NA COVA DOS LEÕES
De Nielson Menão
Premiado no XII concurso capixaba de dramaturgia, categoria
adulto, 1991.
Atenção: Texto registrado e distribuído em caráter puramente de uso e leitura
PESSOAL. Todos os direitos reservados aos detentores legais dos direitos da
obra. Para a representação e comercialização legal da peça, entrar em contato
com o autor através do e-mail: [email protected]
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CENAS E PERSONAGENS:
Prólogo: Na rua
Juca
Cena 1: Ecologistas de plantão
Executivo
Atleta
Suzana
Garoto alérgico
Outros
Cena 2: O casal
Airton
Anelina
Cena 3: Hospital São Judas Tadeu
Recepcionista
Cena 4: Santa Casa
Irmã de caridade
Dr. Santinho
Cena 5: Hospital do Estado
Mulher
Alice
Clínico
Pediatra
Diversos pacientes
Cena 6: Agência do SUS
Secretária
Dr. Balduíno
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Cena 7: Casa de Juca
Chica
Mãe
Cena 8: Hospital do Estado. (Três dias depois)
Juca
Chica
Mãe
Mulher
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Ato único
Prólogo
Rap do prólogo
É a dura realidade social
Eu vou dizer agora da situação
A minha a sua, a violência ta na rua
Ta na sua cara, ta na sua casa
O cidadão que paga imposto
Não tem o que precisa
Não tem a segurança do seu dia a dia
A minha vida, a sua vida
Não vale nada, virou uma piada
Só que eu não acho graça e não vejo saída
O deputado discursa no congresso nacional
Faz acordos duvidosos, cria leis que não funcionam
Não acaba com a desigualdade social
O que importa é aumentar impostos
Ficar no poder, se reeleger, se dar bem
(Coro)
São tantas promessas de um futuro melhor
Palavras bonitas de um futuro melhor
Discursos bonitos de um futuro melhor
Quero ver vir aqui fazer acontecer
E o trabalhador vive na honestidade
Não tem tranqüilidade, dignidade
Só tem dificuldade sofre com a burocracia
Refém da bandidagem e da malandragem
A polícia é uma instituição, a serviço do cidadão
É mentira, ela só protege poderosos
E o patrimônio público da nação
Que não é meu nem seu e de nenhum irmão
Serve para assustar, serve para reprimir
E não manter a ordem como diz a lei
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Esse sistema (todo) ta errado, são muitas as questões
Estamos perdidos na cova dos leões.
(A cortina se abre lentamente. Uma voz de noticiário policial narra) Voz: “À
noite quando se dirigia à padaria para comprar um litro de leite para seu filho,
Juca Carneiro da Silva foi vítima de um latrocínio. Um gesto qualquer da vítima
foi interpretado pelos agressores como um ato de resistência. Juca recebeu um
tiro na testa e uma facada no abdome. Os assaltantes não tiveram muito que
roubar. Alguns trocados e um relógio, herança de seu pai. Levaram-lhe
também seus documentos”.
Cena 1: AS ECOLOGISTAS DE PLANTÃO.
(Quando a voz termina a narração, a cortina já estará totalmente aberta, com a
iluminação adequada. Ouve-se um grito lancinante de dor, é Juca que volta a si
e dá conta do acontecido. Ao grito de Juca funde-se o grito das ecologistas que
aparecem em passeata portando faixas e cartazes tipo: “Salvem os pingüins do
pólo norte”, “Acabem com a matança das baleias.” E outras da moda. Uma
ecologista trará uma jibóia no pescoço. Ao verem Juca deitado no chão com as
tripas fora do abdome e o cérebro vazando por um buraco na testa param
indignadas. Juca dá outro grito.)
Canção das ecologistas:
Está na hora de lutar
Ou amanhã não existirá
Vamos juntos, vamos todos
Novos ares respirar
Vamos juntos, vamos todos
Novos ares respirar.
Nossos rios, nossos mares
É preciso respeitar
Nossa fauna, nossas matas
É preciso preservar
CAMADA DE OZÕNIO. AQUECIMENTO GLOBAL.
Salvem, salvem o planeta terra
Salvem da destruição
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Salvem o planeta terra
Salvem da destruição
Salvem! Os nossos mares
Salvem! Nossas florestas
A água que bebemos
Á está no fim
Salvem! Os animais
Salvem! A natureza
Salvem! As nossas vidas
O planeta terra
CENA 1 – AS ECOLOGISTAS DE PLANTÃO
Catitas – Gente, que é isso?
Paula – Meu Deus... Que é isso?
Catitas – Vejam que cena chocante.
Catitas, Rafael Franco e Rafael Haui – Chocante... Chocante.
R. HAUI – O senhor vai ser denunciado por atentado contra a natureza.
Juca – (Gritando e gemendo) Aiiiiiiiiii...
R. Franco – Vamos leva-lo à delegacia mais próxima, Cássia.
Cássia – Atentado contra a natureza dá cadeia sem direito à fiança.
Juca – Me ajuda...
Cássio – Moço... o senhor não percebeu a gravidade de seu ato? Eu acho que
não Cássia. Levanta daí, moço.
Juca – Graças a Deus...
Catitas – Graças a Deus? Graças a Deus o quê?
Juca – Vocês chegaram. Me ajudem... Aiiiiiiiiiiiiii
Thais – O senhor é surdo, ou está se fazendo de besta? Olha o estado
deplorável que está ficando a grama, né amor.
Catitas – Deplorável? Deplorável é pouco...
R. Haui – O senhor sabe quanto tempo leva pra formar um gramado como
esse?
Thais – Olha a poça de sangue coagulado que se formou no gramado, Cássia.
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Paula – Ele nem imagina que esse tipo de grama está em extinção.
Catitas – Extinção... Sabe o que é extinção, moço? Acho que não Cássia...
Thais – O senhor não tem consciência ecológica, moço? Não deve ter não, né
amor?
Ana – Não percebe que está abalando o equilíbrio do sistema planetário em
que vivemos?
Nielson – Acho que ele quer acabar com toda a grama do país.
Cássio – E provocar um buraco ainda maior na camada de ozônio.
Catitas – O senhor está colaborando para aumentar o buraco da camada de
ozônio. Não percebeu não, moço?
Márcia – Moço levante-se da grama, por favor... Olha que nós estamos falando
por bem
Rafael Franco – O senhor sabia que nossa Organização pode tomar medidas
drásticas contra o senhor?
Cássia – Na verdade não gostaríamos de prejudicá-lo por isso estamos falando
por bem. Vamos moço, levante-se.
(Juca a muito custo, segurando as tripas que vazam pelos seus dedos e o
cérebro que se derrama pela testa, consegue ficar em pé, cambaleante. Todos
aplaudem).
Catitas – Viu como o senhor conseguiu? Sabia que ia conseguir.
Juca – Ai me ajudem...
Cássio – O senhor sabe quanto tempo vai demorar pra crescer de novo essa
grama aí onde o senhor estava deitado?
Thais – Acho que ele nem faz idéia, né amor?
Márcia – Todos nós precisamos colabora com a natureza, moço. Senão daqui
a pouco vai ser uma destruição só.
Todos – (Desencontradamente) Uma destruição só.
Juca – (Cai novamente ajoelhado e com muito custo balbucia). Preciso de
ajuda.
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Cássia – Todos precisamos de ajuda ou no futuro não restará nada em cima da
terra.
Paula – Nenhuma árvore, nenhum rio, nenhum animal, nenhum shopping
center.
Cássia – Só areia.
Todos – Só areia.
Paula – Igual no deserto do Saara. O senhor sabia que o deserto do Saara já
foi uma exuberante floresta?
Thais – Cheia de gramados lindos como esse do nosso parque?
Cássia – E com uma floresta tropical, com uma riquíssima fauna e flora?
Cássio – Cheia de borboletas, passarinhos, araras?
Paula – Macacos, onças e jaguatiricas?
Rafael Franco – E olhe só a que estado ficou reduzido hoje. A nada.
Catitas – A nada...
Thais – No deserto não tem vida, moço. É impossível viver lá, sabia? Né amor?
Cássio – Junte-se a nós, moço. Ainda é tempo de salvar a natureza.
Catitas – Temos que despertar em todos a consciência ecológica.
Ana – Os homens precisam parar de matar passarinhos.
Cássia e Thais – Jacarés.
Paula e Ana – Baleias.
Nielson – Focas.
Cássia e Thais – Golfinhos.
Nielson - Ursos polares.
Paula e Ana – Atuns
Márcia e Rafael Franco – Peixes-bois.
Thais – Formigas... (Longo tempo, todos se olham) Né amor.
Cena 2 – O CASAL
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(Entra um casal num carro vermelho. Estão indo para algum restaurante jantar.
Ela está bem vestida, com jóias. O carro pára perto de Juca que cai novamente
ajoelhado).
Juca – Graças a Deus!
Airton – Meu Deus! O que aconteceu?
Angelina – Que horror! Vamos embora.
Airton – Espere.
Angelina – Acelera Airton!
Juca – Me leva prum hospital, moço. Eu ia comprar leite pro meu filho mais
novo quando fui assaltado. Me levaram tudo. Eu to com a barriga cortada... Me
deram um tiro no meio da testa.
Airton – Onde estão os assaltantes?
Angelina – Eu falei que a gente não devia passar por esta rua. Não falei Airton?
Este lugar está cheio de bandidos. E você ainda pára prum desconhecido. Nem
sabemos quem ele é.
Airton – Calma, Angelina. É só alguém que precisa de ajuda.
Angelina – E eu tenho cara de Madre Teresa de Calcutá pra ajudar todo mundo
que precisa?
Airton – (A Juca) Os bandidos eram muitos? Estavam armados? Podemos
chamar a polícia para o senhor.
Juca – (gemendo) Nããããããããããããã!
Angelina – Ta vendo? Ele não quer ajuda.
Juca – Preciso ir para um hospital. Não agüento mais.
Airton – O senhor perdeu muito sangue?
Angelina – Claro, Airton, não está vendo a camisa dele toda ensangüentada?
Juca – Me leva prum médico, pelo amor de Deus.
Airton – Claro... Claro.
Angelina – Não senhor... Não está vendo que pode ser um assaltante?
Airton – Não tem cara de assaltante.
Angelina – Não tem? Você é mesmo um idiota, Airton.
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Airton – Não precisa fazer cena, Angelina, meu amor. Eu disse somente que
ele não tem cara de assaltante. E não tem. Olhe só para ele.
Angelina – Airton? Cena? Eu sou de fazer cena?
Airton – Ta bom... Ta bom...
Angelina – Se todos os assaltantes tivessem cara de assaltante, você não acha
que a polícia já teria prendido todos eles?
Airton – Meu bem... Calma... Também não é assim. Você anda vendo muita
televisão. Nem todo mundo é bandido.
Angelina – Se ele subir eu desço. Se entrar eu saio.
Airton – Meu bem seja compreensiva. O homem sofreu um acidente.
Angelina – Acidente, não...
Juca – (Gemendo) Aiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii!
Angelina – Assalto, é diferente.
Airton – Tudo bem, assalto. Mas ele precisa de ajuda.
Angelina – E depois vai sujar todo o carro. Se ele pelo menos estivesse limpo.
Airton – Amigo, desejo-lhe boa sorte! Infelizmente não posso ajudá-lo. Espero
que o senhor compreenda, não quero brigar com minha esposa.
Angelina – O senhor pode caminhar mais um pouco. O Hospital São Judas
Tadeu não fica muito longe.
Airton – Isso mesmo. O hospital está a poucos quarteirões daqui. O trânsito já
não está tão movimentado e não há nenhum problema em caminhar.
Angelina – É mesmo, a noite está fresca, poderá fazer bem ao senhor. Acelera
Airton, já é quase meia noite. (Vinheta).
Juca – Meu Deus... Meia noite... O leite do menino.
CENA 3 – HOSPITAL SÃO JUDAS TADEU.
(Airton acelera e sai. Juca caminha com dificuldade. Aos poucos o cenário com
os dizeres de: “Hospital São Judas Tadeu”, vai entrando em cena, como se
Juca estivesse caminhando e se aproximando do hospital. Quando o cenário
estiver totalmente em cena, entra a recepcionista. Durante o transcorrer da
cena uma voz da enfermaria chama alguns doutores, como nos filmes
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americanos, para dar ambientação, tipo: “Dr. Nilton”... Dr. Nilton... compareça
ao necrotério).
Recepcionista – Nossa! Acidente?
Juca – Saí de casa pra comprar leite pro menino. Os bandidos me levaram
tudo: a carteira, o relógio... e me rasgaram... e ainda me deram um tiro no meio
da testa. Ai como dói.
Rece – Vamos atendê-lo imediatamente. É caso de extrema urgência. (Pega
uma ficha e caneta) Seu nome?
Juca – Juca... Carneiro... da Silva.
Rece – (Escrevendo). Da Silva... Idade, seu Juca? Quantos anos o senhor
tem?
Juca – 27 anos.
Rece – Nacionalidade? (Tempo) O senhor é brasileiro, seu Juca?
Juca – É.
Rece – Sexo ?
Juca – Como? Hum?
Rece – Sexo?
Juca – Secso?
Rece – É sexo, seu Juca.
Juca – É... Sou homem, né?
Rece – (Anotando sempre) Sexo... Masculino. Estado civil?
Juca – Sou juntado
Rece – Local de trabalho?
Juca – Sou ajudante de pedreiro.
Rece – Por favor, a carteira da Previdência.
Juca – Eu expliquei pra senhora, me roubaram o relógio, o dinheiro do leite e a
carteira com todos os documentos.
Rece – Eu só quero a carteira da Previdência.
Juca – Ai... me roubaram... me roubaram.
Rece – Bem, neste caso o senhor deverá estar fazendo um depósito.
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Juca – Depósito? Em dinheiro?
Rece - Sim, Sr. Juca. Um depósito de 36 salários mínimos.
Juca – Mas, fui roubado. Não tenho dinheiro.
Rece – O senhor poderá estar pagando com cartão. Seu cartão é Visa? Máster
Card? (Silêncio) American Express? Credicard? Bem, seu Juca, nós não
vamos poder atendê-lo. Nosso hospital não atende indigentes.
Juca – Mas a senhora mesmo disse que o meu caso é grave.
Rece - Grave é modo de dizer. Se o senhor chegou até aqui é porque não está
tão ruim assim. O senhor compreende, não sou eu, de maneira nenhuma que
não quero atendê-lo. São ordens do hospital, compreende? Ordens superiores.
Juca – Onde posso ser atendido, então?
Rece – O senhor pode ir à Santa Casa. Lá eles atendem o senhor.
Juca – Minha cabeça dói muito. E o sangue que não pára de sair da minha
barriga.
Rece – Isso é tudo que posso fazer pelo senhor.
Juca – Tem uma ambulância parada aí fora. Será que ela pode me levar?
Rece – Sinto muito, mas a ambulância só tem ordens para atender pacientes
particulares ou previdenciários.
Juca – Mas eu não to me agüentando mais. Ai...
Rece – São ordens superiores, seu Juca. É o procedimento da casa. Por mim...
Voz – “Por favor, recepcionista de plantão, recepcionista de plantão,
compareça à sala do almoxarifado”.
Rece – Ah... Desculpe, seu Juca. Estão me chamando. Com licença.
Cena 4 – SANTA CASA
(Juca fica sozinho no meio da cena. O cenário sai. Ele caminha. O mesmo jogo
anterior de mudança de cenário. Uma freira o atende).
Irmã – Jesus Cristo!
Juca – Preciso de um médico, urgente...
Irmã – Jesus Cristo!
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Juca – Eu saí pra comprar leite pro menino. Os assaltantes me levaram tudo: a
carteira, o relógio... e me rasgaram... e ainda me deram um tiro no meio da
testa. Ai, meu Deus.
Irmã – Jesus Cristo. (Tempo) Meu filho, é realmente impossível que depois de
tudo isso você ainda esteja vivo. Você deve agradecer a Deus. Isso mostra
como Nosso Senhor é misericordioso e ama seus filhos. É um verdadeiro
milagre! (A freira toca uma campainha). Mas não se preocupe, meu filho, Deus
é grande. (Entra Dr. Santinho, de óculos, calvo, vestido com um clássico pijama
listrado por baixo do guarda-pó, com um estetoscópio no pescoço).
Irmã – Veja só este caso, Dr. Santinho! Ele saiu para comprar leite para o filho.
Pobre criança! Alguns assaltantes levaram tudo: a carteira, o relógio, o carro...
Juca – O carro não.
Irmã – Ai graças a Deus, senão o prejuízo ia ser maior.
Juca – Eu disse que carro não.
Irmã – Mas o senhor não disse que eles tinham levado tudo?
Juca – Mas era tudo que eu tinha.
Irmã – Eu entendi, meu filho.
Juca – Eu não tenho carro, irmã. Nunca tive. Eu não sei nem dirigir.
Irmã – E o senhor estava andando a pé numa hora dessas? Não sabe que é
perigoso?
Juca – Ainda era cedo, irmã. Fui comprar leite e pão pro menino.
Irmã – Eu não sei onde vamos parar com tanta violência. Como se não
bastasse roubar, ainda atentaram contra sua vida. Meu Jesus misericordioso.
Abriram-lhe o abdome e lhe deram um tiro na testa. Veja, doutor, bem no meio
da testa. O senhor não acha que é um verdadeiro milagre este homem estar
vivo? Quantas pessoas por muito menos perdem a vida deixando viúvas e
filhos pequenos, desamparados. O senhor tem que agradecer a Deus pelo
milagre, meu bom homem.
Dr. Santinho – (Em tom profissional). A senhora tem razão, irmã. O caso é
muito grave. Ele continua perdendo muito sangue. É um verdadeiro milagre
que não tenho morrido. Precisa urgentemente ir à mesa cirúrgica.
Irmã – Muita obrigada doutor. Desculpe chamá-lo a essa hora. Já passa de
uma hora. Deus lhe pague.
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Dr. Santinho – Não seja por isso, irmã. Estamos aqui para servir a todos que
necessitam do nosso conhecimento. (Sai)
Irmã – Seu caso é grave, meu filho. Se o Dr. Santinho disse que é grave, é
porque é. Ele é o melhor cirurgião desta cidade.
Juca – É ele quem vai me atender?
Irmã – Oh, não meu filho. Fiquei tão afobada pelo milagre que me esqueci de
lhe dizer. A Santa Casa não tem serviço de pronto socorro.
Juca – Não?
Irmã – Não. Por isso não vamos poder atendê-lo.
Irmã – Mas porque veio aqui?
Juca – A moça do hospital São Judas Tadeu me disse que eu não podia ser
atendido lá porque não tinha comigo o cartão da Previdência, aí ela me
mandou vir aqui.
Irmã – Vagabunda! Estão cansados de saber que aqui não temos pronto
socorro. Perua, sem vergonha. Só porque estava sem o cartão ela não atendeu
o senhor? Deus me perdoe, mas estas coisas me causam profunda revolta.
Espere aqui, meu filho, já volto. (Sai. Juca aproveita para catar pedaços do
cérebro pelo chão e arrumar as vísceras. A irmã volta com um vidro e uma
pinça).
Irmã – Onde se viu, meu filho, ficar perdendo os miolos aonde passa e
ninguém fazer nada? Veja: vou colocá-los neste vidro. Depois a gente fecha e
os pedaços ficam em segurança. Você não vai precisar ficar com esta mão na
testa, que até causa má impressão. Pronto! Leva assim. Vá ao Hospital do
SUS que eles atendem qualquer um.
Juca – Muito obrigado, irmã. Depois eu venho devolver o vidro pra senhora.
Irmã – Não precisa agradecer. E pode ficar tranqüilo, meu filho. É só
amanhecer e telefono ao hospital São Judas Tadeu para me queixar da
recepcionista. Ande logo que seu caso é grave. Você viu o que o Dr. Santinho
disse. Deus o acompanhe.
CENA 5 – HOSPITAL DO SUS.
(O cenário da Santa Casa sai da mesma maneira que os outros. Juca caminha
para o Hospital do Sus, que aparece no palco da mesma forma que os
anteriores. Alguns doentes esperam para serem atendidos, uns sentados no
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chão gemendo, outros encostados como podem. No atendimento, uma mulher
de idade indefinida, com um crachá, preenche as fichas. Juca se encosta-se ao
balcão).
Mulher – O senhor que fazer o favor de entrar na fila?
Juca – Preciso de um médico urgente. Fui assaltado... Levei um tiro e uma
facada. Estou me sentindo mal. O meu caso é grave,
Mulher – Aqui todos os casos são graves. Ou o senhor pensa que as pessoas
vêm aqui porque não tem onde ir? (Todos da fila balançam a cabeça
afirmativamente). Não é porque este hospital pertence ao estado que qualquer
um faz o que bem entende. Onde não há ordem não há eficiência, como diz
nosso secretário da saúde. (Juca vai se arrastando para o último lugar da fila).
Lidar com gente ignorante é a pior coisa que existe. Mas como diz o secretário
da saúde, a gente precisa ter paciência para atender bem a todo mundo.
(Todos da fila balançam a cabeça afirmativamente. Música. Todos cantam e
dançam).
Não venha bagunçar o meu coreto
Espere a sua vez no seu lugar
Se você chegou agora, fique na sua, ou vai pra rua
Não crie problemas, nem provoque confusão
As coisas por aqui andavam muito bem
Mas, você chegou querendo botar banca, vê se te manca.
Não se preocupe, sua hora vai chegar,
Toda atenção do mundo eu vou lhe dar.
E você poderá falar, reclamar e até chorar.
Mas uma coisa eu preciso lhe dizer
Abençoado o país em que nascemos
Feliz cada criança será quando crescer
Pois o progresso, a ordem e a decência
Nós deixaremos como herança,
Pois de um futuro melhor,
Nós somos a esperança.
E abra os olhos, meu amigo
Que a modernidade chegou
E você não se tocou
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Agora são outros tempos, mais modernos
E tudo vai bem de norte a sul, neste país
Viva nosso país idolatrado, salve, salve
A classe dominante é chocante
E se preocupa com nosso bem estar
Mas uma coisa eu preciso lhe dizer
Abençoado o país em que nascemos
Você não acredita? Porque será?
Você pensa que faço piada? Porque será?
Solte uma gargalhada e deixe tudo como está
Ah, ah, ah, ah.
(A coreografia terá um final apoteótico, terminando com Juca no balcão para
ser atendido).
Mulher – Está vendo? O senhor ficou na fila e não morreu. Trouxe a carteira da
Previdência?
Juca – Eu sai para comprar leite pro meu menino e fui assaltado... Levei um
tiro... e uma facada na barriga.
Mulher – Esse pessoal precisa aprender a responder o que a gente pergunta.
Não estou perguntando se o senhor foi assaltado, se levou um tiro ou dois, se
foi esfaqueado ou não. Eu só lhe perguntei se está com a carteira da
Previdência.
Juca – Tenho a carteira. Mas foi roubada.
Mulher – (Surpresa) Roubada? E o senhor não providenciou outra?
Juca – Ainda não. Como estou me sentindo mal, resolvi vir até aqui primeiro.
Mulher – Mas é um absurdo! Como é que o senhor anda por aí sem a carteira
da previdência. E se acontece um acidente, como é que fica? Uma pessoa sem
documentos não é um cidadão, é um marginal! É como diz o nosso secretário
da saúde: precisamos moralizar o atendimento hospitalar!
(Silêncio. A mulher pega uma ficha). Aqui nós só atendemos indigentes. Quem
é do Sus a ordem é não atender. Mas vou abrir uma exceção e colocar o
senhor pra ser atendido. Vou preencher a ficha, mas antes faça o favor de
desencostar do balcão. Não vê que está sujando tudo de sangue? É como diz
o nosso secretário da saúde, um órgão público tem que dar o exemplo de
limpeza. Nome, por favor.
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Juca – Juca Carneiro da Silva.
Mulher – (Soletrando e escrevendo) Ju-ca... Cor-dei-ro.
Juca – Cordeiro não senhora, Carneiro.
Mulher – Vou fazer uma fezinha amanhã no bicho. O senhor sabe que número
é o Carneiro?
Juca – Não senhora.
Mulher – Brincadeirinha, seu Juca. Isso é pra descontrair. Sexo? Mas-cu-li-no!
Idade?
Juca – Vou fazer 28.
Mulher – Vinte e sete. Endereço?
Juca – Invasão de Itapuã.
Mulher – Estado civil? Solteiro?
Juca – Sou ajuntado, sim senhora.
Mulher – Profissão?
Juca – Ajudante de pedreiro.
Mulher - Escolaridade?
Juca – Eu parei na segunda série, pra trabalhar.
Mulher – Nome do cônjuge? (Juca não entende) Nome de sua mulher?
Juca – É Francisca... Maria da Silva. Mas o povo chama ela de Chiquinha, de
Chica.
Mulher – Quantos filhos, seu Juca, e idade de cada um?
Juca – Bom... Tem a Silvaneide de 7, o Instaley Fitizgeraldi de 9, o Jon
Quenedy de 10 e Bento XVI que não completou ano ainda.
Mulher – Quanto o senhor ganha por mês?
Juca – Às vezes dá pra ganhar quase dois salário.
Mulher – Sua esposa trabalha?
Juca – Sim, senhora.
Mulher – Onde?
Juca - Em casa mesmo... Cuida dos menino, lava as roupa, minha mãe ajuda
ela.
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Mulher – Seu Juca eu perguntei se ela trabalha fora.
Juca – Ah, não senhor!
Mulher – Quantos cômodos tem a casa onde o senhor mora?
Juca – Essa que a gente mora agora até que é boa. Tem uma cozinha e um
quarto que cabe todo mundo. Pra fora tem a privada e o tanque que a gente
divide com mais dois vizinhos.
Mulher – É casa própria, cedida ou alugada?
Juca – A gente paga aluguel, sim senhora.
Mulher – É de alvenaria ou madeira?
Juca – Alvenaria.
Mulher – Quanto o senhor paga de aluguel?
Juca – Eu nem sei direito. É a mulher a que acerta tudo isso com o dono da
casa.
Mulher – Como?
Juca – Quando eu recebo meu salário eu entrego o salário na mão da Chica e
ela paga tudo o que tem que pagar e compra as coisa pra casa.
Mulher – Água encanada?
Juca - Sim, senhora.
Mulher – Esgoto ou fossa?
Juca – É fossa, sim senhora.
Mulher – Luz elétrica?
Juca – Sim, senhora.
Mulher – Quanto o senhor gasta por mês com alimentação?
Juca – O que sobra do aluguel só que sempre falta. A mulher gosta de comprar
um carninha de vez em quando, mas é difícil.
Mulher – Vestuário? (Tempo) Quanto o senhor gasta com roupas?
Juca – Não sei, não senhora. A mulher compra de uma amiga dela que traz do
Paraguai. Compra a prazo. A gente ta sempre devendo. Mas não é todo mês
que ela compra, não senhora.
Mulher – Com instrução? (Explica melhor). Quanto o senhor gasta com escola
para os filhos?
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Juca – Nada, não senhora.
Mulher – Com transporte?
Juca – Eu só tenho uma bicicleta usada. De vez em quando eu compro uma
peça pra ela, quando quebra. Sempre quebra... a bicicleta ta meia velha... Mas
não dá muito gasto, não senhora.
Mulher – Lazer? (Explica melhor) O senhor vai com sua esposa a
restaurantes? Boates? Teatro? Viagem de férias?
Juca – Não senhora, a mulher só vai na casa de umas conhecida dela, mas é
tudo perto de casa mesmo.
Mulher – O senhor pode aguardar um momento. Pode sentar ali naquele
banco.
(Juca senta. A mulher sai. Juca fica um largo tempo sozinho. Entra uma mulher
loira, roliça, com uma ficha na mão).
Alice – (Chamando) Senhor Juca Cordeiro da Silva. (Ele se apresenta).
Juca – É Carneiro. Carneiro da Silva.
Alice – Mas aqui está escrito Cordeiro.
Juca – Eu expliquei pra outra mulher que era Carneiro.
Alice – Vamos corrigir para não haver equívocos depois. (Corrige). Car-nei-ro.
Da próxima vez o senhor precisa dar o nome corretamente. O que o senhor
sente, Seu Juca?
Juca – Estou tentando segurar os miolos que teimam em sair pela testa...
(Mostra o buraco de bala na cabeça) E a tripas que não param na barriga.
(Alice sorri compreensiva).
Alice – Vamos aos poucos, seu Juca. Como diz o nosso secretário da saúde,
temos que ter método se quisermos fazer um bom atendimento. O senhor
sabe, aqui estamos construindo um hospital modelo. Chegaremos às causas
de seu mal, por ora apenas pergunto o que sente. Se sente alguma dor. O
senhor me compreende?
Juca – Sinto muita dor, doutora. Me dói a cabeça e a barriga.
Alice – Certo. Mas não me chame de doutora. Sou enfermeira. O doutor vai
atendê-lo depois. Somente preencho esta ficha. A que horas o senhor começou
a sentir dores?
Juca – Desde às 10 da noite.
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Alice – Bem, agora são 4 da madrugada. (Anota numa ficha). “Paciente informa
que a partir das 22 horas foi acometido por fortes dores na cabeça, à altura da
testa, na região mediana, cerca de dois centímetros acima da base do nariz e
de forte dor no abdome, que se irradia em faixa do hipocôndrio direito ao
esquerdo”. (Olha para ele). O senhor costuma sentir estas dores com
freqüência, seu Juca?
Juca – Não, senhora.
Alice – É a primeira vez?
Juca – Fui assaltado... levei um tiro na testa e uma facada na barriga.
Alice – O senhor costuma beber? (tempo). Quando isto aconteceu o senhor
tinha bebido ou estava sóbrio?
Juca – Não senhora.
Alice – Tinha bebido?
Juca – Não, senhora, eu não bebo.
Alice – Sóbrio?
Juca – Não bebo. E também não fumo, nem jogo.
Alice – Certo, seu Juca. O doutor já virá atendê-lo.
(Entra o clínico geral, com estetoscópio e outros aparatos para exame. Faz
sinal à enfermeira que lhe passa a ficha que lê com muito interesse. A
enfermeira sai para buscar a maca).
Clínico – O senhor está sentindo estas dores desde às 10 horas?
Juca – É, sim senhor. Foi a hora que fui assaltado. (Alice entra com a maca)
Clínico – Deite-se, Seu Juca.
(O clínico dá a ficha para Alice. Juca deita-se na maca. O clínico ausculta-o,
mede-lhe a pressão arterial. Entra outro médico trajando jeans, jaleco branco e
calçando sandálias. Alice mostra a ficha de Juca para o pediatra).
Clínico – O que você acha?
Pediatra – É, parece grave.
Clínico – Também sou desta opinião.
Pediatra – Mas, como foi?
Clínico – Ele diz que foi assaltado às 10 horas da noite. Levou um tiro na testa
e abriram-lhe o abdome com uma faca. Parece-me uma faca de cozinha.
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Pediatra – É, também acho. A faca devia estar muito amolada.
Clínico – O corte parece bastante profundo.
Pediatra – Mas ele não reagiu?
Clínico – Se reagir é pior. Outro dia, um conhecido do chefe da minha esposa,
foi assaltado em plena luz do dia. Disse que o ladrão veio de bicicleta,
encostou a faca na jugular do infeliz e se ele gritasse seria cortado ali mesmo.
E foi coisa rápida. Não deu tempo nem de reagir. Pergunta se tinha algum
policial por ali.
Alice – Tinha algum policial por ali?
Clínico – Imagine. É ruim de ter.
Pediatra – Isso foi na rua?
Clínico – Na calçada. O coitado levou o maior susto. Estava caminhando na
calçada. Em plena luz do dia. Esse negócio de dizer que só acontece à noite,
em lugares de pouco movimento... Já não é mais assim.
Pediatra – É, os bandidos estão atrevidos agora. Mas é o que sempre digo.
Não tem justiça nesse país. Enquanto não tiver justiça a coisa vai daqui pra
pior.
Clínico – E depois, também, é a questão da impunidade. A polícia prende hoje
e amanhã solta.
Pediatra – Vocês viram outro dia, no noticiário da televisão?
Alice – Deus me livre, nem televisão eu vejo mais.
Clínico – Eu também... Raramente dá pra ver alguma coisa. Geralmente eu
gosto de ver algum filme, quando estou à toa, em casa.
Alice – Eu já deixei de ver televisão por causa do plantão. Eu até gostava de
ver novela. Mas quando está no melhor da história era escalada para o plantão.
Clínico - É pra gente que trabalha em horários alternados, não dá para
acompanhar nada. Ainda mais novela, que demora mais de um ano pra
terminar.
Alice – Eu estava acompanhando aquela do médico que era conquistador.
Como é que chamava aquela novela? Oh, meu Deus... Eu estou ruim pra
guardar nomes...
Pediatra – Outro dia, no noticiário da meia noite, mostrou aquela mulher que
estava na parada de ônibus, com uma criança de oito meses e meio no colo.
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Alice – Ah... eu vi. Meu Deus, que horror. Como é que mostram uma coisa
dessas na televisão?
Clínico – Eu vi também. Ela recebeu uma coronhada tão forte no septo nasal
que a criança foi lançada a mais de três metros de distância.
Alice – Era dia claro, também.
Pediatra – É... devia ser umas cinco e meia. Tava claro. Além de fazerem o que
fizeram com a criança, os bandidos levaram tudo da pobre mulher. E o pior é
que ninguém faz nada.
Alice – É por isso que eu sou a favor da pena de morte. Não tem nada que ficar
sustentando vagabundo na cadeia.
Clínico – Eu também... Tem casos que só a pena de morte resolve. Sou
favorável para os crimes bárbaros, quando se mata um pai de família. Ou
então, seqüestro com morte, assalto seguido de morte, estupro de menores...
Alice – Deus que me perdoe, mas às vezes eu morro de medo de ficar neste
hospital sozinha, com noites de pouco movimento. Depois que aquela paciente
que saia do raio X foi estuprada, Deus me livre, ficar andando sozinha pelos
corredores.
Clínico – É mesmo. Eu soube do caso. Não sei quem estava comentando outro
dia...
Pediatra – É... eu soube também. A polícia andou uma semana por aqui,
interrogando todo mundo.
Clínico – Mesmo assim não conseguiram pegar o tarado.
Alice – Pegaram nada. E nem vão pegar nunca. Quando a polícia chegou, o
homem já tinha feito o serviço e desaparecido.
Clínico – Mas a mulher não conseguiu ver o rosto do bandido?
Alice – E como é que vê? Ele arrastou a coitada prum canto escuro. Ela estava
com uma crise brava de cálculo renal. A pobrezinha não tinha nem como gritar.
E se gritasse todo mundo pensava que era por causa da crise renal. Disse que
quase morreu asfixiada de tanto que ele apertava o pescoço dela. Encontraram
a infeliz desmaiada. Ela só se lembrava do cheiro que o desgraçado tinha.
Disse que o tarado cheirava tão forte, suava e fungava que nem um porco. Eu
acho que devia ser algum negão. Mas vai saber... tem tanto negão por aí.
Clínico – E até hoje a polícia não conseguiu nenhuma pista?
Alice – Polícia? Eles nunca estão onde as coisas acontecem.
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Pediatra – Se bem que as coisas agora estão melhorando. Eu vi a entrevista do
secretário da segurança. Ele disse que o governo está investindo uma fortuna
em novos equipamentos e abrindo concurso pra novos policiais.
Clínico – Mas já estava na hora mesmo. A violência, nesta cidade, está se
tornando cada dia um problema mais sério. E isso é de pouco tempo pra cá.
Alice – Muito sério. E não é de muito tempo, não. Sabe aquela rua ali atrás do
supermercado? Até pouco tempo dava pra passar sozinha de noite. Eu
mesmo...
Juca – (Geme) Aiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii (Todos voltam a atenção para Juca).
Clínico – Pois é seu Juca. O senhor chegou às 2 horas no hospital. Já era pra
ter sido atendido. O senhor não falou na portaria que seu caso era grave?
Juca – Doutor... Ai doutor... eu cheguei aqui e expliquei meu caso à moça a
portaria. Ela me disse que todos os casos que chegam aqui são graves, e que
eu esperasse a minha vez como todo mundo. Eu esperei.
Clínico – Bem, seu Juca. Eu não me meto na parte burocrática. Estou aqui para
atender, somente. (Olha para o pediatra). Acho que teremos que pedir ajuda.
Não é um caso para nós.
Pediatra – Quem está de plantão hoje, na cirurgia, é o Dr. Santinho. Vamos
chamá-lo.
Clínico – Alice, telefone à casa do Dr. Santinho. Diga-lhe que é um caso de
extrema urgência. Ele é o melhor cirurgião da cidade.
Alice – Sim, senhor. (Sai).
Clínico – É ele quem vai atendê-lo. O seu caso foge ás nossas especialidades.
Sou clínico geral e meu colega é pediatra.
(Os dois médicos saem. Juca fica sozinho novamente. Levanta a cabeça. Olha
de um lado e para outro e adormece. Ronca. Passa o tempo. Galos cantam, o
dia amanhece. O clínico entra).
Clínico – Mas, o senhor ainda está aqui? Pensei que já houvesse sido operado!
Onde está o dr. Santinho?
Juca – (Desperta assustado). Não sei doutor.
Clínico – Enfermeira... Enfermeira.
Alice – (Entrando) Chamou doutor?
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Clínico – Onde está o Dr. Santinho? Não é possível este pobre homem não ter
sido operado até agora.
Alice – Meu Deus, eu me esqueci. O senhor me desculpe, doutor. Vou ligar
imediatamente. (Saindo) Também, é tanta coisa na cabeça, que a gente acaba
esquecendo.
Juca – (Sentindo as dores voltarem por estar novamente acordado). Ai... Ai...
Ai... Dói muito, doutor. Não agüento mais.
Clínico – Tenha paciência, seu Juca. O senhor será atendido pelo melhor
cirurgião que nós temos. Tenha um pouco de paciência.
Alice – (Voltando). O dr Santinho não está em casa. A esposa disse que está
de plantão na Santa Casa.
Clínico – Hoje não é dia dele dar plantão aqui?
Alice – É, mas ele está lá. O senhor quer que eu ligue para a Santa Casa?
Clínico – Não... Não. O dr Santinho deve ter sido chamado lá em virtude de
algum caso urgente. Não vamos incomodá-lo... Olha aqui seu Juca, temos que
dar alguma solução ao seu caso. Como o senhor sabe, aqui é um hospital
modelo, gerido pelo Estado.
Alice – Como diz o nosso secretário de Saúde. “Se o hospital, por qualquer
razão, não puder resolver diretamente o problema do paciente, deve resolvê-lo,
indiretamente, encaminhando-o a outro local.”
Clínico – Como o senhor pode ver, deixar o paciente sem assistência, jamais!
Alice – Aqui o senhor não ficará ao léu, como ficou até agora.
Clínico – Vou encaminhá-lo imediatamente ao Sus para que o senhor
providencie outra carteira.
Alice – Como o caso do senhor é de extrema gravidade, isso não levará mais
de alguns minutos.
Clínico – E, ainda, hoje cedo, o senhor será atendido pelo dr. Santinho, que é o
melhor cirurgião da cidade, e terá seu caso resolvido.
Os dois – O que o senhor acha da idéia?
Juca – Ai... O senhor é quem sabe, doutor.
Clínico – Sim, faremos isso. Será melhor para o senhor. O dr. Balduíno, que é
um dos chefões do SUS, é meu amigo íntimo. Colega de turma, o senhor
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compreende. Pois vou escrever-lhe uma carta, pedindo-lhe que se empenhe no
seu caso.
Alice – Sendo protegido por ele, as coisas vão se tornar mais fáceis para o
senhor.
Clínico – Tenho certeza que ele não deixará de me atender. (Enquanto escreve
alguma coisa num bloco de pape). Alice, providencie a ambulância para
conduzir o seu Juca ao SUS. (Entrega o papel a Juca e sai).
Alice – O senhor está vendo o que é eficiência? É assim que todo órgão
público deveria funcionar!
(Sai. Juca olha para um lado e para outro. Adormece. Ronca. Entra o clínico
vestido com roupa de academia de ginástica).
Clínico – Mas não é possível! Quase 8 horas e o senhor ainda está aqui?
Enfermeira... Enfermeira.
Alice – Sim, doutor... doutor... Ah, desculpe-me doutor, mas esqueci de ver a
ambulância. Vou chamá-la imediatamente. (Sai apressada).
Clínico – Agora tenho certeza que seu caso será resolvido, seu Juca. Foi até
bom o senhor descansar mais um pouco, não foi?
Juca – Ai... doutor, não agüento mais tanta dor.
Alice – (Voltando). A ambulância não pode sair, doutor. O hospital não tem
dinheiro pra comprar gasolina e os fornecedores se recusam a vender,
enquanto o débito antigo não for quitado.
Clínico – Não é possível! Aposto que o secretário de Saúde não foi avisado
disto. Bem, isto é problema administrativo e eu não me intrometo. Estou aqui
para dar consultas. Obrigado, dona Alice. (Enquanto o clínico fala, a enfermeira
ajuda Juca descer da maca. Em seguida ela sai levando a maca. Juca mal
pode se manter nas pernas). Olha, seu Juca, se eu não estivesse saindo do
plantão e não estivesse indo para minha aula de aeróbica, eu mesmo faria
questão de levá-lo ao Sus. Mas, infelizmente, não posso. Por outro lado, o meu
colega já foi embora. Acho que o senhor pode ir a pé. São apenas 5
quarteirões. Até logo, seu Juca. Fique tranqüilo, e não se esqueça do vidro com
os pedaços do cérebro.
(Sai. Juca fica só por alguns instantes, depois inicia a caminhada, como das
vezes anteriores. Uma secretária bem vestida o atende).
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CENA 6 – AGÊNCIA DO SUS.
Secretária – Pois não?
Juca – Eu queria falar com o dr Balduíno.
Secretária – O senhor tem hora marcada?
Juca – Não, senhora, o meu caso é urgente.
Secretária – O senhor foi indicado por alguém?
Juca – Sim, pelo doutor... aqui está a carta dele. (entrega a carta)
Secretária – O dr Balduíno já está para chegar. O senhor aguarde um
momento. Pode esperar ali no corredor, por favor. (Juca sai de cena).
Balduíno – (Entrando) Bom dia!
Secretária – (Gentil. Bajuladora). Bom dia, doutor Balduíno!
Balduíno – O secretário da Saúde ligou?
Secretária – Não senhor!
Balduíno – Algum recado?
Secretária – Não senhor. Nada importante.
Balduíno – Então,o dia hoje será tranqüilo.
Secretária – Com certeza, doutor.
Balduíno – Transfira meus compromissos para amanhã. Preciso sair mais cedo
hoje. Minha esposa está trocando as cortinas de casa e faz questão que eu
ajude a escolher.
Secretária – Tenho certeza que o senhor fará uma boa escolha, senhor.
Balduíno – Pois eu já não tenho tanta certeza assim. Não confio muito no meu
senso de estética para a combinação de cores.
Secretária – Imagine, doutor. Tanto o senhor como sua esposa possuem um
excelente bom gosto aliado à simplicidade. Todos aqui comentam a decoração
de sua casa. O senhor se lembra daquele churrasco com o pessoal da agência,
na beira da piscina?
Balduíno – Ah, sim no meu aniversário. Não, mas aquela decoração já foi
mudada. Minha esposa gosta de mudar tudo com freqüência. Ela lê muito
aquelas revistas de decoração, inclusive está pensando em fazer um pequeno
jardim no banheiro. Ela me mostrou numa revista. Fica lindo. Eu fiquei
encantado. E depois é como se você trouxesse a natureza para dentro do
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banheiro. Já pensou, pela manhã, quando você se levanta para escovar os
dentes? Abre aporta do banheiro e se depara com aquela miniatura de floresta
tropical dentro de casa?
Secretária – É uma excelente maneira de se começar o dia, doutor Balduíno.
Não tenho dúvidas.
Balduíno – Avise o motorista para apanhar minha esposa em casa.
Juca – (De fora). Aiiiiiiiiiiiii... Não agüento mais.
Secretária – Ah! Temos um senhor aguardando aí fora com uma carta de
recomendação de um amigo seu, doutor. (Entrega a carta).
Baduíno – Pode mandar entrar.
Secretária – (Lendo o nome de Juca, na carta, que está nas mãos do doutor)
Pode entrar, seu Juca Cordeiro. (Juca entra e a secretária sai).
Juca – Carneiro.
Balduíno – (Admirado) Não, não, não. O que aconteceu?
Juca – É que fui assaltado, levei um tiro no meio da testa e me rasgaram a
barriga com uma faca. Me roubaram todos os documentos, o pouco dinheiro
que eu tinha e a carteira da Previdência. Por isso não pude ser atendido em
nenhum lugar.
Balduíno – Mas o senhor procurou um hospital?
Juca – O São Judas Tadeu, a Santa Casa e o Hospital do Estado.
Balduíno – É revoltante o que o senhor me diz, seu Juca Cordeiro.
Juca – Carneiro... Juca Carneiro.
Balduíno – São fatos como estes que estamos empenhados em acabar. Estes
acontecimentos só servem para desprestigiar a medicina brasileira. Olha, vou
lhe contar uma coisa: quando o Superintendente me convidou para ocupar o
cargo, sabe qual foi minha reação? Não sabe? Pois eu vou lhe dizer. Disse a
ele: “Sr. Superintendente, há muito o que mudar no sistema de saúde. Só
aceito se tiver o apoio de V.Sa. para realizar essas mudanças. De outra
maneira o cargo não me interessa. Continuarei com a minha clínica, onde
conto com excelente clientela”. E sabe o que o Superintendente respondeu?
(Juca balança a cabeça negativamente). Exatamente isso: “Convidei-o, Dr.
Balduíno, porque quero mudanças. Conheço suas críticas ao sistema de
saúde, e, em grande medida reputo-as justas. Quero que ponha no papel todos
os senões ao Sistema Previdenciário e nos envie. Farei com que chegue até o
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ministro”. Como vê, não entrei de gaiato, mas por cima, com o apoio total do
Superintendente.
(Toca uma sineta. Entra a secretária com grandes arquivos na mão).
Sabe o que é isto? Em nove meses fiz o que o Superintendente me pediu,
passei tudo para o papel. Consultei estudiosos da questão previdenciária,
entrevistei-me com médicos, com autoridades. Analisei judiciosamente todo
esse material e o resultado ai está. Como o superintendente queria. Foi uma
crítica severa, meu amigo. Pensei até que perderia o cargo. Mas, se assim
fosse sairia de cabeça erguida. Mas, aconteceu o contrário. O superintendente
não só aprovou o documento, como encaminhou-o ao ministro.Eu sei que o
ministro já leu – algumas partes, é claro – e disse que é um documento para
ser levado a sério. As mudanças virão, meu amigo. O senhor sabe, este é um
país onde os males são seculares, vêm desde a época do descobrimento. Não
podemos resolver questões tão arraigadas do dia para a noite. Temos que ter
persistência. E isso não nos falta. Veja como a persistência e a determinação
são importantes. Há apenas três anos ocupo este cargo e os resultados já
começam a aparecer, isto porque em momento algum desanimei diante dos
obstáculos. Não sei se o senhor teve a oportunidade de usar algum sanitário da
sala de espera dos pacientes desta agência. Se usou, deve ter notado que
nenhum, isto mesmo, nenhum sanitário tem assento no vaso. O senhor admite
um desleixo desses? Pois desde que tomei posse venho lutando para que os
assentos sejam adquiridos. O senhor não imagina quantos telefonemas, cartas,
telegramas, telex, viagens à capital, para conseguirmos isto! E o
superintendente sempre me apoiando. Finalmente saiu a resolução abrindo
edital para a tomada de preço para a compra dos assentos, na última quintafeira. Isto significa que dentro de 4 ou 5 meses já teremos resolvido este
problema. (A secretária entra com um assento de vaso sanitário simples). Veja,
aqui temos uma amostra dos assentos que serão colocados em todas as
agências. Não é uma coisa de luxo, mas também, não é uma coisa de má
qualidade (A secretária sai com o assento). O senhor me desculpe se lhe digo
tudo isto, mas é importante que saiba que passamos por profundas mudanças
no setor da saúde.
Juca – Ai... doutor, não agüento mais essa dor.
Balduíno – Sim, analisando o seu caso, é inconcebível que tenham lhe negado
atendimento, mormente num caso de emergência como o seu. O senhor
poderia até ter morrido! O hospital São Judas Tadeu e a Santa Casa poderiam
até sofrer um processo por omissão de socorro, mas deixemos isso de lado,
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agora. O importante é que o seu caso seja resolvido. (Entra a secretária com
um bloco de papel na mão). Olha, seu Juca, vou dar-lhe uma recomendação
para que a nova carteira fique pronta o quanto antes e o senhor possa ser
atendido com urgência. (Escreve num papel, destaca e entrega a Juca). É
melhor a ambulância levar o senhor até a sua casa. Se a imprensa vê-lo nesse
estado.... Vão escrever cobras e lagartos sobre o sistema de saúde. Mentiras
como sempre. O senhor vai até sua casa, toma um banho, troca de roupa e
volta. E lembre-se, estamos aqui para mudar. Qualquer problema não se
acanhe em me procurar. (Dr. Balduíno sai. Juca fica apalermado como quando
entrou. A secretária volta).
Secretária – Seu Juca, a ambulância espera pelo senhor no pátio.
Juca – Sim, senhora. (Juca sai. Talvez black-out rápido)
CENA 7 – CASA DE JUCA.
Volta ao lar
Toda vez que eu chego em casa
Ela está à minha espera
Com sorriso bem aberto
Vem correndo até o portão
Com seu jeito carinhoso
Que me alegra o coração.
Toda vez que eu entro em casa
As crianças tão durmindo
A casa ta arrumada
Ta com cheiro de limpeza
O banho ta preparado
E a comida ta na mesa.
Toda vez que fico em casa
Eu faço uma oração
Obrigado, meu senhor
Por me dar tanta alegria
Por poder voltar pra casa
Pro aconchego da família.
(Cena da casa de Juca. Estão a mulher, com a criança mais nova no colo, e a
mãe de Juca. Ele entra provocando espanto nas duas).
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Chica – Onde você andou até agora, homem de Deus?
Mãe – Calma, Francisca. Meu Pai Eterno.
Chica – Eu não falei que ele só ia chegar depois do almoço? Espia só.
Mãe – Calma, calma. Meu menino!
Chica – E cadê a porra do leite? Cadê? Se esperasse por ele a gente morria de
fome. Já sei. Encheu a cara, se meteu em briga e foi dormir na casa de alguma
piranha.
Mãe – Vem, meu filho. Explica o que aconteceu pra sua mãe.
Chica – É pra mim que ele tem que explicar, eu que sou a mulher dele.
Mãe – Chica, vamos saber o que houve primeiro.
Chica – Além de tudo ainda está faltando no serviço hoje.
Mãe – E você acha que ele ia pode trabalha assim?
Chica – (Irritada) Eu me entendo com ele, dona Matilde.
Mãe – Meu filho nunca foi de vagabundagem, alguma coisa aconteceu com ele.
Chica – A senhora sabe que homem nenhum presta. Homem é tudo igual.
Mãe – Juca é um exemplo de pai de família, trabalhador e cumpridor dos
dever. De casa pro trabalho e do trabalho pra casa. Você num devia tratar
dessa maneira um homem como esse que nunca teve nenhum vício.
Chica – E a senhora ainda queria que tivesse vício? Com essa merda de
salário, ia dar pra sustentar algum vício?
Mãe – Ele num tem culpa se a situação está preta e os patrão num paga o
salário merecido.
Chica – Eu fico aqui, cozinhando, limpando casa, lavando roupa, cuidando de
criança: ele sai de casa pra comprar leite e pão, e me chega numa hora dessa,
com o sol já alto. A vizinhança toda viu ele chegar. Só o diabo sabe o que vão
falar. Eu procuro evitar conversa de vizinha. Faço de um tudo pra não cair na
boca desse povo. Aqui só mora mulher de bêbado e vagabundo.
Mãe – (Enérgica). Ce qué pará de falá?
Chica – Eu ainda nem comecei. E a senhora pára de se intrometer na minha
vida.
Mãe – Eu to querendo ajudar. Deixa de ser malcriada. Deixa o teu marido
explicar o que aconteceu. Fala filho. O que aconteceu com você?
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Juca – Fui assaltado. Levei uma facada na barriga e um tiro na testa.
Chica – E porque não procurou um hospital?
Mãe – Isso mesmo, meu filho, porque não procurou um hospital? Assim é que
não pode ficar.
Juca – E vocês acham que eu estava onde até agora?
Mãe – Explica, meu filho. Explica.
Juca – Eu tava no hospital.
Chica – Mas, nesse estado, você devia ter procurado o pronto-socorro.
Juca – Eu também fui no pronto-socorro.
Chica – Ainda bem.
Juca – Ainda bem, não. Ninguém quis me atender.
Chica – Mas, claro que não. Olha o estado miserável que você está. Parece
um indigente.
Juca – Eles me roubaram tudo.
Mãe – Eles quem, meu filho? O pessoal do hospital?
Juca – Que pessoal do hospital?
Mãe – Ah, sim, do pronto-socorro.
Juca – Que pronto-socorro! Os bandidos, os assaltantes. Me levaram a carteira
da Previdência e o relógio.
Chica – Tudo? O dinheiro do leite também?
Juca – Tudo. Tudo. Quase me levaram a vida, também.
Mãe – Meu filho, seu caso parece grave.
Juca – Eu já ouvi isso a noite inteira. Que o meu caso é grave.
Chica – Olha só a camisa dele. Quero ver pra tirar essas mancha de sangue.
Juca – Uma freira me arrumou esse vidro pra não perder os pedaço de miolo.
Mãe – Dá aqui o vidro, meu filho, pra não quebrar.
Chica – Eu tomo de conta. (Toma o vidro da mão da mãe). Se a senhora deixar
cair no chão lá se vai os miolo do meu marido.
Mãe – Pode deixar que eu sei cuidar do meu filho. Eu sempre cuidei dele
sozinha. (Toma o vidro da mão de Chica. Uma puxa o vidro para um lado, a
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outra puxa para o outro, o vidro escapa das mãos das duas, cai no chão
abrindo a tampa e espalhando o cérebro de Juca pelo chão).
Juca – Só me faltava essa agora. Depois de tudo o que passei só me faltava
perder os miolo na minha própria casa. Eu só vim aqui pra mudar de roupa e
voltar pra agência do INSS pra tirar uma carteira nova. Tenho uma
recomendação do chefão lá do INSS pra carteira sair mais rápido e eu poder
ser atendido com urgência.
(A mãe e Chica correm de um lado para outro. Pegam uma colher e um prato e
juntam o cérebro espalhado pelo chão, colocando-o cuidadosamente no prato).
Chica – Não precisa ficar nervoso. Você também fica nervoso à toa, nunca vi.
Tá tudo arrumado aqui no prato. Não vai cair mais. Ta aqui ó...
Mãe – Eu vou preparar um banho, e você vai trocar de roupa. Vê se melhora
pelo menos a aparência.
(A mulher sai correndo e entra com uma bacia. A mãe sai e volta com uma
vasilha de água. Ambas tiram com cuidado as roupas de Juca e dão-lhe banho.
A mulher costura o talho da barriga com uma agulha de crochê e barbante. A
mãe coloca os pedaços do cérebro dentro do buraco da testa. Enquanto
trabalham, conversam).
Chica – Olha só que confusão que estão essas tripas. Tem muitas que não se
aproveitam mais.
Mãe – Os miolo ta quase derretendo. Se meu menino não chega a tempo não
ia ter miolo na cabeça. Você falou que levou um tiro? (Procura). Só tem o
buraco aqui. Cadê a bala? Só se saiu pro outro lado.
Chica – Não vai ficar muito bem costurado, não. Eu não tenho prática de
costurar barriga. Essa é a primeira. O que importa é que as tripa estão
arrumada lá dentro.
Mãe – Os médico dão um jeito melhor lá no hospital, depois. Isso é pra não
ficar escapando pedaço de tripa por aí. Aqui ta pronto. Pelo menos, miolo não
cai mais.
Chica – Aqui também ta pronto. Pelo menos não fica com aquela aparência
horrível. Toma, veste essa calça limpa.
Mãe – Ta aqui a camisa de sair. Tem que ir bem vestido lá pro médico. Senão
é capaz de pensar que é marginal. (Juca veste a roupa que lhe dão).
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Chica – Hoje ele não vai ver médico nenhum. Hoje é só pra fazer o cartão novo
da Previdência.
Mãe – Mas, o cartão não fica pronto hoje.
Chica – Eu não falei que fica pronto. Eu falei que hoje é dia de tirar o cartão. Só
isso.
Mãe – Depois que tirar o cartão é que vai no hospital, meu filho?
Chica – É dona Matilde. Tem que ficar perguntando a mesma coisa toda hora.
A senhora não ouviu ele dizer que o chefão lá do INSS arranjou pra tirar o
cartão, pra ele ser atendido no hospital, com urgência?
Mãe – Já entendi. Já entendi. (Luz)
CENA 8 – HOSPITAL DO SUS
(Uma semana depois, no hospital do Estado. Juca entra e entrega o cartão
novo da Previdência para a recepcionista).
Mulher – Ah... Já sei. O senhor esteve aqui na semana passada. É o paciente
que foi assaltado e tem que ser atendido com urgência. Como é que o senhor
está passando?
Chica – A senhora se lembra dele?
Mulher – Claro. Vejamos o que posso fazer pelo senhor.
Mãe – O médico falou que o caso dele é grave e que tem que ser atendido com
urgência.
Mulher – Eu sei, claro que eu me lembro que seu caso é grave, meu senhor. E
o senhor será atendido, pode ter certeza. Como diz o nosso secretário de
saúde. “A coisa mais importante no sistema de saúde é o pronto atendimento
do segurado, que é quem contribui para que ele exista”.
Mulher – O Dr. Balduíno deu uma recomendação e a carteira da Previdência
ficou pronta em cinco dias.
Mulher – (Sempre sorridente e solícita). Cinco dias? Agora o senhor já pode
marcar consulta como todo segurado, seu Juca. (Examina o livro de consultas)
Bem, seu Juca, o Dr. Santinho está com um número de consultas completo
para os próximos dias, mas consegui encaixar o senhor para daqui duas
semanas, às 10 horas. Está marcado aqui na carteira. Não vai faltar, senão só
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daqui 60 dias. Vou anotar na ficha do Dr. Santinho. (Escrevendo). Ju-ca Cordei-ro...
Juca – (Repentinamente é tomado por uma fúria inexplicável. Agarra a mulher
pelo colarinho até enforcá-la. A recepcionista é morta entre as mãos de Juca.
Ouve-se suavemente os primeiros acordes do hino nacional. Luz em
resistência. Juca termina com a alma lavada) Cordeiro, não! Car-nei-ro. Eu já
disse mil vezes: Car-nei-ro. Eu não sou cordeiro. O meu nome é Juca Car-neiro. Juca Carneiro da Silva.
FIM
Esta peça foi montada pelo grupo Catar-se, em Brasília, estreando em 24 de
outubro de 2008 sendo composto pelo seguinte elenco:
Márcia Marmori
Cássia Gentile
Yuri Paz
Henrique Lúcio
Giulia Grandis
Luis Otávio (Catitas)
Paula Coury
Rafael Franco
Rafael Haui
Terra Thais
Músicos:
Cássio Aguiar
Paula Ferrari
Kamai Freire
Pedro Senna
Iluminação:
Júlio Pavolak
Direção:
Nielson Menão
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Nielson Menão – NA COVA DOS LEÕES