UFMA Universidade Federal
do Maranhão
Caminhadas de universitários de origem popular
UFMA
UFMA
Copyright © 2009 by Universidade Federal do Rio de Janeiro / Pró-Reitoria de Extensão.
O conteúdo dos textos desta publicação é de inteira responsabilidade de seus autores.
Coordenação da Coleção: Jailson de Souza e Silva
Jorge Luiz Barbosa
Ana Inês Sousa
Organização da Coleção:
Monique Batista Carvalho
Francisco Marcelo da Silva
Dalcio Marinho Gonçalves
Aline Pacheco Santana
Programação Visual:
Núcleo de Produção Editoria da Extensão – PR-5/UFRJ
Coordenação:
Claudio Bastos
Anna Paula Felix Iannini
Thiago Maioli Azevedo
C183
Caminhadas de universitários de origem popular : UFMA / organizado por Ana Inês Souza,
Jorge Luiz Barbosa, Jailson de Souza e Silva. — Rio de Janeiro : Universidade Federal
do Rio de Janeiro, Pró-Reitoria de Extensão, 2009.
120 p. ; il. ; 24 cm. — (Coleção caminhadas de universitários de origem popular)
Ao alto do título: Ministério da Educação. Secretaria de Educação Continuada,
Alfabetização e Diversidade. Programa Conexões de Saberes : Diálogos entre a Universidade e
as Comunidades Populares.
Parceria: Observatório de Favelas do Rio de Janeiro.
ISBN: 978-85-89669-41-2
1. Estudantes universitários — Programas de desenvolvimento — Brasil. 2. Integração
universitária — Brasil. 3. Extensão universitária. 4. Comunidade e universidade — Brasil. I.
Souza, Ana Inês, org. II. Barbosa, Jorge Luiz, org. III. Silva, Jailson de Souza e, org. VI.
Programa Conexões de Saberes : Diálogos entre a Universidade e as Comunidades Populares.
V. Universidade Federal do Maranhão. VI. Universidade Federal do Rio de Janeiro. VII.
Observatório de Favelas do Rio de Janeiro.
CDD: 378.81
Ministério da Educação
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade
Programa Conexões de Saberes: diálogos entre a universidade e as comunidades populares
Organizadores
Jailson de Souza e Silva
Jorge Luiz Barbosa
Ana Inês Sousa
UFMA
Pró-Reitoria de Extensão - UFRJ
Rio de Janeiro - 2009
Coleção
Presidente da República
Luiz Inácio Lula da Silva
Ministério da Educação
Fernando Haddad
Ministro
Secretaria de Educação Continuada,
Alfabetização e Diversidade – SECAD
André Luiz de Figueiredo Lázaro
Autores
Abimaelson Santos Pereira
Alexsandro Costa Ferreira
Ana Paula de Albuquerque Martins
Cláudia Nunes da Silva
Danielle Lima Costa
Secretário
Eldimir Faustino da Silva Junior
Armênio Bello Schmidt
Elieser Barros Madeira
Diretoria de Educação para a Diversidade - DEDI
Eliete da Silva Cruz
Leonor Franco de Araújo
Coordenação Geral de Diversidade – CGD
Iracema Andrade Luz
Jardiane Moura Abreu
Jefferson Veras Rodrigues
Programa Conexões de Saberes:
diálogos entre a universidade e
as comunidades populares
Jorge Luiz Barbosa
Jailson de Souza e Silva
Coordenação Geral
Maria Cristina Bunn
Coordenação Geral do Programa Conexões de Saberes/UFMA
Maria Helena Seabra Soares de Brito
Coordenação Acadêmica
Jonivaldo Lopes Santos
Josenira dos Santos Veras
Lidiana Diniz Azevedo
Lourdilene de Fàtima Teixeira Ferreira
Lucélia Cristina Carvalho Ferreira
Lucileide Martins Borges
Marcio Vinícius Campos Borges
Maria Domingas Ferreira Castro
Fernanda Santos Pinheiro
Maria de Lourdes Andrade Pereira
Coordenação Executiva – Campus I
Maya Dayana Penha da Silva
Emilene Leite de Sousa
Paulo Leles Neto
Coordenação Executiva - Campus II
Raquel Moreira Meireles Silva
Carlos André Sousa Dublante
Ricardo Waldrean Melo da Silva
Articulador e Monitor na parceria com o Programa Escola Aberta
Rogério dos Santos Cardoso
Universidade Federal do Maranhão
Natalino Salgado Filho
Reitor
Antônio José Silva Oliveira
Vice-Reitor
Antônio Luis Amaral Pereira
Pró–Reitor de Extensão
Prefácio
A sociedade brasileira tem como seu maior desafio a construção de ações que permitam, sem abrir mão da democracia, o enfrentamento da secular desigualdade social e econômica que caracteriza o país. E, para isso, a educação é um elemento fundamental.
A possibilidade da educação contribuir de forma sistemática para esse processo implica uma educação de qualidade para todos, portanto, uma educação que necessita ser efetivamente democratizada, em todos os níveis de ensino, e orientada, de forma continua, pela
melhoria de sua qualidade. No atual governo, o Ministério da Educação persegue de forma
intensa e sistemática esses objetivos.
Conexões de Saberes é um dos programas do MEC que expressa de forma nítida a luta
contra a desigualdade, em particular no âmbito educacional. O Programa procura, por um
lado, estreitar os vínculos entre as instituições acadêmicas e as comunidades populares e,
por outro lado, melhorar as condições objetivas que contribuem para os estudantes universitários de origem popular permanecerem e concluírem com êxito a graduação e pós-graduação nas universidades públicas.
Criado pelo MEC em dezembro de 2004, o Programa é desenvolvido a partir da
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD-MEC) e representa a evolução e expansão, para o cenário nacional, de uma iniciativa elaborada, na
cidade do Rio de Janeiro no ano de 2002, pela Organização da Sociedade Civil de Interesse
Público Observatório de Favelas do Rio de Janeiro. Na ocasião constitui-se uma Rede de
Universitários de Espaços Populares com núcleos de formação e produção de conhecimento
em várias comunidades populares da cidade. O Programa Conexões de Saberes criou,
inicialmente, uma rede de estudantes de graduação em cinco universidades federais,
distribuídas pelo país: UFF, UFMG, UFPA, UFPE e UFRJ. A partir de maio de 2005, ampliamos
o Programa para mais nove universidades federais: UFAM, UFBA, UFC, UFES, UFMS,
UFPB, UFPR, UFRGS e UnB. Em 2006, o Ministério da Educação assegurou, em todos os
estados do país, 33 universidades federais integrantes do Programa, sendo incluídas: UFAC,
UFAL, UFG, UFMA, UFMT, UFPI, UFRN, UFRR, UFRPE, UFRRJ, UFS, UFSC, UFSCar,
UFT, UNIFAP, UNIR, UNIRIO, UNIVASF e UFRB.
Através do Programa Conexões de Saberes, essas universidades passam a ter, cada uma,
ao menos 251 universitários que participam de um processo contínuo de qualificação como
pesquisadores; construindo diagnósticos em suas instituições sobre as condições pedagógicas dos estudantes de origem popular e desenvolvendo diagnósticos e ações sociais em
comunidades populares. Dessa forma, busca-se a formulação de proposições e realização de
1
A partir da liberação dos recursos 2007/2008 cada universidade federal passou a ter, cada uma, ao
menos 35 bolsistas.
práticas voltadas para a melhoria das condições de permanência dos estudantes de origem
popular na universidade pública e, também, aproximar os setores populares da instituição,
ampliando as possibilidades de encontro dos saberes destas duas instâncias sociais.
Nesse sentido, o livro que tem nas mãos, caro(a) leitor(a), é um marco dos objetivos do
Programa: a coleção “Caminhadas” chega a 33 livros publicados, com o lançamento das 19
publicações em 2009, reunindo as contribuições das universidades integrantes do Conexões de Saberes em 2006. Com essas publicações, busca-se conceder voz a esses estudantes
e ampliar sua visibilidade nas universidades públicas e em outros espaços sociais. Esses
livros trazem os relatos sobre as alegrias e lutas de centenas de jovens, rapazes e moças, que
contrariaram a forte estrutura desigual que ainda impede o pleno acesso dos estudantes das
camadas mais desfavorecidas às universidades de excelência do país ou só o permite para os
cursos com menor prestígio social.
Que este livro contribua para sensibilizar, fazer pensar e estimular a luta pela construção de uma universidade pública efetivamente democrática, um sociedade brasileira mais
justa e uma humanidade cada dia mais plena.
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade
Ministério da Educação
Observatório de Favelas do Rio de Janeiro
Sumário
Apresentação
Maria Cristina Bunn ............................................................................................. 9
Respiro a minha arte
Abimaelson Santos Pereira ................................................................................ 11
Motivações que me levaram a alcançar meus objetivos
Alexsandro Costa Ferreira ................................................................................. 15
Memorial
Ana Paula de Albuquerque Martins .................................................................. 18
Primeiro capítulo
Cláudia Nunes da Silva ...................................................................................... 21
Memorial
Danielle Lima Costa ........................................................................................... 30
O périplo de um perdedor de tempo
Eldimir Faustino da Silva Junior ...................................................................... 34
Participações especiais
Elieser Barros Madeira ....................................................................................... 39
Projeto “Conexões de Saberes”
Eliete da Silva Cruz ............................................................................................ 42
“É caminhando que se faz o caminho...”
Iracema Andrade Luz .......................................................................................... 45
Detalhes de uma história inesquecível
Jardiane Moura Abreu ....................................................................................... 52
A luta antecede a vitória
Jefferson Veras Rodrigues .................................................................................. 57
Vencendo desafios
Jonivaldo Lopes Santos ...................................................................................... 61
De onde vim e para onde eu quero ir agora
Josenira dos Santos Veras .................................................................................. 64
Meus pais, minha vida
Lidiana Diniz Azevedo ........................................................................................ 69
In Memorian
Lourdilene de Fátima Teixeira Ferreira ............................................................ 71
Tudo vale a pena, se a alma não é pequena
Lucélia Cristina Carvalho Ferreira .................................................................. 76
Os primeiros passos de uma formação contínua - a educação
Lucileide Martins Borges ................................................................................... 80
Marcio Vinícius Campos Borges
Marcio Vinícius Campos Borges ........................................................................ 85
Pequenas ações para uma grande oportunidade
Maria Domingas Ferreira Castro ...................................................................... 89
Pão, educação e arte
Maria de Lourdes Andrade Pereira ................................................................... 91
História de uma vida de lutas
Maya Dayana Penha da Silva ............................................................................ 95
Diário de superação
Paulo Leles Neto ............................................................................................... 100
Até a última gota
Raquel Moreira Meireles Silva ........................................................................ 104
Eu pela vida
Ricardo Waldrean Melo da Silva ..................................................................... 110
História de vida
Rogério dos Santos Cardoso ........................................................................... 115
Apresentação
Os autores que expõem aqui suas histórias de vida, seus sofrimentos, sonhos, realizações,
esperanças, representam o segmento da sociedade que o “Projeto Conexões de Saberes:
diálogos entre a universidade e as comunidades populares” objetiva abarcar – a juventude
que traz em sua trajetória a marca da exclusão social.
Criado em dezembro de 2004 pela SECAD/MEC em parceria com o Observatório
de Favelas, o Programa Conexões de Saberes tem entre seus objetivos dar suporte à
permanência e à qualificação de estudantes de origem popular na Universidade e,
capacitá-los para o desenvolvimento de ações sociais transformadoras nas comunidades
de origem. No caso do estado do Maranhão, a Universidade Federal está localizada em
São Luís, distante geograficamente de inúmeros municípios de origem dos estudantes
com perfil para ingresso no Programa e nas comunidades de entorno da Universidade.
Assim como desenvolvido em 33 universidades federais, o Programa na UFMA
iniciou em 2006. Daquele período temos o registro e a produção do primeiro grupo de
conexistas nesta publicação. Percebemos nos escritos aqui apresentados, a expressão
e realização do primeiro momento de diálogo entre a universidade e as comunidades
populares. Os representantes daquelas comunidades, os estudantes universitários de
origem popular selecionados para participarem do Conexões, trazem à tona a realidade
social desigual de nosso país. Estes jovens autores, ao relatarem suas trajetórias
tatuadas pelas feridas sociais, impõem à universidade brasileira encarar o cenário do
Brasil real.
Numa realidade como a maranhense, com os piores indicadores sociais do Brasil,
em que grande parte da população tem o menor poder aquisitivo do país, com quadro de
concentração de renda e poder acintosos, a Universidade Federal do Maranhão tem a
rica oportunidade, a partir da experiência do Programa Conexões, de enxergar
verdadeiramente quem é a comunidade acadêmica que a constitui. E dessa percepção, a
possibilidade de assumir a responsabilidade social e política, de construir instrumentos
de democratização do saber e de emancipação dos sujeitos que fazem a Universidade. A
inserção social destes estudantes, a partir de sua qualificação, e a participação das
comunidades populares nas ações extensionistas construídas pela Universidade e
protagonizadas por estudantes oriundos daquelas realidades, traz efetivamente o
potencial transformador desejado por aqueles que têm compromisso com a educação
pública e de qualidade neste país.
Os relatos corajosos dos 25 bolsistas do Programa Conexões da Universidade
Federal do Maranhão vêm a compor com as experiências similares de outras
universidades do país, um brado em defesa de políticas educacionais inclusivas e
permanentes para a juventude brasileira.
Universidade Federal do Maranhão
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É com alegria e orgulho que parabenizo os autores deste “Caminhadas”, certa de que
ocuparão os espaços sociais que desejarem se as Instituições deste país assegurarem condições
de acesso e permanência no ensino superior. Vejo na continuidade e aperfeiçoamento do
Programa Conexões de Saberes um destes caminhos.
Profa. Dra. Maria Cristina Bunn
Coordenadora Geral Programa Conexões - UFMA
Respiro a minha arte
Abimaelson Santos Pereira *
A vida é uma incógnita que a cada dia deve ser resolvida; caso contrário, os dias
passarão e teremos a angustiante sensação de que, enquanto o mundo gira, nossa mente o
acompanha, e a vida segue sem um foco fixo, sem um objetivo, ou sem uma meta a ser
cumprida. Se a mente acompanhar este movimento cíclico do planeta de forma não
perceptível, a nossa razão de ser, aprenderemos com a vida, “mais cedo ou mais tarde” que,
sem um foco, sem uma meta ou sem um objetivo, não chegaremos a lugar algum ou, talvez,
até possamos chegar a algum lugar devido à relatividade que a vida nos oferece, contudo,
nem sempre o caminho proposto pelo acaso é o mais satisfatório.
É incrível como existe uma gama de caminhos que traça a nossa trajetória, basta que
o sol se levante para nos depararmos com pessoas e/ou situações que podem transformar
todo o nosso universo, e é neste ponto que mora o grande perigo. Saber dizer sim e saber
dizer não aos acontecimentos que nos rodeiam, sobretudo quando estamos em um ambiente
que chega a ser febril e poético, nocivo e vital, que nos leva sempre aos extremos, que nos
proporciona sempre a utilização de um ou de outro, nos coloca entre querer viver ou querer
apenas manter-se vivo. Refiro-me ao que a sociedade denominou periferia, mas não
“periferia1” como encontramos nos dicionários, e sim uma periferia nomeada pela classe
alta de nossa hostil sociedade como lugar onde a marginalidade impera, onde ser negro é
sinônimo de marginal. Mas essa sociedade não sabe que é na periferia que a arte acontece,
onde a cultura é vivenciada e produzida, posto que a classe alta por si só não produz cultura,
exceto aquela cuja meta é simplesmente comercial.
Em meio a esse turbilhão de caminhos é que se desenvolve a minha simples e
desafiadora vida, simples pelo fato de crescer em meio a muita pobreza financeira, e
desafiadora devido às grandes possibilidades de ganhar dinheiro fácil, mas por mais cruéis
que sejam as condições estruturais de um bairro pobre por falta de políticas públicas, ter
uma base familiar que nos dê sustento para ultrapassarmos nossos limites é essencial.
Mesmo com as dificuldades, sempre tive grande força familiar acompanhando minha
formação, posto que o Estado nunca cumpriu com seu papel no pólo que resido. Quando falo
de cumprir papel, não me refiro a políticas de assistencialismo, mas a intervenções contínuas
e práticas, através das sonhadas políticas públicas, e de um trabalho cultural que vise à
formação, tanto voltada para o mercado de trabalho, quanto para o desenvolvimento críticosocial e ideológico, tendo como foco alcançar uma formação que integre de crianças a idosos.
* Graduando em Licenciatura em Teatro na UFMA.
1
cf.HOLANDA: “Numa cidade, a região mais afastada do centro”, p. 528.
Universidade Federal do Maranhão
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Sabemos que a educação básica ainda é um dos grandes meios de transformação
social, é a partir da escola que somos instruídos a decodificar regras e normas de nossa
sociedade, onde aprendemos as regras do jogo, onde nos deparamos, de forma mais precisa,
com os conceitos em torno do certo e do errado e ficamos cientes de direitos e deveres,
sobretudo, de onde somos lançados para o mundo. Todavia, essa instituição, como se encontra
hoje, é um dos maiores meios de propagação de vários tipos de preconceitos, às vezes de
forma bem sutil e outras vezes de forma bem clara, fazendo da escola, a vilã da sua formação.
Na educação básica, aprendi muitos conceitos e o porquê de muitos questionamentos
vivenciados pelo homem. Algumas dessas aprendizagens nunca serviram de fato para o
meu desenvolvimento como cidadão e outras me instruem diariamente, mas existe algo que
a escola não me ensinou e tive que aprender dentro do seu universo: aprender a viver e a
escapar das armadilhas que o espaço educacional nos traz. Orgulho-me de relatar que estudei
em uma das escolas mais cobiçadas no Maranhão, o CINTRA, e é de lá que tenho grande
base da vida, porque a instituição me ensinou a refletir quando precisei, e a convivência
com fatos nos leva a decisões. Quando estava no Ensino Médio, percebi que disciplinas
como Teatro, Filosofia e Sociologia deveriam ter um respaldo maior das instituições de
ensino, pois nos levam a questionamentos essenciais em relação ao mundo.
Paralelo à formação educacional escolar, quem sempre teve um papel primordial na
minha caminhada, ou quem sabe “corrida social”, foi a Pastoral da Juventude. Grande parte
da minha experiência com trabalhos na comunidade deve-se a esta Pastoral que sempre me
carregou no colo e me ensinou a ser sujeito da minha própria história. Infelizmente a escola
ainda não nos proporciona o fato de sermos protagonistas do nosso teatro, mas sim, que
possamos construir uma vida voltada para a formação profissional, sem uma visão aplicada
das relações sociais, de quem é você na sociedade e qual seu papel, e nem tão pouco no que
se refere à história do nosso povo, à origem da nossa cultura e das nossas tradições religiosas.
Cabe então, procurarmos meios de transformar nossa história em páginas concretas e
definidas; saber fazer história, e a Pastoral da Juventude ajudou na construção da minha.
Um dos capítulos deste maravilhoso e inacabado livro que se chama vida, reservo ao
poder de transformação que a arte causa, em especial a arte que respiro e que me consome,
que me faz levantar todos os dias e perceber que vale a pena lutar por uma meta, por um
objetivo, por um foco, é o Teatro, aquele que me encanta, me define, mostra que a vida pode
ser diferente e que posso transformar sonhos em realidades; que posso, através desta arte
secular, ajudar na educação de um povo que é educado historicamente a se esconder por
detrás de máscaras, imposições que são feitas por meio do Estado e da mídia. É tempo de
derrubarmos todas as máscaras que nos são impostas, e o Teatro é instrumento fundamental
para o reconhecimento da história de cada ser humano, o elo entre o meu eu interior e o meu
mundo exterior.
Meu primeiro contato com este universo fictício, concomitantemente real, foi ainda
na 8a série, e com o passar dos tempos, pude ver que não poderia fazer outra coisa na minha
vida como forma de trabalho. Os anos foram passando e então acontece o grande momento
de todo estudante secundarista, a hora de prestar vestibular, e sem ter nenhuma dúvida,
escolhi Teatro Licenciatura.
O Vestibular, sem sombra de dúvida, é um desafio que mexe muito com o plano
psicológico de cada um, sobretudo quando se participa de um seletivo que deixa clara a
ineficiência de avaliar quem entra na universidade. Um processo seletivo que não prova a
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Caminhadas de universitários de origem popular
capacidade intelectual de ninguém e que, em vez de incluir, exclui. Mas estava disposto a
passar por essa etapa da vida, mesmo sabendo que seria um grande desafio ter que mostrar
minha capacidade perante um processo totalmente desacreditado, mas que, por sua vez, é o
único meio de ingresso na instituição de ensino superior público. Todavia, fui em frente e
consegui ser aprovado segundo os critérios utilizados pela Universidade, mesmo sem
subsídios financeiros suficientes para fazer um curso pré-vestibular ou uma revisão teórica,
pois todo rendimento que dispunha em tal momento foi destinado ao pagamento da absurda
taxa de inscrição do vestibular.
A universidade era o começo de uma nova vida, posso afirmar que ela é “A descoberta
de um mesmo novo mundo2”. É como descobrir um universo que já existe, todo dia uma luta
diferente, uma busca por sobrevivência, lugar em que encontramos vários semblantes, uns
se intitulam elite pensante ou intelectuais, mas que, na maioria das vezes, entram titulados
de calouros e conseguem se formar e não deixam de ser calouros; outros que conseguem
ultrapassar barreiras e alguns que simplesmente passam pela universidade, um espaço onde
a segregação social é mais que nítida. De um lado, encontramos uma assistência absoluta às
áreas de saúde e tecnologia, e de outro, um descaso com as áreas das ciências humanas e
sociais. Descaso este às vezes camuflado por reformas fictícias na estrutura física, sobretudo
dos cursos de Licenciatura. Triste realidade. Porém, o que me dá mais fervor para conseguir
ultrapassar os limites e romper com as máscaras existentes na universidade.
É óbvio que, por mais problemática que seja a estrutura de uma universidade pública,
existem fatores positivos agregados à formação. Os programas e projetos de acesso e
permanência merecem destaque, pois são através deles que muitos estudantes conseguem
manter e administrar a vida acadêmica, programas como bolsas trabalho, fiscalização do
vestibular, bolsa de língua estrangeira, bolsa alimentação e outros.
É bem verdade que a universidade é um espaço amplo de discussões e formações diversas
no que se refere à estrutura educacional que temos nos dias contemporâneos. Um envolvimento
direto entre o educador e o educando e a transformação da educação básica. Ressalta-se ainda
a luta do movimento estudantil de esquerda por uma universidade plural, gratuita e laica,
onde o educando possa ter respeitados seus direitos e exercer com vigor os seus deveres.
Sinto-me bem em tentar decodificar a natureza acadêmica. Todos os dias são para
buscar a redescoberta deste universo fantasmagórico e realista. Existe uma luta constante
em não nos deixarmos ser engolidos por uma estrutura que muitas vezes pode ser
massificadora e cruel.
Um dos grandes ganhos que tive até este momento na universidade é a participação no
programa “Conexões de Saberes”. O convívio com pessoas de outros cursos de graduação,
e conseqüentemente, uma troca de experiências profissionais e de vida, serve para estruturar
ainda mais a formação pessoal e coletiva. Tal programa é de suma importância para a
comunidade, assim como para a academia, pois é um espaço destinado a um diálogo aberto
e sincero entre o conhecimento científico e o empírico. Contudo, como todos os programas,
o “Conexões” tem seus problemas estruturais, que acabam empurrando um pouco o processo
a ser desenvolvido na sua prática em prol da população circunvizinha da universidade, mas
2
Título de um espetáculo teatral encenado no ano de 2006 na Universidade Federal do Piauí por
uma companhia teatral maranhense chamada “Xibé cia. Cênica”, na primeira Semana de Arte
Noêmia Varela.
Universidade Federal do Maranhão
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é um programa de grande relevância, pois nos capacita a um diálogo aberto e diferenciado
acerca do acesso e permanência na universidade. Ainda existe muito a ser melhorado, mas
estamos dando passos largos com o programa “Conexões de Saberes”. O próprio seminário
nacional do programa e o fórum Nacional de Estudantes de Origem Popular e nos deixam
claras a grande preocupação em proporcionar o acesso e a conseguinte permanência na
instituição de ensino público superior.
A corrida continua, pois a vida é uma batalha inacabável, onde somos opressores e
oprimidos, condutores e condução, somos fruto da soma dos nossos antepassados e respiramos
um presente deixado de herança. Nossa função é só uma: transformar, ser agente transformador
da sociedade através da educação e da ligação entre o que é denominado científico e o que
é denominado empírico. Ainda falta muito para a sociedade se mostrar como uma via de
mão dupla, onde tanto posso dar como posso receber, onde posso transformar e me deixar
ser transformado. Existem muitas pessoas que agem desta maneira, mas são apenas exceções.
Contudo, em um futuro que esperamos que não seja muito distante, essas pessoas serão
maioria e é nessa certeza que, a cada levantar do Sol, levanta a esperança de um país melhor,
digno do seu povo, e sobretudo, voltado para o povo, perpassando por todas as camadas
sociais, estruturando assim cada família, dando dignidade e educação de qualidade a todos.
E essa ainda é a minha busca. E a sua, você já descobriu?
14
Caminhadas de universitários de origem popular
Motivações que me levaram a
alcançar meus objetivos
Alexsandro Costa Ferreira *
Minha história de vida é marcada por muitos desafios e muita superação. Sempre
morei com meus pais e com minha irmã, que se chamam: Maria Antonia Costa Ferreira
(minha mãe), José Luis Costa Ferreira (meu pai), Alessandra Costa Ferreira (minha irmã) e,
há mais ou menos 4 anos, ganhei mais uma irmã, a Brenda, uma afilhada dos meus pais,
como se fosse minha irmã.
Meus pais sempre priorizaram os meus estudos. Mesmo nos momentos mais difíceis,
eles fizeram questão de não abrir mão dos nossos estudos.
Minha trajetória para chegar até a universidade começou no Colégio “Henrique de La
Roque”, uma escola particular, onde, graças aos meus pais, consegui uma bolsa para estudar.
Lá, estudei do jardim (alfabetização) até a 4ª série do Ensino Fundamental; todo esse tempo
com bolsa de estudos.
A partir da 5ª série, tive que mudar de escola, pois a bolsa que meus pais ganhavam
para custear meus estudos foi interrompida, fazendo com que eu tivesse de mudar de uma
escola particular para uma escola pública.
No princípio, não queria sair da minha antiga escola. Como meus pais tinham perdido
o beneficio da bolsa de estudos, tive que me mudar para outro colégio.
Essa foi mais uma etapa da minha vida em que pensei que não ia conseguir me adaptar
a essa nova escola, não só a ela, mas também, em ter que conhecer outras pessoas. Muito
pelo contrário, me adaptei muito rápido.
A escola na qual estudei da 5ª à 8ª séries do Ensino Fundamental chama-se “Bandeira
Tribuzzi”. Nessa escola, vivi grandes momentos da minha vida, encontrei grandes amigos
e me identifiquei muito com o ambiente escolar.
Nessa escola, vivi momentos maravilhosos como minha primeira namorada, grandes amigos
e professores que me ensinaram não só em sala de aula, como também, me revelaram grandes
histórias de vida e me ensinaram a ter força e garra para os obstáculos que ela nos coloca.
No final de 1996, prestei exame para duas escolas públicas, CEFET e “Liceu
Maranhense”. Fui aprovado nesta última, onde vivi grandes momentos da minha juventude.
Conheci grandes amigos, participei da seleção de futsal, uma das minhas paixões.
No “Liceu” passei três anos maravilhosos. Lá, vivi grandes momentos, conheci pessoas
que marcaram muito minha vida. No ano de 1999, meu ciclo no “Liceu” terminou, pois concluí
o 3º ano do Ensino Médio, e a partir daí , começou uma grande batalha para entrar na Universidade.
* Graduando em Geografia na UFMA.
Universidade Federal do Maranhão
15
No ano 2000, comecei a estudar para meu primeiro vestibular, consegui uma nova
bolsa de estudos para fazer um curso pré-vestibular. Nesse ano, prestei vestibular para
Educação Física, infelizmente não consegui ser aprovado, apesar de todo esforço que havia
feito. No ano seguinte, em 2001, não desisti de prestar o vestibular, só que, ao invés de fazer
para Educação Física, descobri uma grande paixão: a Geografia. Nesse ano, consegui
aprovação, infelizmente só na 1ª etapa.
Em 2002 tentei novamente o vestibular para Geografia, agora em 2 universidades:
UFMA e UEMA, porém, mais uma vez, não consegui a aprovação. Para mim foi um dos
piores momentos, pois cheguei a perder as esperanças de cursar o Ensino Superior.
Nesse mesmo ano, em meados do mês de junho, quando eu já estava à procura de um
emprego, surgiu um programa do governo estadual chamado “Vestibular da Cidadania”, que
consistia em um curso preparatório para o vestibular, cujo objetivo era beneficiar estudantes
oriundos de escolas públicas, que contariam com uma bolsa no valor de 100 reais.
Meu pai insistiu para que eu fizesse a inscrição para o programa. Eu não queria fazer,
mas com muita insistência, fiz a inscrição nas provas. Participei das provas de classificação
para o curso, graças à insistência do meu pai. Para nossa satisfação, consegui ser aprovado
para o programa “Vestibular da Cidadania”.
A partir daí, começou uma nova fase na minha vida, me dedicava exclusivamente aos
estudos, pois estava recebendo para estudar; me dediquei como nunca, estudava no curso pela
manhã e pela tarde, e à noite estudava em casa e acordava às 4:30h para voltar a estudar.
Em 2003, foi um ano muito especial na minha vida, um dos mais importantes de todos
que já vivi, pois nesse ano prestei vestibular com a certeza de que iria conseguir uma vaga.
Então, fiz as provas para as mesmas universidades, e no dia 3 de fevereiro de 2003, prestei
vestibular para a UFMA, conseguindo aprovação na 1ª etapa.
A partir daí, a rotina de estudos se intensificou, fiz a 2ª etapa com muita convicção de
que iria passar. Quando terminei a prova, falei para mim mesmo: “Missão Cumprida! Dei o
melhor de mim, agora é só esperar o resultado”.
No dia 13 de março de 2003, saiu o resultado. Eu estava em casa com dois primos. Foi
quando eu falei: “Vamos à UFMA ver o resultado?” Pois eu já estava muito ansioso.
Ao chegarmos lá, deparamos com muita gente, era tanta gente que eu não consegui
olhar onde estava a listagem do meu curso, saí do local e fiquei esperando abrir espaço para
que eu pudesse olhar a lista dos aprovados. Cinco minutos depois, olhei meus primos
voltando do mesmo lugar onde eu estava, dando-me uma grande notícia: “Alex, teu nome
esta na lista!” Não acreditei e falei: “Vocês estão brincando?” Tive que ir lá e comprovar
com meus próprios olhos e lá estava meu nome: Alexsandro Costa Ferreira, aprovado em
13º lugar. Vibrei muito e agradeci a Deus por tudo, peguei o telefone e liguei para casa para
dar a grande noticia. Meus pais também vibraram muito.
Quando cheguei em casa, todos me abraçaram e meu pai começou a chorar e eu também
comecei a chorar. Lembrei que foi graças à insistência deles que consegui essa grande vitória.
Só que minha trajetória de conquistas não pára por aí, também fiz o vestibular para a
UEMA e também lá consegui ser aprovado para o mesmo curso. Mas acabei optando por
ficar só na Federal, pois moro no Bairro que fica em frente à UFMA.
Minhas conquistas também não se limitaram somente aos estudos. Nesse mesmo ano
conheci uma pessoa maravilhosa chamada Mara Francy que Deus colocou na minha vida, uma
pessoa que, junto com minha família e Deus, me dá forças para superar a cada dia os obstáculos.
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Caminhadas de universitários de origem popular
Depois da euforia de passar no vestibular, vivi um grande dilema, pois meu pai perdeu
o emprego e só minha mãe continuou trabalhando; estávamos passando por grandes
dificuldades financeiras. Com isso, eu vi meus pais fazendo o maior esforço para pagar as
contas e colocar comida em nossa mesa. Vendo todo esse esforço de meus pais, pensei outra
vez em desistir para poder procurar um emprego. Contudo, meus pais não deixaram com
que eu desistisse, dizendo para que nunca abrisse mão dos meus ideais, que era sempre
cursar um ensino superior e assim alcançar meus objetivos.
Graças a Deus, meu pai conseguiu um emprego e eu, graças ao esforço dos meus pais,
não tive que desistir da universidade. Hoje, estou no 7º período do curso de Geografia da
Universidade Federal do Maranhão e estou aqui relatando um pouco da minha vida, até
chegar à universidade e deixar aqui um pequeno recado: sempre procure motivações para
alcançar seus objetivos. No meu caso, a minha motivação foram meus pais.
Universidade Federal do Maranhão
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Memorial
Ana Paula de Albuquerque Martins *
Devo confessar que a idéia de escrever sobre mim, sobre a história da minha vida,
inicialmente, me assusta, e na verdade, me deixa sem palavras. Pensei muito, antes de
iniciar, imaginando como tornar público algo tão reservado, que é a forma como me percebo
ou como percebo a minha história. Fiquei procurando uma maneira de escrever tentando
não ser superficial, o que aconteceria se levasse em conta somente o receio de que as
pessoas me vejam, e por outro lado, sem deixar desveladas coisas realmente íntimas, que
dizem respeito somente a minha existência.
Decidi então iniciar pelo que me trouxe a este programa, que foi a possibilidade de
refletir e estabelecer mecanismos de intervenção num dos campos mais críticos da
universidade: o acesso das camadas populares ao Ensino Superior. Isto se torna importante
na minha trajetória, porque, desde o Ensino Fundamental, que cursei numa escola pública
perto da minha casa, a idéia que tinha de universidade era a de um espaço que nunca
poderia ocupar, dadas as contingências materiais e sociais. Lembro-me da primeira vez em
que entrei na UFMA, tinha uns 11 anos, acho que era um Congresso de Química. A minha
turma veio participar de um dos momentos do congresso. Hoje, eu paro para pensar e
recordo que nem cogitava a hipótese de chegar a ser estudante daquela universidade, pois
era uma coisa muito distante. Na minha realidade, a meta era concluir o Ensino Médio, no
máximo um curso profissionalizante, que realmente cheguei a fazer, o de Informática no
CEFET-MA, quando estava concluindo o 3º ano.
Mas o diferencial na minha história, como de muitos de origem popular, foi o suporte
familiar. Meus pais, apesar de não terem concluído o Ensino Básico, sempre deram muita
importância à nossa educação, oferecendo o necessário para continuarmos estudando, sem
ter que trabalharmos.
Meu pai, Francisco Paulo, nasceu em Barreirinhas, veio para São Luís com 11 anos,
sozinho, absolutamente sozinho. Apesar de nosso relacionamento (meu e dos meus irmãos)
com ele tem sido sempre complicado, pois ele é um homem de personalidade forte e um tanto
quanto reacionário, sempre tive profunda admiração por ele. É um homem de luta, que trabalha
para conseguir o que quer. Costuma nos dizer que duas vezes em sua vida perdeu tudo que
tinha, mas não se desesperou, levantou e trabalhou para ter tudo novamente. Acho que isso
herdei dele, nunca me desespero, sempre junto todas as forças para continuar adiante.
*
Graduanda em Psicologia na UFMA.
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Caminhadas de universitários de origem popular
Minha mãe, Maria do Livramento, nunca se conformou de não ter podido continuar
estudando, concluiu apenas o Ensino Fundamental, então transferiu para seus filhos a
responsabilidade de ter nos estudos a possibilidade de alçar vôos mais altos. Mãe de três
filhas, Maria de Nazaré, Solange e eu, nunca nos educou para o casamento, aliás, esse é o
último dos planos de nossas vidas, sempre nos incentivou a estudar e a trabalhar para
sermos independentes, principalmente de um possível marido. Enfim, percebi que tenho
mais dos meus pais do que posso imaginar.
Comecei a aprender a ler com a minha mãe aos quatro anos, de forma que, quando
ingressei na Educação Infantil, já estava quase alfabetizada. No Ensino Fundamental, fui
“a mais inteligente da turma”, a “queridinha” dos professores, tanto que, na 2a série, os
outros alunos não falavam comigo, nunca entendi ao certo o porquê. Nessa época foi
preciso a professora conversar com toda a turma para que eles voltassem a se relacionar
comigo. Outro aspecto importante dessa primeira fase da minha vida escolar é que, desde
a 1a série, fui líder de turma, aquela responsável pela disciplina da turma na ausência dos
professores. Isso me distanciava um pouco dos outros alunos, muitos tinham ódio de
mim, mas ainda consegui fazer alguns amigos. Fora da sala eu era outra. Descontraída, me
divertia muito com as amigas.
Passei sem dificuldades por essa etapa, pelo menos no que se refere ao rendimento
escolar. Fiz os seletivos para o “Liceu Maranhense” e para o CEFET-MA. Mas acabei
ingressando neste último e acho que foi a melhor escolha que poderia ter feito. Lá eu
comecei a viver; conheci muita gente interessante, muitas realidades distintas das que
vivera até aquele momento.
Pouco antes de iniciar o Ensino Médio, entrara para a Pastoral da Juventude (PJ), na
Igreja Católica da minha comunidade, num grupo de jovens chamado JEPVS , em que pude
começar minha vida de militância. Nunca fui muito religiosa e acho até a simbologia e os
ritos da Igreja Católica muito interessantes, mas vi, nesse movimento social, a oportunidade
de intervir na realidade e nas consciências das pessoas daquela comunidade. Fazíamos
muitas atividades culturais, sociais e políticas. Naquela época, a Pastoral da Juventude era
um movimento muito forte, e para todos que participam dela, uma escola de vida. Na UFMA
reencontrei muita gente da PJ. Fico me perguntando por que não existem mais jovens como
aqueles, parece que a “mística” da juventude acabou, o sentimento de coletividade parece
não mais nos impulsionar, as injustiças nos parecem agora “naturais”. Talvez estejamos
internalizando efetivamente os valores da sociedade capitalista contemporânea e entrando
muito cedo no mundo competitivo do mercado de trabalho. Nossos sonhos, ideais, ideologias,
parecem ter esmorecido…
Quando fui para o CEFET-MA, logo conheci algumas pessoas que compunham o
GRÊMIO “Edson Luis” e engajei-me rapidamente no movimento estudantil, tanto que,
com dois meses de aula, estávamos em passeata contra a UMES, entidade que vinha
negligenciando o direito dos estudantes de meia-passagem, com fraudes na emissão de
carteiras. Desde então, o movimento estudantil tem sido parte da minha vida. Costumo
dizer que o CEFET-MA foi para mim uma preparação para o clima da universidade,
tínhamos quase total responsabilidade e liberdade com relação à nossa formação. No
terceiro ano, comecei a fazer curso técnico de informática nessa mesma instituição, dessa
forma estudava dois turnos (manhã e tarde) e não tinha muito tempo para pensar nas
provas do vestibular, mas me inscrevi em Psicologia. Confesso que até hoje não sei
Universidade Federal do Maranhão
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direito por que escolhi esse curso; na verdade, não achava que aquela escolha seria a
última, a única, aquilo que eu faria para o resto da vida. Sempre fiz mil coisas ao mesmo
tempo e mudar de idéia não seria muito difícil.
Comecei minha vida acadêmica em 2003 e até me interessava o curso de Psicologia.
Mas o fato é que nunca fui muito de gostar de assistir às aulas, sempre preferi os livros aos
professores. E me interessava mais participar de palestras, debates, encontros. Na época, o
assunto em pauta no movimento estudantil era a famigerada Reforma Universitária. Nesses
debates, conheci o grupo que estava na gestão do DCE-UFMA, grupo político com o qual me
identifiquei e do qual faço parte até hoje. Nessa época, estava na gestão do Centro Acadêmico
de Psicologia e tentávamos estabelecer no curso um clima de integração e politização.
Em 2006, foi lançado o edital do “Conexões de Saberes” na UFMA e logo me interessei
pela temática e objetivos do programa, principalmente pela possibilidade de dar visibilidade
às comunidades polares e à democratização do espaço acadêmico. Como já tinha vivência em
trabalhos com a minha comunidade, o projeto trouxe-me a ampliação dessa intervenção, com
vistas a mostrar que as comunidades populares são espaços de construção de conhecimento,
cultura e ciência.
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Caminhadas de universitários de origem popular
Primeiro capítulo
Cláudia Nunes da Silva *
Tudo vai mudar, quando essa luz se acender,
você vai me conhecer, vai me ver de um jeito
que nunca viu. Eu tenho sede de som, eu
tenho fome de luz, tenho a força, tenho o dom,
don’t you know quem eu sou? Remember my
name, vem pro meu lado forever, vem pra bem
dentro de mim, vem que vou longe, vou fundo,
vem que eu te faço feliz, vou te contar meus
segredos, você vai rir e chorar, vou te mostrar
o meu mundo, vou te tirar pra dançar...
Sandra de Sá
Este é um momento difícil, singular e inexplicável. Tantas foram as adversidades, os
conflitos, os medos e as dores que tive na vida! Sem alguma possibilidade de compartilhar,
sem visibilidade, e de repente, tenho que fazer umas caminhadas. Tenho que lembrar de tudo.
De cada tormento, de cada paixão e alegria. Tenho que me entregar a um infinito vazio, do
caderno, que desemboca num mundo de conhecimentos e o passaporte para essa “viagem” é
minha vida. E eu sou a dominadora, senhora de um passado que hesito, mas tenho que reviver.
Na solidão que compartilho com o papel, surgem as cores e os segredos de minha vida,
que começa quando dois nordestinos resolveram “tentar a vida na cidade grande”. Minha
mãe, mulher guerreira, filha de uma família originária de uma terra de pretos - o Jejuí - desejava
ter uma vida diferente da que levava no interior do Maranhão. Foi morar com tios, trabalhar e
estudar em São Paulo. Meu pai conta que os meus avós fugiram de uma aldeia indígena e
foram morar num povoado denominado Baiacuí. Homem de grande índole, que desde os oito
anos trabalhava em uma quitanda, e após realizar o primeiro sonho de sua vida, ter uma
havaiana para calçar, decidiu alçar vôos mais altos e ir também para a cidade onde eu nasceria.
Um índio, uma negra. Dois nordestinos numa cidade cheia de conflitos sociais, numa
sociedade impregnada pelos conflitos raciais e uma única proteção: os sonhos. Além dos
sonhos, as filhas. Uma delas surge nessa história em 1981, no mês de outubro, no dia trinta.
Era eu, nascia mais uma Cláudia em São Paulo, mais uma moradora da periferia, mais uma
descendente de nordestinos, mais uma filha da esperança.
*
Graduanda em Ciências Sociais na UFMA.
Universidade Federal do Maranhão
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Esperança compartilhada com muitos amigos. Lembro-me de que morávamos num
bairro onde a maioria dos domiciliados era nordestino. Uma época muito feliz. Morava no
Capão Redondo, lugar onde a ação do Estado não é percebida e os moradores sempre
elaboram estratégias de sobrevivência. O Centro Comunitário é uma delas. Lugar para onde
eu caminhava diariamente, para conviver com outras crianças e com a arte. Onde se
compartilham esperanças, sofrimentos, paixões e alegrias. Lembro-me das festas que minha
mãe organizava com as outras mulheres. Elas conseguiam alimentos, brinquedos, material
escolar e distribuíam tudo isso para as crianças do bairro. Sempre era uma festa.
O único problema dessa época era que meus pais tinham que sair muito cedo de
casa para trabalhar, sempre durante a madrugada e só retornavam muito tarde, quando
eu e minha irmã já estávamos dormindo. Mas esse sacrifício era sempre recompensado
nos finais de semana e com a alegria de ver as filhas na escola. Para completar a nossa
alegria, minha irmã mais velha havia passado no seletivo da escola técnica e parecia
que o sonho de ver as duas filhas enveredando pelos caminhos da educação estava
muito perto de se concretizar.
Tive uma infância tranqüila, recheada de prazeres. Mas quando cheguei ao conturbado
e apaixonante mundo da adolescência, parece que o mundo de conto de fadas em que vivia
desfez-se numa nova realidade, cheia de medos e desilusões.
A primeira grande decepção, foi a rejeição de meu corpo negro. Haveria uma peça na
escola, os critérios para a participação no evento eram as boas notas, estudar a história da
índia “Mani” e ter bom comportamento. Desses critérios, não me enquadrava em apenas
um: bom comportamento. Mas mesmo assim, me esforcei, até parei de brigar com os meninos
da escola. Fazia questão de dizer que meu pai era índio, nunca tive tanto orgulho disso,
tinha tanta certeza de que seria eu a escolhida.
No dia da escolha, a professora contou mais uma vez a história da indiazinha, era a
mais bela de toda a aldeia, a mais delicada, a mais inteligente, a mais desejada, Mani era a
“tal”. E eu, toda convencida, achava que seria a própria. Mas na hora a professora anunciou
a escolhida, e era Vivian, a menina mais branca da sala. Eu não falei nada. Apenas me
entreguei ao batuque do meu peito. Mas lembro-me de que alguns colegas perguntaram à
professora se existia índia branca. E a resposta: “Mani era, pois foi dela que surgiu a mandioca
para os índios comerem e mandioca é branca”. E pronto, estava dado o veredito da detentora
do conhecimento. E eu não poderia participar da encenação, pois existia uma índia branca
como Mani, mas não negra como eu.
Essa peça era para a semana do folclore da escola, da qual todos tinham que participar.
Fui recrutada junto com as outras meninas negras para dançar uma música da dupla de
cantores, Sandy e Junior. Detestei. Mas era uma imposição da professora. Dessa forma,
iniciei a adolescência com a revolta de ser negra e a culpa de não ser bonita como Mani.
Passei a adolescência namorando meninos que só existiam em meus pensamentos e que me
enxergavam “bela” como Mani. Todas as aproximações com meninos reais eram rapidamente
bloqueadas. Logo, passei a adolescência sem namoros reais.
Mas esse era o menor de meus problemas. Minha irmã estava na escola técnica, fazia
um curso muito caro, Desenho e Construção Civil. Meus pais tinham que fazer horas extras
e todo dinheiro arrecadado ainda era insuficiente para custear os gastos com sua formação.
Minha mãe perdeu o emprego na fábrica e minha irmã, a vaga na escola técnica. E com a
crise financeira vieram muitos conflitos familiares.
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Caminhadas de universitários de origem popular
Eu tinha quinze anos, nunca havia vivenciado conflitos em casa, não da espécie dos
que estavam ocorrendo. Minha mãe retornou com as duas filhas para o Maranhão. Meu pai
continuou em São Paulo, trabalhando.
Nossos problemas financeiros se agravavam cada vez mais. E, naquele momento, ainda
tínhamos que conviver com a saudade. Logo, minha mãe começou a trabalhar como doméstica,
morávamos na casa em que ela trabalhava. Uma nova realidade com a qual demoraria muito
para me acostumar. Foram muitas as idas e vindas de minha irmã e de meus pais, sou a única da
família que nunca retornou a São Paulo. Já estava com dezessete anos, a idade adulta já se
aproximava. Já tínhamos uma casa, mas persistiam os problemas financeiros. Tinha que começar
a eleger prioridades. E a educação foi a opção escolhida. Continuava estudando em duas
escolas, fazia um curso técnico e outro regular. Cursei todo o Ensino Médio com muitas
privações. Todos os dias levava, a pé, uma hora para ir e outra para voltar do colégio, talvez
isso não fosse grande sacrifício, se o sapato que usava não fosse dois números menores que o
tamanho do meu pé, pois havia sido uma doação e não tínhamos dinheiro para comprar outro.
Todos os dias, quando atravessava a ponte do São Francisco, pensava no lugar para
onde estava indo, não para a escola, mas imaginava a que lugares aquela caminhada iria me
levar. Que caminhos ainda iria percorrer na vida. Quais os resultados de tanto sacrifício. E
parecia que a ponte nunca acabava.
Tínhamos apenas o suficiente para as necessidades primeiras, sem nada de supérfluos.
E, às vezes, o “supérfluo” era algo muito necessário. Cursei todo o Ensino Médio com
muito sacrifício, meu e de meus pais. Um dia percebi que meus pais não estavam se
alimentando direito, para garantir que eu tivesse duas refeições por dia. No meio de tantas
dificuldades, resolvi procurar um emprego. Trabalhei como vendedora de planos de saúde
e de cartelas de bingo.
Entre tantos problemas, tínhamos ainda de ter forças para continuar lutando. Do nosso
amor e de nossa esperança, e assim prosseguimos nossas caminhadas. Tive que aprender a
cuidar de mim muito cedo, pois meus pais constantemente arranjavam empregos temporários
em São Paulo, minha irmã foi embora, pois havia passado no vestibular e eu aqui permanecia.
Queria fazer faculdade, tinha que sobreviver e lutar.
Um dia eu e algumas amigas do bairro em que morava (Ilhinha) abrimos um novo
caminho nas nossas vidas e nas vidas de muitos outros que ali moravam. Resolvemos dar
aulas de reforço para as crianças. Pedimos roupas usadas, fizemos um brechó e com o dinheiro
compramos materiais didáticos, e finalmente fundamos a Casa do Guri. Como não tínhamos
dinheiro para pagar uma sede, ficou decidido que a escolinha funcionaria em minha casa.
Começamos com trinta crianças, e logo esse número aumentou para duzentas e quarenta.
Tínhamos um grande problema, ou duzentos e quarenta problemas bem pequenininhos.
Precisávamos alimentar as crianças, comprar material escolar, comprar remédios e ainda
distribuir semanalmente uma sopa para a comunidade. Isso sem contar com os nossos
problemas pessoais. Algumas precisavam trabalhar, outras estavam estudando para o
vestibular. Tínhamos que dar aulas e preparar outras meninas que estivessem dispostas a
fazer o mesmo, sem ganhar dinheiro para isso.
Resolvemos ensinar as crianças a fazer artesanato. A idéia seria criar uma fonte de
recursos, para que não fosse mais preciso sair todas as semanas pedindo roupas nos bairros
vizinhos. Enquanto eu dava aulas de reforço, organizava as atividades da Casa do Guri e
ainda tinha que estudar para o vestibular.
Universidade Federal do Maranhão
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Na primeira tentativa, fiz vestibular para Comunicação Social. Era a profissão que
mais admirava. Já na primeira etapa, a decepção. Então, resolvi me afastar, sem me ausentar
totalmente das atividades da casa. Fiquei um ano apenas conseguindo recursos, sem dar
aulas de reforço. Estudava dia e noite, e quando saiu o resultado da primeira etapa, lá estava
o meu nome. Consegui passar em décimo quinto, na última vaga para o curso desejado,
Comunicação Social. Era uma alegria, não só minha, mas também das crianças, de minhas
amigas e dos meus pais. Fiz a prova de segunda etapa muito confiante.
No mesmo ano, quando saiu o resultado da Universidade Estadual do Maranhão, um
amigo passou e parecia que a luta para chegar à universidade finalmente tinha chegado ao
fim. Mas quando foi anunciado o resultado final do vestibular da UFMA, uma nova frustração.
E dessa vez, ainda pior, tinha perdido a bolsa de estudos no cursinho. Mas minha família
mais uma vez decidiu fazer um novo sacrifício por mim.
Dessa vez havia me conscientizado de que o problema não era somente meu, mas do
próprio sistema educacional. Tinha a certeza de que havia estudado e de que as vagas eram
insuficientes para a demanda. Nesse ano, um professor e amigo, Carvalho, me aconselhou
que eu não ficasse muito triste, como se isso fosse possível. O argumento era que deveria
acreditar que aquele não seria o curso certo e naquela turma não encontraria as pessoas que
fariam diferença em minha vida.
Mais um ano de estudos para o vestibular, dessa vez estudava sozinha, porque, dos
meus amigos, um já havia passado no vestibular e os outros tiveram que trabalhar o dia
inteiro e não tinham mais tempo e nem disposição para estudar.
Continuava na Casa do Guri, dessa vez resolvi dar aulas sem me preocupar muito com
os recursos da casa. Como não tínhamos muitas contribuições, o número de crianças diminuiu
para cento e trinta. Matriculei-me no cursinho noturno, com ajuda de meus pais e de minha
irmã; estudava pela manhã e dava aulas à tarde.
Sem muitas expectativas de passar no vestibular, dedicava-me mais à casa do que
aos estudos. Finalmente, chegou a hora de me inscrever no concurso. Havia lido sobre o
curso de Ciências Sociais e conversado com algumas pessoas sobre a profissão. Resolvi
prestar vestibular para este curso. Agora me lembro daquele dia. Era nove de março, meu pai
estava comigo no campus da UFMA. Ele esperaria até o fim. Sempre que fosse preciso, sei
que estaria lá. Com sua bondade, amor e sabedoria. E foi nesse dia que o poeta de minha
vida, homem que me fez amar as letras e os versos, escreveu este poema pra mim.
Vestibular
Um senso em moroso apenso
Frondoso ao rigor imenso
Rebuscas áureas do pensamento
E vai!
É hora de esboçar conhecimentos
Nas raízes desse campo cultural
É um labirinto penoso e cru
Refuta a sensibilidade do ser
Sob tensão do rosto carrancudo
Quando fecha-se o portão ferrudo
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Caminhadas de universitários de origem popular
O destino pede novo caminho
E vai!
Todos são concorrentes pensativos
A lembrar das matérias puras
Revisadas ao pé da explicação
Cada acerto percentua pontos
E cada nota reboca à vaga
Induzida que na porta escapa
Porque sai, num possível erro ingrato
E vai!
A tensão leva a hora a fora
Pela chance que no mundo agora
Não é mais parte da revisão
É o próprio vestibular, arguto
É a sala... onde está o fiscal
Dos anseios, o devaneio não fala
Mas eleva a sensação que pulsa
Quem espera, imagina a sala
E vai!
Vi no pensamento tecendo
Como vencer a batalha
Tudo fecha num refrão papudo
Nas instâncias enleadas do estudo
O incentivo venceu o medo
E vai!
Esse campus, é fusão embrionária
Refratárias de muitas pretensões
O vestibulando pesca sem arpões
Nesse mar de fictícios tubarões
Agora, Josés, Moises e Joãos
As Terezas, Marias e Claudias
Mais os Raimundos, Pedros e Sebastiãos
Porém, a elite é a maioria preparada
Raros são domésticos e operários
É a vida fechada sem sacrários
E vai!
Por isso o tempo determina
O fechamento desse dia rotular
Pra selar na prova, a decisão
Nesse suor que aflita a face
O esforço cerebral passa nas mãos
Ao transcrever a sua folha de respostas
Respostas essas, certas ou não
É hora da verdade sem propostas
As matérias, reunidas em questão
Universidade Federal do Maranhão
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Por último, vem o degrau ingrato
Compilação final: a redação
E vai!
O horário marcado se reduzindo
Pelo tempo que não pode esperar
Nesse ponto, para tudo ou continua
Pelo saber, da razão de estudar
Que a sorte acompanhe a todos
Nessa imensa maratona sem redoma
Capiosamente chamada: Vestibular
Adalberto Santos da Silva (No prelo)
Na primeira etapa o resultado já não foi muito promissor, passei em vigésimo sexto
lugar para um curso que oferecia apenas dezoito vagas. Tinha certeza de que não conseguiria
passar. Pensava na tentativa anterior em que havia me classificado dentro das vagas e não
consegui passar e imaginava que agora seria muito mais difícil. Mesmo assim, fiz a segunda
etapa. Um mês depois, minha expectativa foi confirmada. Fecho os olhos e sinto a emoção
daquele dia. Eu havia mentido para minha mãe dizendo que o resultado do vestibular não
sairia naquele dia, ela me fez acreditar que havia “caído na minha conversa” e saiu para
ouvir o resultado na casa de um vizinho. Ouvi vários nomes da lista de Ciências Sociais:
Simony, Rafael, Denise, Otávio, Fabrine..., mas o meu não estava lá. Entreguei-me às águas
que caíam descontroladas em meu rosto. Parece que perdia a consciência de mim, e as
minhas amigas e crianças da casa e meus pais vinham em meu socorro. Já não tinha mais
alternativa. Afastei-me totalmente da casa e fui procurar trabalho. A única coisa que consegui
foi um emprego de doméstica. Iria cuidar de uma senhora e só poderia ir para casa uma vez
por mês em troca de míseros cem reais. Tinha muito medo do que pudesse acontecer comigo.
Estava decidida a fazer um novo vestibular para Ciências Sociais, mas sabia que não teria
condições de estudar, pois estaria muito atarefada com as atividades do trabalho, como
aconteceu com minhas amigas e tantas outras Cláudias, Anas, Lucélias, Raqueis,
Mayas...mulheres negras e de origem popular.
Ainda tinha esperança de continuar estudando, e, na última semana antes de começar
a trabalhar, resolvi ir até o cursinho e pedir mais uma vez uma bolsa de estudos, que havia
perdido no ano anterior. Fiquei lá durante horas na porta olhando para o prédio e pensando
o que poderia acontecer, mas não tive coragem de entrar. Quando estava indo embora,
avistei um amigo, era Denis. Ele veio em minha direção e estava chorando muito. Pensei
em mil coisas: mortes, doenças, acidentes. Ele me pediu que o acompanhasse, mas eu
resisti, queria antes saber o que estava acontecendo. Incrivelmente senti a dor da morte, e
parece que ela me concebeu. Não sei explicar o que se passava nesse momento, havia
passado semanas muito triste com a decepção do terceiro vestibular e naquele momento
sentia-me contagiada por uma emoção da qual não sabia o motivo. Tinha apenas a
confiança num amigo que sabia, tinha um segredo que se transformaria em um forte
motivo para me emocionar.
Depois, percebi que meu pai também estava chegando, muito transtornado. Ele me
falou com os olhos, que eu tinha que ir imediatamente para casa. Eu não hesitei à ordem de
um pai. Foram os dez minutos mais longos de minha vida, eu corria e parecia que a distância
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Caminhadas de universitários de origem popular
só aumentava. Quando cheguei, a casa estava lotada, minha mãe gritava muito e todos
celebravam. Minha mãe me disse: “Minha filha, corre que a universidade mandou te chamar”.
Tinha que seguir por um novo caminho.
A emoção tomou conta de mim, eu ria e chorava, gritava e tudo parecia um novo
sonho. Abracei meus pais, parecia que naquele momento nossa luta havia chegado ao fim,
sentimos que nosso sacrifício tinha valido a pena. De repente, já estava a caminho da
universidade. Tinha que fazer a matrícula com urgência, pois as aulas já haviam começado
dois dias antes.
Fui o mais rápido que pude à universidade. Foi um momento de emoção ímpar em
minha vida. Nem sabia direito o que aquele momento significaria. Quando cheguei, fui
recebida por uma colega de turma, Socorro, que me orientou sobre todos os procedimentos
que deveria tomar para efetuar minha matrícula. Eu corria pelo Campus dando risadas e
gritava para todos que eu tinha sido chamada. Na mesma semana, fui recebida pelo
coordenador de curso, era Carlão. Eu nem imaginava a importância que ele teria em
minha vida. Ele me chamou para fazer parte do grupo de estudos que ele coordenava, o
Grupo de Estudos Ritmos da Identidade, vinculado ao Núcleo de Estudos Afro Brasileiros.
Logo aceitei a proposta do professor. Nesse grupo entrei em uma nova realidade, estava
convivendo com pessoas que se preocupavam em refletir sobre a condição da população
negra e nele passei a me apaixonar pela minha condição de negra e a me orgulhar pela
história de meus ancestrais.
Retornava a um conto de fadas que logo acabaria com as dificuldades que um curso de
graduação proporciona aos estudantes de origem popular. Mais uma vez tinha que caminhar
horas para chegar ao mundo do conhecimento. Tinha várias despesas com as cópias, pois os
livros disponíveis na biblioteca não são suficientes. E ainda, a dificuldade em me acostumar
com os conteúdos acadêmicos. Nesse novo mundo, com o qual não tive contatos anteriores,
tive vários amigos, muitas paixões. O novo conhecimento, a antropologia, o movimento
estudantil, os amigos e Lili, companhia para todos os momentos da vida, com quem
compartilhei idéias, aflições, alegrias, saudades, decepções e esperanças. A quem entregueime aos caminhos desconhecidos da volúpia que arde na loucura dos apaixonados. Com
quem descobri os devaneios do amor.
Mas mesmo com a presença de Lili em minha vida, a trajetória na academia deu-se
através de contínuos enfrentamentos. O maior deles foi reconhecer que a universidade
preserva as desigualdades sociais e reproduz a meritocracia do vestibular. Sabia que, uma
vez na universidade, poderia almejar uma bolsa de estudos, mas para isso deveria estar nos
critérios acadêmicos, notas, coeficiente de rendimento, tudo “em dias” com a falsa
neutralidade dos sistemas de recrutamento dos “melhores” estudantes.
Esse era o caminho que deveria percorrer, pois necessitava ter uma bolsa para me
manter no curso de graduação. Mas ele não foi fácil, pois não estava acostumada com o
conhecimento acadêmico. Tinha dificuldades com as leituras e tinha sempre que estudar
mais, para poder acompanhar os conteúdos das disciplinas. Fiz minha inscrição para o
seletivo do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica-PIBIC com a ajuda de
dois professores muito importantes em minha vida, Álvaro e Benedito. Tive êxito. Conhecia
um novo mundo e me entregava a ele, apaixonadamente. Nessa época, passei a integrar o
Grupo de Estudos Rurais e Urbanos, coordenado pela professora Maristela. A cada dia me
envolvia mais com a pesquisa que desenvolvia no PIBIC. Durante dois anos fui bolsista de
Universidade Federal do Maranhão
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iniciação científica. E ao mesmo tempo, era coordenadora do Centro Acadêmico, estagiava
na Secretaria de Estado (para onde ia diariamente a pé), fazia disciplinas da graduação,
dona-de-casa, professora. Muitas Cláudias para pouco tempo e pouco espaço.
Estava muito feliz, sentia-me independente e motivada a enfrentar os preconceitos
que ainda me cercam: racismo, desigualdade social, machismo e homofobia. E esses
enfrentamentos me proporcionaram muitas paixões e prazeres. Continuava caminhando,
percorrendo lugares onde enfrentava o preconceito e com o pensamento bem adiante, no
amargo gosto do desconhecimento do futuro. Sem saber que caminhos me esperavam. À
medida que o período de iniciação científica chegava ao fim, aproximava-se de mim um
grande desespero. Parecia que as dificuldades do início da graduação retornavam e eu
não sabia o que fazer. Ainda estava no sexto período e tinha pelo menos um ano de
graduação. A uma semana do início do sexto período, soube de um edital que estava
selecionando estudantes de origem popular para fazer parte de um programa de extensão,
do qual eu nem sabia o nome.
Fiz minha inscrição e fui selecionada. Era o “Conexões de Saberes”. Poderia concluir
a graduação com certa tranqüilidade, mas o “Conexões” não foi apenas um meio de
permanecer na universidade. Foi mais uma paixão. Espaço em que compartilhei minha vida
com outras Cláudias, chamadas Daniele, Eliete, Lourdilene, Josenira, Lidiana, Lucileide.
Foi o momento em que reconheci em outros estudantes minha própria luta, minha história.
Vários foram os aprendizados nesse grupo. Nesse momento da vida, dei as mãos a outros
vinte e cinco estudantes que, como eu, já haviam percorrido caminhos tortuosos para chegar
à universidade. E juntos, trilhamos uma nova caminhada, cujo destino era a democratização
da universidade. Uma caminhada cheia de conflitos, concessões, amores e vitórias, agora,
somos todos ligados pelas dificuldades que enfrentamos e pelas emoções que vivemos.
Quando estava cursando o sétimo período, a UFMA deliberou em Conselho Superior
a adoção de um programa de Ações Afirmativas para estudantes negros, indígenas e oriundos
de escolas públicas. E o maior responsável por essa deliberação foi o NEAB, que trouxe o
debate às instâncias deliberativas da universidade. Finalmente, a universidade começa a
perceber quais caminhos deve tomar para a democratização do conhecimento. É chegado o
momento em que a universidade se abrirá para novos caminhos e abarcará o discurso e os
passos de outros estudantes negros, indígenas e de origem popular. Quando penso em todas
as transformações que ocorreram em minha vida, nas pessoas, paixões e oportunidades que
tive no curso de Ciências Sociais, lembro-me das palavras do amigo Carvalho e tenho a
certeza de que ele estava certo.
Finalmente, chego ao oitavo período. Vou sair do “Conexões”, o motivo me causa
muita alegria. Aproxima-se o dia oito de março, importante para mim e para tantas outras
Cláudias, Marias, Jardianes, Iracemas, Regimeires, Fernandas, Carlas. Neste dia apresentarei
minha Monografia de Conclusão de Curso. É chegada a hora de alçar vôos mais altos. De
começar novas caminhadas. Quando fecho os olhos, penso em todas as angústias e
sofrimentos da vida. Lembro-me dos sacrifícios e sinto o cansaço de quem já percorreu
caminhos longínquos. Mas ainda não posso descansar. Tenho que continuar a caminhada
que foi iniciada por um menino de pés descalços. Logo, serei mais uma outra Cláudia,
Cientista Social, quem sabe depois Antropóloga. Conhecerei novos caminhos e farei
novas conexões. Tenho que prosseguir minha caminhada e viver o Segundo Capítulo
de minha vida.
28
Caminhadas de universitários de origem popular
Como fosse um par, que nessa valsa triste se desenvolvesse ao
som dos bandolins..
E como não, e por que não dizer que o mundo respirava mais
se ela apertava assim
Seu colo, como se não fosse um tempo em que já fosse impróprio
se dançar assim
Ela teimou e enfrentou o mundo se rodopiando ao som
dos bandolins.
Como fosse um lar seu corpo a valsa triste iluminava e a noite
caminhava assim
E como um par o vento e a madrugada iluminavam a fada do
meu botequim.
Valsando como valsa uma criança que entra na roda e a noite
tá no fim,
Ela valsando só na madrugada, se julgando amada ao som
dos bandolins.
“Bandolins”- Oswaldo Montenegro
Universidade Federal do Maranhão
29
Memorial
Danielle Lima Costa *
Nasci no mês de maio, exatamente no dia doze. Acho que minha mãe ficou mais
preocupada que alegre com minha vinda, era mãe solteira e trabalhava, nesta época, em casa
de família. Sua mãe e irmãos moravam no interior do Estado, ela veio para a cidade ainda
pequena com o intuito de estudar, morava na casa das freiras até ir trabalhar em casa de
família. O objetivo principal de sua vinda para a cidade foi adiado e ela só conseguiu
terminar o segundo grau depois do sétimo filho, com quase trinta anos. E assim, foi que essa
guerreira me ensinou a lutar e a ser muito otimista.
Quando eu estava com alguns meses de vida, minha mãe se casou. Então seu marido
assumiu minha paternidade, uma vez que meu pai biológico não assumira essa
responsabilidade. Assim, foi que ganhei um super pai, ele é a pessoa mais honesta e generosa
que conheci. Ele vinha de dois outros casamentos e já tinha cinco filhos. Com minha mãe
gerou mais sete, dos quais morreram dois. Deste modo, hoje, totalizamos dez irmãos e todos
muito diferentes uns dos outros.
Minha infância foi muito simples, sempre estudei em escola pública. A fase da educação
infantil foi toda em escolinha comunitária, numa comunidade próxima da minha. Eu, meus irmãos
e os vizinhos caminhávamos em grupo cerca de cinco quilômetros por dia. Em nosso trajeto para
a escola, era tudo muito divertido, principalmente quando chovia ou quando, na volta da escola,
alguém sentia dor de barriga. Neste período, tudo se tornava diversão, até as dificuldades do dia-adia. No geral fomos crianças felizes, mesmo com todas as dificuldades, mesmo quando tínhamos
que carregar, na cabeça, água de longe para o gasto diário e ajudar os pais nas pedreiras, separando
as pedras britas (utilizadas na construção civil) para vender, o que era e ainda é atividade principal
de muitos de meus vizinhos e de meu pai, quando ficava desempregado.
As lembranças de minha infância são muito vivas em minha memória. Entre as mais marcantes,
estão as recordações de minha avó, a qual chamávamos carinhosamente de Mamãe Ciuta, nos
livrando das surras da minha mãe. Das brincadeiras com os vizinhos, uma delas era a guerra de
pedradas nos quintais de casa. Dessas brincadeiras sempre saía alguém com a cabeça quebrada.
Uma das recordações mais tristes é de meu irmão, o “Chico Preto”, que foi para o garimpo em Serra
Pelada e nunca mais voltou. Sabemos que está vivo, mas não temos notícias dele há muito tempo.
Minha adolescência foi uma transformação psicológica e social alucinante, da qual
eu tive pavor. Engravidei com quinze anos. Esta situação foi um fato que marcou minha
existência profundamente e sobre a qual não quero comentar aqui. Deste episódio, nasceu
* Graduanda em Filosofia na UFMA.
30
Caminhadas de universitários de origem popular
um garoto e uma mãe. Passavam mil coisas na minha cabeça, não sabia nada daquela minha
nova tarefa, cuidar de um filho era um desafio. Todavia, minha mãe e minha família foram
essenciais, pois assumiram essa jornada comigo. Não parei de estudar, estava na 8a série.
Minha mãe, incentivadora insistente, não deixou que eu desistisse de estudar, me apoiando
em tudo. Sempre fui boa aluna, mas quando mudei de escola para uma outra no centro da cidade,
fiquei logo reprovada na primeira série do Ensino Médio, no “Liceu Maranhense”. Foi uma
decepção para minha mãe, pois ela pensava que eu faltava às aulas, mas na verdade não conseguia
me adaptar àquela realidade tão distinta da minha, me sentia “um peixe fora d’água”. O maior
público desta escola, eram pessoas de classe média. Para estudar lá, era necessário ser aprovado
no seletivo da instituição. Quando repeti a série, a escola formou uma turma só de reprovados.
Foi nesta turma turbulenta e “reclamona” que me encontrei, ganhei amigas das quais ainda
lembro com carinho, e consegui concluir o Ensino Médio com entusiasmo.
Ainda cursando o Ensino Médio, comecei a participar ativamente da igreja católica,
que minha mãe já freqüentava; logo, formamos um grupo de jovens. Eu era da
coordenação, juntamente com outras colegas, e depois de algum tempo, nos integramos
à Pastoral da Juventude (PJ) de nossa paróquia. Aqui, queridos, passei por mais uma
transformação radical. Fiz amigos que amo muito, são pessoas “pé no chão”, com os
quais aprendi muito. Nós aprendemos juntos a “fazer a hora”, sem ficar esperando
acontecer. Não tínhamos nenhum recurso financeiro, mas fazíamos encontros de jovens
com mais de cem participantes, viajávamos para as romarias no interior do Estado,
fazíamos cursos de formação, acampamentos de lazer e etc... era trabalho duro, necessitava
de muita responsabilidade, se não os padres, os pais, e até os outros jovens perdiam a
credibilidade em nós. Os melhores momentos, os mais divertidos e também profundos,
que vivi, remontam ao período da PJ. Nesta fase, nutri um Eros que me incendiava e
fazia com que eu fosse uma militante enraizada em princípios cristãos, da teologia da
libertação. Namorar era um verbo que nesta época sabíamos conjugar bem; me apaixonei
algumas vezes, mas namorei pouco e descobri que a vida é muito mais do que as
experiências do cotidiano, aprendi um significado que transcende as coisas finitas e as
relações simbólicas.
Foi na Pastoral da Juventude que entendi o que significava a universidade pública,
que a gente tinha que fazer o vestibular, que ele não era fácil, e que eu tinha poucas chances,
mas que era necessário fazê-lo. Eu, a essa altura, já terminara o Ensino Médio e não tinha
emprego, só os “bicos” que fazia de vez em quando. Aqui, começou o terror, precisava
trabalhar, mas eu queria fazer faculdade e não conseguia nada. Então, quando dois amigos
meus, de grupos de jovens, passaram no tal do vestibular, quando ouvi o nome de Gerson e
de Geane no rádio, Ah! parecia que era o meu. Acreditei na possibilidade da aprovação,
dediquei-me de corpo e alma para conseguir uma vaga.
Os empecilhos foram os primeiros a bater em minha porta, não conseguia estudar
sozinha e não estava preparada para fazer a prova, não tinha com que pagar nem as passagens,
imagine um cursinho. Então, comecei a popularizar que queria fazer o vestibular, mas que
não tinha como realizar esse desejo. Comecei a estudar sozinha, mas era muito difícil, e
depois de algum tempo, minha amiga Monika, da PJ, ficou sabendo através de outros que,
no convento das irmãs de São José de São Jacinto, que ficava num bairro de classe média,
funcionava um cursinho comunitário; o PRENEC – Pré-vestibular para Negros e Carentes;
então, eu fui verificar, ver como era aquilo, se eu poderia participar.
Universidade Federal do Maranhão
31
O cursinho funcionava no período noturno e para lá eu fui com minha amiga Monika.
Quando lá chegamos, não havia cadeira para que nos sentássemos. Então, fiquei na
expectativa de um precioso assento. A secretária do cursinho não gostou de mim, não
gostava que eu ficasse lá, não deixava eu assinar a freqüência e nem falava comigo. Então
dei uma de esperta e comecei a chegar mais cedo pra arrumar uma cadeira. Quando alguém
ficava em pé, todos olhavam pra mim, eu fingia que não era comigo. Depois se acostumaram
com minha presença. Ah, eles faziam isso comigo porque já havia passado o período de
inscrições e não havia mais vagas, mas acabaram deixando que ficasse porque sempre
havia desistências.
Seis meses depois, fizera amigos como Jojó, Nilcilene e Nélio Brasil e já estávamos
pleiteando a direção do cursinho. Conseguimos a vitória e iniciamos o trabalho duro
de reanimar alunos e professores voluntários. O primeiro passo consistiu em formalizar,
legalizar a instituição, campanha para atrair voluntários para dar aulas, para ajudarnos a formalizar pedidos de financiamento, engajamento nas lutas referentes às
populações afrodescendentes. Assim, expandimos o nome do cursinho e ajudamos a
formar o Conselho Municipal de Afrodescendentes, junto com outras instituições do
movimento negro.
A Universidade tomou conhecimento de nossa existência, começamos a pedir isenção
das taxas do concurso, não conseguíamos para todos, então, saímos pedindo de porta em
porta, para todas as pessoas que acreditávamos que pudessem ajudar, e deste modo, não
ficávamos sem prestar o concurso. Depois de bater em várias portas, encaminhamos um
projeto ao MEC para custear as despesas do cursinho. Conseguimos financiamento por dois
anos e aí pairou uma certa tranqüilidade.
A aprovação veio no segundo vestibular. Fui aprovada no curso de Filosofia da
Universidade Federal e no curso de História da Universidade Estadual. Foram dois anos de
tortura, comendo farofa de ovo na casa das colegas para estudar o dia todo, almoçar em casa
era impossível, morava muito longe e as passagens sempre custavam caro. Uma das maiores
dificuldades que encontrara, foi garantir o dinheiro da passagem, quando papai não tinha e
eu não conseguia nenhum “bico”. O PRENEC me ajudava, mas logo chegou uma professora
nova que me ajudou muito com o transporte, principalmente para que eu não faltasse às
suas aulas. Ela conseguiu um estágio para mim para que eu pudesse custear minhas despesas.
As coisas melhoraram a partir daí.
“Caloura” foi a primeira palavra que ouvi no Campus e que guardo como um regalo
depois de muita labuta. A empolgação não durou muito, pois o estágio acabara e já não
tinha com que custear as despesas de um curso superior. Neste período, as amizades me
salvaram: as freiras com quem me relacionei na PJ me encaminhavam para todo tipo de
atividade, para as quais eu ia sem nem mesmo perguntar o que era. Nesta jornada, conseguiram
um curso de formação que tinha como eixo de estudo o desenvolvimento sustentável em
comunidades quilombolas.
Depois do curso, fui chamada para trabalhar durante um tempo. Estava no primeiro
período da universidade, e a esta altura, já morava separada de minha mãe, em companhia
de um amor que começou no PRENEC. Aquela experiência aproximou-me ainda mais de
uma realidade excludente e muitas vezes desumana. Todavia, entendi que minha missão
apenas começara. Findado este trabalho, voltei a ficar dependente, agora do companheiro e
de trabalhos esporádicos.
32
Caminhadas de universitários de origem popular
O Conexão de Saberes foi uma porta que se abriu. O contato com alunos de outros
cursos e até de outras universidades do país se intensificou e meu olhar começou a ir mais
longe. A bolsa ajuda muito, principalmente com a aquisição de livros e outros materiais
didáticos. A auto-estima, renovada neste espaço, me faz sonhar com a possibilidade de
cursar um Mestrado. Tenho uma forte sensação de que vou conseguir!
Acredito firmemente que ainda conseguirei morar e trabalhar na comunidade onde
cresci e não verei meu filho com a mesma “sorte” de muitos amigos da minha infância. Rezo
e também trabalho muito nas atividades comunitárias para que o sonho sonhado ainda na
PJ se torne realidade, que as pessoas não percam a esperança de virar esta página cruel da
humanidade, e que se lancem a esse propósito. Que a espiritualidade, a la Gandhi e Francisco
de Assis, sejam o fio condutor desta jornada.
Universidade Federal do Maranhão
33
O périplo de um perdedor de tempo
Eldimir Faustino da Silva Júnior – Dyl Pires*
“A felicidade de entender é maior que a
felicidade de sentir e de imaginar.”
Jorge Luis Borges
Chamo-me Eldimir Faustino da Silva Júnior (o ortônimo) e Dyl Pires (o heterônimo).
Nasci no dia 1 de setembro de 1970, em São Luís-MA. Portanto, um pouco depois do
golpe militar e da tão festejada conquista da seleção brasileira de futebol, e um pouquinho
antes da maior revolução teatral acontecida em nossa cidade: o laboratório de expressões
artísticas-LABORARTE. Devo, nas linhas que comporei mais adiante, traçar uma espécie
de mosaico desta minha trajetória existencial, levando em consideração o ponto em que
a vida escolar toca a minha caminhada. Assim, começarei a recordar um misto de realidade
e ficção a partir do momento em que soube que havia passado no vestibular. Digo realidade
e ficção, porque assim como o poeta Carpinejar: “avanço na idade e não sei discernir o
que foi vivido do que foi contado. Tenho dúvidas se minha infância é realmente o que
vivi ou o que sonhei nela”.
Creio que, uma semana depois do resultado, me veio uma espécie de insight que dava
conta do desenho cíclico da minha vida, e de quanto em quanto tempo as grandes
transformações aconteciam nela. Na hora me soou como uma epifania, revelada pelo fato de
ter sido aprovado para o Curso de Teatro da Universidade Federal do Maranhão. Comecei a
refletir (aparentemente sem nenhuma espécie de superstição) que o número sete (isto mesmo,
o número sete!) era por demais presente no meu ainda parco existir. Parco, mas nem por isso
menos intenso. Repentinamente, comecei a explicar tudo através deste número significativo
para a dimensão mística que ocupa, ou não, o imaginário de todos.
Bom, a partir daí, voltei a 1970, e logo de cara fui constatando que o tal sete estava no
meu ano de nascimento. Era o começo. O mundo das letras e das imagens iniciava em 1974,
no que chamávamos de primeiro período do jardim (Ed. Infantil). Foi lá na escola Dom
Francisco, que existe até hoje na Praça da Alegria. Permaneci até 1976, e de tudo ficou na
minha memória a preocupação dos professores para que não ultrapassássemos os limites do
jardim; coisa que freqüentemente ocorria com a devida punição: ficar de castigo no quartinho
escuro da escola.
*
Graduando em Teatro na UFMA.
34
Caminhadas de universitários de origem popular
Em 1977, sete anos depois do meu nascimento, e bem depois da fase de familiarização
com outro espaço, que não o meu lar, ingresso na primeira série do primário (Ensino
Fundamental). Era a época das congas e das kichutes. A escola se chamava Sotero dos Reis,
bem ali na Rua São Pantaleão. À época, creio que o colégio era o último a inspirar
respeitabilidade dentro do ensino público. Aprendi muitas coisas. Algumas relacionadas
diretamente com os estudos, outras, com as travessuras daquela faixa de idade e com o
desejo da carne que começava a formar suas primeiras manifestações pontiagudas em mim.
Recordo-me dos nomes de alguns professores: Odeth, Nócia, Terezinha, Benedita (minha
primeira referência de professor no estilo linha-dura) e também do porteiro que se chamava
Batista. Este percurso que vai até 1980, me trouxe a igreja, onde fui sacristão por uns dois
anos, o desejo de ser padre, o primeiro discurso como orador da turma e uma pequeníssima
encenação sobre o Bumba-meu-Boi (a grande imagem mítica da minha infância), em que eu
fazia um pequeno papel, não me recordo bem se de um lobo, ou de um cão.
De 1981 a 1984 (período ginasial), estudei (por intermédio de uma bolsa integral) no
Colégio Henrique de La Rocque, na Rua do Passeio. O máximo de envolvimento artístico que
se cometia por ali era jogar bola ou participar da banda marcial da escola. Entre meus professores,
lembro-me de Elisio (o carrasco da Matemática), Dalva (a doce estrela de Português) e Heloisa,
de História (o fetiche de alguns colegas, inclusive meu). Lembro-me também que a escola
possuía a disciplina Educação Artística, que era ministrada pelo professor que havia me
conseguido a bolsa (e meu padrinho) Jorge Itacy, na época já famoso babalorixá “Jorge da Fé
em Deus”. Não me lembro do conteúdo da disciplina. Mas sei que nem ela, nem a banda
marcial e nem a encenação me marcariam a alma naquele instante.
Em 1984, sete anos depois de ter entrado para o Sotero dos Reis, descobri o karatê, o
atletismo, e sobretudo, o futebol. O grande acontecimento para mim daquela época foi ter
entrado para a turma dos meninos que eram mascotes do Sampaio Corrêa Futebol Clube.
Guardo até hoje duas fotos de jornais, já bastante envelhecidas, reveladoras daquele momento.
De 1985 a 1989, estudei na escola Dr João Bacelar Portela (antigo segundo grau), no
bairro Ivar Saldanha. Três professores especialmente me vêem à mente: a professora de
Português Jaciara, cuja casa freqüentava com alguns colegas, o professor de Física Augusto
(da estirpe dos linha-dura) e o professor Campelo, que acabara me reprovando por causa de
sérios desentendimentos na sala de aula (de um lado ele me alegava negligência para com
a sua matéria, do outro eu me defendia dizendo que ele não sabia tornar a matéria sedutora
para mim). No Bacelar Portela, fiz Eletrotécnica. Não sei bem por que. Um ano depois
percebi que a alta voltagem que me interessaria seria a do álcool e a da boêmia. Portanto, eu
já cultuava sem saber uma particular necessidade báquica.
Em 1990 foi um ano vazio e de intransponíveis fantasmas... em 1991, sete anos após
ter me deslumbrado com a história do futebol, descobri definitivamente o caminho das
leituras, de um conhecimento outro que só perpetuariam as dúvidas que já possuía acerca
da natureza humana e do sentido de tudo isso, ou da falta de. No período que vai de 1991 a
1998, eu me deparei com amigos músicos, artistas plásticos, cantores e sobretudo poetas e
atores.
Primeiramente foi a literatura que me desbravou, mostrando-me, juntamente com os
amigos, algumas leituras e todas as experiências mundanas e estéticas daquele instante, o
caminho que construiria o poeta. Isso por volta de 1991. Lembro-me de que, em 1992,
conheci duas pessoas super-importantes para a minha vida. A mineira Tereza, motoqueira e
Universidade Federal do Maranhão
35
dona do posto de gasolina ao lado do Clube Lítero Português e a maranhense, compositora
e cantora, Célia Leite. Ambas, cada uma a seu modo, me influenciaram sem nem perceberem.
A primeira, com seu jeito fortemente espontâneo e com uma vontade de viver a vida de
forma sempre apaixonadamente perigosa; a segunda, por ter me trazido o diálogo possível
entre a timidez que em mim preponderava e a loucura que se ocultava por trás dela, pronta
para dar o salto no instante certo. Célia foi mais além. Um dia, depois de ter lido alguns
poeminhas que eu havia escrito, confundiu a minha assinatura ao final dos textos e cismou
que ali estava posto o nome Dyl (não necessariamente com esta grafia). A partir daquele
momento, comecei a me chamar Dyl e acrescentei às três letrinhas o sobrenome da família,
Pires, herança do meu avô materno, Raimundo Nonato Lisboa Pires. Abro um parênteses
aqui para registrar que fui educado por três mulheres: Maria de Lourdes Santos Pires (minha
mãe), Eldilene Santos (minha irmã) e Terezinha de Jesus Rodrigues (outra mãe). As três me
abriram as portas do universo feminino. O único de fato que importa. Dyl Pires surgiu então
para construir, juntamente com alguns amigos, Jorgeane, Catarina, Gilberto, Gissele, Jales,
Natan, Bioque, Ailton, Hagamenon e Ricardo, um percurso intelectual e estético que o
ajudaria a amadurecer o olhar para as coisas da vida e para as coisas do seu interior
desassossegado e febril. Passados quinze anos, penso que Eldimir permaneceu um menino
de fé, como inversamente está no poema do Leminsky, que poucas vezes se manifesta frente
a um Dyl Pires que tem o desencanto como um pensamento concluso em sua vida, acredita
no caráter ficcional da existência e se percebe fantasmal.
Eldimir, apaixonado por futebol e pelas brincadeiras da infância que não o libertavam
nunca. Dyl, apaixonado por literatura, teatro e pelos “subterrâneos” do existir. Um tem
compaixão, o outro é irônico e niilista. Um se irmana misticamente com o mundo, o outro
tem em Joyce, Beckett, Hilst e Borges a medida exata para profanar e demolir o que não
deveria nem ter existido: a vida. Eldimir acha que a vida é um estágio de beleza em permanente
espanto, por isso vale a pena ser vivida; Dyl acha, assim como o saudoso ator Gianfrancesco
Guarnieri, que “só um homem que não sabe das coisas pode achar graça na vida”... e por aí
vão as diferenças desta solidão dolorosamente singular.
Em 1993, conheci o ator Uimar Junior que me levaria a fazer duas performances, além do
serviço de contra-regra no espetáculo “Joana”, monólogo adaptado do texto Gota D’ água, de
Chico Buarque e Paulo Pontes. A encenação do lobo ou do cão começava a uivar fortemente
em mim. Dois anos antes, o ator Jonatas Tavares (que fez o Creonte, no “Édipo Rei” da
Coteatro) vira para mim numa passagem de ano e diz: “Você deveria fazer teatro. Tu tens cara
de ator”. Em 1995, a atriz paulista Lucia Gato põe dez reais nas minhas mãos e me impele a ir
à Cooperativa Oficina de Teatro-COTEATRO (coordenada por Tácito Borralho) fazer a minha
inscrição para o Curso de Formação de Ator. Tudo isso porque, em 1993, eu e Gilberto Goiabeira
dissemos que iríamos fazer nossa inscrição no Curso. Ele foi. Eu, somente sob pressão, dois
anos depois. De 1995 até os dias de hoje, eu fiz as peças “A Bela e a Fera”, “Morte e Vida
Severina”, “Paixão-Segundo Nós”, “Viva El Rei D. Sebastião”, “Auto do Boi”, “Auto de
Natal”, “Torres de Silêncio”; performances, recitais, ajudei a fundar três grupos: um de poesia,
outro de performance, e outro de teatro, e fiz dois vídeos: “Cartas”, para o cineasta Frederico
Machado e “Guarnicê 2000 e Outros Souvenires”, para o cineasta Carlos Reinchembach .
Em 1994, participei de duas oficinas de poesia, cujo objetivo maior era instigar o imaginário
para a criação poética. O poeta, performer e jornalista Paulo Melo Souza foi o coordenador do
evento. Mais à frente nos tornaríamos amigos e começaríamos a cumprir juntos um papel estético
36
Caminhadas de universitários de origem popular
onde a poesia e a arte da performance comporiam o vivo diálogo entre espíritos que se inquietam
rumo à fabulação do real. Paulo, juntamente com o também poeta, amigo e crítico de arte, Couto
Correa Filho, contribuíram bastante para o início da minha formação literária. Ambos me abriram
as portas de suas bibliotecas, num ato explícito de “bondade envenenada”. À la Genet, “eles me
contagiaram com o seu mal para poderem se libertar dele.” Couto Correa Filho, grande anfitrião,
fez de sua casa a “Movelaria Guanabara”1 da minha geração, promovendo memoráveis encontros
regados à literatura, artes, vinhos e boa comida.
Em 1996, tive meus primeiros poemas selecionados para compor a Antologia Poética
Safra 90, obra editada pela Secretaria de Cultura do Estado que tinha por finalidade
apresentar a minha geração. Em 1998, sete anos após a descoberta definitiva das leituras,
recebo duas premiações na área da literatura: o primeiro lugar no XXIV Concurso Literário
e Artístico Cidade de São Luís e o primeiro lugar no XII Festival Maranhense de Poesia.
Ambos realizados, respectivamente, pela Fundação de Cultura do Município-FUNC e pela
Universidade Federal do Maranhão-UFMA. A premiação da FUNC possibilitou, em 1999, o
lançamento do meu primeiro livro de poemas: O Círculo das Pálpebras. Ainda em 1998,
começo a me inquietar e a me angustiar profundamente com o processo teatral maranhense
e decido começar a escrever nos principais jornais da cidade comentários críticos sobre
nossas produções. O único crítico teatral da cidade, Ubiratan Teixeira, abraça a idéia e me
felicita num artigo de fim de ano, no seu espaço de crônicas no jornal O Estado do Maranhão.
No ano de 1999, além do lançamento do livro, passo a integrar o grupo de comentaristas
do Programa Cultural, apresentado pela jornalista Maria José Costa, na rádio Mirante-AM.
Na virada de 2000 para 2001, fui indicado pelo artista plástico e amigo Binho Dushinka
para fazer uma seleção para monitor da Mostra do Redescobrimento que comemoraria os
500 anos do Brasil. Participei de todo o processo e ao final consegui ficar. Os cinco meses
que permaneci por lá (a exposição aconteceu no Convento das Mercês) foram esteticamente
os mais viscerais da minha existência. Sobretudo no que tange aos estudos do módulo do
inconsciente e da arqueologia.
Em 2002, fui outra vez premiado no Concurso Literário e Artístico Cidade de São
Luís. Desta feita, agraciado com o segundo lugar pela obra O Círculo da Vertigem. De 2002
para 2003, ministrei oficinas de produção textual voltadas para a terceira idade e trabalhei
como monitor nas exposições A Herança Cultural da China e Mostra Fotográfica de
Artefatos Indígenas, ambas, realizadas pela galeria de arte do SESC.
Em 2004, tive outros poemas selecionados para participar da seção “Dom Casmurro”,
do jornal literário O Rascunho, de Curitiba. Ainda neste ano, consegui ser selecionado para
fazer uma oficina de interpretação para ator com o grupo “Lume”, de Campinas, em São
Paulo. Fui, fiz e me perturbei o suficiente para perceber que preciso ancorar naquelas plagas.
São Paulo está para além da esfera de bairro ou cidade que caracteriza, por exemplo, o Rio
de Janeiro, que conheci recentemente. São Paulo é o mundo. Para este ilhado andarilho que
já residiu nos seguintes bairros de São Luís: Santo Antonio, Macaúba, Belira, Liberdade,
Bairro de Fátima e Cohatrac e atualmente reside no Tambaú, município de Paço do Lumiar,
ir para Sampa redimensionaria a relação de conflito com esta limitada geografia. A busca
por uma geografia de “exílio” potencializaria minha geografia imaginária.
1
Reduto de intelectuais e artistas maranhenses no final da década de 40
Universidade Federal do Maranhão
37
Agora em 2005, após ter ido a Porto Alegre participar do V Fórum Social Mundial,
experiência ótima por ter propiciado um saudável embate entre o desencantado que em mim
habita e o “torcedor de ocasião”, ingresso no Curso de Teatro da Universidade Federal do
Maranhão. Estar na universidade nunca fez parte do meu projeto de vida. Na verdade, nunca
tive um projeto de vida. Exatamente por isso, tive mais implicações que o lugar-comum dos
que simplesmente passaram. Demorei muito tempo para estar na universidade. Nunca senti em
mim uma vocação acadêmica clamando entre meus neurônios. Aliás, nunca senti em mim uma
vocação para especialista. E não poderia ser diferente já que passei os últimos treze anos
sendo um autodidata. Nunca precisei de uma instituição escolar me impondo a consciência
para a necessidade de estudar. Sempre estudei porque era e é uma maneira de falsear algum
entendimento sobre a vida. Hoje me desencanto com facilidade até das minhas principais
paixões: a literatura, o teatro, o amor pela carne e o vinho (Dão, de preferência!). De alguma
forma estranha e inusitada, tal condição me trouxe para cá, para dentro do Curso. Vim para a
discussão, a boa discussão. Vim para potencializar o “equilíbrio precário” em todos os seus
sentidos, como bem o faz o Abujamra no seu “Provocações”. Acredito que só exista diálogo
vivo entre antagônicos, fora disso, o que há são apáticas concordâncias entre os que mormente
contemplam e se contentam com tal condição. Evoé, Baco!!!
38
Caminhadas de universitários de origem popular
Participações especiais
Elieser Barros Madeira *
“Se não houver frutos, valeu a beleza
das flores
Se não houver flores, valeu a sombra
das folhas
Se não houver folhas, valeu a intensão
da semente.”
Henfil
Nasci em São José de Ribamar, cidade balneária, situada a 32 km de São Luís, na
parte oriental da Ilha; o município é também um importante centro de peregrinação e
romarias. Para meu irmão mais velho, essa localidade possuía (ou possui) analogia com
a cidade de “O Bem Amado”- novela exibida pela TV Globo nos anos 70 do século XX.
Tal comparação, segundo ele, se deve à extrema pobreza que existia nas duas cidades:
a real e a fictícia. Meus pais nasceram em São João Batista, mas moraram em Monção,
município da Baixada Maranhense, e chegaram à capital maranhense na primeira metade
dos anos 50; posteriormente, mudaram-se para São José de Ribamar, no final da década
citada. Meu pai, que era fabricante de caixões, resolveu se estabelecer em “Ribamar”
por achar que, na região, havia uma carência de profissionais deste oficio. Minha mãe,
que possui um temperamento forte, o seguiu, mesmo a contragosto, reflexo de uma
educação provinciana.
Sou penúltimo filho de Dona Isabel com Salustiano, numa família com doze filhos.
Apenas dois não sobreviveram: a quarta e a última filha que morreu com apenas quatro
meses, tornando-me o caçula da família. Essa linhagem é composta por quatro mulheres e
seis homens. Embora meus pais não possuíssem educação escolar suficiente, eles sabiam o
quanto isso era importante para os filhos. Motivo pelo qual por nenhum momento
abandonamos a escola. Destaco aqui a importância da minha mãe, não que tenha havido
omissão do meu pai para o desempenho dessa função. Dona Belinha alfabetizou todos os
filhos, tivemos a prerrogativa de iniciar os estudos sabendo ler e escrever. Seu método de
ensino era bastante rigoroso, porém eficaz. Do lado paterno, aprendemos a não supervalorizar
coisas frívolas (festas) e a respeitar a vida - não queria animais silvestres dentro de casa. Ele,
assim como minha mãe, nos corrigia quando errávamos.
*
Graduando em História Licenciatura na UFMA.
Universidade Federal do Maranhão
39
Minha fase infanto-juvenil foi marcada por momentos bons e ruins. Andei de bicicleta,
nadei nos igarapés e joguei bola. Porém, jogar bola na rua foi complicado, pois um dia me
levaram à delegacia por causa disso. A culpa foi de um vizinho recém-chegado à rua que era
evangélico e que não gostava dessa atividade na sua porta. O meu argumento de defesa foi
que não havia atentado ao pudor durante essas “peladas” vespertinas.
Nossa família, passou por muitas privações, principalmente em São José de Ribamar,
pois lá eram raras as oportunidades de emprego. Logo, minha mãe, sempre perspicaz,
incentivou meu pai a se mudar para São Luís. Filhos crescendo desempregados não é bom.
Mudamos então para a capital maranhense, eu estava com cinco anos. Nós nos estabelecemos,
primeiramente, no Sá-Viana - bairro popular próximo à UFMA-depois, nos mudamos para a
Vila Embratel, bairro onde moro até hoje. Essa mudança nos trouxe uma grande expectativa
de vida: meus irmãos trabalhando, aumento da renda familiar etc, porém, a tragédia abateu
nossa família: meu pai faleceu. Eu estava com quatorze anos quando isso aconteceu. Este
fato marcou, para mim, a conscientização do rumo que minha vida iria ter. Direcionei meus
objetivos para a educação, com a intenção de concluir o segundo grau (Ensino Médio). A
família tornou-se matriarcal, não que antes houvesse patriarcalismo inflexível, pois essa
linhagem não vivia sob nenhuma “ditadura paterna”.
Não parei de estudar, contudo, não desejava um curso superior, e sim um emprego. Até
certo ponto, essa idéia era interessante porque eu não tinha maturidade para escolher a área.
Concluí o Ensino Fundamental na Escola “Francisco de Assis Ximenes Aragão”, localizada
na Vila Embratel. Meu Ensino Fundamental foi precário, porque as aulas eram ministradas
pela televisão; logo, se alguém tivesse uma dúvida em qualquer disciplina, nem sempre era
auxiliado pela professora. Nesse período, fui reprovado na 3ª série. No Ensino Médio estudei
no “Liceu Maranhense”, escola pública de maior prestígio em São Luís. Essa afirmativa se
deve à grande presença de estudantes universitários procedentes dessa escola. Aqui, também
repeti o ano (1º série), porém, a cobrança foi maior por causa dos gastos com passagens e
livros. Estudava no período da tarde; anos antes, um dos meus irmãos estudou lá à noite e
comentou que existia uma diferença de ensino do período diurno para o noturno. Ele quase
não tinha aula de Física e Química. No ano seguinte, a minha reprovação, fui o destaque da
sala por ter apresentado as melhores notas.
Ao concluir o Ensino Médio, passei por uma “fase negra”, imaginando que, com esse
diploma de conclusão, conseguiria um emprego facilmente, seria independente, e depois
pagaria um cursinho preparatório para entrar na Universidade. Aos 16 anos, tive consciência
da minha negritude da pior forma possível e a polícia tem participação especial nesta
conscientização. Era um domingo à tarde e estávamos dentro da área da Universidade
Federal quando fomos abordados por três policiais militares que faziam a segurança da
Instituição. Éramos cinco pessoas, das quais dois eram negros, eu e um amigo; estávamos
comendo mangas. Quando eles pararam o carro, o outro rapaz negro, desesperado, adentrou o
matagal. Eu, ciente que comer mangas não constitui uma infração grave, esperei uma advertência
verbal. O que não aconteceu. Fui surrado e xingado, enquanto os outros eram advertidos.
Infelizmente, algo semelhante aconteceu no início de 2006, novamente dentro da área da UFMA.
Os seguranças da empresa particular, prestadora de serviço a essa Universidade, me abordaram
agressivamente e pediram minha identificação porque achavam que não tinha (ou tenho) o
estereótipo de um universitário (negro, cabeludo e trajando bermudas). Esses fatos demonstram
que tanto a polícia, quanto a segurança privada, são compostas por pessoas despreparadas.
40
Caminhadas de universitários de origem popular
O acesso à universidade foi longo e árduo, pois prestei meu primeiro vestibular anos
depois. Foi horrível, não estudava em cursinho, nem trabalhava, fiz porque havia passado na
isenção da taxa. O curso escolhido foi Física Licenciatura, na UFMA. Levei “bomba”. Em
1999, comecei a trabalhar como ajudante de carpintaria com o meu terceiro irmão, porém,
fiquei isento na UEMA (Universidade Estadual do Maranhão) e o curso escolhido foi o
mesmo do primeiro vestibular, bem como o resultado. Percebi o quanto era (ou é) difícil
trabalhar e estudar ao mesmo tempo. No ano seguinte, isento novamente, me escrevi no curso
de Desenho Industrial. Desejava ainda a área técnica, mas percebi que os meus conhecimentos
sobre as Ciências Exatas eram ínfimos. O resultado não foi diferente dos anteriores.
Em 2001, como estava desempregado, passei a lecionar aulas particulares e, caso não
ficasse isento, poderia pagar a inscrição. Todavia, ganhei a isenção novamente, e o curso
escolhido pertencia à área de humanas: Letras, estimulado por uma amiga que lecionava
numa escola do Ensino Médio, aqui no bairro. A concorrência me eliminou. No ano seguinte,
foi muito bom, porque fui indicado para ensinar Matemática do Ensino Fundamental no
programa governamental “Capacitação Solidária”. Em março do mesmo ano, iniciaram-se
as atividades do CVARTE (Centro de Vivência e Arte), ONG da qual sou sócio-fundador. O
objetivo dessa organização, é a realização de trabalhos voltados para minha comunidade.
Nesse ano, não prestei nenhum vestibular.
O ano de 2003, apesar do desemprego, foi marcante, pois comecei a ministrar aulas a
duas garotas do Bairro da Liberdade que estudavam no Colégio “Santa Teresa” (considerada
uma das melhores escolas privadas de São Luís). Além disso, por estar participando do
“Vestibular da Cidadania”, uma ação conjunta entre a UEMA e a UFMA, ganhei a isenção
nas duas universidades. Dessa vez, faltou muito pouco para passar, mas fiquei estimulado
para o ano seguinte. Os cursos escolhidos foram da área de humanas: Ciências Sociais, na
UFMA e História Licenciatura, na UEMA.
No início de 2004, antes da realização das provas, comecei a trabalhar como educador do
PETI (Programa de Erradicação do Trabalho Infantil) da PAMEM (Pastoral do Menor), o que me
proporcionou uma experiência rica no magistério. As crianças dessa “Escolinha” estavam em
situação de risco, pois algumas passavam por problemas graves ocorridos dentro de suas famílias.
Nós, os educadores, analisávamos o comportamento desses garotos e garotas para depois encaminhálos ao Psicólogo da Pastoral. Quando saiu o resultado do vestibular em 25 de fevereiro de 2004,
uma vizinha me chamou para os parabéns pela minha conquista (nem sabia que tinha passado).
Permaneci no PETI somente um ano, porque era inevitável trabalhar e estudar simultaneamente,
no período vespertino. Esse vestibular, foi o único em que não fiquei isento, tive que pagar a taxa
de inscrição. Iniciei, com muita ansiedade, na Universidade Federal do Maranhão, o curso de
História Licenciatura em 20 de setembro de 2004, após minha sétima tentativa em mais de seis
anos de luta (houve ano em que fiz dois vestibulares em universidades diferentes).
Como foi relatado, minha vida foi marcada por participações especiais: positivas
(minha família e meus amigos) e negativas que contribuíram (e ainda contribuem), para
tornar-me um protagonista forte nessa trajetória de lutar, pois estou apenas começando
minha história. Relembrando a bela canção do Renato Russo:
“A nossa história não está pelo avesso assim,
sem final feliz, teremos coisas bonitas pra cantar...
E até lá, vamos viver, temos muito ainda por fazer...”
Universidade Federal do Maranhão
41
Programa Conexões de Saberes
Eliete da Silva Cruz *
A chuva que caía na ilha de São Luís do Maranhão, em 31 de maio do ano 1980, não
somente representava um fenômeno natural, como também, marcava minha vinda ao mundo,
transbordando de alegria os meus pais, senhora Ruth e senhor Raimundo Cruz, que, sem
motivo expressivo, me deram o nome de Eliete.
É impossível descrever minha existência, meu ser, sem considerar o trabalho dos meus
pais. Eles doaram toda dedicação e amor a minha vida que logo se tornou reflexo deste
compromisso humano. Minha mãe, era uma simples doméstica na qual encontrei o referencial
quanto ao posicionar-se diante do mundo, e assim, herdei dela a persistência, a força para
lutar diante das adversidades e a sensibilidade para apreciar cada segundo da vida; já meu
pai, servidor público, ensinou-me a amar a educação e a tê-la como ideal.
Foi a partir dessa visão de mundo que, aos quatro anos de idade, comecei a freqüentar
a escola intitulada SESI, uma escola pública onde estudei por dez anos. Nesta instituição
fui apresentada ao fantástico mundo das letras, e aos cinco anos, li meu primeiro livro
cujo título era: Meu barquinho amarelo, através do qual não só exercitava minha leitura,
como ainda viajava pelo mundo da imaginação, excitada pelas mais belas figuras que
constituíam a obra.
Momento espetacular para mim, pois, mais do que aprendiz, posicionei-me como
anunciadora aos meus parentes e coleguinhas das boas-novas sobre o desvelar da
leitura. Tudo o que queria, nesse momento de descoberta e conquista, era ler tudo e
para todos.
Extasiada pelo maravilhoso ato de ler, adentrei no Ensino Fundamental ansiosa pelas
novas formas de aprendizagem, convicta da minha capacidade de desbravar este novo
estágio de educação. Não encontrei dificuldades nas novas disciplinas que cursei, afinal,
não sou autodidata, porém, dedicação, observação e facilidade por compreender aquilo que
me é ensinado, constam como minhas características e conseqüentemente obtinha aprovação
em todas as séries.
Os dez primeiros anos de minha vida escolar foram preponderantes para a minha
chegada ao Ensino Médio. Nestes anos, conheci bons professores, construí laços de amizade
que atualmente ainda vigoram, sofri preconceitos religioso e racial, e por todos esses fatores,
neguei a intolerância humana, optando pelos melhores sentimentos através dos quais o
homem pode construir um mundo melhor.
*
Graduanda em Filosofia UFMA.
42
Caminhadas de universitários de origem popular
Em 1994, tive que me desligar do meu segundo lar, o SESI, porque não havia em tal
escola o segundo grau, hoje, Ensino Médio. Iniciava-se, assim, a busca por uma vaga em
escolas secundaristas, no entanto tal empreitada não foi árdua, afinal, a direção escolar do
SESI encaminhou-me, sem a necessidade de participar dos eventuais processos seletivos,
já que tinha obtido no Ensino Fundamental um bom histórico escolar, com boas notas e
bom comportamento, a várias escolas estaduais com essa graduação de ensino, cabendo a
mim a opção por uma delas. Não optei por nenhuma das alternativas disponíveis. Então,
por influência dos meus pais que acreditavam na garantia de um emprego advindo de
educação profissionalizante, participei do processo seletivo do CEFET e logrei êxito,
tendo sido aprovada.
Cursei minha nova fase escolar no CEFET, adquirindo conhecimentos necessários
para minha aprovação no vestibular e descobrindo aquilo que não queria para minha vida:
ser uma técnica em eletrotécnica. No término do curso, em 1999, para decepção da minha
família, não consegui estágio, muito menos um emprego nas empresas conveniadas com o
centro tecnológico. Assim, enveredei-me pelo caminho dos vestibulares tanto nas
Universidades Federal e Estadual do Maranhão, como até mesmo no CEFET.
Analogamente à inexistência de brilho dissipado pelo Sol quando a chuva encena seu
papel no palco da natureza, a luminosidade da minha vida estava ofuscada pelas reprovações
nos vestibulares. Foram três anos sem vitória nos processos seletivos, e sobretudo, sem adentrar
no mercado de trabalho, vindo o desânimo e a insegurança que me levaram ao estado de inércia.
Nesse momento de improdutividade, minha família, em especial meus pais, demonstraram
todo o carinho e a crença em mim, fazendo-me ver as adversidades no mundo e que a postura
guerreira diante delas é o diferencial. Então, resolvi participar da seleção para o cursinho prévestibular da cidadania, promovido pelo Governo do Estado. O fator determinante para minha
decisão foi o valor da bolsa que seria fornecido aos aprovados no seletivo.
Fui aprovada, e como prenúncio de uma conquista maior, cursei todo o pré-vestibular
no prédio da Universidade Federal do Maranhão. Destino? Estava freqüentando a
universidade dos meus sonhos, como aluna de cursinho, é claro! Mas habituava-me e
sentia-me como parte do atraente mundo acadêmico.
Influenciada pela pouca concorrência e pelas belas aulas de filosofia no cursinho,
optei por este curso no vestibular. A chuva passara, cedendo lugar ao Sol que irradiava seu
brilho na minha vida, tocando as sementes lançadas nas mais diversas fases da minha
existência, pelos meus pais e educadores.
Fui aprovada para o Curso de Filosofia oferecido pela UFMA, e no mesmo período,
conquistei meu primeiro emprego, que exigia tempo integral, gerando incompatibilidade
de horário com meu curso. Mais uma vez houve a necessidade de escolher. A intervenção do
meu pai foi primordial, ainda que não apreciasse a minha opção acadêmica, estudante de
Filosofia, pois seu amor maior era pela educação em seus mais variados graus. Logo, eu
podia deixar o trabalho e seguir os estudos, tendo certeza do seu esforço financeiro para
comigo, nesta nova fase de estudante.
Em 2003, adentrei na universidade, universo aspirado desde os primeiros anos de vida
escolar e que deixava de ser enigmático a cada período cursado. Posicionava-me cada vez
mais como ser consciente do dever humano no qual nada permanece idêntico a si mesmo;
assim, minha vida é um processo contínuo de inacabamento e as buscas, sejam elas
espirituais, sejam emotivas ou sociais, são incessantes diante de cada conquista.
Universidade Federal do Maranhão
43
No jogo da existência humana, acredito ser personagem fundamental a fim de participar
e interagir com o público adolescente, pois, em minha caminhada, o objetivo principal é
trabalhar como professora, tendo como meio a formação acadêmica, não só na graduação,
mas em um Mestrado cursado num país de língua inglesa, a exemplo do Canadá.
Acredito também, em conformidade com Heráclito, ser o movimento a realidade
verdadeira. Assim, continuo minha caminhada!
44
Caminhadas de universitários de origem popular
“É caminhando que se faz o caminho...”
Iracema Andrade Luz *
Caro leitor, escrever este memorial não significou apenas falar sobre mim, mas também,
relembrar vários acontecimentos marcantes em minha vida que são muito significativos no
que diz respeito a minha vida universitária. Confesso, que não foi fácil relembrar certos
momentos difíceis, mas espero contribuir para que outros se sintam capazes de ir em busca
de seus ideais.
Falar de mim, antes de tudo, é falar dos precursores da minha história, meus pais.
Estes que, apesar de toda uma luta para chegarem onde estão, buscam também ver em seus
filhos o retrato dos sonhos não realizados. Em especial, minha mãe: mulher honesta,
guerreira e otimista que, apesar de tudo, conserva em seu rosto a alegria e a esperança de
dias melhores.
Meus pais
Minha mãe chama-se Tânia. Ela nasceu em 1963, em São Luís, capital do Estado.
Filha de mãe solteira, sentiu na pele todas as conseqüências de uma família desestruturada.
Sua infância, como ela sempre diz, “não tive”, ficou marcada apenas pelas companhias
de sua avó e de sua tia que a criaram até os cinco anos, pois sua mãe teve que trabalhar em
“casa de família” para seu sustento. Em seguida, foi morar com a mãe e o padrasto e mais
tarde com três irmãos, permanecendo com eles até os quinze anos. Neste período, viveu o
regime conservador que lhe era imposto a todo momento, principalmente pela mãe que era
bastante rigorosa nesse sentido.
Começou a trabalhar com treze anos, conferindo-lhe a mesma herança de sua mãe:
“casa de família”; isso porque precisava suprir suas necessidades e ter sua independência.
Contudo, por motivo de doença, parou aos dezesseis anos. Logo após, só restou fazer
pequenos “bicos” para ajudar no sustento da família.
Estudou do jardim até a 5ª série em escola pública, repetindo a 1ª série devido ao
fraco ensino. O restante do ginásio até o 2º ano do antigo 2º grau foram cursados em
escola particular, dos quais da 6ª até a 8ª série era bolsista. Os dois anos do 2º grau,
ela mesma custeou com o que ganhava no seu trabalho. Alguns anos depois, repetiu todo
o 2º grau, por causa de um problema de documentação escolar, só que como técnica
em contabilidade.
*
Graduanda em Matemática na UFMA.
Universidade Federal do Maranhão
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Meu pai chama-se Bento. Ele nasceu em 1955, no interior de Montes Claros, município
de Pinheiro, Maranhão. É o segundo de uma família de dez filhos, dos quais dois faleceram
ainda quando crianças. Conviveu com seus pais até os sete anos. Em seguida, foi morar com
seus avós maternos e alguns tios em Mundico, no interior de Pinheiro. Nesta época, iniciou
a escola primária, tendo concluído a alfabetização. Nas horas vagas, ajudava seu avô na
roça e fazia alguns “bicos”. Devido ao alistamento militar, veio para capital, acomodandose em casa de parentes.
Para manter-se na capital, continuou fazendo “bicos”, e através deles, cursou o ginásio. Já
o 2º grau, chamado de educação geral, cursou em escola federal, só que incompleto (1º e 2º ano).
Aprendeu, através de grandes dificuldades, a profissão de pedreiro, e por causa dela, fez
um curso de mestre de obras por correspondência, o qual até hoje lhe serve de grande ajuda.
Meus pais se conheceram quando meu pai veio para a capital. Nessa época, minha mãe
tinha nove anos e diz não se lembrar de papai, mas ele diz que ela tinha antipatia por ele,
principalmente quando ele dizia que um dia se casariam. Com o decorrer do tempo, foram
se conhecendo melhor e assim resolveram namorar, só que por correspondência, pois minha
mãe viajou a trabalho para a Bahia. Após um ano, ela voltou e então se casaram.
Eles casaram-se em 1980. Meu pai com vinte e cinco anos e minha mãe com dezesseis.
Moraram primeiramente na casa dos meus avós paternos, mas como dizem: “Quem casa
quer casa”. Minha mãe logo tomou a iniciativa. Então, mudaram-se para um quarto alugado,
ou melhor, um casebre caindo aos pedaços, quando, depois de algum tempo, compraram um
terreno e fizeram uma casa de taipa no atual lugar onde moro, Gancharia. Neste lugar não
havia água, luz ou tráfego de qualquer veículo, apenas mato e umas poucas casas e ruas
cheias de lama, que às vezes transbordavam com a água da chuva.
Dessa relação, nasceram quatro filhos: Eduardo, eu (Iracema), Ribamar e Elvis. Como
nascemos um em cada ano, minha mãe decidiu que não teria mais filhos após o seu último
parto e optou pela ligadura de trompas.
Meus irmãos
Dos meus irmãos gostaria de dar destaque ao Ribamar, pois ele é o motivo da luta de
cada dia em nossa família, ou melhor, da minha mãe.
Ele é a “criancinha” da família, assim como também é tratado, ou seja, uma criança especial.
Tudo começou ainda na sua infância, pois ele era diferente em seu modo de agir em
relação aos outros irmãos. Embora tivesse sempre o acompanhamento de pediatras, estes
nada diziam. Então, quando completou quatro anos, já na escola, a falta de integração
social reforçou a idéia de que algo não estava bem com ele.
Auxiliada por um amigo médico, minha mãe foi indicada por uma carta de
recomendação ao Dr. Fernando Ramos, atual reitor da UFMA, para acompanhar meu irmão,
pois, nessa época, não só havia muita burocracia, como também ele só atendia quem era
paciente dele.
Fernando Ramos dizia que meu irmão era surdo-mudo, contudo minha mãe observava
o contrário no dia-a-dia. Assim, Ribamar foi encaminhado para um eletroencefalograma e
uma audiometria, o que até hoje ele não deixa fazer. No eletroencefalograma foi apontada
uma disritmia (pequena lesão no cérebro). Então, o médico o encaminhou para a APAE
(Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais) e para uma escola com jardim para classe
especial. Ele freqüentou a APAE por doze anos, lá, fez tratamento com fonoaudiólogos,
46
Caminhadas de universitários de origem popular
psicólogos, neuropediatras, psicomotricistas, entre outras atividades para seu
desenvolvimento, além da escola, é claro, onde passou dois anos no jardim classe especial,
e três anos desenvolvendo trabalhos como tapeçaria, pintura, entre outros. Além disso,
freqüentou um ano de classe especial regular em uma escola pública. Nesse período, meu
irmão começou a utilizar remédios controlados paralelamente com o tratamento, fazendo
com que minha mãe trabalhasse informalmente para custear seu tratamento.
Como se pode notar, a vida de minha mãe era bastante corriqueira e ao mesmo tempo
cansativa, mas apesar de tudo, era compensada com a tentativa de uma vida “normal”
para meu irmão.
Eduardo, meu irmão mais velho, sempre foi calmo, organizado e preocupado em
ajudar a família. Apesar de ser um pouco ciumento, minha relação com ele sempre foi
amigável. Ele fez o curso técnico em eletrotécnica no ETEMA, mas concluiu como Educação
Geral, antigo 2º grau, por motivos que irei comentar mais adiante.
Elvis, meu irmão caçula, como dizem, é a “bênção” da família. Desde a infância era
motivo de preocupação, pois sempre vinha da escola com algo novo para contar e remendar,
pois vivia causando lesões no corpo por causa de suas travessuras. Embora fosse um pouco
rebelde, quando o assunto eram notas, tirava as melhores, isso até a 4ª série. Da 5ª série em
diante, já em uma outra escola, começou a relaxar nos estudos, faltava muito às aulas por
causa de vídeo-game com os colegas, e com muita dificuldade, terminou o ginásio. O 2º
grau, como era de se esperar, não foi muito diferente, abandonou algumas vezes, mas enfim,
terminou. Hoje, trabalha de ajudante com meu pai e está atrás de um emprego melhor,
mesmo que seja na construção civil. Minha relação com ele é amigável na medida do
possível, pois não gosto da sua falta de bom senso em relação aos nossos pais.
1982 meu nascimento
Nasci no dia 27 de fevereiro de 1982, em São Luís, capital do Estado.
Devido à ocupação da minha mãe com meus outros irmãos e à escola ser muito longe,
tive que morar com minha avó materna e com uns tios. Eduardo também já vivia com eles
devido a alguns problemas de saúde e ao fato de o hospital ser muito distante da nossa casa.
Desse período, quase não tenho recordações e as que lembro ainda não foram as
melhores, pois Eduardo e eu não gostávamos do conservadorismo de nossa avó. Além do
mais, eu tinha um problema muito comum em crianças da minha idade, não conseguia
controlar os meus esfíncteres. O que não só me fazia sentir mal, como me provocava medo,
porque apanhava. Em função disso, demorei bastante para superar esta fase.
Lembro-me também, das horas de estudo com minha tia Elza, irmã da minha mãe. Ela
era quem nos ensinava os deveres de casa, mas não tinha paciência para isso. Um exemplo
se deu quando eu estava aprendendo os encontros consonantais. Ela falava, repetia, e quando
chegava a minha vez, não conseguia pronunciar corretamente e aí puxava minhas orelhas e
me beslicava. Até hoje, tenho dificuldades com alguns deles.
Fase escolar
Estudei sete anos na Escola Comunitária “Criamor”, situada no Anjo da Guarda,
próximo à casa da minha avó materna. Lá, cursei do jardim até o primário. Nesta escola
aprendi, além das matérias, os bons costumes com disciplina e também sobre a pessoa
de Jesus Cristo.
Universidade Federal do Maranhão
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No jardim, apenas me lembro do meu problema com os esfíncteres e dos desfiles à
fantasia no sete de setembro. No primário, eu achava estranho o meu nome, não gostava,
pois me perguntava de onde papai o havia tirado, sendo tão diferente dos outros. Gostava
de estudar, e mesmo que não gostasse, teria de ser obrigada a isso, porque meus pais, ou
melhor, minha mãe, exigia de mim e dos meus irmãos como forma de “compensar” seus
esforços com a nossa educação. Nessa fase, participei das antigas rodas de tabuada, que me
davam medo e me obrigavam a estudar de qualquer jeito, senão era castigada através da
psicologia tradicional, ou seja, apanhava nas mãos com uma tábua. Foi exatamente isso que
aconteceu certa vez. Fiquei não só com as mãos vermelhas, como inchadas.
Em 1993, já no ginásio, estava em uma escola pública chamada “Unidade Integrada
‘Y’ Bacanga”, situada num bairro próximo ao Anjo da Guarda. Fui transferida para lá
porque meus pais não tinham como me manter na antiga escola, o que já havia acontecido
com o Eduardo, e mais adiante, aconteceria com Elvis. Nesta escola, a maior dificuldade
que encontrei no início foi a divisão de professores por disciplina, o que ocasionou certa
confusão na minha cabeça.
Na 6ª série, descobri que algo que já tinha sido tão fácil de aprender se tornara um
“bicho de sete-cabeças”, parecendo até piada hoje. A matemática causava uma confusão
de assuntos, fórmulas que eu imaginava como iria absorver. Durante esse ano, mudaram
os professores dessa disciplina três vezes e cada um chegava dizendo algo novo do jeito
que queria. Indicado pela minha última professora, procurei um professor particular, o seu
afilhado William que não só me ajudou a passar, como nos tornamos amigos inseparáveis.
Ele foi de grande ajuda no que diz respeito não só à Matemática, mas também, quanto ao
incentivo que sempre me deu para lutar pelos meus ideais.
1996
Na 8ª série a minha preocupação era cursar um curso técnico no CEFET. Sonhava com
a idéia de ter uma formação e trabalhar. Então, me preparei em cursinho onde William era
professor, e assim, encarei o Provão no final de 1996.
Enquanto adolescente, não dei trabalho, pois fui educada desde a infância para um
amadurecimento precoce e também não queria ser mais um motivo de preocupação para
meus pais. Vivia para os estudos e para a igreja, sendo que, na igreja, era catequista, o que me
dava muita alegria. Hoje, a igreja se tornou uma peça fundamental em minha vida, pois,
além da catequese, estou no grupo de jovens, na liturgia e também na coordenação geral.
Gostaria de mencionar que, em maio desse ano, a vida da minha família deu uma
grande reviravolta, com a 1ª crise convulsiva de Ribamar. Ele teve oito crises consecutivas
e foi parar no Pronto-socorro. Com a crise, seu quadro clínico se transformou. Houve uma
regressão em todos os aspectos. Começou a se alimentar muito pouco ou quase nada, entre
outros comportamentos difíceis de entender, principalmente a agressividade.
Desde a primeira crise, nunca mais foi o mesmo. Continua tendo crises só que mais
leves, evoluindo assim seu quadro clínico, o que o tem tornado mais dependente de minha
mãe. Levando em conta seu novo comportamento, no ano posterior, a sua neuropediatra
detectou um retardo mental.
Como não passei no CEFET, o jeito foi cursar o 2º grau no ETEMA (Escola Técnica
Estadual do Maranhão), em 1997. Não fiz um curso técnico por lá porque, a partir desse ano,
tinha sido extinto. Lá, me senti um pouco desmotivada em relação à metodologia de alguns
48
Caminhadas de universitários de origem popular
professores que tornavam a disciplina muito chata. Nesse período, tentei novamente para o
CEFET e não consegui passar outra vez.
1998
Em maio desse ano, houve uma nova mudança no quadro clínico de Ribamar. Ele teve
a 1ª crise psiquiátrica que reforçou sua agressividade, tendo que ser amarrado na cama para
evitar a internação, pois minha mãe temia pelos maus tratos se isso acontecesse. Contudo,
foi inevitável, mas ela pôde acompanhá-lo. Assim, ele passou três dias internado, e em
conseqüência, adquiriu o vírus Guilliam Barré, provocando-lhe cegueira por quinze dias,
paralisia dos membros inferiores e de toda a coordenação motora por oito meses. Foi
transferido para outro hospital e passou um mês e vinte e seis dias se tratando. Logo após,
foi encaminhado para o Sarah, onde ficou dez dias e depois voltou para casa a fim de
continuar se recuperando. Nesse período, sua psiquiatra detectou um autismo infantil.
1999
Cursando o 3º ano, lembro-me de que meus amigos se preocupavam com o vestibular
e eu nem pensava em tentar, por achar que não tinha aprendido o suficiente para isso e que,
para passar, precisava fazer um cursinho para o qual não tinha dinheiro para pagar. Pensava
que, ao terminar o 2ª grau, tinha que conseguir um emprego para ajudar de alguma forma
minha família.
Após dois meses da recuperação de Ribamar, veio outro momento difícil, talvez o
mais difícil. Eduardo estava no 3º ano de eletrotécnica, sonhava com o término do curso e
com novas perspectivas que lhe poderia proporcionar, foi quando uma simples bolada
mudou sua vida. Diante das dores, inchaço e da falta de apoio, minha mãe resolveu levá-lo
ao Sarah, sendo encaminhado para o Aldenora Belo e lá descobriram que aquilo que parecia
uma simples lesão era mais grave do que imaginavam. Era um câncer maligno, chamado
osteossarcoma.
A partir daí, começou a luta não só pelo combate ao câncer, como também em relação
aos gastos para o tratamento, já que ele não poderia ser feito por aqui devido à falta de
recursos. Como minha mãe tinha uma irmã em Brasília, pediu-lhe que marcasse uma consulta
no Sarah o mais depressa possível, enquanto a nossa família se virava pedindo ajuda aos
familiares, amigos, igrejas, entre outros, para conseguirmos uma passagem de avião. Como
minha mãe não podia acompanhá-lo, minha avó se encarregou dessa tarefa.
Após a consulta no Sarah, ficou internado, fazendo novos exames, e através de uma
junta médica, chegaram a um acordo e mais à realização da quimioterapia para a redução do
tumor. Logo após, fez a 1ª cirurgia para a retirada do tumor, graças a Deus com sucesso.
Como ficou com um buraco entre as articulações do joelho, teve que fazer uma 2ª cirurgia
para um enxerto, sendo colocada uma platina, o que o impossibilitou de dobrar o joelho.
Ele e minha avó passaram dois anos sem vir até São Luís, e depois da última cirurgia,
passaram a vir mensalmente e depois anualmente, até que ele conseguisse a alta definitiva.
As passagens, após mais ou menos um ano em que começou a vir para São Luís, passaram a
ser fornecidas pelo Sarah, gratuitamente.
Hoje, passados dois anos da alta, apesar de ter ficado com um encurtamento de seis
centímetros, leva uma vida “normal”, superando a cada dia suas limitações e aproveitando
mais ainda esta nova oportunidade que Deus lhe deu.
Universidade Federal do Maranhão
49
Amigo Leitor, você deve perguntar-se onde está o meu pai nesta história toda, não é
mesmo? Infelizmente, desde a 1ª crise do Ribamar, ele já estava bebendo muito. Aquilo que
já tinha sido um esporte tornou-se uma prisão da qual ele não conseguia sair. Na época da
doença do Eduardo, seu alcoolismo, juntamente com o fumo, estava demais. Por isso, ele,
diante desses problemas, esteve basicamente ausente, sendo apenas mais uma das
preocupações. Atualmente, curado desses vícios após sua conversão, é uma nova pessoa,
comprometida com a família.
2001
Fiz mais uma vez a prova para o CEFET para os cursos de Telecomunicações, 1ª opção
e Desenho Industrial, 2ª opção. Enfim, passei! Passei para a 2ª opção devido à pontuação.
Embora tenha ficado contente com a notícia, queria mesmo era Telecomunicações. Cursei
dois anos nesta escola recebendo uma ajuda de custo como bolsa trabalho. Foi nessa época
que comecei a pensar em vestibular. Com a ajuda de uma amiga, consegui fazer um cursinho,
como bolsista. Ao final do curso técnico, tentei o 1º vestibular para Arquitetura e Urbanismo
na UEMA (Universidade Estadual do Maranhão) e também para Ciências da Computação
na UFMA, mas não passei nem na primeira etapa.
2002
Terminando o curso no CEFET, consegui um estágio, com ajuda de custo, num escritório
de Arquitetura e Design. Lá, conheci na prática a área que pensei que fosse exercer, mas não
me identifiquei com ela. Tentei de novo o vestibular, tanto para UFMA, quanto para a
UEMA nas áreas já mencionadas, e me decepcionei novamente.
2003
Nesse ano repensei minhas escolhas quanto à concorrência e principalmente quanto à
vocação, e resolvi fazer algo com a qual me identificasse e me desse prazer em cursar. Então,
pensei em Matemática, Pedagogia ou Serviço Social na UFMA, mas como não era bem nas
disciplinas específicas dos cursos de Pedagogia e Serviço Social, resolvi fazer para
Matemática, já que com os cálculos tinha mais facilidade, e além do mais, gostava muito da
idéia de ser professora dessa disciplina.
2004
Quando fiz a 1ª etapa, não tinha em mente que iria ser aprovada, devido às
decepções anteriores. De qualquer forma, tentava não ser pessimista e me concentrar
em meus objetivos.
Ao saber que estava na 2ª etapa pela 1ª vez, tive a força que precisava para confiar
mais em mim, no meu potencial. Terminei a prova acreditando que meu lugar era na
universidade, e por isso, merecia estar lá.
A minha ansiedade era tanta quanto a data do resultado que parecia não chegar, e ao
mesmo tempo, uma grande expectativa de saber se o meu nome estava entre os aprovados.
Quando saiu o resultado, eu não estava em casa, mas minha mãe, ouvindo a Rádio
Universidade, foi a primeira a saber da minha aprovação. Ao chegar perto de casa, parecia
que estava tendo uma festa quando os vizinhos me abordaram, dando-me a notícia, mas não
acreditava no que eles diziam. Foi quando olhei minha mãe radiante, e ao me dizer, tive a
50
Caminhadas de universitários de origem popular
certeza de que era verdade, e não um sonho. Jamais esquecerei o orgulho que vi em meus
pais, ao terem a certeza de que sua única filha era uma universitária. Foi como se dissessem:
“Valeu o nosso esforço! Valeu tudo o que passamos!”
Sempre vi a universidade como um espaço restrito a poucos, mas dizia a mim mesma:
“Se alguém que é mais experiente do que eu pode, por que eu não posso?” E passar
significou a confirmação disso, entretanto, quando entrei, percebi que não era preciso
apenas entrar, mas permanecer. E permanecer, realmente, é a parte mais difícil. Nesse
sentido, o “Conexões de Saberes” tem me ajudado bastante, pois me proporcionou não só
uma ajuda financeira, como também, a minha valorização como pessoa. Além da nova
família que encontrei, é claro!
Embora meu curso tenha um certo grau de dificuldade, amo a idéia de me tornar uma
professora de Matemática e não entendo por que muitas pessoas discriminam o fato de uma
mulher cursar Matemática. Para mim tem o mesmo valor de quem faz Medicina ou Direito,
ou qualquer outro curso. E não me considero uma louca pela minha opção, mas uma vitoriosa
por saber que poucos têm a coragem que tenho.
Enquanto universitária, vejo que subi apenas mais um degrau em meu caminho, mas
precisarei subir muitos outros. Agradeço muito a Deus pelas maravilhosas pessoas que colocou
em minha vida, em especial minha família, que são a motivação para seguir em frente.
Além da minha família, há várias pessoas que estiveram e estão sempre comigo, mas
como não daria para mencionar o nome de todos, agradecerei em nome deles através dos
meus amigos William, Antonia, Marcos Colins, Mauro Sérgio, Iolanda (UFMA), que sempre
me orientaram, motivaram e principalmente, me disseram quando pensei em desistir:
“Coragem! Você pode e vai conseguir!”
Do meu futuro espero apenas que Deus me dê muita saúde, porque, em relação ao que
preciso, posso ir em busca: como um trabalho, uma especialização e em breve construir uma
família ao lado de Manoel, meu noivo. Este que, desde quando nos conhecemos, sempre
esteve comigo, me apoiando e torcendo para que eu fosse uma vencedora! De coração,
obrigada meu amor!
Universidade Federal do Maranhão
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Detalhes de uma história inesquecível
Jardiane Moura Abreu *
Nome
Meu nome, Jardiane, foi escolhido pela minha mãe mesmo antes de casar-se. Ela diz
que não sabe onde ouviu esse nome pela primeira vez, apenas sabe que era um nome que lhe
chamava muita atenção, e que escolhera para ser o nome de sua primeira filha. Um nome
muito bonito, vocês não acham?
22 anos
Nasci em 15 de outubro de 1984, às 21h50m na maternidade Benedito Leite, na
cidade de São Luís, filha primogênita do casal Maria do Rosário de Moura Abreu e Agostinho
Lindoso Abreu. Segundo minha mãe, a sua gestação foi cheia de complicações. Ela conta
que não podia andar sozinha na rua que, sem mais nem menos, caísse desmaiada.
Ao nascer, pesei dois quilos e quatrocentos e cinqüenta gramas, fui um bebê saudável
até o sétimo mês de vida, porém, a partir do oitavo mês, tive início de pneumonia e asma;
esta última, perdurou até os sete anos de idade. Quando criança, vivia internada em hospitais.
Meu pai, conta que certa vez, chegou a brigar com uma enfermeira, pois ela não conseguia
puncionar minha veia para administrar o medicamento e me furou várias vezes, o que
deixou meu pai muito irritado. Ele diz que eu não podia ver ninguém vestido de branco que
logo chorava. Talvez o fato de eu estar boa parte de minha vida dentro de hospitais, me
levaram desde criança a ter vontade de seguir a carreira de enfermeira. O medo que se
transformou em desejo, um sonho que ainda não foi totalmente realizado.
Rua Gardênia Ribeiro Gonçalves, 10, Ivar-Saldanha
Já morei em quatro casas diferentes. Quando nasci, morei no bairro Sá Viana em uma casa
que meus pais alugaram. Um dia, minha mãe, saiu para comprar algumas coisas e me deixou
dormindo, porém, antes que ela voltasse, acordei e comecei a chorar. Uma vizinha, muito
amiga dela, que também tinha uma filha de idade muito próxima da minha, me ouviu e foi até
minha casa, pulou a janela, me levou para a casa dela, me amamentou e me escondeu. Quando
minha mãe chegou e não me encontrou, começou a chorar desesperadamente, imaginando,
que alguém havia me levado, foi então que a vizinha me entregou a ela e por isso tenho hoje
uma “mãe de leite”. Foi no Sá Viana que dei meus primeiros passos com 10 meses de vida.
*
Graduanda em Educação Física na UFMA.
52
Caminhadas de universitários de origem popular
Quando tinha 1 ano e 4 meses, nos mudamos para o Bairro de Fátima, para a casa do tio
Martins, falecido recentemente. Segundo minha mãe, lá a casa era dividida por uma cortina,
de um lado morava meu tio, irmão do meu pai, com a esposa e os filhos, e do outro lado meus
pais e eu. Ela diz que certo dia, durante a noite, todos dormiam e as luzes estavam apagadas,
o papagaio que eles criavam, naquela noite, não parou de chamar pelo nome de minha mãe.
Achando estranho, ela se levantou e ligou as luzes, e aí ela percebeu que na rede em que eu
dormia havia uma cobra enrolada na corda. Ficou desesperada, tirando-me rapidamente.
Saímos de lá por causa do meu tio. Quando minha mãe saía, ao retornar, encontrava suas
coisas jogadas na rua, o que fazia com que brigasse com meu tio, e para não causar discórdia
entre irmãos, resolveu mudar-se mais uma vez. Uma boa recordação daquela casa foi quando
pronunciei a primeira palavra. Querem saber qual? “Papai”.
Com 1 ano e 8 meses, fomos morar no bairro chamado Alemanha, na casa de outro tio,
Julião. Minha mãe, já estava grávida do meu irmão Jefferson, que nasceu no dia 9 de
setembro de 1986. Desde pequena, sempre fui muito cuidadosa com minhas coisas, é até
engraçado falar disso. Quando minha tia emprestava alguma coisa de minha mãe, eu, sem
demora, corria para a casa dela e a trazia de volta. As minhas falas eram: “Isso é da minha
mãe, me dá”. “Possessiva essa menina, não?”.
Depois de algum tempo, meus pais conseguiram reunir dinheiro suficiente para comprar
sua primeira casa própria, quer dizer, era apenas um terreno, de muita importância para
todos. Adeus casa alugada, adeus casa de parentes, uma nova vida, um novo início. Meus
pais construíram uma casa de barro e taipa para onde nos mudamos. Eu tinha cinco anos de
idade e podem ter certeza: este foi o início da melhor fase de minha vida, foi quando iniciei
meu ciclo de amizades, pois até então, só tinha primos para brincar. Moro até hoje nessa
casa e os melhores momentos de minha vida estão nela: risos, lágrimas, vitórias, derrotas,
tudo o que tenho conseguido e até mesmo o que já perdi. Mesmo assim, sinto-me feliz.
Meu pai, Agostinho Lindoso Abreu
Meu pai nasceu no dia 29 de fevereiro de 1964, porém, na sua documentação, consta a
data de 12 de março de 1965, pois foi registrado, por descuido, somente nesta data. Ele morou na
cidade de São João Batista até os 15 anos, vindo para São Luís em 1979 a pedido de irmãos mais
velhos para que conseguisse emprego. Em poucos dias, conheceu o rapaz que era filho do dono
de uma padaria que lhe ofereceu emprego. Por coincidência, o dono da padaria, seu Dico,
conhecia meu pai, pois era seu conterrâneo. Meu pai então, foi morar com a família desse senhor,
pois até então estava hospedado na casa de uma namorada que arranjara. Porém, o relacionamento
deles não durou muito tempo. Ele aprendeu sua profissão de padeiro justamente nesse período
e a exerce até hoje, tendo o seu próprio negócio. Por mais que ainda não tenha terminado o
Ensino Fundamental, ele sempre lutou para não deixar faltar nada para seus filhos, prova disto
era quando recebia o décimo terceiro salário. A primeira coisa que comprava era o material
escolar dos filhos, ele sabia o valor da educação e o quanto era muito difícil pagar por ela.
Um susto que tive em relação ao meu pai, foi quando eu tinha 11 anos. Ele desmaiou
enquanto se banhava e ficou por vários minutos desacordado. Depois deste episódio,
começou a ter crises de vômito acompanhado de sangue, bem como crises de melena (fezes
com sangue), o que o levou a ficar internado por meses a ponto de necessitar de três bolsas
de sangue para transfusão. Ele estava com úlcera nervosa. Graças a Deus, tudo ocorreu bem
e hoje eu o tenho junto a mim. O que antes era uma úlcera, regrediu para uma gastrite.
Universidade Federal do Maranhão
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Minha mãe, Maria do Rosário de Moura Abreu
Minha mãe nasceu no dia 20 de fevereiro de 1965, morou durante 15 anos na cidade
de Caxias. Em junho de 1980, deixou sua cidade natal para vir morar em São Luís. Meus
avós acreditavam que aqui na cidade ela teria uma melhor educação escolar e por isso
mandaram-na com a esposa do primo do meu avô para cá, e desde então, começou a trabalhar
como empregada doméstica na mesma casa em que morava.
Foi então que, em uma festa de carnaval do ano seguinte, meus pais se encontraram,
trocaram olhares e em poucos minutos meu pai tirou minha mãe para dançar. Um detalhe
importantíssimo: minha mãe não sabia dançar muito bem, mas mesmo assim, aceitou o convite.
Foi então que, começaram a namorar. Um namoro que perdurou por quatro anos, e em 2 de
Janeiro de 1984, se casaram. Neste mesmo ano, minha mãe engravidou pela primeira vez.
Mamãe terminou o Ensino Médio em 2004, juntamente com meu irmão. Depois de
muita luta, consegui fazer com que ela voltasse a estudar, pois, quando resolveu casar-se,
abandonou os estudos por falta de tempo e cansaço. Trabalha como empregada doméstica
até hoje, e por incrível que pareça, na casa da filha da senhora que a trouxe para a cidade.
Laços são Laços.
Solteira e apaixonada
Até hoje, tive dois namorados, o primeiro aos treze anos, fazia parte do meu grupo da
igreja. Além de morarmos na mesma rua, namoramos durante 6 anos e 8 meses, cheguei
mesmo a pensar que iríamos casar, mas não era esse o nosso futuro. Posso dizer que somos
amigos até certo ponto, não guardo mágoa e nem rancor dele, fomos felizes até onde podíamos
ser. O segundo namorado foi aos 21 anos. Eu o conheci no grupo “Afro Omnirá de Cururupu”,
um grupo do movimento negro sobre o qual muito se falava e do qual comecei a fazer parte
a partir de 12 de outubro de 2005. Foi lá então que me apaixonei. Ele é o mestre da bateria
do grupo e eu faço parte do corpo de dança. Fiquei surpresa quando descobri que ele estava
interessado em mim, algo recíproco estava acontecendo, e em 28 de fevereiro de 2006,
resolvemos namorar e estamos juntos até hoje.
Sabe aquela história de unir o útil ao agradável? Pois é, adoro dançar e saber que
através da dança posso conscientizar muitas pessoas da luta que os negros quilombolas
enfrentam hoje, o porquê delas, suas razões. Fazer com que compreendam o mundo do
negro, me deixa satisfeita.
Chegada à universidade
No primeiro período (1989), estudei na escola “Moranguinho”, escola comunitária
do bairro em que eu morava. Chorei muito no primeiro dia de aula pedindo para que me
levassem de volta para casa. Lembro-me da minha primeira professora. Daria, era seu nome.
Participei ativamente de todos os eventos que eram organizados, datas comemorativas
como: festas de dia das mães, pais, São João etc. Estudei todo o jardim de infância lá.
Com sete anos (1992), iniciei a primeira série na escola municipal “Luís Viana”,
porém, ela entrou em reforma e fui transferida para a escola CIEP.
Na segunda série (1993), saí do CIEP para fazer a segunda série na escola estadual
“Montezuma”. Lá, cursei até a 4 a série. Era uma das melhores alunas da escola, o que
me fazia ganhar muitos prêmios a cada fim de semestre, tais como, livros, caixas de
bombons e estojos.
54
Caminhadas de universitários de origem popular
Em 1996, retornei para o “Luís Viana”, onde cursei da 5a à 8a série. Ao término do
Ensino Fundamental, fiz uma prova para uma das mais cobiçadas escolas da cidade, “Liceu
Maranhense”, onde obtive aprovação.
Assim, em 2000, iniciei meu Ensino Médio, uma vitória conseguida, motivo de muita
alegria tanto para mim, quanto para meus pais. Agora, restava o vestibular, e em pouco
tempo estaria frente a frente com ele.
Ano de 2003, meu primeiro vestibular. Fiz vestibular para Enfermagem no vestibular
tradicional da Universidade Federal do Maranhão e não passei; chorei muito por não ter
conseguido. Nesse mesmo ano, fiz seletivo para o PSG da UFMA para o curso de Medicina,
e na Universidade Estadual do Maranhão, para Biologia. Também não consegui aprovação.
Muitos fracassos em apenas um ano. Decidi, então, que não ficaria sem fazer nada, pois
nunca fui de ficar muito tempo parada.
Iniciei um curso técnico de Enfermagem de dois anos; eu já gostava da área e me
apaixonei mais ainda por ela. Para pagar o curso, todos os dias eu guardava três reais que
minha mãe me dava de uma entrega de pães que ela fazia, e foi assim que consegui fazer meu
curso, tendo me formado em 15 de outubro de 2005. Comemorei tanto minha formatura
quanto meu aniversário.
Em 2004, prestei meu segundo vestibular. Lembro que, quando fui escolher o curso,
levei em consideração o fator tempo que era justamente o que eu não tinha no momento.
Então, como eu iria estudar se o curso técnico tomava boa parte desse tempo? Eu não queria
tentar Enfermagem novamente para ter um resultado não satisfatório. Então, resolvi escolher
outro curso com o qual eu pudesse me identificar, foi quando, ao ler o nome dos cursos
disponíveis, vi o de Educação Física. Nele não havia a disciplina Química como específica
e era uma área que me interessava, pois, durante toda minha vida escolar e mesmo fora da
escola, pratiquei esporte, fui envolvida com toda atividade física. O resultado foi a aprovação,
e hoje, não troco meu curso por nada nesse mundo. Lembro que não desisti do sonho de ser
enfermeira um dia.
Dou graças a Deus, todos os dias de minha vida, por todos os momentos que ele me
proporcionou e proporciona. Quando fiquei sabendo do projeto “Conexões”, logo me
interessei. Inscrevi-me, e quando soube que havia sido selecionada e que iria passar por
uma entrevista, tive um pouco de medo. No dia da entrevista, ao entrar na sala, vi todos
aqueles coordenadores e imaginava o que poderiam me perguntar. A partir daí, vi que
deveria apenas relatar um pouco do que vivia e ainda vivo e pronto: fui selecionada. Tenho
aprendido muito com o Projeto e me sinto verdadeiramente honrada por fazer parte da
história de muitos que ali estão, pois temos muito em comum, no que defendemos, e acima
de tudo, no que queremos.
Empregos
Antes de tentar arranjar emprego, trabalhei informalmente vendendo bebidas em
festas de carnaval, o que me garantiu renda para que pudesse pagar alguns cursos
profissionalizantes.
Comecei a trabalhar formalmente com dezesseis anos. O primeiro serviço que consegui
foi em uma fábrica de bebidas, mais especificamente refrigerantes, onde trabalhava como
degustadora. O segundo foi em uma padaria que tinha convênio com a fábrica de bebidas;
nela, trabalhava como demonstradora de tortas e do lançamento de um refrigerante. O
Universidade Federal do Maranhão
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terceiro foi em um supermercado. Depois consegui emprego em uma loja de confecções.
Após estes, comecei a trabalhar na minha área: educação física, dando aulas de ginástica
localizada, futsal, ginástica laboral e natação, inicialmente em projetos da universidade
e depois em clube.
Igreja
Um fator que influenciou muito na pessoa que sou hoje foi a minha inserção na igreja.
Tinha sete anos quando meus pais finalmente resolveram me batizar e para isso eu tinha que
fazer catecismo durante um ano. Fui batizada com oito anos, juntamente com meu irmão
que tinha seus seis anos. A partir de então, iniciei minha vida cristã, fiz primeira comunhão,
participei do grupo “Persevérico”, e logo em seguida, fui crismada.
Fui catequista de uma turma de iniciação para primeira comunhão e depois para uma
turma de preparação para a Crisma.
Foi na igreja que percebi o quanto eu era importante para a minha sociedade e o
quanto poderia fazer por ela. As ações sociais que realizava me faziam sentir responsável.
Hoje, participo de um grupo de jovens chamado “Renascer”. Nele, discutimos vários
temas referentes ao modo de vida dos jovens de hoje e o que o grupo pode fazer para
melhorar isso, claro que nos âmbitos religioso e social.
Agora...
Inspirada em Joe Kemp, posso dizer-lhes qual foi a melhor época da minha vida. Bem,
esta é minha resposta filosófica aos muitos detalhes que puderam ler sobre minha vida e
digo-lhes: quando nasci e respirei pela primeira vez o ar da minha cidade, aquela foi a
melhor época da minha vida; quando fui para a escola pela primeira vez e aprendi as coisas
que sei hoje, aquela foi a melhor época da minha vida; quando arrumei meu primeiro
emprego, passei a ter responsabilidade e a ser paga por meu esforço, aquela foi a melhor
época da minha vida; quando me apaixonei pela primeira vez, aquela foi a melhor época da
minha vida; quando recebi o meu primeiro sacramento, aquela foi a melhor época da minha
vida. E hoje, tendo 22 anos, continuo apaixonada pela minha vida, pela minha história,
pelo meu passado, bem como pelo meu tempo presente, pelo meu hoje, pelo meu agora.
Essa é a melhor época da minha vida!
56
Caminhadas de universitários de origem popular
A luta antecede a vitória
Jefferson Veras Rodrigues *
Falar da minha trajetória significa voltar ao passado para resgatar a árdua caminhada
da minha vida. Todos os acontecimentos que vivi, foram, sem dúvida, difíceis de superar.
Sendo mais um dos excluídos do sistema, tive que buscar na esperança, na fé em Deus e na
coragem a força para seguir em frente, em meio aos desafios da vida.
Nasci em São Luís do Maranhão, no bairro chamado Sá Viana, situado muito próximo
da Universidade, filho de dona Francisca e de seu Daniel. Assim que nasci, minha mãe se
separou do meu pai, o qual nunca tive o privilégio de conhecer; ele também nunca me
procurou e eu não sei por que. Devido à necessidade de trabalhar para me sustentar, minha
mãe foi embora para São Paulo e só se correspondia através de cartas ou telegramas. Quando
fui começando a entender a vida, comecei a ter saudades dela, pois todos os meus colegas
tinham mãe por perto, somente eu não. Em São Paulo, ela casou-se e teve uma filha de nome
Cássia, uma irmãzinha para que eu não fosse filho único. Fiquei sendo criado por minha
avó. Nesse tempo, eu tinha pouco mais de um ano de idade, ainda estava mamando quando
ela foi para São Paulo, o que me acarretaria problemas posteriormente.
A minha infância foi muito dolorida, pois quase sempre me encontrava doente, vítima
da falta de aleitamento materno; fui uma presa fácil de várias doenças ao longo de toda a
minha infância, tais como: sarampo, catapora, pneumonia etc. No meio de tantas doenças,
a única pessoa que estava perto de mim era minha avó, foi ela quem cuidou de mim,
matriculou-me no colégio, assistiu às reuniões da escola. Senti-me verdadeiramente protegido
por ela até a idade em que estou agora.
Por não ter uma boa condição, tive que trabalhar desde muito cedo, aos nove anos
de idade. No começo trabalhei vendendo sacola no Mercado Central da cidade, o que
durou três anos. Paralelamente a isso, trabalhei na feira livre da cidade, ajudando a carregar
sacola. Fazia isso diariamente, quase não tinha tempo para estudar, brincar ou conhecer
novas pessoas, ir à biblioteca ou à praia. Aos doze anos de idade, comecei a vigiar carro na
Universidade, onde hoje estudo. Vigiei carros durante dez anos da minha vida. Nesse
período, conheci várias e várias pessoas, de todos os tipos, algumas zangadas, outras
amigáveis, fiz até amigos nessa empreitada, nunca vou me esquecer dos companheiros
amigos que lá deixei. Eu estava crescendo e queria dar um novo rumo para a minha vida,
pois sabia que aquilo não iria durar a vida toda, por isso, eu tinha que arrumar um trabalho
mais digno.
*
Graduando em Ciências Imobiliárias na UFMA.
Universidade Federal do Maranhão
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Sempre tentei ser uma pessoa dedicada aos estudos desde pequeno, não gostava de
faltar às aulas, nem de chegar atrasado à sala de aula. Lembro-me de que, na 6a série, olhei
meu boletim e vi que não tinha nenhuma falta, posteriormente seria escolhido o melhor
aluno daquela série.
O Ensino Médio foi muito difícil, porque, muitas vezes, eu não tinha como comprar o
livro que o professor indicava. Muitas vezes eu não tinha como comprar o passe escolar,
aquilo ia de encontro a minha assiduidade na escola. As conseqüências de tudo isso vieram
imediatamente, logo comecei a faltar à escola. Os professores não sabiam da minha
dificuldade, nem meus colegas de classe. Minha avó, muitas vezes, ficava angustiada por
presenciar essa situação. Eu via, muitas vezes, ela preocupada no quarto, mas o que ela pôde
fazer para me ajudar ela fez, não só por mim, mas com os meus tios que também passavam
pelas mesmas dificuldades financeiras. Nesse momento, comecei a me entristecer e a pensar
que nunca iria terminar o Ensino Médio.
Em meio a tantas dificuldades, terminei o tão sonhado Ensino Médio. Nesse momento,
comecei a pensar no meu futuro. Tentei arrumar um serviço, mas não consegui,
principalmente por ser inexperiente. Então, comecei a fazer cursos profissionalizantes,
mesmo assim, não tive sucesso em arranjar trabalho e eu não sabia o que fazer no futuro. Só
pensei em fazer vestibular na minha vida quando terminei o Ensino Médio, no momento de
tantas indefinições acerca de meu futuro.
A maior dificuldade em fazer vestibular era justamente o ensino público deficiente
que todo aluno de escola pública tem. Essa era a barreira a ser derrubada. Eu não tinha
dinheiro para fazer cursinho nem pagar a taxa do processo seletivo, além do mais, as pessoas
me chamavam de doido, porque, segundo elas, eu não tinha qualquer chance da passar em
vestibular. Isso tudo fez com que eu ficasse um pouco desanimado.
No ano de 2003, surgiu uma propaganda na televisão do Governo de Estado. Ela se
referia a um processo seletivo que o governo iria fazer para dar um cursinho preparatório
para o vestibular, além de uma bolsa de ajuda de custo de cinqüenta reais. Eu de imediato
me interessei, mas havia um detalhe: seria necessário primeiro passar em uma prova, porque
a concorrência era muito grande e as vagas, poucas. Eu fiz minha inscrição e comecei a
estudar todo o assunto do Ensino Médio, pois este era o conteúdo da prova. Fiz a prova, e
depois de um mês, veio o resultado: eu tinha passado, fiquei muito feliz, como se tivesse
passado no vestibular, os vizinhos ficaram contentes e meus colegas também.
Comecei a fazer o cursinho que tinha duração de seis meses. O lugar onde ficavam as
instalações do cursinho era distante e também havia muita insegurança da minha parte porque
o lugar era arriscado e o curso era ministrado durante a noite. Nesse período, eu ficava dividindo
as atenções entre os estudos e o trabalho, e estudava toda madrugada. O tempo ia passando e
eu continuava a estudar e a trabalhar, e a hora do vestibular estava chegando.
Terminei o cursinho dois dias da prova do vestibular para o qual já tinha conseguido a taxa
de isenção. Eu já tinha o que eu queria: o cursinho e a inscrição do vestibular. Faltava apenas
uma coisa: fazer a prova. Eu, ainda inexperiente, ficava toda hora pensando na tão sonhada
missão: passar no vestibular. Contava nos dedos os dias que faltavam para fazer a prova.
No dia da primeira etapa da seleção, eu estava muito inquieto, cheguei ao local de
provas faltando ainda duas horas para o seu início. Fiz a prova ocupando todo o tempo que
tinha disponível. Fiquei contente com minha prova, agora, só faltava esperar o dia do
resultado que, por sua vez, não tardou, tendo saído após quatro dias da prova. Durante esses
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Caminhadas de universitários de origem popular
quatro dias, eu não dormi direito, só pensando nesta tão bendita prova. Passado o tempo,
saiu o resultado, e eu havia passado, fiquei tão, tão contente que não estava acreditando
nesse feito. Foram precisos dois dias para que eu pudesse acreditar nessa primeira vitória.
Minha cabeça dava milhões de voltas em torno de tudo, mal conseguia almoçar, até a fome
deu lugar à alegria.
Faltava ainda derrubar a outra muralha que era tão forte quanta a primeira, o nome
dela se chamava segunda etapa, aqui, as provas eram discursivas e havia a famosa redação,
o pesadelo de todos os vestibulandos. Eu também segui essa regra, pois tinha uma letra que
sobrinho de dez anos ganhava, mas eu consegui aperfeiçoar esta caligrafia antes da segunda
etapa da prova.
Durante o período que antecedeu a segunda etapa, a minha jornada de estudo
praticamente dobrou, nem fui ao trabalho nesse período, só ficava estudando e pensando
como seria a prova. O dia da prova tinha chegado, e eu mais uma vez estava muito ansioso.
Já tinha terminado as duas provas discursivas e estava alegre, porque elas foram muito boas.
Só faltava a redação, fiz o esboço, tudo certo, mas quando chegou à hora de passar a limpo,
nesse momento parece que caiu tudo sobre minha cabeça, eu tinha “caído na real”: eu
estava na segunda etapa da prova da UFMA, simplesmente não estava conseguindo passar
a redação a limpo, a mão tremia como se fosse uma furadeira, além disso, suava intensamente,
estava chegando a ponto de molhar a folha de redação, tentei descontrair pensando em
outras coisas até que consegui melhorar. Passei uma hora e meia com todos esses imprevistos.
Comecei, então, a escrever devagar até o fim.
Demorou um mês para sair o resultado. Nesse tempo, eu estava cheio de expectativas
de conseguir a vaga na almejada universidade. Passaram-se os dias e o resultado saiu: eu
havia passado. Foi a maior alegria, não tinha cabeça para nada. Nesse dia, fui a pessoa mais
famosa do Maranhão, dei entrevista, fui manchete de primeira página nos jornais de alta
circulação. Eu não contava com tudo isso, pessoas que eu nem conhecia me cumprimentaram.
Na minha casa foi uma alegria só. Aqui vale agradecer a Deus e a uma pessoa que, sem
dúvida, foi a minha maior inspiração, que eu certamente jamais vou esquecer, o nome dela
é a Dona Domingas, minha avó, essa sim, merece tudo e um pouco mais.
O meu maior presente por ter passado no vestibular, foi sem dúvida, ser um exemplo
para várias pessoas, que se inspiraram em mim para dar a volta por cima. Pessoas que não
acreditavam mais no futuro e agora voltam a estudar. Ser referência para as pessoas me deixa
muito contente e me dá forças para seguir em frente na Universidade.
A minha aprovação no vestibular da UFMA não significa uma guerra ganha, e sim,
apenas uma batalha. Quando comecei a estudar, passei a ter várias dificuldades
financeiras, como, por exemplo: dinheiro para comprar livros, tirar cópias etc. Ainda
não tinha trabalho, até que ganhei uma bolsa para ajudar a custear as despesas. Ela
tinha um valor simbólico, mas me ajudou bastante no início. No mês de março de 2006,
fiquei sabendo da seleção para fazer parte do “Conexões de Saberes”, fiquei muito
interessado em fazer parte, primeiro porque eu preenchia todos os requisitos exigidos.
O programa tem tudo a ver com minha história, as atividades fazem parte de uma
verdadeira interação entre a universidade e comunidade. No programa “Conexões de
Saberes”, eu vivo com pessoas que fazem parte da mesma classe social, há uma harmonia
baseada na história de cada componente, eu me sinto orgulhoso por estar diariamente
interagindo em minha comunidade.
Universidade Federal do Maranhão
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A minha caminhada até a Universidade foi e é difícil, foram grandes os problemas, as
dificuldades. Vivendo excluído do sistema, tive muitas vezes que recuar e/ou avançar. Sem
dúvida, é muito difícil para uma pessoa que vive às margens da sociedade passar no
vestibular. Para isso acontecer, ela terá que ter muita determinação e coragem para enfrentar
as dificuldades pelas quais passamos durante a trajetória, não desanimando com o primeiro,
nem com o segundo ou terceiro obstáculo, mas prosseguindo avante com a certeza de que
irá conseguir alcançar sua meta.
Agradeço a Deus e a todos aqueles que, direta ou indiretamente, me ajudaram a
alcançar o meu objetivo. No meio das adversidades, consegui entrar em uma Universidade.
A batalha agora é terminar a graduação.
60
Caminhadas de universitários de origem popular
Vencendo desafios
Jonivaldo Lopes Santos *
Há um provérbio popular de que “toda regra tem sua exceção”. Eu sou a prova viva
desta afirmativa. Talvez você, leitor, ficará sem entender por alguns instantes, mas ao passo
que eu for contando a minha história, você entenderá e com um pouco de sorte se tornará um
defensor ferrenho deste dito. Se “agosto é o mês do desgosto”, minha mãe contesta com
toda convicção, pois eu, Jonivaldo Lopes Santos, nasci no dia 07 de agosto de 1976, para a
alegria geral da minha mãe e da família dos Lopes.
Abandonado por meu pai antes mesmo de nascer, membro de uma família de pescadores
e lavradores de poucas letras, mas de um entendimento notável, pois, diante da realidade na
qual viviam, sempre tiveram a visão de que a educação é uma das principais ferramentas
capazes de gerar cidadãos e melhorar a qualidade de vida daqueles que optam por obtê-la.
Por isso, minha mãe e meus avós incessantemente me davam apoio, principalmente, nas
horas de desânimo, quando, em algumas situações, reclamava da qualidade física da escola.
Muitas vezes ouvi o meu avô, de saudosa memória, falar com seu tom suave e calmo: “Meu
filho, quem faz a escola é o aluno”, então, resolvi acatar esta reflexão e os frutos foram sendo
colhidos gradativamente. São estes passos que passarei a expor.
A minha trajetória escolar inicia-se aos sete anos de idade, quando, pela primeira vez,
iria freqüentar uma escola, ainda que minha inserção no processo da alfabetização já tivesse
se iniciado em casa com a minha mãe - a mais excelente educadora que já tive - que sempre
deu prioridade à educação, transformando-se na minha primeira alfabetizadora. Quando
cheguei à escola, já tinha conhecimento do alfabeto e sabia formar as sílabas, fator
determinante para um início com sucesso na longa caminhada rumo ao conhecimento. Era
um aluno dedicado que gostava muito de ler. Lembro-me da maneira ansiosa com a qual
aguardava os novos livros, podendo ler novas histórias das quais me recordo de algumas até
hoje. Alguns fatos dessa época são inesquecíveis, como o episódio da roda de tabuada com
direito a bolo de palmatória para quem errasse. A minha série, a 2ª, ainda não participava,
mas eu, movido pela curiosidade, resolvi participar, para meu desespero mais tarde. Quando
a roda começou, eu, que não tinha estudado tabuada, comecei a apanhar bolo da turma. Para
piorar a situação, minha mãe resolveu nesse dia e hora visitar-me na escola a fim de saber
como eu estava me comportando. Eu não posso afirmar com veemência que bolo de palmatória
é remédio para quem não gosta de estudar tabuada, mas comigo funcionou de tal forma que
nunca mais apanhei na roda.
*
Graduando em Turismo na UFMA.
Universidade Federal do Maranhão
61
A carreira escolar foi tão promissora que, antes da 1a série, já sabia ler e escrever; adorava
as histórias do livro da 1a série intitulado É hora de ler. Na 2a série, a grande novidade ficou
por conta da chegada da nova professora oriunda de Cururupu, município do qual faz parte a
Prainha, povoado em que residia. A professora Bibi - como era chamada - e sua família, foram
e continuarão sendo parte da minha própria família; foi ela quem apostou na minha capacidade
e quando apenas eu, de uma turma de aproximadamente vinte e cinco alunos, passei da 3a para
a 4a série, sentindo ela que teria dificuldades em ministrar aula para apenas um aluno da 4a
série, matriculou-me numa escola em Cururupu e levou-me para morar em sua casa, iniciandose, assim, um novo momento na minha vida.
Dou graças a Deus por ter aproveitado a oportunidade, pois como uma flecha lançada:
uma vez perdida, nunca mais voltará. Sem dúvida: se não fosse por essa ação solidária da
professora Bibi, talvez eu não estivesse neste momento escrevendo este memorial. Alegrame saber que, em uma sociedade egoísta, capitalista, interesseira, ainda há pessoas como
esta educadora e sua família; são pessoas como estas que nos fazem continuar acreditando
na generosidade, no caráter e na bondade.
Em Cururupu aprendi várias lições para toda a vida, uma delas é a necessidade de se
ter um objetivo e lutar para alcançá-lo, mesmo que aparentemente seja quase impossível foi o meu caso. No ano seguinte, nos mudamos para São Luís, onde dei prosseguimento a
minha carreira escolar. Fui estudar em uma escola pública denominada “Sousândrade”,
localizada no Bairro do Lira, onde concluí o Ensino Fundamental. Nesse período, passamos
por muitas dificuldades, pois minha casa estava em construção e apenas minha mãe trabalhava
para manter a família e ainda arcar com as despesas escolares, mas como nossa educação era
prioridade, não deixamos de freqüentar a escola. Um ano depois, meu avô conseguiu um
emprego, fato que foi recebido com muita alegria, pois, a partir de então, houve uma melhora
em nossa situação financeira, colocando um ponto final em nosso momento de crise.
Assim, como no Ensino Fundamental, o Ensino Médio também transcorreu em
instituição de ensino público, tudo ocorreu sem anormalidades e eu concluí no tempo
previsto. Sem nenhuma informação por parte da instituição de ensino onde eu estudava
sobre a importância do vestibular e por me sentir despreparado, decidi adiar este sonho,
ainda que incentivado pela minha mãe. Vendo a necessidade financeira da minha família,
procurei, sem mais delonga, uma fonte de renda que proporcionasse ajuda para minha mãe
e meu avô, únicos que possuíam renda até o momento. Um ano após a conclusão do Ensino
Médio, tive a minha primeira experiência de trabalho, mas o sonho de ingressar no ensino
superior não tinha morrido, estava apenas adormecido, dadas as circunstâncias que me
foram impostas. Movido pelo incentivo da minha família, prestei vestibular pela primeira
vez em 1999, não obtendo sucesso nesta investida. Após outras tentativas, prestei vestibular
em 2005 para Turismo, quando finalmente conquistei o sonho do Ensino Superior.
Com o Ensino Superior, inicia-se uma nova etapa da minha vida. Encaro a universidade
como uma ferramenta a nossa disposição, sendo de nossa inteira responsabilidade o rumo a ser
tomado. Quando ouvi falar do Programa “Conexões de Saberes”, fiquei surpreso e ao mesmo
tempo feliz por esta iniciativa do governo que visa à permanência com qualidade dos alunos
de origem popular nas universidades. É louvável esta ação que estabelece um diálogo mais
sólido entre as universidades e as comunidades populares, sem apresentar apenas a academia
como produtora do conhecimento, mas também, levando em conta, o saber popular. Essa
união contribuirá para a democratização do Ensino Superior em nosso Estado.
62
Caminhadas de universitários de origem popular
Este espaço poderia ser preenchido com inúmeras experiências da minha vida familiar
e escolar e assim teria concluído este memorial com sucesso, mas desta forma seria eu
insensato, ingrato, pois faltariam os agradecimentos a tantas pessoas que de alguma forma
contribuíram para que este sonho se tornasse realidade.
Agradeço a princípio àquele que está no controle de todas as coisas, Deus, o todo
poderoso, nosso pai celeste, sem Ele, eu jamais teria conquistado as batalhas que a vida nos
impõe em todas as esferas; a minha amada mãe, mulher de luta, amável e de um coração
enorme e bondoso, melhor amiga, a jóia mais preciosa que possuo nesta vida, a minha mais
fiel incentivadora; a minha avó, por quem eu tenho muito amor, pela motivação, embora
que a sua maneira; ao meu avô, de saudosa memória. Gostaria muito que pudesse compartilhar
esta alegria, pois o meu sonho era o sonho dele. Mas como os planos de Deus não são iguais
aos nossos, um ano antes da minha conquista do Ensino Superior, ele faleceu. À minha
família como um todo; a minha princesa que sempre me incentiva e me ajuda com os
trabalhos acadêmicos e sempre me atura quando chego às vezes preocupado ou apreensivo
com alguma tarefa; à família da minha querida professora Bibi, pela força que me deu
quando mais precisava. Enfim, a todos que, de forma direta ou indireta, contribuíram para
que esse objetivo se tornasse realidade.
“Na vida, você só será aquilo que quiser ser.”
Jonivaldo Lopes Santos
Universidade Federal do Maranhão
63
De onde vim e para onde eu quero ir agora
Josenira dos Santos Veras *
Acima de tudo o amor
“13 1Ainda que eu falasse línguas,
as dos homens e dos anjos,
se eu não tivesse o amor,
seria como sino ruidoso
ou como símbolo estridente
2
Ainda que eu tivesse o dom da profecia,
O conhecimento de todos os mistérios e de
toda ciência;
ainda que eu tivesse toda a fé,
a ponto de transportar montanhas,
se não tivesse o amor,
eu não seria nada.”
(I COR 13:1 e 2)
A vida, a meu ver, é complexa e envolta em mistérios. Por que bons momentos são
esquecidos? Por que os momentos tristes persistem em nossa memória? Por que me esqueci
da primeira palavra que pronunciei; do meu primeiro passo; do primeiro sabor que degustei;
do meu primeiro sentimento?
Meu nome é Josenira, sou parda, tenho 21 anos e sou natural de São Luís – Ilha do
Maranhão. Resido no bairro Jardim São Cristóvão, prefeitura de São Luís, e atualmente
passo mais tempo na Universidade Federal do Maranhão, onde sou estudante do curso
de Letras. Faço também outro curso de licenciatura: Geografia, na Universidade Estadual
do Maranhão.
Minha família é de crença cristã, católica e é composta por seis pessoas:
meu pai José; minha mãe Maria Virgínia, eu, meus irmãos: Jonas (primogênito),
Josué e Raimunda, que convive conosco desde os seus dois anos. Papai e Jonas são
técnicos agrícolas, porém somente meu irmão exerce a profissão; minha mãe é dona
de casa; o Josué possui o Ensino Médio completo e a Raimunda está na 7ª série do
Ensino Fundamental.
*
Graduanda em Letras na UFMA.
64
Caminhadas de universitários de origem popular
Eu sou uma pessoa divertida, de certo modo reservada e completamente apaixonada
pela minha família, conseqüentemente sou muito caseira, mas não dispenso ir ao cinema
com meus amigos. Gosto de ouvir músicas, cantar. Gosto da natureza e de tudo que ela pode
oferecer de bom. Nela vejo o “dedo de Deus”, através de sua perfeição. Por falar Nele,
agradeço-lhe todos os dias pela família, amigos e tudo que colocou em minha vida.
Minha velha infância
Considero a infância a melhor fase da minha vida. Ela foi repleta de momentos
maravilhosos e mágicos, que foram compartilhados com meus irmãos, primos e minha
melhor amiga: Heliana.
Minha vida estudantil iniciou-se cedo; estudei no Jardim de Infância “Tico e Teco” desde
o maternal até a alfabetização, meus irmãos estudavam na Instituição de Ensino Fundamental
“Nossa Senhora Sagrado Coração” (ambas pertenciam à Igreja Católica do bairro).
A escola, hoje extinta, ficava cerca de 30 minutos – de caminhada – da minha casa,
aproximadamente 10 minutos em um veículo qualquer. Eu e meus irmãos éramos levados
por papai em sua bicicleta e geralmente voltávamos com nossa mãe a pé.
Minha rotina era mais ou menos assim: acordava muito cedo; seguia hábitos higiênicos
e alimentares; ia para escola às 06:45; saía da escola por volta de 12:00. Chegava em casa,
tomava banho; almoçava; descansava e/ou dormia; ao acordar, fazia minhas atividades
escolares, depois brincava com minha amiga Heliana e minha prima Mariana de escolinha
ou casinha, ou subíamos na goiabeira do quintal e ficávamos horas e horas “curtindo” o
vento forte em nossa casa da árvore. Ao final da tarde, tomava banho; jantava e assistia à TV.
Depois de um dia “exaustivo”, dormia na minha rede, mas antes da “fada-de-olhos” tocar
meus cílios, balançava-me alto, bem alto, sem medo. Tudo se resumia a uma grande e
interminável brincadeira...
Nesse período de brincadeiras e travessuras, papai ficou desempregado, todo o dinheiro
que conseguia (oriundo de “bicos” de pedreiro) era destinado às contas e mensalidades, o pãode-cada-dia foi por muito tempo fiado. Papai, sem “bicos”, sem dinheiro, sem saída, fez um
empréstimo junto ao banco (como muitos outros pelos quais passamos e que também foram
superados), porém meus pais nunca deixaram que dormíssemos um dia sequer com fome.
Lembro-me de um momento que me foi muito especial: quando li pela primeira vez
frases distintas da cartilha da escola, a frase era: “Lula não, Collor sim” e estava “pichada”
no muro da base aérea do Aeroporto Carlos Cunha; muro que corta vários bairros de distrito
do Tirirical.
Outros momentos importantes de que me lembro foram a vinda do Papa João Paulo II
ao Maranhão e quando meu irmão Jonas não ficou de recuperação pela primeira vez...
Novos rumos...
No final de 1992, o “Tico e Teco” fechou. Eu havia terminando a alfabetização, meus
irmãos já cursavam o Ensino Fundamental, meu primo Paulo estava no segundo período.
Foram todos estudar na Escola Comunitária “Marly Sarney”, no Ipem São Cristóvão, agora
pela tarde.
Papai conseguiu um novo emprego como vigia, conseqüentemente houve melhorias
em nossa qualidade de vida, além disso, continuou com os “bicos” de pedreiro, pois era
vigia somente à noite.
Universidade Federal do Maranhão
65
Minha rotina mudou: acordava por volta das 06:00, tomava um café reforçado, ia
brincar por cerca de duas horas; merendava sucos naturais ou as próprias frutas (maracujá,
abacate, manga, limão, goiaba, murta, ata, coco) colhidas no quintal, depois ajudava
minha mãe (varrendo a casa, enchendo litros com água, enxugando louças, etc.),
enquanto meus irmãos auxiliavam meu pai no serviço de pedreiro. Almoçava ao meiodia, ia para a escola. Chegava em casa às 06:00; fazia minhas atividades escolares;
depois assistia ao meu desenho animado favorito: “Cavaleiros do Zodíaco”, jantava e
depois ia dormir.
Em 1992, tinha 10 anos e fazia a 4ª série, era uma boa aluna. Nesse período aprendi a
cozinhar com a supervisão de minha mãe. Nesse ano, lembro-me, papai ficou desempregado
novamente. A diferença naquele momento era que compreendíamos (eu e meus irmãos) a
situação em que nos encontrávamos. Várias foram as vezes em que almoçávamos somente
feijão cozido com água e sal , feito no fogareiro de barro – o feijão plantado no quintal e o
fogareiro feito por papai...
Na metade de 1996, papai conseguiu um novo emprego de vigia, em uma escola
primária, perto da casa da minha avó. Na “Marly Sarney”, estudava bastante, pois nunca
fiquei de recuperação e valorizo o “suor” de meus pais...
Você não sabe o quanto eu caminhei...
Papai trocou de emprego: deixou a escola que vigiava todas as noites e passou a
vigiar uma empresa, a uma quadra de nossa casa, em dias alternados. Meus irmãos cursavam
o Ensino Médio: Jonas na Escola Agrotécnica Federal do Maranhão e Josué no “Liceu
Maranhense”; a Raimunda fazia o jardim, em um bairro vizinho ao nosso, para o qual eu a
levava e buscava todos os dias, junto com o meu primo Raimundo José.
O Ensino Fundamental foi um período de muitas descobertas, fiz muitas amizades. Foi
também um período de grandes perdas e nascimentos na minha grande família.
A minha rotina mudou um pouco: além de levar a Raimunda para a escola, fazia a
“feira” da casa e ministrava aulas particulares.
No final do ano 2000, fiz os seletivos para o “Liceu” e CEFET, mas não fui aprovada
em nenhuma delas.
Valeu a pena...
Em 2001 fui estudar no “Almirante Tamandaré”. Nessa escola cursei apenas a 1ª série
do Ensino Médio, mas as séries seguintes cursei no “Liceu Maranhense”.
No “Almirante” fiz grandes amizades, conheci novos bairros, realidades, conheci
também a indiferença e desigualdades por parte do Estado em relação à educação: estrutura
deficiente, professores faltosos, grande número de alunos evadidos e repetentes: sistema
educacional defasado, porém conheci também pessoas que tentavam reverter este quadro,
através de planejamento e ações inteligentes.
O ano de 2001 foi muito importante para mim: meu pai foi aprovado no seletivo da
Escola Agrotécnica Federal do Maranhão para o curso de Técnico Agrícola; meu irmão
Jonas conseguiu um bom emprego em Balsas (interior do Estado), em sua área de formação;
conheci minha amiga Karla; foi o ano do lançamento do CD do “Red Hot Chili Peppers –
Californication”. No final de 2001, Karla insistiu para que fizéssemos o seletivo para o
“Liceu” novamente; fui aprovada, mas ela não.
66
Caminhadas de universitários de origem popular
Em 2002 fui cursar a 2ª série no “Liceu”, ambiente semelhante ao “Almirante”, salvo a
sua estrutura: bem melhor, afinal o “Liceu” é considerado o melhor colégio público do Estado.
No “Liceu” fiz grandes amizades e em especial com Dayanna e Liana, minhas duas “irmãs”.
No “Liceu” desenvolvi várias pesquisas e trabalhos interdisciplinares relacionados
aos bairros da capital sobre a importância turística e ecológica da Ilha Cajual, e a importância
e características dos Estados brasileiros. Os dois últimos trabalhos foram produzidos para a
Jornada anual da escola.
Durante três anos (2001, 2002, 2003), fiz os seletivos do Programa de Seleção (PSG)
da UFMA e Programa de Acesso ao Ensino Superior (PASES) da UEMA, obtive boas
classificações, principalmente porque não fiz nenhum tipo de cursinho, porém não havia
decidido as opções de curso: Agronomia? Letras? História?
No final de 2003, papai terminou seu curso de Técnico Agrícola. Nesse período cheguei
a uma solução sobre as minhas opções de cursos no vestibular: decidi por Letras na UFMA
e Geografia na UEMA. Ainda em dezembro de 2003, fiz as duas etapas do PSG da UFMA e,
em janeiro de 2004, enquanto esperava ansiosa pelo resultado do PSG, estudava para o
PASES, pois as datas das provas se aproximavam.
Eu estava ciente de que seria aprovada na UFMA devido à minha boa colocação na
primeira etapa, por ter feito uma “boa” prova de língua portuguesa e literatura e provas
razoáveis de espanhol e redação. Contudo, tinha certeza também de que o mesmo não
ocorreria na UEMA: tinha feito provas difíceis e a concorrência era grande. Em março saiu
o resultado: fui aprovada em ambos, para minha alegria e satisfação de toda a família.
Ingressei na UFMA em abril. Acordava muito cedo, pois a instituição fica uma hora e
meia do meu bairro, principalmente se o percurso é feito por transporte coletivo. Saía da
UFMA por volta de meio dia e chegava em casa às 14:00 horas. Foi também nesse período
que meu irmão mais velho foi transferido de Balsas para uma fazenda em Chapadinha, ou
seja, para mais perto de casa, para a alegria da família!
No começo todas as minhas despesas foram bancadas pelo meu pai, depois por meus
dois irmãos. Era uma situação difícil porque muitas vezes sabia que meu pai não tinha
dinheiro e o via pedindo emprestado para eu comprar passe escolar; tirar fotocópias e
adquirir outros materiais. A situação ficou mais delicada quando comecei o curso de Geografia
na UEMA, com a duplicação da despesa.
Ao longo de dois anos, a rotina estressante da UFMA foi me desestimulando pouco a
pouco; não tinha como evitar comparações entre os dois cursos: a UEMA ficava a quinze
minutos de ônibus da minha casa; e o curso era noturno; a turma, no que se refere a sua
origem, possuía histórias de vida semelhantes a minha (mesma classe social, residentes da
periferia e etc.), consequentemente éramos muito unidos. Em contrapartida a UFMA era
distante de casa, a turma muito desunida, o curso era diurno e a estrutura da UFMA débil:
biblioteca defasada, com muitos livros bem antigos e/ou mal conservados; poucos
computadores para fazermos trabalhos, muitas greves, etc.
No curso de Letras, conheci muitas pessoas interessantes: Thiago foi a primeira delas,
depois veio Elenir, Priscila, Daphne, Jonas, Marco Anderson, a turma do período anterior ao
nosso... o mesmo aconteceu no curso de Geografia.
Atualmente estou no sexto período de Letras e de Geografia, deveria estar no sétimo
de Letras, pois estou atrasada devido às greves... se alguém perguntasse: “Valeu a pena fazer
o curso de Letras?” Decerto não saberia responder. Acredito que os pontos negativos e
Universidade Federal do Maranhão
67
positivos se alternam. Mas, pela minha experiência de vida, percebo a carência de ações
afirmativas no tocante ao ingresso e permanência de estudantes de origem popular na
universidade, pois muitos estudantes “estudam” muito, sem condições de freqüentar
cursinhos pré-vestibulares. Depois de muitas tentativas sem sucesso, são aprovados no
seletivo vestibular e, ao ingressarem na universidade, vêem seus sonhos acabarem devido a
problemas financeiros, a “detalhes” que modificam toda uma história de luta e persistência.
Terminam por fazer de um sonho ou realização uma frustração ou desassossego.
Canción de Amor
Quisiera ser convexo
para tu mano côncava.
Y como un tronco hueco
para acogerte en mi regazo
y darte sombra y sueño
Suave y horizontal e interminable
para la huella alterna y presurosa
de tu pie izquierdo
y de tu pie derecho.
Ser de todas las formas
como água siempre a gusto en cualquier
[...vaso
siempre abrazándote por dentro.
Y también como vaso
para abrazar por fuera al mismo tiempo.
Como el água hecha vaso
tu confín – dentro y fuera – sempre
[...exacto.
Gerardo Diego
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Caminhadas de universitários de origem popular
Meus pais, minha vida
Lidiana Diniz Azevedo *
Sou filha de Raimundo Azevedo e Lídia Diniz, ambos negros oriundos, respectivamente,
de Penalva e Alcântara, cidades do interior do Maranhão. Possuem apenas o Ensino
Fundamental incompleto e exerciam, naquela época, as profissões de pedreiro e empregada
doméstica. Conheceram e se casaram na Liberdade, um bairro da periferia de São Luis onde,
até hoje, moramos, e tiveram quatros filhos: Lidiana, Ana Lídia, Adriana e Leandro.
Eu e meus irmãos tivemos uma infância com poucos recursos, pois minha mãe tinha
que trabalhar em média 10 h por dia e sete vezes por semana, chegando a andar mais de
cinco quilômetros da nossa casa até o seu emprego, para economizar sua passagem e comprar
o pão no dia seguinte. Nós nunca passamos fome, mas a maioria das nossas roupas e sapatos
era doada; os brinquedos eram apenas os imaginários e, apesar de tudo isso, me lembro com
saudades desse período, já que nossos pais nos ofereceram o essencial para o desenvolvimento
humano: amor e educação.
Nas séries iniciais, estudei na escola comunitária “Olhar de Maria” e foi uma experiência
um pouco desagradável, porque a sala de aula era lotada. Os últimos alunos que chegavam se
sentavam no chão, sem contar as brigas. Em uma delas, fui vítima de agressão. Na terceira série
do Ensino Fundamental, fui para a escola municipal “Mario Andreazza” onde conheci um
professor chamado Elias, um dos que contribuíram significativamente para a minha vida.
Elias era professor de Matemática, morador da comunidade. Além de lecionar, ele se
comportava como um pai dentro da sala de aula. Contava-nos várias historias de sua vida
acadêmica, as alegrias por ter cursado o Ensino Superior e principalmente os preconceitos
que sofria por ter sido o único negro em sua turma. Em minha turma, a maioria dos alunos
era negra e moradora da periferia. Estávamos ali apenas obter notas e passar de ano. Éramos
desinteressados, e isso o incomodava muito, pois ele queria fomentar em nós o desejo de
aprender e com isso sempre nos questionava sobre o que queríamos para o nosso futuro. Se
queríamos, por exemplo, “contribuir” para a continuação desta desigualdade social da qual
éramos vítimas.
Com o passar do tempo, ele conseguiu conscientizar a maioria da turma e começamos
a nos interessar pelos estudos, despertando-nos a vontade de cursar uma universidade. Acho
que ele cumpriu o seu papel enquanto professor – o de fomentar em seus educandos uma
certa conscientização de mundo, compreendendo assim a lógica que rege esta sociedade
em que vivemos.
*
Graduanda em Pedagogia na UFMA.
Universidade Federal do Maranhão
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No Ensino Médio, estudei na escola estadual “Nerval Lebre Santiago”, onde a falta de
professores e livros foi um dos entraves a ser vencido. Os meus pais mal tinham a condição
de comprar o fardamento escolar. Sem ele, éramos impedidos de assistir às aulas. A
conseqüência desses fatos foi o total despreparo para fazer um vestibular.
Com a conclusão do Ensino Médio, comecei a trabalhar em uma loja como vendedora
externa e posteriormente como vendedora interna, mas a vontade de estudar continuava.
Meu salário dava apenas para pagar um cursinho comunitário e foi o isso que fiz. Como
fiquei mais de três anos longe dos livros, custei a pegar o “ritmo”. Como conseqüência,
fiquei reprovada no meu primeiro vestibular, mas não desisti e, no ano seguinte, fui aprovada
para o curso de Pedagogia na Universidade Federal do Maranhão, onde conheci a minha
amiga Maria de Lourdes, uma das pessoas responsáveis por eu estar participando do projeto
“Conexões de Saberes”.
Dentro dos muros da universidade, mais desafios a serem vencidos. Na sala de aula, me
sentia um pouco deslocada, pois não vivia a mesma realidade da maioria dos meus colegas,
o discurso dos textos, dos professores, das avaliações era algo inédito para mim, sem contar
a questão financeira, já que me despediram pouco antes de começar o curso.
Começou a fluir em mim o desejo de abandonar o curso e procurar um novo emprego.
Estava muito desanimada e sentia que meu rendimento acadêmico não estava sendo
satisfatório. Foi quando participei da seleção para o programa “Conexões de Saberes” e,
para minha felicidade, passei e encontrei mais vinte e quatro “conexistas”, maravilhosos
por sinal, que enfrentavam desafios parecidos com os meus.
Com a convivência com este grupo, a minha auto-estima foi aos poucos se
reestruturando e o problema foi amenizado. O mais importante: o crescimento de minha
conscientização enquanto sujeito atuante nessa sociedade.
Hoje, me considero uma aluna mais atuante, cada vez mais apaixonada pelo meu
curso. Os meus pais, ambos funcionários públicos, continuam sendo o nosso “porto seguro”.
Espero um dia poder retribuir-lhes um pouco dos sacrifícios vividos por eles para nos
oferecer o essencial, sempre com dignidade. Por isso o que faço é por eles e para eles, em
nome do grande amor que nutro por esse casal maravilhoso.
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Caminhadas de universitários de origem popular
In Memorian
Lourdilene de Fátima Teixeira Ferreira *
O meu nome é Lourdilene de Fátima Teixeira Ferreira, sou natural de São Luís
Maranhão, nasci no dia 08 de maio de 1975, às 13:00 da tarde, num dia de domingo.
Costumo dizer que vim ao mundo num dia e mês especial, o mês das flores, das mães,
das noivas e de Nossa Senhora de Fátima, quando, por coincidência do destino, nasci
no dia das mães e numa data em que é comemorado o dia da Vitória. Sou filha de uma
mulher guerreira que lutou muito durante toda sua vida para vencer as dificuldades que
a vida lhe apresentava, minha saudosa mãe se chamava Izis de Jesus Teixeira e, quando
criança, sofreu muito por causa de problemas familiares, porém um dos motivos desses
problemas foi o falecimento de sua mãe, que a deixou com mais três irmãs. Com muita
dificuldade em poder criar e educar suas filhas, meu avô resolveu entregar minha mãe e
uma de suas irmãs que se chamava Lélis para o meu bisavô que ficaria responsável pela
educação de ambas.
Durante o tempo em que ficou sob dos cuidados do meu bisavô, perdeu o contato com
a sua família e somente aos 18 anos de idade reencontrou-se com seu pai; foi um momento
marcante, pois não sabia onde morava sua família. Mesmo diante dos obstáculos, sempre se
mostrou uma mulher forte, independente e de boa índole. Essas características foram
fundamentais para a formação da personalidade de suas filhas.
Toda a minha vida estudei em escola pública, iniciei minha vida escolar com 6
anos de idade, no Jardim de Infância “ Solfia Silva”, localizado na Rua Boa Esperança
s/n, na Vila Passos, bairro em que moro até hoje. Nessa escolinha geralmente quem
estudava eram as crianças que moravam próximas. Lembro-me de que, quando ingressei
nessa escolinha, já sabia escrever o meu nome e ler algumas palavras. A pessoa
responsável pelo meu primeiro contato com o mundo da escrita e da leitura foi a minha
querida e única irmã Izilene que considero como minha segunda mãe. Quando nasci,
ela estava com onze anos de idade e teve que passar a estudar no horário noturno para
cuidar de mim, porque minha mãe trabalhava como doméstica na casa de uma família
conhecida em São Luís e, com um mês do meu nascimento, teve que voltar a trabalhar
para não perder o emprego que era sua única fonte de renda para nos sustentar, já que
meu pai não assumiu a minha paternidade. Izilene assumiu o papel de educadora
na minha vida, abriu-me a porta de um mundo até então desconhecido: “O mundo
do conhecimento”.
*
Graduanda em Bibliotecnomia na UFMA.
Universidade Federal do Maranhão
71
Quando chegava da escola, minha irmã passava horas e horas me ensinando a tabuada
e a soletrar a Cartilha do ABC. No início tive muitas dificuldades em aprender e muitas
vezes fiquei até de castigo, porque minha irmã não admitia a pouca assimilação que tinha
dos assuntos que estudava. Lembro-me com muita saudade da minha professora conhecida
como Bulica, era uma jovem sorridente e atenciosa com seus alunos. Ela sempre me tratava
com carinho e às vezes até me deixava em casa. Essa fase escolar foi bastante enriquecedora
para mim, pois foi o período em que mais me diverti, pois os alunos participavam de
brincadeiras recreativas todos os dias e das festinhas de comemoração como: Páscoa, Dia do
Índio, São João e Natal.
No ano de 1982, ingressei na Escola “Sotero dos Reis” onde estudei no turno vespertino
do antigo primário. Nessa época a Secretaria de Educação era responsável pelos lanches e
materiais didáticos como livros, cadernos, lápis, borracha que eram distribuídos aos alunos.
A 1a série foi importante para mim, pois aprendi a fazer cópia, ditado e leitura de textos.
Gostava muito também da aula de Educação Artística, vivia desenhando bonecas em
cadernos de desenho. A minha professora pedia sempre aos pais dos alunos que comprassem
cadernos de caligrafia para exercitarem a escrita e é por isso que tenho hoje em dia a letra
bonita e legível.
Na 2a série, minha professora se chamava Madalena e as atividades em sala de aula
eram feitas em grupos de alunos ou equipes, como era chamados na época. Na sala ficavam
duas estagiárias secundaristas do Curso de Magistério que auxiliavam a professora nas
atividades em sala de aula. Muitas vezes, a professora ficava conversando e dando conselhos
aos alunos sobre a importância do estudo e das famílias em nossas vidas.
Na 3a série, foi a fase mais difícil para mim, pois, de todas as disciplinas, Matemática
era aquela com a qual mais tinha dificuldade. Todos os dias a professora Auxiliadora fazia
a sabatina da tabuada, tinha dificuldades com ela e, todas as vezes em que errava na hora da
sabatina, ficava impossibilitada de ir participar do recreio. Diante dessa situação, a professora
resolveu comunicar a minha mãe sobre as minhas dificuldades com a Matemática. A partir
desse momento, passei a estudar todos os dias a tabuada e percebi o reconhecimento da
minha professora pelo meu esforço.
Na 4a série começava a ser responsável pelos meus estudos, conseguia estudar e resolver
sozinha as atividades escolares; era o início da minha independência estudantil. Nessa fase
já tinha sonhos profissionais de ser advogada, cantora e jornalista. Tirava notas boas e
percebia o orgulho no rosto da minha irmã quando ia buscar o meu boletim na escola.
Da 5a à 8a séries do Ensino Fundamental, estudei na escola “Unidade Integrada
Sousândrade”, onde tive que me esfoçar muito para ter êxito em todas as disciplinas. Algumas
vezes tive até professor particular para me ensinar, pois minha mãe não queria que ficasse
reprovada. Na minha casa o estudo sempre foi colocado como uma necessidade para o
nosso crescimento pessoal e profissional.
No ano de 1991, tive que passar por uma seleção para poder estudar no “Centro de
Ensino do 2° grau Coelho Neto”, onde fiz o curso profissionalizante Técnico em Administração.
Nessa época já pensava no vestibular, mas, como fazia um curso técnico profissionalizante,
percebia a dificuldade que teria quando prestasse vestibular, porque o conteúdo das disciplinas
não estava sendo ministrado corretamente pelos professores. Isso com certeza no futuro seria
um problema para os alunos que almejavam ingressar na universidade. Nessa época ainda
sentia o desejo de prestar vestibular para Direito e Jornalismo.
72
Caminhadas de universitários de origem popular
Durante o Ensino Médio, tive algumas experiências profissionais: fui estagiária
durante seis meses da Divisão de Direitos e Deveres (DDD) da Universidade Federal do
Maranhão. Esse estágio me foi bastante enriquecedor, pois aprendi a realizar algumas
atividades do serviço público como: digitação de documentos, entrada e saída de documentos
via protocolo e atendimento ao público. Tinha a ilusão, nesse período, de que conseguiria
emprego facilmente, mas tudo aconteceu de modo contrário, pois, após o término, fiquei
um bom tempo procurando emprego.
Resolvi prestar vestibular. Como tinha sido isenta da taxa de inscrição, nessa época o
vestibulando tinha direito a duas opções de curso; resolvi então concorrer a uma vaga em
Direito e outra em Jornalismo, mas infelizmente não fui aprovada, porque o meu Ensino
Médio foi muito deficiente. Foi então que percebi a necessidade de freqüentar um curso
Pré–Vestibular, mas a condição financeira em que me encontrava não permitia o acesso a
um cursinho, porque o custo das mensalidades era tão alto que às vezes chegava a quase um
salário mínimo.
Mesmo com muita dificuldade financeira, minha mãe resolveu investir no meu sonho
de ingressar numa universidade pública e me pediu que procurasse um curso que fosse
acessível a minha condição financeira. Consegui me matricular num cursinho, mas estudei
apenas por poucos meses, pois minha mãe adoeceu devido a problemas com diabetes e
hipertensão arterial, tendo que ficar internada durante muito tempo e então começaram a
surgir os obstáculos que me impossibilitariam de realizar o meu sonho de passar no vestibular.
Diante de tanta dificuldades, comecei a pensar em soluções para voltar a estudar,
então resolvi procurar um emprego. Um belo dia pela manhã, minha irmã me avisou que
uma empresa que fica próxima a minha casa, no bairro da Areinha, estava fazendo cadastro
de pessoas para trabalhar em serviços gerais. Cheguei a essa empresa às 9:00 e só consegui
me cadastrar às 17:30. Essa empresa se chama SERVI-SAN e tinha obtido o contrato de
licitação para prestar serviço na Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Após duas
semanas em que tinha me cadastrado, fui chamada para trabalhar. Por ironia do destino, o
primeiro local em que prestei serviço para essa empresa foi a Biblioteca Central que passava
por reformas. Lembro-me que passava horas limpando livros, pois o meu expediente
começava às 13:00 e terminava às 21:00.
Com um mês em que estava trabalhando, minha mãe faleceu. Sofri muito, mas, para
aliviar minha dor, resolvi me agarrar aos ensinamentos deixados por ela que sempre me
falava que com estudo se vence tudo. Com essa perda a necessidade, a vontade e a
determinação de passar no vestibular aumentaram.
A Universidade Estadual do Maranhão (UEMA) resolveu criar um cursinho conhecido
como SOS; fiz a seleção, passei e consegui estudar durante um ano no turno noturno. As
aulas eram ministradas pelos professores da universidade e recebíamos gratuitamente todo
o material didático. Quando chegou o período de inscrição para o vestibular, decidi por
Biblioteconomia que oferecia 50 vagas. Fui bem classificada para a segunda etapa e confiante
na aprovação. No entanto, para minha surpresa, quando saiu o resultado, fiquei como
excedente, o que me desestimulou muito.
Acabei me acomodando e passei uns três anos sem fazer vestibular por algum tempo.
Foi uma das piores atitudes que tomei na minha vida. Mesmo distante dos estudos, sentia
que algo me faltava, tinha uma sensação de vazio. Foi então que resolvi começar a lutar de
novo pelo sonho de ingressar na universidade. Voltei a estudar em cursinhos particulares e
Universidade Federal do Maranhão
73
fiz vestibular para Filosofia, mas não fui aprovada nem na primeira etapa, mas dessa vez não
ia desistir do meu ideal. Voltei a estudar no turno matutino no cursinho da UEMA que dessa
vez se chamava cursinho da Cidadania, assistia aula por televisão, pois a metodologia de
ensino utilizada dessa vez pelo cursinho era o Telensino.
Quando terminava a aula, ia direto para o trabalho, pois continuava trabalhando em
serviços gerais na UFMA. Chegava em casa cansada, mas mesmo assim pegava os meus
livros e apostilas e ficava estudando até tarde da noite.
Resolvi me inscrever mais uma vez no vestibular e mais uma vez para Biblioteconomia
que oferecia somente 26 vagas. Fui classificada em quarto lugar para este curso, foi então
que percebi que o meu sonho já era uma realidade. Quando saiu o resultado da 2° etapa,
estava aprovada, fiquei muito feliz porque sabia que a minha luta e vitória para ingressar na
universidade mudaria a minha vida para melhor. Mas como nem tudo é felicidade, fiquei
desempregada depois de oito anos em que trabalhava na empresa terceirizada que prestava
serviço para a UFMA. Fiquei muito triste e muito preocupada, porque estava fazendo alguns
cursos para me reciclar como curso de computação e não sabia como iria me manter na
universidade tendo despesas com materiais didáticos: cópias, livros e digitação de trabalhos
acadêmicos, mas a minha irmã se prontificou logo a me ajudar nesse momento difícil, para
que não desistisse de estudar na universidade.
Quando estava no final do 2° período, fui chamada para comparecer na secretaria do
Centro de Ciências Sociais (CCSO) da UFMA. Era o senhor Raimundo dos Santos, secretário
do CCSO, que queria falar comigo. Ao chegar à sala, fui abordada com a seguinte pergunta:
Você está com sua documentação? Respondi que estava e ele me disse que, a partir daquele
dia, seria estagiária da secretaria do CCSO.
Durante minha permanência na secretaria do CCSO, aprendi a executar várias
atividades administrativas, tive liberdade para usar o computador para digitar os meus
trabalhos acadêmicos. Não posso deixar de falar de Lourenço Pinheiro (in memorian) que
muitas vezes fazia encadernação das minhas cópias. Alcy Bastos e Maria Clara me contavam
histórias da Universidade quando ainda era Fundação. Agradeço de coração ao senhor
Raimundo pela oportunidade profissional e peço a Deus que abençoe todos os outros
funcionários e agradeço a todos pelos ensinamentos que tive durante os dois anos em que
fui estagiária do CCSO.
Foi através da internet, acessando a página da UFMA, que vi o edital do “Conexões
de saberes” e fiquei interessada em participar porque, além de estar oferecendo 25
bolsas, o projeto ainda era de extensão. O que mais chamou a minha atenção foi o fato
de esse projeto ser baseado no Observatório das Favelas do Rio de Janeiro, sendo
voltado para o estudo e pesquisa de comunidades. Decidi me inscrever no último dia
para participar da seleção, fiquei muito nervosa no dia da entrevista e fui avaliada por
três coordenadores: Profa Fernanda, Álvaro e Maria Helena. Lembro-me de que falei de
tudo que entendia sobre pesquisa de campo e sobre a minha visão em relação a
comunidades periféricas.
Hoje vejo o “Conexões” como um Projeto inovador na universidade que busca inserir
o estudante de origem popular em espaços sociais, tentando diminuir a desigualdade social
através de ações afirmativas. O projeto visa também qualificar o aluno de origem popular
através de oficinas voltadas para o conhecimento científico para que o aluno possa
desenvolver atividades de pesquisa e extensão nas comunidades populares.
74
Caminhadas de universitários de origem popular
Atualmente tenho uma visão social mais humana, sem preconceitos ou estereótipos e
devo tudo isso ao “Conexões de saberes”. Agradeço aos coordenadores por todos os ensinamentos.
“Os que têm oportunidade de se consagrar aos estudos
científicos deverão ser os primeiros a por seus conhecimentos a
serviço da humanidade”.
Karl Marx
Universidade Federal do Maranhão
75
Tudo vale a pena, se a alma não é pequena
Lucélia Cristina Carvalho Ferreira *
De tudo, ficaram três coisas:
A certeza de que estamos sempre
começando...
A certeza de que precisamos continuar...
A certeza de que seremos interrompidos
antes de terminar...
Portanto devemos:
Fazer da interrupção um caminho novo...
Da queda um passo de dança...
Do medo, uma escada...
Do sonho, uma ponte...
Da procura, um encontro...
Certeza - Fernando Pessoa
Um dos versos de Fernando Pessoa resume bem a minha caminhada: “Tudo vale a
pena se a alma não é pequena”. Filha única de um pedreiro e de uma dona de casa, tive
uma infância tranqüila. Seu Antonio e Dona Josecília se esforçaram muito para me dar
uma boa educação que refletisse na minha criação como um todo. Morávamos no bairro
da Madre Deus, um local repleto de festividades e berço da cultura popular ludovicense.
A duas quadras dali, ficava a casa de meus avós maternos, seu José Toim e dona Lucília,
dos quais eu sou a primeira neta. Logo, não é difícil imaginar que passei grande parte de
minha infância na casa dos meus avós, aonde ia para brincar com meus primos, todos
mais novos que eu. Praticamente fui criada pela minha avó que, em certos aspectos, me
mimou muito.
Lembro-me da rotina dominical de ir à missa logo pela manhã cedinho, sempre
acompanhada de vovó que me incentivou a fazer a Primeira Comunhão. Vovô tem um
sítio numa localidade chamada Gapara, na área Itaqui-Bacanga; um sítio por sinal
enorme, que hoje está dividido entre seus nove filhos. Como naquela época ainda não
*
Graduanda em Geografia na UFMA.
76
Caminhadas de universitários de origem popular
existia a ponte que atualmente liga o centro da cidade à região do Itaqui-Bacanga, ele
embarcava seus netos em uma canoa e nos levava para lá; era muito divertido e eu
gostava muito disso.
Comecei minha vida escolar aos quatros anos. As lembranças do Jardim de Infância
são muito vagas, mas uma delas é marcante: lembro que minha mãe nunca ia me buscar –
por razões que desconheço até hoje, o certo é que eu tinha que vir com a professora Rosa
que, além de amiga de minha mãe, morava na mesma rua de minha avó.
Terminada a fase do Jardim, comecei a percorrer o caminho da escola primária e fui
estudar na Escola Sotero dos Reis, que ficava próxima ao bairro da Madre Deus. Foi uma
fase nova, cheia de experiências desconhecidas para uma menina de sete anos: fazer novos
amigos, ter uma professora que não queria mais saber de pinturas e desenhos. Na sala de aula
e fora dela, sempre fui quieta e tímida. Sentava na fileira do lado da parede, na última
carteira e estudava com gosto, sentia-me feliz quando trazia lição de casa. Logo, tirar boas
notas nunca foi problema para mim.
Quando eu estava na 3ª para a 4ª série, meu pai abandonou o emprego de pedreiro
em uma construtora de edifícios que era responsável pela construção de vários edifícios
do bairro do São Francisco. Com o valor da rescisão trabalhista recebida, decidiu abrir
um comércio varejista no Mercado Central, foco do comércio popular da Capital. Nos
fins de semana, eu estava sempre lá para ajudá-lo e então aprendi a trabalhar no caixa,
na venda, com a balança, enfim, com as atividades corriqueiras de um pequeno comércio
popular. Quando terminei o primário, fui cursar o Ensino Fundamental na Escola
Sousândrade, cuja vaga minha mãe conseguiu na última hora. De lá não guardo nenhuma
boa recordação, muito pelo contrário: fiquei reprovada na 5ª série – juntamente com
metade da turma - por questões pessoais de uma das professoras. Minha mãe tinha
escondido do meu pai esse fato e, como mentira sempre tem pernas curtas, ele acabou
descobrindo e ficou tão furioso que brigou comigo e com mamãe. Em parte ele estava
certo, mamãe realmente não deveria ter escondido minha reprovação e nem eu ter omitido
a notícia, porque papai sempre se esforçou para me dar um estudo de qualidade, dentro
de suas possibilidades. Passada essa fase, fui matriculada na Escola Benedito Leite, lá
tive que começar de novo e fiz daquela oportunidade a diferença: passei em todas as
séries com excelentes notas.
Nessa época meu pai havia perdido o ponto comercial no Mercado Central e tivemos
que montar o comércio na própria residência. Foi uma fase muito difícil, já que a casa só
tinha quatro cômodos e a sala havia se transformado em ponto comercial. O certo é que, com
o comércio em casa, papai não me deixava mais sair. Tinha que ficar no comércio e só saía
de casa, praticamente, para ir à escola.
Tive uma adolescência mal vivida, totalmente reprimida. Nesse ponto meu pai
atrapalhou muito meu desenvolvimento, não deixou que eu vivesse essa fase em sua
plenitude, o que me tornou uma pessoa ainda mais retraída e tímida.
Por volta de 1998, tinha terminado o Ensino Fundamental e participei do processo
seletivo no CEFET-MA (Centro Federativo Tecnológico do Maranhão), mas não passei.
Acabei por estudar no anexo do CEGEL (Complexo Educacional Governador Edson Lobão),
depois fui transferida para a Escola “BCA” (Bernardo Coelho de Almeida), onde terminei
meu Ensino Médio. Eu havia me disposto a prestar vestibular para o programa seriado da
UFMA, o PSG. Com muito custo ingressei no Processo de Seleção Gradual ainda na 1ª série
Universidade Federal do Maranhão
77
do Ensino Médio, a muito custo porque além de não ter conseguido o dinheiro necessário
para a inscrição, minha mãe começou a manifestar sérios problemas de saúde, dando início
a uma fase de depressão psíquica.
Por outro lado, nossa família encontrava-se em uma situação financeira delicada, o
comércio estava falindo e meu pai não conseguia emprego devido à idade. Eu já estava com
20 anos e meu pai insistia para que eu procurasse um emprego e só depois pensasse em
Universidade. Mas eu queria continuar meus estudos, ter um curso superior, ter uma profissão
que me possibilitasse crescer, adquirir conhecimentos. Mesmo contrariando meu pai, fui
atrás dos meus sonhos. Estudei sozinha, pois não tinha como pagar um cursinho, chegava a
estudar até 14 horas por dia, sem nenhum descanso.
Quando cheguei à 3ª etapa do PSG, eu já havia terminado o Ensino Médio. Após todas
as provas, cheguei à fase da prova dissertativa. Minha primeira opção tinha sido o Curso de
História. Lembro que, no dia 31 de maio de 2001, fiquei sabendo do resultado: eu não havia
sido aprovada! Sofri uma decepção tão grande que me marcou muito. Meu pai não se
conformou por eu não ter passado. Nesse instante percebi que, no fundo, ele esperava mais
isso do que eu mesma, brigou muito comigo, me falou coisas horríveis que me magoaram.
Eu estava sentada na cama chorando muito quando algo me surpreendeu: minha mãe, que
praticamente havia se anulado para a vida, ausentando-se de acompanhar meu crescimento,
vivendo em uma outra realidade distante daquela presente em nossas vidas, abraçou-me
bem forte e disse que um dia eu iria passar no vestibular, com um pouco de calma, minha
hora iria chegar, não era preciso chorar...
Por volta de 2002, nossa situação financeira tornou-se mais crítica ainda. Meu avô
então, vendo aquela situação, convenceu meu pai a ir morar no sítio do Gapara. No começo,
papai relutou muito, mas, sem outra opção, acabou aceitando e então lá fomos nós
recomeçarmos a vida. Com a mudança para o Gapara, nossa casa da Madre Deus ficou
alugada. No terreno do Gapara, de imediato, papai construiu uma casa de taipa, toda rebocada
por cimento e, para buscar nosso sustento, passou a plantar hortaliças as quais eram vendidas
para os moradores da região.
Com o dinheiro do aluguel da casa da Madre Deus e com o que rendia da venda de
verduras e hortaliças, meu pai investiu mais uma vez em uma pequena mercearia e construiu
uma casa de alvenaria. Nesse mesmo ano, resolvi fazer vestibular de novo, mais uma vez
optei pelo Processo de Seleção Gradual. Para me manter e conseguir pagar a inscrição,
resolvi dar aulas particulares de reforço para alunos do Ensino Fundamental. Ensinava pela
manhã e pela tarde e estudava nos intervalos entre uma aula e outra. À noite, entrava pela
madrugada, com uma caneca de café na mão e com os olhos fincados nos livros. Quando eu
estava muito cansada, chegava até mesmo a me debruçar sobre os livros e dormia.
Em 2003, a condição psíquica de minha mãe se agravou definitivamente e ela entrou
em um estado de esquizofrenia, já não articulava corretamente o pensamento, passando a
viver em um mundo somente seu. Nesse mesmo ano, conheci o homem que viria a ser
futuramente meu namorado. Ele estava cursando os últimos períodos do Curso de Psicologia
na UFMA e exerceu um papel super importante em minha vida e na caminhada rumo à
Universidade; ajudou -me muito com os estudos e incentivou-me bastante a não desistir de
meus sonhos. O Ben, que hoje é meu amado, começou como meu vizinho e era ele quem
corrigia minhas redações; aos poucos fomos nos aproximando mais e mais e, com o tempo,
o amor nasceu como uma sementinha que nasce em solo fértil, crescendo forte e bela.
78
Caminhadas de universitários de origem popular
Em 2005, era a última etapa do PSG. Dessa vez escolhi o curso de Geografia, pela
afinidade e porque achava bonito o papel do geógrafo na sociedade. No dia da prova,
estava tranqüila, fiz uma boa prova e estava na expectativa do resultado. No final de abril,
saiu o resultado e, para minha surpresa, havia passado em 5o lugar, entre as 12 vagas ofertadas
pelo curso. Fiz a prova dissertativa e passei. No dia do resultado, lembro que estava ouvindo
a Rádio Universidade na expectativa de conferir a lista dos aprovados, quando, por volta
das 11 horas, começou a ser divulgado o resultado. Nessa hora a emoção bombeava
fortemente o coração, sem parar. Por incrível que pareça, no exato momento em que ia ser
divulgada a lista dos aprovados para o Curso de Geografia, simplesmente faltou energia no
bairro e eu fiquei desesperada. Entretanto, minutos depois, o telefone público que fica
próximo tocou. Era o Ben que, como um anjo anunciador da boa nova, me trouxe a melhor
das notícias da minha vida: eu tinha passado no vestibular seriado (PSG) em 8° lugar. Meu
pai e Ben me prepararam uma festa no fim de semana seguinte. Ao sabor de uma feijoada,
toda a minha família apareceu para me parabenizar.
No 2o semestre de 2005, ingressei na Universidade realizando um sonho: estudar na
UFMA e fazer um curso que é maravilhoso. Minha turma, sem palavras, amei tê-los como
amigos. Ainda no 1° período, ingressei no NEPA (Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais).
Para mim foi importante, conheci novos amigos, comecei a me interessar por assuntos sobre
questões ambientais e aprendi a realizar pesquisas na área e, também, a superar a timidez.
Meu curso funciona no período vespertino-noturno, mas eu passo o dia todo na UFMA.
Pela manhã, em dias alternados, vou ao NEPA e ao curso de língua estrangeira, ofertados
pelo Curso de Letras, onde estudo inglês e espanhol. Com isso os gastos para me manter na
universidade foram aumentando a cada dia: cópias, alimentação, livros, passagens,
impressões, enfim. Meu pai não tinha muito para me dar, e nessa parte Ben me ajudava.
Fiquei sabendo do Programa Conexões de Saberes pelo Ben. Como eu me encaixava no
perfil do projeto, resolvi me inscrever. Participei da seleção e, para minha surpresa, passei.
Vinte e cinco novos amigos que antes mal conhecia (só os via pelos corredores da
universidade) se tornaram um pouco minha família. São vinte e cinco trajetórias de pessoas
que, assim como eu, tiveram em suas caminhadas também dias ensolarados e dias nublados.
Com o programa implantado na UFMA, tivemos a visita do Jailson de Souza,
coordenador do Observatório de Favelas. Participamos das oficinas e do Seminário Nacional
que ocorreu no Rio de Janeiro, em novembro de 2006. Foi nesse evento que pude conhecer
a dimensão do Programa Conexões de Saberes e sua importância para cada um de nós, que
faz parte dessa família grandiosa. Espero terminar minha graduação e continuar os estudos,
pensando no Mestrado e Doutorado. Atuar em minha profissão e poder dar aos meus queridos
pais um conforto, uma velhice mais tranqüila. Ao lado do Ben, ter a certeza de que podemos
fazer desse encontro o começo da construção de nossa história. Continuo, nessa caminhada,
tentando realizar meus sonhos profissionais, pessoais e familiares, com passos firmes e
objetivos. E, como Pessoa, estou certa de que “tudo vale a pena, se a alma não é pequena”.
Universidade Federal do Maranhão
79
Os primeiros passos de uma
formação contínua - a educação
Lucileide Martins Borges*
“Devemos ser a mudança que
desejamos ver no mundo”
Gandhi
A escolha pelo curso de Pedagogia deve-se, sobretudo, às falhas encontradas no
decorrer da minha escolarização, na certeza de que, para transformar minha realidade de
origem, precisaria promover em mim tal mudança. A mudança que busquei é a mudança que
desejo ver no mundo: um mundo de oportunidades, onde todos possam ter acesso à educação
de qualidade.Começarei a ser agente dessa mudança na realidade que está ao meu alcance
e, quem sabe, quando mais pessoas começarem a semear as sementes da transformação,
teremos um país onde todos tenham acesso à educação.
Sou natural de Bequimão – Maranhão, município do litoral ocidental maranhense.
Tenho oito irmãos (sete mulheres e um homem) e sou a quinta filha de Paulino Álvares
(pedreiro) e Arcângela Lemos (auxiliar de serviços gerais).
Em 1989, com 5 anos de idade, fui pela primeira vez para a escola – Unidade Integrada
Dr. Antônio da Costa Rodrigues - onde comecei a cursar a educação infantil. Não me
lembro de muitos detalhes dos dois primeiros anos escolares, porém tentarei registrar os
fatos mais marcantes.
Em 1990, passei para o 2º período, popularmente chamado, naquela época, de cartilha,
em decorrência do material didático que utilizávamos. Fazíamos leituras nas cartilhas maiores,
eram frases soltas e palavras com sons repetidos do tipo: “A babá é Bia”; “Ivo viu a uva”.
Em 1991, já na 1ª série, estudava em classe multisseriada, juntamente com minha irmã
Lucilene, embora ela fosse mais velha. Um dia, não sei por qual motivo, a professora a
colocou de castigo, ajoelhada de frente para a parede, próxima à porta – era mais que um
castigo: era uma humilhação, pois as pessoas que passavam na rua olhavam-na ali ajoelhada.
Fiquei indignada, mas não podia fazer nada.
Em 1992, na 2ª série, continuava a estudar no período da manhã, assim como nos anos
anteriores. Com aprovação na 2ª série, comecei a cursar a 3ª no ano seguinte, no período da
tarde. Sentia um pouco de medo, pois era muito pequena e estudava com a turma da 4ª série.
Nesse período estudei junto com outra irmã, a Tereza, que, por sinal, é mais velha do que eu
*
Graduanda em Pedagogia na UFMA.
80
Caminhadas de universitários de origem popular
quatro anos, e assim havia muitos outros alunos com idade avançada, o que me causava
certo constrangimento. Houve vezes em que chorava na turma porque não conseguia
responder às atividades sozinha; as explicações da professora eram muito rápidas e não
conseguia acompanhar, principalmente quando da aula de Matemática.
Foi a partir desse período que comecei a estudar mais e a me concentrar nas aulas, sem medo
de errar. Pensei da seguinte forma: “se as outras pessoas aprendem, eu também posso aprender”.
Mesmo com muitas dificuldades, choros, erros e acertos, fui aprovada e passei para a 4ª série.
Em janeiro de 1994, com 10 anos de idade, vim para São Luís morar com uma senhora
chamada Lindomar, irmã da minha madrinha Marlinda. No início estava gostando da idéia
de vim morar na cidade grande, mas, quando cheguei, senti medo de ficar longe dos meus
pais e dos meus irmãos, embora soubesse que tinha duas tias morando na mesma cidade.
Chorei uma semana inteira com vontade de voltar para o interior, até o dia em que minha
prima Lidiane foi me buscar e levou-me para a casa dela. De lá eu voltaria para o interior, na
companhia de um senhor chamado Zé.
De volta para casa, fui matriculada na mesma escola onde até então havia estudado.
Agora estava mais tranqüila em relação à turma; os colegas eram os mesmos, em sua maioria.
Estudei muito e passei de ano com boas notas, mesmo diante das péssimas condições da
escola que, às vezes, não tinha sequer bancos suficientes para acomodar os alunos. Lembrome de um certo dia em que fiquei a tarde inteira de cócoras, para poder copiar a aula com o
caderno apoiado no assento do banco.
Terminadas as séries iniciais do Ensino Fundamental, fiquei preocupada, pois não havia
escola do ginásio em Pontal (povoado em que morava), somente no centro de Bequimão e em
comunidades distantes para as quais não havia meios de transporte disponíveis. A única opção
era sair para estudar fora, nos municípios vizinhos, tais como: São Bento, Perimirim, etc. Mas
para mim havia um grande problema: eu era a filha mais velha dos irmãos que ainda moravam
em casa e, por este motivo, não podia sair para estudar fora. Precisava ajudar minha mãe a cuidar
dos meus irmãos menores e da casa, já que ela passava a manhã inteira na escola onde trabalhava
(e ainda hoje trabalha) e o meu pai passava o dia inteiro fora de casa, trabalhando como pedreiro.
Fiquei o ano de 1995 sem estudar, ou melhor dizendo, sem estar matriculada, mas indo
para a escola revisar os conteúdos da 4ª série. Essa era uma prática costumeira, dizia-se que
a pessoa estava encostada, mas o compromisso era o mesmo dos que estavam matriculados.
Em 1996, minha mãe e minhas irmãs mais velhas conversaram sobre o tempo em que eu
havia perdido repetindo a quarta série por falta de escola e chegaram à conclusão de que
não poderia mais ficar sem estudar. Foi aí que minha mãe decidiu falar com uma tia minha
para eu morar na sua casa, em São Luís.
No dia 21 de janeiro de 1996, vim para São Luís e aqui permaneço até hoje. Fui
matriculada na escola municipal Olinda Desterro, localizada no bairro Vicente Fialho, na
qual estudei da 5ª à 8ª séries.
O primeiro ano na nova escola foi de muitos impactos, primeiro porque não é nada
fácil para uma garota de 12 anos sair de perto de sua família, no interior, e vir morar com
parentes na cidade; segundo porque há um contraste muito grande na mudança de uma
escola do interior para uma escola da capital, embora fosse da rede municipal e ficasse
localizada num bairro popular de São Luís. O impacto foi muito grande, a cobrança era
maior e eu me sentia inferior aos outros alunos, pois percebia que meu nível de conhecimento
não era igual ao dos demais.
Universidade Federal do Maranhão
81
Foi na 5ª série do Ensino Fundamental, na escola “Olinda Desterro” e com a ajuda da
professora Conceição, professora de Português, que eu percebi a escrita errada do meu
nome. Neste momento me questionei: será que os professores das séries anteriores nunca
tinham observado tal erro? O porquê de tamanha falha? Não conseguia acreditar que tantas
vezes escrevi meu nome no caderno de atividades e os professores nunca haviam observado
tal erro. Após consultar meu registro de nascimento, constatei que até os 12 anos de idade
não havia sido alfabetizada ortograficamente, pois, além disso, cometia muitos outros erros
na escrita das palavras.
Agradeço, carinhosamente, a professora Conceição. Foi muito válido e prazeroso ter
aprendido Língua Portuguesa com ela: uma professora rígida, às vezes brincalhona, às
vezes zangada.
Na sexta série, tive muita dificuldade em compreender Matemática, talvez pela mudança
freqüente de professores: foram três em apenas um semestre – Joseli, Roberto Carlos e Maria
do Carmo. Obtive notas baixas no 1º semestre e fiquei com medo de reprovar, mas com a
professora Maria do Carmo consegui recuperar as notas e aprender o conteúdo. No segundo
semestre letivo de 1997, chegou um novo professor de Matemática, Edvan Lopes, uma
referência para mim, pois sua história de vida é semelhante à minha. Um ano depois, descobri
que ele era oriundo do meu município e daí ficamos amigos. Ele me estimulou muito a
prosseguir nos estudos, principalmente quando fiz o seletivo para a escola de Ensino Médio,
do qual falarei mais à frente.
Em 1999, na 8ª série, tive muitos professores bons, que marcaram minha vida escolar:
professora Socorro, conselheira e amiga; professora Marise, historiadora crítica; professora
Maria da Paz, carismática e dedicada; professora Doralice, a Dora, meio mãe, meio irmã,
querida por todos; e o professor Edvan, meu estímulo, que continuou a ser meu professor até
o momento em que saí da escola.
Fui muito estimulada, como já mencionei anteriormente, a fazer o seletivo para a
escola Liceu Maranhense, mas por pouco não perdi o prazo das inscrições. Meus colegas de
turma e eu ficamos sabendo no último dia e tivemos que passar o dia inteiro correndo atrás
dos documentos para fazer inscrição; até as aulas foram suspensas naquele dia. Enfim,
conseguimos nos inscrever!
No dia da prova, estávamos no horário brasileiro de verão, saí de casa ainda na escuridão,
sem saber ao certo o local onde faria a prova. No ônibus, perguntei sobre a localização da
escola e várias pessoas disseram que iam para o mesmo bairro. Eu então os acompanhei.
Quando saiu o resultado, num dia de sábado, estava na escola aguardando a professora chegar
para repor as aulas atrasadas, por motivo de greve.. quando olhei meu nome no jornal, pulei de
alegria, mas ao mesmo tempo fiquei triste porque minha melhor amiga, a D’kéfia, não havia
passado. Passaram apenas dois colegas de turma, o Ribamar e o Michel.
Em 2000, começou uma nova fase na minha vida escolar: o Ensino Médio. Experiência
riquíssima de novas amizades, novos conhecimentos, novos mestres, tudo era novidade. No
dia 4 de fevereiro, ainda estávamos no horário de verão, saí bem cedo de casa, ainda estava
escuro, a escola era no centro da cidade e a ansiedade pelo novo era grande. Quando
cheguei ao Liceu não conhecia quase ninguém, apenas os dois colegas de turma que também
haviam sido aprovados no seletivo. A nova escola era imensa, se comparada com a antiga.
A recepção foi ótima. A escola era cheia de normas, tanto que, quando fiz minha matrícula,
recebi logo o manual do aluno.
82
Caminhadas de universitários de origem popular
Passados alguns dias de aula, fiz amizade com uma colega de turma, a Janaína de
Araújo, que, por sinal, foi minha companheira de estudo durante todo aquele ano,
principalmente nos trabalhos escolares e sem contar nas inúmeras sextas-feiras em que
ficávamos o dia todo na escola por causa da Educação Física que acontecia no turno da
tarde. Ficávamos o dia inteiro apenas com um lanche, na maioria das vezes biscoito com
refrigerante - cada uma levava o seu biscoito e dividíamos o refrigerante. Estudávamos
muitas tardes na biblioteca do SESC (Serviço Social do Comércio), localizada próximo ao
Liceu. No ano seguinte, mudei para uma turma na sua maioria procedente do turno vespertino;
fiz novas amizades, mas Janaína continuava sendo a amiga de estudos, ainda que
estudássemos em turmas diferentes.
Nesse período fazia um curso de pintura pelo Programa de Capacitação Solidária na
Associação Comunitária do meu bairro. Era ótimo, pude reencontrar alguns colegas do
Ensino Fundamental e conhecer muitos lugares novos, sem contar as pinturas que fazíamos,
pois gosto muito de pintar e até pretendo fazer um curso de Artes Plásticas. Ganhava R$50,00
por mês e isso me ajudou bastante, inclusive para pagar a primeira inscrição do vestibular.
Na 2a série fui aluna do professor João Batista, o vice-diretor da escola, muito temido
por todos devido a sua rigidez, tanto como professor quanto como vice-diretor. Não tive
problemas com ele, muito pelo contrário, sempre fui uma aluna esforçada e me destacava
em sala de aula.
Desde quando entrei no Liceu, fui motivada a fazer o PSG (Programa de Seleção
Gradual) da UFMA. Na primeira etapa não obtive muito sucesso. Embora tivesse estudado,
meu rendimento foi em torno de 3 mil e poucos pontos, mas na segunda etapa me superei:
fiz 5 mil pontos e fiquei cheia de expectativas.
Em 2002, pedi transferência de matrícula para o período noturno porque precisava
trabalhar e, mais uma vez, mudei de turma. Agora eu estudaria numa turma bastante
diversificada; os alunos, em sua grande maioria, advinham de outras escolas e até mesmo de
outros Estados, como era o caso de Rackel - uma mineira amiga e confiante.
Mesmo estudando no turno da noite, não conseguia emprego, pois não tinha nenhum
curso técnico. A falta de emprego me preocupava bastante, estava no último ano do Ensino
Médio e tinha que pagar a taxa de inscrição do PSG, que agora seria o dobro das etapas
anteriores: R$ 60,00. Eu precisava trabalhar para arcar com as despesas dos meus estudos.
Em agosto de 2002, saí da casa da minha tia, na qual morava há quase sete anos, e fui morar
com uma família, para a qual fazia os serviços domésticos e era remunerada com R$ 200,00.
Pedia todos os dias para que Deus me ajudasse a sair daquela casa. Estudava para o PSG de
madrugada, porque não tinha tempo durante o dia. Quando fui aprovada em 5º lugar na
primeira fase da 3ª etapa, fiquei muito feliz, pois sabia que meu sonho de passar no vestibular
estava cada vez mais perto de se realizar. Tinha apenas uma semana para estudar e fazer a
segunda fase e me virava da forma como podia: de madrugada, nos fins de semana, qualquer
tempo livre era para estudar.
Fiz a prova muito confiante. Esperei ansiosamente pelo resultado. No dia 22 de março
de 2003, quando ouvi meu nome na rádio, gritei de alegria: “Passei!” 6º lugar para Pedagogia
Noturno, na Universidade Federal do Maranhão.
Alguns meses depois fui morar com minha irmã Tereza no Residencial Paraíso, bairro
próximo à Universidade. Mas, surgiu um novo problema: precisava trabalhar para me manter
no meu Curso e não conseguia emprego.
Universidade Federal do Maranhão
83
Em janeiro de 2004, por intermédio de dois amigos do curso, consegui uma bolsaestágio na Biblioteca Central da UFMA. Trabalhava quatro horas por dia e recebia uma
bolsa no valor de R$ 130,00. Apesar de ser pouco, dava para eu comprar meus passes
escolares e tirar as xérox dos textos.
Quando estava no 3º período do Curso, fiquei sabendo que o projeto de extensão “Jovens
com a Bola Toda” - UFMA/IAS (Instituto Airton Senna) faria uma seleção para contratar uma
educadora bolsista do curso de Pedagogia. Fui fazer a prova. Depois de dois dias, fui saber o
resultado e vi minha aprovação. Que alegria! Era tudo que eu precisava. Além da experiência,
ganharia uma bolsa no valor de R$ 160,00 para trabalhar três dias (3h/dia).
No final de 2005, fiquei sem local para morar, pois minha irmã, com quem eu morava
até então, vendeu a casa e foi embora para outro bairro, arriscado e muito distante da
Universidade. Fiquei sem saber o que fazer. Então fui até o Núcleo de Assuntos Estudantis
(NAE), da UFMA, me informar sobre a existência de vagas na Residência Estudantil.
Chegando lá, fui informada de que não havia vagas, mas como conhecia algumas residentes,
procurei uma delas, a Marilda, que me informou que havia um sistema de hospedagem para
os casos de urgência. Fui até à Residência e fiz o pedido de hospedagem. Sendo aceita pelas
moradoras, mudei-me para o Lar Universitário “Rosa Amélia Gomes Bogéa” (LURAGB) no
dia 15 de janeiro de 2006.
Algum tempo depois, fui chamada para fazer seleção de estágio numa escola da rede
particular, porém no dia seguinte recebi um telefonema da coordenação do “Farol da
Educação” (rede de bibliotecas escolares do Estado do Maranhão) para estagiar como auxiliar
de biblioteca, optei pelo último por ser melhor remunerado e com menor carga horária. Seis
meses depois, encontrei Zartur, o coordenador do projeto JBT, do qual participei durante
oito meses, e ele me perguntou se estava sabendo das inscrições para o Conexões de Saberes.
Informou-me sobre o processo seletivo e disse que aquele era o último dia de inscrições. Fui
em casa, peguei minha documentação e fiz a inscrição. Depois de alguns dias, fui chamada
para a entrevista na qual fui aprovada e passei a compor o quadro de bolsistas do Programa
Conexões de Saberes. E hoje estou aqui contando um pouco da minha caminhada...
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Caminhadas de universitários de origem popular
Por Marcio Vinícius Campos Borges
Marcio Vinícius Campos Borges*
Minha história se inicia em 23 de setembro de 1983, numa pequena casa localizada no
interior do Estado do Maranhão, um povoado chamado Bom Viver, próximo à cidade de
Pinheiro, na Baixada Maranhense.
Nasci numa família bastante humilde, composta na época por 10 pessoas: meus pais,
Maria do Livramento Silva e Hipólito (não me recordo de seu sobrenome) e 8 irmãos.
Sobreviviam apenas da renda que meu pai, de quem pouco sei a respeito, trazia para casa.
A situação financeira de meus pais biológicos não ia muito bem: dez bocas para serem
alimentadas com uma pequena renda mensal, era um ônus quase que insustentável. Primeiro
eles resolveram entregar uma de minhas irmãs, Andréia, com 4 anos, a uma família de
pinheirenses cujas posses poderiam lhe garantir um futuro mais promissor, depois, foi a
minha vez; minha mãe conta que relutou muito em nos entregar a outras famílias, mas a
situação não era fácil, meus pais não estavam conseguindo sequer nos alimentar bem e o
desejo de ver filhos seus com oportunidades mais realistas de “ser alguém na vida” fez a
diferença no momento da decisão. Mas minha “viagem” rumo ao encontro de uma nova
família não terminaria tão rápida.
Com 4 meses de nascido, fui entregue a uma senhora, Wilma, acho que esse era seu
nome, com quem fiquei mais ou menos durante 15 dias e sobre quem algumas vezes só ouvi
falar. Desconheço o motivo pelo qual não pude permanecer junto a ela, tudo que sei é que,
passados alguns dias, ela resolveu que era hora de eu partir, mas não “retornei à casa do pai”,
como o filho pródigo da história bíblica, fui conviver com uma outra família, dona Darcy e
seu esposo Lobão, que já tinham dois filhos na época, Marcus e Márcia, meus atuais irmãos,
minha atual família.
Não posso dizer que tive uma infância traumatizante por causa da minha adoção, porque
não tive. Meus pais, principalmente meu pai, não faziam distinções entre mim e seus outros
filhos, sempre tive tudo que quis, na medida em que suas condições podiam me garantir.
Fiz jardim de infância, e estudei no mesmo colégio em que meus outros dois irmãos
estudaram durante toda minha infância e adolescência até a conclusão do Ensino Médio. Era
uma instituição filantrópica, mas que cobrava uma pequena mensalidade para “manutenção”.
Meus pais atuais nunca esconderam de mim minha verdadeira origem, e nem podiam.
Minha mãe biológica sempre me visitava e fazia questão de dizer que ela era, sim, “minha
verdadeira mãe”. Algumas tias e algumas vezes minha própria mãe tentavam “inculcar” na
*
Graduando em Odontologia na UFMA.
Universidade Federal do Maranhão
85
minha cabeça que eu deveria me revoltar pelo fato de meus pais biológicos terem me
entregado a uma outra família, como se eu tivesse sido rejeitado. Diziam elas: “E meus
outros irmãos? Não tiveram condições de sustentá-los? Por que eu o escolhido?”. Devo
agradecer, em primeiro lugar, a Deus, foi Ele que não permitiu que atitudes como essas
enchessem meu coração de rancor e amargura, pois nunca consegui sentir ódio dos meus
pais biológicos.
Meu primeiro contato com o mundo do conhecimento foi na escolinha Semente do
Saber, um jardim de infância recém-inaugurado na cidade e de cuja primeira turma
participei. Por dois anos estive lá e aprendi bastante. Tive excelentes professoras (as tias)
das quais me recordo em vagas lembranças e colegas de turma, com alguns dos quais
mantenho contato até hoje.
Os fatos mais marcantes durante minha primeira infância foram, sem sombra de dúvida,
as famosas Festas Juninas. Minha mãe sempre era escolhida para fazer o mingau de milho e
eu sempre dançava na quadrilha. Lembro-me de uma vez em que fui escolhido junto com
uma garota de minha turma para sermos rei e rainha da Festa de São João, porém, tínhamos
que disputar com uma outra dupla de crianças. Minha mãe tinha que arrecadar dinheiro
vendendo alguns bilhetes, e é claro, venceria a dupla que vendesse mais. Ela passou dias
nas ruas arrecadando dinheiro com as vendas, e recordo-me como se fosse hoje, nós vencemos
e eu ganhei um carro enorme de brinquedo.
Assim que saí do jardim de infância, fui matriculado no Colégio Pinheirense, a
instituição filantrópica que cobrava uma taxa, no qual concluí os Ensinos Fundamental e
Médio. É evidente que eu não gostava de estudar e isso me rendia umas boas chineladas na
“poupança”. Minha mãe me obrigava a estudar e eu tinha o dever de ser o melhor. Minhas
notas escolares não podiam ser menores que 9,0, numa instituição de ensino cuja média era
8,0. Era surra na certa se eu chegasse em casa exibindo alguma nota baixa. Não sei se essa
psicologia retrógrada tem algum fundo de verdade, mas parece que a tentativa deu certo.
Nunca necessitei de professores particulares e fazia meus deveres de casa sozinho, já na 4ª
série do Ensino Fundamental. Esforçava-me para ser o melhor aluno da sala e adquirir o
espírito de competição que me foi ensinado. Nessa escola, os boletins eram entregues duas
vezes ao ano, a cada semestre. Neles, era discriminada a colocação do aluno na sala de aula.
E quem era o primeiro colocado no ranking? Eu. Meus pais ficavam orgulhosos de mim e
diziam sempre que eu teria um futuro brilhante; comparavam-me, às vezes, com meus outros
dois irmãos, que não davam à mínima para os estudos, mas isso os magoava.
Dois fatos marcaram essa fase da minha vida: o falecimento do meu irmão caçula e do
meu avô. A gravidez da minha mãe não foi problemática, entretanto, o parto foi complicado
e realizado prematuramente, parece-me que seus pezinhos foram luxados no trabalho de
parto. Meu irmão era bonito e aparentemente saudável. O que não sabíamos é que ele era
portador de uma grave doença cardíaca congênita, e depois de 48 horas de nascido, veio a
falecer. Foi traumático para meus pais a sua perda, principalmente, para minha mãe. Pouco
tempo depois, numa das viagens que costumava fazer pelos povoados nas redondezas de
Pinheiro, meu avô, que pesava na época mais de 100 quilos, sofreu uma parada
cardiorespiratória, e pela falta de recursos médicos da região, não pôde ser atendido com
urgência, falecendo em seguida. Foi o primeiro ser humano adulto que vi deitado em um
caixão e isso me abalou fortemente. Meus avós, foram meus pais na infância, convivi com
eles durante anos. Após seu falecimento, fui morar definitivamente com meus pais.
86
Caminhadas de universitários de origem popular
Já quando estava prestes a entrar no conturbado mundo da adolescência, vieram os maiores
problemas de toda minha vida. Não consigo entender até hoje o verdadeiro motivo que levaram
minha mãe a me rejeitar. Foi uma época conturbada! A gente não conseguia se entender por
alguns motivos e acabávamos discutindo, passávamos dias sem nos falar. Por vezes ela dizia se
lamentar por ter-me acolhido como filho e isso me machucava muito, e ainda machuca. Algumas
pessoas diziam que isso acontecia por causa do ciúme que ela sentia do meu pai, que demonstrava
mais amor por mim que por ela. A situação sempre se agravava quando eles discutiam e não era
incomum que brigassem. Minha mãe descontava sua raiva em cima de mim e acho que era por
vingança. Foi também nesse tempo que meu irmão mais velho resolveu se casar pela primeira
vez, e depois pela segunda e por último, pela terceira vez. Meu pai sempre aparentava dar mais
atenção às esposas do meu irmão que à sua própria esposa. Isso a magoava muito. Perdi a conta
das vezes em que houve discussões na minha casa. Não suportava mais aquela situação. Tudo
melhorou quando meu irmão finalmente decidiu ir embora de casa com sua esposa e filhos.
Na 7ª série do Ensino Fundamental, houve um acontecimento que me fez rever minha
família biológica, o falecimento do meu pai. Soube do seu falecimento através do meu pai
atual. O mais interessante de tudo é que reagi de forma inesperada. Imaginava que, se um dia
isso acontecesse, não me importaria, mas eu chorei e senti sua falta. Chorei por alguém que
havia visto rapidamente apenas uma vez, ou como se tivesse convivido com ele durante
toda minha vida. A verdade é que não me recordo dele, nem mesmo de seus traços faciais.
Foi nessa época que conheci muitos de meus irmãos, e a partir daí, comecei a manter um
maior vínculo com minha primeira família.
Quando ingressei no Ensino Médio, comecei a ter um forte desejo de entrar na
universidade. Imaginava que somente dessa forma poderia conseguir “um lugar ao sol”.
Mas havia uma contradição nisso. Passei todo o Ensino Fundamental competindo para ser
sempre o melhor, porém, quando comecei o Ensino Médio, essa minha ânsia por competição
e vitória foi se apagando, não que eu não gostasse mais de estudar, não era isso, só não
valorizava mais o estilo competidor que meus pais, em especial minha mãe, haviam me
ensinado. Isso é tão verdade que houve uma ocasião em que, no 1º ano do Ensino Médio,
fiquei pela primeira vez de recuperação em uma disciplina, e pode parecer mentira: fiquei
feliz em perder! Para mim, foi um acontecimento inédito, ímpar em toda minha vida. Ora,
alguém que passou todo o Ensino Fundamental exibindo boletins que diziam ser o melhor,
já não suportava mais pousar como “o garoto perfeito que precisa ser seguido”! Coisas
como essas me enojavam.
Passei os três anos do Ensino Médio me preparando para o vestibular e sempre estudava
muito. No fundo eu sabia que, se não conseguisse ingressar na Faculdade Pública, meu
sonho de ter um curso superior jamais se concluiria. Não queria seguir pelo mesmo caminho
que meus outros dois irmãos seguiram, porque, ao concluírem o Ensino Médio, pararam de
estudar por falta de recursos financeiros.
Na cidade onde eu morava, não havia cursinho pré-vestibular e aqueles que desejavam
ter uma melhor preparação para enfrentar o vestibular precisavam pagar professores
particulares. Meu pai nunca fez isso por mim e não seria agora que faria. Mas não desisti por
isso. Sozinho ou com alguns amigos, eu sempre estudava.
Completei o Ensino Médio em 2001, e a cada ano, desde 1999, participava do Programa
de Seleção Gradual (PSG) da Universidade Federal do Maranhão, atualmente extinto. Esse
programa realizava provas desde o 1º ao 3º ano do Ensino Médio com o objetivo de selecionar
Universidade Federal do Maranhão
87
alunos para a universidade. Nessa época, havia o PSG e o Vestibular Tradicional. Participei
dos dois processos seletivos. No Vestibular Tradicional, me inscrevi para Farmácia, mas só
fui aprovado na primeira etapa. No PSG coloquei o curso que realmente almejava,
Odontologia, no qual fui aprovado.
Foi uma nova fase da minha vida. Como meus pais residiam em Pinheiro, eu teria que
morar com alguém em São Luís, só assim poderia estudar. Minha irmã havia se mudado há
pouco tempo para a capital e seria com ela que iria morar. Ficou sempre claro para mim, desde
o começo, que fui aceito não por vontade própria. Desejei fortemente nunca ter ido viver ali.
Foram quatro anos, desde que entrei na faculdade, em 23 de outubro de 2002, que
convivi com minha irmã, seu esposo e meu sobrinho, que nasceu pouco tempo depois. Não
foi fácil! Por algumas vezes, pensei em desistir de tudo, mas meu desejo em crescer como
pessoa dentro da Universidade e as portas que seriam abertas após a conclusão do curso me
fizeram repensar. Evidentemente que não posso dizer que não houve bons momentos. É
óbvio que sim! Mas foram poucos. Ela saía de casa por dias, indo “visitar” a sogra, que
morava na mesma cidade, e me deixava “ao deus dará”. O maior problema nisso tudo era a
alimentação. A geladeira ficava, na maioria das vezes, vazia. Meu Deus, era um sufoco! Às
vezes não tinha o que comer, mas preferia ficar calado e não contar para meus pais, porque
sabia que, se contasse, minha situação só pioraria. Até hoje eles não sabem disso. “Mas um
dia a casa cai”. E numa das viagens que ela costumava fazer para Pinheiro, nossa terra natal,
resolvi que não havia a menor possibilidade de continuar vivendo ali, já não agüentava
mais aquela situação. Fui embora para a casa de uma amiga minha, Dinalva, hoje uma irmã
para mim. Foi ela quem me acolheu! E lhe sou grato por tudo!
Na faculdade, as coisas não iam muito bem. Optei por um curso relativamente caro,
fato que desconhecia. Na Odontologia, temos que comprar materiais e instrumentos de
estudo e não temos a permissão de atender pacientes sem antes tê-los adquirido. Meu pai
ainda conseguiu, com bastante esforço, comprar meus primeiros instrumentos, porém,
quando cheguei ao 7° período, a situação financeira deles ia de mal a pior. Decidi que não
podia continuar o curso nessas condições, era a hora de trancá-lo. Falei a alguns amigos
meus de sala de aula que havia decidido parar o curso por falta de recursos econômicos. O
que eu não sabia é que o destino me guardava uma grande surpresa. Meus amigos se reuniram
às escondidas e me presentearam com o resto do material que estava faltando. Deus meu,
eles me salvaram! Jamais terei como pagá-los por isso! São muitas as dificuldades, mas não
há esforço incapaz de vencê-las. Hoje estou no 9º período do curso de Odontologia e prestes
a me formar.
Atualmente, a UFMA adotou o sistema de cotas para negros e estudantes de escolas
públicas, uma ação afirmativa que representa um salto em busca da igualdade social, na
tentativa de incluir os menos favorecidos no espaço universitário. Mas existe uma dúvida
que me atormenta: como estudantes de escolas públicas e negros de baixa renda poderão
subsistir em um curso que exige de seus alunos um poderio econômico semelhante ao de
cidadãos pertencentes a níveis sociais de prestígio? Essa é uma responsabilidade do Governo
Federal que deverá lhes garantir condições igualitárias de estudo. Em um curso no qual
aproximadamente 90% dos alunos são oriundos de classes sociais altas, já é hora de ações
como essas entrarem em cena, com o objetivo único de desmoronar as regras impostas, cujas
raízes históricas só favorecem a classe social dominante.
88
Caminhadas de universitários de origem popular
Pequenas ações para uma
grande oportunidade
Maria Domingas Ferreira Castro *
Durante nosso tempo aqui neste mundo, coisas acontecem conosco que nem
conseguimos imaginar, muitas vezes, o porquê. No entanto, devemos continuar buscando o
melhor que acreditamos para nossa vida e assim vai chegando o momento em que iremos
entender a razão de acontecimentos inesperados durante nossa jornada. Bem, falo isto
porque falar sobre nossa vida não é algo fácil, principalmente, porque existem determinados
fatos que acontecem e dos quais não entendemos a razão.
Eu, por exemplo, nasci em uma família muito pobre e de muitos irmãos no interior do
Maranhão. Você entende o que é isso? Pois é, isto quer dizer que lá onde nasci nao existia
nenhum tipo de recurso que pudesse me fazer imaginar que um dia estaria em uma
universidade e escrevendo agora sobre minha caminhada. É, mas a vida nos reserva surpresas,
e quando menos esperava, com sete anos, fui para uma cidade menos pobre que a minha e lá
consegui aprender o alfabeto e até a decodificar algumas palavras; mais tarde, saí daquela
simples cidadezinha e vim para São Luís e é aqui, por incrível que pareça, que começam as
minhas maiores dificuldades.
Tive que começar a trabalhar na casa de uma família quando tinha apenas dez anos de
idade, para conseguir sobreviver aqui e poder estudar... esse tipo de coisa aqui é muito
comum: crianças serem trazidas do interior do Maranhão para trabalharem como empregadas
domésticas ou babás de outras crianças, e na maioria das vezes, serem maltratadas na casa de
famílias que têm um pouco mais de condição financeira, e pelo que vejo, infelizmente, isso
não é só no Maranhão, e sim no Brasil todo.
Felizmente no meu caso, mesmo não sendo boa a vida que levava na casa dessa
família, tive a oportunidade de estudar (isso graças à exigência que meu querido pai fez: só
viria com essa família se me colocassem para estudar), o que muitas meninas que são trazidas
de interiores muito pobres de nosso Estado não têm. Muitas apenas são trazidas para trabalhar
e trabalhar sem direito a nada. Infelizmente, é uma atitude indigna de muitas famílias que
agem dessa forma aqui no Maranhão, pois esse tipo de ação só faz destruir a pouca esperança
que essas crianças têm ou desejam ter.
Embora tenha sido uma das partes mais difíceis da minha vida, foi (talvez) decisiva
para que eu estivesse hoje, aqui, escrevendo sobre minha caminhada na vida... nessa época,
comecei logo a estudar a 1a série do Ensino Fundamental e continuei até a 8a série. Tinha
um sonho: conseguir estudar em uma escola melhor da que estudava da 5a à 8a (CEMA), pois
*
Graduanda em Geografia na UFMA.
Universidade Federal do Maranhão
89
lá o ensino era muito ruim: era a televisão que transmitia as aulas, e como a maior parte das
escolas públicas, não ensinava o aluno a aprender, antes de decorar conteúdos. Então, quando
terminei a 8a série, fiz prova para cursar o Ensino Médio no Colégio Universitário(COLUN) e
lá consegui uma vaga e foi nela que pude melhorar meu aprendizado.
Com ajuda de alguns professores, no fim da 3a série, fiz o Vestibular e passei para o
curso de Geografia. Agora, por mais absurdo que pareça, começa uma outra etapa também
difícil. Nessa época, já não estava mais na casa da família para onde vim, e sim na terceira
casa, mas não gostava de ter que viver dependendo deles para me manter na universidade
(mesmo sendo eles bem diferentes da primeira família e me incentivarem um pouco ao
estudo, não podiam me sustentar, praticamente, de graça para que eu estudasse, já que agora
quase não tinha mais tempo para ficar em casa e ajudar no trabalho doméstico), pois, para
cursar o curso, era bem mais custoso. Então precisava encontrar um emprego, foi quando fiz
seleção para estágio no Núcleo de Assuntos Estudantis da UFMA e consegui uma bolsa que
dava para manter os passes e as cópias dos textos.
Fiquei lá durante dois anos, o prazo máximo estabelecido e encontrei pessoas que
puderam me ajudar muitas vezes, pois elas sabiam das dificuldades financeiras que tinha
para me manter no curso, entre outras. O “mundo”, é na maior parte das vezes, cruel e para
poucos “bonzinho”; falo desse sistema que os homens estabeleceram para governar nossas
vidas e ações da forma que lhes convêm, nos dizendo que devemos aceitar o que nos é
imposto e não lutar para conseguir sair dessa imposição ridícula; não sei se me entendem,
mas falo do sistema econômico vigente, pois tudo é um processo: se temos escolas públicas
para todos, porém de péssima qualidade, conseqüentemente, a universidade pública é para
todos (contudo, para todos os que têm condição financeira para chegar até ela e se manter
lá), o que sabemos que são poucos.
Temos exemplos, na universidade, da não condição de acesso e permanência de alunos
oriundos de famílias pobres. Em primeiro lugar, o número de vagas oferecidas são poucas;
então, na maioria das vezes, quem entra na universidade são os filhos de pais com uma
condição financeira razoável. Quando os estudantes pobres conseguem ingressar, encontram,
de chofre, entre outras, a dificuldade de permanecer no curso; pois muitas vezes não têm como
se manter, e foi o que quase acontecia comigo se não tivesse conhecido alguém muito especial
e se não tivesse também conseguido o Programa Conexões de Saberes. Assim, posso dizer que
são pequenas ações, mas de grande valor que fazem a diferença na vida de muitas pessoas.
Digo isso porque, na minha vida, sempre foram oportunidades muito pequenas que tive, mas
que, somadas, tornaram-se uma OPORTUNIDADE.
Um dos meus desejos e anseios na vida é poder de alguma forma contribuir com
crianças e jovens que passam por situações semelhantes à minha (até mais difíceis) para que
um dia possam escrever suas caminhadas e perceberem que suas vidas tomaram um rumo
bom e esperançoso devido às pequenas oportunidades que se tornaram condição sine qua
non para a saída da caverna escura em busca da luz do sol. Enfim, hoje, eu sei que cada
momento bom ou ruim nos é dado para que possamos valorizar e aprender que o importante
é o agora, já que ele é o nosso presente e o futuro nele é construído.
90
Caminhadas de universitários de origem popular
Pão, educação e arte
Maria de Lourdes Andrade Pereira *
Quando a busca de um sonho vai dar em
um Rio - de Janeiro
que desemboca no Complexo maré de
realizações!
A saga de uma nordestina, Maria de
Lourdes
em busca de uma vaga na universidade
de sua identidade e felicidade.
Essa história que vou lhes contar, confunde-se com a história de qualquer mulher
nascida no Brasil, país onde a força da natureza esculpiu os montes verdejantes, as
montanhas, as praias de águas azuis esverdeadas, a fina areia branca, a terra roxa, barrenta
e vermelha como a pele dos homens ameríndios que por aqui os portugueses encontraram.
Nessa “pátria amada, explorada, idolatrada, salve-salve”, salvaram-se alguns milhões
de seus primeiros descendentes, entre eles uma gente de tez escura, que eram reis em sua
terra africana, aportando aqui em viagens dantescas, pilhados em navios por onde
provavelmente meus antepassados também vieram: eu sou mestiça, filha de um homem
branco e uma mulher negra, mas caracterizada como pele “parda”, mesmo com toda a
minha cara-pálida.
No resgate dessa história da qual hoje me orgulho de contar, sinto que é como se eu
falasse pelo coração e a memória dos sentimentos que muitas mulheres registraram e
sentem. Para algumas, talvez lhes faltem as palavras, porque a educação foi pouca; para
outras, talvez falte a poesia, e para outras tantas quem sabe, a coragem de poder dizer:
somos diferentes numa sociedade de desiguais, tidos como iguais. Uma parte desta história
de brancos e negros, se escreve e se prescreve, às vezes sem letras, às vezes sem o aval da
academia, por onde agora me insiro. Alfabetizada numa escola pública aos sete anos de
idade, sem antes haver freqüentado o jardim, minha vida escolar nunca foi um mar de
rosas, ou flores. E por falar em mar, do mar cabralino, do mar português de Pessoa, do mar
ludovicense que conheceu os homens e mulheres arrastadas por correntes, hoje, arrastamos
lembranças, e com nossa luta, a vontade de trazer igualdade, liberdade e cidadania, que
ainda não é fato.
*
Graduanda em Pedagogia na UFMA.
Universidade Federal do Maranhão
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Eu nasci e me criei no mar, contando conchas, caranguejos, testemunhando a expressão
maior da natureza e do amor divino por nós, pensando em minha origem. Um dia, esse mar
maranhense me levou ao mar carioca, mas pensava: onde terminam ou começam essas
águas? No mar português? No Atlântico? Nas águas nada pacíficas do Pacífico? Por que os
homens conseguem achar e por limites no mar e na vida dos homens e mulheres? Limites
estes que a língua e a fala sacramentam, aumentando as diferenças e desigualdades sociais.
Um dia eu sonhei tão alto, que só olhar o mar não bastava, precisava saber onde ele daria,
porque enchia, porque era verde, cantá-lo, comentá-lo, encantá-lo com as l e t r a s, que me
fariam navegar por ele e ir para onde eu sonhasse: era uma dádiva juntar as sílabas uma a uma
e perceber que depois elas tinham vida própria, que eu podia ser o que quisesse e desejasse. A
primeira palavra que aprendi a escrever foi “bola”, eu achava que era a palavra mais linda do
mundo, e me “embolei” no mundo, pois, lendo e sendo alfabetizada, descobri que o mundo
era redondo, que ele dá muitas voltas, e nessas voltas que a vida dá, estou virando o jogo das
condições parcas e difíceis de uma infância pobre, nascida em uma família que se desestruturou,
que da desunião de duas pessoas que povoaram o mundo com seis filhos e muitos sonhos,
surgiu uma Maria de Lourdes, nordestina, mestiça, que vos apresento.
No começo de minha vida familiar, não sentia as dificuldades, não tinha noção dos
problemas afetivos que envolviam meus pais: ignorava que meu pai se casara por pressão,
que ele era um homem “mulherengo” e que minha mãe corria o risco de ficar sem marido.
Nem sabia que ele só se casara com minha mãe por ela ser negra e sua mãe ter prometido aos
pais dela que ela não ficaria desonrada, o jovem branco não fugiria do seu compromisso
com a jovem negra, acho que minha avó quis ser “justa”, reparar erros ancestrais e cometeu
outros ainda maiores.
Quando eu contava oito anos de idade e me embrenhava pelo mundo das palavras,
fomos transferidos para Belém do Pará. Perdemos o ano escolar e fomos sustentados por
minha avó Maria de Lourdes que tem um papel fundamental nessa história. Éramos duas
famílias vivendo com uma pequena pensão (eu, meus cinco irmãos, meus dez tios por parte
de pai), meu tio Jomar; generosamente enviava pequenas remessas de dinheiro para sua
mãe, que sustentava todos: filhos e netos. Os heróis existem em todas as histórias, a minha
está cheia deles, pois sem minha avó e meu tio, eu teria perecido. Meu pai dizia estar
trabalhando em São Luís, para nos dar “uma vida melhor” e cinco anos se passaram.
Em Belém, eu não olhava o mar: era longe, distante, e quando o vi pela primeira vez,
achei estranho: suas águas eram doces! Em São Luís, jamais passamos fome, pois meu pai
tirava o sustento das águas que eram fartas de pescado e crustáceos. Conheci a cara da fome,
junto com a dor e a saudade de meus pais, acho que isso doía mais que a falta de comida.
Nessa época, sofri de desnutrição aguda, minha avó precisou tirar-me da escola, pois eu
desmaiava com freqüência, ela tinha receio de que eu viesse a morrer no caminho para a
escola (que fosse cair, bater com a cabeça). Eu ganhara um livro de minha professora e o lia
todos os dias, era a história de uma loba que alimentara um casal de gêmeos: Rômulo e
Remo, os fundadores da cidade de Roma, meu único elo com a educação enquanto sonhava
em voltar a estudar.
No nosso retorno à Ilha, meus pais estavam separados, ele havia constituído outra
família, estava desempregado, não tínhamos casa, morávamos em um barraco (feito de
papelão e palha), num bairro de classe média no centro da cidade, com dois cômodos e
cozinhávamos a lenha. Ele continuava fazendo suas incursões ao mar para pescar, contar
92
Caminhadas de universitários de origem popular
histórias, nos ensinar coisas da vida. Voltei à escola, mas as pressões para estudar à noite
eram muitas: eu sentia vontade de ajudar no meu sustento, no de meus irmãos menores (dos
quais eu tomava conta) e queria muito ajudar minha mãe que, sem instrução, estava em
situação pior que a nossa. Morávamos com nossa madrasta. Como minha mãe não tinha de
onde tirar nosso sustento, meu pai ficou com nossa guarda.
A literatura entrou na minha vida de vez, renovaram-se as esperanças, alguns
adolescentes recorrem às drogas quando querem fugir dos problemas, minha droga era os
livros! Eu lia, escrevia, sonhava, construía mil castelos: era fada, rainha, bruxa, princesa,
protagonista, antagonista, bedel e o juiz de meus personagens e sonhava que um dia queria
ser escritora. Estava apaixonada por um certo Carlos Drumond, Mário de Andrade, Luiz Vaz
de Camões, eu li Os Lusíadas aos quatorze anos e me apaixonei pelos cantos V e IX, O
Gigante Adamastor que fora transformado no temido “Cabo das tormentas” e o episódio da
“Ilha dos Amores” onde descobri como havia surgido um dos apelidos de São Luís de que
eu mais gosto. Ainda havia Eça de Queiroz e seu maravilhoso romance Os Maias; Érico
Veríssimo com sua doce Clarissa (acho que queria ser ela) e Ziraldo com a linda história: O
menino mais lindo do mundo.
Eu colecionava histórias, entrevistas sobre autores literários, além de gostar muito de
ler enciclopédias. No entanto, era considerada uma aluna “fraca”, meus cadernos eram
recheados de desenhos, poemas, meus e de meus escritores famosos. Tudo o que sou e tenho,
devo à minha paixão desvairada pela arte e pela literatura, pois, resgataram-me de um futuro
fadado à violência, abandono e/ou prostituição que me rondava.
Na fase adulta, tinha amigos universitários, mas a academia era um sonho inatingível:
eu mal havia completado o Ensino Fundamental, parei de estudar na 7a série para poder
trabalhar. Nas provas do supletivo, sempre ficava devendo as disciplinas Física e Matemática.
Não freqüentava as aulas, apenas estudava o conteúdo para realizar o “provão”. O fato é que
me inscrevi no vestibular de 1999 para a UFMA, sem haver concluído meus estudos, sem o
diploma de segundo grau; ninguém acreditava que eu iria conseguir, pois não fizera cursinho,
estudava sozinha na biblioteca e tinha uma estratégia: não podia zerar as matérias Física e
Matemática e me esmerava em fazer excelentes pontos em Português, História, Geografia,
aquelas que eu conseguira aprender apenas lendo sozinha e onde sempre me saíra bem.
Quando consegui a aprovação no vestibular de 1999 para Artes, com o jornal nas
mãos, onde se podia ler a minha aprovação, procurei a Secretaria de Educação do Maranhão,
implorando pela chance de tirar meu diploma (ainda não estava na época do “provão”).
Fora marcada uma “banca especial” para mim, com questões sorteadas referentes ao conteúdo
que correspondia às disciplinas: Física e Matemática do antigo 2º grau. Em nenhum momento
eu pensei que não conseguiria atingir os pontos necessários. Os conteúdos que não aprendera
em Matemática durante toda a minha vida, fora obrigada a aprender em 30 dias, tempo que
tive para estudar e realizar as provas para a banca especial. Hoje, faço o meu segundo curso
na UFMA, Pedagogia (com esforço já realizei inclusive uma pós-graduação).
Quando obtive a aprovação naquele ano, me debulhei em lágrimas de emoção e o “sal”
delas que me turvaram a vista, lembraram-me Pessoa no seu poema “Mar português”: “Ó Mar
salgado, quanto de teu sal, são lágrimas de Portugal?” E me questiono, quanto do sal do mar
de São Luís representa o sal e o choro dos excluídos, dos nossos antepassados trazidos à força,
quanto representa o sal dos milhares de jovens que não conseguem uma vaga na Universidade
Federal do Maranhão, ou do Rio de Janeiro, Bahia, Minas... quanto ainda precisamos chorar?
Universidade Federal do Maranhão
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Essa experiência de vitória ensinou-me algumas coisas: a primeira é que Lenin tinha
razão quando dizia: “sonhos existem, acredite neles”, a outra foi que não adianta ninguém
lhe falar que você pode, enquanto você não falar isso a si mesmo! Quando se quer muito
uma coisa, não existem obstáculos que o impeçam, você fica imbuído de uma força divina
maior que as dificuldades, você enxerga que consegue, pois sabe que é capaz!
Mas fico me questionando enquanto cidadã, enquanto estudante, enquanto profissional
da educação: quanto aos que ainda não são capazes de descobrir em si essa “força de
superação?” Será que todos nós precisamos amargar tanta negação e desaprovação, ou
lutarmos desesperadamente por algo que por direito nos pertence e a Constituição deveria
nos garantir?
Nessa história que ainda escrevo, que com a bênção da PROEX-UFMA eternizo, tenho
um sentimento de profundo amor e gratidão por meus pais, meus professores, meus amigos,
meus amados irmãos conexistas, minha cidade e meu bairro onde tenho um vínculo
umbilical, a Liberdade e sobretudo pelo mar de São Luís, que me levou ao mar do Rio de
Janeiro, ao Complexo Maré de realizações, onde pretendo ganhar o mundo que há muito
tempo me ganhou, me fez nascer, crescer e multiplicar.
“Quando o MAR e o CÉU se juntam, eles formam a palavra
MARCELO e juntos, o céu e o mar pelas mãos divinas, fez o
criador surgir o horizonte, pra onde a poesia e a poeta não se
cansam jamais de olhar”.
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Caminhadas de universitários de origem popular
História de uma vida de lutas
Maya Dayana Penha da Silva *
Sou Maya Dayana Penha da Silva, nascida de uma guerreira chamada Yone da
Cruz Penha, que se tornou a esperança, o objetivo e a inspiração da minha luta neste
mundo elitista.
Caríssimos leitores, escrever sobre minha história de vida foi uma tarefa muito difícil.
Confesso que fiquei com medo. Não de ter a minha vida retratada em algumas páginas, mas
de como começar a redigir. O que lembrar? Do nascimento? Dos traumas? Dos nomes dos
meus professores?... Entrei em desespero, pois nunca escrevi bem (sinceramente, sempre
fugia das aulas de português)! Então, para iniciar, tive o auxílio de minha mãe. E assim,
inicia-se o meu memorial.
Em 1976, na rua Riachuelo, bairro João Paulo, na cidade de São Luís do Maranhão,
Yone inicia sua profissão de ajudante de lavadeira, junto com seus três irmãos: Irlan,
Irlanda e Izaura. Ofício de sua mãe Yolanda (mãe solteira) que, mesmo com tanta
dificuldade, priorizava o estudo dos seus filhos. Assim, minha mãe levou a vida até
concluir o antigo colegial no colégio Luís Viana, onde conheceria o fiscal de ônibus
Raimundo Nonato da Silva.
No ano seguinte, agora no colégio Gonçalves Dias, no 1º ano do Curso Técnico de
Enfermagem, minha mãe começou a namorar Raimundo Nonato. Os encontros entre eles
eram possíveis devido ao curso de arte que era oferecido à noite aos alunos de baixa
renda. E em uma noite de pura arte, em 1981, provavelmente no mês de abril, EU fui
gerada. Após alguns meses, minha mãe abandonou o tão sonhado Curso de Enfermagem
devido à gravidez.
Geralmente, quando as famílias esperam a chegada de um bebê, há muita festa, mas
quando eu nasci, não foi um dia de alegria para os familiares, pois, além de não ser casada,
minha mãe teve complicações no parto: eclâmpsia.
Deste modo, no dia 25 de janeiro, em um final de tarde chuvoso, minha mãe dava
entrada na Maternidade Benedito Leite, na cidade de São Luis, e foi levada à sala de
operações, toda amarrada para não se machucar. Então, o desespero, a aflição e o medo
apoderaram-se da minha avó, pois, neste tipo de parto, a chance das duas vidas em jogo se
salvarem era mínima. E aí a tristeza dos meus familiares. Mas às 20 horas, EU nasci, com
algumas seqüelas que me acompanhariam para sempre.
*
Graduanda em Química na UFMA.
Universidade Federal do Maranhão
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Passados alguns dias, já estava na casa da minha avó, onde mamãe morava, bairro da
Alemanha. Foi uma surpresa enorme para os curiosos do bairro que, por muito tempo,
levaram a história do meu nascimento às rodinhas de conversas de rua como um milagre.
Quando completei dez meses, tivemos que mudar de casa, pois aquela em que morávamos
era alugada, e a dona a pediu de volta, para alugá-la por um preço melhor. Mudamos para a
casa de minha bisavó Maria José, no antigo endereço da minha avó Yolanda, no bairro do
João Paulo. Nesta, foi cedido um quarto improvisado no fundo do quintal, no qual moravam
nove pessoas: meu avô José, minha avó Yolanda, tio Irlan, tia Irlanda e meus três primos:
André, Mayra e Andréa, eu e minha mãe.
Moramos treze meses neste quarto. Durante este período, tive pneumonia devido ao
fraco organismo (conseqüência do parto). Fui internada no hospital Santa Casa, no centro
da cidade de São Luís, no qual fiz uma cirurgia toráxica. Lá, quase passei meu primeiro
aninho de vida. Entretanto, depois desta vitória, meu pai, que financeiramente ajudava na
minha despesa, desapareceu completamente. Por esta razão, minha mãe herdou o ofício de
sua genitora.
Ano de 1985. Vitória de um sonho, meus avós José e Euzamar compraram uma casa.
Naquele momento “nossa”, localizada no bairro Matadouro, atualmente Liberdade, onde
moro até hoje. E foi neste ano que iniciei minha vida escolar. Com quatro anos, comecei a
freqüentar a escolinha Jardim de Infância Pato Donald, onde vivi tempos inesquecíveis
com minhas tias Darlene e Sônia. Neste mesmo período, mamãe se casou com Welberson
Nascimento. Deste relacionamento nasceram as minhas três irmãs: Soraya, Sâmara e Mayara.
No ano de 1989, iniciei o antigo ensino primário na Escola Comunitária Evandro
Ferreira de Araújo Costa, no mesmo bairro. Nesta, fiz a 1a e 2a séries. Continuei o primário no
Colégio Luis Viana.
Ao terminar o antigo primário, duas tragédias me abalaram, ou seja, dois
falecimentos. O primeiro da minha irmã Sâmara, que estava internada no hospital Djalma
Marques- Socorrão I. E, em menos de um ano, seria Mayara (a caçula), que faleceu por
negligencia médica. Este é um fato que até hoje ocorre nos hospitais públicos, onde
muitas vezes, ou quase sempre, nós, seres humanos, principalmente os pobres, somos
tratados piores que animais irracionais: sem valor, sem carinho, simplesmente um nada.
Mesmo tendo direitos constitucionais que nos amparam.
Minha mãe sofreu muito com as perdas, e a dor dela fazia tristeza em meu coração,
pois não podia ajudar a minha guerreira. Mas ainda assim, superamos esta batalha.
Continuei no Colégio Luis Viana, agora na 5a série, e com mais alguns dilemas cresci.
No ônibus não podia entrar pela porta dianteira, tinha que pagar passagem. Fiquei triste, a
escola era distante, teria que acordar cedo, e caminhar um longo percurso, para não chegar
atrasada.
Acordei cedo, e no caminho, tive uma idéia. Vou passar por baixo da catraca. E foi
assim até o início da 6ª série. Quando, em um certo dia, ao tentar passar, uma cobradora
meteu o pé que quase pegou no meu rosto. Passei, mas o ônibus parou e ela gritou em alto
tom: - Desce, você já deve pagar passagem! Desci e esperei o outro ônibus para iniciar a
carreira de “bico”; deste modo terminei a 6ª série, com bastante esforço.
Nas séries restantes, minha mãe transferiu-me para o turno vespertino. Continuei como
“biqueira” até quando fui forçada a aposentar-me, pois um motorista já me conhecia, e certa
vez, quando ia dar o bico, ele acelerou... caí e machuquei a testa, os joelhos. Lentamente
96
Caminhadas de universitários de origem popular
levantei-me, a parada estava lotada. Lembro-me de que algumas pessoas olhavam-me com
pena, outras zombavam, e o que mais me entristeceu é que algumas me olhavam como uma
delinqüente. Assim, optei por fazer caminhadas até a escola. Com a proteção de Deus,
terminei o colegial. Fiz o processo seletivo para estudar no colégio Liceu Maranhense que,
além de ser um dos melhores colégios públicos, não tinha taxa de inscrição. Diferente do
sonhado colégio federal, o CEFET, que exigia o pagamento de uma taxa a pagar. Por isso
adiei o sonho de um curso técnico.
No ano de 1996, fui aprovada para estudar no Liceu, e no ano seguinte, tive uma
surpresa: no dia 10 de janeiro, quando Raimundo Nonato, meu pai, veio passar as férias em
São Luís com sua nova família, trouxe meu irmão que se chama Marcelo para me conhecer.
Depois, retornaram a Paraupebas, no Estado do Pará, e nunca mais os vi.
Quando começaram as aulas no Liceu, observei que tinha dificuldade para copiar as
anotações do quadro. Comuniquei isso a minha mãe. Consultei-me com o Dr. Clodomir e
com vários outros médicos no hospital Pan-Diamante que atestaram que eu estava com
atrofia do nervo óptico direito. O veredito da família foi a não aceitação. Mas com a graça
de Deus, a outra visão suprimiu a falta.
No ano seguinte, tive um grande abalo emocional: a minha avó Yolanda tinha falecido.
Recordo-me, era 29 de maio de 1998. Vovó chorava muito, parecia que estava se despedindo,
não quis comer, e o pior: não quis tomar “Jesus”, seu refrigerante preferido. Só abraçava os
netos e chorava, e às 17 horas e 30 minutos, coincidentemente, no final de tarde chuvosa,
ela faleceu. Neste infortúnio, senti uma solidão enorme, pois era minha avó que escutava
meus lamentos.
Contudo, o doce companheirismo das amizades, dos quais destaco Joyce, Valdira; a
turma dos “sem passagem”: Jenilde, Cristiane, Célia e Mara Janaina, que mais tarde
apresentou-me a Camila. Assim, com muita luta, terminei o Ensino Médio. Lembro que,
apesar de todos os períodos difíceis, nunca desisti. Nem mesmo as chuvas, cadernos molhados
etc. Mas terminei.
No mesmo ano, prestei vestibular para a UEMA para o curso de Química e não passei.
Resolvi procurar um emprego, porque meus familiares viviam comentando que eu vivia só
estudando e não arrumava um serviço. Fui à batalha, mas não consegui nada, pois não tinha
uma formação além do Ensino Médio.
Consegui, através da minha tia Raimunda, um curso de garçonete, com o qual tive a
minha primeira experiência profissional no Hotel Vila Rica. Mas novamente entrava no mundo
dos desempregados. Parti mais uma vez para a luta: fui ser vendedora de planos de saúde
odontológicos, ganhando por comissão. Como não tive sucesso com as vendas, retornei aos
estudos. Fiz outro processo seletivo para o Ensino Médio . Passei e iniciei o estudo no Complexo
Educacional Governador Edson Lobão - CEGEL onde deparei com o novo sistema de ensino
implantado pela governadora Roseana Sarney: o Tele-ensino, que consistia em aula transmitida
pela televisão, com o auxílio de um monitor. Este sistema, não teve muito êxito. Muitos
diziam que era por falta de informação dos monitores; outros, afirmavam que o governo
implantou o sistema para ganhar a eleição. No entanto, mais uma vez Deus foi misericordioso
comigo. O meu monitor era professor de Química, que se chamava Juliano. A matéria que
amava. Incentivada pelo professor, tentei o vestibular para o curso de Química da UFMA. Fui
aprovada na primeira fase, mas não passei na segunda... tive incentivos dos amigos e dos
professores para continuar. Já na família, só minha mãe me incentivava.
Universidade Federal do Maranhão
97
Em 2002, iniciei as aulas no CEGEL, retornando à luta, agora com apoio. Entrei em
um cursinho da Cidadania, ministrado por ex-alunos universitários e outros que, mesmo
ainda não estando na universidade, tinham o desejo de ajudar outras pessoas como eu a
realizar seus sonhos. Fiz um ano de cursinho, mas não prestei vestibular, pois ainda sentiame despreparada para a guerra.
Tentei, então, o curso técnico no colégio universitário - “COLUN”, no bairro da Vila
Palmeira. Passei para o curso de administração. Alegre, mas em alguns instantes angustieime por não poder cursar. Tinha que pagar uma taxa de R$ 50,00 na matrícula (taxa única).
Retornei aos estudos indo todas as manhãs para o cursinho do CEGEL, onde obtive o
dinheiro para a matrícula do COLUN, graças ao coordenador Renato Melo. Contudo, tive
que abandonar o cursinho em função do curso de administração.
Mesmo afastada do cursinho, continuei a estudar para o vestibular com alguns
amigos que continuaram a freqüentá-lo. Nossos estudos eram sempre auxiliados pelo
Edilson, um amigo que cursava Matemática na UFMA; estudávamos em uma casa em
construção. Éramos: Aldagisa, Luis Carlos, Thaina, Milca, Luis Fernando e outro a quem
peço desculpas pelo esquecimento. Tentei novamente o vestibular para o curso de Química
Licenciatura e Bacharelado. Passei na primeira etapa. Mas na segunda etapa, novamente
não passei. Mesmo assim, fiquei alegre porque meu amigo Luis Fernando havia passado
para o curso de Matemática.
Pela milésima vez, iniciou-se a minha jornada de estudo. Agora, um pouco mais
atarefada, tinha começado o meu estágio no Hospital Dutra, do curso de administração, e à
tarde tinha aula no COLUN. Mas encontrei um tempinho para continuar os estudos para o
vestibular; arrumei um novo grupo composto pelos meus amigos da igreja. Alguns do
grupo do qual participava: o grupo de oração Divino Espírito Santo, da renovação carismática
católica. Este grupo, tinha um nome popular: F.O. (farofa de ovo). Os farofeiros eram: Ingrid,
José William (Zeca), Rita, Jailson, Sharlene, Thaina - mentora do nome do grupo, e Fernando
que ajudava ministrando as aulas de Matemática.
A felicidade reinou neste grupo, pois orávamos e estudávamos. E todos ajudavam-se:
quem sabia português, ministrava essa disciplina e assim sucessivamente. Neste período,
havia conhecido Jadeylson Ferreira, que se tornaria meu namorado, e que me incentivou a
continuar os estudos.
Quatro de julho de 2004: fui chamada como excedente para a UFMA.
Iniciei as aulas na Universidade Federal do Maranhão. Creio que cheguei à UFMA
pela misericórdia de Deus. Mas apareceram as primeiras provações: falta de dinheiro para
transporte, cópias, professores “imcompreensivos”. Então, senti que a universidade não era
universal com direitos iguais, e sim, uma balança de desigualdades. A ajuda veio da minha
tia Sônia que custeou as minhas despesas. Ops... não pense que esqueci da ajuda do cursinho
da cidadania do CEGEL. Por isso, retornei a ele como monitora voluntária de Química.
Não demorou muito. Lá estava em apuros... havia esquecido dois livros de Química na
Biblioteca Central da UFMA. Desespero e aflição. Como pagar?... Decidi então trancar o
curso, pelo menos um turno. Informei na Coordenação do Curso.
Esperei o período acabar. Já estava tudo certo, havia recebido duas propostas de emprego
integral: uma no Hospital Dutra, como auxiliar de administração e outra na loja Ponte Magazine
como vendedora. Então, no penúltimo dia de seleção do Programa Conexões de Saberes, a minha
coordenadora, professora Gilza, me informou sobre a seleção. E, no último dia, fiz a inscrição.
98
Caminhadas de universitários de origem popular
Hoje, faço parte do Programa Conexões de Saberes, que me ajudou a permanecer no meu
curso.
E não poderia terminar sem agradecer a Deus por sempre proteger-me. À minha mãe
por acreditar na minha capacidade. E a todos os amigos e familiares, membros da igreja que
oravam por mim. E assim, continuarei até alcançar todos os meus objetivos.
“Mas, em todas essas coisas somos mais do que
vencedores por meio daquele que nos ama.”
Romanos 8:37
Universidade Federal do Maranhão
99
Diário de superação
Paulo Leles Neto *
“Descontente dos doutores e dos livros,
resolvi procurar a verdade em mim próprio
e no grande livro do mundo.”
René - DESCARTES
A história da minha vida, daria não simplesmente para escrever uma parte desse livro,
mas todo ele. A princípio pode parecer exagero, mas assim que terminá-lo, vocês verão que
não menti.
Origem
Nasci num povoado do Município de Timbiras, no Estado do Maranhão, que tinha
por nome Flores dos Leles. E, se você, pensou que esse povoado era de minha família,
acertou. No entanto, não pude aproveitar a vida na zona rural, pois, dois anos após meu
nascimento, meus pais resolveram se mudar para uma cidade próxima chamada Codó, a
vinte cinco quilômetros de minha cidade natal.
Minha querida mãe, Maria Eunice Mesquita Leal, e meu pai José Raimundo Curcino,
ambos naturais de Timbiras, tiveram que amargar uma infância sem oportunidades para
estudar, brincar etc. Minha mãe, que ficou órfã de mãe aos seis anos de idade, teve que
amadurecer mais cedo. Daí em diante ela teve por vários motivos que sofrer a realidade de
não poder estudar, como era seu desejo. Nem mesmo ingressou na primeira série do Ensino
Fundamental. Meu pai foi pouquinho menos infeliz, visto que conseguiu ingressar e cursar
até a segunda série do Ensino Fundamental.
Enfim, meu pai, bem como minha mãe, tiveram dois casamentos. Meu pai teve um filho,
Sebastião, com sua esposa, enquanto minha mãe teve três filhos com seu primeiro marido:
Edílson, Edivan e Emilton. Da união deles, resultaram cinco irmãos: José Raimundo Filho,
Auricina, Francisco, Eu e Euricilene. Destes filhos, somente eu ainda não constituí família.
Infância e escola primária
Chegando a Codó, no ano de 1988, comecei uma história quase inacreditável de vida,
de menino pobre, negro, sem perspectiva, pois possivelmente seria apenas mais um excluído,
mas que almejava um futuro que para muitos estaria quase que fora do alcance. Dentro desse
*
Graduando em Matemática na UFMA.
100
Caminhadas de universitários de origem popular
momento quero destacar o meu primeiro professor, que tinha por nome Paulo Leles, meu
avô materno. Ele me ensinou a importância de buscar no conhecimento científico uma das
oportunidades que a vida oferece, a ascensão social, um dos mitos do Capitalismo. Sabendo
hoje desse mito, busco fazer com que a ascensão social se torne realidade, juntamente com
um conjunto significativo de pessoas, que ainda não é o bastante, mas que deu início a essa
luta com muita vontade e segurança de que vamos conseguir.
Meu avô representa para mim o marco inicial de uma trajetória quase perfeita. Quase
perfeita porque, logo no meu primeiro dia de aula, tive que amargar a decepção de não ter
sequer um lápis para levar para a escola, que se chamava Unidade Escolar Irmã Flávia, atual
Unidade Escolar João Temístocles, distante uns cento e cinqüenta metros de casa.
Por conta da decepção e do fato de não entender a realidade que me cercava, chorei
muito. Tanto que minha mãe quis me forçar a ir, também por não entender naquele momento
o que eu estava sentindo, ou por conhecer a realidade tão bem que, ao invés de me explicar,
resolveu me obrigar.
Neste momento, um colega da mesma escola viu o que se passava e resolveu me
presentear com um lápis. Resolvi não aceitar, pois, por incrível que pareça, naquele
momento, entendi o que se passava e sabia que deixaria minha mãe muito triste se aceitasse.
Desse dia em diante, fazia tudo o que uma criança tinha direito, mas passei a cumprir com
meu dever de maneira dobrada. Sempre estudando muito. Minha 1a série marcou tanto
que até hoje me lembro de quase toda a turma. Ali vivi um ótimo momento da minha
infância. Além disso, concluí essa série em apenas um semestre, resultado dos ensinamentos
do meu avô.
Ao concluir a 4a série do antigo ensino primário, não sabia se sorria ou se chorava,
visto que as amizades que eram tão importantes, iam não se desfazer, mas enfraquecer.
Enfim, tivemos uma festa organizada pela professora Marlene, de Matemática, juntamente
com as demais professoras da escola. Além disso, aos onzes anos de idade, tinha uma nova
preocupação: encontrar vaga em uma das duas melhores escolas de minha querida Codó.
Tarefa um pouco difícil. Vou explicar. É que, aos onzes anos, tive que correr atrás desta vaga,
pois minha mãe e meu pai, apesar de todo o incentivo que me davam, estavam sempre
procurando trabalho para conseguir nos dar o “pão de cada dia”. Meio que com medo da
vida, saí e consegui uma vaga para estudar no Centro Educacional Municipal Senador
Archer, a segunda melhor escola da cidade. Após a matrícula, qualquer ser humano poderia
ver no meu rosto a criança mais feliz do mundo.
Meu Ensino Fundamental
Aqui, no primeiro dia de aula, tive que encarar um diretor linha-dura, que não permitia
a entrada de alunos na escola sem calças compridas, tênis e blusa de farda. No entanto, este
diretor, permitiu que eu entrasse de bermuda somente no primeiro dia. Depois desse triste
fato, pude desfrutar da segunda melhor escola do meu município. Fiz novas amizades.
Mais tarde, conheci o meu melhor amigo, Raimundo Saudades - rapaz muito
inteligente, dedicado aos estudos, alguém que sempre estava buscando aprender e aperfeiçoar
seus conhecimentos. Além dele, conheci outros não menos inteligentes, mas que omitirei.
Aqui, apesar de todas as dificuldades enfrentadas por mim e minha família, vivi o melhor
período de toda a minha vida. Aqui também, conheci professores, ou melhor, amigos para a
vida toda.
Universidade Federal do Maranhão
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Meu Ensino Médio
Período de superação. Aqui senti na pele, ou melhor, no estômago, a sensação de ter que ir
ao colégio sem sequer tomar café da manhã. Fato tão criticado no seriado “Chaves”, exibido no
SBT. Sempre, às nove da manhã, não conseguia estudar, ou melhor, prestar atenção nas aulas por
conta da fome que sentia. Tantas vezes não tomei café que, certo dia, por não agüentar de fome,
deixei a escola antes do último horário, logo no primeiro ano do Ensino Médio.
Aqui também, conheci muita gente. No Centro de Ensino Médio Luzenir Matta Roma,
minha escola de Ensino Médio, o meu dia começou a ficar mais corrido, pois ia para a escola
pela manhã, para a biblioteca pela tarde, já visando o vestibular. Foi aí que, por volta de
julho de 2001, mês do meu aniversário, o amigo Aslan Natécio, no último dia de pedido
para isenção para o Programa de Seleção Gradual (PSG), da Universidade Federal do
Maranhão, convidou a mim e a alguns amigos para que fizéssemos o pedido de isenção para
que pudéssemos participar. Somente eu e três amigos conseguimos a tão sonhada isenção.
Desse fato, já se pode perceber que o vestibular é um processo de exclusão, e não de
“seleção”, como querem transparecer as universidades.
Chegado o dia da prova (nós, como bons calouros, chegamos consideravelmente
adiantados), estávamos muito nervosos e ansiosos por começar. Enfim, nossas provas não
foram tão boas, mas para os calouros que éramos, estávamos felizes com o resultado.
Após aprovação no primeiro ano do Ensino Médio, ficou no ar a ânsia de saber com
quem iríamos estudar no ano seguinte. Contudo, para nossa surpresa, nada mudou, continuamos
estudando com os mesmos amigos do ano anterior, exceto com os que ficaram reprovados.
Por volta de julho de 2002, pedimos novamente isenção para que assim pudéssemos
fazer a segunda etapa do PSG. Ao saber do resultado, a decepção tomou conta de nossa face,
pois nenhum de nós ficou isento.
Aí surgiu outra questão: E agora, como e o que fazer? Visto que não tínhamos dinheiro
para pagar nossas inscrições. Foi aí que alguns começaram a ficar pelo caminho. Neste momento,
pensei em desistir, pois não encontrava saída, ou melhor, dinheiro para pagar a inscrição, que
até então custava R$ 30,00. Foi aí que falei com mamãe no antepenúltimo dia de inscrição,
que me deu a brilhante idéia de falar com minha irmã, Auricina, e ver se ela poderia me mandar
R$ 30,00 para eu fazer minha inscrição. Por sorte, ela tinha o dinheiro. Expliquei-lhe a
situação e ela se prontificou a me ajudar. Penúltimo dia, lá fui, fazer minha inscrição.
Infelizmente, nenhum dos meus amigos conseguiu o dinheiro para fazer a inscrição.
Ao final, acreditei que fiz boa prova.
No terceiro ano, a história com relação ao PSG da segunda etapa se repetiu e eu não
tinha dinheiro para pagar a inscrição. Só que, já prevendo o acontecimento, pedi o dinheiro
com certo tempo de antecipação a minha irmã. Ela tinha aproximadamente R$ 70,00, dos
quais me mandou sessenta, valor cobrado no momento da inscrição para a terceira etapa do
PSG. Com isso, ficou também inviável fazer o vestibular tradicional paralelo ao processo
citado, pois não tinha dinheiro, nem a quem pedir, para fazer outra inscrição do mesmo
valor. Como não tinha outra solução, fiz somente o PSG e aguardei o resultado.
Resultado e ingresso na Faculdade
Após o resultado no PSG: algo quase inacreditável. Depois de quinze dias após a
realização da prova do Programa de Seleção Gradual, da Universidade Federal do Maranhão,
procurei o Campus VII, na minha cidade, e não obtive o resultado da prova. Como não tinha
102
Caminhadas de universitários de origem popular
conhecimento do que era o vestibular e da importância de um curso superior na vida de um
ser humano, não procurei mais saber do resultado, até mesmo porque pensei não ter sido
aprovado. No dia 13 de março de 2004, recebi um telegrama da Universidade Federal do
Maranhão convidando-me para sua recepção de calouros que aconteceria dia 19 do mesmo
mês. Neste momento, surgiu novamente a dúvida se eu tinha sido aprovado ou não.
Foi aí que resolvi ir até o Campus VII para saber de fato o que tinha acontecido para eu
ter recebido aquele convite. O rapaz do Campus informou-me que eu tinha sido aprovado para
cursar Matemática na Universidade Federal. Procurei minha mãe e meus amigos para contar
que eu tinha sido aprovado na UFMA. À noite, dirigi-me até o Centro de Capacitação
Tecnológica do Maranhão (CETECMA), de Codó, para estudar Química. Falei o que tinha
acontecido para minha professora, hoje minha amiga Ivanize. Em seguida, verificamos qual a
minha classificação no processo seletivo. Fui o décimo quarto colocado no processo. Logo
depois, ela perguntou-me se já havia feito minha matrícula, pois tinha sido aprovado para o
primeiro semestre de 2004. Falei que não. Ela se surpreendeu, pois desse modo eu havia
perdido o dia da matrícula. Ali, naquele momento, entendi que tinha vivido um paradoxo
entre o dia mais feliz e o dia mais triste de minha vida. Quase chorando, fui para casa contar
para meus pais o acontecido. Eles ficaram muito tristes, pois sabiam do meu esforço.
Ivanize me aconselhou a vir até São Luís, à Universidade Federal do Maranhão, tentar,
pelo menos, obter novamente a vaga para o segundo semestre, visto que eu tinha sido
aprovado para o primeiro semestre. Resolvi seguir seu conselho e saí de casa, pela primeira
vez, em busca do meu futuro. Cheguei à UFMA por volta das dez horas da manhã do dia 16
de março de 2004. Neste dia, estavam matriculando os excedentes. Dirigi-me até uma das
pessoas encarregadas de matricular os calouros e expliquei-lhe o que havia acontecido.
Consegui minha vaga, pois a senhora responsável falou-me que o pessoal excedente de
Matemática não tinha comparecido para se matricular.
Feita a matrícula, liguei para uma amiga de Ivanize para que ela pudesse me buscar na
Universidade. Depois de almoçar com ela, tive que procurar as casas de estudantes que
existem em São Luís para que futuramente pudesse morar em uma delas. Consegui encontrar
a Casa do Estudante Universitário do Maranhão (CEUMA), onde me hospedei por dois dias
antes de voltar para minha cidade. Quando retornei a São Luís para estudar, já sabia pelo
menos onde ficar. Consegui uma bolsa-trabalho fornecida pela Universidade onde eu prestava
vinte horas semanais de trabalho: atendimento ao público etc. Com isso, pude prosseguir o
curso e hoje estou cursando o sexto período de Matemática. Vou concluí-lo ano que vem.
Sei que vou ter novo desafio pela frente, mas estou conseguindo realizar um dos meus
maiores sonhos.
Esta é minha impressionante história de vida.
Universidade Federal do Maranhão
103
Até a última gota
Raquel Moreira Meireles Silva *
A história de minha vida começa com a história de meu pai. Nasci em São Paulo,
cidade fria e triste. Conceituo assim a cidade onde nasci e vivi os meus primeiros dezoitos
anos, porque foram muitas as dificuldades pelas quais passamos até chegar ao lugar onde
estou hoje, a universidade. Meu pai deixou, há alguns anos, o Maranhão para buscar
melhorias de vida na “cidade prometida” - São Paulo. Porém, as experiências foram lhe
tolhendo os sonhos.
Quando chegou à cidade, com dezoito anos, logo teve que trabalhar, pois mal tinha
dinheiro para comer e ninguém podia ajudá-lo. Seu pai havia fugido, abandonado a família.
Minha avó, costureira, não tinha como enviar dinheiro para ele em São Paulo. Foi meu pai
que sempre trabalhou, desde criança, vendendo calções nas ruas de São Luís para ajudar na
renda da casa. Agora, sozinho, não contava com ninguém.
Trabalhando de vigia em um edifício da grande São Paulo, conheceu minha mãe, mais
velha do que ele cerca de vinte anos. Após um ano casados, tiveram meu irmão José Ribamar,
cujo nome é em homenagem ao pai. Dois anos após o seu nascimento, eu nasci.
Morávamos num apertado quarto de Santo Amaro, onde vivíamos em meio ao
cheiro de cebola advindo dos sacos que levavam para vender na feira. Sempre vi meu
pai disposto ao trabalho. Mesmo não tendo lembranças da minha mãe, a história contada
sobre a sua vida, neste período em que conheceu e se casou com meu pai, mostra que,
também, era uma mulher esforçada. Além das vendas na feira, trabalhou em casas de
família como doméstica.
Um ano após o meu nascimento, minha mãe, que sofria da doença de Chagas e nunca
havia feito um tratamento, teve o seu quadro doentio agravado. Por isso ela precisou deixar
a casa, onde prestara seus serviços e encontrar alguém que a substituísse.
Em dezembro de 1982, meu pai e minha mãe vieram a São Luís e aqui conheceram
uma jovem chamada Maria Garcês, que, em parceria com minha avó, ensinava Lições
Bíblicas para crianças das comunidades da periferia de São Luís, através da entidade
evangélica APEC (Aliança pró-evangelização das crianças). Garcês trabalhava de doméstica
em casas de família para se sustentar.
Poucos dias antes da chegada de meus pais a São Luís, ela pediu demissão da última
casa na qual prestou seus serviços. Sabendo da procura de minha mãe e da situação de
desemprego de Garcês, minha avó sugeriu aos meus pais o nome da amiga.
*
Graduanda em Pedagogia na UFMA.
104
Caminhadas de universitários de origem popular
Encontrada a pessoa que ocuparia o cargo de doméstica na casa de onde minha mãe
demitiu-se, em janeiro de 1983, estávamos de volta a São Paulo. Porém, Garcês não pôde
assumir o trabalho na casa onde os antigos patrões de minha mãe a esperavam, pois o estado
de saúde de minha mãe se agravou, impossibilitando-a de realizar tarefas, por isso, Garcês
ficou cuidando de nós, enquanto meu pai trabalhava: pela manhã na feira e à tarde na falida
CMTC (Companhia de Transporte Coletivo), onde era cobrador.
Meu pai chegava somente de madrugada. Mesmo cansado, por várias vezes precisou
carregar minha mãe, com fortes dores no corpo, até o hospital. Como se sabe, a realidade dos
serviços públicos de saúde no Brasil nunca foi humano, nunca valorizou o pobre como um
ser digno de direitos. Consta até na Constituição que temos o direito à saúde, vida, moradia
etc., mas estes direitos nos são negados quando precisamos ser atendidos por tais serviços
que pagamos por meio dos impostos. Com minha mãe não foi diferente, no hospital recebia
apenas um analgésico e era liberada para casa, sem passar por uma avaliação mais cuidadosa
dos médicos.
A última crise pela qual minha mãe passou, é relatada por Garcês: por um beco entre
casas paupérrimas, meu pai subiu as escadas - se é que se podem chamar aquelas tábuas
sobrepostas de maneira desordenada de escada -, carregando consigo minha mãe que sofria
fortes dores.
Internada, minha mãe chamou Garcês e pediu duas coisas: que não deixasse meu pai judiar
de meu irmão que era muito travesso e que nos levasse até a janela do quarto onde estava para,
ao menos, poder se despedir de nós, pois crianças não podiam entrar no hospital. Garcês atendeu
ao pedido. Da janela do quarto minha mãe se despediu de nós. Fico hoje imaginando o que
deveria ter passado em seu pensamento: sabendo que a morte estava próxima e não havendo
mais nada a ser feito, deixava duas crianças no mundo. Quantos sonhos ela deveria ter tido, para
nós, quantas expectativas… apenas naquele instante, contudo, eu não tinha consciência do que
estava acontecendo, pois era uma criança de dois anos de idade e não podia entender a dor de
uma mãe que se vai, sem poder mais sonhar com o futuro de seus filhos.
No dia seguinte, quando meu pai chegou ao hospital, recebeu a notícia. Minha mãe
havia falecido. Era 31 de julho de 1983, quatro dias após o aniversário de meu irmão. Não
me lembro do fato, mas choro a perda de quem eu nunca pude conhecer para amar.
Passados onze meses da morte de minha mãe, Garcês e meu pai se casaram. Não
acredito ter sido um casamento movido pelo amor, mas pela situação em que ambos se
encontravam. Meu pai, sozinho, a cuidar de duas crianças ainda pequenas, e Garcês também,
sozinha, sem parentes para lhe dar ajuda. Ou talvez ela tivesse aceitado o compromisso de
se casar porque se comoveu com o apelo de minha mãe momentos antes de morrer.
Enquanto meu pai e Garcês organizavam suas vidas, eu e meu irmão passamos uns
meses na casa de minha avó em São Luís. Em julho de 1984, voltamos para São Paulo.
Mudamos de Santo Amaro para Barueri, cidade da Zona Norte.
Em Barueri, minhas primeiras lembranças são da Pré-Escola onde comecei aos quatro
anos. Era quase uma hora de caminhada até a escola. Quando tinha bicicleta, meu pai me
levava. Lembro que sempre tive medo de mudanças. Sentia-me insegura, e quando chegava
à escola, não queria entrar na sala de aula, principalmente, se a aula já houvesse começado.
O uniforme da escola obtive no último período, o jardim três, pois, como nossa renda era
mínima, eu era a única criança que não tinha o uniforme da turma. Nas fotos dessa época, eu
apareço sempre de azul em meio às outras crianças de vermelho.
Universidade Federal do Maranhão
105
Com sete anos comecei a estudar numa escola perto de casa onde meu irmão já fazia a
3a série. Nossa vida em Barueri era muito pacata. Como não tínhamos parentes perto, nem
amigos, vivia para os estudos e para a igreja que freqüentávamos aos domingos. Por volta
dos dez anos, comecei a freqüentar a única biblioteca da cidade. Andava uma hora para
buscar livros da Série “Vaga-lume”. As leituras me fascinavam, me levavam a lugares nunca
antes visitados. De todas as obras que li, não me lembro bem de seus enredos, mas uma
marcou a minha vida: Vidas Secas, de Graciliano Ramos. Este autor me fez ver as injustiças
sociais e o porquê de talvez a vida do pobre ser tão seca, às vezes até de sentimentos, pois
é difícil sorrir quando a barriga clama por um pedaço de pão. Quando olhava meu pai
lutando tanto para ter uma vida melhor e nunca desistir da educação de seus filhos,
relacionava a história a nossa vida.
Na escola não podíamos faltar. Nossa segunda mãe nos acompanhava nos estudos, ia
às reuniões, assinava os boletins, e se alguma coisa não ia bem, ela dizia para meu pai que
logo tomava as providências de nos aconselhar a buscar sempre o melhor.
Recordo-me de quando meu pai saiu, após doze anos de prestação de serviço, da
CMTC. Com o dinheiro que recebeu, tentou montar uma oficina de móveis que não
prosperou. Perdeu todo o dinheiro. Uma Variant velha que havia comprado pegou fogo.
Tudo perdido. Diante desta nova situação, passamos por dificuldades financeiras. Era o
início do ano, não tínhamos condições de comprar material escolar. Lembro que fiz um
bilhete pedindo a meu pai que comprasse um caderno de dez matérias para eu levar no
primeiro dia de aula. Ele não respondeu ao meu pedido, pois não queria dar explicações
sobre a situação de crise pela qual passávamos. Minha madrasta foi quem conversou conosco
e aconselhou que não pedíssemos nada a meu pai naquele momento, pois ele não teria
condições de nos atender. Então, fui à oficina onde restavam somente as máquinas sem
utilidade, naquele período, e algumas coisas velhas. Busquei, entre os cadernos velhos,
algumas folhas que sobraram do ano anterior. Colei as folhas e fui para a escola, não deixaria
de estudar nunca. Lembro-me bem da chinela, que em São Paulo é conhecida por Havaiana,
metonímia da marca. Este foi o meu calçado; as folhas coladas, o meu caderno.
Porém, aqui, louvo a atitude de um professor de Geografia que não ficava culpando o
governo ou qualquer outra instância para mostrar que possuía alguma consciência crítica
sobre a situação de desigualdade neste país. Era a segunda semana de aula, quando ele
pediu aos alunos os exercícios dos livros para corrigi-los. Convém ressaltar que estes livros
eram emprestados da Secretaria de Educação aos alunos. Entreguei os exercícios respondidos
nas folhas coladas. Ele não teve a atitude paternalista de perguntar se passava por alguma
necessidade financeira, até porque, era visível a situação. Não precisava de nenhuma palavra
“política” vazia de significado para minha vida, e sim, de cadernos, e foi isso que ele
proveu. Com muita discrição, foi à secretaria da escola, pegou três cadernos de brochura,
e na hora em que todos os alunos já haviam saído para o intervalo, ele entregou-os a mim.
Fiquei muito feliz por receber aqueles bens tão preciosos, cadernos, onde eu escreveria
minhas tarefas e aprenderia lições que foram além das letras que estavam na atitude
humana daquele professor.
Passado um ano após a saída da CMTC, meu pai conseguiu emprego na loja “Móveis
Taurus”, hoje falida. A situação financeira foi melhorando. Já estávamos na metade do ano
letivo, mesmo assim, ele comprou cadernos para mim e meu irmão. Nesse trabalho, meu pai
andava a pé mais de três horas para chegar às casas onde deveria montar os móveis, pois,
106
Caminhadas de universitários de origem popular
recebendo por comissão, o dinheiro ainda não era o suficiente para atender todas as nossas
necessidades. Meu irmão mais velho, quando entrou para o antigo primeiro ano do segundo
grau, passou a estudar à noite, e assim, durante o dia, ajudava meu pai nas montagens.
Juntos, conseguiram fazer um número considerável de montagens e puderam comprar alguns
bens para nossa família, como as bicicletas que serviram de meio de transporte no trabalho.
Após três anos casados, Garcês e meu pai tiveram Samuel. Em 1990, nasceu Tiago. Este
último filho do casal começou a manifestar no período em que passávamos pela crise financeira
uma alergia que provocava graves irritações na pele. Através de exames, foi diagnosticada
intolerância à lactose. O dinheiro ainda era pouco, mas economizando com algumas coisas
não tão necessárias, os remédios foram comprados e meu irmão fez o tratamento.
Nossa vida financeira era instável, houve períodos em que tivemos o razoável para
sobreviver, e períodos de crise em que comemos apenas arroz com manteiga.
Quando estava no terceiro ano do Ensino Médio, passamos novamente por uma crise
financeira. Por isso, terminado o último ano do nível médio, resolvi aceitar o convite de
minha tia para tentar a faculdade em São Luís, pois aqui, seria mais fácil fazer um curso
superior, tendo em vista o custo de vida mais baixo em relação a São Paulo. No dia 22 de
janeiro de 2000, vim para a capital do Maranhão.
Enquanto tentava o vestibular em São Luís, a loja de móveis, onde meu pai trabalhava,
faliu e já não era possível contar com a ajuda do meu irmão mais velho que estava no
quartel. Consciente das dificuldades financeiras pelas quais minha família passava, comecei
a trabalhar em uma escola. Ganhava mal, cem reais por mês, mas era a forma de me manter
sem recorrer a meu pai. Assim, com o dinheiro que recebia, investia nos estudos. Não tendo
certeza qual curso faria, tentei vários cursos nas duas Universidades públicas de São Luís.
Os três primeiros vestibulares que tentei para a Universidade Federal, foram para o curso de
Educação Artística, não obtendo, contudo, resultado positivo. Na Universidade Estadual
tentei para os cursos de História; Arquitetura e Urbanismo, e por fim, Administração. Também
não consegui aprovação em nenhum destes vestibulares.
Foram quatro anos fazendo vestibular e me angustiando cada vez mais, pois as
condições objetivas me mostravam que nunca poderia alcançar um nível superior. O
único desejo que tinha na vida, como até hoje tenho, era continuar meus estudos. Eu dizia
que queria ser doutora, ser gente importante, ocupar um lugar que por direito eu tinha a
consciência de que era meu. “A universidade não é pública?” Eu pensava, porém: “Como
poderia competir com os alunos das escolas particulares que se prepararam para estar no
nível superior?” Diante das dificuldades, desejei voltar para São Paulo, mas me
perguntava: “Fazer o quê?” A única razão que eu encontrava para a vida estava em
prosseguir nos estudos. Então, soube do vestibular da cidadania promovido pela
Universidade Estadual do Maranhão. Fiz a prova e passei em quadragésima colocação
para a turma que funcionaria na própria Universidade. Meu pai ficou feliz com esta
aprovação. Eu confesso que também fiquei, porém não satisfeita, pois queria fazer um
curso superior e não somente um cursinho. O cursinho na realidade foi válido pela ajuda
da bolsa de cinqüenta reais e pelo material que recebia.
No período do vestibular, realizei as provas da Universidade Federal e da Universidade
Estadual. Considerei a prova do vestibular da Universidade Federal a mais difícil dentre
aquelas realizadas nos quatro anos em que tentei vestibular. As questões de História, as
específicas do meu curso, estavam muito complexas. Desestimulei-me, já vinha pensando
Universidade Federal do Maranhão
107
que não passaria mais uma vez, me sentia uma desgraçada no mundo. Indagava-me o que
queria da vida. Sentia-me fracassada, pois, naquele momento, mesmo tendo a certeza do
curso que escolhera, Pedagogia, não conseguia ter um bom resultado.
No dia seguinte, continuei indo ao cursinho do Vestibular da Cidadania, pois ainda
faltava basicamente um mês para as provas da Universidade Estadual.
Quando saiu o resultado dos aprovados nas provas da primeira etapa da Universidade
Federal, consegui aprovação em quinqüagésima segunda colocação. Nesse período, já estava
morando com minha madrasta e meus dois irmãos mais novos na casa que tinha sido da
minha falecida avó. Porém, não quis contar-lhes de imediato a notícia. Minha tia foi quem
viu o meu nome em um jornal e me ligou parabenizando-me.
Ainda não estava satisfeita. Fui, receosa, para a segunda etapa. A prova pareceu bem
mais simples que a primeira. O tema da redação estava relacionado com a temática da
novela que estava sendo transmitida na televisão naquele período, “Celebridade”. Enquanto
esperava o resultado final do vestibular da segunda etapa, fiz as provas da Universidade
Estadual com esperanças de passar pelo menos nesta.
Neste período em que me preparava para as provas dos vestibulares do ano de 2004, a
escola, onde lecionava, faliu. O prédio onde funcionava a escola era pequeno, e como os
proprietários eram meus parentes, me dispuseram uma sala para ensinar reforço escolar,
enquanto não vendiam o prédio. Foi numa manhã, nesta escola, que escutei os fogos de
artifício. Era o resultado final do vestibular da Universidade Federal que estava sendo
divulgado. Corri para a Cidade Operária, bairro que distava meia hora de caminhada da
escola onde estava. Pedi para minha tia me deixar ouvir o resultado na rádio. Mas os
aprovados para o Curso de Pedagogia já tinham sido anunciados. Almocei com minha tia e
voltei para a escola à tarde.
No dia seguinte, saí às seis horas, como de costume. Fui lecionar as aulas de reforço
escolar. Depois de uma hora e meia de caminhada, chegando próximo ao prédio, vi uma
senhora, no seu comércio, lendo o jornal do dia. Pedi-lhe o jornal. Novamente a cena de
quatro anos se repetia: procurar meu nome entre trinta e seis pessoas. Encontrei o meu:
trigésima segunda colocação. As lembranças de uma vida vêm à tona: as caminhadas; o
esforço do meu pai para nos ver progredindo na vida e buscando um futuro melhor; as
economias que fiz naquele ano para pagar a taxa do vestibular, pois não queria mais
depender da ajuda financeira de minha tia; a distância do meu pai que estava em São
Paulo, trabalhando de montador de móveis em outra loja para sustentar sua família em
São Luís e também conseguir o dinheiro para comprar sua passagem de volta à terra
deixada há vinte e cinco anos. Enfim, o percurso que fiz para conquistar uma vaga na
universidade pública, assim como as pessoas que fizeram parte desta caminhada, me
vieram à memória.
À noite, quando cheguei a minha casa, liguei para meu pai em São Paulo que, ao
receber a notícia, me disse palavras encorajadoras. Nunca me esquecerei. Meu pai sempre
apoiou as minhas escolhas. Ele pode até não concordar com algumas decisões que
tomo, mas ele não me desencoraja na conquista dos meus sonhos; ele prefere permanecer
neutro e deixar que eu trace o meu destino. Hoje, ele confessa que tinha dúvidas quanto
a minha permanência na Universidade, visto que, no período, estávamos vivendo com
basicamente cem reais por mês, com ajudas de parentes e eu me sustentando com as
aulas do reforço escolar.
108
Caminhadas de universitários de origem popular
Minhas tias também são pessoas significativas. Por isso, não posso deixar de fazerlhes referência neste memorial, pois, cada uma delas, sempre que puderam, me ajudaram,
ora me incentivando a continuar a estudar, ora brigando comigo a fim de que despertasse
para a busca dos meus sonhos, ou mesmo nos momentos em que a minha tia da Cidade
Operária abria as portas de sua casa para me deixar dormir quando percebia que algo não ia
bem comigo. Elas são pessoas que estarão para sempre em minhas memórias. Nunca as
esquecerei, pois fazem parte desta minha caminhada.
A Universidade foi um sonho conquistado. No começo, novos desafios. Faltava o
dinheiro para as cópias dos textos. Professores politizados no discurso, mas na prática
pouco se importavam se o aluno tinha ou não condições de fazer um trabalho digitado. Dou
graças a Deus, porque, no Curso de Pedagogia, há pessoas humanas na minha turma. Elas
me ajudaram muito. Simone tirou cópia de um texto logo no início. Como não tinha dinheiro,
pedi emprestado o texto de uma amiga e fichei-o. No dia da apresentação, apresentei o
trabalho com as anotações feitas no caderno. Simone soube, por uma das integrantes do
meu grupo, como havia estudado para aquela apresentação. Então, no dia seguinte, sem
dizer nada ou fazer aquelas perguntas imbecis cheias de vãs piedades, me entregou o texto.
Outras estudantes da turma também foram muito generosas comigo: Ester, que várias vezes
me convidou para digitar meus trabalhos na casa de sua irmã; Francilene tem sido uma
companheira nos estudos. Fazemos trabalhos, construímos artigos para que sejam
apresentados em encontros e seminários vinculados à área da Educação. No ano de 2005,
em que a universidade ficou paralisada devido à greve dos professores, realizamos uma
pesquisa numa escola pública do bairro da Santa Clara; foi enriquecedor, pois, estivemos
dois meses perto das crianças com diversos problemas sociais. Queríamos falar de
alfabetização, mas percebemos que este processo vai muito além de ensinar as crianças a ler
e a escrever. Desta experiência, aprendemos muito sobre os valores humanos e como a
sociedade tem visto o processo de alfabetização.
Por fim, falo de Keila que, tendo computador conectado à internet em casa, sempre nos
avisava de algum evento ou oportunidade para estágio. Ela primeiro me convidou para
participarmos de uma oficina de leitura na Vila Embratel. Foi uma excelente experiência. E
depois, foi ela quem me avisou do Programa Conexões de Saberes. Sou grata a Deus por me
conceder amigas tão humanas que sabem valorizar, respeitar e construir amizades que vão
além de simplesmente estarmos juntas.
Hoje, faço parte desse Programa, tenho aprendido a conviver com outras pessoas de
cursos diferentes, e é válida a experiência.
Sei que as dificuldades sempre existirão, porém é gratificante quando elas são
superadas. Como eu sempre falo com minha amiga Francilene: “Vamos até a última gota e
ela sempre será infinita, pois é insaciável”. Estar ao nível da Graduação não me satisfaz,
quero mais. Sonho com o título de Doutorado, não que eu queira somente prestígio social,
mas que, através dos títulos, possa estar contribuindo de forma significativa com a esfera
pública, parafraseando Henry Giroux. Não escolhi Pedagogia em vão. A cada período em
que vou estudando as bases teóricas que fundamentam o curso de Pedagogia, ao mesmo
tempo em que vou às escolas fazer pesquisas, confirmo a minha escolha de atuar
profissionalmente na área da Educação.
Universidade Federal do Maranhão
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Eu pela vida
Ricardo Waldrean Melo da Silva *
1 Introdução
Sou Ricardo Waldrean Melo da Silva e me apresento como integrante de um pequenogrande núcleo familiar composto por seis membros da família, um mascote e várias outras
pessoas unidas por laços afetivos de amizade.
Para mim, a história humana resulta do somatório de contribuições individuais das
trajetórias de vida que, por sua vez, são influenciadas pela sociedade e o meio circundante,
numa troca e entrelaçamento simultâneos que nos conduzem ao envolvimento com histórias
de outros, sendo assim, os “carpinteiros do universo”.
Com base neste princípio, busquei oportunidades de contribuir para a obra
universal, superando as minhas dificuldades e ajudando as pessoas à minha volta a
melhorar suas vidas.
Ao longo deste texto, contarei algumas das limitações que a vida parecia tentar me
impor e como consegui vencê-las, ou ainda estou em fase de superação.
2 De onde vim
Nasci no final da década de 1970, na periferia da cidade de Belém-PA e tive uma
infância bastante pobre, porém, FELIZ e muito rica em experiências diversas que me deixaram
mais preparado para “enfrentar” a vida, e acredito que me tornaram uma pessoa bem melhor
do que se não as tivesse vivenciado.
Sou o primeiro filho de um casal que se uniu baseado unicamente na vontade de
ficarem juntos e serem felizes, quero dizer ainda sem nenhuma estrutura financeira que os
mantivesse. Isso fez com que passássemos - nasci pouco mais de um ano após terem se
casado e meus irmãos nos dois anos seguintes – por sérias necessidades.
Para quem conhece as áreas periféricas de Belém, passei toda a minha infância vivendo
em casinhas de tábuas que são construídas suspensas por estacas – algo equivalente às
palafitas ribeirinhas tão comuns em áreas de invasão com pouca assistência governamental,
lembrando que, vivíamos de favor com parentes; todos passavam por muitas dificuldades e
ninguém dispunha de emprego fixo – a renda que sustentava a família vinha de “bicos”,
nunca sabíamos com quanto dinheiro poderíamos contar para passar o mês. Essa situação,
perdurou por praticamente toda a minha infância.
*
Graduando em Física na UFMA.
110
Caminhadas de universitários de origem popular
A Taberninha (mercearia) representou para nós o momento de transição para uma
situação financeira um pouco melhor. Após um longo período morando de favor na casa de
minha tia, meu pai conseguiu uns poucos recursos com os quais teve a idéia de alugar uma
casinha de apenas um compartimento, e comprou um quilo ou litro de cada produto da cesta
básica e montou um pequeno comércio.
Nesta fase, construímos nossa primeira casa própria. Mas em decorrência de reparos nas
ruas do bairro, nossa rua ficou intrafegável e a taberna teve que ser fechada por falta de freguesia.
E voltamos à situação anterior, com a diferença de que agora tínhamos a nossa própria casa.
3 Por onde passei
Até os onze anos, vivi (nas condições já citadas) em Belém-PA, quando meu pai
recebeu o convite de familiares de minha mãe que moravam no Amazonas para mudar-se
para lá com a possibilidade de aprender a trabalhar na área de telecomunicações e arrumar
um trabalho nessa área - na época, em franca expansão na região Norte.
Atraídos pela vontade que meu pai tinha de “aprender” uma profissão e melhorar as
condições de vida da família, decidimos que mudaríamos para Manaus-AM.
Realizamos a mudança com nossos poucos bens materiais e lá estávamos mais uma
vez a morar de favor na casa de parentes.
Lembro que meu pai se esforçava muito para aprender os procedimentos de instalação
dos cabos da rede de telecomunicações (embora tenha começado abrindo valas e carregando
escadas). Ele havia gostado da área e tinha um trabalho fixo, embora com um salário que
não fizera diminuir as nossas dificuldades, mas tínhamos esperança de que, quando meu pai
aprendesse, passaria a ter um cargo com salário melhor.
Acabou não sendo possível continuarmos na cidade, pois ficamos sem condições de
nos sustentar naquele Estado, e depois de um ano sofrendo necessidades, retornamos a
Belém-PA, com a diferença que, desta vez, meu pai tinha uma profissão que possibilitou a
nossa vinda para São Luís-MA, em melhores condições, comparativamente àquela época.
Meu pai tinha uma profissão numa área que oferecia empregos em Belém. Ele conseguiu
um trabalho e recebeu uma proposta para vir trabalhar aqui, em São Luís do Maranhão, pois
a empresa fechou contrato para realizar instalações telefônicas no Estado.
4 Na vida da escola e na escola da vida
Como era de se prever, sempre estudei em escola pública. Com isso, descobri bem
rápido que teria que aprender a tirar o que havia de melhor dela e a suprir as muitas
deficiências por ela deixadas.
Na escola
Minha carreira estudantil começa no ano de 1984, quando tinha cinco anos. Foi
quando descobri que a vida era bem maior do que meu próprio mundo. Tenho inúmeras
boas e más recordações dessa época.
A escola em que comecei a estudar se chamava “Chapeuzinho Vermelho”. Lá, comecei
a conhecer as letras e as pessoas.
No primeiro ano em que estudei, foi maravilhosa a sensação de capacidade ao cobrir
a letra “a”. Fiquei encantado de poder fazê-la de vários tipos e tamanhos; o difícil foi não ter
a mesma facilidade com a letra “b”, processo tornado muito doloroso pela professora que,
Universidade Federal do Maranhão
111
no auge de sua competência profissional, dizia que eu deveria ver melhor a letrinha para
poder seguir as linhas pontilhadas. Para isso me enchia de “cascudos” e/ou esfregava minha
cabeça no papel que estava sobre a carteira.
Isso representou o maior trauma da minha vida escolar. Na verdade, até hoje nunca
entendi o que a dor tem a ver com aprendizagem.
É certo que me esforçava desesperadamente para aprender tudo o que aquela professora
ensinava para evitar seus abusos, mas não adiantava nada: ela sempre me batia. Tempos
depois, ela começou a dizer que me odiava por eu ser parecido com um homem que a fez sofrer.
Neste período, pude observar que havia diferença entre as pessoas (até então todas
eram iguais para mim). Na escola, as crianças e familiares que tinham melhor aparência eram
bem melhor atendidas e donas da atenção das professoras.
Em 1987, minha família e eu nos mudamos de bairro, e conseqüentemente, eu teria
que mudar de escola. Comecei a estudar na escola José Alves Maia.
Parece que eu havia esquecido muito do que a escola tinha representado para mim, e
quando voltei à escola, levava na cabeça o que minha mãe me dizia: “A escola é o lugar
onde as pessoas vão para aprender e colaborar de alguma forma com as outras”.
Embora ainda criança, foi difícil saber que estava enganado, pois os alunos dessa
escola eram muito bagunceiros, não prestavam atenção às aulas, nem faziam os exercícios,
apenas brincavam e brigavam. E eu, que não tinha grupo, apenas ficava em meu lugar,
observando e fazendo minhas tarefas; quando muito, brincava com meus lápis e canetas
(fingindo que eram aviões ou naves espaciais).
Por eu ser tão calmo em sala de aula, a professora dizia que eu não era normal e deveria
ter algum problema. Por este motivo, minha mãe foi chamada inúmeras vezes ao colégio
para ser orientada a buscar ajuda médica para resolver meu “problema”.
O interessante é que os mesmos princípios de geração de energia que faziam com que
as minhas espaçonaves funcionassem são os que fazem, hoje, com que alguns dos doutores
da UFMA, onde curso Licenciatura em Física, se debrucem sobre um projeto inovador, que
representa uma proposta bastante promissora para suas carreiras científicas.
Em Manaus, mantinha a mesma postura em sala de aula: ficava isolado, fazia as tarefas
e ninguém me notava. Mesmo com este comportamento dito anormal, eu era um bom aluno,
e quando os(as) professores(as) não implicavam comigo, me destacava nas notas.
A partir da 8ª série do Ensino Fundamental, comecei a estudar em São Luís.
No ano de 1998, iniciei o Ensino Médio na escola César Aboud. Encontrei excelentes
professores, mas devido à falta de ânimo de outros, preferi me transferir para o colégio
“Edson Lobão” (CEGEL).
A essa data, já havia superado - não esquecido - alguns dos traumas escolares da
infância, já tinha um comportamento mais aceitável e sonhava entrar numa universidade,
com a escolha do curso já feita, refletindo algumas das minhas brincadeiras preferidas
quando criança.
Alguns dos meus professores, comentavam sobre a dificuldade que seria para nós,
alunos das escolas públicas, passarmos no vestibular. Eu comecei a me aproximar deles e a
perguntar como poderia fazer para tornar o meu sonho menos difícil; pedia orientações,
sugestões e materiais.
Fiz amizade com colegas que também pensavam em ingressar na universidade, e
começamos a estudar juntos.
112
Caminhadas de universitários de origem popular
Não tinha recursos para pagar cursinho preparatório ou comprar livros, mas tinha
muita vontade de passar no vestibular para Física. Então, foi neste período que iniciei um
projeto social que ainda hoje existe. Formamos o grupo Cursinho da Cidadania e começamos,
além de estudar em grupo, a dar aulas (cada um na matéria com a qual tinha afinidade) a
outros alunos da mesma escola em fase de preparação para o Programa de Seleção Gradual
(PSG) da UFMA e demais vestibulares.
No terceiro ano, me dediquei mais ainda aos estudos. Os colegas do grupo e eu
passávamos os sábados e domingos na escola estudando em uma sala cedida pela direção.
Agora, eu pensava que precisava passar, mesmo não estudando nas ditas boas escolas, nem
freqüentando cursos especializados.
Fiz a última etapa do PSG e, graças a Deus, fui aprovado logo na primeira tentativa,
sendo a primeira pessoa da minha família a passar no vestibular. Minha aprovação fez
com que meus familiares e alguns amigos da infância se sentissem estimulados para
fazê-lo também; incrivelmente até mesmo aqueles que nem sequer cogitavam
essa hipótese, passaram a perceber que realmente é possível uma pessoa pobre
chegar à UNIVERSIDADE!
Eu e a academia
Na universidade aprendi que a confiança no próprio potencial e na capacidade, é um
elemento imprescindível para o sucesso; também, a formação de um bom grupo de
colaboradores, e principalmente, aquela esperança que dizem ser a última que morre. Passei
por momentos de quase desespero nos quais, se não tivesse conseguido ter uma relativa
frieza para ir até a última possibilidade, não teria conseguido êxito, como ocorreu nos
primeiros períodos em que eu era obrigado a jantar na UFMA apenas água com a farinha que
levava de casa.
Percebi, rapidamente, a presença de alguns professores que parecem ter o objetivo
de reprovar muitos de seus alunos. Um deles disse, certa vez, enquanto ministrava uma
disciplina, que a turma “não era muito interessante”. O resultado foi a reprovação de
quase todos os alunos. Contudo, conheci também grandes mestres que expressam com
clareza o desejo de ensinar, que estimulam lindamente o aprendizado, e é por este
aprendizado e pelas oportunidades de crescimento intelectual e pessoal, que pretendo
poder retribuir à sociedade.
5 No bairro
Sempre fomos muito caseiros, geralmente não saímos para festas, preferíamos ficar em
casa, comportamento que não era bem aceito pelos vizinhos. Eu concordava com minha
família e tínhamos o seguinte lema: “não perdi nada na rua; se sair, posso encontrar algo que
não faça bem”.
Pode parecer estranho, mas para uma criança que vê uma briga de faca e facão, que
resulta em muito sangue, começa a fazer sentido.
Eu era feliz com a família, livros e TV (quando conseguimos uma - na minha adolescência).
Isso me bastava. Na verdade, meus pais conseguiam fazer com que - mesmo com tantas
dificuldades - fôssemos felizes juntos, e como retrata o filme “A Vida é Bela”, mesmo em meio
a uma “guerra”, era possível sermos felizes; a diferença era que sabíamos que corríamos
perigo diariamente.
Universidade Federal do Maranhão
113
Nessa época, eu pensava que, quando crescesse, tentaria uma forma de não deixar que
outras pessoas caíssem na marginalidade como aquelas que a cada dia trilhavam este rumo.
Continuo acreditando que as pessoas não nascem, más contudo as dificuldades as empurram
para a marginalidade.
6 Na família
Por apresentar uma personalidade calma, dentre meus irmãos, fui o que menos
“aprontou” e raramente apanhava. Só decepcionava na hora da sabatina - neste instante eu
sabia que ia apanhar e que não tinha jeito de escapar - esta era também uma desculpa -,
estratégia de meu pai para eu “ser castigado”, pois a regra na casa era: “Por um pagam
todos”; e quando meus irmãos faziam alguma coisa errada, sempre vinha a sabatina.
Como eu raramente “saía da linha”, meu pai se sentia culpado em me punir segundo
suas regras, assim, encontrou esta forma educativa. Hoje, eu acredito que há males que vêm
para bem, pois, graças a isto, aprendi a multiplicar e a ter gosto pela Matemática.
Entendi com isto que, quanto mais soubesse, menos sofreria na vida.
Em casa, costumava ser o intermediador entre meus irmãos, que viviam brigando e
disputando - entre outras coisas - a atenção de nossos pais.
7 Como cheguei ao “Conexões”
O destino tem suas maneiras de agir!
Depois de conversar com uma amiga que naquele momento tinha alguns problemas
particulares, notei que havia no mural um “convite”, para participar deste projeto. Como eu
estava precisando realizar alguma atividade de ajuda ao próximo, e a mim mesmo, saí
imediatamente para preparar todos os requisitos solicitados para o programa.
Infelizmente, não fui aprovado no seletivo - não porque não me enquadrasse nos
requisitos do Programa -, mas porque haviam outros candidatos maior pontuação que eu.
No entanto, fui o primeiro na lista de espera e assim que um dos bolsistas (um dos mais
engajados) saiu, fui chamado para participar do Projeto. Isso foi motivo de muita alegria
para toda minha família, pois a minha bolsa veio representar a principal fonte de renda
devido ao desemprego de meu pai naquele momento.
8 Perspectivas para o futuro
Pretendo especializar-me para dar aulas e realizar pesquisas em universidades,
realizando o sonho de infância: ser um cientista. Num futuro próximo, trabalhar com crianças
que tenham inclinações para o estudo das ciências e das artes.
Gostaria também, de poder desenvolver um centro educacional que trabalhe a cidadania
como princípio fundamental da vida e da sociedade, instruindo nas diversas áreas do
conhecimento, como os de defesa do consumidor, noções de direito constitucional,
informática, e outros, que tenham como fim o engajamento-social em projetos diversificados.
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Caminhadas de universitários de origem popular
História de vida
Rogério dos Santos Cardoso*
Único fruto de uma relação inter-racial, carrego características de ambos os lados da
família, mas identifico-me mais com a parte materna, devido à proximidade da criação e das
relações de vínculo mais próximas, morando no mesmo bairro, e quando das mudanças
(assunto que abordarei mais tarde), sempre morando muito próximo de parentes maternos.
O relacionamento de meus pais foi marcado de forma bem interessante. Mamãe morava
com uma tia minha (Maria Júlia) em meados de1982, e por morar com minha tia, teve muitas
vezes que cuidar dos meus primos, dentre os quais ela sempre demonstrou um afinco maior
com o sobrinho mais velho (Mário Sérgio). Por meio dele, conheceu papai. Benedito, na
época esposo de tia Júlia, é negro. Mário Sérgio tinha o costume de ir ao encontro de
“Sabonete” (apelido do pai dele), quando este vinha do trabalho e descia do ônibus. O
grande problema é que todos os homens que desciam na mesma parada de ônibus e que
tinham a fisionomia parecida com a do pai dele eram recebidos por ele como sendo seu pai,
e em especial, Domingos (meu pai). Esse costume de confundir as pessoas com seu pai se
tornou um grande problema para minha mãe, que era quem cuidava dele. Em meio a essas
confusões de Sérgio em relação às pessoas que pareciam com seu pai, ele acabou fazendo
com que os meus pais se conhecessem.
Sendo fruto de um relacionamento de pessoas com certa experiência, devido a
relacionamentos anteriores em que houve outros filhos, nasci em uma época crítica da
conjuntura nacional, saindo de uma ditadura militar que durara vinte e um anos, permeada de
problemas na área econômica: os planos econômicos e a inflação eram figuras carimbadas na
vida cotidiana da população. Assim, mesmo com a experiência de meus pais, passamos por
muitas dificuldades devido a esses momentos históricos do país, mas surgiu uma criança que
carregou a esperança de vida de pais que se uniram para formar uma família e investir sobre ele
os seus sonhos. Por isso, logo após o meu nascimento, meu pai viajou para o Estado de Mato
Grosso em busca de emprego, onde trabalhou por dezenove meses. Com o dinheiro recebido,
ajudou a suprir as necessidades da família que ficara no Maranhão. Nesse meio tempo, já tinha
certa noção de mundo, e por não ter a figura do meu pai presente na primeira infância, tratei de
substituí-la por um menino (filho de uma vizinha) que eu chamava de Babal.
Desta época mamãe conta que, certa vez, caiu uma grande tempestade e a casa onde
morávamos ainda não estava com o telhado completo, e quando a chuva chegou, foi um
corre-corre, pois, com a casa descoberta, os poucos móveis que tínhamos estavam sendo
*
Graduando em Física na UFMA.
Universidade Federal do Maranhão
115
encharcados pela água da chuva, e ela não podia fazer nada por estar cuidando de mim. Foi
quando algumas vizinhas chegaram para nos ajudar com relação aos móveis e outra com
uma capa para levar-me para sua casa.
Com o passar do tempo, chegou o momento de ir para a escola: foi uma experiência
muito interessante. Na época, tinha o prazer de levantar bem cedinho (por volta das cinco
da manhã) para ir direto ao banheiro tomar banho, com medo de perder aula. Tinha um
afinco muito grande para com a escola devido à consciência de minha mãe. Mesmo sob
protesto de minha avó materna que dizia que seu netinho não tinha condições de estudar
devido aos seus problemas de visão (miopia, astigmatismo e nistagmo horizontal, que faz
com que eu balance a cabeça com se estivesse sempre negando tudo). Ela nunca desistiu de
ver seu filho entrando em uma universidade. Para espanto de meus pais, eu sempre tive
prazer em estudar no período da manhã, pois tinha prazer em levantar bem cedo.
Minha vida escolar sempre esteve ligada a mudanças de cidade em busca de melhores
oportunidades de emprego para meus pais, e em especial, para minha mãe. Essas mudanças
começaram no ano de 1991, quando minha mãe foi convidada para trabalhar com o prefeito
da cidade de Barreirinhas-MA (minha avó materna era cozinheira na casa do prefeito, e
minha mãe acompanhara o processo das Diretas-Já, tendo participado da Constituinte). Fui
morar com ela em Barreirinhas, enquanto meu pai ficou em São Luís. Morei lá um ano, o
tempo de duração do contrato de mamãe, e terminei a Pré-Escola. Então, ocorreu uma nova
mudança para São Luís. Antes de começar a 1ª série, minha mãe teve bastante dificuldade
em matricular-me, em virtude de ter apenas seis anos. Quando comecei a 1ª série na Unidade
Escolar Vila Embratel. Para meu tormento, meu nome não estava em nenhuma lista de
alunos da 1ª série, e enquanto resolviam esse problema, tive que assistir aula na sala da
minha tia (prima de papai) e experimentar suas unhas em minhas orelhas. Passada uma
semana, resolveram meu problema, encontrando uma turma em que estudasse, e não podia
ser melhor. Fui para a sala cuja professora era a vizinha à direita da minha casa. Era ótimo!
As filhas dela escreviam para mim e eu nunca voltava para casa sozinho, pois já tinha
encontrado minhas companhias. Ao final do ano, passei despreocupadamente.
Surgiu outra mudança para Barreirinhas. No mês de julho de 1992, minha mãe foi
convidada para participar da campanha de um dos candidatos a prefeito de Barreirinhas, e
ao final da eleição, o candidato para o qual ela trabalhara, ganhara a eleição. Então, em
1993, mudamos novamente para Barreirinhas e mais uma vez meu pai permaneceu em São
Luís, sob o argumento de serviço e isso acabou fazendo com que ele não estivesse presente
na minha vida do modo que sempre quis. Em 1993, comecei a cursar a 2ª série na Unidade
Escolar João XXIII, onde tenho como lembrança os momentos de estudo da tabuada que era
feita com a famosa palmatória. Em 1994, outra mudança de escola; mudança esta que não
aparece no meu Histórico Escolar. Fui para a Unidade Escolar Matos Carvalho, onde cursei
a 3ª série e tenho como lembrança de lá os momentos de cantar o Hino Nacional antes de ir
para a aula.
1995, mais uma mudança de escola, agora sob o pretexto de estarem colocando-me
numa escola melhor. Fui para a Unidade Integrada Joaquim Soeiro de Carvalho. Desta
escola tenho ótimas lembranças, lembro-me das brincadeiras no pátio, das aulas de Educação
Física (que sempre eram futsal) e das brigas na saída da escola. No caminho pra esta escola,
havia uma casa onde criavam perus, e lembro-me de que, ao ir para a escola, algumas vezes
esses perus corriam atrás dos alunos, e era uma grande brincadeira ficar insuflando os perus
116
Caminhadas de universitários de origem popular
à corrida. Em 1996, fui obrigado a ter que estudar no período vespertino, e foi nesse ano que
tive a minha primeira nota abaixo de sete. A disciplina era Programa de Saúde, e o que mais
me marcou foi o fato de que a nota baixa não foi pelas respostas, mas pela ortografia. Outra
lembrança que carrego desta escola são as diretoras que ligavam para a Prefeitura para
avisarem de cada bagunça que eu fazia na escola (e não foram poucas), para avisar das
brigas, das vezes em que dava “rasteira” em colegas de sala, mas a pior das lembranças foi
a da vez em que briguei com o filho da professora de Ciências (um cara metido e que, ao tirar
um nota abaixo de nove, chorava literalmente para os professores darem ponto para ele). Ela
disse-me que iria ficar reprovado. Lembro-me de que estudei consideravelmente até que, no
3º bimestre, já estava aprovado em Ciências. Este ano também foi ano de eleição e o
candidato que o prefeito apoiava ganhou, mas por pressão de meu pai que já morava
conosco (ele foi morar conosco no final do ano de 1994), minha mamãe deixou o emprego
e voltamos para a capital. Com o sonho do plano real de estabilização econômica e
emprego para todos.
A saída de Barreirinhas representa novamente mudança de escola e uma volta à escola
onde estudei a 1ª série, mas agora teria que enfrentar uma nova forma de ensino: a televisão.
Passei somente uma semana na escola, e desta semana me lembro de diversos momentos que
me marcaram profundamente, tais como: ter que assistir aula por uma televisão, a ausência
da figura de um professor para cada disciplina, a ameaça constante do pessoal mais velho na
escola em querer me bater, e em especial, ter que pagar merenda para dois rapazes (por ter um
alto índice de repetência na escola, e eu nunca ter ficado reprovado, era um dos mais novos
da sala e o mais baixo) para que eles fossem meus “seguranças”. Hoje, acho que eram eles
que mandavam os outros me fazerem medo pra que eu pagasse merenda para eles. Mas
graças a Deus, a semana passou.
O processo pelo qual mamãe passou para que eu pudesse sair do “Vila Embratel” foi
muito grande: foi à Secretaria de Educação do Estado às 07h da manhã e só chegou em casa
às 23h (isso porque a matrícula era chamada de “Bem Fácil”), mas, depois de muita
dificuldade, consegui mudar de escola.
Então comecei a estudar na Unidade Integrada América do Norte, na Vila Embratel. Foi
o momento de formar amigos, mas como parte de pessoal onde moro já estudava nesta escola,
não tive muita dificuldade; além do mais, uma prima estudava comigo na mesma sala e um
primo estudava na série anterior. Por meio deles, conheci aqueles que não conhecia. Mas nem
tudo eram flores, a escola era muito pequena para a quantidade de alunos, foi então que
dividiram as salas de aula nos seguintes horários: 07h10 às 10h55, 11h00 às 14h55 e das
15h00 às 19h20. Nesta divisão de horários, acabei tendo que estudar das 15h00 às 19h20, e
não tinha coisa melhor do que ir para a escola depois de dormir no início da tarde. Lembro-me
de que, nos finais dos horários de aula, tínhamos o costume de desligar o interruptor das
lâmpadas e ficar na sala passando a mão em tudo o que encontrávamos pela frente.
Neste mesmo ano (1997), tive contato com um grupo cristão que até então nunca
havia conhecido: os Adventistas do Sétimo Dia, que começaram uma série evangelística
próximo de minha casa. Logo após esta série, eu e meu pai resolvemos nos batizar nesta
igreja, e no dia 27 de setembro de 1997, fomos batizados para honra e glória de Deus. Mas
o comportamento na escola ainda não era dos melhores, com as brincadeiras, com a conversa,
o mini-game, e em especial, as brigas; acabava sendo um dos mais indisciplinados, mas as
notas eram sempre algumas das melhores da sala. A familiaridade com a Matemática sempre
Universidade Federal do Maranhão
117
se destacava, em compensação a Língua Inglesa era a “pedra no sapato”, mas sempre dava
um jeito de escapar dela, fazendo trabalhos para repor as notas baixas e assim por diante. No
final do ano, estava aprovado, já com a expectativa da 7ª série. segundo alguns, esta série
era o “bicho-papão” do 1º Grau.
No ano seguinte, as brincadeiras aumentaram, pois, agora tinha um vizinho estudando
na mesma sala (ele tinha sido expulso de sua antiga escola), foi aí que minha bagunça foi
potencializada em toda a sua plenitude, “gazear” aula, bagunçar, colocar chiclete na cadeira
dos professores, fumar, cheirar solvente, foram algumas das coisas que fiz na companhia
dele, mas quase todas elas por pressão de grupo, para sentir-me parte dele. Foi nesta época
que também entrei numa “galera” chamada abreviadamente de C.A. (Caçadores de Aventura).
Nessa “galera” tive o primeiro e único contato com a maconha (acredito que não fez efeito
em mim). Paralelo a isso, permanecia na igreja. Lembro-me de uma briga marcante que tive
com um menino de uma outra área do bairro (rua 2), que na época era famosa por sua gangue
e que já havia matado algumas pessoas, em que quebrei a boca dele e ele saiu dizendo que
ia me pegar no dia seguinte, na entrada da escola. Disse que ia trazer a “galera” dele para
resolver o problema, foi então que a diretora da escola soube da briga e avisou para os meus
pais que, ao saberem do meu feito, foram logo tratando de tentar solucionar esse problema.
No outro dia, não fui para a escola, e papai foi à casa do avô do menino para resolver a
situação. Dois dias depois, pude voltar para a escola, sem risco de vida.
Foi então, que minha mãe começou a notar a minha mudança em casa, o tipo de
música que ouvia, o jeito de andar e as companhias com quem me envolvia, e começou a
brigar para que, deixasse de andar com aquelas companhias, mas não adiantavam muito
suas conversas. Uma forma que eu utilizava (sem que nem eu mesmo percebesse) eram as
minhas notas que sempre permaneceram entre as melhores da turma. No final do ano, lá
estava eu aprovado, querendo dar uma de dono da minha vida, sem perceber o mundo que
estava me cercando.
No meio de todo esse clima, fomos estudar no C.E.E.F.M. Profª. Dayse Galvão de
Sousa. Uma das características do pessoal da minha sala era andar sempre um grupo de no
mínimo quinze alunos pelo meio dos corredores da escola, mas por ironia, dois membros da
galera da rua 2 estudavam na minha sala, mas os ânimos entres nós nunca se elevaram.
Novamente tive contato com a televisão como professora, mas agora não tive mais chance
de fugir dela, foi então que, em meio as peripécias que aprontava na escola, deixei meu
nome duas vezes no Livro da Capa Preta (um livro onde eram anotadas as faltas graves dos
alunos, e quem tivesse três faltas graves era expulso da escola). Uma por causa das placas de
tombamento das carteiras, e outra por causa de uma bebida alcoólica que alguns membros
da minha sala levaram para uma festa que estava sendo realizada na escola, e eu, pensando
que fosse um refrigerante, acabei botando no meu copo. Ao prová-la, fui logo cuspindo o
líquido, e para meu azar, acabou caindo no meu uniforme. Quando o diretor chegou, me
levou para diretoria e começou a pressionar para que eu contasse quem havia levado a
bebida, mas como nunca fui de botar culpa nos outros, disse que não era minha e não sabia
quem era que havia levado para a sala.
Mas em meio a tudo isso, passei por um momento de escolha na vida, como relatei
anteriormente: minha mãe começou a pressionar para que eu deixasse algumas companhias
e três fatos foram cruciais para a minha escolha: o envolvimento com as atividades do Clube
de Desbravadores Tribo de Judá, a vontade de estudar no Liceu Maranhense e as lágrimas
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Caminhadas de universitários de origem popular
de uma mãe que já não sabia mais o que fazer para libertar o filho de certas companhias.
Motivado pelos argumentos acima, comecei a estudar para a seleção do Liceu
Maranhense.Como prêmio por minha mudança de atitude, fui agraciado com a melhor
notícia da minha vida até então: fui aprovado na seleção do Liceu, e o melhor: o resultado
saiu num Sábado (dia sagrado para adoração ao meu Deus). Agora já havia mudado meu
estilo de vida, começara a me envolver mais profundamente com as atividades da igreja de
que sou membro, e acabei deixando de ter contato com o pessoal que costumava conviver
anteriormente. Com isso, meu relacionamento com meus pais, melhorou consideravelmente.
Ao passar na seleção, sabia que a partir dali tinha a oportunidade de traçar novos
caminhos e descobrir um novo estilo de vida. Com essa idéia fixa encarei a nova escola,
agora com a experiência de alguém que já havia passado por momentos de altos e baixos na
vida, mas consciente do meu papel na família e também com foco para o que queria alcançar
(na época meu primo Sérgio, o mesmo que fez o papel de cupido para o relacionamento dos
meus pais, havia acabado de passar no vestibular da UFMA) e tinha na mente que não
poderia perder o foco.
Escola nova, vida nova, Liceu Maranhense. No primeiro dia de aula, ganhei o apelido
que carrego até hoje, Black; além disso voltei a estudar no período matutino, o melhor, no
meu ponto de vista. Naquele dia já comecei bagunçando com dois alunos da mesma sala,
apesar de nunca tê-los visto na vida, mas sabia que não podia perder o foco. Fiquei numa
turma relativamente boa, embora existisse a formação dos grupos, que sempre se formam
numa sala. Nós éramos bem unidos e eu tinha livre passagem em todos os grupinhos que se
formaram na sala. Outra característica da nossa turma era a de sermos poucos homens, o que
facilitava a formação do time de futebol (como nunca fui bom em futebol, acabei sendo um
dos membros do banco que sempre entrava no segundo tempo do jogo). Surgiu, nesse momento,
outro empecilho na minha vida escolar: a Química. Matéria que me levou para a primeira
prova final da minha existência. Ao término daquele ano, não mais era conhecido pelo nome,
e sim, pelo apelido. Neste ano, participei do meu primeiro acampamento como desbravador,
foi uma ótima experiência.
Havíamos passado o ano todo estudando para o Programa de Seleção Gradual da
UFMA, mas sabia que não estava preparado para a prova, e então surgiu a oportunidade de
fazer a prova para o CEFET-MA. Fiz e fui aprovado para o curso de Materiais, mas por causa
da minha situação financeira, não tive condições nem de fazer a matrícula. A aprovação na
prova do CEFET tirou um fardo das minhas costas em relação à nota no PSG I, mas no final
acabei sendo bem, sucedido na prova, para minha surpresa.
2001, 2ª série do Ensino Médio. Já sabia que área iria seguir: Física. Era a matéria com
a qual mais me identificava. Além disso, não queria cursar Matemática, pois Sérgio já o
cursava, e não queria ser a sombra dele. Aprendi jogar xadrez neste ano, e a partir daí, jogava
no meio das aulas, no corredor, na saída, em quase todos os lugares. Fiz deste jogo um estilo
de vida e o argumento que eu usava era que era um jogo de cálculo, como as matérias com
que sempre tive afinidade. Lembro-me das aulas de Biologia, História e de Língua
Portuguesa, em que tive não professores, mas mestres. No PSG II tive uma queda de produção,
mas nada muito significativo.
Terceirão, já era agora veterano, e como tal, tinha que sair “impondo” autoridade
sobre todos os calouros que pudesse encontrar pela frente, mas não era apenas isso: era meu
último ano. Tinha que ter foco muito mais do que nos outros anos, mas sempre carregando
Universidade Federal do Maranhão
119
comigo o xadrez. No ano anterior, papai tinha ido para Barreirinhas trabalhar e nunca
mandava dinheiro algum para mamãe ou para mim. Já estava no seu segundo ano em
Barreirinhas e nada tínhamos que ele houvesse conseguido. Foi aí que minha mãe foi
aprovada no seletivo da prefeitura de São Luís para agente de Saúde, e mesmo ganhando
menos de um salário-mínimo na época, conseguíamos milagrosamente (aí vejo a intervenção
de Deus) suprir as necessidades que tínhamos. Este ano era também um ano decisivo para
mim e para todos da minha turma: era o meu último PSG. Estávamos todos ligados em
nossos estudos, seguíamos um roteiro detalhado das disciplinas e dos assuntos que iriam
cair na prova, nunca estudara tanto na minha vida.
No mês de abriu de 2003, (num Sábado), logo ao chegar da igreja, recebi o telefonema
de um colega de turma com a notícia de que havia passado no PSG em segundo lugar para
o curso de Física. Foi aí que senti o maior prazer da minha vida: ver minha mãe chorando de
alegria ao saber que eu havia passado e iria cursar uma faculdade. Duas semanas depois, já
estavam começando as aulas.
O início foi bem complicado, pois trazia falhas de formação no Ensino Médio além do
vício do xadrez. Em 2004, tive a primeira experiência de morar sozinho. Minha mãe foi para
Barreirinhas e meu pai já estava por lá, então tive que passar a viver sozinho (minha mãe
sempre me dizia que ela estava me criando para a vida). Paralelo a isso, obtive minhas primeiras
reprovações: reprovei em três disciplinas em que estava matriculado. Foi então que tomei
noção de que já havia passado a época das brincadeiras. No quarto período, concentrei-me em
todas as disciplinas que estava cursando, mas infelizmente, reprovei novamente em Física II.
Desta vez reprovei consciente de que havia dado o meu melhor, e não podia culpar-me de ter
relaxado (na prova final quem “colou”, passou, mas preferi ficar reprovado, preservando
assim minha consciência limpa: Quarto mandamento da Lei do Desbravador). Neste mesmo
período, terminei a Classe de Líder de Desbravadores e fui investido no Camporee Reedificai
o Templo (acampamento de todos os Clubes de Desbravadores de uma determinada região);
na época já era diretor associado do Clube Tribo de Judá.
Já o ano de 2005, foi o ano da “virada de mesa”, consegui passar em Física II. A partir
daí, o tabu das reprovações foi vencido, ainda era diretor associado do Clube, mas agora
acumulava o cargo de regional associado. Ajudei com a organização do Camporee “Com os
olhos no Céu”, e no curso comecei a me organizar. Neste mesmo ano, conheci uma pessoa
que me marcou muito, Raquel, mantivemos um relacionamento por nove meses, mas por ela
pertencer a uma família branca, a pressão de seus familiares começou a afetar nosso
relacionamento. Ao perceber que ela estava no meio de um conflito entre mim e a família
dela, resolvi terminar o nosso relacionamento (é pedir demais para alguém de 16 anos
escolher entre família e namorado). Aprendi uma lição para toda a vida. Até então, achava
que poderia resolver todos os problemas que surgissem diante de mim, sem machucar-me,
mas depois dessa experiência, descobri que certas situações estão além de minhas
possibilidades de solução.
Já o ano de 2006, foi um ano de descobertas, fui eleito para ser diretor do Clube de
Desbravadores Tribo de Judá. Sob minha direção, tive a oportunidade de organizar o primeiro
Camporee do clube intitulado Heróis da Fé (título esse que vivi até o último momento em
toda a sua plenitude). Pude, através do cargo de direção, ajudar no desenvolvimento dos
membros do clube dos pais, e assim, da comunidade da Vila Embratel; comunidade que
sempre me acolheu de braços abertos e com quem tenho uma relação de respeito e de carinho.
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