PROFESSORES EM REVISTA: A REVISTA DE FILOSOFIA KRITERION E SUA
INTERLOCUÇÃO NO DEBATE EDUCACIONAL MINEIRO
Lucimar Lacerda Machado
[email protected]
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Maria do Carmo Xavier
[email protected]
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
PALAVRAS-CHAVE: IMPRESSO; ENSINO SECUNDÁRIO; MODERNIZAÇÃO;
Que lugar foi reservado ao ensino secundário no projeto de modernização e
desenvolvimento mineiro, na década de 1950? Para responder a pergunta é importante
considerar que em Minas Gerais, como em outras regiões do país, o debate em torno do
ensino secundário – suas finalidades, princípios, objetivos e organização – se articula a
história da política educacional brasileira. É possível dizer que desde o século XIX a educação
secundária passou por uma profusão de leis e reformas que visavam corrigir seus dilemas e
contradições. Contudo, o formalismo e a incompletude das medidas e intervenções propostas
pelos governos não conseguiu produzir um sistema escolar público e uma estrutura de ensino
secundário que, efetivamente, oferecesse oportunidades a todos.
Nesta comunicação focamos elementos da conjuntura nacional que caracterizaram a
relação entre a educação e as demandas de modernização e desenvolvimento do país, tendo
como fio condutor as propostas de reformas e as críticas à organização do ensino secundário
na década de 1950. O objetivo é destacar os antagonismos da modernização brasileira e da
estruturação legal do ensino secundário, na sua vinculação com as demandas socioeconômicas
do período.
Partindo da questão apresentada acima, buscamos compreender o pensamento de um
grupo de professores e intelectuais mineiros que manifestou ideias e críticas sobre o ensino
secundário, fez considerações sobre a sua natureza, suas deficiências, problemas e
necessidade de adequação ao processo geral de modernização brasileira na conjuntura da
década de 1950. Para tanto, direcionamos as primeiras investigações para uma única fonte
documental: a Revista de Filosofia Kriterion.
Este caminho metodológico se justifica pela opção de produzir um mapeamento de
informações sobre a temática do ensino secundário a partir de uma fonte específica. Neste
caso, um periódico que desempenhou importante papel no debate mineiro à época e que nos
ajuda a entender a chamada “Crise do Ensino Secundário” i.
O impresso e as ideias em circulação
O trabalho com imprensa periódica tem se apresentado como importante recurso para
ampliar e aprofundar as pesquisas na área da história da educação. Atentos à materialidade e
aos aspectos relacionados aos usos e às estratégias editorias que caracterizam o periódico
como um produto cultural específico, os historiadores têm explorado a imprensa periódica
como objeto e fonte de pesquisa. Não temos aqui a pretensão de discutir os vários aspectos
que emergem desse trabalho, mas, reafirmar a premissa de que cabe ao historiador estabelecer
as associações possíveis entre cada fonte, cada documento, e as informações trazidas por
outros estudos sobre o tema. No caso desse estudo indexamos 29 artigos publicados entre os
anos de 1947 e 1961, que abordavam a educação secundária e os temas que dialogavam
diretamente com a temática educação e modernização. Conferências, discursos, palestras,
oração de paraninfo, tradução ou adaptação de texto entre outros. E esse banco de dados
permitiu situar o debate sobre a educação secundária e apreender suas vinculações com as
questões do desenvolvimento e da modernização, dentro do recorte temporal proposto. Ou
seja, a criação da revista no ano de 1947 e o momento de aprovação da Lei 4024/61, que, em
certa medida encerra uma das etapas da reforma do ensino secundário no Brasil.
A revista foi utilizada como fonte, especialmente pelo caráter formativo presente nos
textos nela publicados e a intencionalidade do periódico em divulgar e vulgarizar o
conhecimento científico entre alunos, professores e demais interessados no assunto em pauta.
O teor educativo da revista permitiu sistematizar informações sobre as ideias propagadas no
processo de modernização da educação secundária e destacar o repertório cultural do período,
além, de abrir caminhos para a percepção dos questionamentos e tensionamentos do projeto
político de reforma do ensino secundário em Minas Gerais.
Assim, mesmo que restrito a uma publicação específica e a um grupo reduzido de
intelectuais, os dados sistematizados permitem compreender o repertório analítico que
circulou em torno do papel do ensino secundário no desenvolvimento e modernização
brasileira nos anos de 1950 e seus desdobramentos em Minas.
Sobre a revista Kriterion é preciso dizer que ela foi criada em 1947 por um grupo de
professores da antiga Faculdade de Filosofia da Universidade de Minas Gerais (UMG),
interessados em divulgar conhecimentos e a opinião “abalizada” de professores, políticos e
estudiosos do campo da filosofia, da literatura e ciências sociais. Destacando-se como uma
das mais longevas publicações da atual Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a
Kriterion ainda se encontra em circulação, destacando-se como importante espaço de
divulgação da produção acadêmica.
Com periodicidade trimestral, a revista se destinava a um campo vasto da produção
acadêmica versando entre história, literatura, filosofia, educação, dentre outros. No primeiro
exemplar da revista (1947) o então diretor da Faculdade de Filosofia de Minas Gerais (FMG),
Braz Pellegrino destaca seus propósitos.
A revista que ora inicia a sua vida pretende, antes de tudo, conquistar para si o papel
de porta-voz da cultura em terras de Minas, contendo em suas páginas o que de mais
representativo existe em nosso Estado, no que diz respeito às belas letras, filosofia e
ciência. E não se nos acoime de vaidade ao expormos os propósitos que orientam
nossa ação (KRITERION, vol. 1, no.1, 1947).
A revista fez circular entre 1947 e 1961, um conjunto de artigos e comentários críticos
de vários eventos de caráter político, econômico ou social ocorridos na sociedade mineira e
brasileira estabelecendo sua correlação e desdobramentos no campo educacional. Como um
veículo de divulgação do trabalho científico a revista abriu também espaço para a circulação
de ideias e ações da intelectualidade mineira, como sugere o seu editorial:
O intelectual, o artista, o filósofo, o poeta são, antes de mais nada, homens de ação, e
o ato neles é o mais puro, o mais dinâmico, o mais penetrante, porque mais próximo
das fontes onde borbulha o espírito, matriz de tudo quanto existe. É na linha deste
raciocínio que criamos a presente revista. Ela determina bem os intuitos que
impulsionam até o futuro a Faculdade de Filosofia de Minas Gerais (KRITERION, nº
1, vol. 1 – julho a setembro de 1947).
Nos textos publicados no período em tela uma série de análises, informações e
sugestões de mudanças no ensino secundário permitem entender a ambiência e as várias
facetas do debate mineiro. Como um suposto “porta-voz da cultura em terras de Minas” a
Kriterion contribuiu, sobretudo, para fazer circular a pluralidade de ideias e ideais de
professores, acadêmicos, filósofos, cientistas e homens públicos, sobre os destinos do ensino
secundário. Tratava-se, portanto, de um grupo representativo dos interesses da elite
educacional mineira que, naqueles anos, transitavam entre a Faculdade de Filosofia e os
estabelecimentos de Ensino Secundário. Esse grupo manifestou suas crenças em relação aos
princípios, valores e à organização do ensino secundário; à formação e o recrutamento dos
professores; à compreensão sobre o exercício do magistério e a necessidade de uma renovação
didática do ensino secundário e do ensino superior, numa época de transformações e
mudanças radicais nos comportamentos político e social da juventude belo-horizontina. Mas,
para compreender os termos de debate é preciso situá-lo no tempo.
O Ensino Secundário e a modernização brasileira
Pesquisadores da história da educação, VEIGA (2008) FARIA FILHO (2010)
GONDRA e SCHUELER (2008) tem chamado a atenção para a necessidade de relativizar o
uso de clivagens macroscópicas para explicar o fenômeno educacional, evitando, assim,
incorrer numa visão panorâmica de um determinado período histórico. Neste trabalho
buscamos evitar essa compreensão da história e observar o movimento político e cultural que
desde meados do século XIX marcou um conjunto de mudanças econômicas, políticas, sociais
que alteraram o cotidiano das pessoas e a organização das instituições e hierarquias da vida
social. Esse processo, nomeado como de modernização da sociedade brasileira se deu em
ritmo diferenciado em cada região e foram evidenciadas, no campo educacional, por um
conjunto de reformas e interferências, conduzidas pelo Estado.
Ao longo do tempo, as ações do governo, frente às demandas de modernização do
país, produziram impactos diretos na vida das camadas populares, que, recorrentemente,
foram excluídas dos projetos modernizadores conduzidos pelo Estado. A análise das políticas
públicas nos ajuda a compreender os desequilíbrios regionais e dimensionar o lugar conferido
à educação escolar, especialmente, nos confrontos em torno do alargamento da concepção de
educação pública que, a partir com a ascensão dos discursos republicanos, uniu as elites em
torno da crença de que o progresso da nação dependia da escolarização do povo. Nesse
movimento a imposição da ordem republicana se deu a partir de um conjunto de reformas
sociais. A reforma urbana de Pereira Passos e do movimento de Canudos, dois exemplos
ocorridos no início da república, nos ajudam a explicar como o governo organizou o processo
de modernização da sociedade brasileira a partir da exclusão das camadas populares. Situação
que se repetiu ao longo de décadas ampliando as desigualdades regionais e acentuando o
quadro de desordem social.
No século XX, várias reformas urbanas, foram implantadas no Brasil desencadeando
uma série de mudanças no âmbito público e privado. Basicamente essas reformas visavam
ajustar a população em geral aos interesses político-administrativo, econômico e social dos
grupos dominantes. Pedagogicamente criteriosas, as reformas sociais tentaram impor novas
formas de organização e planejamento social. Foi o caso da reforma Pereira Passos, que
definiu um novo ordenamento no uso do espaço urbano demarcando espaços de moradia, de
circulação e de sociabilidade dos diferentes grupos sociais, segregando e expulsando a
população pobre para as áreas periféricas aos grandes centros, sem infraestrutura urbana e
social.
Na mesma lógica, a repressão ao movimento de Canudos, ocorrido no interior do
nordeste brasileiro no final do século XIX, demarcou a ação brutal do governo frente aos
questionamentos da ordem republicana. Nos dois exemplos é clara a imposição do Estado
sobre a sociedade. De lá para cá, o país agrário e latifundiário, fundado na tradicional cultura
escravocrata e na economia cafeeira, continuou reprimindo, segregando e dificultando a
participação política das camadas populares. Marcado por antagonismos o projeto
modernizador brasileiro excluiu a população pobre das benesses de uma política pública
social que verdadeiramente assegurasse seus direitos básicos. O projeto moderno não foi
capaz de produzir reformas que, efetivamente, se ajustasse à realidade nacional.
A inadequação do projeto nacional de modernização e desenvolvimento econômico e
social do país, também demarcou as políticas educacionais. A dimensão do direito a educação
como direito social (o que inclui a questão da gratuidade e da obrigatoriedade) foi silenciando
em todas as constituições republicanas, exceto na de 1988, que o consagrou no âmbito da
educação básica. Apesar dessa conquista ainda são muitos os limites e dificuldades para a
formalização desse direito para toda a população. No Brasil as profundas desigualdades
sociais dificultaram a concretização de um projeto de modernização capaz de assegurar às
camadas populares acesso aos direitos sociais, condição fundamental para a construção da
ordem republicana.
Não resta dúvida de que a escola teve e ainda tem um papel importante na produção
dessas desigualdades. O seu caráter homogenizador da cultura e sua prática discriminatória e
essencialmente meritocrática forjou, historicamente, o seu distanciamento das demandas
populares.
A ideia da produção da escola como assunto de governo provocou entre os anos de
1920/30 calorosos debates envolvendo educadores, intelectuais e o Estado. Protagonizado por
intelectuais com representatividade política – Carneiro Leão, Francisco Campos, Fernando
Azevedo, Anísio Teixeira, Lourenço Filho – esse movimento, de defesa de uma educação
nacional que adequasse a escola primária e secundária às mudanças que ocorriam no país,
produziu o campo educacional dividindo opiniões e polarizando o debate entre renovadores e
conservadores. Para Chagas (1998) “Convencidos de que ações modernas são obras de arte
política” esses intelectuais fundaram a Associação Brasileira de Educação (ABE) e em 1932
redigiram um Manifesto político, endereçado “ao povo e ao governo”, por meio do qual se
demarcou os princípios que deveriam produzir a obra de reconstrução educacional, ou seja, a
escola de massa.
A resposta do Estado, encarregado de pensar a educação escolar, se deu a partir de um
rol de decretos, que ficaram conhecidos como a Reforma Francisco Campos, que, dentre
outras providências, produziu uma estrutura orgânica para o ensino superior, secundário e
comercial em todo o território nacional (Romanelli, 2002). Entre 1942 e 1946, o ministro
Gustavo Capanema estabeleceu um novo conjunto de leis, conhecidas como Leis Orgânicas
do Ensino, destinadas a cada área específica, normatizando a formação propedêutica e o
ensino profissional. Em ambos os casos as reformas se apresentaram como formulações de
uma política educacional que acentuava as incongruências do sistema nacional de ensino.
Marcadamente autoritárias essas reformas consolidaram uma legislação restritiva para a
educação secundária, o que contribuiu para hierarquizar ainda mais esse nível de ensino. As
reformas estruturaram o curso secundário a partir de um currículo enciclopédico, de caráter
elitista, e um processo de avaliação extremamente rígido e altamente seletivo. Ao
regulamentar o ensino comercial e industrial, destinados à formação de algumas profissões
técnicas, restringiu o currículo à preparação de jovens, especialmente das camadas populares,
para o atendimento das demandas dos setores industriais. Naturalizando as diferenças sociais
e reforçando o dualismo do ensino secundário estruturado em dois seguimentos; um que dava
acesso ao ensino superior e outro destinado o ensino profissional, tanto a Reforma Campos
quanto a Reforma Capanema consolidaram as contradições do sistema nacional de educação.
O fosso entre a classe média, que buscava no ensino secundário um lugar de distinção social,
e as camadas populares, que reivindicavam para seus filhos melhores condições de vida e
trabalho reforçou ainda mais as desigualdades entre ricos e pobres. Podemos concluir que,
sem produzir a universalização dos direitos sociais o projeto modernizador do ensino
secundário conduzido por Francisco Campos e Gustavo Capanema, ampliou as distancias
entre a educação brasileira e as exigências do mundo moderno.
O ensino secundário no debate mineiro
Como se produziu na capital mineira o debate sobre o ensino secundário? A resposta a
essa pergunta nos conduziu ao cruzamento do discurso governamental, sistematizado nas
Mensagens dos Governadores apresentadas à Assembleia Legislativa, e o discurso acadêmico
e intelectual que circulou na revista Kriterion, fonte preciosa neste estudo; na Revista do
Ensino; e nos Boletins do Centro Regional de Pesquisas Educacionais. O trabalho permitiu a
identificação de seis aspectos que indicam aproximação do debate sobre o ensino secundário
em Belo Horizonte e o projeto de modernização nacional. São eles. 1. As considerações sobre
a origem e a natureza do ensino secundário. 2. As críticas ao curso primário, secundário e o
superior. 3. As precariedades pedagógicas do curso (exames de admissão, currículos,
processos de avaliação, didática e metodologias de ensino). 4. A formação dos professores,
diretores. 5. A origem familiar e socioeconômica dos alunos. 6. A relação entre as demandas
da vida moderna e a crise do ensino secundário.
De uma maneira geral, as fontes analisadas associam o imperativo das mudanças no
ensino secundário aos problemas políticos e sociais advindos do processo de modernização e
desenvolvimento econômico em curso no estado. Na avaliação dos governadores e dos
articulistas das revistas consultadas, a questão da formação da infância e da juventude se
configurava num problema a ser equacionado pela ação dos governos, com a efetiva
participação das instituições culturais, encarregadas de conduzir a “verdadeira” obra de
difusão da cultura, do progresso material e o aperfeiçoamento das sociedades humanas.
Segundo o Governador Clóvis Salgado,
A condição oriunda do progresso material, o ritmo apressado da vida moderna, que
exigia a cada passo, novas formas de adaptação e comportamentos individuais,
concorria para colocar a educação no plano das responsabilidades estatais de maior
premência e responsabilidade. (MENSAGEM, 1955, P.159)
Para o governador, os dados sobre o ensino demonstravam um incessante crescimento
da rede escolar do estado nos seus diferentes graus. No entanto, pedidos de criação de novas
instituições escolares não paravam de chegar ao Departamento de Educação. Na avaliação de
Clóvis Salgado e de outros governadores que o antecedeu e sucedeu a questão da demanda
escolar não se resolveria apenas com a instalação de escolas. Era fundamental dar-lhes
assistência e orientação técnica que a preparasse para sua missão pedagógica e formativa.
Boa parte dos homens públicos mineiros partilhava o argumento do governo. “A educação é
um processo de elaboração lenta e de influência nem sempre imediata para o complexo
social”. A expansão da escolarização pública exigia dos governos gastos que implicavam um
longo período de tempo para obter-se retorno. Para Faria Tavares ii, secretário de educação no
governo Magalhães Pinto (1961-1965) “o problema educacional” mineiro se assentava na
demanda moderna por criação de escolas de ensino primário e secundário, bem como na
formação e preparação do homem para a vida produtiva, isto é, para o mercado de trabalho. A
expansão da escolarização, ao contrário dos setores industriais e tecnológicos, no quais se
obtinha retorno rápido e compensadores, implicava um longo período de tempo para se obter
o retorno dos investimentos. Esse raciocínio fundamentou o argumento de que o investimento
no custeio da educação não poderia resultar em inúteis resultados. Tanto no discurso do
governo quanto no de muitos intelectuais, a deficiência do ensino foi apresentada como o
grande desafio a ser vencido. Segundo Tavares, não era possível equacionar o problema da
qualidade do ensino de maneira imediata, porque, na adoção das medidas para solucioná-lo,
entraria o fator tempo, já que o processo de preparação do homem e formação de professores
é lento e a construção de uma rede escolar dependeria dessas e tantas outras condições de
implemento difícil e vagaroso.
Daí, a necessidade de que amadureça, no curso do tempo, uma consciência viva de
que o problema não se resolve pelo esforço de uma geração ou duas, mas pela ação
conjugada, permanente e contínua de várias gerações. (...) Encaramos no momento,
a educação como o problema de maior relêvo e significação para a vida
administrativa e política do Estado; sem a sua solução não teremos condições para
a nossa emancipação econômica e muito menos para a nossa autentica vivencia
democrática (Revista do Ensino, ano XXXI, nº 213, p. 59-61, dezembro de 1962).
O argumento da falta de recurso e da precariedade do ensino é recorrente na fala dos
governantes e dos intelectuais mineiros. Em aula inaugural, proferida no ano letivo de 1953,
na Faculdade de Filosofia da UMG, publicada na Kriterion em separata aos números 23/24
janeiro e junho, Abgar Renault
iii
chamava atenção para a natureza e a complexidade da crise
do ensino brasileiro. Ao destacar a responsabilidade da Faculdade de Filosofia na formação de
professores para o curso secundário ele reafirma a sua compreensão sobre a missão do curso “a matriz das elites intelectuais e morais” - para, em seguida, apontar os problemas vividos
naquele nível de ensino. Na sua avaliação os problemas do ensino refletiam “a nossa vocação
para o simulacro” iv. Ou seja, a crise do ensino no Brasil podia ser claramente percebida na
forma como a nossa sociedade se relaciona com a realidade.
Citando como exemplo a situação do curso secundário ele afirma que, apesar de
conhecermos o ínfimo grau de eficácia desse nível de ensino, muitos afiançam, como valor, a
necessidade de criação de “estabelecimentos de ensino secundário onde o ensino primário mal
existe e mal merece o nome que tem”. A seu juízo o fracasso do secundário podia ser
dimensionado no “descalabro das reprovações” nos exames de português aplicados aos
candidatos à admissão ao Colégio Pedro II e aos cursos superiores no Brasil; “na falta de
preparação pedagógica do professor”; na precariedade cultural e moral de diretores e
funcionários dos estabelecimentos de ensino, capazes de atitudes inadmissíveis como a
alteração de notas e resultados de exames para beneficiar aqueles que deveriam ser
reprovados. Renault destaca também o comportamento dos pais de alunos que, “no desejo
irrefreável de ver vitorioso quem não procurou adquirir, e não adquiriu as condições para a
aprovação”, recorrem aos expedientes absurdos para garantir o diploma.
Para Renault, no Brasil os simulacros não eram meramente mediações da realidade,
nem mesmo mediações enganadoras da realidade; eles simplesmente ocultavam que algo
como a realidade era irrelevante para nossa cultura, marcada por privilégios. E nesse
raciocínio apontava as questões que precisavam ser equacionadas em relação ao ensino
secundário. Dentre elas a compreensão das “raízes da estranha condição do ensino secundário
brasileiro”. A necessidade de identificar as causas do seu fracasso e a urgência de se conhecer
os aspectos da “verdade nacional”. Neste ponto o seu discurso é pessimista. Diz ele:
Não temos coesão nem intensidade social para sustentar o pomposo estilo de vida que
exibimos ao espanto do turista mais distraído. A nossa construção social é uma
pirâmide invertida, isto é, não tem base de sustentação que lhe suporte a
superestrutura, tão pesada quanto artificial. Crescemos em vão e multiplicamos
inconscientemente as nossas instituições básica, especialmente as da educação, sem
poder socorrê-las em suas enfermidades de herança, que se declaram no justo
momento em que entram a funcionar. Em vez de estratificar e consolidar as primeiras
conquistas, as fundamentais, cuidamos logo de aumentar-lhes o número em prejuízo
de um mínimo de boa qualidade. Possuímos o que somos incapazes de manter em
funcionamento eficaz. Somos um povo incompetente, em marcha forçada para a
desagregação, pois está a falecer-nos coragem para ouvir a verdade e corrigir s erros,
falhas e desmandos crassos que ela exibe. (KRITERION, N.23/24, Jan/jun,1953)
Menos cético que Renault, o professor Arthur Versiani Velloso, catedrático de
História da Filosofia da UMG, destaca em artigo publicado na Kriterion em 1951, intitulado
“A Filosofia como matéria de ensinança” o seu entendimento sobre papel e a missão da
Faculdade de Filosofia na formação de professores para o ensino secundário. Como diretor da
Faculdade e um incentivador da formação e do aperfeiçoamento docente, ele critica a maneira
“imatura” com a filosofia vinha sendo ensinada nos cursos secundário e superior propondo
uma estruturação dos estudos filosóficos a partir de um currículo sistematizado e maior rigor
metodológico. Para ele a filosofia deveria ser compreendida como um campo científico,
pautado por etapas de estudo e a necessidade da lógica como meio de apoio.
Ao criticar a precariedade do ensino de filosofia numa instituição considerada vital na
organização do sistema universitário Arthur Versiani faz coro à análise de Dom Beda Kruse,
catedrático da Faculdade de Filosofia da PUC-SP, que em três artigos publicados na Kriterion
(jan/jun e jul/dez de1952 e jan/jun de 1953) discuti dois temas centrais ao ensino superior; o
“Desenvolvimento e importância das Faculdades de Filosofia no plano brasileiro de 1936 a
1950” e “o problema das universidades brasileiras”. Os artigos discutem as finalidades e a
essência da universidade destacando que no Brasil a universidade só estabeleceu com a
instauração do regime republicano, num sistema de simples reunião de cursos superiores.
Somente na década de 1920, no bojo da discussão acerca do lugar da universidade ganharia
visibilidade no debate sobre as mudanças econômicas e as novas demandas profissionais que
impunham a necessidade de adequação da formação técnica e profissional e a formação
científica e humanista. D. Beda defende a organização de um sistema universitário que
contemple o equilíbrio entre os interesses culturais e os profissionais, num duplo sentido, o de
preparar tecnicamente e de proporcionar as vocações desinteressadas.
Ao seu ver a Faculdade de Filosofia atendia esses propósitos porque, além de preparar
para o domínio do conhecimento da alta cultura e para as ciências puras, tinham também o
escopo de formar professores para o ensino secundário. Embora reconheça certa autonomia da
universidade brasileira, D, Beda chamava a atenção para as muitas restrições na organização
didática e disciplinar e para a natureza predominantemente utilitária proposta no estatuto da
universidade que primordialmente atendia as necessidades sociais e econômicas do país.
Ao reconhecermos esta verdade o faremos em virtude das condições
reais em que se criou a universidade. A finalidade utilitária predomina
acentuadamente a estrutura da universidade. Apesar disto
encontramos nela os elementos essenciais e constitutivos que
correspondem ao verdadeiro sentido de uma universidade: elevação
do nível da cultura geral pelo cultivo da investigação cientifica e a
habilitação ao exercício de profissões que exigem preparo técnicocientífico superior. (KRITERION, jan/jun,1952, p. 84)
O problema da incorporação de novos institutos de ensino superior de natureza técnica
ou cultural volta à cena em 1937 com a Lei n.452 cria Universidade do Brasil estabelecendo o
modelo e a finalidade dessa instituição: o “desenvolvimento da cultura filosófica, científica,
literária e artística”. Nessa lógica, em Belo Horizonte, a Faculdade de Filosofia da UMG foi
concebida em 1939 como o ‘coração da universidade’.
Na mesma vertente discursiva o governador Milton Campos
v
em sua oração de
paraninfo pronunciada na Faculdade de Filosofia da Universidade de Minas Gerais em 11 de
dezembro de 1948, intitulado “A Missão da Faculdade de Filosofia” e publicado na
Kriterion, em 1949, sinaliza a necessidade da existência das escolas superiores profissionais
ao mesmo tempo em que ressalta o “o gosto dos mineiros pelos estudos desinteressados”.
Como um bom político tenta valorizar a ideia da tradição e vocação de Minas para a Política e
para a Cultura:
Sempre foi apanágio do mineiro o gosto pelos estudos desinteressados lembrese que nunca nos faltaram grande mestres, “técnicos em ideias gerais”,
segundo a pitoresca e exata expressão, é certo que as próprias inclinações do
nosso espírito, uma tradição, cujos marcos podem ser facilmente assinalados
através da história, estavam a exigir um instituto como este, que abrigasse
aquelas tendências e assegurasse a sua continuidade. Escolas que tenham por
finalidade a formação pura e simples do profissional são indubitávelmente
necessárias e merecem todo estímulo. Ao lado delas, porém, ou melhor, acima
delas, como que servindo-lhes de cúpula, cumpre manterem-se instituições
cujo escopo seja o desenvolvimento contínuo da Cultura, em seu sentido mais
amplo. Esse o aspecto dir-se-ia arquitetural da Universidade, e que só se
poderia evidenciar através de uma Escola de Filosofia, Ciências e Letras. A
esta Faculdade que ora entrega ao ensino e à educação, em nosso Estado, mais
uma turma de mestres, está confiada a missão precípua de amparar e
desenvolver a arraigada vocação de cultura que é, no consenso geral, uma
característica de Minas. (KRITERION, jul a dez/1949, no 9/10, p. 329/330)
Nos artigos assinalados fica claro o reconhecimento do lugar da faculdade de filosofia
na formação das elites intelectuais e políticas mineiras e a perspectiva da origem familiar e
socioeconômica dos alunos que frequentavam a universidade na década de 1950. Outro
aspecto observado é o perfil dos professores do ensino secundário, formados pela faculdade
de filosofia, responsável também por ministrar cursos de aperfeiçoamento de professores do
ensino secundário. A preocupação em inserir os alunos nos domínios da alta cultura teria por
escopo formar professores capacitados para as exigências do ensino secundário. Nessa linha
Mário Casasanta, professor e diretor da Faculdade de Filosofia, em aula inaugural do curso de
férias para o aperfeiçoamento de professores secundários, publicada na Kriterion em 1947, se
posiciona em defesa da formação dos professores e faz críticas a União ao perguntar. “Como
pode o governo descuidar da formação daqueles a quem se reserva necessariamente a função,
sobre todas importante, de dirigir e orientar a comunhão. E do ensino médio que saem as
classes dirigentes.” (KRITERION, 1947)
A partir dos artigos publicados na revista Kriterion convém salientar que em Belo
Horizonte a Faculdade de Filosofia era espaço de encontro de intelectuais e de debate de
ideias e valores culturais. Existe um forte vinculo entre professores e alunos da Faculdade e o
ensino secundário na medida em que essas modalidades de ensino são complementares na
formação universitária. Contudo, observa Abgar Renault, em seu artigo “Sentido Autotélico
do Ensino Secundário” essa finalidade não pode ser tomada como sua principal função.
O ensino secundário tem por uma de suas finalidades a preparação para os cursos
superiores, mas guarda, irrecusavelmente, um sentido autotélico, que é o da
formação do espírito ou do homem como um todo, neutro e indiferente entre as
carreiras profissionais. Uma das missões da universidade tem suas raízes, como se
vê, no ensino secundário. (Revista Kriterion, p. 104, vol. 19-20, 1952)
Se por um lado Abgar Renault afirma o sentido autotélico do ensino secundário, de
outro, o professor Aires da Mata Machado Filho no artigo “Fé na Educação e na Cultura”,
publicado em 1949 constrói sua crítica ao secundário remetendo-se aos problemas do ensino
primário. Expõe os problemas de inadequação das disciplinas e conteúdos, acentuando a
defasagem entre esses níveis escolares que, por conseguinte, atropelam o ensino superior. Diz
ele.
“[...] permanece o ensino secundário, em pontos de metodologia e de pedagogia,
mais de cem anos atrasado em relação ao de primeiro grau. Depois de um curso
primário insuficiente, já que por indescupável espírito de economia dos estudos
elementares duram menos entre nós que em muitos países civilizados, o aluno que
pode ingressar no curso secundário muda, subitamente, de atmosfera metodológica.”
(KRITERION, vol. 11/12, 1950)
As precariedades pedagógicas e metodológicas e a defasagem do curso secundário
apontadas pelo professor Aires da Mata Machado Filho reforça os argumentos dos intelectuais
sobre os problemas da educação primária em Minas Gerais. Para Mata Machado, faltam
investimentos que possibilitem a preparação do aluno na passagem do primário para o
secundário. A questão se agrava no âmbito da educação rural que se encontra distante da ação
do Estado e das legislações educacionais.
Podemos perceber que no cenário mineiro o debate sobre o ensino secundário esteve
em sintonia com as questões de modernização nacional e desenvolvimento econômico. No
caso mineiro os artigos analisados reforçam um descompasso entre a estrutura do sistema
educacional mineiro e a urgência da modernização.
CONCLUSÃO
No propósito de apresentar a interlocução de um grupo de professores que fizeram
circular suas ideias sobre os problemas da educação em Minas Gerais e no Brasil nos anos de
1950 a revista Kriterion foi uma fonte privilegiada na compreensão do debate sobre o ensino
secundário. Ela nos possibilitou adentrar num campo de análise ainda pouco explorado por
pesquisadores da educação.
Os artigos analisados permitiram identificar uma vasta produção intelectual dos
professores e a pluralidade de ideias de cientistas políticos e homens públicos sobre a relação
educação e modernização no panorama brasileiro. Os argumentos mobilizados por esse grupo
mostram que em Belo Horizonte, como nas demais regiões do país, o debate sobre o ensino
secundário esbarravam nos entraves políticos e econômicos de um governo centrado na
perspectiva do progresso sem, contudo, investir em ações necessárias para a sua
concretização.
Nesse sentido, o apelo retórico e discursivo do Estado na defesa da qualidade da
educação, tendo em vista as demandas da vida moderna e do desenvolvimento econômico,
acabou provocando um maior distanciamento de um projeto de educação democrática. Os
dados indexados a partir da revista indicam que pouco se fez pela educação das camadas
populares. Como sugere o professor Aires da Mata Machado Filho, em Minas a “fé na
educação” como instrumento das mudanças sociais permaneceram nos discursos. A
escolarização das camadas populares foi incorporada às políticas públicas como questão de
menor relevo, ao contrário dos investimentos dos setores industriais e tecnológicos. O pouco
investimento na educação pública acentuou a dualidade entre escolas para ricos e pobres
reforçando, ainda mais, as desigualdades econômicas, sociais e culturais.
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAUDRILLARD, Jean. O Sistema dos Objetos. Editora Perspectiva, 1968
BICCAS, Maurilane de Souza. Impresso Pedagógico como objeto e fonte para a
História da Educação em Minas Gerais: Revista do Ensino (1925-1940), Autentica,
Belo Horizonte, 2008.
CHAGAS, Marta Maria Carvalho, A configuração da historiografia educacional
brasileira, IN. Historiografia Brasileira em Perspectiva, FREITAS, M.C, São Paulo,
Contexto,1998.
GONDRA, José Gonçalves; SCHUELER, Alessandra. Educação, poder e sociedade
no Império Brasileiro. São Paulo: Cortez, 2008.
VEIGA, Cynthia Greive. Escola Pública para os negros e pobres no Brasil: uma
invenção imperial. Revista Brasileira de Educação, v.13, n.39, set-dez.2008
ROMANELLI, Otaiza. História da Educação no Brasil. Editora Vozes, Petropólis,
2002
Notas
i
A expressão, recorrente nos debates educacionais das décadas de 1930 a 1960 indica os intensos conflitos no
campo educacional, político e econômico. Nessa época a discussão do lugar do ensino secundário ganhou
centralidade no discurso intelectual e político, sendo apontado como um dos grandes impasses para o
desenvolvimento do país.
ii
José de Faria Tavares, em entrevista a Elisabeth Vorcaro Horta. Revista do Ensino, ano XXXI, dezembro de
1962, no. 213.
iii
Abgar Renaut....
iv
Segundo Baudrillard a sociedade moderna substituiu a realidade por significados por símbolos e signos,
tornando a experiência humana uma simulação da realidade. Os simulacros não são meramente mediações da
realidade, nem mesmo mediações enganadoras da realidade; eles simplesmente ocultam que algo como a
realidade é irrelevante para nossa atual compreensão de nossas vidas.
v
Milton Soares Campos (1900-1972): político, professor, jornalista e advogado brasileiro. Foi governador do
Estado de Minas Gerais no período de (1947-1954).
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