oscar,
realizada em Hollywood, nos EUA, mantém, entre as diversas categorias técnicas-cinematográficas,
o prêmio de “melhor adaptação”, como forma de agraciar os profissionais que conseguem executar
o processo adaptativo com perda mínima de similaridade.
Mas a preocupação de jornalistas em adaptações de reportagens ou de produtos jornalísticos
para outros formatos é peculiar. Ela não parte de um princípio de mercado, mas encontra-se na
obrigação de atender a requisitos e compromissos básicos e, ao mesmo tempo, clássicos da
profissão: a manutenção do caráter jornalístico de veracidade da informação, do comprometimento
55
com a realidade. Há a necessidade de que a reconstituição de acontecimentos, falas e fatos sejam
feitas com extremo rigor, sob pena de cometer crime de anti-jornalismo.
Não à toa cada formato jornalístico possui suas próprias regras, que servem de norte para
que profissionais executem sua apuração e redação dentro de modo que, ao fim, a linguagem
pertinente à cada estrutura possa ser certificada como dentro do que se conhece por rigor
jornalístico. Dessa forma, a grande questão que moveu a execução e elaboração de testes e
avaliações era se o processo adaptativo de um formato para outro comprometeria o rigor do material
original. A resposta é não. Por uma simples razão: o processo adaptativo de uma reportagem
literária para a estrutura de HQs, inevitavelmente, resulta em uma crônica, que, apesar de suas
especificidades, atende aos aspectos jornalísticos.
Segundo Melo (2003), a crônica é um gênero marcado por ser um relato poético do real, ao
menos no Brasil28. Ela associa ideias, usa do recurso de jogos de palavras e conceitos e, ainda, usa o
imaginário como forma de realçar o real. Tais elementos são pertinentes à adaptação de reportagens
para HQs. A partir do relato original, os autores, com uso da linguagem visual sequenciada,
remontam acontecimentos por meio de inserção de elementos subjetivos que, originalmente não
constam nos relatos. Um exemplo são as tomadas ou enquadramentos visuais das primeiras cenas
da reportagem José: um homem sem passado, onde são mostrados enquadramentos hipotéticos da
cidade onde o personagem se situa. Evidentemente, tais detalhes visuais não constam no material
original, mas conforme argumentou Melo, acabam por reforçar o real: a descrição da situação
vivida pelo personagem José naquele dado momento de sua vida. O mesmo acontece na segunda
reportagem, com a exibição de imagens da cidade de Brasília, como forma de ambientar o leitor.
Portanto, os autores do presente trabalho, legitimam o que foi suscitado nas premissas: de
que a adaptação da reportagem em gênero literário para o formato HQs representa alternativa
28
José Marques de Melo ainda explica que, em outros países, a crônica tem sentido de relato cronológico, narração
histórica, como “documento para a posteridade”. A produção de crônicas foi legitimada, segundo ele, pela literatura e
foi com este sentido de relato histórico que o gênero chegou ao Jornalismo.
56
interessante do ponto de vista informativo, já que não compromete o rigor jornalístico; do ponto de
vista teórico, pois engendra uma possível consolidação, na cidade cuja amostra participou do
processo avaliativo, de um formato até então pouco explorado pela imprensa tradicional; social,
uma vez que mostra, com sensibilidade e riqueza de detalhes, as vidas de personagens interessantes
e não pautados pela chamada “grande imprensa” e, também, do ponto de vista cultural, já que insere
o Jornalismo nas camadas populares da sociedade contemporânea que, apesar das mudanças sociais
e políticas deflagradas ao longo dos anos, segue como grande consumidora de revistas em
quadrinhos.
57
6 REFERÊNCIAS
ARBEX, José. Prefácio. Disponível em:
<http://www.conradeditora.com.br/hotsite/palestina/jose_arbex.htm>. Acesso em: 27 out. 2009
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58
Download

CENTRO UNIVERSITÁRIO DO NORTE