UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ CENTRO DE EDUCAÇÃO Ver a educação debates dissertação Belém – Pará 1998 Título e texto amparados pela Lei N° 5988, de 14 de dezembro de 1973 ISSN 1413-1498 Copyright@ dos autores - 1998 Edição de texto: Bernadete Figueiredo Revisão de texto: Bernadete Figueiredo Projeto gráfico: Eunice Santos Capa: Alberto Damasceno (concepção) Paulo Martins (criação e arte) Composição eletrônica: Andréa Miranda Sandro Galvão Arte final: Ivanise Oliveira de Brito Montagem: Carlos Alexandre Santos da Silva Periodicidade: Semestral Correspondência: Tiragem: 500 exemplares Universidade Federal do Pará Centro de Educação Campus Universitário - Setor Profissional CEP: 66075-110 - Belém/P A Fax: (091) 211-1648 - Fone: (091) 211-1705 CATALOGAÇÃO: Biblioteca do Centro de Educação Ver a educação. V. 4, n.l (jan./jun. 1998). - Belém: UFPA/ Centro de Educação, 1998 - Semestral. 1. Educação - Periódicos CDD. 370.5 Depósito legal na Biblioteca Nacional, conforme Decreto N° 1825, de 20 de dezembro de 1907. SUMÁRIO Anotações acerca do tempo, medida da existência Humberto CUNHA 1-30 A Universidade na Região Amazônica: um estudo sobre a interiorização da UFPA Arlete Maria Monte de CAMARGO 31-60 Magia e Ciência: conflito de saberes e razão iluminista na caça às bruxas Heliana Maria Cunha AGUIAR 61-72 Relação entre o texto "Schopenhauer como Educador", de Fiedricll Nietzsche, e "Sobre Filosofia Universitária", de Artflur Schopenhauer 73-104 Paulo BENJAMIM A leitura e a produção escrita como práticas discursivas - notas sobre o cotidiano escolar 105-119 Sandoval SANTOS Ver a educação, Belém, v. 4, n. 1, p.1-119, jan./jun., 1998 Anotações Acerca do Tempo, Medida da Existência Humberto Cunha* Considerações Preliminares F alar em "Ponte dos Tempos" e em "Cotidiano" remete à categoria tempo, no sentido apontado por Tannús (1986) - tempo secularizado - e aprofundado por Stockinger e Fenzil (1991). Espaço e tempo são figurações, cuja significação efetiva definir-se-á no seu campo de aplicação cósmico/psicológico, maior/menor, externo-sideral/internoreflexivo etc... Entendo o ser como energia-matéria em constante transformação, em virtude da dinamicidade do ser, apto pela compreensão de que o método dialético-crítico é o que nos pode fornecer maior amplitude de conhecimento e melhor instrumental de análise. Os paradigmas da ciência já foram mais estanques, supondo uma realidade estática, com circulação de elementos somente no interior de estruturas perenes ad et ab aeternum. O mundo não é um conjunto de sistemas fechados em equilíbrio. O estado de equilíbrio é uma exceção, o universo é composto basicamente por sistemas abertos não-equilibrados. Esse é o paradigma possível para a ciência do século XXI: tudo é mudança, toda certeza é provisória. O humano é parcela do ser. Existe como dimensão da natureza que se diferencia e se organiza em sociedade, com pensamento e linguagem. Produz e acumula conhecimento * Agrônomo. Mestre em Educação Brasileira. Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.1-30, jan./jun., 1998 CUNHA, Humberto 2 (SOUZA, 1986). Cultiva as idéias que cria e falas perpassar os tempos. A ação para a transmissão e recriação de idéias, hábitos, atitudes, valores, dá-se por uma teia de relações sociais difusas e outras específicas que constituem a atividade genericamente denominada Educação. Quando são criadas, as formas de pensar costumam responder a problemas e angústias do momento histórico vivido pela sociedade e pelos indivíduos, grupos e classes que a compõem. Acumulam-se na memória da sociedade as formas de pensar dos momentos da história (DOURADO, [199-]). A Educação é, em grande parte, responsável por isto (PONCE, 1992). O pensamento torna-se plural, mas, nem todos os pensamentos respondem à atualidade dos problemas vividos pela sociedade. O conflito é estabelecido entre as proposições de mudança e de manutenção de status quo ou até de regresso a formas de relações sociais já experienciadas pelo caminhar da história. Esse conflito reflete-se nas formulações e nas práticas educativos, criando resistências que ampliam ou restringem o âmbito do debate. As falas do fazer Educação propõem a reprodução simples do conhecimento, sua reprodução crítica ou produção de conhecimento novo. Muitas iniciativas de reformulação do imaginário popular têm-se feito em nosso país. A experiência da FASE Tocantins é uma delas. O meu projeto de pesquisa se propõe a resgatar elementos para uma história desse trabalho. Em especial pretendo recuperar a metodologia construída no período 1976/1979. As possibilidades de contribuição da problematização do cotidiano para a transformação das lideranças e dos técnicos educacionais envolvidos reterão o principal da minha atenção. Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.1-30, jan./jun., 1998 Anotações Acerca do Tempo, Medida da Existência 3 Anotações acerca do tempo, medida da existência Uma canção latino-americana relata o caminhar de Amanda para encontrar-se com Manuel. Um encontro de cinco minutos. En cinco minutos la vida es eterna, é a mensagem. É um tempo psicológico, um tempo criado e movido pelos sentimentos. O estudo do tempo vem preocupando autores nos diversos ramos do conhecimento. Stockinger e Fenzl (1991) interrogam o real acerca da questão do futuro. Haverá um futuro? Como será ele? Os autores repensam o espaço e o tempo. A velha questão metafísica de onde viemos, para onde vamos é retrabalhada dialeticamente: pensar de onde, para onde, implica movimento. Deslocamento de lugar no tempo. Espaço-tempo é a dimensão do drama existencial da humanidade. A energia-matéria, ser em permanente movimento e transformação, existe sem subjetividade até quando a forma humana de vida com seu cérebro pensante se consubstancia sobre a Terra. O humano se estabelece como consciência do ser. Os peculiares produtos da atividade neuromuscular humana sentimentos e idéias - possibilitam a racional idade, característica da subjetividade distintiva do fazer humano em relação às demais formas de existência. O fazer do sujeito é um fazer sentido e pensado. Essa singularidade permite ao humano estabelecer correlação entre as repetições e as inovações, homogeneizando conceitualmente o que, na objetividade, é diverso. A consciência do ser cria categorias. Surge o "não ser", significando tanto o "ser-que-foi" quanto o "ser-que-será". O ser é na subjetividade e fora dela. O ser foi e será na Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.1-30, jan./jun., 1998 CUNHA, Humberto 4 subjetividade e somente nela. A energia-matéria universal existe em constante transformação, segundo ciclos não homogêneos. A cada ciclo, em qualquer ponto em que estabeleçamos um corte, a configuração da energia-matéria em qualidade e quantidade já não será a mesma da que pode ser em outro corte imediatamente anterior ou posterior. Não há qualquer teleologia nessa sucessão cíclica. O "serque-foi" já não é, o "ser-que-será" não é ainda, e poderá nunca ser. As marcas deixadas pelo primeiro e os códigos da energiamatéria que podem permitir o surgimento do segundo participam, na objetividade, do "ser-que-é". Na visão Heraclítica, o ser é, o não-ser não é, o devenir é impossibilidade. O humano, sujeito observador-participante do fenômeno, pode seqüenciar os acontecimentos e, no limite do seu alcance como indivíduo e como espécie, pode remeter-se aos momentos anteriores e pensar alterações futuras nesta realidade. A subjetividade cria um "não-ser" e só nela o "não-ser" pode ter existência distinta do ser, enquanto memória do foi e projeto do será. A consciência do ser, ao seqüenciar um foi-é-será, estabelece uma projeção da subjetividade sobre a materialidade de onde a primeira emerge. Nascem o tempo e o espaço. O ser que era natureza (Kesselring, [199-7]) passa a existir como História e Geografia. É nesse sentido que acatamos a afirmação de Stockinger e Fenzl (1991), de que espaço-tempo é uma dimensão única, designadora dos parâmetros da nossa existência,. o "lugar" e o "momento" em que a "a coisa está". O humano cria tempo e espaço, primeiro pela simples nomeação dos ciclos siderais, tais como lhe aparecem do seu lugar de intérprete. O tempo é a categorização dos ciclos mais evidentes da natureza o dia/noite, a duração de atividades para suprir necessidades fisiológicas (busca de alimentos, descanso etc.), num território limitado. O tempo é cronológico, apenas. "O Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.1-30, jan./jun., 1998 Anotações Acerca do Tempo, Medida da Existência 5 espaço tempo estava delimitado pela experiência vivida" (STOCKINGER e FENZL, 1991, p. 34). O mito grego do nascimento de Crono é sugestivo desta antecedência da percepção do tempo externo-sideral em relação ao interno-psicológico. Crono nasce da união entre o Céu e a Terra. No início existe Caos do qual nasce Géia, a Terra, que, por partenogênese, gera Urano, o Céu, que fecunda a própria mãe. Nasce Crono, o Tempo (BRANDÃO, 1993, p. 135). Abandonemos para os efeitos deste estudo, a genealogia dos deuses e suas lutas. Interessa-me fixar que, para os gregos, Crono é o único filho do Céu que não aceita a imposição do pai, pela qual todos os filhos devem voltar para o útero materno. Isto é, o Tempo resiste à corrupção e não pode ser consumido pelos vermes da Terra. Crono se insurge, assassina Urano e assume o poder do pai deposto. O tempo é imutável e reina absoluto. Em outro momento da história, acontece a descoberta humana do tempo psicológico, que não depende diretamente de movimentos siderais, mas, tem dimensão subjetiva, marcada por sentimentos do indivíduo, como angústia, prazer, tristeza, desejo, interesse, alegria, desinteresse, euforia e outros sentimentos, quando de um dado acontecimento. Uma ciência própria, a Psicologia, é criada para estudar os fenômenos, tais como a tensão e o stress, produzidos pela submissão do tempo psicológico ao tempo cronológico, em função das rotinas diárias que devemos cumprir. O tempo é relacional. A ruptura do tempo com os grilhões da objetividade é condição para que a subjetividade possa pensar a própria libertação. Mais recentemente, a cronobiologia estuda a ritmicidade dos organismos biológicos. São seus princípios básicos: • os sistemas biológicos estão organizados no espaçotempo; Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.1-30, jan./jun., 1998 CUNHA, Humberto 6 • os sistemas se adaptam e interagem ao longo do processo evolutivo com dimensão espacial do ambiente. Portanto, os co-sistemas do ambiente podem regular o período e a ritmicidade de um determinado sistema, sendo chamados determinadores de tempo e, assim, muitos ritmos, com diversas periodicidades, convivem em cada organismo. O seu padrão espaço-temporal será a resultante da superposição desses ritmos. A energia-matéria existe numa série continuada de ciclos e o humano observa tanto as micro quanto as macro-dimensões, segundo uma escala humana de espaço-tempo. Quando novos processos são observados, redimensiona a escala, de modo a integrá-los. O humano codifica as informações, como símbolos, numa idéia e a institui como parâmetro para os momentos seguintes da vida. A existência humana não se constitui apenas de repetições. O novo acontece, novas qualidades aparecem e a categoria inversão é útil para compreendê-lo, correlacionando alguns pares ordenados, como idealização/materialização, nascimento/ morte, supernovas/buracos negros. Stockinger e Fenzl (1991) comentam a "inversão de espaço" e a "inversão de tempo", focalizando sua atenção nesta última, comentando o tempo negativo e a sua importância para a compreensão de fenômenos que não podem ser apreendidos pela idéia de tempo linear, cronologicamente positivo. A expectativa, a previsão e a esperança são dimensões da existência humana e sua ocorrência constitui uma inversão de tempo, um tempo negativo, aquele que decorre entre a idéia de um fato e a sua materialização. É um "anti-tempo", no qual os processos continuam a ocorrer invertendo-se a seqüência entre Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.1-30, jan./jun., 1998 Anotações Acerca do Tempo, Medida da Existência 7 causas e efeitos. O tempo negativo é vivido pelo humano numa dimensão "simbólica". O universo visível talvez seja dez por cento do universo total (SUPERINTERESSANTE, 1994). Da parcela que se conhece, pode-se afirmar que a energia-matéria existe em permanente transformação, numa série continuada de ciclos, em que novas estruturas podem aparecer. A transformação é permanente: "desestruturação e reestruturação fazem parte do mesmo processo de emergência de novas qualidades" (STOCKINGER e FENZL, 1991, p.31). Alguém pode estabelecer início e fim em pontos da série, observando um determinado ciclo, enquanto outro poderá convencionar pontos distintos, observando o outro ciclo. Energia surge, então, como uma categoria necessária à compreensão da existência. Entropia e anatropia constituem processo de troca de energia entre movimentos. No movimento que nasce está, em semente, o movimento que se foi, a onda "Psi" do movimento que "morre" transmitindo ao campo "Sigma" do movimento que "nasce" a energia de informação que contém em código o próprio movimento decumbente. Dessa relação, extrai-se a noção de ponte de tempo, muito útil ao conhecimento desde Einstein e sua teoria da relatividade e, mais recentemente, para aqueles que lidam com a relatividade complexa. O humano vê sua existência como algo mais que a sobrevivência fisiológica. A possibilidade de conhecer o integra ao ser, estabelece o desejo de fruição. O humano quer dispor de bens e de saberes. Fruir material e espiritualmente. A sensação de fruição é correlacionada ao tempo, cronológico e psicológico. Enquanto espécie, o humano sente o acúmulo de pertences e de conhecimento na história como desenvolvimento. Produzidos cortes em momentos anteriores e posteriores da vida humana, a expectativa é de maior qualidade e quantidade nos Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.1-30, jan./jun., 1998 CUNHA, Humberto 8 momentos posteriores, em relação aos momentos anteriores. Este é o fundamento da luta política. Semelhantemente, na vida do indivíduo, o sentimento de recompensa apresentar-se-á quando o decorrer dos anos colocar à sua disposição e das pessoas da sua convivência íntima mais e melhores bens culturais e materiais. Este é o fundamento da luta sindical. Como consciência do ser, o humano zela pelo ser. A aprimoração do processo de conhecimento lhe dá elementos de compreensão acumulados ou modificados no referencial do tempo. Este é o fundamento da luta ecológica. Parece profícuo pensar a existência humana a partir da sua situação no primeiro momento, ou seja, "as condições básicas mediante as quais a vida foi dada" ao humano em nosso planeta. Estas são trabalhadas como vila activa (ARENDT, 1981), composta de três atividades humanas fundamentais: labor, trabalho e ação. Arendt não desconhece outras capacidades humanas, como as de pensar, querer, julgar, apesar de suas reflexões, nessa obra, não abarcá-las sistematicamente. Para essa finalidade, dedica um volume inteiro (ARENDT, 1992). Por tratar da ação, considerando a política a forma privilegiada de ação, poder-se-ia ser tentado a achar que o mobile é a essência do Poder e o Estado. Essa interpretação não resiste a uma leitura acurada de A condição humana, pois percebe-se que, aí, a política é tratada numa acepção ampla, de ação intersubjetiva, não do ponto de vista das estruturas. Outros serão os momentos, outros os livros, em que a autora enfocará questões como a maldade dos agentes do Estado, a irreflexão, o totalitarismo, o imperialismo. Na introdução de A vida do espírito, Arendt (1992) nos informa que "A condição humana" é um título dado "sabiamente" pelo editor para um trabalho que ela própria, "mais modestamente", propusera como uma reflexão sobre "a vila activa", tema que lhe pareceu relevante porque: "O que me Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.1-30, jan./jun., 1998 Anotações Acerca do Tempo, Medida da Existência 9 perturbou foi que o próprio termo que adotei para minhas reflexões sobre o assunto, a saber, vita activa, havia sido cunhado por homens dedicados a um modo de vida contemplativo e que olhavam deste ponto de vista para todos os modos de vida" (ARENDT, 1992, p.7). Na obra que estamos examinando, Arendt propõe uma reconsideração da condição humana à luz das mais novas experiências sobre o que estamos fazendo. O que estamos fazendo, continua, é, na verdade, o tema central deste livro, que aborda somente as manifestações mais elementares da condição humana, aquelas atividades que tradicionalmente, e também segundo a opinião corrente, estão ao alcance de todo ser humano. (ARENDT, 1981, p. 13). O labor, nesta leitura, tem a ver com o processo biológico do corpo humano, o eterno ciclo vital; é incessantemente repetido, garantindo a sobrevivência do indivíduo e da espécie; sua condição humana é a própria vida. O trabalho tem produtividade; produz o mundo "artificial" das coisas, sua condição humana é a mundanidade; o trabalho e o seu produto, o artefato humano, permitem ao fútil e ao efêmero uma certa permanência; o artefato pode sobreviver à vida individual do humano que o produziu, mas é apenas algo consumível. A ação é a atividade que se exerce diretamente entre os humanos e corresponde à condição humana de pluralidade: mesmo e diverso é o humano, portanto plural. Essa pluralidade é a condição de toda a vida política, embora todos os aspectos da condição humana tenham alguma relação com a política; ação é a atividade humana que cria condições para a história. Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.1-30, jan./jun., 1998 CUNHA, Humberto 10 As três atividades têm suas raízes na natalidade, pois é preciso produzir e preservar o mundo para os novos, os que vão chegar: prevê-los e levá-los em conta. Percebe-se nesse prever e levar em conta uma temporal idade, isto é, o estabelecimento de ciclos de reprodução humana. Este aspecto evidencia o tempo como medida da existência. A mais política das três atividades, a ação, é também a mais vinculada à natalidade, pois cada novo indivíduo chegado ao mundo tem a capacidade de iniciar algo novo, isto é, agir. Esse agir é condicionado, pois, para criar, o sujeito lança mão do mundo objetivo. O condicionamento não é absoluto, existe uma indagação humana para além dos seus próprios limites, condicionando o próprio meio condicionante: "a objetividade do mundo - o seu caráter de coisa ou objeto - e a condição humana complementam-se uma à outra" (ARENDT, 1981, p. 17). Indagar-se, livrar-se dos fardos da vita activa, contemplar o belo, estabelece a vida contemplativa, a única digna, para Platão e os cristãos. A vida contemplativa é a quietude; a vita activa é in-quietude - esta é a tradição. Arendt se propõe a ir além da tradição na compreensão e utilização da expressão vita activa. Não venera a hierarquia entre ação e contemplação produzida pela tradição. Concordando com Catão, Arendt considera a atividade de pensar a mais ativa de todas as atividades humanas. Ao refletir sobre a obra de arte como o mais perene do agir humano, trata-a como um produto do pensar, resgata a perenidade do seu aprisionamento pelo trabalho e, concomitantemente, liberta o pensar do círculo asfixiante da quietude. Pensada neste contexto - o contexto da praxis - a ação, mais que o trabalho, pode constituir-se enquanto processo que vise à libertação das subjetividades. Agir e meditar, enquanto labora e trabalha, torna o humano viável. O confronto com as leis da polis cria cidadania, ela também um transformável. Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.1-30, jan./jun., 1998 Anotações Acerca do Tempo, Medida da Existência 11 Assim, o humano constrói o humano e o Leviatã criado pode ser superado. Se o mundo do existir humano tiver um futuro, parece ser o da ação pensada, que garanta o eu e o outro, a ação da busca do mundo plural, o mundo da liberdade, em que cada um seja um não-copiável e insubstituível, realizando na intersubjetividade o seu mundo de anseios e desejos. Porto Gonçalves (1990, p. 103-124), trabalha sistematicamente sobre a idéia de que o tempo do relógio é um tempo vinculado ao desejo de ordem e de poder. O grande desenvolvimento das máquinas de fazer/dizer as horas nos mosteiros da Idade Média tem a finalidade de dar ordem à grande confusão que se segue à derrocada do Império Romano. O papa precisa ser ouvido. Os frades têm de tocar os sinos, com regularidade. Os galos continuam a cantar como antes, mas, os ciclos da natureza entendidos como tempo já não bastam. Instrumentos mecânicos de marcar um tempo mais regular se fazem necessários. Os relógios de água herdados dos romanos e dos árabes cumpriram o seu papel, fazendo da regularidade uma segunda natureza dos conventos. Agora, com o desenvolvimento das cidades medievais, a precisão tem de ir além, e, a partir do século XIII, os relógios mecânicos começam a aparecer. Com a mercantilização da sociedade, fazendo do dinheiro o equivalente geral do mundo das mercadorias, o tempo se desnatura. As horas canônicas instituem o tempo abstrato, capaz de se fazer valer como o mediador do circuito das mesmas mercadorias. Quando o paradigma da Agrária é transmutado no da Indústria (MELLO E SOUZA, 1994, p. 114), a máquina de fazer horas encontra sua plena valorização e aplicação. Aqui, vale a pena recordar Tannús (1986, p. 5-10). O tempo sagrado é unidimensional, implica a ideia de permanência; o tempo secular é trifásico (passado-presentefuturo), implica a idéia de mudança. Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.1-30, jan./jun., 1998 CUNHA, Humberto 12 Podemos problematizar essa idéia de Tannús, que estuda a evolução do conceito de tempo no mundo ocidental até a Idade Média. No mundo atual, a relação semiótica do humano consigo e com a natureza, no espaço-tempo, absolutizou o tempo, reduzindo a zero o parâmetro da distância. O mundo é seu, longe é um lugar que não existe. Esta é a sensação da contemporaneidade, no momento de plena maturidade do capitalismo. Os humanos, como estão historicamente construídos no pós-guerra, estão tomados por um sentimento de urgência. O cotidiano é o seu tempo. Talvez a bomba em Hiroshima, talvez as tecnologias transportadas da guerra e das indústrias para a vida cotidiana, levam estas pessoas, que amam, que choram, que se aborrecem, que odeiam, que se alegram, que riem... a quererem tudo muito e tudo rápido. À fala do tempo e do espaço se mostra a fala da conveniência, a fala da razão cínica. O sentido de construir para o futuro se desfaz, o tempo permanece secular e é de novo unidimensional, a construção humana é absurda, porque a vida é absurda. Os indivíduos se dão conta de que tempo e espaço são relações que apenas o humano pode construir. Ele desconstitui e reconstitui as noções, os conceitos, as definições herdadas da Antiguidade e da Modernidade. O que as revistas, os jornais, os livros, o telégrafo, as viagens (navio, trem, veículos automotores) já tinham proporcionado para alguns, a massificação do rádio e, depois, da TV, do FAX, do correio eletrônico colocam ao alcance de toda a humanidade. Você, na sua floresta ou no seu deserto, no seu povoado ou na sua metrópole, tem o mundo na ponta do dedo, ao dique do botão. A distância zerou. A professora Maria Inêz Salgado de Souza (1993), em sua palestra, no I Seminário Interdisciplinar tematizando. “As transformações do conhecimento na virada do século", enfoca a Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.1-30, jan./jun., 1998 Anotações Acerca do Tempo, Medida da Existência 13 nova ordem mundial e sua relação com a educação. Naquela conferência, a Doutora Inêz Salgado trata dos processos que envolvem a globalização e sua resultante, a Nova Ordem Mundial. Há uma interligação mundial dos Estados-nação num sistema único, baseado na unificação dos mercados, auxiliado pela tecnologia e um sistema mundial de comunicação, o que exige novos sistemas de pensamento e de conhecimento. Os Estados-nação perdem autonomia, e surge uma ordem totalmente distinta da anterior, tendo por base o poder econômico, ao invés do poder político. A globalização pode ser interpretada como um processo correlacionado ao capitalismo, ao industrialismo, ao militarismo, à vigilância e ao controle da esfera social. As culturas locais se dissolvem na cultura planetária e o cotidiano local tem componentes que, por serem induzidos à distância pela mídia, escapam da compreensão e diretriz da comunidade local. Dá-se o desencaixe das antigas relações e conexões. A nova dominação cultural é mais eficiente que a antiga por apresentar face renovada e maior flexibilidade, tornando-a mais sutil. Os Estados-nação arriscam sua autonomia, pois é difícil manter uma autonomia econômica e política quando se fracassa na autonomia cultural. Outra hipótese é a vitória da cultura de resistência, isto é, da ação das novas forças sociais que estão emergindo no Norte e no Sul: aos tradicionais movimentos dc trabalhadores, vêm juntar-se os novos movimentos vinculados ao caráter multidimensional da modernidade. Uma nova agenda educacional é necessária, na dependência dc que, os educadores consigam entrelaçar suas preocupações com as dos movimentos sociais emergentes, buscando soluções para os problemas que o sistema globalizado propõe na ordem-do-dia. Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.1-30, jan./jun., 1998 CUNHA, Humberto 14 O mundo atual assume feições de Aldeia Global. De tão dito, isto já virou senso comum. Mas, o que é mesmo essa aldeia global? É um mundo fraterno, onde todas as pessoas podem usufruir dos benefícios do avanço tecnológico? Parece que ainda é apenas o mundo do mercado planetário, com nascentes estruturas de poder mundial, centralizando-se o papel da informática e da comunicação no fornecimento ágil de dados às empresas, dimensionando-se num segundo plano sua contribuição à formação de subjetividades independentes e, se possível, livres. A vida atual quer parecer uma sociedade onde as classes subsumiram no cotidiano social, a comunidade da competência, regida pela ação de atores sociais e não mais por ações de classes. Os incompetentes, os que não se produzem enquanto atores, são relegados aos guetos sociais, de onde só poderão ser tirados pela benevolência dos competentes, os quais poderão não estender a mão aos que têm "fome de pão e de beleza". Passou o tempo de dar o peixe a quem não o pescou. Podemos conjeturar além da competência. Hipótese: os guetos sociais são produtos das ações das classes. Temos de Ter presente a maturidade do capitalismo. Vivemos o momento único em que toda a Terra está permeada por e dirigida pelo Capital, com repercussões individualistas no imaginário social (CUNHA, 1991). Quando Marx era vivo, o capitalismo era um sistema jovem, as Classes ainda não tinham tido tempo de camuflar-se, havia um lumpemproletariado, um proletariado, um exército industrial de reserva, claramente delimitados. O lúmpen era o produto da putrefação da antiga sociedade; o proletariado era a força de trabalho cuja mais-valia era basicamente absoluta e pouquíssimo relativa; o exército de reserva era o proletariado desempregado. Nas favelas e guetos do Brasil e dos Estados Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.1-30, jan./jun., 1998 Anotações Acerca do Tempo, Medida da Existência 15 Unidos da América, por exemplo, uma coisa e outra nem sempre são distintas. Estabelecemo-nos no posto de observação e o que percebemos é o capital mundializado, globalizando, os problemas e as soluções. Após um tempo em que estabeleceu relações imperialistas entre centro e periferia, ou Primeiro e Terceiro mundos, como se costumava chamar, criou outro momento em que incrustou Primeiro Mundo dentro do Terceiro e viu surgir Terceiro Mundo dentro do Primeiro. A aldeia é global. As classes são, agora, mundiais. O Estado Mundial está surgindo debaixo das nossas vistas e a Geografia que conhecíamos, com seus Estados nacionais, já não dá conta da realidade. Os Estados-nação vão, com certa velocidade, transformando-se em províncias nacionais de um Estado Mundial, cujo parto estamos assistindo. Na economia globalizada, onde a Ciência está na produção e o Capital financeiro abarca o sistema, uma estrutura de classes altamente sofisticada convive com o renascer de relações que pareciam superadas (como nas sweet homes norte-americanas) onde um escravismo consentido convive com as complexas relações do trabalhador criativo, flexível, cidadão, nas corporações de ponta. A estrutura social globalizada faz conviver classes em relações flexíveis com estamentos e castas redivivas e recicladas, estanques e rígidas. Aí encontramos o fundamento de uma sociedade afluente com guetos sociais; mundializada, com um xenofobismo renascente; de plena ocupação do espaço mundial, com preconceito e ódio racial; de plena liberdade, com neonazismo e intolerância; dotada de uma consciência cósmica, com grandes massas populacionais lançadas no mais ignominioso obscurantismo. O Capital maduro não pode realizar os ideais liberais de que se apropriou, senão sob a forma de neoliberalismo, Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.1-30, jan./jun., 1998 CUNHA, Humberto 16 excludente e opressor em escala mundial. Nem o espectro da guerra, nem a sua realidade, podem ser abolidos apenas pela distância zero. Porque a guerra, neste sistema, tem um papel positivo, desejado. Um sistema de distância zero com tempo unidimensional, um sistema que proclama o fim da história (ANDERSON, 1992) necessita reordenar o mercado por minuto. A guerra controlada, sob a forma de conflitos de baixa intensidade, tem a função de: a) destruir forças produtivas obsoletas (máquinas e equipamentos de tecnologia ultrapassada, pessoas treinadas para tecnologia ultrapassada, armamento obsoleto); b) incrementar o Capital pela venda de armas; c) controlar fontes de matériaprima e de força de trabalho e seus preços no mercado; d) controlar mercados consumidores; e) testar novas tecnologias, que depois possam passar do mercado de guerra para o mercado cotidiano (por exemplo, nas próximas guerras em que o Exército dos Estados Unidos da América participar, os soldados feridos serão operados por realidade virtual - se a técnica funcionar poderá ser utilizada em qualquer hospital, rendendo roialties aos seus criadores)1; t) submeter ao consenso dominador os focos de não-aceitação do padrão neoliberal. É neste contexto que podemos tentar trabalhar uma explicação para o uso das Forças Armadas na pacificação do Rio de Janeiro. A sociedade at1uente com guetos sociais, de distância zero e tempo unidimensional, estimula as angústias humanas a limites somente suportáveis, para muitos, pela criação de realidades paralelas, com apoio químico: o espaço do lazer nas sociedades conhecidas até recentemente vai sendo substituído pela droga. 1 Para mais um exemplo, recordemos que o U-2, uma das vértebras da guerra fria, muda-se num simpático avião de pesquisa científica. Com nova carga c novo nome, o agora ER-2 voa acima da atmosfera, munido de aparelhos que recolhem dados para a análise do clima em escala mundial (SUPERINTERESSANTE, 1994). Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.1-30, jan./jun., 1998 Anotações Acerca do Tempo, Medida da Existência 17 Podemos estabelecer sistemas prospectivos, onde o traficante de hoje será o comerciante da próxima década. No contexto do Estado Mundial, quando o parto se completar, não se discutirá o uso da droga, mas que droga, com que preço, com que embalagem, se vendida em farmácia ou no supermercado etc.. Por isto, o capital mundial necessita controlar os mercados produtores, como controla os mercados consumidores. Se os Estados nacionais serão apenas províncias, nada mais lógico do que as suas forças armadas serem utilizadas em funções consideradas subalternas, até então atribuídas às polícias. A "nobreza da guerra" fica reservada ao Exército norteamericano e àqueles segmentos nacionais que por ele forem chamados, sob a égide da ONU. A invasão dos morros do Rio de Janeiro pelas Forças Armadas brasileiras pode ser parte do ensaio geral do novo espetáculo. A distância zero, no tempo unidimensional não é linear, tem seu paradoxo2. E nesse paradoxo que se constrói a existência humana. Confrontados ao paradoxo, tantos escrevem Modernidade, Contemporaneidade, Pós-Modernidade, Nova Ordem Mundial e temas afins, com aproximações e distanciamentos tais que somos levados a dizer que o mundo do conhecimento está dividido, neste particular, entre otimistas e pessimistas. Devemos, então, perguntar: é possível que a ação humana traga um mundo de igualdade na liberdade, como quer uma vertente (MARX, 1980) ou, de fato, a utopia virou pó, como afirmam outros (VENTURA, 1993)?. 2 A distância zero não exclui outras distâncias: uma favela da nossa cidade pode parecer longe, porque não está na Internet; uma cidade européia ou norte-americana pode parecer perto, porque podemos captá-la no mundo virtual. Estes são os termos do paradoxo. Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.1-30, jan./jun., 1998 CUNHA, Humberto 18 Anthony Giddens (1991) coloca a questão em termos próprios. Reconhece que os impasses da modernidade, esse modo de vida que em dois ou três séculos se tornou mundial, fazem surgir formas de pensar e de conhecer que rompem os limites da modernidade, mas ainda não a extinguem. Talvez nisto Giddens se aproxime do músico Ronaldo Silva, que diz: "Vi borboleta passeando no futuro/se você quiser, eu juro/que não vou me acostumar". Para o sociólogo inglês, não basta inventar novos termos, como pós-modernidade, temos que olhar novamente para a natureza da própria modernidade (GIDDENS, 1991). Não estamos numa pós-modernidade, mas num estágio da tecnologia, da economia e do modo de vida que podemos denominar de alta-modernidade. Em termos astro físicos, a pós- modernidade é uma supernova depois de um buraco negro, mas, agora é que estamos nos aproximando desse "túnel de caos" que nos dará o trânsito. E ele não é mais do que a radicalização e a universalidade do sistema anterior. Por isto, já podemos vislumbrá-la; por isto, ainda não a temos. Giddens recusa o contraste grosseiro entre tradição e modernidade, mas aponta descontinuidades que precisamos verificar para não nos perdermos na análise: ritmo de mudança acelerado; escopo da mudança de espectro globalizante; natureza das instituições intrinsecamente moderna. A modernidade apresenta-se com um "caráter de dois gumes", que produz tensões, entre as quais cabe assinalar segurança versus perigo e confiança versus risco. A ampliação da escala de aplicação da tecnologia sem redução significativa da jornada de trabalho, submetendo parte substancial da humanidade á disciplina de um labor maçante, repetitivo, e o uso consolidado do poder político, tendo como corolários os totalitarismos do século XX, são exemplos a serem meditados. Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.1-30, jan./jun., 1998 Anotações Acerca do Tempo, Medida da Existência 19 A utilização da sociologia como tecnologia de manipulação social e a ruptura do binômio espaço-tempo, com a recombinação dos seus fragmentos em novos sistemas que permitem um verdadeiro mapeamento da população, são elementos desta situação. O desencaixe dos sistemas sociais, decorrente da separação do tempo e do espaço, e a constante reordenação das relações sociais, em virtude da agregação continuada de novos conhecimentos impactantes sobre as ações de grupos e indivíduos, são, também, elementos constitutivos do modo de vida da modernidade. Giddens não percebe os fenômenos atuais como o possível nascimento de um Estado mundial. Sua tratativa acerca da modernidade encadeia o capitalismo mundial, os Estados-nação enquanto sistema, a ordem militar e a divisão internacional do trabalho como quatro dimensões concomitantes, interligadas e interagentes da globalização. A reflexividade própria da modernidade assume novo perfil quando vista num deslocamento temporal para o momento da globalização. A mídia eleva, de forma contingente, o volume de notícias disponíveis para as pessoas em partes diferentes do globo: mas, de forma substancial, transita informações essenciais ao movimento do Capital nos mercados financeiros mundiais. Os obstáculos à luta por um projeto humano universal. que se consubstancie numa sociedade plena de oportunidades para todos, não autoriza o descrédito da possibilidade de construirmos o "Mimuendaju" (o caminho que desejamos). Embora seja descomunal a face do Leviatã, é possível trabalharmos por uma sociedade civil cidadã que o enfrente. O mundo é o mundo da incerteza e, se podemos ver o flagelo no horizonte, também podemos trabalhar com teses que dizem de um futuro possível para o mundo e da esperança enquanto apanágio dos humanos na busca da liberdade. Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.1-30, jan./jun., 1998 CUNHA, Humberto 20 Os construtores de uma perspectiva dialética de fazer a educação não podem apegar-se a ritos nem prostrar-se diante de muros derrubados. A categoria "socialismo real" não mais explica, nem justifica, o capitalismo monopolista de Estado com seus gulags e sua burocracia transformada em burguesia de Estado. Seremos educadores se tivermos a capacidade de contribuir para que a humanidade não se mantenha acorrentada ao horror propagado pela Aldeia Glogal. A essência dos acontecimentos e a essência do humano nos dizem da esperança e da possibilidade de construção de um propósito humano universal, um futuro possível. As falas do nosso sentir e do nosso pensar, a libertação das nossas emoções, nos autorizam a cortar as correias que nos prendem aos fantasmas do passado: A existência de alternativas igualmente possíveis, isto é, a contingência de algo que pode existir, mas que pode também, por igual, não existir, é condição necessária de possibilidade de livre escolha e, por isso, da responsabilidade e do dever ser. (CIRNE LIMA, 1994, p.l 74). O viver enquanto liberdade coloca-se no horizonte do possível. O "não-ser" é potência, não possui objetividade. A consciência do ser, o humano, pode estabelecer a Ponte dos Tempos, pode e deve projetar o será enquanto a melhor possibilidade do foi e do é. A materialização desse fazer em nosso País tem de considerar a nossa história. O imaginário popular no Brasil é constituído de costuras que harmonizam contraditoriamente o desejo e o medo de ser feliz. Torna-se necessária a formulação de estratégias de contra-hegemonia que visem superar o conformismo. Autores que disputam posições distintas no Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.1-30, jan./jun., 1998 Anotações Acerca do Tempo, Medida da Existência 21 cenário nacional afirmam a possibilidade de um trabalho de contra-hegemonia (NETO, 1986, p. 9-13, GENRO, 1994, ROCHA, 1989, p.173). A educação é chamada a colaborar nesse projeto de contra-hegemonia. A educação que se pretende popular tem de trabalhar esta esperança no imaginário de educadores e educandos. Alguns educadores se propõem a dizer não ao chamado do capital, enquanto outros, por alienação ou astúcia, consentem. O pensamento conformista penetra os poros da educação e retoma espaços que pareciam ocupados de modo permanente pela perspectiva de uma práxis transformadora. Movido por outra preocupação, o texto de Ronald Rocha (l989, p.173) propõe que, na disputa da hegemonia social, os lutadores pelo socialismo, além de outras atividades, se dediquem a criar uma rede de instituições voltadas especificamente para a disputa pela hegemonia no plano ideológico, cultural e ético, destinadas à elaboração e reprodução das idéias e valores revolucionários. O ponto de partida de Rocha e Giddens é diferenciado, mas, em ambos, transparece uma convicção de que os tempos que vivemos estão se esgotando e que o mundo apresenta possibilidades de nova forma de existir. Faz sentido examinar a pergunta: é possível exercer uma ação cidadã de contra-hegemonia que propicie a disseminação de novas formas de pensar o pensar e o agir do povo? Buscando na literatura especializada as raízes de nossa formação enquanto nação, sabemos que o Brasil é um país constituído tardiamente, sobre base escravista, enquanto capitalismo; de educação jesuítica, tomística e conformista, durante a Colônia; bacharelesco no Império, com forte penetração do Positivismo nos escalões governamentais e no modo popular de pensar; de liberalismo tacanho; pouco afeito, portanto, às formas dialéticas de pensamento. Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.1-30, jan./jun., 1998 CUNHA, Humberto 22 Carbonari (1993) aponta a modernidade como fenômeno global e lista algumas de suas características: a) o imanentismo da razão; b) a subjetividade; c) razão e liberdade; d) progressismo e cientificismo. Abraça a tese Dusseliana de uma transmodernidade na qual o álter da modernidade européia, o Terceiro Mundo, se faria sujeito. Noutro momento, Carbonari (1994) identifica a razão da modernidade como razão cínica, uma ciência que manipula o real para apresentar-se como onipotente, não um subsídio à subjetividade, mas ela mesma, a própria subjetividade. Uma totalidade fechada, para a qual não há alteridade: O fundamento da razão cínica é o poder, seu próprio poder, como autonomia absoluta, que a tudo domina e cria, conforme seus fins, fins que não passam de meios, já que a própria razão, o próprio poder auto-referente da razão é seu próprio fim e meio, como instrumento de sua afirmação (CARBONARI, 1994, p4). Após considerar a opção ética pelo outro, Carbonari estabelece-a como razão. Razão Ética, capaz de desafiar o poder cínico da razão cínica, com a condição de que assuma responsabilidade e reconhecimento para com o outro, que não mais aparecerá no horizonte como limite do mesmo, mas como possibilidade de encontro solidário. A Razão Ética é, então, a razão solidária A iniciativa plural de ações cidadãs, daqueles cidadãos que querem um novo tempo não capitalista, superando a modernidade, é impossível. A disputa de hegemonia ganha sentido. Mas, vale, por outro lado, levar em consideração a cautela de Benedito Nunes (1985, p.1l8), que, quando discute as possibilidades da arte nestes tempos de neotécna, lembra o Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.1-30, jan./jun., 1998 Anotações Acerca do Tempo, Medida da Existência 23 desaguar do indivíduo moderno no narcisismo, produzindo-se o culto de uma intimidade que não é tão íntima quando parece, vis a vis uma exterioridade espetacular, que, por espetáculo, é uma recusa à intimidade. Entrelaçam-se o espaço privado com o espaço público, este cada dia mais inacessível às individualidades e, o primeiro, sempre mais permeado pelas categorias da existência social. A ação solidária e a construção do público não podem ser, portanto, o topus da modelagem do espírito, do uso direcionado do condicionamento tecnológico, a que o indivíduo está permanentemente exposto, para retirá-lo da sua condição de sujeito, bloqueando-lhe a ação e o pensamento. Marilena Chauí, após larga discussão sobre a cultura popular no Brasil e sua ambigüidade, subserviente e resistente, entende que é possível ao seu pólo resistente vencer a inércia do conformismo, desde que possa pautar-se por outra lógica: "Uma racionalidade que navega contra a corrente cria seu curso, diz não e recusa que a única história possível seja aquela concebida pelos dominantes, românticos ou ilustrados" (CHAUÍ, 1987, p.179). A coluna vertebral da educação popular é uma criação coletiva de cultura por um grupo de iguais, o professor não é mais o portador de um saber possuído por um ao qual todos deveriam submeter-se (MELO, 1980, p.51). Para os que vivem a educação, a facilitação de novos enfoques cognitivos àquele não-cidadão, que não lê nos livros e pouco lê na vida, tão analfabeto político quanto analfabeto das palavras, é desafio: quanto mais difícil, mais estimulante. Educar e educar-se, isto é, transmitir e aprender o acervo cultural da humanidade e produzir conhecimento novo, implica o estabelecimento de relações e meios adequados. Nessa autoconstrução, os humanos vivem tensões em que o existir enquanto indivíduo dotado de introspecção, enquanto membro Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.1-30, jan./jun., 1998 CUNHA, Humberto 24 da espécie e enquanto consciência do ser são dimensões do Viver. "Ponte dos Tempos", neste contexto, é, então, o foi-é-será transmutado no elo historicizado da "idéia de tempo trifásico: o tempo passado, o tempo presente, o tempo futuro" (T ANNÚS, 1986, p.5). Assim pensada, uma "Pedagogia da Ponte dos Tempos" só terá sentido de construção da existência se puder responder ao desafio de manter, no cotidiano humano, a esperança. Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.1-30, jan./jun., 1998 Anotações Acerca do Tempo, Medida da Existência 25 Referências Bibliográficas ALENCAR, Francisco. História da sociedade Brasileira: 2º grau. 2. ed. Rio de Janeiro: Ao livro Técnico, 1985 ALSTON, Willian P.. Filosofia da linguagem. Rio de Janeiro: Zahar, 1972. ALTHUSSER, Louis. Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado. 3. ed. Lisboa: Martins, 1980. ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense-Universitária: Salamandra, 1981. ______. A vida do espírito: o pensar, o querer, o julgar. Rio de Janeiro: EDUFRJ, 1992. BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 2. ed. São Paulo: Hucitec, 1981. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Educação Popular. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1986. BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega. 8. ed. 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Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.1-30, jan./jun., 1998 A UNIVERSIDADE NA REGIÃO AMAZÔNICA: um estudo sobre a interiorização da UFPA* CAMARGO, Arlete Maria Monte de A Pretendíamos inicialmente estudar como se deu o processo de inserção da universidade no interior de nossa região, a partir da década 60; entretanto, dada a necessidade de estabelecer delimitações nesta investigação, optamos por destacar o caso de uma das instituições envolvidas nesse processo a - Universidade Federal do Pará. O corte histórico para este estudo vai de 1986, ano da aprovação do Projeto de Interiorização dessa instituição, até 1990, quando foi priorizada a oferta de cursos intervalares ou de recesso. Entre as motivações que determinaram a escolha desta temática, uma não menos importante, de natureza pessoal, reflete inquietações decorrentes de nossa participação no processo de interiorização da UFPA, tanto na fase inicial, desenvolvida nos Núcleos de Educação, quanto na implementação do Projeto de Interiorização da referida instituição. Além disso, a inexistência de estudos sobre o tema foi um fator decisivo na opção feita, uma vez que se trata de uma política educacional formulada a partir de uma instituição * Dissertação de Mestrado apresentada ao Curso de Mestrado em Educação: Políticas Públicas - Centro de Educação, da Universidade Federal do Pará Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.31-60, jan./jun., 1998 CAMARGO, Arlete Maria Monte de 32 pública, no caso uma universidade federal, e cuja concepção e desenvolvimento merecem um estudo sistemático. Trata-se de um caso singular, no que diz respeito à definição de política pública, na área educacional. Esse caráter singular é, ao nosso ver, decorrente do processo pelo qual a instituição expande o seu raio de atuação com o objetivo de desenvolver projetos específicos na área do ensino de graduação e extensão, através da implantação simultânea de oito campi universitários. Constitui uma preocupação central desta investigação a reconstituição de como se deu esse processo de inserção da universidade no interior da região. Entretanto, ao reconstituirmos esse processo analisa-se quais elementos são determinantes na formulação de políticas sociais, bem como que aspectos fundamentais contribuíram para a orientação a ser seguida na implementação do projeto. Não se trata, portanto, de simplesmente contar uma história, 'mas de identificar os elementos demandantes dessa política, que aspectos foram determinantes na sua constituição, uma vez que acreditamos que esse processo é resultante de um conjunto de fatores de natureza política, econômica, cultural e social e que mediações devem ter ocorrido nesse processo, considerando-se que a década de 80 pode ser caracterizada como de contenção tanto de recursos humanos quanto financeiros para a educação superior pública. Para isso, é importante nos referirmos à crise que se instala no mundo capitalista a partir dos anos setenta, até hoje ainda não resolvida. Analisando essa questão nas sociedades capitalistas e suas conseqüências no que diz respeito à universidade Lima afirma: Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.31-60, jan./jun., 1998 A Universidade na Região Amazônica 33 Ao lado das crises de subconsumo, baixa da taxa de lucro, se agregou uma nova forma de crise que é a dívida pública. Em conseqüência, falar em Universidade, neste mundo em crise, é falar em crise do ensino, em crise do EstadoProvidência, em crise das relações de trabalho, em crise do padrão de acumulação fundado no fordismo, etc. (LIMA, [199-], p. 8). Em substituição ao Estado do Bem-Estar Social, de inspiração keynesiana, que enfatiza a necessidade de intervenção do Estado, contrapõe-se o neoliberalismo, apregoando o Estado Mínimo, no qual se acentua a redução dessa intervenção no conjunto das atividades econômicas, inclusive na questão das políticas sociais desenvolvidas pelo Estado, e cujo modelo vai sendo absorvido no panorama mundial. A idéia de expansão contida no projeto de interiorização é incompatível com as medidas propostas pelo receituário neoliberal que atingem as universidades públicas brasileiras desde a década de 80. Referências Básicas Uma primeira referência está vinculada ao papel desempenhado pela universidade na sociedade, o que enseja a formulação de algumas questões correlatas: Qual a função da universidade na sociedade? Como age o Estado na formulação das políticas sociais nas quais se inserem e que envolvem as universidades? A quem se dirigem? Na tentativa de aprofundar essa temática, qual sejam as relações entre educação e sociedade, ou melhor, entre universidade e sociedade, recorremos a Gramsci, que entende a Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.31-60, jan./jun., 1998 CAMARGO, Arlete Maria Monte de 34 instituição escola como aparelho de hegemonia do Estado. Para Gramsci o Estado inclui: Todo o complexo de atividades práticas e teóricas com o qual a classe dominante não somente justifica seu domínio, mas procura conquistar o consentimento ativo daqueles sobre os quais exerce sua dominação. (GRAMSCI apud CARNOY, 1990, p.90). Dessa forma, o Estado resulta das relações que se dão entre as diferentes classes existentes em uma dada sociedade, que implicam em dominação e direção, hegemonia e consenso. O conceito de hegemonia pode ser melhor compreendido tendo em vista a difusão dos valores e normas burguesas sobre as classes subalternas, o que contribui para que uma determinada concepção de mundo seja aceita pela sociedade. Essa aceitação acontece através da direção, do convencimento que a classe dirigente procura imprimir na sustentação das relações de dominância em uma dada sociedade. Entretanto, os efeitos da hegemonia não se apresentam harmonicamente, mas, ao contrário, revelam-se contraditórios e passíveis de situações conflituosas que levam à crise de hegemonia. Dessa forma podemos afirmar como Poulantzas (1985, p. 33), que o papel do Estado não se limita ao exercício da repressão física organizada. Ao contrário, tem um papel essencial nas relações de produção e na delimitação-reprodução das classes sociais, à medida que desempenha um papel específico na organização das relações ideológicas e da ideologia dominante. Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.31-60, jan./jun., 1998 A Universidade na Região Amazônica 35 Dentro dessa perspectiva, Poulantzas (1985, p. 35) procura interpretar as ações do Estado, não as restringindo ao que ele denomina regras negativas do "jogo" econômico; é possível portanto entendê-las de maneira positiva à medida que esse mesmo Estado é capaz de criar, transformar, realizar. Essa possibilidade emerge a partir das relações das massas com o poder e o Estado, na busca do consenso já referido. Nesse processo que visa à hegemonia da classe que representa, o Estado ... age no campo do equilíbrio instável do compromisso entre as classes dominantes e dominadas. Assim, o Estado encarrega-se ininterruptamente de uma série de medidas materiais positivas para as massas populares, mesmo quando estas medidas refletem concessões impostas pela luta das classes dominadas... (Ibid, p. 36). Uma outra referência decorrente da primeira diz respeito à constituição das políticas sociais no estado capitalista. Nesse sentido, Neves (1994, p. 15), afirma que o ritmo e a direção das políticas sociais do Estado, em determinada formação social concreta capitalista na atualidade, estão relacionados tanto com a consolidação dos níveis de participação popular alcançados, ou seja, com o alargamento dos mecanismos de controle social das decisões estatais, quanto também com o nível do desenvolvimento das forças produtivas e das relações de produção. Na constituição deste trabalho procuramos ter em conta a forma pela qual tem se dado a expansão do ensino no Brasil e, de maneira particular como isso, tem acontecido em relação ao ensino superior. Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.31-60, jan./jun., 1998 CAMARGO, Arlete Maria Monte de 36 Havemos de ter em conta que a diversidade estrutural da organização econômica brasileira, à medida que convivem simultaneamente estágios diferenciados do capitalismo numa mesma sociedade, contribui como fator de inibição da demanda de saber científico. Essa demanda se materializa através do aumento das oportunidades educacionais, em outras palavras, da expansão do aparato escolar, a qual não se dará homogeneamente. Para essa autora essa expansão decorre da: ... necessidade de compreensão dos instrumentos imprescindíveis á utilização de um novo código cultural, que se traduz concretamente, no conteúdo das ocupações de novos postos de trabalho e na participação efetiva em instituições sócio-políticas emergidas da sociedade de corte urbano-industrial, transformadas, por sua vez, em demandas educacionais. (Ibid, p. 28). Para Madeira (1982, p. 31), a implantação do ensino superior no interior dos estados brasileiros cumpriria uma dupla finalidade: a formação de um grupo de status onde se terá a elevação dos níveis de consumo, condição para a expansão do mercado interno [além de selecionar] os melhores recursos humanos da região, destinados a se integrar nos quadros das grandes empresas ou no mercado dos símbolos. (Ibid). Dentro dessa perspectiva, a expansão do ensino superior no Brasil e, em particular, no interior dos estados era justifica da pela necessidade de favorecer o desenvolvimento regional. Assim é que os programas voltados para a expansão do ensino Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.31-60, jan./jun., 1998 A Universidade na Região Amazônica 37 superior no Brasil trazem como justificativa a possibilidade de modificações no plano econômico e social a partir desses, como se as relações de produção que se dão na sociedade capitalista pudessem ser excluídas. Esse discurso ideológico de que a educação é base do desenvolvimento de um país, de uma região, foi enfatizado principalmente na década de 70, desvinculando as condições conjunturais de uma dada sociedade, das relações de produção que nela prevalecem, como se a educação fosse a condição básica para a inexistência do subdesenvolvimento. Procuramos ainda na concepção desta investigação ter presente que durante o processo, ora em estudo, foram estabelecidas mediações, tanto na implantação quanto na implementação do Projeto de Interiorização, as quais acreditamos possam ser aqui evidenciadas. As ações precursoras - os antecedentes do Projeto de Interiorização Na Amazônia, o início do processo de interiorização das universidades ocorreu diferenciadamente das outras regiões do país, se considerarmos que a formação de instituições universitárias na região é um processo recente, que data ainda deste século. Mudanças na política de desenvolvimento do país, promovidas a partir do governo militar que se instalou em 1964, aconteceram motivadas, sobretudo, pelo novo padrão de acumulação que se implantava em decorrência do avanço da produção industrial brasileira, demandando, assim, mercados consumidores que pudessem ser potencialmente fornecedores de matéria prima. Dentro desse contexto, aconteceu a reforma no sistema educacional implantado no Brasil com inicio no ensino superior. Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.31-60, jan./jun., 1998 CAMARGO, Arlete Maria Monte de 38 Concernente com o modelo desenvolvimentista implantado pelo regime vigente daquela época tornava-se necessário reestruturar o sistema educacional brasileiro para atender às novas exigências demandadas pelo grupo dominante. Assim é que com a Lei nº 5540/68 teve início uma ampla reestruturação no ensino brasileiro, posteriormente complementada pela Lei nº 5692/71, a qual instituiu o ensino de 1° e 2° Graus. Essa reestruturação repercute no interior das universidades com uma série de medidas que visam adequar as instituições à nova ordem vigente. No que diz respeito à interiorização da universidade no estado do Pará, no período compreendido entre o final da década de 60 até o início da década de 80, essa esteve primordialmente relacionada ao Projeto Rondon, Centro Rural Universitário de Treinamento e Ação Comunitária - CRUT AC, bem como ao trabalho desenvolvido através dos Núcleos de Educação, vinculados ao Centro de Educação da UFP A, com o oferecimento de cursos de licenciatura de curta duração e licenciatura plena e de formação de professores em nível de 2° Grau. A preocupação em complementar os estudos universitários, em conciliar questões teóricas com o aprendizado prático eram alguns dos objetivos explicitados pelos idealizadores do Projeto Rondon e o CRUT AC. Entretanto, esses podem ser compreendidos no conjunto de uma política destinada a interferir nas universidades. Tais propostas visavam primordialmente o corpo discente das universidades e a organização estudantil daquele momento, por se constituir em foco de resistência ao regime então vigente. Nesse contexto de alterações no sistema de ensino brasileiro a partir de 68 foi introduzido o ensino de 1° e 2° graus de caráter profissionalizante, com implicações significativas que se traduziram na forma de programas concebidos pelo Governo Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.31-60, jan./jun., 1998 A Universidade na Região Amazônica 39 Federal, cujo objetivo era qualificar professores para lecionar as disciplinas decorrentes da nova legislação. Essa "necessidade" se refletiu na oferta de cursos para qualificação de docentes dentro do "espírito" dessa lei, inclusive para aqueles professores que atuavam no interior dos estados. Em nosso estado, essa intenção se materializou através do estabelecimento de convênio entre a Universidade Federal do Pará e o Departamento de Ensino Fundamental do Ministério da Educação e Cultura visando "a realização de cursos especiais para qualificação e habilitação de professores em atuação no interior do estado." (MOREIRA JÚNIOR, 1985, p. 55). Teve início, dessa forma, em 1971, uma série de programas formulados com vistas a qualificar professores e técnicos, não só na capital, mas também no interior do estado do Pará. Em um desdobramento desses programas verificamos uma ampliação dessa iniciativa rumo aos então territórios da região Amazônica: Amapá, Roraima e Rondônia, coordenados pelo Centro de Educação da UFPA. De modo geral, essas diferentes ações até então empreendidas se caracterizaram na sua origem e concepção pela predominância de programas formulados de fora para dentro da região, o que reflete o momento político vivenciado, à medida que o caráter não democrático das propostas implantadas era uma constante. Apesar dessa origem e não obstante a exclusão da participação democrática na sua formulação, as ações desenvolvidas contribuíram para lançar as bases de uma ação mais sistemática da universidade no interior da região, inclusive para sedimentar os fundamentos para a implantação de universidades nos estados da região, nos quais os núcleos de educação foram instalados, bem como dos campi avançados. Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.31-60, jan./jun., 1998 CAMARGO, Arlete Maria Monte de 40 As transformações ocorridas na região e a demanda por Políticas Sociais O surgimento de um projeto destinado a interiorizar a universidade, no caso uma universidade federal no estado do Pará, enquanto uma política global de uma determinada instituição está relacionado a uma série de fatores que em conjunto contribuem para a constituição dessa política; entre eles, as modificações processadas no cenário regional, que foram decisivas para a formação de expectativas pela população com referência a políticas públicas. Essas transformações têm como suporte as mudanças processadas no padrão de acumulação da economia brasileira iniciada a partir da década de 50, com ênfase na produção de bens de consumo duráveis. Nessa perspectiva, o novo padrão de acumulação introduzido representou a consolidação da entrada do capital multinacional no país com repercussões diferenciadas nas várias regiões. O processo de expansão do capitalismo na região Amazônica trouxe conseqüências que repetem o processo acontecido em outras realidades: ... rompeu e desagregou a estrutura econômica preexistente provocando a expropriação de agricultores, desemprego, falência de pequenos e médios produtores e comerciantes e o enfraquecimento do poder da fragilizada burguesia local diante da grande burguesia nacional e externa... (SOUZA, 1992, p. 22). As novas frentes de trabalho surgidas resultantes do modelo econômico então adotado atraem para a região um contingente populacional para trabalhar nos grandes projetos, Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.31-60, jan./jun., 1998 A Universidade na Região Amazônica 41 como Projeto Carajás, Albrás-Alunorte e Tucuruí. Tal contingente populacional foi reforçado pela descoberta de zonas de garimpo de ouro, as quais contribuem para intensificar o processo migratório na região. O aumento da densidade populacional no estado do Pará desencadeado pelos processos migratórios decorrentes do quadro referido provocou mudanças na composição da população, o que se refletiu na manifestação de demanda por políticas sociais, entre elas a educação. O aumento das oportunidades no mercado de trabalho contribuiu para fomentar na população local a busca pela ampliação da escolaridade, tendo em vista uma possível ascensão social. Por conta disso, resultou no crescimento da pressão para a efetivação de políticas sociais e educacionais em nível de 1°, 2° ou 3° Grau. Além do quadro já descrito, outro fator igualmente importante contribuiu para um redirecionamento nas políticas sociais no Brasil. Com o fim do "milagre econômico" teve início um lento e gradual processo de distensão política, que culminou, no início da década de 80, com a eleição direta de governadores para os diversos estados brasileiros. O processo de distensão política repercute nos demais setores da vida brasileira, entre eles, as universidades, onde os diversos setores fazem pressão por uma maior participação na escolha de seus dirigentes. Tal movimentação na academia resultou, no Pará, na adoção de uma consulta, no ano de 1984, para a composição da lista sêxtupla que deveria ser levada ao ministro da Educação, para a escolha do futuro reitor da Universidade Federal do Pará. Esse processo motivou a elaboração, pelos candidatos, de diferentes propostas de trabalho. Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.31-60, jan./jun., 1998 CAMARGO, Arlete Maria Monte de 42 Nas propostas do candidato José Seixas Lourenço estava incluída uma referente à interiorização da UFPA, a qual previa a absorção dos campi avançados no estado do Pará, vinculados ao Ministério do Interior, - através da Fundação Projeto Rondon – e às universidades das regiões Sul e Sudeste do país. Começou, em nível institucional, com a indicação do referido candidato a reitor da UFPA, a elaboração de um projeto destinado a interiorizar a universidade, um processo que envolveu diferentes centros e departamentos da UFPA, além de incluir ações na área do ensino e da extensão. Uma vez elaborado e já tendo havido articulações locais, principalmente com os prefeitos municipais, é que o projeto foi apresentado oficialmente ao Ministério da Educação, quando da realização de uma das reuniões do Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras, em Belém. Ressalta-se o papel desempenhado pelas prefeituras municipais, sobretudo em políticas públicas diretamente relacionadas ao Ministério da Educação, uma vez que usualmente esse ministério esteve vinculado ao PFL - Partido da Frente Liberal. Esse partido utilizava como prática as articulações políticas para distribuição de verbas diretamente via municípios, evitando, dessa forma, a interferência dos governos estaduais nessas negociações, sobretudo porque os governos estaduais de oposição dificultavam essas negociações. Feitas essas considerações, identificaremos agora alguns núcleos temáticos basilares à concepção e implementação do Projeto de Interiorização. Esses temas foram detectados quando da análise dos documentos relativos à política de interiorização ou emergiram das entrevistas realizadas, com o objetivo de reconstruir o processo estudado. Dado o universo cultural dos entrevistados, estes não foram informantes escolhidos aleatoriamente. Houve uma Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.31-60, jan./jun., 1998 A Universidade na Região Amazônica 43 escolha intencional na seleção das pessoas entrevistadas, visto que deveriam ter uma familiaridade com a problemática investigada, ou seja, que pudessem ser representativas no que diz respeito à: vivência com a experiência investigada e acompanhamento de pelo menos uma das fases do projeto. Além disso, que fossem representativas das categorias que elas representavam, egressos, professores, membros da administração superior. A definição dos cursos e dos campi Quais teriam sido os critérios que norte aram a elaboração do projeto de interiorização? Essa pergunta está presente em muitos dos depoimentos que obtivemos. Apesar de no momento da apreciação do projeto no conselho. superior da UFPA não ter havido manifestações contrárias, verificamos uma grande insatisfação na forma pela qual o projeto foi concebido, havendo uma resistência inicial na comunidade universitária, principalmente dos docentes da instituição. O que percebemos pelas entrevistas é que houve uma preocupação em envolver a comunidade onde os campi seriam implantados, sem uma correspondência na mesma intensidade, no interior da própria instituição. Era importante naquele momento obter o apoio dos municípios envolvidos, sobretudo porque a partir da contribuição deles em termos de infrainstrutora o projeto seria implantado. Essa reivindicação sobre uma maior discussão, principalmente com a comunidade acadêmica, para definir a política de interiorização da UFPA permanece até hoje. Não tem havido por parte da instituição uma preocupação em discutir o Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.31-60, jan./jun., 1998 CAMARGO, Arlete Maria Monte de 44 projeto na sua totalidade, limitando-se muitas vezes à análise de solicitações de oferecimento de cursos isolados. Quanto aos critérios adotados para a definição dos cursos de graduação oferecidos e o porquê ofertar cursos de licenciatura e não de bacharelado, foi decisiva a necessidade de qualificar os professores para o ensino de 1º e 2º graus em todo o estado do Pará. É bom que se ressalte, no entanto, que a necessidade de qualificação no interior não se restringe apenas à formação de professores. A amplitude do projeto, realizado simultaneamente em oito campi, acabou por nivelar municípios de características bem diferenciadas em termos populacionais e econômicos. Isso se reflete na demanda de profissionais para atuar nas escolas de 1º e 2º graus, em municípios com características heterogêneas. A questão regional A ênfase na questão regional foi um dos eixos norteadores do Projeto de Interiorização. A análise do conteúdo do documento norteador do Projeto de Interiorização reflete essa preocupação em diferentes momentos. No conjunto do documento há uma referência explícita à necessidade de a instituição resgatar os valores da cultura e do saber regional, retirando de suas atividades de extensão os subsídios para a formulação de projetos de pesquisa e para a elaboração de currículos e programas de ensino adaptados às necessidades regionais. (UFPA, 1986). Para entender essa problemática, julgamos importante estabelecer a seguinte consideração: O momento da Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.31-60, jan./jun., 1998 A Universidade na Região Amazônica 45 interiorização ora estudado foi implementado prioritariamente por professores que não residiam no próprio município ou na região onde o projeto ocorreu. Essa aproximação com a cultura local dependia muito da iniciativa do próprio professor, além da sensibilidade que ele poderia demonstrar em relação a uma cultura da terra, ou seja, de cada um dos campi. Entretanto, devido ao curto tempo de permanência dos professores em cada município, geralmente em torno de três semanas, que equivale a uma disciplina com uma carga horária de 60 horas, essa possibilidade se torna mais remota, dificultando um maior entrosamento com a realidade de cada município. Bosi (1992, p. 22), analisando a relação entre as palavras cultura, culto e colonização, estabelece relação entre essas mostrando-nos que possuem uma mesma derivação do verbo latino colo, que significa eu moro, eu ocupo a terra. A idéia central contida nessas três palavras evidencia uma necessidade de permanência, de pertinência em relação a uma determinada localidade. Dessa forma, para que essa- intenção de valorização da cultura local possa realizar-se é necessário, em nosso entendimento, um maior enraizamento por parte de quem é responsável pelas atividades seja de ensino, seja de extensão, o que não é possível se considerarmos o curto tempo de permanência dos professores em cada campus. Como viabilizar o projeto? Para que possamos entender a política de interiorização da UFPA, há necessidade de um melhor esclarecimento sobre como têm acontecido às políticas do MEC para as universidades nas últimas décadas. Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.31-60, jan./jun., 1998 CAMARGO, Arlete Maria Monte de 46 A revisão do papel do Estado e da constituição das políticas sociais decorrentes da política neoliberal repercute na vida das universidades públicas brasileiras, ocasionando a desorganização de suas atividades fim, quais sejam: ensino, pesquisa e extensão. Essa reorientação nas ações do Estado não combina com a expansão do ensino superior, à medida que são restringidos os recursos humanos e financeiros para a sustentação das universidades. O Projeto de Interiorização da UFPA, pelo seu caráter expansionista, é implantado contraditoriamente às novas diretrizes do papel do Estado, em estratégias utilizadas pela instituição para suprir a carência de recursos necessários a uma política dessa natureza, a partir da contribuição de outros setores que foram fundamentais na implementação do projeto, tais como: as prefeituras cujos municípios estavam envolvidos na área de atuação do projeto; empresas como a Vale do Rio Doce, ALBRÁS; além de clubes de serviço e do Governo Estadual. Em certo sentido, esse estado de coisas consegue ser vantajoso para o Estado, se considerarmos que apesar da política de contenção de recursos para as universidades públicas, é possível implementar políticas públicas sem que haja grandes alterações de dotação orçamentária para as instituições. A formação de professores e o ensino de 1º e 2° graus Em pesquisa realizada no ano de 1987 (ano em que teve início o Projeto de Interiorização), com o objetivo de realizar um diagnóstico educacional em nosso estado, em relação a uma das nove micro regiões estudadas, a Bragantina1, uma das regiões mais próximas de Belém, constatou-se a existência de um corpo 1 O estudo sobre essa microrregião incluía treze municípios, entre eles, Bragança e Castanhal, onde foram implantados dois campi da UFPA. Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.31-60, jan./jun., 1998 A Universidade na Região Amazônica 47 docente em nível de 10 grau constituído de 3.017 professores, sendo que 61,05% na zona urbana e 38,95% na zona rural.Desses, no que diz respeito a sua habilitação, um pouco mais da metade (52,14%) desses professores em exercício no ensino público de 1° grau são leigos, seguindo-se daqueles com formação em magistério de 2° grau (39,48%). Ressalta-se a pouca expressividade (7,19%) do total de docentes com formação pedagógica de 3° grau. (Diagnóstico do setor de educação no estado do Pará Microrregião Bragantina - 1987, p. 73). Apesar da experiência de curso de licenciatura plena ou mesmo de curta duração para o exercício do magistério de 5ª à 8ª séries, podemos inferir que dado o percentual extremamente irrisório de qualificação em nível de 3º grau - 7,19%, a grande maioria dos professores não tinha, portanto, qualificação mínima necessária para atuar nesse nível de ensino. E isso numa região relativamente próxima de Belém, o que em tese facilitaria a possibilidade de qualificação desses professores. Tal situação não se apresentava diferenciadamente nos demais municípios do interior do estado, sendo dessa forma premente a constituição de um programa visando a superar as distorções presenciadas em todo o estado. Acreditamos que se a UFPA não tivesse tomado e levado a frente essa iniciativa, provavelmente esse processo aconteceria através da então Fundação Educacional do Pará, hoje, Universidade Estadual do Pará, que atualmente desenvolve cursos de licenciatura plena no interior do Estado. Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.31-60, jan./jun., 1998 CAMARGO, Arlete Maria Monte de 48 O alunado Na implementação do projeto, uma das primeiras dificuldades encontradas dizia respeito à realização do primeiro vestibular dentro do Projeto de Interiorização. Essa dificuldade estava relacionada com o fato de que os cursos de 2° grau, então ofertados no interior, eram de qualidade discutível em face à inexistência de um corpo docente com uma formação adequada para tal. Essa situação repercutiria, conseqüentemente, no nível dos candidatos aptos a realizar o vestibular. Começa então a ser materializada uma iniciativa desenvolvida pelos Centros da UFPA com o objetivo de preparar os candidatos do interior para o vestibular. Dessa forma, foram articulados, nos diversos centros da instituição, cursos preparatórios para o vestibular, que, não obstante essa preocupação, não conseguem suprir as deficiências na formação dos candidatos, o que se reflete na ocupação das vagas. Em cursos como Matemática, por exemplo, o número de alunos em cada turma era sempre bem inferior ao número de vagas ofertadas. No primeiro vestibular realizado, esse mesmo curso no município de Altamira não se efetivou devido o não preenchimento do número mínimo de vagas para funcionamento do curso. A inexistência de professores qualificados no interior influenciava o perfil dos cursos de 2° grau então existentes, a maioria era de Magistério, com alguma variação, ou dentro da área das ciências humanas, ou de cursos agro técnicos. Essa situação se refletia tanto no conhecimento prévio exigido para o concurso vestibular quanto para as disciplinas iniciais oferecidas pelos cursos de graduação. Assim é que nas primeiras etapas do projeto, verificaram-se elevados índices de reprovação. Não obstante o interesse dos alunos na obtenção de resultados Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.31-60, jan./jun., 1998 A Universidade na Região Amazônica 49 satisfatórios, estes não conseguiam corresponder às expectativas. Um outro aspecto que caracterizou as turmas iniciais do Projeto foi o fato de que um grande número de alunos já possuía experiência docente, diferentemente dos cursos na capital. Essa experiência prévia dos alunos que iniciaram o Projeto de Interiorização se refletiu na maneira pela qual esses estudantes se organizavam, aliada ao fato de que esse momento de implantação, como todo processo inicial, foi marcado por uma série de incertezas quanto à própria operacionalização do projeto. O processo de ensino Para melhor entendermos a natureza do processo de ensino que acompanhou a oferta dos cursos de graduação da UFPA no interior do estado, tomemos como referência as categorias de análise qualidade e quantidade. As categorias qualidade e quantidade são aspectos que não se separam na apreensão do real e não obstante não se confundem, não se misturam. Segundo Lefebvre, a quantidade consiste na "mediação através da qual se ataca a qualidade a fim de modificá-la." (LEFEBVRE, 1991, p. 212). A expansão do ensino superior no interior do Estado do Pará não pode ser analisada sem que seja levada em conta a qualidade dos cursos oferecidos e, em conseqüência, o prestígio profissional dos egressos formados pela universidade. Emerge das falas dos entrevistados uma questão que se refere à natureza dos cursos ofertados no interior. Diz respeito à desconfiança sobre o nível desses cursos e o reconhecimento do diploma pela sociedade. Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.31-60, jan./jun., 1998 CAMARGO, Arlete Maria Monte de 50 ... a grande preocupação era o nosso diploma. Vai ter alguma coisa dizendo que nós estudamos no interior, e isso os estudantes diziam assim: "puxa, a sociedade abaetetubense, a sociedade aqui do Baixo Tocantins acha que a universidade aqui do interior não é uma universidade realmente de qualidade, então o aluno formado aqui no interior vai ser um aluno menos preparado do que um aluno que vai ser formado em Belém, então se nós tivermos alguma coisa aqui no nosso diploma que diga que nós estudamos no interior, esse diploma socialmente vai valer menos". Então essa era uma preocupação e a outra era justamente a legalização, um receio muito grande e um receio com razão, porque os cursos iniciados não eram cursos legalizados ... nós íamos terminar o curso e o MEC não dava a autorização certo? ... (EG-02)2 A peculiaridade do período letivo dos cursos intervalares, o caráter intensivo, ensejaram inúmeros questionamentos sobre a qualidade dos cursos ofertados. Essa situação não favorecia o amadurecimento para a sedimentação dos conteúdos de cada disciplina. Segundo os entrevistados, uma das características que concorre para esse quadro provém das dificuldades encontradas pelo professor em adequar o seu planejamento, tendo em vista a realização do curso em período intensivo, ou seja, uma metodologia de trabalho, que, dependendo do caso, resvala na questão da qualidade do curso oferecido. 2 EG - Egresso de cursos de Licenciatura Plena do Projeto de Interiorização da UFPA. Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.31-60, jan./jun., 1998 A Universidade na Região Amazônica 51 Uma das problemáticas que emergiu a partir da implementação do projeto foi a situação criada quando da reprovação dos alunos em determinada disciplina. Para um melhor entendimento das proporções que essa questão tomou, há que levarmos em consideração o fato de que como só havia em cada curso uma turma funcionando nos campi, inexistia a possibilidade, como acontece nos cursos regulares, de o aluno cursar novamente a mesma disciplina, ou no semestre posterior ou no ano posterior. Criou-se, assim, a figura da recuperação, que não havia na capital, mas chegou a ser implantada no interior, gerando críticas das mais diferentes naturezas. O processo avaliativo oscilava entre o paternalismo e o autoritarismo: Há casos, sem sombra de dúvidas, mas esses casos foram detectados no final do curso, de uma relação de autoridade, já que o professor acabava descobrindo que não há reoferta, que no interior, sobretudo no início, o aluno que perdia uma matéria que era pré-requisito, ele pura e simplesmente perdia a condição de acompanhar a turma... Então, a partir disso, foi detectado aí os dois extremos: um pouco de parternalismo de um lado, para fazer com que o aluno não perdesse a matéria, e, por outro lado, um pouco de autoridade dos professores, no caso, já sabendo que poderiam jogar a matéria, exigir determinados trabalhos sem a contra partida e o aluno teria que se matar para dar conta daquele recado. Então essa foi a relação da solidariedade ao paternalismo e ao autoritarismo. (EG-05). Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.31-60, jan./jun., 1998 CAMARGO, Arlete Maria Monte de 52 Por último, destacamos uma característica que emerge constantemente da fala, dos entrevistados e que ocorre da própria forma pela qual os cursos são operacionalizados. Devido ao caráter intensivo dos cursos, há uma aproximação muito grande entre professores e alunos. Nesse tipo de curso, o que se observa é um constante contato entre alunos e professor, durante a semana. E esse contato não se restringe muitas vezes somente à sala de aula. Diferentemente dos cursos regulares, onde o contato entre professor e aluno se dá, via de regra algumas vezes durante a semana. Universidade e comunidade Dentro da perspectiva de aproximação da universidade com a realidade local, gostaríamos de destacar os trabalhos desenvolvidos pelos alunos em fase final do curso - o Trabalho de Conclusão de Curso -, obrigatório no currículo dos cursos de graduação em vigência na UFPA, além da realização da Prática de Ensino, disciplina obrigatória para os licenciados de qualquer área ou curso. O Trabalho de Conclusão de Curso, desenvolvido em forma de monografia, ensejou a possibilidade de construção de um processo de investigação a partir de algum aspecto da realidade local. Dessa forma, foram desenvolvidos inúmeros TCC sobre os municípios, com diferentes enfoques, em cada um dos cursos de graduação oferecidos. Esses estudos, dentro dos seus limites, possibilitaram o conhecimento de aspectos ainda desconhecidos sobre o interior do nosso estado. Sobre o desenvolvimento da Prática de Ensino, desenvolvida sob a forma de Estágio Supervisionado, apesar da dificuldade de aceitação por parte dos alunos que já eram professores, que não aceitavam a possibilidade de realizar uma prática já desenvolvida, constitui-se também em um dos Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.31-60, jan./jun., 1998 A Universidade na Região Amazônica 53 momentos de aproximação entre a universidade e a comunidade. Representa para os alunos uma possibilidade de retorno à comunidade do esforço e disponibilidade de cada um, um certo prestar contas à população do interior, graças à forma como tem sido desenvolvida: O estágio foi muito bem orientado, o professor, independentemente se ele tinha até vinte anos de magistério, ele tinha de fazer esse estágio; e a proposta aqui foi muito interessante. Foi a montagem de mini ursos para serem ofertados à comunidade e muitos minicursos, do qual eu montei para trabalhar com professores, porque a vantagem é fazer esse retorno à sociedade. Você monta um curso voltado para a educação, no caso o curso de Letras,... montamos minicursos para trabalharmos com professores (de 1º a 4ª séries), uma vez que esses professores que mal tinham o 2° grau ... então o estágio ele se deu basicamente com minicursos e voltados para essa clientela e o aproveitamento foi muito significativo. (EG-05). A presença da universidade no interior contribui para a difusão de uma cultura diferenciada em relação a valores e crenças típicos das cidades interioranas. Essa introdução de novos padrões culturais constitui-se num dos principais conflitos na relação entre universidade e comunidade, como se pode detectar nas considerações feitas por um dos egressos. ... inicialmente a universidade começou a funcionar, não por acaso, mas é um dos colégios que oferece maior estrutura, é um colégio da Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.31-60, jan./jun., 1998 CAMARGO, Arlete Maria Monte de 54 Diocese, São Francisco Xavier, e qual a razão de não ter continuado lá até que houvesse a construção do campus, foi justamente por esta questão religiosa. Os valores, os líderes religiosos e os próprios alunos que têm essa vinculação religiosa, eles começaram a questionar o fato da universidade querer empurrar o materialismo, querer empurrar outros valores que não são os valores religiosos que se tem em Abaetetuba... Um exemplo: quando um professor projetou o filme "O Nome da Rosa", foi um escândalo, saiu até uma reportagem contra a universidade no jornal do Bispo. Estava tentando corromper a consciência dos alunos, estava tentando desviar a própria religiosidade, então essa questão desse conflito entre os novos valores, as novas idéias, porque a universidade é um espaço político aberto, que lá dentro você encontra de tudo e o interior não está acostumado a isso... (EG-02). Esse conflito de valores, costumes e práticas reflete-se igualmente na prática profissional dos egressos, que passam a ser vistos diferenciadamente por seus próprios colegas, à medida que procuram difundir uma visão de mundo diferenciada em relação ao modo de vida do interior. ... aquele é da universidade, lá vem ele com as idéias novas, que não tem nada a ver com a nossa realidade. Muitas vezes essas idéias não tinham nada a ver com a realidade, outras vezes necessitava de ousadia, de coragem para implementar essas novas idéias, mas esses choques foram realmente visíveis e ainda são. (EG-02). Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.31-60, jan./jun., 1998 A Universidade na Região Amazônica 55 Por outro lado, a presença da universidade no interior implica a formação de grupo de profissionais com uma maior articulação no plano político e profissional; porque enseja a reunião de estudantes que já tinham algum tipo de organização política anterior ao ingresso na universidade ou porque o espaço acadêmico favorece esse tipo de articulação. Universidade e relações de poder Esta temática abrange as relações que se estabelecem na universidade ou a partir desta, a partir da política de interiorização desenvolvida pela instituição e que irá repercutir fora desta. A vinculação entre a política de interiorização e a realização das eleições para os cargos majoritários na UFPA começa a se evidenciar com vistas às eleições realizadas para reitoria da instituição em 1988. A importância que a adesão do eleitorado passa a ter pode ser melhor dimensionada tendo em vista o número de prováveis eleitores em cada campus. Era fundamental a aceitação por esse eleitorado das candidaturas que estavam então formuladas. A desmotivação dos prováveis eleitores era de alguma forma compensada pela mobilização que desenvolviam os coordenadores dos campi nesse processo, à medida que tinham maior possibilidade de acesso aos estudantes até pela sua presença constante nos campi. Dessa forma, passaram a se constituir os principais cabos eleitorais no interior, e a possibilidade de um candidato se fazer conhecer e, conseqüentemente, ter divulgada a sua plataforma eleitoral estava intimamente relacionada com a preferência eleitoral do coordenador de cada campus. A polêmica em torno da figura do coordenador do campus aparece com muita freqüência nas entrevistas realizadas. Um Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.31-60, jan./jun., 1998 CAMARGO, Arlete Maria Monte de 56 dos aspectos que podem ter contribuído para a forma pela qual acontecem as relações entre o coordenador e a comunidade de cada campus prende-se ao fato de que não existiam (e até hoje continua esse estado de coisas) estruturas políticas dentro de cada campus, que permitissem um certo controle em relação à atuação desses coordenadores. Dessa forma, há uma centralização política na figura do coordenador, imprimindo um caráter muito personalístico a esse cargo. Tal situação favorece atitudes e decisões nem sempre democráticas. Essa inexistência de organismos coletivos de decisão em nível dos campi mantém-se até hoje, refletindo a própria indefinição das estruturas já existentes no interior da própria instituição, postas em cheque, na espera de uma estatuíste universitária que não chega e que evidencia uma necessidade de fazer uma profunda revisão na instituição. Uma segunda questão que emerge da fala dos entrevistados diz respeito à vinculação entre política interna da universidade e a política partidária que se reflete na atuação dos prefeitos dos municípios nessa esfera. Essa articulação tem se mostrado bastante estreita, de forma que já registramos exemplos de coordenadores de campi que se elegem como prefeito das cidades onde o campus está situado. Para melhor entendimento de como essa articulação se dá, é preciso relembrarmos o contexto em que acontece o Projeto de Interiorização, o qual se articula simultaneamente nos municípios onde se localizam os campi universitários e, indiretamente, nos demais municípios que fazem parte do raio de influência de cada campus. É preciso distinguir em que medida essas relações político partidárias podem interferir na definição de prioridades da política de interiorização. Havemos de ter em conta o momento inicial em que ocorre a implantação do Projeto de Interiorização, Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.31-60, jan./jun., 1998 A Universidade na Região Amazônica 57 e, em certo sentido, a relativa autonomia da universidade em determinar essas prioridades. Até porque, a composição das instâncias superiores decisórias é heterogênea, dificultando, nesse sentido, o aparecer de relações clientelísticas, à medida que são menos suscetíveis a esse tipo de relacionamento. Considerações Finais Gostaríamos de retomar as formulações de Poulantzas no que diz respeito ao papel do Estado. O caráter de classe do Estado capitalista está presente nos diferentes momentos pelo qual sentimos a presença desse mesmo Estado em nossas vidas. No entanto, essa relação não se dá numa via de mão única, à medida que as camadas dominadas da população pressionam as diferentes instâncias estatais, pela adoção de medidas que visem a solucionar suas dificuldades, suas carências. É dentro dessa perspectiva que entendemos o Projeto de Interiorização, principalmente no que tange à qualificação dos professores para o ensino de 1º e 2º graus. À medida que o Projeto se desenvolve, vai paulatinamente conseguindo reverter o quadro negativo observado no interior do estado do Pará, não obstante evidências que apontam para uma revisão nos rumos tomados pela política de interiorização, que poderia ser iniciada a partir dos resultados que anualmente vem sendo evidenciados através do Concurso Vestibular, promovido pela instituição, que, em última análise, refletem também a qualificação que se dá via universidade. A definição dessa política de interiorização tem se dado, via de regra, a partir das rearrumações que se dão no interior da instituição, com vistas a garantir a sobrevivência dessa política, no estado do Pará. Não conseguimos perceber, portanto, uma disposição firme por parte do MEC em respaldar uma iniciativa dessa natureza e abrangência, uma vez que não são oferecidas Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.31-60, jan./jun., 1998 CAMARGO, Arlete Maria Monte de 58 condições infra-estruturais para que ocorra a implantação do projeto. Na sua viabilização, a todo momento, são apontados aspectos críticos que com toda certeza contribuem para o nível da qualificação recebida. A inexistência de um quadro fixo de pessoal nos diferentes campi tem sido a tônica. Seja do pessoal de apoio, cedido pelas prefeituras locais ou pelo Governo do estado, seja de professores que não se vinculam efetivamente a cada campus, antes, acrescem às atividades que já desenvolvem na sede outro tanto, à medida que isto constitui uma possibilidade efetiva de ampliação de seus salários, mais do que nunca defasados. Não obstante ser uma política que se forja, sobretudo a partir de uma iniciativa local, cujo alcance social é inegável, acaba se articulando contraditoriamente à política educacional em nível nacional. Dito de outra forma, a Universidade Federal do Pará, através de sua política de interiorização reforça o chamado neoliberalismo, uma vez que o processo de expansão do ensino superior em nosso estado se dá sem que substancialmente tenham sido aportados recursos financeiros compatíveis com um projeto tão ambicioso como esse, e sem que haja abertura de vagas com vistas a garantir os recursos humanos necessários ao desenvolvimento do projeto. Reforçando as premissas neoliberais de que as políticas sociais podem ser ampliadas sem que seja necessário recursos adicionais. Endossa-se nesse sentido o discurso que constantemente tem sido veiculado junto à população, de que as universidades se caracterizam de um modo geral por receberem recursos além do que necessitam. Reafirma-se, dessa forma, a tônica difundida principalmente através da mídia, de que há pessoal sobrando, uma vez que mesmo sem alteração nos seus quadros, a universidade se expande. Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.31-60, jan./jun., 1998 A Universidade na Região Amazônica 59 Por outro lado, confirma-se outra máxima de que não há uma relação necessária entre o ensino de 3° grau, a pesquisa e a extensão, face a não inserção do quadro de professores nos diferentes municípios para os quais se deslocam. É possível; portanto, dissociarmos essas funções dentro da universidade, privilegiando dentro de cada circunstância os escalões de 3° grau, em outro caso os centros de excelência capazes de aliar o ensino competente à pesquisa, seja ela básica ou aplicada. À medida que esse modelo for implantado, qual será a opção que caberá às universidades como a nossa, distanciada que está dos mecanismos decisórios nacionalmente? Pelo que a experiência mostra, não é muito difícil projetar qual será o resultado dessa intenção para a região Norte do país, que recebe recursos insuficientes para a consolidação de uma universidade que contemple as atividades fim: ensino, pesquisa e extensão. A partir das evidências detectadas, é provável que as universidades públicas da região Norte permaneçam em um contexto em que se privilegie apenas a expansão do ensino de graduação, em detrimento da pesquisa e extensão, contribuindo dessa forma para acentuar ainda mais a diferenciação entre universidades como as da região Norte e de outras localizadas nas regiões Sul e Sudeste. É dentro dessa perspectiva, que rearticulamos as evidências detectadas e para as quais gostaríamos de chamar a atenção, sobretudo para os próximos passos a serem trilhados pela instituição no interior do estado. Há uma responsabilidade maior, a qual não podemos fugir, trata-se de estabelecer relações entre as ações desenvolvidas nesse contexto e as orientações mais amplas que interferem diretamente na vida da universidade pública brasileira. Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.31-60, jan./jun., 1998 CAMARGO, Arlete Maria Monte de 60 Referências Bibliográficas BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização. São Paulo: Companhias das Letras, 1992. CARNOY, Martin. Estado e Teoria Política. Campinas: Papirus, 1990. UFPA. Diagnóstico do setor educação no Estado do Pará: microrregião bragantina. v. 2. Belém, 1987 (mimeo), 1987. LEFEBVRE, Henry. Lógica Formal, Lógica Dialética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991. LIMA, Carlos A. F.. Reflexões sobre o Estado e a Universidade. Belém, [199-]. (Mimeo.). MADEIRA, Vicente de Paulo Carvalho. Mecanismos e processos de expansão do ensino superior. Educação em Debate. Fortaleza, v. 4, n. 1, 1982. MOREIRA JÚNIOR, Antonio. O Centro de Educação e a interiorização da Universidade. Recortes em Educação. Belém: UFPA, v. i,n.l, 1985. NEVES, Lúcia Maria Wanderley. Educação e Política no Brasil hoje. São Paulo: Cortez, 1994. UFPA. Projeto de Interiorização da Universidade Federal do Pará. 1986 a 1989. Belém, 1986. SOUZA, Denise Gentil Ponte. Intervenção Estatal no município: o caso de Belém na década de 80. Dissertação (Mestrado em Planejamento do Desenvolvimento). Núcleo de Altos Estudos Amazônicos. Universidade Federal do Pará, 1992. POULANTZAS, Nicos. O Estado, o poder e o socialismo. Rio de Janeiro: Graal, 1985. Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.31-60, jan./jun., 1998 MAGIA E CIÊNCIA: Conflito de Saberes e Razão Iluminista na Caça às Bruxa AGUIAR, Heliana Maria Cunha N este momento de mudanças, em que o paradigma mecanicista já não satisfaz mais ao ser humano em sua busca por respostas aos problemas de nossa época, vemos imagens de um passado que nos parece remoto surgirem no presente. Indiscutivelmente há um interesse cada vez maior em relação à magia. As bruxas que, aparentemente, foram banidas pelas fogueiras da Inquisição e pela Razão Iluminista, aproximadamente entre os séculos XVI e XVII, voltam ao século XX; ao mesmo tempo, aumentam as lutas pelo resgate do feminino, do corpo e da natureza. Seria simplista pensar que a caça às bruxas tenha se resumido apenas a uma questão de misoginia ou de dominação e domesticação de mulheres, como, à primeira vista, pode nos parecer. Tratou-se, sim, de uma forte contraposição entre natureza e cultura, havendo um rompimento entre o que passamos a considerar por natureza e o que designamos por humano. Outra agravante é a limitação do conhecimento, pois apenas um tipo de saber passou a ser reconhecido como legítimo, o da Ciência Moderna. Adentrar nesse conflito de saberes, que levou à repressão da "magia" e à hegemonia da ciência, não representa tanto uma volta ao passado, mas uma tentativa de ver o passado como presente. Trata-se de um passado que irrompe no presente. A partir daí, uma questão se apresenta: a relevância dessas imagens para se repensar o resgate de outras formas de conhecimento e de linguagens esquecidos pela educação. Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.61-72, jan./jun., 1998 AGUIAR, Heliana Maria Cunha 62 Diante dos muitos problemas que causam preocupação na área da Educação escolar, duas questões merecem destaque: o conhecimento fragmentado em disciplinas estanques, que dificultam o entendimento do conceito Transdisciplinaridade e, a concepção dual de ser humano que está presente nas escolas, onde há a valorização da mente em relação ao corpo. Como, exemplo vemos, as disciplinas Educação Física e Educação Artística desvalorizadas, consideradas como disciplinas auxiliares das demais, ocupando um lugar de inferioridade nas grades curriculares. Os saberes sensíveis, ligados aos sentimentos, às artes e à corporeidade, não possuem espaços nas escolas, que privilegiam o saber objetivo. O ser humano encontra-se, então, limitado pela própria educação, impossibilitado de desenvolver todas as potencialidades de que é capaz. A contradição está presente no discurso da educação – ao mesmo tempo em que se diz libertadora, o discurso da educação se faz controlador. A escola objetiva, na verdade, integrar o ser humano à sociedade, ensinando o autocontrole. Cada um será responsável pela manutenção da ordem vigente. Através das disciplinas escolares, os indivíduos deverão incorporar os códigos aceitos socialmente. Mas, tanto o discurso propagado pela educação quanto os problemas que atingem a escola de um modo geral não são inerentes a ela. Na verdade, sendo a escola uma construção cultural, os problemas que nela ocorrem representam apenas a ponta do iceberg, reflexo de uma longa tradição de di coto mias e hierarquias nas sociedades ocidentais. Após o conflito de saberes entre religião, magia e ciência, aproximadamente nos séculos XVI e XVII, a Ciência Moderna alcança sua hegemonia. Doravante não dominará apenas o campo do conhecimento, mas influenciará todos os aspectos éticos e morais das sociedades ocidentais, impondo sua comcep- Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.61-72, jan./jun., 1998 Magia e Ciência: conflito de saberes 63 ção mecanicista de ser humano e de mundo. Mas, para manter esse controle nesta nova sociedade, onde os indivíduos não se encontram sob a tutela da Igreja e dos senhores feudais, as pessoas precisam governar a si mesmas. É, portanto, na escola que depositam todas as esperanças de realização dessa tarefa. Os discursos da Ciência Moderna mostram-se, nas entrelinhas, tão reguladores quanto os dogmas religiosos do catolicismo; os mecanismos de controle da ciência aparecem mais refinados e sutis por não conterem uma violência explícita, a exemplo da Inquisição. Ao mesmo tempo, não existe mais um poder central controlador, a exemplo da Igreja Católica. Tudo está distribuído difusamente na sociedade, circulando em discursos que são introjetados nas consciências de cada indivíduo. E esses mecanismos de controle atuam permanentemente no âmbito da escola moderna, em todos os níveis, como nos fala Veiga - Neto: No caso das disciplinas, são as determinações e delimitações dadas pela disposição disciplinar dos saberes que constroem os critérios de verdade/falsidade e normalidade/anormalidade a que se submetem os enunciados. Além disso, a organização institucional do conhecimento opera em todos os processos (titulação, etiquetagem, avaliação, credenciais, convites) e em todas as instâncias (universidades, institutos de pesquisa, associações científicas, congressos), no sentido de rarefazer e hierarquizar os locutores com direito a enunciar o discurso e dele usufruir. (1995, p. 26). Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.61-72, jan./jun., 1998 AGUIAR, Heliana Maria Cunha 64 Muito se fala sobre a crise dos paradigmas científicos que enfrentamos atualmente, e que também atinge a escola por se fundamentar nas metanarrativas criadas pelo Iluminismo, mas, sem uma análise do que representa a Ciência Moderna e a Razão Iluminista para a nossa sociedade e do modo como um saber se impõe sobre os demais, intitulando-se como o único capaz de construir uma concepção de mundo e uma única forma de interpretar a realidade. Sem entendermos este passado que se faz e se reflete no presente, não podemos pensar em mudanças. Portanto, este trabalho busca, fora das escolas um maior entendimento para os problemas enfrentados pela educação. Esta pesquisa é predominantemente teórica, do tipo bibliográfica. Seu tema foi desenvolvido em três formas de linguagem: linguagem científica, linguagem poética e linguagem visual; pois, se existem várias formas pelas quais o ser humano pode expressar-se, a linguagem científica não deve ser a única forma válida utilizada para interpretar a realidade; todas as formas devem ser valorizadas igualmente. O assunto está dividido em três partes: A parte I, Os discursos sobre a magia, destina-se a fazer uma revisão bibliográfica sobre o tema proposto. A partir desse ponto, analisa-se os discursos que foram construídos sobre a magia, desde os autores clássicos como Frazer; Malinowski; Durkheim; Lévi- Strauss, que basearam seus estudos em "povos primitivos", até os contemporâneos, como Ginzburg e Thomas, entre outros, que direcionaram seu enfoque para a realidade européia. A partir da construção de seus discursos, tenta-se detectar as tendências que influenciaram suas reflexões sobre o presente tema. Confrontando a magia com a religião ou com a ciência, verifica-se como esses autores vêem o fenômeno mágico. O objetivo desta parte do trabalho é o de desmistificar algumas posições adotadas em relação à magia. Preconceitos Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.61-72, jan./jun., 1998 Magia e Ciência: conflito de saberes 65 que foram formados e que até os dias de hoje encontram-se presentes não apenas nos meios acadêmicos e religiosos, mas na sociedade de um modo geral: a luta do bem (a religião) contra o mal (a magia); a imoralidade das práticas mágicas e sua utilização para provocar malefícios; a inferioridade do saber mágico frente ao saber científico. Demonstra-se que estes preconceitos contra a magia foram criados para reprimir sua prática, tentativas para desvalorizar um saber proveniente da cultura popular e de outras culturas diferentes da cultura ocidental. Por diferir dos dogmas religiosos e das concepções científicas, a magia passou a representar o mal para a religião e um emaranhado de superstições provenientes de pensamentos subdesenvolvidos para a ciência moderna. É importante notar que na maioria dos estudos pesquisados para a realização deste trabalho encontram-se comparações entre a magia e a religião, entre a magia e a ciência, ao mesmo tempo em que, se nota a ausência de comparações entre a religião e a ciência. Talvez porque a ciência classificatória como tal, tenha ela mesmo se classificado como à parte da religião, para assim conseguir sua hegemonia. O mundo interpretado pela ciência é um mundo dessacralizado. Um dos aspectos positivos da ciência é que ela se afastou dos dogmas religiosos e tabus impostos pela igreja para desenvolver-se; mas, em contrapartida, ao utilizar apenas o saber proveniente da razão, a ciência delimitou, conseqüentemente, seu campo de atuação; desdenhou o saber dos sentidos. (os aspectos intuitivos fortemente presentes na magia) por causa de sua característica de ser imensurável. A ciência e a tecnologia avançaram triunfantes, construindo um mundo em que Deus não era necessário como hipótese de trabalho. Na verdade uma das marcas do saber científico Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.61-72, jan./jun., 1998 AGUIAR, Heliana Maria Cunha 66 é o seu rigoroso ateísmo metodológico: um biólogo não evoca maus espíritos para explicar epidemias; nem um economista os poderes do inferno para dar conta da inflação; da mesma forma que a astronomia moderna, distante de Kepler, não busca ouvir harmonias musicais divinas nas regularidades matemáticas dos astros. (AL VES, 1996, p. 6). O mesmo não ocorreu com a magia, que por manter tanto seu aspecto religioso - o de recorrer às forças da natureza quanto seu aspecto de conter conhecimentos voltados para a resoluções dos problemas cotidianos, pode ser comparada ao mesmo tempo com a religião e com a ciência. Este trabalho, fundamentando-se em Gizsburg e Bakhtin, ressalta a importância deste saber, que convencionalmente chamamos de magia, e da cultura popular. Chegando à conclusão de que, apesar da predominância da cultura erudita, representada tanto pela religião católica quanto pela ciência moderna, as relações entre estas duas culturas não se caracterizam pelo domínio da cultura erudita sobre a cultura popular. Há uma influência recíproca, uma circularidade entre estas duas culturas autônomas. a magia nunca deixou de existir na cultura ocidental, mesmo diante das tentativas de reprimi-la. Tanto é que, após trezentos anos, quando a hegemonia da ciência moderna começa a ruir, há um retomo gradativo das práticas mágicas. Os seres humanos a redescobrem como caminhos alternativos para a resolução de seus problemas. Na Parte II, O fenômeno mágico no Ocidente, após a análise da literatura específica sobre este tema, demonstra-se que a Inquisição não se resumiu a uma questão de misoginia. Apesar de o ódio às mulheres ter estado fortemente presente, culminando com a criação do estereótipo da bruxa, estas Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.61-72, jan./jun., 1998 Magia e Ciência: conflito de saberes 67 perseguições significaram o início de um processo de domesticação às mulheres e de dominação da natureza, através da ciência moderna. Para impor sua verdade, a Igreja Católica usou de violência na tortura dos corpos. Por temer a natureza desconhecida, portanto diabólica, a religião perseguiu as mulheres, que eram consideradas suas representantes. A medicina popular, que, no discurso da Inquisição, transformou-se em bruxaria, não era domínio apenas das mulheres, havia homens no mesmo oficio. Mas, culturalmente petrificaram as identidades mulher/magia, homem/religião ou homem/ciência. E nesta contraposição tudo que era relativo às mulheres foi considerado demoníaco. Para os clérigos, a relação mulher/diabo era evidente; por ser a mulher mais carnal e de "intelecto fraco", estava mais propensa ao pecado. O poder da cura só deveria existir em Deus, a doença era um castigo divino pelos pecados cometidos; portanto, se o poder de cura do curandeiro não advinha Dele, era um poder demoníaco, "sobrenatural". Uma magia "sobrenatural" torna-se mito; na verdade o curandeiro recorre à própria natureza, ao conhecimento das ervas, tanto para a cura quanto para envenenamento. O saber mágico, por ser desconhecido por parte do clero, tornou-se sobrenatural. Todas as formas de magia, dicotomizadas em negra e branca, foram perseguidas e associadas ao mal, mesmo que delas fosse gerado algum beneficio. A Inquisição foi uma repressão aos corpos e às suas manifestações. Tudo que vem do corpo representa pecado. Os corpos dos acusados eram castigados através das torturas; aos corpos dos padres, eram reservados a abstinência sexual, os auto-flagelos e os jejuns, como forma de purificação. Para o cristão, o sexo só deveria ter como função a procriação. Em contraposição à imagem da bruxa lasciva, a mãe-virgem. A própria imagem da mulher na sociedade ocidental foi Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.61-72, jan./jun., 1998 AGUIAR, Heliana Maria Cunha 68 dicotomizada e idealizada. O papel da mulher se transformou: saindo do domínio público (a bruxa) encerra-se no lar para ser mãe e esposa cativa. Eis um estereótipo que se reforça e se firma através da ciência moderna e de sua razão androcêntrica. Com o corpo domesticado, dominado pelo homem, a mulher é considerada sem intelecto. As poucas mulheres cientistas, que no início do séc. XX atravessaram as barreiras ergui das pelos homens, eram consideradas anômalas. Até os dias de hoje a beleza feminina, tão valorizada pela sociedade ocidental, encontra-se separada da inteligência; não podendo coexistir ambas em uma mesma pessoa. Associa-se o feio, o grotesco à mulher que se sobressai no domínio público: o estereótipo da bruxa e o da cientista servem como exemplo. A Parte III, Conflito de saberes e razão iluminista, tem como relevância demonstrar que não houve, ao final do século XVI e início do século XVII, apenas um conflito entre a Igreja católica, as supostas bruxas e o saber mágico, na verdade, nesse período começa um conflito no âmbito do saber oficial da época. A ciência, que até então encontrava-se subjugada pelos dogmas religiosos, volta-se contra estes para a construção de um saber que lhe é próprio. Mas deve-se ressaltar que a ciência ainda manteve, nessa época, dois pontos em comum com a religião: o desprezo pelo saber mágico e a crença em Deus, como criador das coisas. Alguns acontecimentos podem ser apontados como responsáveis pela separação entre a religião e a ciência, como podemos ver a seguir: 1°) A valorização da técnica desenvolvida pelos artesãos e sua aproximação com a teoria dos cientistas da época. As universidades desenvolviam um tipo de saber que desprezava o trabalho manual e ignoravam a nova ciência experimental. Os avanços científicos só se tomaram possíveis fora das universidades. Primeiramente nos ateliês dos artesãos; e, mais Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.61-72, jan./jun., 1998 Magia e Ciência: conflito de saberes 69 tarde, através da formação de sociedades tais como a Royal Society of Sciences of London, na Inglaterra (1662); e a Académie Royale des Sciences, em Paris (1666). 2°) A polêmica entre os escolásticos (seguidores de Aristóteles) com aqueles que consideramos precursores da ciência moderna. Houve um momento de ruptura entre duas cosmovisões, a religiosa e a científica; esta última, antes uma aliada no combate à bruxaria, tornou-se vítima da Inquisição. Temos um exemplo marcante: o processo contra Galileu, que culminou com sua condenação, pela Inquisição, em 1633. Este pensador tentava provar a hipótese do sistema heliocêntrico de Nicolau Copérnico, que contradizia a concepção geocêntrica de Ptolomeu, aceita pela igreja, que a reafirmava dizendo que deveria ser a Terra o centro do universo, pois era nela que habitava a figura central da criação de Deus, o ser humano. O que para a Igreja era um ato de heresia, teria em outros meios uma outra significação: o início da revolução científica. Tratava-se não apenas de uma mudança radical na concepção de mundo e o fim de uma cosmologia escolástica, mas, também, o nascimento de uma nova antropologia: o ser humano deixa de ser o centro do universo, passa a ser um fragmento do mecanismo da natureza, mas, ao mesmo tempo em que o corpo humano passa a ser objeto, visto que é considerado natureza, o espírito humano vislumbra, através da ciência, sua libertação das forças universais e da autoridade da Igreja. Esta parte do trabalho divide-se da seguinte forma: 1°) Análise do conflito entre a cultura humanista (aristotélica) do séc. XVI e os precursores da ciência moderna. A separação da ciência dos fundamentos filosóficos e religiosos. 2°) A apresentação de algumas considerações sobre o pensamento de Galileu, Bacon, Descartes e Newtqn. As contribuições desses filósofos para a formação do paradigma mecanicista. Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.61-72, jan./jun., 1998 AGUIAR, Heliana Maria Cunha 70 3°) A análise do processo de desencantamento da natureza que acompanhou a formação do paradigma mecanicista e a análise das características deste paradigma: a) a crença na universalidade do conhecimento e a busca por uma linguagem que fosse capaz de traduzir este saber científico (a linguagem matemática); b) a predominância do olhar sobre os demais sentidos para se atingir o conhecimento (conhecer é observar); c) a predominância dos procedimentos classificatórios (conhecer é nomear); d) o caráter androcêntrico da razão iluminista (saber é poder). Considerações finais Com a ciência moderna, a dominação da mulher, realizada pela igreja, estende-se à natureza. A razão atingiu seu objetivo: dominar a natureza através do conhecimento de seus fenômenos, além de dominar todas as categorias que eram consideradas femininas, como os sentimentos e as paixões. De realidade viva e inquietante, a natureza se transformou na metáfora da máquina. A Mãe- natureza com toda a sua força criadora passou a ser desvendada pela razão androcêntrica, pois, no princípio de tudo, na origem mesma de todas as coisas, reina a presença de um Criador - Ele, também, um ente masculino. Após a domesticação das mulheres e do domínio da natureza, a razão androcêntrica estende sua dominação voltando se contra os próprios homens. Ao transformar seu corpo em objeto, o homem toma-se também manipulável. A razão que luta contra as ambivalências, cai em contradição: ao mesmo tempo que se diz libertadora, aprisiona. Fundamentando-se nesta concepção, a ciência moderna atingiu sua hegemonia, impôs-se sobre as outras formas de saber que se utilizavam de uma razão mais sensível, como as práticas mágicas e as artes. Reprimiu não apenas as mulheres, mas os Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.61-72, jan./jun., 1998 Magia e Ciência: conflito de saberes 71 sentimentos, a sensualidade. Através das classificações e identidades petrificadas excluiu as ambigüidades. Tudo que é diferente ou impossível de ser conhecido pelo método científico tem negado a sua existência. E este modo de produção do conhecimento influencia diretamente, até os dias de hoje, a sua transmissão, papel este que coube à escola desempenhar. A educação que, no discurso iluminista, deveria libertar os homens através de uma maior conscientização, leva-os a uma limitação de suas capacidades por privilegiar uma razão arrancada de sua material idade. Sem transcender a ordem vigente, através da escola, cada um é responsável pela sua manutenção. Segundo Veiga - Neto: A consciência não tem mais função de ser a abertura pela qual iluminamos o mundo; "ela apenas serve para que nele nos guiemos (reconhecimento de sinais), dentro dos limites que ignora, funcionando sempre dentro do evidente". Isso já aponta para a impossibilidade de nos libertarmos por um processo educacional que se pretenderia conscientizador. (1995, p. 25). Este trabalho buscou na história da repressão dos corpos, do feminino e dos saberes sensíveis uma maior compreensão para os problemas da fragmentação do conhecimento e do ser humano, que se encontram presentes no cotidiano escolar. A partir dele, outras questões surgem: Estamos vivenciando atualmente uma época de transição paradigmática. O paradigma da ciência moderna começa a ser questionado mais intensamente em seus fundamentos. As promessas do Iluminismo, de que através da razão conseguiríamos a igualdade e a liberdade social, não foram concretizadas. Imagens de um passado retomam ao presente - bruxas, magos, curandeiros são Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.61-72, jan./jun., 1998 AGUIAR, Heliana Maria Cunha 72 descobertos pela mídia. Os seres humanos partem em busca da desconstrução de seus papéis sociais e sexuais para além das identidades e dicotomias. O que nos leva a perguntar: Qual a relação entre a crise do paradigma mecanicista e da razão iluminista, que fundamentaram a ciência, com o surgimento de novos conceitos (complexidade, teoria do caos, transdisciplinaridade, etc.) que resgatam a pluralidade do real? E diante desta nova realidade, quais as possíveis consequências para os processos de produção e de transmissão dos saberes, no âmbito das instituições de ensino? Referências Bibliográficas ALVES, R.. O que é religião. São Paulo: Ars Poetica, 1996. VEIGA-NETO, A.. Michel Foulcault e Educação: Há algo novo sob o sol? In: VEIGA-NETO, A. (org.). Crítica pósestruturalista e educação. Porto Alegre: Ed. Sulina, 1995. Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.61-72, jan./jun., 1998 Relação entre o texto "Schopenhauer Como Educador", de Friedrich Nietzsche, e "Sobre Filosofia Universitária", de Arthur Schopenhauer BENJAMIM, Paulo N ietzsche, em sua vida e filosofia, foi bastante influenciado por Arthur Schopenhauer. Encontrou Schopenhauer, não em pessoa; porém por meio de um livro: O mundo como Vontade e Representação, pelo qual se interessou e o comprou. Com a leitura do livro, percebeu seu profundo conteúdo e começou a estimar Schopenhauer. Em Schopenhauer Como Educador confessa acerca desse filósofo: Na verdade, o fato de tal homem ter escrito aumentou o prazer de viver nesta Terra. De minha parte, ao menos, desde que conheci esta alma, a mais livre, a mais vigorosa, ela me fez dizer dele o que ele próprio dissera de Plutarco: "mal lancei os olhos sobre ele, ganhei uma perna ou mesmo uma asa". É ao lado dele que eu me colocaria, se o dever me impusesse escolher uma pátria na Terra (NIETZSCHE apud DIAS, 1991, p. 73). Nietzsche reconhece Schopenhauer como seu mestre, como educador, e sua influência foi demasiado importante. Certamente, existem muitos outros meios de um indivíduo encontrar-se a si mesmo, escapar Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.73-104, jan./jun., 1998 BENJAMIM, Paulo 74 ao atordoamento no qual se move habitualmente como se estivesse no interior de uma nuvem escura e de ser ele mesmo, mas não conheço outro melhor que o de se lembrar de seus mestres e de seus educadores (Ibid p. 75). Mesmo depois de ter tido um rompimento com Schopenhauer, não nega ter sofrido sua influência em seus primeiros escritos. Isso se verifica no prefácio à 2ª edição (1886) do Nascimento da Tragédia no Espírito da Música: "Mas há algo muito pior no livro, que agora lamento ainda mais do que ter obscurecido e estragado com fórmulas Schopenhauerianas alguns pressentimentos dionisíacos...". (NIETZSCHE, 1992, p. 21). Mesmo sendo negativas as influências, reconhece ter sido influenciado. Schopenhauer, por meio da influência exercida na filosofia Nietzscheana, acabou inteferindo numa nova cultura alemã, no que tange a uma educação diferente da exercida. Nietzsche, a partir do final de 1873 a 1879, começou a escrever 4 textos polêmicos, intitulados Considerações Extemporâneas. O terceiro texto de 1874, acerca da educação exercida em sua época, refere-se à figura de Schopenhauer como modelo para aquele que quer educar-se. Este texto refere-se a essa Terceira Consideração Extemporânea, intitulada Schopenhauer Como Educador, e expõe seu conteúdo, no que diz respeito à educação. Quando Nietzsche escreveu esta Extemporânea, estava, segundo Rosa Maria Dias, influenciado por um escrito de Arthur Schopenhauer denominado Sobre Filosofia Universitária. Em síntese, o texto diz que não há filósofos verdadeiros nas universidades, mas professores de Filosofia, cujo seu principal intere-se é o sustento próprio, por meio do ensino dessa disciplina. Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.73-104, jan./jun., 1998 Relação entre o texto... 75 Evidenciar as influências que Nietzsche sofreu desta obra e relatá-las é precisamente o que faremos em nossa exposição. Descoberta e Oposição ao Gênio. Schopenhauer cresceu sobre duas grandes influências: o isolamento e a vontade de verdade. O isolamento podemos entender por sua vida. Viveu muito só, foi rejeitado pelos seus contemporâneos, principalmente no mundo acadêmico. Suas opiniões não eram ouvidas e aceitas. Isso podemos perceber claramente quando no texto Sobre Filosofia Universitária relata sua rejeição: Mas o mais engraçado da história é que essas pessoas se dizem filósofos e, enquanto tais me julgam com ares de superioridade, fazendo-se de importantes para comigo, não se dignando nem mesmo a me olhar de cima durante anos e não me tendo em nenhum preço (SCHOPENHAUER, 199 I, p.37). Contudo, o isolamento sofrido por ele não foi isolamento que destrói, porém onde conseguiu perceber seu verdadeiro espírito, verdadeiro eu. O outro perigo narrado por Nietzsche é o desespero da verdade. Isto é muito presente na conteporaneidade de Nietzsche, que vive em uma sociedade onde o ensino técnico e a sede de conhecimento é muito presente, uma sociedade de agitação, de pressa, onde a pessoa por sede de uma profissão não pára para pensar em si e no seu meio, na cultura. É o ideal científico trazido pelo positivismo do século XIX, período em Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.73-104, jan./jun., 1998 BENJAMIM, Paulo 76 que Nietzsche viveu: "a ciência é o saber que destrói as ilusões salutares à sobrevivência dos homens". (DIAS, 1991, p. 83). Esse ideal científico de verdade serve para impedir que o eu verdadeiro apareça, que a personalidade se afirme. Pode-se encontrar no cientista uma vontade de encontrar "determinadas verdades”, mas isso "por servidão para com certas pessoas, para com as castas, para com as opiniões, para com as igrejas e para com os governos reinantes porque ele sente que presta serviço a si próprio, colocando a verdade de seu lado.(Ibid, p. 84). Esse alvoroço todo, impedindo o homem de se encontrar com ele mesmo, acaba por favorecer determinadas instâncias da sociedade, principalmente o Estado. O olhar o mundo como um todo Uma das grandezas que Nietzsche apresenta como sendo encontrada em Schopenhauer é o fato de ele "ter-se colocado em face da imagem da vida como um todo, para interpretá-la como todo" (NIETZSCHE, 1983, p. 72). Mas isso Schopenhauer exaltava como qualidade do filósofo: "Disso se segue também que eles têm pelo menos uma opinião decisiva, bem compreendida e coerente com o todo, sobre cada problema da vida e do mundo... "(SCHOPENHAUER, 1991, p. 59). O que significa se colocar perante a vida como um todo? Penso que seja olhar a vida de uma maneira geral, encará-la em todos os seus momentos; olhar para a dor, para o sofrimento, e aprender com eles, como também aprender com suas experiências, e a partir dos conhecimentos adquiridos dar Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.73-104, jan./jun., 1998 Relação entre o texto... 77 origem a seu próprio conhecimento, a sua própria filosofia, sem se tornar escravo desses conhecimentos, mas utilizá-los como instrumentos para alcançar o todo; e então voltar para dentro de si mesmo e fazer uma revisão de sua história, de seu próprio estar no mundo e principalmente olhar o que é seu, o que foi adquirido da sociedade e descobrir-se como ser criador. "Seu 'conhecer' é criar, seu criar é uma legislação, sua vontade de verdade é - vontade de potência." (NIETZSCHE, 1983, p. 285). Nietzsche afirma que as cabeças mais perspicazes de seu tempo não podiam se libertar "do erro de pensar que se chega mais perto dessa interpretação [da pintura da vida] quando se investigam meticulosamente as cores com as quais, e a matéria sobre a qual essa imagem está pintada" (Ibid, p. 72). Essa é a tendência tomada pela ciência, que vê somente a parte, esquecendo-se do todo. É uma atitude detalhista que se prende maximamente a uma ou a algumas das partes, esquecendo do todo. É uma atitude desenfreada de conhecer, "instinto que revira a vida e a vasculha em seus mínimos detalhes" (DIAS, 1991, p. 102). Luta contra o tempo Nietzsche vê também em Schopenhauer a expressão de alguém que ultrapassa o tempo em que existiu, por isso é obrigado a travar um combate com seu tempo, isso em busca de sua auto-afirmação. Por Schopenhauer existir naquela época, diz-se que era filho daquela, ou seja, nele estavam presentes os ideais e valores que prevaleciam no período histórico em que viveu. Assumindo como verdade a proposição: "aquele que existe em um tempo é filho deste", o lutar contra o seu tempo é lutar contra si, ou seja, contra os valores estabelecidos. Porém, Schopenhauer sabia que lutava não contra si mesmo, mas, contra "aquilo que o impedia de ser grande" (NIETZSCHE, 1983, p. Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.73-104, jan./jun., 1998 BENJAMIM, Paulo 78 73). Portanto, Schopenhauer tinha bem claro que os valores de seu tempo não eram os seus, por isso, lutar contra o tempo, para ele, não era lutar contra si, mas contra tudo aquilo que o impedia de ser ele mesmo. As coisas de sua época estavam nele, mas não eram ele. Libertando-se do que o impedia de ser grande, ou seja, seu tempo, as idéias vigentes, que o impediam de ser ele mesmo, poderia encontrar-se. É necessário romper com o modelo de idéias apresentadas, com a filosofia de vida presente, para poder chegar a ser um "espírito livre", autônomo. ''Assim lutou Schopenhauer, já desde sua primeira juventude, contra aquela mãe falsa, vaidosa e indigna, o tempo, e como que a expulsando de si purificou e curou seu ser e reencontrou-se em sua devida saúde e pureza." (NIETZSCHE, 1983, p. 73). Ora, se Schopenhauer lutou contra seu tempo, é natural que quando apresente sua época essa possua uma imagem negativa. Por isso os escritos de Schopenhauer podem ser usados como espelho do tempo; e com certeza não é por um defeito do espelho se nele tudo o que é contemporâneo se torna visível como uma doença deformante, como magreza e palidez, como olheiras e caras abatidas, como as marcas visíveis do sofrimento daquela infância de enteado. (NIETZSCHE, 1983, p. 73). As metáforas usadas por Nietzsche são fortes, destacam de uma maneira negativa o tempo, a contemporaneidade de Schopenhauer. O próprio Schopenhauer destaca isso com relação ao ensino da Filosofia praticado pelos professores universitários. Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.73-104, jan./jun., 1998 Relação entre o texto... 79 Só que aqui eles causam danos reais, antes de mais nada pelo fato de se manterem todos em união natural contra o bem e aplicarem todas as suas forças para não deixar que ele surja, a fim de obter prestígio para o mal. Não nos enganemos quanto a isso, pois existe, em todos os tempos, por todo o globo terrestre e em todas as situações, uma conspiração tramada pela própria natureza das cabeças medíocres, ruins e tolas contra o espírito e o entendimento. (SCHOPENHAUER, 1991, p. 64). Como essa sociedade não favorece a vida, enquanto descoberta de si, não favorece também o surgimento do Gênio, o espírito criador presente na pessoa. Convém fazer um esclarecimento acerca do que seria o gênio para Nietzsche. O gênio O gênio, para Nietzsche, segundo Rosa Maria Dias (1991), possuiria a atividade contemplativa da imaginação, a atividade do espírito, a abundância e a irregularidade das emoções, como seus elementos constitutivos. São elementos que não dependem da cultura para nascerem, mas que dependem dela para desenvolverem-se. Nietzsche, em Humano Demasiado Humano, em um pequeno aforismo, fala que caso deixemos de lado nossa vaidade, o gênio aparecerá como a capacidade que temos para fazer as coisas, de criarmos, por exemplo: a atividade do inventor mecânico, do erudito em astronomia ou história, do mestre da tática. Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.73-104, jan./jun., 1998 BENJAMIM, Paulo 80 Mas, sem levar em conta essas insinuações de nossa vaidade, a atividade do gênio não aparece de modo algum como algo fundamentalmente diferente da atividade do inventor mecânico, do erudito em Astronomia ou História, do mestre da tática (...). Todas essas atividades se explicam quando se têm em mente homens cujo pensar é ativo em uma direção, que utilizam tudo como material, que sempre consideram sua vida interior e de outros com empenho, que por toda parte vêem modelos, estímulos, que nunca se cansam de combinar seus meios (1983, p. 104). O que seria então, o gênio em síntese? - o pensar ativo que usa dos meios que tem para a produção de alguma coisa. É comum a todos e não é algo miraculoso. O rompimento com seu tempo, com o sistema alienante existente, após encontrar o gênio em si, leva o homem a se perguntar a respeito da vida. O que ela é? Qual seu papel diante dela? Depois de ter rompido com as idéias dominantes, pode chegar a uma resposta mais coerente, pois já pensa, de certa maneira, autonomamente. É por isso que Nietzsche afirma: .. há algo ainda mais alto e mais puro nesta Terra para encontrar e para alcançar do que uma tal vida contemporânea, e que é amargamente injusto com a existência todo aquele que só a conhece e avalia segundo essa feia figura (NIETZSCHE, 1983, p. 73). É o gênio que nesse momento é chamado a responder e a afirmar a vida. Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.73-104, jan./jun., 1998 Relação entre o texto... 81 Poder do Estado e Filosofia Pensemos agora em uma filosofia que acredita que um único acontecimento pode solucionar o problema da existência. Será que tal filosofia existe, e se existe é realmente Filosofia? Caso exista, Nietzsche diria que é uma filosofia de brinquedo, ou melhor, uma pseudofilosofia. Não se pode pensar uma filosofia que seja tão ingênua a ponto de acreditar que um fato temporal, determinado, seja solução ao problema fundamental da existência. Essa filosofia furta-se a sua atividade crítica e, ao mesmo tempo, serve de instrumento àquela pessoa que se propõe realizar tal ação. De certa maneira, esse tipo de filosofia legitima o poder do Estado. Schopenhauer criticava essa postura filosófica. Para ele, a filosofia de sua época favorecia o Estado. Uma filosofia. presa à religião do Estado, como o cão de guarda preso ao muro, é apenas uma irritante caricatura do mais elevado e nobre esforço da humanidade. Entretanto, é decerto um dos artigos mais vendáveis dos filósofos universitários aquela filosofia da religião, acima descrita como centauro, que não difere propriamente de uma espécie de gnose ou de um filosofar sob certos pressupostos em voga, que de modo nenhum podem ser provados. (SCHOPENHAUER, 1991, p. 39). Como fruto dessa pseudofilosofia que legitima o Estado, Nietzsche afirma que surge a idéia "de que o Estado é o alvo supremo da humanidade e de que não há para um homem nenhum dever superior ao de servir o Estado" (NIETZSCHE, 1983, p. 74). Parece que nesse ponto de vista é influenciado por Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.73-104, jan./jun., 1998 BENJAMIM, Paulo 82 Schopenhauer, que fala da filosofia dos filósofos seus contemporâneos estabelecendo a religião do Estado, dando a este a soberania. Conseqüentemente, enquanto a Igreja existir, só poderá ser ensinada nas universidades uma filosofia que, composta" em total consideração para com a religião do Estado, no essencial, caminhe paralelamente a ela, e que portanto embora rebuscada, singularmente engalanada e, assim, difícil de entender de fato nada seja, no fundo e no primordial, que uma paráfrase e uma apologia da religião do Estado. Assim, aos que ensinam sob tais limitações, nada mais resta do que ir em busca de novas expressões e formas sob as quais representam o conteúdo travestido em termos abstratos e, por isso, insípido, da religião do Estado, que a partir de então se chama filosofia. (SCHOPENHAUER, 1991, p. 35). Mesmo com toda a importância dada ao Estado, Nietzsche diz haver alguma coisa mais importante que este, que deseja acabar com toda forma de estupidez, portanto também com essa forma exacerbada de estupidez. Aquele com quem Nietzsche se ocupa Nietzsche não vai se ocupar com essas formas de estupidez, mas com homens cujos objetivos estão além das finalidades do Estado - os Filósofos, homens de espíritos livres bem diferentes do professor universitário, que tem preocupação apenas com seu salário, com sua subsistência, contentando-:se com seu emprego dado pelo seu soberano. Esta preocupação Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.73-104, jan./jun., 1998 Relação entre o texto... 83 com o filósofo verdadeiro, sua permanência e real importância, Schopenhauer também a tinha. Os verdadeiros pensadores trabalharam para e por causa do conhecimento porque desejavam de alguma forma tornar compreensível o mundo em que se encontravam, mas não o faziam com o intuito de ensinar e tagarelar. Por isso, em consequência de uma meditação incessante, neles vai surgindo, lenta e gradualmente, uma visão fundamental sólida e coerente, que sempre tem por base a compreensão intuitiva do mundo. (SCHOPENHAUER, 1991, p. 35). Para Schopenhauer, o filósofo não deve se contentar com adoutrina do Estado. Ele não deve ser um servo. Seu télos (τελοσ) está na verdade, deve buscar o que é verdadeiro, esse é o compromisso do filósofo. Contudo, os professores de Filosofia não tinham esse compromisso, seu compromisso verdadeiro era com o seu "mestre" ou senhor. É como se houvesse um pacto entre o Governo e seus funcionários professores de filosofia, só é verdadeiro o que concorda com a convenção estabelecida pelo Estado, Pois não estaria redigida ad normam conventionis, logo não há modo de poderem tornála objeto de sua conferência de cátedra, para também dela viver. De fato, não ocorre a um professor de Filosofia verificar se um novo sistema estreante é verdadeiro, mas apenas se ele pode harmonizar-se com as doutrinas da religião do Estado, com as intenções do governo e com as opiniões dominantes da época. (Ibid, p. 46). Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.73-104, jan./jun., 1998 BENJAMIM, Paulo 84 O professor universitário de Filosofia, de certa maneira, se identifica com o Estado, e Nietzsche retoma esta idéia ao falar dos ''professores de filosofia contentes com seu estado..." (NIETZSCHE, 1983, p. 74). Cultura pensada pelo filósofo e o professor de Filosofia Como pensariam a cultura, o filósofo e o professor de Filosofia? Nietzsche diz que o filósofo é comparado a um médico, ele percebe o mal provocado à cultura pela sua época, pensa na extirpação desta quando pensa na pressa em geral e na crescente velocidade da queda, na suspensão de toda atividade contemplativa e simplicidade. O filósofo percebe o estado de decadência presente. Já o professor não consegue perceber, ou se percebe, mantém-se apático, e por isso, ele, como homem culto, erudito, assume o papel de inimigo da cultura, pois "negar com mentiras a doença geral é um empecilho para os médicos/o1" (Ibid). O filósofo de cátedra é um conformado com o sistema educacional moderno que tem como modelo de formação o erudito, comerciante ou funcionário indolente e obediente aos valores em curso. Contudo, o homem que consegue perceber os defeitos da estrutura educacional em que vive, para sair dela precisa romper com ela. É aquele que ouviu o gênio presente em si. Ele precisa se libertar de sua sociedade, que lhe tira a atitude contemplativa, que faz o homem agitado não olhar para ele mesmo. É uma sociedade que domestica o homem, faz dele um ser dócil, passivo, conformado, que vive para cumprir uma função estabelecida. Sendo assim, esse domesticado não vai se preocupar com questões fundamentais. Tanto que quando se pergunta a um 1 Entendidos como filósofos. Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.73-104, jan./jun., 1998 Relação entre o texto... 85 homem desses: "para que vives?" [rapidamente estufa o peito com orgulho e responde] ''para me tornar um bom cidadão, ou erudito, ou comerciante" (Ibid, p.75). A resposta dele é o modelo proposto pela vigente educação fornecida pelo Estado. O homem que pensa desse jeito ainda se percebe como um pequeníssimo ponto no vir-a-ser da história, no desenvolvimento de uma espécie, instituição ou Estado. Pensa assim porque ele ainda não entendeu a lição que a existência nos propõe. Já o homem de gênio, ao invés de ser um domesticado, precisa ser um ser adestrado. Mas que é o adestramento para Nietzsche? Um meio enorme de acumulação de forças da humanidade, de tal modo que as gerações possam continuar a construir a partir do trabalho das que as precederam, desenvolver-se, tornar-se mais fortes, não somente exteriormente, mas interiormente, organicamente. (DIAS, 1991, p. 86). É o homem que rompe com os modelos instituídos, tomase senhor de seus instintos e hierarquiza-os de modo que o instinto de 'saber a qualquer preço' não se sobreponha. (...) Não é um indivíduo fabricado em série, adaptado às condições de seu meio, a serviço das convenções do Estado e da Igreja, mas um ser autônomo, forte, capaz de crescer a partir do acúmulo de forças deixadas pelas gerações passadas, capaz de mandar em si mesmo, sem recorrer a qualquer instância autoritária (DIAS, 1991, p. 86). É essa a verdadeira cultura pensada pelo filósofo. Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.73-104, jan./jun., 1998 BENJAMIM, Paulo 86 Promoção da cultura oferecida pelo Estado O Estado é o principal deturpador da cultura. No entanto, é aquele que quer aparecer como seu principal promotor. O Estado se propõe a promoção da cultura, mas no fundo quer promover-se. Está visando a si próprio, ao invés da cultura "Por mais que o Estado enfatize o que faz de meritório pela cultura, ele a promove para se promover e não concebe nenhum alvo que seja superior ao seu bem e à sua existência." (NIETZSCHE, 1983, p. 76). Assim, o Estado não promove a cultura, pelo contrário, a prejudica. Isso é constatado por Schopenhauer quando ele percebe a expulsão da Filosofia de Kant pelos filósofos universitários. Mas não se pode duvidar que a expulsão da filosofia séria, profunda e honesta de Kant, através das fanfarronadas praticadas pelos sofistas unicamente em vista de fins materiais, teve a influência mais prejudicial para a cultura da época. (SCHOPENHAUER, 1991, p. 75). Assim como o Estado, quando diz promover a cultura, visa sua afirmação, da mesma forma a classe dos comerciantes quando finge promover a cultura quer o lucro, ou seja, sua afirmação. Visa da mesma maneira que o Estado, a si mesma. Rosa Maria Dias faz um comentário interessante a respeito disso. O Estado e os negociantes são os primeiros grandes responsáveis pela depauperação da cultura. Eles entravam a lenta maturação do indivíduo, a paciente "formação de si”, que deveria ser a finalidade de toda cultura, exigindo Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.73-104, jan./jun., 1998 Relação entre o texto... 87 uma formação rápida, para terem a seu serviço funcionários eficientes e estudantes dóceis, que aprendam rapidamente a ganhar dinheiro. (DIAS, 1991, p. 90). Diante dessa pseudo promoção da cultura realizada no mundo moderno, o desenvolvimento do gênio é quase impossível. As condições para o surgimento do gênio, no tempo moderno, não melhoraram, e a má vontade contra o homem origina/"aumentou em tal grau que Sócrates, entre nós, não teria podido viver e, em todo caso, não chegaria aos setenta anos. (NIETZSCHE, 1983, p. 76). Vê-se que Nietzsche e Schopenhauer têm razão ao criticar sua contemporaneidade, onde o homem livre é rejeitado como o próprio Schopenhauer foi. Sendo o mundo moderna, a. sociedade, espaço que não favorece o surgimento do homem livre, também é empecilho para se pensar um novo conceito de cultura. Contudo, mesmo tendo como barreira o mundo moderno, não é impossível pensar, embora para o futuro, o surgimento de idéias que, com certeza, arrepiariam os cabelos dos homens atuais. A crença numa metafísica da cultura, não tão apavorante, diz Nietzsche, sem dúvida traria uma conseqüência prejudicial ao atual sistema de educação, pois a metafísica da cultura vê a educação desvinculada dos objetivos do Estado. Todavia, para que aconteça isso, é preciso desviar o olhar dos atuais estabelecimentos de ensino e voltar um novo olhar a novas instituições comprometidas com a promoção verdadeira da cultura. Essas novas instituições seriam bem diferentes das Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.73-104, jan./jun., 1998 BENJAMIM, Paulo 88 atuais, ou seja, diferentes das que têm como modelo de formação a erudição. Nietzsche entendia que a consolidação de uma nova instituição que tivesse como princípio que a natureza deve criar o homem superior, homem no qual o gênio atue, seria uma tarefa difícil de executar, pois para isso seria necessário que o modelo atual de educação fosse banido do homem, e é conflitante expulsar os valores vigentes interiorizados, fazer que o homem renuncie ao adquirido da cultura. A tarefa é complicada, mas não é impossível realizá-la; Schopenhauer é uma prova disso. Além do mais, talvez fosse mais simples do que a que o atual sistema educacional realiza: tornar erudito um jovem que não tenha aptidão à erudição. A nova instituição, ao contrário, apenas desenvolveria a tendência natural de cada uma, formando, assim, o homem superior, em quem o gênio atua livremente. Essa nova cultura proposta por Nietzsche viria ajudar a natureza nessa sua tarefa de criar o homem exemplar: filósofo, artista. ''A cultura tem de aperfeiçoar a natureza; isto é, propor-se a acelerar a vinda do filósofo, do artista" (DIAS, 1991, p. 79). Em outras palavras não deve estar a serviço do Estado, que pretende a domesticação do homem torná-lo obediente e dócil. O indivíduo que entende o apelo da natureza para uma nova cultura é convocado a se empenhar nesse trabalho árduo mas que tem como objetivo o surgimento do gênio. A cultura não exige dos que a servem apenas intenções e experiências pessoais. Ela exige atividade, isto é, um ato determinado de combate por ela, de luta contra as instituições que não tenham por objetivo "engendrar o gênio e a maturação de sua obra em si e em torno de si." (NIETZSCHE apud DIAS, 1991, p. 81). Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.73-104, jan./jun., 1998 Relação entre o texto... 89 O erudito não é filósofo Nietzsche, com seu elogio a Schopenhauer, exalta o fato de ele não "ter sido destinado de antemão a ser erudito nem educado para isso." (NIETZSCHE, 1983, p. 78). Informa que Schopenhauer trabalhou em um balcão de comerciante, nunca foi erudito, e se tivesse sido, não seria filósofo, pois "um erudito nunca pode se tornar um filósofo" (Ibid). Essa idéia é muito presente no próprio Schopenhauer. Este faz uma crítica ferrênea à filosofia universitária quando afirma que os professores de Filosofia não são filósofos. - Entretanto, temos de lidar aqui apenas com a Filosofia e seus representantes. Em primeiro lugar, constatamos que, desde sempre, muito poucos filósofos foram professores de Filosofia e, proporcionalmente, ainda menos professores de Filosofia, filósofos. (SCHOPENHAUER, 1991, p. 48). Para Nietzsche, Kant não foi um filósofo verdadeiro, pois não teve a coragem de romper com o Estado, colocou o seu gênio como num estado de crisálida, e diz que: - "Quem acredita que com esta palavra sou injusto com Kant não sabe o que é um filósofo, ou seja, não é somente um grande pensador, mas também um homem efetivo." (NIETZSCHE, 1983, p. 78). O que seria um homem efetivo? - O que não teme entrar em contradição com a ordem existente, pois respeita uma única verdade, a que traz consigo. O filósofo, na visão de Nietzsche, como já vimos em noções preliminares, não é aquele homem domesticado, apático, passivo em relação aos valores de seu tempo. Como Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.73-104, jan./jun., 1998 BENJAMIM, Paulo 90 Schopenhauer, é o contrário. Ativo, rompe com os valores negativos de seu tempo. O gênio, nele, não está adormecido. Isso não quer dizer que o filósofo não se utilize dos conhecimentos existentes, das filosofias, da História. Ele os utiliza, mas não se restringe a eles; não os vê como acabados; não se limita a repeti-los. O filósofo é aquele que sabe pensar e se utilizar dos conhecimentos que possui para, a partir deles, criar sua filosofia. Ele não é servo, mas sujeito. Aquele que age somente por intermédio de outros nunca verá as coisas pela primeira vez e, conseqüentemente, não será filósofo. Nas palavras de Nietzsche: Quem deixa que se interponham, entre si e as coisas, conceitos, opiniões, passados, livros, quem portanto, no sentido mais amplo, nasceu para a história, nunca verá as coisas pela primeira vez e nunca será ele próprio uma tal coisa vista pela primeira vez (..) Quando alguém se vê por intermédio de opiniões alheias, o que há de admirar se até mesmo em si próprio, ele não vê nada além de ... opiniões alheias. (NIETZSCHE, 1983, p. 78). Schopenhauer é prova de que é possível agir por SI, utilizando o que se tem à disposição. Ele sabe, segundo Nietzsche, conhecer o espírito nele, como nos que estão fora dele, por exemplo, em Goethe. É por isso que sabe perceber as mazelas de seu tempo. "Graças a essa experiência ele sabia como tem de ser o homem livre e forte, a que aspira toda cultura artística; podia ele, depois dessa visão, ainda ter disposição apta para se dedicar à, assim chamada, 'arte', no estilo erudito e hipócrita do homem moderno?" (Ibid). Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.73-104, jan./jun., 1998 Relação entre o texto... 91 Promoção da Filosofia realizada pelo Estado Vimos que o Estado quando promove a cultura está visando a sua própria promoção. Com a Filosofia não é diferente, pois quando este a promove é em vista de sua afirmação. Todavia, qual é a promoção que a Filosofia recebe do Estado? É que a um certo número de homens o Estado proporciona viver do ensino da Filosofia, ou seja, ganha-se dinheiro para ensinar. Schopenhauer vai criticar esse ensino. Até que ponto ele é proveitoso à Filosofia? O ensino da Filosofia nas universidades é para ela certamente proveitoso sob vários aspectos. Alcança, com isso, uma existência pública e seu estandarte é hasteado diante dos olhos dos homens, o que sempre faz recordar e notar sua presença. Mas a principal vantagem será a de que alguma cabeça jovem e capaz com ela se familiarize e desperte para o seu estudo. Entretanto, tem-se que aquele que tem aptidão para ela, e por isso sente sua falta, poderia muito bem encontrar e travar conhecimento com ela por outras vias. (SCHOPENHAUER, 1991, p. 36). Quando se passa a remunerar o professor corre-se o risco de se perder de vista o objetivo maior que é a Filosofia. Os pensadores, por serem remunerados, podem se perverter ensinando em prol do dinheiro e, ao mesmo tempo, para retribuir ao Estado o favor feito; quem perde com isto é a Filosofia que fica esquecida, pois é vendida pelo que não é. Schopenhauer comenta: Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.73-104, jan./jun., 1998 BENJAMIM, Paulo 92 Expor, sob nome e firma da Filosofia, mas em roupagens estranhas, os dogmas fundamentais da religião do Estado, que depois é intitulada com uma expressão digna de um Hegel - "a religião absoluta" - pode ser uma coisa muito útil, desde que sirva para adequar melhor os estudantes aos fins do Estado, como também firmar na fé o público leitor; mas vender isso por filosofia é o mesmo que vender uma coisa por aquilo que ela. não é; (Ibid, p. 98). Mas os limitados filósofos universitários não gostam de mudar de assunto, pois sua verdadeira seriedade consiste em ganhar com honra um honesto meio de subsistência para si, sua mulher e filhos, como também gozar de um prestígio junto às pessoas;(Ibid, p. 36). Fazendo, porém, uma retrospectiva dos pretensos filósofos que entraram em cena no meio século depois de encerrada a atividade de Kant, infelizmente não vejo nenhum a que eu pudesse dizer em seu louvor que sua verdadeira e total seriedade tivesse sido a pesquisa da verdade; pelo contrário, observo todos eles (ainda que nem sempre tenham clara consciência) pensando em aparecer, em causar efeito, em se impor e até em mistificar esforçando-se para obter o aplauso dos superiores e, em seguida, dos estudantes - sempre com o objetivo último de gastar o rendimento da coisa com a mulher e filhos. (Ibid, p. 49). A Filosofia universitária também vai justificar o Estado, e seus fins serão os do Estado, ou melhor, o Estado é seu fim. Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.73-104, jan./jun., 1998 Relação entre o texto... 93 No entanto, exige a equidade que se julgue a Filosofia universitária não apenas do ponto de vista do seu pretenso fim, como aconteceu aqui, mas também do seu fim verdadeiro e próprio. Este fim consiste, aliás, em que os futuros referenciais, advogados, médicos, concursantes e mestresescolas recebam, no mais íntimo de suas convicções, uma orientação adequada às intenções que o Estado e o governo têm para com eles. (Ibid, p. 43). Sobretudo, porém, tais filósofos universitários se esforçam para dar à Filosofia aquela direção que corresponde aos propósitos que estão no seu coração, ou antes, que ali foram postos [pelo Estado]. E para isso, se necessário, até moldam e deturpam as doutrinas dos genuínos filósofos antigos e, em caso extremo, chegam a falseá-las para produzir só aquilo de que necessitam (Ibid, p.86). Contudo, por que é interessante ao Estado fazer uma promoção da Filosofia dando empregos aos filósofos de cátedra? Nietzsche diria que é por ter medo da Filosofia. Então, chama para si os representantes desta, para assim aparentar que está promovendo-a, aparentar não ter medo dela. Mas o que quer realmente é segurança. Tendo ao seu lado aqueles que provavelmente o questionariam, por meio de um salário acorrenta-os. Estes se furtam de sua atitude crítica em troca desse salário. Em Schopenhauer isso mais uma vez fica claro. Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.73-104, jan./jun., 1998 BENJAMIM, Paulo 94 No entanto, os deuses não devem ser invocados aqui de forma nenhuma como um inauditim nefas2, pois tudo isso é apenas uma cena do espetáculo que temos diante dos olhos em todas as épocas, em todas as artes e ciências, ou seja, a velha luta entre aqueles que vivem para a coisa e aqueles que dela vivem, ou daqueles que a são com aqueles que a representam. Para os primeiros, ela é o fim para o qual sua vida é mero meio, para outros, o meio, isto é, a penosa condição para a vida, o bem-estar, a fruição, a felicidade (Ibid, p. 47). Nietzsche ainda continua, dizendo que aquele homem que se subordina ao Estado pelo seu emprego tem que abandonar seu ideal filosófico, de perseguição da verdade. Enquanto ele estiver empregado é obrigado a reconhecer alguém como mais importante; o Estado. No entanto, não somente o Estado, como também tudo aquilo que o Estado exige para seu bem; a religião, ordem social e a organização militar. Aquela religião que não aceita o seu ideal é expulsa, o Estado só a aceita enquanto esta ajuda a sua permanência. Enquanto o Estado aí, mais claramente, o governo se sabe constituído tutor em nome de uma multidão incapaz e, em função dela, pondera a questão: se a religião deve ser conservada ou eliminada- ele se decidirá, com a máxima probabilidade, pela conservação da religião. Pois a religião sossega a mente do indivíduo em tempos de perda, de privação, de pavor, de desconfiança, 2 Crime inaudito. Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.73-104, jan./jun., 1998 Relação entre o texto... 95 portanto, quando o governo se sente sem condições para fazer diretamente algo, para mitigar os sofrimentos da alma do homem privado: e mesmo diante de males gerais, inevitáveis e, de imediato, irrelutáveis (fomes, crises monetárias, guerras), a religião assegura um comportamento pacato, paciente, confiante da multidão. (...) Mas se o Estado não pode mais ele próprio tirar nenhuma utilidade da religião ou se o povo pensa demasiada multiplamente sobre coisas religiosas para permitir ao governo um procedimento homogêneo, unitário, quanto a medidas religiosas, então, necessariamente, aparecerá como saída tratar a religião como assunto privado e delegá-la à consciência e ao costume de cada um (NIETZSCHE, 1983, p. 113). Assim vai acontecer com os outros segmentos sociais: à medida que não são úteis ao Estado, são descartados. A maioria dos filósofos universitários, afirmando seu compromisso com o Estado, verá o objetivo da Filosofia como mito, como algo fictício, como ilusão. Nietzsche expõe o que eles dizem da Finalidade da Filosofia: como se alguma vez algo de grande e puro pudesse permanecer e firmar-se nesta terra, sem fazer concessões à baixeza humana! Preferis então que o Estado persiga o filósofo, em vez de lhe pagar estipêndio e tomá-lo a seu serviço? (Ibid, p. 80). Se a verdade não se alcança, por que gastar tempo perseguindo-a? É melhor ganhar dinheiro do Estado e deixar de Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.73-104, jan./jun., 1998 BENJAMIM, Paulo 96 lado o ideal filosófico. Schopenhauer também percebeu essa consideração da finalidade da Filosofia como mito, nos filósofos de cátedras de sua época: - Por outro lado, a mente intensa de um verdadeiro filósofo, cuja grande e única seriedade consiste na busca de uma chave para nossa tão enigmática quanto precária existência, é considerada por aqueles como uma entidade mitológica... (SCHOPENHAUER, 1991, p. 36). Por ser o professor empregado do Estado, este se apresenta com a autoridade de determinar o que ele deve fazer, quais devem ocupar as cátedras etc. É o Estado a autoridade. Schopenhauer também alertava sobre isso: Contudo, não se dá conta de que na Filosofia, como numa ciência que ainda deve ser descoberta, outra coisa se passa, como também não se dá conta de que na atribuição das cátedras de Filosofia não se devem levar em consideração, como nas outras cátedras, apenas as capacidades, mas, acima de tudo, a mentalidade dos candidatos. (Ibid, p. 83). O ensino da Filosofia nas universidades O filósofo encontrado na universidade, segundo Nietzsche, é um domesticado r; não é um pensador, mas um repensador; um historiador da Filosofia; "um conhecedor erudito de todos os pensadores anteriores,' dos quais sempre poderá contar algo que seus alunos não sabiam." (NIETZSCHE, 1983, p. 80). O Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.73-104, jan./jun., 1998 Relação entre o texto... 97 ensino tipo erudito da história da Filosofia é desfavorável à própria Filosofia, pois o gênio que penetra nas profundas questões não deve apenas olhá-las e assimilá-las. Nietzsche afirma: ''A história erudita do passado nunca foi a ocupação de um filósofo verdadeiro, nem na Índia nem na Grécia". (Ibid, p. 81). E Schopenhauer, com referência ao ensino historial da Filosofia, apresenta uma proposta que de certa forma Nietzsche se apoiou nela. Schopenhauer acha que a história da Filosofia deve ser dada na universidade em apenas um semestre, e ainda, história dos primeiros filósofos até Kant, por meio de uma visão geral, sem entrar em detalhes, para que os próprios alunos possam ter o gosto de se encontrar frente a frente cornos "filósofos verdadeiros" sem os preconceitos universitários. Mas, vamos ao texto de Schopenhauer. Como conseqüência disso tudo, e deixando de lado os fins do Estado - como já foi observado para considerar apenas o interesse da Filosofia, tenho por desejável que toda aula de Filosofia seja estritamente limitada à exposição da lógica (como sendo uma ciência concluída. e rigorosamente demonstrável) e uma história da Filosofia de Tales a Kant, exposta bem sucintamente e cursada em um semestre, a fim de que esta, por sua concisão e clareza, deixe o menor espaço possível às opiniões do senhor professor e se apresente apenas como fio condutor para os futuros estudos de cada um. Pois o travar conhecimento apropriado com os filósofos só se dá a partir de sua obras e de nenhum modo por relação de segunda mão. (SCHOPENHAUER, 1991, p.103). Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.73-104, jan./jun., 1998 BENJAMIM, Paulo 98 Como podemos ver, Schopenhauer também não aceita plenamente o ensino da história da filosofia, ou seja, a limitação da Filosofia a sua história. Nos filósofos de cátedras, Nietzsche observa a não existência do espírito filosófico. A filosofia desses senhores é apenas uma confusão de palavras buscando algo que o próprio Kant já tinha demonstrado não ser alcançado. Schopenhauer fala disso com bastante clareza: Depois de tal retrocesso no maior progresso que a filosofia já realizou, não é de se admirar que o suposto filosofar desta época tenha recaído no mais completo procedimento acrílico, numa rudeza inacreditável, oculta sob frases empoladas, e num tatear naturalista muito pior do que o existente antes de Kant (Ibid, p. 73). Além disso, fala-se muito na filosofia Kantiana de uso imanente e transcendente, ao lado da validade de nossos conhecimentos; meter-se em tais distinções perigosas seria naturalmente desaconselhável para nossos filósofos de diversão. Mas eles gostariam muito de ter as expressões, já que são tão eruditos. Então as empregam da seguinte maneira: tendo como objeto principal da sua filosofia tão-só o bom Deus - que por isso também aparece ali como um velho conhecido que dispensa apresentação disputam se ele está no mundo ou fora dele, isto é, reside num espaço onde não há mundo. No primeiro caso, intitulam-se imanente e, no outro, transcendente, falando o jargão hegeliano, naturalmente para se dar ares de alta seriedade e erudição. (Ibid, p. 74). Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.73-104, jan./jun., 1998 Relação entre o texto... 99 Um outro exemplo dessa espécie é fornecido pela teologia especulativa. Depois de Kant ter tirado todas as provas que constituíam seus suportes e tê-las lançado radicalmente por terra, isso não impede de forma nenhuma os meus senhores da filosofia lucrativa de venderem ainda, sessenta anos depois, a teologia especulativa pelo objeto bem próprio e essencial da Filosofia. (Ibid, p.89). Nietzsche critica a conseqüência que a filosofia lucrativa provoca nos jovens. Esses se tomaram ouvintes sem entender nada daquela confusão de conceitos e ao mesmo tempo aplaudem e aclamam os filósofos catedráticos. A conseqüência é que eles pensam não terem entendido por incapacidade de sua parte. Isso é muito presente em Schopenhauer. Quem ainda precisa de provas mais amplas para chegar à mesma compreensão do assunto, deve observar o epílogo da grande farsa de Hegel: a ela logo se segue a extremamente oportuna conversão do senhor Schelling do espinosismo ao bigotismo e sua posterior transferência de Munique para Berlim, sob toques de trombetas de todos os jornais, cujas notícias poderiam fazer crer que ele trouxesse então, no bolso, Deus em pessoa, por quem tanto se ansiava. Foi tão grande o ajluxo de estudantes que, para recebê-lo, até entravam no auditório pelas janelas. Depois, no fim do curso, o diploma de grande homem lhe foi entregue subversivamente por vários professores da universidade, que tinham sido seus ouvintes (Ibid, p. 42). Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.73-104, jan./jun., 1998 BENJAMIM, Paulo 100 O público acredita neles. Ora, de acordo com a crença generalizada de que quem vive de alguma coisa é também o que dela entende, o público espera obter tal garantia dos especialistas que se portam confiantemente nas cátedras, compêndios, diários e jornais literários. São eles, pois, que degustam e escolhem aquilo que é mais digno de atenção e seu contrário. (Ibid, p. 46). O Ensino de Filosofia é Prejudicial à Própria Filosofia Nietzsche termina seu texto Schopenhauer como Educador, ressaltando que o ensino da Filosofia pelas universidades é prejudicial à própria Filosofia, o aluno é confundido com uma série de sistemas e suas críticas. E agora pense-se em uma cabeça juvenil, sem muita experiência da vida, em que cinqüenta sistemas em palavras e cinqüenta críticas desses sistemas são guardados juntos e misturados. (NIETZSCHE, 1983, p. 81). Isso é, para Nietzsche, uma agressão à Filosofia, um ensino desses, ao invés de estimular o estudante, o desanima, não o ajuda a pensar. Pois à medida que obrigou os desencaminhados por ele a meter na cabeça, como se fosse conhecimento de razão, um galimatias feito do disparate mais grosseiro, uma trama de contradictionibus in adiecto, um palavratório de hospício, o cérebro, da pobre juventude, que lia Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.73-104, jan./jun., 1998 Relação entre o texto... 101 tais coisas com crédula dedicação e procurava apropriar-se delas como da mais alta sabedoria, saiu tão fora do gonzos que ficou para sempre incapacitado para o pensar efetivo. (SCHOPENHAUER, 1991, p. 78). Por isso, a maioria dos jovens eruditos de nossos dias já não é capaz de nenhum pensamento saudável e de nenhuma expressão natural. Nas suas cabeças não há um único preciso, nem mesmo claro e determinado, do que quer que seja: o palavreado desordenado e vazio dissolveu e obnubilou sua força de pensamento. (Ibid, p. 67). O ensino da Filosofia executado pela universidade ainda faz pior, as palavras dos senhores mestres passam como se fossem a dos verdadeiros filósofos, com isso cria-se o desprezo pelas obras já que foram refutados pelos catedráticos. Assim, o estudante vai para os cursos com confiança infantil e, já que encontra um homem que com ares de reflexão conscienciosa critica de cima para baixo todos os filósofos- que porventura ali estiveram, então ele não duvida ter chegado à ferraria certa e imprime em si credulamente toda sabedoria que ali borbulha, como se estivesse sentado diante do tripé da Pítia. A partir daí, naturalmente, não há para ele nenhuma filosofia além da de seu professor. Os verdadeiros filósofos, mestres dos séculos e milênios, que, silenciados nas prateleiras, aguardam seriamente aqueles que os desejem, estes, o estudante deixa de ler por obsoletos e refutados; tal como o professor, ele os deixou para trás. (Ibid, p.84). Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.73-104, jan./jun., 1998 BENJAMIM, Paulo 102 A conseqüência de tudo é que o ensino da Filosofia, além de provocar toda essa decadência já vista, faz o aluno se afastar da Filosofia, preferindo ser um cristão ou um funcionário. Assim, a filosofia lucrativa legitima o Estado, pois cria um homem que, ao invés de questioná-lo, o obedece. Mas, de fato, todos reconhecem que não se educa para ela, mas para uma prova de filosofia: cujo resultado, sabiamente e de hábito, é que quem sai dessa prova - ai, dessa provação! - confessa a si mesmo com um profundo suspiro: "Graças a Deus que não sou filósofo, mas um cristão e cidadão do meu Estado!" (NIETZSCHE, 1983, p. 81). Conclusão Nietzsche, em seu texto Schopenhauer Como Educador, é, sem dúvida, bastante influenciado pela obra de Schopenhauer Sobre Filosofia Universitária, e aprofunda as teses fundamentais desta. Para Schopenhauer, não existiam filósofos verdadeiros na univerdade, porém, somente professores de Filosofia, cuja filosofia Schopenhauer intitula "filosofia de cátedra" ou "filosofia lucrativa". Os professores de Filosofia não estão interessados com o fim próprio da Filosofia, mas com seus próprios fins, o ganha pão, a sua manutenção. Lecionam por um salário, não pela Filosofia ou pela verdade. A Filosofia para eles é apenas um meio, enquanto para o filósofo verdadeiro é um fim. Schopenhauer também ressalta que justamente como sustento o professor também tem em vista o Estado. O filósofo Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.73-104, jan./jun., 1998 Relação entre o texto... 103 de cátedra é um funcionário do Estado. Seu fim coincide com o fim deste, sendo este a própria manutenção de seu poder. Nietzsche quando escreve a 3ª Extemporânea retoma todas essas idéias e outras presentes no texto de Arthur Schopenhauer. Elogia Schopenhauer por ter lutado e vencido o seu tempo, ou seja, os valores presentes em sua contempo-raneidade. Schopenhauer também é um exemplo de "espírito livre," sabe perceber o gênio em si e fora de si. Mesmo sendo recusado em sua época soube superar e usou dessa recusa ou não aceitação, para consolidar a sua filosofia. Todavia, o que interessa a Nietzsche não é tanto a filosofia de Schopenhauer porém seu espírito ativo. Ele se apresenta como um modelo para Nietzsche e para quem quer educar-se. Aquele que possui liberdade de espírito, relativa à de Schopenhauer, é capaz de perceber as farsas do ensino de Filosofia e da Educação em geral existente. Contudo, Nietzsche, em seu último livro Ecce Homo escrito, em 1988, fala de seu próprio texto (Schopenhauer Como Educador), e então diz que, ao relê-lo, percebeu tratar-se não de Schopenhauer como educador, mas de Nietzsche como educador: Hoje que eu, de alguma maneira, volto a olhar para aqueles estados de ânimo de que são testemunhos os escritos citados, não pretendo de modo algum negar que, no fundo, só de mim neles se trata.... no Schopenhauer como Educador descreve-se minha história, o meu devir. Acima de tudo minha apologia! (...) A maneira como entendo o filósofo, matéria explosiva perante a qual tudo está em perigo, como separo, a uma distância de mil léguas, o meu conceito de "filósofo" de um Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.73-104, jan./jun., 1998 BENJAMIM, Paulo 104 conceito que até mesmo Kant mantém ainda, para já não falar dos "ruminantes" acadêmicos e de outros professores de filosofia: são coisas sobre as quais aquele escrito oferece preciosas indicações, notando ainda que, no fundo, quem ali fala não é Shopenhauer, como Educador, mas o seu contrário, Nietzsche, como educador. (NIETZSCHE, 1988, p. 98-99). Nesse texto expõe Nietzsche o que pensa sobre a Educação e Filosofia de sua época e propõe uma nova maneira de educar, a saber: aquela que se apóia na tendência natural existente no homem. Tarefa árdua, que, porém levaria o homem a sua plenificação, superando-se. Referências Bibliográficas NIETZSCHE, F.. Ecce Homo. Lisboa: Guimarães, 1988. NIETZSCHE, F.. Humano Demasiado Humano: Um olhar ao Estado. São Paulo: Abril Cultural, 1983a. (Obras Incompletas). NIETZSCHE, F.. Humano Demasiado Humano: Culto do Gênio por vaidade. São Paulo: Abril Cultural, 1983b. (Obras Incompletas). NIETZSCHE, F.. Para Além do Bem e Mal: Nós, eruditos. São Paulo: Abril Cultural, 1983c. (Obras Incompletas). NIETZSCHE, F.. Nascimento da Tragédia. São Paulo: Companhia das. Letras, 1992. Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.73-104, jan./jun., 1998 Relação entre o texto... 105 DIAS, Rosa Maria. Nietzsche Educador. São Paulo: Scipione, 1991. Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.73-104, jan./jun., 1998 A LEITURA E A PRODUÇÃO ESCRITA COMO PRÁTICAS DISCURSIVAS - notas sobre o cotidiano escolar – SANTOS, Sandoval* Resumo Propõe-se, neste artigo, discutir a problemática da produção da leitura e da escrita em contexto escolar na perspectiva de alguns dos pressupostos teóricos da análise de discurso. A opção por essa abordagem teórica faz emergir reflexões relevantes sobre o conceito de linguagem, de texto, de leitura e de escrita, especialmente no que essas questões implicam em termos de ensino-aprendizagem da língua materna. * Licenciado em Letras. Mestrando em Lingüística Aplicada na UNICAMP. Professor do Núcleo Pedagógico Integrado – UFPA. Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.105-119, jan./jun., 1998 SANTOS, Sandoval Nonato Gomes 106 1 Concepções acerca da linguagem e suas implicações na problemática da produção da leitura e da escrita em contexto escolar A produção da leitura e da escrita em contexto escolar articula-se intrinsecamente ao modo como a escola e seus agentes concebem a linguagem e quais as implicações disso no que vem a ser institucionalizado como texto, como língua e como ensino da língua materna. Nesse sentido, vale ressaltar que essas representações que se institucionalizam no/pelo espaço escolar são produzidas sócio-historicamente e analisáveis não em sua suposta neutralidade, mas no que implicam em termos de estabelecimento de conceitos e de práticas de leitura e de escrita. Assim, desvelar o cotidiano escolar no aspecto das concepções sobre a linguagem que o subjazem é passo significativo para a compreensão das práticas de leitura e de escrita mobilizadas nesse cotidiano. Geraldi (1984) discute essa questão (a toda prática corresponde uma teoria) quando afirma que a metodologia de ensino mobiliza a articulação entre uma "opção política" e "os mecanismos utilizados em sala de aula" (GERALDI, 1984, p. 42). Luckesi (1992) também reflete sobre essa questão quando lembra que a metodologia é um complexo que abrange um caráter técnico e outro teórico. Para ele, a perspectiva técnicometodológica da metodologia refere-se "aos meios pelos quais atingimos fins próximos, articulados com fins políticos mais distantes" (LUCKESI, 1992, p. 152). Já a perspectiva teórico metodológica evidencia-se pelo modo diferenciado de apreensão da realidade do ponto de vista do conhecimento. Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.105-119, jan./jun., 1998 A leitura e a produção escrita como práticas discursivas... 107 É a partir dessa relação tensa entre teoria e prática que Geraldi (1984) tenta explicitar as várias concepções acerca da linguagem que perpassam o cotidiano escolar: linguagem como expressão do pensamento, linguagem como instrumento de comunicação e linguagem como forma de interação. A concepção que toma a linguagem como expressão do pensamento - concepção mentalista (ALVES, 1993, p. 73) - deu sustentação aos estudos tradicionais. A linguagem teria uma função representativa, pois através dela o homem representaria o mundo e veicularia suas próprias idéias. O problema parece estar no fato de que, nessa concepção, a representação pela linguagem "encontra sua expressão mais completa, mais objetiva na escrita (...), vista como forma superior de expressão (...)" (ibid). Daí que a concepção de linguagem como expressão do pensamento privilegia a modalidade escrita da língua em detrimento da oral. A concepção que aborda a linguagem como instrumento de comunicação, por sua vez, articula-se à teoria da comunicação e percebe a língua como código que serve à transmissão de informações, mobilizando a relação linear e sistêmica entre um emissor e um receptor. Nessa abordagem, o conceito de "mediação" é pensado na perspectiva de colocar a linguagem como instrumento. Já na terceira concepção - linguagem como forma de interação - a linguagem "não é vista apenas como suporte de pensamento nem somente como instrumento de comunicação" (ORLANDI, 1993, p. 17). Importa, nessa perspectiva, conceber a linguagem como "trabalho", conforme explicitam os estudos na linha teórica da análise de discurso, que discutiremos a seguir. Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.105-119, jan./jun., 1998 SANTOS, Sandoval Nonato Gomes 108 1.1 A linguagem na perspectiva da al1álise de discurso Na concepção proposta pela análise de discurso, a linguagem é tomada como ação transformadora, cuja constituição é determinada sócio-historicamente. Nessa perspectiva, cabe conceber a linguagem como espaço de interação humana, produzida em condições sócio-históricas determinadas. Orlandi (1993) trabalha com esse conceito de linguagem, evidenciando os processos e as condições que entram em jogo na constituição do que chama "objeto-linguagem". Afirma a autora que Ao definir a linguagem como trabalho, desloca-se a importância dada à sua função referencial. Essa função tem ocupado uma posição central na lingüística clássica e daí decorre pensar-se a comunicação apenas sob o enfoque da informação. Na perspectiva da análise de discurso, entretanto, tomar a palavra é um ato social com todas as suas implicações: conflitos, reconhecimentos, relações de poder, constituição de identidades etc. (ibid). Constatamos, portanto, em que medida o conceito de linguagem proposto pela análise de discurso amplia o caráter meramente referencial que supostamente teria a linguagem ao incluir em um novo paradigma teórico o aspecto sócio-histórico como constitutivo da linguagem. Isso nos leva a relativizar aquelas posturas teóricas que dão à linguagem um caráter quase sobre-humano, postulando até mesmo a possibilidade de a Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.105-119, jan./jun., 1998 A leitura e a produção escrita como práticas discursivas... 109 mesma existir independentemente dos homens. O deslocamento desse ponto de vista para o proposto pela análise de discurso implica considerar os processos de constituição da linguagem, o que, por sua vez, tem a ver com as condições de produção da mesma, a saber: a interação entre os interlocutores, as múltiplas imagens que os mesmos elaboram a respeito de si e do outro, a historicidade do processo de significação, as formações ideológicas1, que acabam por definir o que pode "ser dito" e o que deve ficar no plano do não-dito numa determinada situação comunicativa etc. As implicações dessa abordagem teórica sobre a questão da linguagem no contexto escolar são múltiplas e significativas. Isso porque a partir dela coloca-se como necessário o repensar sobre as relações de ensino-aprendizagem, sobre qual vem a ser o estatuto do texto (se é que pode ser estabelecido), sobre como se processa a produção da leitura e da escrita no espaço escolar. Daí salientar-se que na maneira como a escola lida com o problema da leitura e da produção escrita está subjacente uma determinada concepção de mundo, de linguagem, que lança os fundamentos teórico e técnico-metodológicos do processo educativo escolar. A compreensão do processo de produção da leitura e da escrita na escola passa, então, pelo desvelamento desse processo em toda a sua complexidade e sempre na perspectiva de uma determinada abordagem teórica. Caberia inicialmente uma discussão: qual o conceito de texto que a análise de discurso propõe e que relação esse conceito guarda 1 Orlandi (1993) fala das formações ideológicas citando Haroche et al (1975) e diz que elas consistem no "conjunto de atitudes e representações que não são nem individuais nem universais. mas se reportam mais se reportam mais ou menos diretamente às posições de classe em conflito limas com as outras". Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.105-119, jan./jun., 1998 SANTOS, Sandoval Nonato Gomes 110 com as práticas de leitura e de produção escrita evidenciadas na escola. 1.2 Sobre o conceito de texto Com as contribuições teóricas da análise de discurso, a noção de texto passa a ser redimensionada à medida que se processa um deslocamento daquela concepção que percebe o texto como mera adição, justaposição de frases para uma outra, que toma o texto como unidade de significação, constituída no processo de interação. Orlandi (1993), na tentativa de conceituar texto, faz-nos lembrar que A noção de texto, enquanto unidade da análise de discurso, requer que se ultrapasse a noção de informação, assim como coloca a necessidade de se ir além do nível segmental (ibid, p. 22). Constata-se, então, como essa concepção de texto proposta pela análise de discurso subverte aquela concepção que se estabeleceu historicamente2 no espaço escolar de que a noção de texto estaria necessariamente associada à modalidade escrita da 2 A noção de texto é constituída sócio-historicamente. Orlandi (1993), em A História do sujeito-leitor: uma questão para a leitura, mostra a diversidade de sentidos que a palavra texto já mobilizou: desde aquele que identificou texto com livro do evangelho, no século XII, até aquele que o identificou com qualquer escrito (sagrado ou profano), no século XIII. Ocorre, nessa época, a distinção entre textos autênticos (sagrados) e comentários (profanos), sendo que, posteriormente, o critério de estabelecimento do que seria autêntico refere-se à distinção entre o autor (o institucionalizado como tal) e o que não o é. Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.105-119, jan./jun., 1998 A leitura e a produção escrita como práticas discursivas... 111 língua, a qual, aliás, goza de maior prestígio na escola3. Além disso, com essa concepção, rompe-se com o critério de extensão como determinante na definição do que seja texto. Conforme explicita Orlandi, o texto, "enquanto unidade pragmática, (...) pode ser uma palavra, um sintagma, um conjunto de frases (escrito ou oral), o que importa é que funciona como unidade de significação em relação à situação" (ibid). Outro dado importante a que nos reporta a concepção da análise de discurso é o fato de que o texto não se estabelece como tal a priori, tanto que uma mesma formação discursiva4 pode se constituir como texto numa determinada situação de comunicação e não se constituir em outra. Agora, o que pode ocorrer (e ocorre) é um processo de "institucionalização" de determinados modelos discursivos, os quais acabam por se estabelecer como textos independentemente até mesmo dos interlocutores envolvidos no processo comunicativo. Desconhece-se, dessa forma, que a noção de texto é produzida historicamente e que. "o texto não preexiste à sua leitura" (SOARES, 1995, p. 26), ou seja, a própria existência deste instaura-se no espaço de interação. Nesse sentido, é preciso "desmistificar e desautorizar modelos", como propõe Magnani (1989, p. 93). Por fim, cabe lembrar que um texto se constitui enquanto tal também pela relação de diálogo que mantém com outros textos. Ele não é, portanto, uma unidade fechada em si 3 No estudo Por um ensino-aprendizagem da expressão oral em contexto escolar, Alves (1993) avalia como na escola o registro escrito tem primazia em relação ao falado, não sendo esse último tratado significativamente no contexto das propostas pedagógicas de ensino da língua materna. 4 Nas palavras de Orlandi, As formações discursivas são formações componentes das formações ideológicas e determinam o que pode e deve ser dito a partir de uma posição em uma conjuntura dada (ORLANDI, 1993, p.18). Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.105-119, jan./jun., 1998 SANTOS, Sandoval Nonato Gomes 112 mesma, mas um tecido que enreda a todos - sujeitos-leitores, situação comunicativa etc - em múltiplas situações de produção, de apropriação e de atribuição de sentidos. 2 A produção da leitura e da escrita em contexto escolar 2.1 A leitura como prática discursiva O primeiro passo para se tentar construir um conceito de leitura na perspectiva teórica da análise de discurso é compreender a leitura como processo que é produzido (ORLANDI, 1993, p. 38), buscando explicitar as condições de sua produção. Essa idéia preliminar parece ir ao encontro da própria concepção de linguagem que a análise de discurso mobiliza: assim como a linguagem, também a leitura é vista como trabalho, como espaço de interação entre sujeitos sóciohistoricamente constituídos, ou seja, é vista em sua historicidade. A partir desse ponto de vista rompe-se com aquela concepção mistificadora que percebe a prática da leitura como um ato solitário, isolado, desvinculado do contexto histórico no qual o próprio se atualiza. Por outro lado, desloca-se o conceito de leitura daquele reducionismo que o identifica como mera habilidade de decodificação/codificação de sinais, como "exercício mecânico de traduzir grafia em som" (REGO, 1994, p. 126). Passa-se, então, a conceber a leitura como processo de instauração de sentidos, o que se dá entre sujeitos sóciohistoricamente determinados. Orlandi enfatiza a relação de confronto que se dá pelo processo de leitura afirmando que Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.105-119, jan./jun., 1998 A leitura e a produção escrita como práticas discursivas... 113 O leitor não interage com o texto (relação Sujeito/objeto), mas com outro(s) sujeito(s) (leitor virtual, autor etc). A relação como diria A. Schalff (em sua crítica ao fetichismo sígnico, 1966), sempre se dá entre homens, são relações sociais, eu acrescentaria, históricas, ainda que (ou porque) mediadas por objetos (como o texto). (ORLANDI, 1993, p. 9) A autora adverte para o risco de absolutização da mediação (do objeto). Isso poderia nos levar a anular a historicidade do texto e de sua produção. Parece claro que, nessa perspectiva de leitura proposta pela análise de discurso, a própria posição do leitor ganha relevo: ele já não tem a função apenas de decifrar um sentido que já está dado a priori no texto, mas de atribuir-lhe múltiplos sentidos, constituindo-se a si próprio, dessa forma, como sujeitoleitor e não como mero depositário de sentidos préestabelecidos. É nesse sentido que Orlandi afirma que "a leitura é o momento crítico da constituição do texto, o momento privilegiado do processo de interação verbal, uma vez que é nele que se desencadeia o processo de significação" (ibid, p. 38). Vê-se, portanto, em que medida essa concepção imprime ao processo de leitura uma dinamicidade que subverte radicalmente aquelas posturas teóricas que percebem a leitura como mero produto, o que a coloca na perspectiva da estaticidade, servindo tão-somente a finalidades imediatistas e utilitárias legitimadas pela instituição escola, tais como as que apresenta Magnani: "ler para fazer exercícios de interpretação, para adquirir modelos de escrita, para gostar e se habituar, Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.105-119, jan./jun., 1998 SANTOS, Sandoval Nonato Gomes 114 para conscientizar e politizar" (MAGNANI, 1989, p. 35). Perde-se, com isso, na escola, o sentido da leitura como prática discursiva, pela qual sujeitos e sentidos são constituídos no momento mesmo em que o ato de ler se processa, não havendo, dessa forma, aquela tão propalada dicotomia entre "aprender a ler" e "tornar-se leitor", posto que a própria constituição do sujeito enquanto leitor dá-se dinamicamente no - processo de múltiplas interações que ele estabelece com também múltiplos interlocutores, em situações determinadas de comunicação e a partir de um lugar social determinado. 2.2 A produção escrita como prática discursiva O processo de produção escrita, como o processo de produção da leitura, dá-se, na perspectiva teórica da análise de discurso, no jogo das interações sociais. Isso implica conceber a produção escrita não como mero exercício formal e individual, mas como prática fundamentalmente sócio-cultural, na qual o sujeito-autor articula múltiplos sentidos. Nessa perspectiva, fazse necessário articular a produção escrita às próprias condições em que ela se processa. Essas condições referem-se ao contexto situacional, ideológico, histórico-social, aos interlocutores, às finalidades; elementos que são constitutivos da produção textual e que nos fazem, com Orlandi, afirmar que, no processo de produção de texto, "aquilo que se diz significa em relação ao que não se diz, ao lugar social do qual se diz, para quem se diz..." (ORLANDI, 1993, p. 85). Assim, a produção escrita, para se constituir como prática discursiva, precisa colocar em confronto interlocutores sócio-historicamente organizados, que mobilizam sentidos a partir de um lugar social determinado. O ato de dizer, então, não é neutro, pois nele está subjacente uma Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.105-119, jan./jun., 1998 A leitura e a produção escrita como práticas discursivas... 115 decisão, uma opção política, a elaboração de uma imagem do locutor em relação a seu(s) interlocutor(es). Na escola, entretanto, a produção escrita acaba perdendo esse caráter de prática discursiva exatamente porque, nesse contexto, estabelece-se uma "atividade lingüística artificial" (GERALDI, 1984, p. 78). Brito observa esse mesmo problema e afirma que nos exercícios e provas de redação, a linguagem deixa de cumprir qualquer função real, construindo- se uma situação artificial, na qual o estudante, à revelia de sua vontade, é obrigado a escrever sobre um assunto em que não havia pensado antes, no momento em que não se propôs e, acima de tudo, tendo que demonstrar (esta é a prova) que sabe. (BRITO, 1984, p. 118). Assim, a produção escrita permanece como atividade destituída de sentido, processada de maneira pouco significativa para o aluno, numa dinâmica de artificialismo e de disfarce em que ficam velados (se é que existem) o "para quê", o "para quem", o "por quê" o texto está sendo produzido. Smolka (1994) também assinala esse aspecto de "ilusão" e de "disfarce" de que se revestem as práticas de leitura e de escrita na escola. No estudo A criança na fase inicial da escrita - a alfabetização como processo discursivo, a autora mostra como a prática da escrita em contexto escolar fica alheia ao funcionamento da língua; daí porque se torna uma prática desprovida de sentido, cuja função está circunscrita a ela mesma: escreve-se para se aprender a escrever. Diante desse quadro, Smolka propõe que o relevante é trabalhar a escrita na Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.105-119, jan./jun., 1998 SANTOS, Sandoval Nonato Gomes 116 perspectiva de seu funcionamento, de sua construção como processo discursivo, como forma de linguagem "constitutiva do conhecimento no jogo das representações sociais" (SMOLKA, 1994, p. 53). A autora toma, assim, o trabalho de escritura como instaurador de modos de interação; daí assegurar que a produção da escrita tem uma dimensão dialógica fundamental. Na verdade, Não se trata, então, apenas de "ensinar" (no sentido de transmitir) a escrita, mas de usar, fazer funcionar a escrita como interação e interlocução na sala de aula, experienciando a linguagem nas suas várias possibilidades. (SMOLKA, 1994, p. 45). Percebe-se, portanto, em que medida a prática da produção escrita na escola deve assumir um caráter significativo para a criança, devendo estar integrada ao conjunto de práticas que lhe são necessárias e que são relevantes para a sua vida. 2.3 O texto na escola: as condições de sua leitura e de sua produção Para compreender a leitura e o processo de produção escrita na escola é preciso articulá-los às condições em que os mesmos se efetivam. Cabe, então, considerar o texto, não na perspectiva de uma suposta "essência" que lhe seria inerente, mas em seu funcionamento, o que implica abordar os modos de produção e de percepção do mesmo, o lugar social e os conhecimentos prévios dos interlocutores, as finalidades mobilizadas, enfim, todos os elementos que, no texto, instauram Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.105-119, jan./jun., 1998 A leitura e a produção escrita como práticas discursivas... 117 um espaço de discursividade sócio-historicamente constituído. Compreender as condições em que se dão a leitura e a produção escrita aparece, então, como possibilidade de encarar o texto não como produto, mas na perspectiva de explicitação dos processos de sua constituição. Além dos já referidos constituintes das condições de produção da leitura e da escrita - os interlocutores, a situação, o contexto histórico-social e ideológico, dentre outros - Orlandi nos fala de outro componente relevante dessas condições. Trata-se das "histórias de leitura do texto e do leitor" (ORLANDI, 1993, p. 41). Segundo a autora, no processo de instauração da significação é mobilizado um confronto entre "previsibilidade" e "imprevisibilidade" de sentidos. Há, assim, sempre uma relação dinâmica entre a sedimentação de um sentido que ganha a condição de institucionalizado e a plural idade de sentidos possível. Desse modo, quando Orlandi aborda a questão das histórias de leituras do texto e do leitor como componente das condições de produção da leitura (e eu acrescentaria, de produção da escrita) parece querer mostrar que, no jogo de interação que o leitor (e também o autor) estabelece, há sentidos que são previstos (e acabam se institucionalizando como tal) e outros que são possíveis. Decorre dessa reflexão o estabelecimento de dois processos de produção da leitura (e eu continuo acrescentando, da escrita): o "processo parafrástico", pelo qual um sentido é reconhecido, sedimentado e permanece como único e o "processo polissêmico", através do qual reafirma-se a plural idade possível de sentidos no espaço textual5. 5 De acordo com Orlandi, "a polissemia é a multiplicidade de sentidos e a paráfrase é a permanência do mesmo sentido sob formas diferentes”. (ORLANDI, 1993, p. 86). Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.105-119, jan./jun., 1998 SANTOS, Sandoval Nonato Gomes 118 Essas considerações apontam para o problema teórico metodológico das práticas de leitura e de produção escrita na escola. Na prática escolar, o que se dá, conforme lembra Magnani (1995), é um processo de cristalização de um certo modelo de gosto, que explicita "a circularidade de uma lógica de privação da leitura" (MAGNANI, 1995, p. 33). Isso tem a ver com um projeto (institucionalizado pela escola) que visa a estabelecer princípios uniformes de circulação escolar da leitura e de petrificação de um modelo único de trabalho com o texto. Temos, assim, um processo de "escolarização" das práticas de leitura e de produção escrita que, ao invés de garantir a liberdade de invenção, molda e imobiliza a relação do alunoleitor-autor com o texto, tornando essas práticas estéreis do ponto de vista de sua funcionalidade e da multiplicidade de sentidos que elas poderiam mobilizar. Referências Bibliográficas ALVES, Sônia Célia de Oliveira. Por um ensino-aprendizagem da expressão oral em contexto escolar. Dissertação (Mestrado em Lingüística). Universidade Federal do Pará, 1993 BRITO, Percival Leme. Em terra de surdos-mudos - um estudo sobre as condições de produção de textos escolares. In: GERALDI, 1. W. (org.). O texto na sala de aula leitura e produção. Cascavel: ASSOESTE, 1984. GERALDI, João Wanderley. Concepções de linguagem e ensino de português. In: GERALDI, J.W. (org.). O texto na sala de aula leitura e produção. Cascavel: ASSOESTE, 1984. Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.105-119, jan./jun., 1998 A leitura e a produção escrita como práticas discursivas... 119 _____. Prática da leitura de textos na escola. In : GERALDI, J. W. (org.). O texto na sala de aula - leitura e produção. Cascavel: ASSOESTE, 1984. LUCKESI, Cipriano. Procedimentos de ensino. In: Filosofia da Educação. São Paulo: Cortez, 1992. MAGNANI, Maria do Rosário Montatti. 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Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.105-119, jan./jun., 1998 ORIENTAÇÃO PARA APRESENTAÇÃO DE ORIGINAIS Depósito legal na Biblioteca Nacional, conforme Decreto Nº 1825, de 20 de dezembro de 1907 Os textos encaminhados para publicação na Revista e nos Papers do Centro de Educação serão submetidos a uma preparação editorial, podendo ser reapresentados aos autores para que os adaptem às seguintes orientações: 1 O texto deve versar sobre temas educacionais e/ou áreas afins; 2 O texto deve se enquadrar nas seguintes categorias: artigos originais, artigos de revisão, comunicações, notas técnicas, resenhas, resumos de dissertações e teses; 3 Texto com, no máximo trinta (30) páginas datilografadas ou digitadas, em espaço dois (2), com margens: superior três (3) centímetros (sendo a primeira página do capitulo com 9cm); inferior 2,5cm; esquerda 4cm; direita 2cm; 3.1 Os textos digitados deverão ser encaminhados em disquetes de 3,5 (polegadas) ou 51/4 (51/4 de polegadas) devendo ainda ser usado, para digitação, o editor de textos Word for Windows; 4 Capa contendo: nome da instituição, centro ou departamento ao qual o autor pertença; título do trabalho; nome do autor; qualificação acadêmica; local e data; 5 Nas páginas intercaladas com ilustrações, considerar 50% para datilografia e 50% para a aposição das figuras e/ou tabelas; 6 As figuras: desenhos, gráficos, mapas, etc., com respectiva legenda, devem ser apresentadas em original ou em papel vegetal, índicando-se no texto o lugar onde deverão ser incluídas; 7 Para as fotografias deve ser observado, no mínimo, o tamanho 6x9; 8 As tabelas deverão ser numeradas em algarismo arábico (independentemente das figuras) e encabeçadas pelas legendas, informandose abaixo a fonte da pesquisa; 9 Quando a página apresentar nota de rodapé, consídere-se, para isto, o espaço correspondente a 1/3 da página, separada por uma barra horizontal; o conteúdo das notas deve ficar sempre na mesma página da remissão; Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.105-119, jan./jun., 1998 SANTOS, Sandoval Nonato Gomes 10 O número das chamadas (remissões) deve vir em corpo menor e um pouco acima da linha do texto; a numeração das notas deve ser contínua até o final do texto; 11 Vocábulos estrangeiros devem ser escritos em itálico elou negrito; 12 Os autores devem evitar rasuras e trechos ilegíveis; 13 As citações bibliográficas - tanto no corpo do texto, quanto em lista no final do texto - devem obedecer à NBR 6023 da ABNT; 14 O texto deve ser precedido de um resumo (em português e versão em língua estrangeira), obedecendo o máximo de 150 palavras para o relato de pesquisa e de 100 para os demais tipos de texto. Consultar a NB-88 jul/87 para elaboração de resumos; 15 As citações com mais de cinco (5) linhas devem ser escritas em corpo menor, espaço simples, destacadas do texto, com adentramentos laterais centralizando-as. OBS: Após contato com os autores e dirimidas as dúvidas. Considerar-se-á fechada a matéria não se admitindo acréscimos que não constem dos originais. COMISSÃO EDITORIAL DO CENTRO DE EDUCAÇÃO