UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)
CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE
PRIMEIRA VERSÃO
ISSN 1517-5421
lathé biosa
263
Ano IX, Nº 263 - Volume XXIX - Porto Velho - Agosto/2010 .
ISSN 1517-5421
EDITOR
NILSON SANTOS
CONSELHO EDITORIAL
ALBERTO LINS CALDAS - História
ARNEIDE CEMIN - Antropologia
FABÍOLA HOLANDA - História
JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL - Geografia
MIGUEL NENEVÉ - Letras
VALDEMIR MIOTELLO - Filosofia
EDITORAÇÃO GRÁFICA
ELIAQUIM DA CUNHA & SHEILA CASTRO
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Ana Maria Tavares: A Imagem de um Mundo
Flutuante
EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA
Cyane Pacheco
Ana Maria Tavares: A Imagem de um Mundo Flutuante
Cyane Pacheco
Faculdades Integradas Barros Melo-AESO
Bacharelanda em Artes Plásticas
www.dumaresq.com.br
[email protected]
Há para o corpo do espectador ou amador, um perigo evidente diante de uma obra de arte que ele jamais tenha visto, precisamente naquilo que reverbera
e se estende além de sua expectativa. Pode sentir-se alcançado pelo modo como o artista revela ou oculta sua intenção, como embaralha os sentidos dos índices
evidentes e dissimula seu desígnio.
Ao arriscar apreender o sentido da obra, pode perceber que lhe escapa algo, que desconhece no imediato, a direção e espaço simbólico ou real, daquilo que
lhe fugiu. Sentimos que a mostra “Fortuna e Recusa ou Ukyio-e (A Imagem de um Mundo Flutuante)”, de 2008, da artista Ana Maria Tavares, nos impulsiona para
um não-lugar, para o espaço do silêncio, desde que é avistada, ainda do pátio da Galeria Vermelho, em São Paulo, até o final do percurso de sua visitação. Alguns
expectadores podem decidir ali, compreender o silêncio que saturava o ambiente e, esgueirava-se acobertado, ainda que os conduzisse para um diálogo sobre a
obra.
O conhecimento prévio do tema ou objeto escolhido pela artista, na mostra “Fortuna e Recusa ou Ukyio-e (A Imagem de um Mundo Flutuante)”, não
rompeu diante do olhar do espectador, o impacto e a reflexão, no momento mesmo de sua descoberta. Ter ouvido sobre a mostra poderia conduzir de forma
indireta, o sentido do olhar, levando o corpo para o lugar da imagem, localizando-o no eixo da intenção da artista que, sempre parece mais amplo e fluido e, cada
vez mais complexo em seu rigor conceitual, pelo menos, no momento da criação ou das múltiplas reflexões que foram propostas.
Quando percebemos essa exposição, nos sentimos diante de um universo que requer, simultaneamente, um olhar tecido dos primeiros mistérios surgidos
numa idade ancestral e, do silêncio proustiano, alvoroço da memória, desdobramento do tempo e da palavra.
No momento primeiro ou primeiro trovão, encontramos uma forma retangular, divida ao meio, e posicionada de forma a sugerir elevador, cidade, vazio,
floresta; a geometria que esteou o projeto modernista; a dureza da linha, a precisão do conceito como um passaporte poético da artista, uma elevação transtemporal. No segundo momento ou segundo trovão, o espectador ou amador é convidado a entrar em um “não espaço” ou em um espaço imaterial, sem ilusões,
diante de um vídeo extraordinário, porque o arrebata para uma realidade inescapável, espaço desconhecido, jogo especular como um fio, uma linha que nos
segreda o labiríntico e imponderável tempo, estilhaços de imagens arremessadas em nossa direção, onde entramos e não reunimos nossa própria imagem, antes, a
multiplicamos, brincamos de construir lâminas de passado, presente e futuro, portanto, de nenhuma folha.
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Para resguardar o silêncio, precisamos pensar sobre a audição que foi ali, redimensionada e tornada o eco de uma torre sineira, murmúrio de algo que
instiga a memória, algo que invade o lugar do passado, subvertendo o sentido habitual de uma exposição: o olhar.
O olhar percorre as cachoeiras de seda/água, gênero/múltiplo, delicadeza/corte, inverso daquilo que é mostrado, árvores de um parque: cinema, ilustração,
letras invisíveis, porque indecifráveis, letras desenhadas e expandidas, escritas para os eleitos de outra tribo, de um universo desconhecido e em construção, metros
de leveza indicando uma verticalidade diversa daquela que conhecemos, distante do mercadológico destino da Arte.
A imagem de um eleva-a-dor modernista, quadrados de não-cores, tabuleiro de xadrez, objeto lúdico que sugere ironicamente Duchamp e seus brinquedos,
o xadrez de ladrilhos hidráulicos, de impressões do lastro de uma geração que se reinventa numa velocidade estranha, uma modernidade incipiente num mundo de
tantos “pós”, em um tempo de (des) esperança, em dias saturados do medo de se autoproclamar “e-refletido”, período que flutua em um eixo de luz e fumo.
Obra plantada em uma floresta sugerida, aprisionada em um sonho findo, em vidros de laboratório, conceitos de proveta exigindo respostas imediatas, em
atas e atas, eixo metálico, criação adequada à burocrática sedução, em ambientes de máquinas que deificam os construtores da matriz dos discursos
contemporâneos, elevadores que sobem, descem e falham.
Na obra da artista percebemos a questão do artista múltiplo, que se volta para a compreensão da densidade de um passado próximo, que ainda repercute
no atual. A obra discorre de forma sutil sobre a incongruência na relação entre os artistas e arquitetos na era da construção do projeto, do sonho modernista,
questão que seguiu ideologicamente, o princípio da amizade e não do mérito daqueles que procuravam o sentido cosmopolita da arte.
Ferve no interior da chamada “história da arte” a busca por uma compreensão cada vez mais urgente dos limites, não do que foi visto nos tempos de
exceção, mas daquilo que poderia ter surgido em relação a outros centros artísticos mundiais naquele período. A artista fez uma reflexão sobre a genealogia do
traço, sobre a obra de Oscar Niemeyer, devolve-nos não as construções-esculturas de grandes dimensões do arquiteto, mas a fluidez das curvas, a exatidão dos
cubos, parece buscar a miniatura do discurso, reduzindo-o quando necessário, alargando-o quando encurtado, dissonante quando associado aos artistas daquele
período.
Com brandura e contundência, a artista encontra a dimensão da linha, desde seu princípio, prerrogativa do desenho aos desígnios resultantes de sua busca.
O vão vazio, escrita proposta pela artista, arrebata o espectador, quer pelo uso das palavras desconhecidas, quer pelo alinhavo destas palavras com o
silêncio repleno de presenças impassíveis.
Imaginei que a configuração do ambiente mínimo, como mínima é a maioria das casas daqueles que nunca ouviram falar sobre arte, que foram atropelados
no processo educativo de uma política superdimensionada em aspectos excludentes nesse campo, a artista convida e não avisa sobre o labirinto.
Os espelhos arremessam sobre quem fica diante deles, certamente provocando uma indagação, um convite à imersão em lugares metafóricos da arte, em
instáveis ambientes que associamos ao espírito, quando ela a artista conhece o risco do passo largo do funâmbulo, na linha dos devires.
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A artista construiu um labirinto onde, em uma fração de segundo, se está no centro e atraído pelo movimento, pelo olhar que sonda o balanço da solidez e,
se busca em igual simetria. Os temas teatrais de uma civilização, proferidas por outra, a arte apresentada através do tempo e das descobertas marítimas, aéreas,
imaginárias encontram-se ali, efervescendo.
Para o corpo, ouvir é lembrar, é também ingressar noutro universo, delicadamente penetrar no limite, exatamente no traço que pode ser desenho, tela,
tímpano, lago, pintura, esse corpo passeia no passeio da artista, com certo descompasso resultante da necessidade que há em cada obra vista, de ser anunciada
sem precipitação. A relação entre os dois tempos, em dado período e, entre tempos distintos, questiona o lugar de quem frui, de quem se dispõe a não apenas
olhar o resultado, mas perder-se nele, distender-se, confundir-se e buscar então, uma saída.
Em um mundo de valores contraditórios, a sedução da seda e do espelho surge contundente, insurge-se lâmina fatiando cérebros lentos, incitando-os à
fluidez do olhar. As massagens, análogas à noção do cuidado de si, à subjetividade e ao ato de cerrar os olhos, de suprimi-los enquanto a obra desfaz o eixo do
corpo, diagonal remaneja a gravidade e paralisa a queda, desaparece diante do espectador desatento e reaparece nas divisões propostas por Foucault: o cuidado
de si, o convite a girar, incisões (no olhar?) para que saia o que impede, como um abscesso, a fruição do corpo e de sua reflexão, o retorno do prazer. Estar ali, na
proposta da artista, é permanecer de olhos fechados, serenar a idéia do belo holográfico e fotográfico “carioca”, é presentear-se com tempo e espaço, esquecer-se
no plano da memória. Convivem silenciosamente, aço e papel, seda e acrílico, díspares em épocas distintas, reunidos ali, dádiva da arte, mecanismo de diálogo da
artista.
Um olhar inexistente para nossa tribo, formatada sob o signo da pressa, do ritmo que leva à angústia e à solidão; outro olhar, lentes milenares, suaves e
independentes de nossa vontade ou domínio, tecido de solidão diversa, branda e guerreira, aquela necessária à compreensão dos mistérios da vida.
No centro, jardim de areia, ambiência do sonho, transmutação da matéria, um espelho/lago/lâmina que cega, de tão afiada (Camus e o reflexo maldito),
fatias, camadas espessas do tempo da arte.
A fortuna e a recusa, que se dão no rastro alvo da palavra. Recusa-se a forma de existência que banaliza não apenas a arte, mas a vida contemporânea; a
violência de alternativas que seguem um fluxo descontrolado, que não escondem suas partes desafortunadas; para que a fortuna seja algo desvinculado da
metafísica doente, há que recusar ainda mais as ofertas sedutoras, nas vitrines do poderoso e inumano mercado ocidental.
O espectador torna-se invisível ao se aproximar do lago artificial, do abismo de letras, das mitologias desconhecidas e desconfortantes, ali, estranhas,
transparentes, grafadas em outra língua, parábola de signos estranhos, desenhos para os iletrados. Situa-se naquele lago, a idéia central, o eixo, o outro, ninguém,
o olho ferido.
A alteridade velada e exposta numa brancura asséptica, inviolada, intocada, retoma o que as relações especulares desejam: o desejo e a própria imagem
que, através de tantas lâminas, de espelhos vindos de um labirinto virtual, mostra e fia a espera, a busca pela meditação.
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Não é o centro de uma sala de estar, é o centro de uma sala de não estar, de jamais estar: ninguém se reflete, senão através do outro, ninguém existe,
senão através do olhar do outro, portanto, a artista não convida, exerce o poder de sua construção para indagar seu espanto diante do mundo, refaz a aderência
entre mundos outros.
A artista descarna a economia, a filosofia, a arte, a fotografia, a pele da palavra “outro”, o espectador distraído, alguém deixa o ambiente, levando as
imagens consigo. Um lago profundo e transparente para os olhos que deveriam verter lágrimas e regozijar-se diante dele, lágrimas ocultas, brilhantes.
Narciso, no lago imaginado pela artista, apenas vê o outro ou o zigurate invertido, enterrado, ascensão improvável, para quem desconhece a recusa.
Ninguém demora tanto em um lugar assim, como fluida e vertiginosa é o que chamamos de vida, aqui e lá.
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