Série Percurso Educativo
FAMÍLIA: O PRIMEIRO
SUJEITO EDUCATIVO
João Carlos Petrini é Doutor em Ciências Políticas pela PUCSP, onde lecionou durante muitos anos. Diretor do Pontifício Instituto
João Paulo II para Estudos sobre Matrimônio e Família e também
Coordenador do Mestrado em Ciências da Família, da
Universidade Católica (UCSal).
Maria Grazia Figini é Coordenadora do Setor de Apoio à
Entidades de Acolhida de Crianças e Adolescentes da CDO
(Companhia das Obras Itália).
Lílian Perdigão Caixêta Reis é Mestre em Ciências da Família
pelo Instituto João Paulo II para Estudos sobre Matrimônio e
Família/BA e Coordenadora do COF – Centro de Orientação da
Família/BA.
João Carlos Petrini
Maria Grazia Figini
Lílian Perdigão Caixêta Reis
(palestrantes)
Série Percurso Educativo
FAMÍLIA: O PRIMEIRO
SUJEITO EDUCATIVO
Luisa Cogo
Cilene C. Caetano Chaves
(organizadoras)
Associazione Volontari
per il Servizio Internazionale
Belo Horizonte
2003
Família: o primeiro sujeito educativo
Série Percurso Educativo
Organização: Luisa Cogo e Cilene C. Caetano Chaves
Preparação de textos: Cilene C. Caetano Chaves e Elisabete R. do
Carmo Silva
Revisão: Eneida Maria Chaves
Projeto gráfico: Juliana Vaz
Produção Gráfica: Derval O. Braga Júnior (www.e-mega.com.br)
Brasil 2003
Catalogação na Fonte do Departamento Nacional do Livro
Família: primeiro sujeito educativo / Luisa Cogo,
Cilene C. Caetano Chaves (orgs.). Belo Horizonte:
CDM: AVSI, 2003.
84 p.; 21 cm. – (Percurso educativo)
ISBN: 85-88559-05-6
1. Educação, I. Cogo, Luisa. II. Chaves, Cilene
C. Caetano III. Título
Sumário
Apresentação
................................................7
Notas para uma Antropologia da Família
Palestra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11
Família, Lugar de Acolhida e Solidariedade
Palestra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27
COF – Uma Experiência com Famílias
Palestra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35
Família: O Primeiro Sujeito Educativo
Debate . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49
Viver na Gratuidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 69
Apresentação
Luisa Cogo
Família: o primeiro sujeito educativo é o último da trilogia Percurso Educativo, que
foi elaborado para auxiliar as Obras envolvidas no Projeto Rede de Infância, gerido
pela AVSI – Associação Voluntários para o Serviço Internacional e pela CDM –
Cooperação para o Desenvolvimento e Morada Humana – através de um convênio
realizado com a CEI – Conferência Episcopal Italiana – e o MAE – Ministério do
Exterior do Governo Italiano.
Os dois primeiros livros Educar-se para educar, e Sem construir, como pode
o homem viver? reuniram as atas de dois seminários; o primeiro teve como intuito
indicar os passos de um percurso educativo no qual a realidade das crianças e de suas
famílias é abraçada com todos os seus fatores constitutivos; o segundo, para além da
pergunta, retomava a origem de cada uma das Obras educativas, porque o que
aparentemente é só um fato histórico que marca a fundação de uma instituição se faz
presente no cotidiano de cada uma através da postura educacional adotada, na
escolha dos conteúdos e da metodologia de trabalho, chegando até ao nível organizacional.
Neste volume coletamos as atas de um encontro realizado em Belo Horizonte, com o intuito de ajudar a aprofundar o olhar sobre a família, enquanto sujeito
protagonista da educação.
As obras da Rede trabalham, em sua maioria, com famílias pobres, residentes
em periferias, e apresentam um contexto familiar frágil e muitas vezes desestruturado,
devido a fatores como desemprego, alcoolismo e dependência química. No trabalho
que se realiza diariamente se corre o risco de deixar-se levar pela assistência, que é a
7
Família: o primeiro sujeito educativo
8
forma mais imediata, rápida de responder a uma necessidade: trabalhar “para” a
família e não “com” a família, na pretensão de tentar definir as prioridades da mesma.
Na experiência compartilhada durante o seminário emergiu o desejo de que
a família seja reconhecida como capaz de educar, mesmo em um contexto frágil,
tornando-se um sujeito que estabeleça quais são as suas necessidades e prioridades.
Foi ressaltado o fato de que a educação acontece num recíproco pertencer,
onde adulto e criança/adolescente precisam de um lugar educativo, uma morada,
precisam encontrar um mestre, que os acompanhe no caminho da vida. Para a maioria
das crianças e suas famílias essa morada é encontrada nas obras. O centro educativo
e a creche com os sujeitos envolvidos, tornam-se uma morada que não substitui a
família mas a ajuda a tornar-se mais consciente do seu verdadeiro significado.
As palestras foram proferidas pelo Dr. João Carlos Petrini (Diretor do
Pontifício Instituto João Paulo II para Estudos sobre o Matrimônio com sede em
Salvador-BA), Maria Grazia Figini (Coordenadora do Setor de Apoio à Entidades de
Acolhida de Crianças e Adolescentes da CDO – Companhia das Obras) e Lílian
Perdigão Reis (Coordenadora do – COF – Centro de Orientação Familiar).
João Carlos Petrini demonstrou que a família, apesar de todos os sinais de
dificuldade e de vulnerabilidade continua viva e presente, resistindo às mudanças
sociais que estão ocorrendo em ritmo acelerado, se organizando e se reestruturando,
reagindo aos condicionamentos externos e ao mesmo tempo adaptando-se a eles,
encontrando novas formas de estruturação que se precisa compreender e fortalecer.
Maria Grazia Figini, indicou que a família é de qualquer maneira a
protagonista, a referência principal da educação, quando esta está presente é preciso
sustentá-la, apoiá-la, de forma que possa se tornar um sujeito capaz de desenvolver a
tarefa educativa. Nesse sentido é preciso olhar as famílias não como destruídas,
frágeis, como algo que deve ser cuidado, deve ser apoiado; mas como um sujeito,
lutando contra a mentalidade assistencialista, porque a família é um recurso que pode
também ser uma resposta social.
Lílian Perdigão, relatou a experiências do COF – Centro de Orientação
Familiar, localizado na cidade de Salvador – BA, no qual são realizadas ações, através
de equipe multidisciplinar, voltadas ao fortalecimento das famílias que buscam ajuda
no mesmo.
Apresentação
Luisa Cogo
O texto "Viver na gratuidade", em anexo, é oferecido aos leitores deste livro
porque expressa bem a raiz cultural que fundamenta a postura educativa que se tentou
declinar nos trabalhos operativos do seminário.
O seminário se colocou como uma contribuição para todas as pessoas
envolvidas direta ou indiretamente em ações com as famílias e para as pessoas que se
comprometem com a construção de uma mentalidade que considera a família como
recurso, na busca de tentativas originais de respostas às necessidades apresentadas.
O trabalho, não quis definir uma temática, dar receitas para enfrentar um
tema e uma questão, mas quis pôr em jogo todas as pessoas envolvidas na aventura
de educar, assim como o caminho que se tentou percorrer ao longo do
desenvolvimento do Projeto Rede de Infância, dentro das várias obras sempre
mostrou: para educar as pessoas que são encontradas é necessária uma
disponibilidade para se deixar educar, pois só isso permite a educação.
9
Notas para uma
Antropologia da Família
Na sociedade contemporânea, a família é considerada um valor, ideal que a
maioria da população cultiva. No entanto, nestas últimas décadas, a família passa por
grandes mudanças, que a tornam particularmente vulnerável. Estão mudando o modo
de entender e o modo de viver o amor e a sexualidade, a fecundidade e a procriação,
o vínculo familiar, a paternidade e a maternidade, o relacionamento entre homem e
mulher.
A família encontra-se em constante mudança por participar dos dinamismos
próprios das relações sociais1. O processo social dos últimos séculos acelerou as
mudanças, com conseqüências substanciais em todos os aspectos da convivência
humana. A família, integrada nesse contexto, necessariamente passa por transformações de tal magnitude, que parece prestes a desaparecer.
A investigação científica mais recente, no Brasil e no exterior, acumula dados
que descrevem um enfraquecimento das relações familiares, mas identifica também
indícios e evidências de uma surpreendente vitalidade do ideal familiar. Não são
poucos os estudiosos que afirmam que, no meio das turbulências, a família empenhase em reorganizar, na sociedade pós-moderna, aspectos da sua realidade que o
ambiente sociocultural vai desgastando. Reagindo aos condicionamentos externos e,
ao mesmo tempo, adaptando-se a eles, a família encontra novas formas de estrutu-
1
SCABINI, 1998.
João Carlos
Petrini
Família e
mudança: entre
desaparecimento e
reorganização
11
Família: o primeiro sujeito educativo
ração que, de alguma maneira, a reconstituem2, sendo reconhecida como uma
estrutura básica permanente da experiência humana e social3.
A "família tradicional arcaica" descrita por Freyre4, que se afirmou no contexto da cultura rural, entrou em colapso há tempo. Os modelos de comportamento
que regulamentavam, nesse contexto, as relações entre os sexos e as relações de
parentesco, tornaram-se obsoletos e foram abandonados. A "família nuclear" urbana,
analisada por Parsons et al.5, na década de 50, que deveria constituir, segundo a
opinião dele, a forma mais adequada de resposta às exigências da sociedade moderna,
também não parece um modelo adequado para os tempos atuais. Outras formas
alternativas de respostas, que foram tentadas, não ofereceram soluções socialmente
significativas.
De um lado, ficam sem efeito muitas normas de orientação da conduta dos
casais, que tiveram vigência no passado; de outro, ainda não emergem novas formas
de agregação familiar, capazes de responder positiva e adequadamente às exigências
da vida afetiva, sexual, da gratuidade, e nos aspectos conexos à geração dos filhos, à
educação e à transmissão de valores. Como conseqüência disso, as novas gerações
encontram mais dificuldades para alcançar a estabilidade psicológica e afetiva,
necessárias para enfrentar os desafios da existência na sociedade moderna. Mudanças
familiares de grande significado são observadas, ainda que com variações, de acordo
com a especificidade de cada grupo cultural ou classe social. Emerge, também, uma
redefinição das transições familiares, isto é, uma mudança de status segundo o sexo e
a idade, sendo renegociados os papéis em termos de igualdade entre os sexos e as
relações entre pais e filhos, em termos mais democráticos, de acordo com uma
concepção de igual dignidade da pessoa humana.
As novas condições, nas quais se processam a construção da identidade e a
socialização, nas diversas etapas da existência, modificam a formação de vínculos e o
12
2
SCABINI e DONATI 1995; DONATI, 1998.
3
ARÌES, 1981.
4
FREYRE, 1992.
5
PARSONS et al, 1974.
Notas para uma Antropologia da Família
estabelecimento de sistemas de referência, tornando mais complexas as relações entre
as gerações. Nesse quadro, as redes sociais bem como as referências pessoais acabam
sendo visivelmente mais frágeis, resultando em maior risco para os elos mais vulneráveis do sistema familiar – crianças e adolescentes, mulheres e idosos. Este expressase em configurações diversas, que freqüentemente implicam, de uma forma ou de
outra, a exclusão social, seja no sentido da convivência, seja no da participação cidadã.
Nesse cenário de mudanças, é necessário compreender os novos arranjos
familiares, as novas características que as relações intergeracionais assumem e os
sistemas de referência disponíveis para pessoas e famílias nos diversos momentos do
ciclo de vida, bem como as funções que assume a família na atualidade, sua relação
com os dinamismos sociais, em ambiente caracterizado por pluralismo ético, cultural
e religioso. As relações entre os sexos e entre as gerações constituem o fulcro da
realidade familiar, ao redor do qual diferentes modelos se estruturam e se decompõem, em conseqüência de circunstâncias históricas e sociais, culturais e ideológicas
diversas, dando origem, ora a modelos nos quais prevalecem a cooperação, a
reciprocidade, a solidariedade, a negociação, ora a modelos nos quais prevalecem a
disputa, a competição, ou a indiferença, a estranheza e o conflito.
No decorrer da evolução histórica, a família permanece como matriz do
processo civilizatório, como condição para a humanização e para a socialização das
pessoas6. É por isso que, apesar da variedade de formas que assume e das
transformações pelas quais passa ao longo do tempo, a família é identificada como o
fundamento da sociedade7. Nesse sentido, podem ser reconhecidos na família os
caracteres de universalidade e de constância no tempo, como relação social primordial
e universal8.
Muitos estudiosos observam que a estrutura familiar continua presente nas
diversas culturas, em todos os períodos históricos, como forma de relação social
constitutiva da espécie humana. Esta encontra, no ambiente da família, não só os
6
LEVI-STRAUSS,1967; MALINOWSKI, 1973.
7
LEVI-STRAUSS, op. cit.; ZIMMERMAN, 1971; RADCLIFFE-BROWN, 1973; MAUSS, 1974.
8
LEVI-STRAUSS, op. cit.; LEVI-STRAUSS, 1980.
João Carlos Petrini
Família, matriz do
processo civilizatório
13
Família: o primeiro sujeito educativo
elementos favoráveis à sobrevivência, mas as condições essenciais para o desenvolvimento e a realização da pessoa. Alguma forma de agregação familiar pode ser
reconhecida em todas as culturas e em todas as épocas históricas9, define a família
como "a união mais ou menos durável, socialmente aprovada, de um homem, uma
mulher e seus filhos, é um fenômeno universal presente em todo e qualquer tipo de
sociedade"10. Cabe indagar a presença e a consistência de indícios, que alguns estudiosos estão apontando como reveladores de sua capacidade de adaptação e de
capacidade auto-generativa, nestas últimas décadas.
A família emerge, nos estudos destes últimos anos, como locus privilegiado e
adequado ao desenvolvimento humano e social, para o qual convergem as mais
diferentes linhas de análise. Esta confluência está consagrada em documentos
internacionais11 e, no caso do Brasil, em sua Constituição e no Estatuto da Criança e
do Adolescente.
A família constitui uma realidade simples, na articulação das relações entre
mulher e homem e entre pais e filhos, e, ao mesmo tempo, extremamente complexa,
pois essas relações se realizam segundo diferentes dimensões e envolvem diversos
aspectos. Com efeito, a família durante séculos foi objeto de reflexão dos filósofos e
dos teólogos, com contribuições nos campos da teologia bíblica, da patrística, da
teologia dos sacramentos, da teologia moral, da antropologia teológica, da doutrina
social da Igreja, com enfoques diferentes, num permanente diálogo com as
circunstâncias históricas e culturais. O mais recente magistério da Igreja, atento às
mudanças socioculturais da sociedade moderna, apresenta novas contribuições, ainda
pouco conhecidas. À medida que as ciências humanas foram se estruturando como
disciplinas científicas, começaram a estudar a realidade do matrimônio e da família,
segundo as mais diversas perspectivas epistemológicas, contribuindo para elucidar
aspectos muitas vezes não suficientemente considerados. A família passou, então, a
ser estudada sob o ponto de vista dos interesses econômicos que nela se encontram;
9
14
LEVI-STRAUSS, 1980. p.154.
10
DONATI, 1992. p. 77.
11
DONATI, 1998; Pontificio Consiglio per la Famiglia, 1999.
Notas para uma Antropologia da Família
sob o ponto de vista jurídico, pelos aspectos contratuais que o matrimônio e todas as
relações familiares contêm; sob o ponto de vista político, especialmente quando se
trata de grandes famílias detentoras do poder; sob o ponto de vista psicológico, para
estudar os influxos que as relações familiares têm na constituição e no desenvolvimento psíquico dos seus membros; sob o ponto de vista pedagógico, como primeira
fonte de educação para as diversas etapas dos ciclos familiares; sob o ponto de vista
da sociologia, estudando os processos de socialização, bem como os reflexos dos
diversos condicionamentos sociais na realidade familiar; e assim por diante. A lista das
disciplinas que se ocupam da família ainda incluem a arquitetura, a urbanística, a
medicina, a antropologia cultural, a psiquiatria, a sexologia, a ética, a bioética.
A família se diferencia de outras formas de relações sociais ao caracterizar-se
por um modo específico de viver a diferença de gênero, que implica sexualidade, e as
relações entre as gerações, que implicam parentesco12.
O ser humano não pode existir sozinho; pode existir somente como unidade
de dois e, portanto, em relação com outra pessoa humana. A diferenciação
homem/mulher aparece, assim, como expressão de uma originária unidade dual, que
implica e valoriza, simultaneamente, a identidade e a diferença13. A mesma dignidade,
os mesmos direitos qualificam a identidade do ser humano, que aparece na história
sempre como homem e mulher. A diferença sexual é originária, constitutiva do ser
humano, essencial à sobrevivência da espécie. Ao mesmo tempo, observa-se, ao longo
da história e nas diversas regiões do planeta, que a diferença sexual foi elaborada
culturalmente nas mais diversas formas, definidas, via de regra, em função do jogo de
poder entre os gêneros. As imagens e os modelos de comportamento masculino e
feminino, fruto de elaborações culturais historicamente determinadas, podem ser
rediscutidos, como vem acontecendo no momento presente, em busca de uma
correspondência maior para com as modernas exigências de igualdade e de
participação14. As relações entre os sexos constituem, nesse sentido, um interessante
12
DONATI, 1998. p.123.
13
SCOLA, 1998. p.32; SCOLA, 1999. p. 338-342.
14
NISOLI; BUFANO, 2000.
João Carlos Petrini
Relações familiares:
identidade e
diferença
15
Família: o primeiro sujeito educativo
entrelaçamento entre natureza e cultura, entre dados permanentes, não marginais na
definição da identidade masculina e feminina, e dados que refletem interesses de
natureza socioeconômica, bem como valores, crenças e modelos de comportamento,
próprios de cada época histórica e de cada cultura.
Nenhum homem e nenhuma mulher são capazes de vivenciar em plenitude,
de esgotar, individualmente, todas as possibilidades humanas. Cada um tem sempre,
diante de si, o outro modo de ser, irredutivelmente diferente do próprio. O ser humano
existe sempre e somente como masculino ou feminino, por mais confusas que, histórica e culturalmente, essas categorias possam parecer. A multiplicidade de experiências
existentes é reveladora de uma inquietação própria da cultura pós-moderna, que
encontra na sociedade pluralista o espaço para ensaiar novos modelos de convivência
entre os sexos, como importantes sinais da busca por soluções mais satisfatórias.
A unidade dual é dinâmica, dotada de plasticidade, devendo ser reconhecida,
aceita e, ao mesmo tempo, construída a cada momento, no fluxo mutável das circunstâncias históricas, a partir de valores ideais compartilhados. Da consideração dessa
unidade dual teve origem a que foi chamada de "antropologia dramática"15.
O ser humano, "unidade dual", verifica dentro de si uma carência que o abre
para o outro, para o diferente, fora de si. Isto quer dizer que a condição para a
realização da pessoa é "ser para o outro"16. O desejo de felicidade pode encontrar a
própria satisfação somente através do outro. Na diversidade de soluções que podem
ser encontradas na sociedade hodierna, a família, fundada no matrimônio, permanece
como o espaço onde as exigências humanas mencionadas encontram maior correspondência, isto é, são acolhidas, valorizando os diversos aspectos das relações entre
os gêneros, sem que nenhum deles fique excluído. Nesse sentido, na família, na
relação esponsal, realiza-se o paradoxo da condição humana: "o meu eu és tu", como
Romeu declara a Julieta17. A tendência a subestimar um dos elementos desta polari-
16
15
VON BALTHASAR, 1982; BOSI, 1991. p.131-139.
16
SCOLA, 2000. p. 345.
17
SHEAKSPEARE, 1995. p. 289-354.
Notas para uma Antropologia da Família
dade, exaltando ora a diferença, ora a identidade, tem provocado sérios problemas à
convivência familiar e social.
A família é um espaço de convivência humana ao qual cada membro
pertence. Ela constitui uma rede de relacionamentos, que definem o 'rosto' com o
qual cada um participa dos diversos ambientes que quotidianamente freqüenta, com
o qual encontra as outras pessoas. Para um filho recém-nascido, pertencer a pai e mãe
é uma questão decisiva para o seu desenvolvimento físico e psíquico. Mas, durante
todo o arco da existência, pertencer a uma realidade maior do que si próprio é, de
maneira análoga, fundamental para a pessoa18.
Pertencer a um conjunto de pessoas, que constituem uma família, por meio de
vínculos complexos e profundos, realiza a pessoa como pai ou mãe, como esposo ou
esposa, como filho ou filha, como irmão ou neto ou avô, como homem e como mulher. Os vínculos de pertença, todavia, foram, muitas vezes, motivo de opressão e abusos nas relações familiares. Afirmou-se progressivamente o ideal da liberdade, entendida como autonomia para determinar o próprio percurso de vida. Ampliou-se a disponibilidade a quebrar os vínculos familiares, entre pais e filhos bem como entre cônjuges, quando percebidos como limitadores da própria expressividade. Cabe investigar
circunstâncias socio-culturais e religiosas que favorecem a pertença ou a autonomia,
procurando identificar a diversidade de valores, que orientam a conduta das pessoas.
Os vínculos familiares realizam uma relação na qual a pessoa entra com a
totalidade de sua existência, de seu temperamento, de suas capacidades e limites,
diferentemente do que acontece com quase todos os outros ambientes da vida, nos
quais se estabelecem relações parciais, limitadas a capacidades específicas, correspondentes a funções determinadas.
Um grupo de pessoas é reconhecido como família quando se configura como
uma relação de plena reciprocidade entre os sexos e entre as gerações. Trata-se de um
recíproco pertencer, na maioria das vezes não simétrico, constituído através de
processos de vinculação desenvolvidos em contextos diádicos19.
18
SCOLA, 2000.
19
DONATI, 1998; BRONFENBRENNER, 1996.
João Carlos Petrini
Família: um
recíproco pertencer
17
Família: o primeiro sujeito educativo
O entrelaçamento
de amor,
sexualidade e
fecundidade
Essas características qualificam a família como complexo simbólico importante. Não é por acaso que, quando alguém quer dizer que venceu a estranheza na
relação com um ambiente ou com uma pessoa, diz que se tornou "familiar". O
complexo simbólico da família é o primeiro ponto de apoio, o primeiro cimento da
sociedade. Demonstra-o o fato de que a família é importante também quando a
pessoa vive distante, porque está presente como realidade simbólica que determina o
vivido psíquico e o sentido existencial das pessoas. A família é relação simbólica e
estrutural que liga as pessoas entre si num projeto de vida, que entrelaça uma dimensão horizontal (a do casal) e uma dimensão vertical (a descendência e a ascendência),
que supõe a geração de filhos. A família permanece o símbolo concreto de que cada
pessoa humana tem um lugar no mundo, não está condicionada a puros interesses ou
instâncias de poder. De um lado, o complexo simbólico familiar tem ampla difusão é
consideração positiva, por outro, parece perder seus contornos, uma vez que a família
é assimilada, às vezes, a qualquer forma de convivência sob o mesmo teto.
Na divisão da existência entre atividade produtiva e lazer, a família tende a ser
colocada na esfera do "lazer". Nessa perspectiva, a dimensão lúdica parece, muitas
vezes, esgotar o significado da sexualidade humana, que não encontraria mais limites,
podendo-se eliminar dela qualquer responsabilidade ou vínculo que estenda seus
efeitos para além do momento em que se realiza como jogo. Outra conseqüência
deste fato é a redução da importância do trabalho e do sacrifício que, num outro
horizonte sociocultural, eram assumidos como valores para atender às necessidades
do outro, a fim de proporcionar-lhe bem estar e satisfação. Nota-se também certa
tendência a reduzir-se a responsabilidade dos cônjuges para com as tarefas da convivência familiar, especialmente no tocante à geração e à educação dos filhos20. Com
efeito, a autoconsciência da pessoa e a forma das relações com os outros e com a
realidade social se estruturam a partir da própria inserção no mercado do trabalho e
pelo acesso ao consumo, atribuindo-se importância menor à própria inserção na rede
de relações familiares.
20
18
FOUCAULT, 1984.
Notas para uma Antropologia da Família
João Carlos Petrini
Na sociedade moderna, muitas vezes, parece mais decisivo, para a própria
realização pessoal, crescer na carreira profissional, dando mais importância às relações
funcionais que se caracterizam pela competição individualista e tendem a favorecer a
fragmentação da pessoa. Além disso, difunde-se uma sensibilidade que considera
qualquer vínculo como uma amarra mortificante, parecendo desejável ficar livre de
qualquer relacionamento mais profundo.
O entrelaçamento de amor, sexualidade e fecundidade que, tradicionalmente,
constituiu o núcleo do matrimônio e da família, nestas últimas décadas, parece dispensável, podendo-se viver a sexualidade sem a fecundidade, a sexualidade sem o amor,
a fecundidade sem a sexualidade21. Estes três elementos ultimamente se distanciaram,
cada um percorrendo um itinerário próprio, distinto dos outros, com conseqüências
importantes. Por exemplo, a sexualidade separada do amor e da fecundidade afasta-se
da esfera da cultura, isto é, da vivência de valores livremente acolhidos, aproximandose sempre mais da esfera da natureza, isto é, da instintividade22. De forma análoga, a
fecundidade separada do exercício da sexualidade e do amor aproxima-se da atividade
produtiva, segundo a lógica do mercado capitalista, incluindo a avaliação de custos e
benefícios. Nesse ambiente, é fácil que o amor seja vivido como sentimento efêmero
ou paixão, perdendo aquela riqueza de experiência e de humanidade, que a literatura
mundial de todos os tempos documenta amplamente.
As novas tecnologias de fecundação artificial, clonação e de manipulação
genética apresentam novas questões, ainda em debate, cabendo aprofundar, não apenas os aspectos médicos e psicológicos, mas também éticos e morais23. Com efeito,
não somente a sexualidade pode estar separada da paternidade e da maternidade, mas
torna-se possível a procriação sem o exercício da sexualidade. A fecundidade desligada de uma relação de amor aparece agora como definida pela decisão individual e
pelo acesso à tecnologia sofisticada24. Ainda que soluções desse tipo sejam quantita
21
MELINA, 1996; SCOLA, 2000.
22
CAFFARRA, 1992.
23
SEGUIN, 1997.
24
OLIVEIRA, 1993; RHONHEIMER, 2000; AZEVEDO, 2000; SEGRE e COHEN, 2000.
19
Família: o primeiro sujeito educativo
20
tivamente pouco significativas, recebem tamanha divulgação que, juntamente com
outras circunstâncias da cultura contemporânea, favorecem uma imagem de vida
adulta "livre" da convivência familiar, reforçando a tendência que considera dispensável o vínculo familiar. Os meios de comunicação social projetam estilos de vida e
imagens de família muitas vezes atípicas e contribuem decisivamente para a formação
e a difusão de novos valores e novos modelos de comportamento na convivência
conjugal.
Muitos casais optam, em época mais recente, por uniões de fato. Na
realidade, em muitos casos não se trata de uma opção, mas de necessidade imposta
pela situação de pobreza que desaconselha despesas com o matrimônio, aguardando
tempos mais propícios para consagrar jurídica e/ou religiosamente a própria união.
Há, no entanto, uniões de fato, que não pensam em postergar, mas ignoram ou
rejeitam o compromisso conjugal estável. Esquiva-se uma oficialização do vínculo,
para evitar complicações de natureza jurídica, caso termine o interesse em partilhar a
vida, ou pelo temor de que o vínculo se torne uma amarra, que poderá limitar a
liberdade individual.
É importante compreender como o homem e a mulher elaboram essas circunstâncias, com que grau de liberdade cada um escolhe ser companheiro (a) do
outro, em que medida se trata de uma forma de relação que nasce da conquista da
igualdade entre os sexos ou de uma edição nova da antiga supremacia masculina. Vale
a pena estudar os itinerários dessas uniões no transcorrer do tempo, quanto à duração
e a possíveis mudanças do significado daquela união, quanto à cooperação nas tarefas
educativas com relação a eventuais filhos e na administração da casa. Cabe indagar
como se reorganizam as relações familiares, a paternidade e a maternidade e o
parentesco mais amplo, como são vividas as relações com os órgãos da administração
pública (escola, centro de saúde, etc.), como, de fato, a legislação é utilizada para
defender os interesses dos membros mais frágeis nessas relações. Também se deve
elucidar o que parece uma ambigüidade paradoxal: de um lado, a recusa de um vínculo
jurídico e/ou religioso que legitime aquela união como família, de outro, a necessidade
de serem reconhecidos e aceitos como uma família entre as outras.
Nas uniões de fato, o recíproco pertencer-se de um homem e de uma mulher
e de eventuais filhos é pensado, pelo menos de início, como uma realidade precária e
Notas para uma Antropologia da Família
como uma questão privada, irrelevante para a sociedade, um fato que diz respeito
apenas à intimidade dos envolvidos, com o qual a sociedade no seu conjunto não
estaria diretamente implicada. Mas, no caso em que a união de fato se consolida e dura
no tempo, a ponto de seus membros serem amparados pelo ordenamento jurídico,
com a atribuição de direitos e deveres análogos aos de uma família juridicamente
constituída desde a origem, cabe ainda falar de união de fato? Com efeito, a precariedade que havia sido prevista foi superada e a união vivida apenas como fato privado
deixa de existir.
A família responde a necessidades humanas e sociais relevantes, por isso é
considerada um recurso para a pessoa e para a sociedade25. Muitos estudiosos observam que a estrutura familiar permanece, sob uma multiplicidade de formas, nas
diversas culturas, em todos os períodos históricos, como forma de relação social
constitutiva da espécie humana26.
A família constitui um recurso para a pessoa, nos mais diversos aspectos de
sua existência, estando presente como uma realidade simbólica que proporciona
experiências no nível psicológico e social, bem como orientações éticas e culturais27.
Nela encontram-se os elementos fundamentais da identidade simbólica do indivíduo
enquanto ser humano, que o diferenciam de um indivíduo animal. No espaço da vida
familiar, verificam-se experiências humanas básicas que duram no tempo, independentemente da vontade das pessoas envolvidas, tais como, a paternidade, a
maternidade, a filiação, a fraternidade, a relação entre as gerações e seu impacto na
descoberta do nexo com a geração da vida e com a realidade da morte. Em suma, a
família é um requisito do processo de humanização, que enraíza a pessoa no tempo,
através das relações de parentesco, destinadas a permanecer durante toda a existência.
Por outro lado, essas relações remetem a pessoa para a busca de um significado
adequado. Nascer, amar, gerar, trabalhar, adoecer, envelhecer, morrer são ações ou
processos ligados às relações de parentesco e, quase sempre, escapam ao controle da
25
João Carlos Petrini
Família: recurso
para a pessoa e
para a sociedade
KALOUSTIAN, 1994. p. 11; CHINOY, 1993. p. 203.
26
CHINOY, 1993. p. 203; ANSCHEN, 1974.
27
MORANDÉ, 1994; BRONFENBRENNER, 1996; WINNICOTT, 1997.
21
Família: o primeiro sujeito educativo
Família: lugar de
socialização e
educação
22
pessoa. Por causa disso, exigem uma reflexão que busque, para além das circunstâncias dadas, um significado mais profundo.
A família também constitui um recurso para a sociedade, pois facilita respostas a problemas e necessidades cotidianos de seus membros. A família é um recurso
sem o qual a sociedade, da forma como está organizada atualmente, entraria em
colapso, caso fosse obrigada a assumir tarefas que, via de regra, são desempenhadas,
de forma melhor e a menor custo, por ela. Através da proteção, da promoção, do
acolhimento, da integração e das respostas que oferece às necessidades de seus
membros, a família favorece o desenvolvimento da sociedade.
A família, constituída por um homem e uma mulher e eventuais filhos, tem
sido o lugar fundamental da socialização, da educação das novas gerações. Com efeito,
na família é transmitida não apenas a vida, mas o seu significado, o conjunto de
valores e critérios de orientação da conduta, que fazem perceber a existência como
digna de ser vivida, em vista de uma participação positiva na realidade social28.
Na família, a criança faz a experiência de ser acolhida e amada gratuitamente,
isto é, sem condições prévias, já no ventre materno e, em seguida, nas diversas etapas
do desenvolvimento, até a maturidade. Ela experimenta a positividade de pertencer a
pai e mãe, não como um objeto mas como pessoa, no respeito e no diálogo, em
contexto afetivo29.
Na família, a criança faz experiências e aprende a conviver com a diferença
(sexual, de idade, de temperamento, etc.) como algo positivo, educando-se a viver
relacionamentos interpessoais de colaboração, serviço recíproco, tolerância, indispensáveis para um equilibrado desenvolvimento. Nesse ambiente, também estão
presentes limites de diversa natureza, sendo o maior deles a morte. A convivência
familiar apresenta também conflitos, disputas, ausências, escassez de recursos materiais, agressividade e, em alguns casos, desvios do comportamento e violência. Cabe
indagar quais condições tornam possível enfrentar positivamente os problemas emer-
28
PIAGET, 1977; PIAGET, 1996.
29
BOWLBY, 1984; DOR, 1991; EMDE, 1995.
Notas para uma Antropologia da Família
João Carlos Petrini
gentes, percebidos como provocação para o desenvolvimento da personalidade e
quais condições, pelo contrário, produzem desajustes diversos.
A criança dá passos de maturidade quando, acompanhada pelos pais, tem a
possibilidade de enfrentar esses limites como desafios que exigem esforço para
superá-los ou, caso sejam invencíveis, para aceitá-los30.
A família constitui uma rede de solidariedade31, mais ou menos sólida, quase
sempre eficaz para oferecer os cuidados necessários a seus membros, especialmente
quando apresentam incapacidade temporária ou permanente para prover autonomamente suas necessidades, como nos casos de crianças e idosos ou nos casos de enfermidades físicas e psíquicas ou, ainda, de desemprego. Os cuidados que são recebidos
na família resultam particularmente importantes quando não está previsto o atendimento especializado por parte de instituições públicas e quando os serviços de
instituições privadas tornam-se inacessíveis, como é o caso da maioria da população.
A família, por ser o lugar da primeira socialização e por desempenhar funções
socialmente importantes junto aos seus membros, constitui um ponto nevrálgico com
relação a um amplo conjunto de necessidades. Com efeito, quando a família se
encontra em situação de fragilidade e ausente da existência das pessoas, os problemas
enfrentados tendem a agravar-se. Pelo contrário, à proporção que a família consiga
interagir nas novas circunstâncias socioculturais, pode contribuir para amenizá-las. A
família é, portanto, um sujeito social, alvo estratégico de políticas públicas que
venham a atuar no sentido de promovê-la, enquanto rede social eficaz, conduzindo,
através do seu fortalecimento, ao desenvolvimento de toda a sociedade.
30
PIAGET, 1987; PIAGET, 1990.
31
SANNICOLA, 1994; SANTORO; PETRINI; MORANDÉ; FORNARI (Org.) 1990.
23
Família: o primeiro sujeito educativo
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26
Família, Lugar de
Acolhida e Solidariedade
Maria Grazia
Figini
Agradeço muito por terem me convidado para este encontro, Família: o
primeiro sujeito educativo, cuja temática é fundamental não só no Brasil, mas no mundo
inteiro. Estamos de fato numa fase, que se caracteriza culturalmente, de ataque, pelo
poder, à família e à sua origem.
Como vocês sabem, o poder mundial está tentando atacar na raiz o sujeito da
família, porque uma pessoa que sabe quem ela é e a quem pertence, mais dificilmente
pode ser manipulada.
A Declaração do Direito Universal afirma que toda criança tem o direito de
crescer dentro do contexto familiar, um critério que parece contraditório com o que
expressei até agora.
Nessa aparente contradição, em que, de um lado, se diz que a criança tem o
direito de crescer dentro de uma família, proclamado pela Declaração do Direito
Universal, e, por outro lado, ataca-se a família na raiz, podemos concordar que são
aspectos relacionados à temática família, no entanto tendo cada um formas culturais
diferentes de conhecimento da mesma. A família da qual eu vou falar hoje, é um lugar
no qual está um pai e uma mãe, que decidem de forma consciente acompanhar o
destino dos próprios filhos, ou seja, educá-los. Vocês podem dizer: o que tem a ver
essa introdução comigo, que trabalho dentro de uma obra educativa, num centro
diurno para adolescentes? É que nós devemos entender o que significa educar. Este é
um trabalho que dura a vida inteira. Compreender o que significa a palavra educar não
pode acontecer num instante, mas é um percurso contínuo, uma aventura da vida
toda; porque educação implica dois sujeitos: um eu e um tu.
27
Família: o primeiro sujeito educativo
Fundamentos da
educação: um
recíproco pertencer.
Família:
referência principal
da educação.
28
Eu conheci muitas das realidades de vocês e estimo o trabalho que fazem
com as crianças e com as famílias, porque vocês levam em conta o fato de que a
educação se fundamenta sobre um recíproco pertencer em que o adulto e a criança
tenham um lugar objetivo com o qual comunicar-se, escutando com afeição a resposta
do outro.
Uma criança começa a ser feliz quando ela começa a perceber que pertence
a alguém. É nesse ponto que pode acontecer o relacionamento, a experiência do
relacionamento. É só dentro desse relacionamento que se pode transmitir o sentido
daquilo que se é e daquilo que se faz. A educação é um processo muito importante,
através do qual uma criança pode se tornar adulta, uma pessoa responsável, ou seja,
tornar-se capaz de enfrentar todas as situações cheias de desafios da vida cotidiana,
sobretudo nos contextos difíceis de risco. Esse direito de cada criança – de se poder
tornar adulta e poder ser educada – é um direito que tem a ver também com a família.
É a família que tem o direito de educar: só através de uma hipótese positiva no
relacionamento vivido em família que a criança pode ter o desejo de se tornar adulto,
de crescer.
Introduzi nessa minha primeira parte o fato de que, para educar, precisa-se
de uma família, precisa-se de um adulto, um eu, um tu e um lugar que se chama
morada.
Entendo que o que estou dizendo não faz parte de algo popular, porque o
conceito que estou explicando, ou seja, que é possível educar só através de um
pertencer, é algo atacado. Vocês sabem que, para poder entrar em relacionamento
com um problema, com um objeto, com uma pessoa, precisa-se ter um método: é o
objeto, algo que estou observando, que vai determinar o método que eu devo usar
para olhar. Por isso não posso estabelecer a priori um método para enfrentar o objeto
de um problema. Essa é a reviravolta do trabalho educativo e do trabalho social. Do
outro lado, viu-se também na Europa que a resposta à necessidade social dentro da
educação tem como ponto de partida um aspecto fundamental: a liberdade. As
respostas pré-definidas não podem responder às necessidades do homem, mas
respondem apenas ao poder dominante no momento.
Para crescer a criança precisa fazer dentro do contexto familiar ou educativo
experiência de confiança. Só dentro de um relacionamento de confiança pode acon-
Família, Lugar de Acolhida e Solidariedade
tecer o desenvolvimento. A família é em qualquer caso a protagonista, é a referência
principal da educação; quando está presente, é preciso sustentá-la, apoiá-la, de forma
tal que possa se tornar sujeito que desenvolva a tarefa educativa.
O adulto, o educador, deve sempre ter consciência das razões do que é
educar. Educar significa acompanhar ao sentido da vida. Eu devo saber por que eu
vivo, para decidir viver. As regras que vou encontrar enquanto cresço devem ser
instrumentos para desenvolver a minha razão e não para poder determinar o
desenvolvimento da minha liberdade. O risco do educar é o risco de uma liberdade, é
o risco de uma razão afetiva, é um risco de se colocar num diálogo, é um risco que
valoriza as potencialidades positivas da família e da criança, é um diálogo contínuo.
Eu sei que vocês poderiam levantar logo uma objeção: como é possível
trabalhar com a família se não existe família? Vamos dar o exemplo de uma creche: a
mãe vem e pede para poder inscrever a sua criança. Aqui nós podemos ter dois
caminhos: podemos encontrá-la de forma burocrática, formal, ou podemos começar
a olhar para essa mãe ou para esse casal que se apresentou e quer fazer a inscrição do
filho. Só se eu tenho a razão, a consciência daquilo que eu estou fazendo, posso
decidir empenhar, comprometer o meu tempo e os instrumentos que tenho à minha
disposição para conhecer aquela pessoa que está na minha frente; e por isso eu
começo a falar com ela, a encontrá-la ou a visitá-la na casa para entender quem é essa
criança, de quem se trata; se existe uma família, como é essa família.
O conhecimento não é uma forma de cobrança social, não se trata de verificar como é a casa, os cômodos, etc. mas, se vai acontecer a inserção na creche, eu devo
conhecer quem é essa pessoa que eu estou colocando na escola: Quem é essa criança?
Qual é a sua história? Qual é sua família? Quais são os seus relacionamentos? Quem
são os amigos? Quais são as necessidades dessa mulher, dessa mãe e dessa família?
A creche não é um lugar onde deixar as crianças por algumas horas, mas é o
encontro de pessoas desconhecidas que começam uma história, uma história de
relacionamento, um relacionamento também de ajuda. Vocês entendem que o primeiro momento, que pode ser o da matrícula, coloca nossa atenção sobre a família,
considerando a origem da criança, a família dela, qualquer que essa seja.
Toda a nossa vida é uma busca pela nossa origem. Seja consciente ou inconscientemente, nós estamos buscando a nossa origem. Nós entendemos que educar
Maria Grazia Figini
Tarefa educativa:
um projeto comum
compartilhado
29
Família: o primeiro sujeito educativo
Compartilhar
objetivo e sentido
30
levando em conta o pertencer, levando em conta a família, significa colocar em ato
algumas ações e usar instrumentos, porque nós temos que despertar as potencialidades que estão presentes nesta criança, que se apresenta com a mãe para ser inserida
na creche. A nossa tarefa não é só a de ensinar algumas competências para essa
criança, mas é a de educá-la. E, nesse sentido, a tarefa educativa não pode ser algo
individual, mas o resultado de um projeto comum, compartilhado por adultos que
livremente assumem a responsabilidade de conduzi-lo. Isso cria de imediato uma
visibilidade e também uma cultura no nível civil e social.
O processo educativo, se é algo compartilhado entre adultos, que são os
educadores e a família, em um lugar, isso logo determina um processo e provoca uma
mudança em oposição àquele conceito reduzido de família.
Olhando as famílias como destruídas se olham como algo que deve ser
cuidado e deve ser apoiado; pelo contrário, a família é um sujeito, um recurso e
enquanto sujeito, ela não se coloca logo como um sujeito doente. Nós devemos lutar
todos os dias para tirar a mentalidade, que nos foi colocada, de que a família é um
sujeito que deve ser ajudado. Pelo contrário, a família é um recurso que pode ser uma
resposta social.
Desculpe-me se fico muito animada falando dessas coisas, mas neste momento temos muitas notícias nos níveis nacional e internacional que vão contra a
família, considerações que se apresentam com uma visão psicológica e sociológica
parcial de abordagem à família. Eu não sou contra a utilização de algumas técnicas
especializadas, mas é preciso entender que educar é diferente de curar. A educação é
feita pelos adultos educadores e pela família; a cura fica nas mãos dos especialistas. O
que está acontecendo é que está desaparecendo o conceito de educação, para introduzir alguns conceitos psicológicos com abordagem na criança, para tirar o ponto
final, o objetivo, a meta da educação, porque educar é difícil. Para educar, é preciso
compartilhar entre os adultos o objetivo e o sentido, é preciso que nos deixemos
educar. Meu lema é educar-se para educar, ou seja, uma contínua tensão para querer
compreender e ajudar essa criança que está na minha frente a crescer. Isso leva a um
diálogo, uma aventura do educar, no qual cada ação, cada passo no processo educativo
deve ser a base para enriquecer e criar sempre novos instrumentos, porque é possível
educar se nós mudamos. A educação é algo que muda. O trabalho de educar é o
Família, Lugar de Acolhida e Solidariedade
trabalho mais fascinante, mais interessante da vida porque é uma provocação contínua
no encontro de dois rostos, de duas pessoas que juntas procuram e constroem
respostas adequadas. Se eu olho para aquela mãe que veio até minha creche para
inscrever o filho na escola materna e a olho como família e não só como uma mulher
mais seu filho, logo começa-se um envolvimento educativo com a família que coloca
algo de novo dentro do ambiente educativo e do ambiente que está ao redor.
A liberdade de um povo pode ser compreendida pela liberdade da educação,
porque o risco de educar é essa contínua aventura evolutiva. Vocês aqui presentes são
os protagonistas desta aventura. Essa consciência pode livrar e fermentar os lugares
de vocês, nos quais família e criança podem ser acolhidas e educadas, podem nascer
sempre novas respostas também sociais de apoio às famílias mesmo que sejam de
risco.
Lembrem-se que olhar para uma pessoa é a coisa mais difícil porque eu posso
ver uma pessoa, mas para olhá-la eu devo me envolver com esse sujeito que está na
minha frente.
Não é suficiente dizer que é importante o trabalho com as famílias, mas nós
devemos entender o que significa o trabalho com as famílias. Trabalhar com as
famílias é diferente de trabalhar para as famílias, porque, quando eu trabalho “para” a
família, tenho uma ótica assistencialista; quando digo que trabalho “com” as famílias
significa colocar em ação uma dinâmica entre dois sujeitos desconhecidos. Significa
conhecer, entender do que esse sujeito precisa. Como faz uma pessoa para entender
tudo isso? Só há um modo: trabalhando junto, sendo complexa a situação, resposta
não pode ser dada só por uma pessoa, mas pode acontecer dentro de um compartilhar, uma co-divisão entre adultos.
Continuo insistindo sobre esses conceitos, porque é fácil partirmos de uma
posição de já sabermos como estão as coisas: eu sei o que é uma família, eu sei o que
significa educar, eu sei o que é uma criança. Pelo contrário, permanecer sobre o sentido significa um tempo muito longo de trabalho, mas significa antes de tudo que seu
trabalho não pode se tornar uma rotina, que seu educar não pode se tornar um simples ensinamento de algumas competências, mas é um pedido contínuo que diz: o que
essa criança precisa? O que essa criança quer me dizer? Quem é a família dela? Como
faço para estar junto dela? As respostas são diferentes e podem se dar nos encontros
Maria Grazia Figini
Trabalhar com as
famílias, não para
as famílias
31
Família: o primeiro sujeito educativo
Reconhecer a
unicidade de cada
família
32
com as famílias nas escolas, nos momentos de festas. Mas, na minha maneira de ver,
a questão fundamental é que a família junto com o educador, qualquer que seja o nível
cultural da família, possa participar e compartilhar o projeto educativo para aquela
criança. Se não é assim, cada ação se torna simplesmente um instrumento, um espaço
de tempo e de relacionamento, mas vazio de significado, de sentido. Para educar, nós
devemos continuamente despertar em nós o sentido, porque as nossas respostas às
crianças e às famílias não devem ser pré-definidas mas devem ser uma contínua
surpresa, quase uma antecipação do pedido. Este é o trabalho com as famílias, parece
pouca coisa, ou não ter algo de novo, mas é só um cotidiano paciente, uma capacidade
de olhar de modo profundo que pode permitir o trabalho real com as famílias.
Sendo cada pessoa única e irrepetível, assim cada família é única e irrepetível,
eu não posso tratar do mesmo modo todas as famílias, tendo presente isso o seu
trabalho se torna uma novidade contínua, não pode ser um costume; eu não posso já
saber hoje aquilo que vai acontecer amanhã, porque onde existe um relacionamento
entre duas pessoas sempre acontece uma novidade, algo de novo. Há sempre algo que
me suscita maravilha, há sempre algo que me antecipa.
Estamos falando de ambiente, de família, de educação e de relacionamento.
Tudo isso faz parte de uma história, da história pessoal daquela criança, da história
daquela família e da história daquele povo. Povo, uma palavra que agora não estamos
mais acostumados a usar.
Esta história é o trabalho com as famílias; o desejo de conhecer esta história,
o desejo de descobrir as raízes e as tradições dessa história, não de cortá-las, porque
lembrem-se que cada pessoa que está obrigada, por um poder ou por situações ou por
qualquer outra razão, a cortar as próprias raízes não pode ser uma pessoa livre.
Lembrem-se que a liberdade não significa fazer aquilo que se quer, mas ter um lugar,
uma casa onde se possa desenvolver a competência e se tornar adulto. Quando
alguém quer tirar a minha raiz, quando alguém quer que eu esqueça a minha origem,
este é um inimigo, e não se pode educar entre inimigos, só entre amigos. Amigo é um
nível de responsabilidade, de autoridade da pessoa adulta que é consciente da criança
que está na frente dela.
Educação vem de uma palavra latina e-ducere que significa tirar para fora. Isso
significa fazer com que cada pessoa possa ser aquilo que deve ser. Essa é a tarefa
Família, Lugar de Acolhida e Solidariedade
Maria Grazia Figini
educativa, a mesma tarefa que temos no trabalho com a família. Para que uma mãe
possa ser acolhida como uma pessoa que pertence a um núcleo familiar, deve ser
olhada de forma diferente, esse olhar que ela recebe, seguramente vai gerar algumas
perguntas, e nós podemos criar uma cultura nova só através de perguntas sucitadas e
não de respostas pré-definidas impostas.
Muitas vezes, nós podemos entender a educação e também a cultura como
algo que se baseia sobre o conhecimento de algumas respostas, mas o homem é um
pedido contínuo desde o momento no qual uma criança nasce até o momento no qual
morre; nós devemos continuamente despertar essa pergunta para podermos trabalhar
com a família. Eu não dei para vocês algumas receitas, alguns modelos, eu não deixo
algumas respostas, algumas ferramentas, porque essa é a aventura do seu trabalho, de
vocês, educadores, dos seus responsáveis e das equipes especialistas. Eu não acredito
em um esquema. É importante ter ferramentas, ter instrumentos para poder avaliar
de forma qualitativa o trabalho, mas os instrumentos e as ferramentas mudam. Cada
vez mais vocês vão crescer nessa dinâmica entre um eu e um tu e as ferramentas se
inovarão. Quando as ferramentas permanecem estáveis por muito tempo significa que
nós adquirimos um esquema. Dentro de um trabalho de relacionamento, dentro do
trabalho com as famílias, dentro do trabalho educativo, não se avança através de
esquemas, mas indo cada vez mais fundo no conhecimento. Ou seja, educar-se para
educar, estar com as famílias para trabalhar com as famílias.
O poder nos quer como indivíduos, quer homens sozinhos, livres de
estabelecer qualquer tipo de relacionamento como e quando se quer. O sentido da
vida e o sentido do viver vão contra essa concepção de tipo individualista, porque,
para buscar o sentido da vida, eu devo estar com outros, devo dialogar com outros,
devo me comparar com outros, e, assim, nos tornamos homens livres.
33
COF – Uma Experiência com Famílias
A idéia é poder contar para vocês um pouco da nossa história, do trabalho
do COF, o Centro de Orientação da Família, desenvolvido nesses três anos, na cidade
de Salvador (BA), e relatar também as perspectivas de continuidade.
O COF nasceu como uma intervenção do curso de mestrado. Ontem, vocês
conheceram o Padre João Carlos Petrini que dirige o Instituto João Paulo II, sede do
mestrado em Ciências da Família. Essa iniciativa de criar centros voltados para a
questão da família veio do Papa, com a proposta de desenvolver estudos e pesquisas,
através do mestrado, mas promovendo também intervenções práticas dentro da
realidade da cidade . A forma encontrada para realizar esse projeto foi através de um
convênio com a CEI – Comunidade Episcopal Italiana –, a instituição mantenedora,
sendo escolhidas para executá-lo a AVSI – Associação de Voluntários para o Serviço
Internacional – que é uma ONG italiana, e a CDM – Cooperação para o Desenvolvimento e Morada Humana –, a ONG brasileira parceira da AVSI.
O COF como estrutura tem dois aspectos básicos: os consultórios fixos e o
trabalho móvel que se dá através da realização de cursos em outras instituições,
escolas, associações, paróquias, instituições públicas e privadas.
A equipe atua numa perspectiva de trabalho científico junto ao instituto,
participando de grupos de pesquisa e organizando seminários sobre o tema
família.
O objetivo do nosso trabalho é acompanhar e fortalecer famílias em
dificuldade.
O projeto foi implantado em maio de 2000, com a realização de um curso,
Lílian
Perdigão
Caixêta Reis
Objetivo e
público alvo
35
Família: o primeiro sujeito educativo
destinado à formação da nossa equipe, aberto também a alunos do mestrado e
profissionais parceiros.
A estrutura do COF é pequena, temos três consultórios, uma sala de reunião
e a recepção. E ao todo, atualmente, são seis profissionais desenvolvendo esse
trabalho. Os recursos são em torno de 150 mil reais por ano, praticamente para a
manutenção dos profissionais.
O público alvo – como o COF está situado num bairro central – integra toda
a área metropolitana de Salvador, não tendo esse critério de definir uma região ou um
grupo de pessoas. O COF, com seu trabalho gratuito, é aberto, sendo recebidas
pessoas de todos os tipos, até mesmo famílias do interior da Bahia.
A equipe é interdisciplinar, composta pelos seguintes profissionais:
• uma médica – Giuseppina Gallicchio;
• uma advogada – Isabela Bulos;
• uma assistente social – Luciana Leal de Andrade;
• duas psicólogas – Lílian Perdigão C. Reis e Sylvana L. A. dos Santos e
• um orientador espiritual – João Carlos Petrini.
Os serviços
oferecidos e o
método de trabalho
36
Os serviços oferecidos são: aconselhamento psicológico, serviço social,
orientação sexual e planejamento familiar; atendimento jurídico e mediação familiar;
orientação espiritual; orientação na educação dos filhos (todos os membros da equipe
têm um cuidado educativo no trabalho); orientação para adolescentes e orientação
profissional.
O método de trabalho, que é base de toda a condução do projeto, tem como
ponto de partida o reconhecimento da centralidade da pessoa, a questão do
acolhimento: acolher a pessoa naquilo que ela é, aceitar a pessoa, a dignidade da
pessoa naquilo que ela é. É uma abordagem horizontal; então, a pessoa é valorizada
em todos os seus aspectos. Não é a questão de ver só o psicológico ou só o biológico,
mas de ver toda a pessoa, todo o contexto de vida dela, buscando conhecer a história
dessa pessoa. Numa abordagem integrada, a equipe é interdisciplinar e tem essa visão
mais ampla da situação da família, adota uma abordagem global, porque atua dentro
de uma perspectiva de rede de suporte, buscando conhecer todo o contexto em que
essa família está inserida e identificando pontos de apoio para essa família.
COF – Uma Experiência com Famílias
Como é a chegada da pessoa ao COF? A inauguração do COF foi divulgada
em todos os jornais de Salvador e na televisão, o que criou uma difusão imensa: no
primeiro dia de atendimento, nós tínhamos 40 pessoas já inscritas. A partir daí, os
encaminhamentos passaram a ser feitos pelas pessoas atendidas, não precisamos mais
nos preocupar em divulgar o COF. As famílias ou os profissionais passaram a ser os
maiores divulgadores desse projeto, assim como outras instituições.
Quando a pessoa chega para um atendimento, passa por uma primeira
entrevista. A pessoa pode ter mais de um encontro com a assistente social, que, nesse
primeiro encontro, pode chamar algum membro da família antes de fazer algum
encaminhamento. Um aspecto que enriquece nosso trabalho é que a assistente social
do COF é formada em terapia familiar sistêmica, possuindo uma especialização que
ajuda na condução do atendimento. Essas primeiras entrevistas são importantíssimas,
porque ali buscamos conhecer essa pessoa; não é o problema que é enfatizado, pois a
pessoa é diferente do problema. Não se centraliza no problema, mas, sim, na pessoa.
Nessa primeira entrevista, é iniciado um processo de ajuda, compartilhando
a história individual dessa pessoa ou da família. Esse compartilhar a história vai
permitindo uma compreensão dessa família e, ao mesmo tempo, a própria pessoa é
ajudada no sentido de se apropriar da sua realidade. Quando eles estão contando para
a assistente social o que está acontecendo com eles, de onde eles são, quem são eles,
vão repensando a sua vida; esse já é um momento de reorganizar, de tentar repensar
a sua estrutura de vida e de família. Nesse momento, a assistente social também
explica e apresenta o trabalho do COF, todo o funcionamento da equipe, deixando a
pessoa ciente de que as questões dela vão ser confrontadas com uma equipe. É
interessante isso no nosso projeto, porque a pessoa não confia em um profissional,
mas em uma equipe. A assistente social faz os encaminhamentos para a equipe ou
para profissionais da rede de apoio externa, se na primeira entrevista ela percebe que
a pessoa precisa de uma ajuda médica, já faz esse encaminhamento e, quando leva
para a reunião, já se adiantou essa parte. O que é principal nesse trabalho da primeira
entrevista é que a pessoa sai daquela postura imediatista, e nós também aprendemos
isso. Não é que ali ela vai chegar e resolver um problema de imediato ou que a equipe
do COF vai ter uma resposta mágica para dar naquele dia; a pessoa, a partir desse
confronto com a assistente social, começa a entender que está começando a percorrer
Lílian P. Caixêta Reis
37
Família: o primeiro sujeito educativo
Atendimento
psicológico
38
um caminho e que existe um caminho que pode ser percorrido. Esse é o principal
aspecto na finalização da primeira entrevista.
Agora, vamos conhecer cada um dos serviços que o COF oferece. O mais
procurado é o atendimento psicológico e, na origem do projeto, esse serviço seria de aconselhamento e orientação. Quando se fala de aconselhamento, pressupõe-se em torno
de 10 sessões, normalmente uma sessão por semana, um trabalho de curto prazo. Que
mudanças aconteceram conosco e que adaptações foram necessárias dentro desse
trabalho? Primeiro, os psicólogos do COF tiveram que entender como realizar o
trabalho compatível com a metodologia da instituição, obedecendo àquele aspecto da
centralidade da pessoa. A abordagem que encontramos que mais se identificou com
essa proposta foi o aconselhamento centrado na pessoa, inspirado no modelo de Carl
Rogers. Nesse tipo de aconselhamento, o profissional se coloca como pessoa perante
a outra pessoa, busca um relacionamento de reciprocidade, de acolhida, de aceitação
da pessoa naquilo que ela é, de empatia, que é o colocar-se no lugar do outro e tentar
compreender o outro naquilo que ele está vivenciando. Um aspecto no qual fomos
crescendo dentro do trabalho, é que começamos a adotar também o modelo de relação
de ajuda, a escuta ativa. Nessa escuta ativa o profissional busca atuar, não só ouvindo o
que a pessoa está falando, mas ouvindo nas entrelinhas também e olhando para a
pessoa. Assim, não só o conteúdo da fala, mas que sentimentos ela expressa, o
pensamento dela, como você vê a organização do pensamento dessa pessoa, depois,
o profissional devolve, confrontando suas impressões com a pessoa. Enfim, uma
escuta mais ampla.
Outra coisa que adotamos em nosso trabalho foi um repertório de intervenções.
Por quê? Porque os profissionais do COF têm formação diferente. Por exemplo, a
assistente social é terapeuta de família; eu sou logoterapeuta e estou me formando no
mestrado em ciências da família; e a outra psicóloga é formada em grupo operativo.
Então, começamos a usar dentro do nosso trabalho técnicas e recursos que vinham
dessa formação que cada profissional já possuía, valorizando também a experiência de
cada um. Isso permitiu uma flexibilidade de recursos: para cada família, é possível usar
recursos, intervenções e encaminhamentos diferentes.
Como exemplos de recursos, posso pedir que a pessoa faça simplesmente
uma lista das coisas mais importantes na vida dela. A partir daí, pode-se ver o que ela
COF – Uma Experiência com Famílias
valoriza. Listas do que a pessoa gosta, o que ela faz e não gosta de fazer; que
responsabilidades, que obstáculos percebe em sua vida, o que pensa na forma de
enfrentar esses obstáculos. Usamos muito estas listas, pois, quando a pessoa começa
a listar essas coisas, pensa possibilidades a partir dali. Também utilizamos técnicas de
desenho, de colagem, dinâmicas com a família, um jogo familiar lúdico quando
crianças estão presentes. Um recurso interessante da terapia familiar sistêmica é o
genograma, um tipo de uma árvore genealógica. Você faz a história da família, busca
averiguar os vínculos entre as pessoas dessa família, o relacionamento, a quem esta
pessoa é mais apegada.
No COF houve muita demanda para atendimento psicológico e, como não
era possível lidar com esta, buscamos alternativas para supri-la. Quando a pessoa tem
necessidade de outro encaminhamento, recorremos a profissionais de psicoterapia ou
psiquiatras, mas já aconteceu de não conseguir encaminhar a pessoa e, diante de sua
situação de sofrimento, optamos por manter o atendimento no COF.
Por isso, demos início a um trabalho de psicoterapia breve, que dura em torno
de seis meses. Alguns casos chegaram até a um ano, porque era uma necessidade
daquela pessoa e decidimos em equipe que era mais interessante que permanecesse
em acompanhamento conosco. Assim, há casos que permaneceram um tempo maior.
Outra alternativa que encontramos foi o trabalho com grupos. Chamados grupos
de encontro, são compostos por pessoas que já passaram pelo atendimento individual:
grupos de mães, grupos de jovens e de jovens adultos. Existe uma organização desses
grupos em termos de questões, de problemáticas que estão enfrentando. Quando uma
pessoa no contexto do grupo confronta, partilha aquilo que ela está vivendo e
descobre que outras pessoas vivem questões semelhantes, ou enfrentam as próprias
dificuldades com outros recursos, isso também abre um leque de possibilidades para
a pessoa de perceber a realidade dela de uma forma diferente.
No relacionamento com parceiros, nossos parceiros externos se tornaram quase
que membros da equipe. Por exemplo, não há um médico psiquiatra no projeto, mas
a convivência, o fato de encaminhar as pessoas para os psiquiatras, fez com que
criássemos um vínculo com esses profissionais. Então, muitas vezes ligamos para o
profissional para confrontar aspectos relativos ao atendimento (com autorização das
pessoas atendidas). Isso cresceu a tal ponto que hoje esses médicos recomendam às
Lílian P. Caixêta Reis
39
Família: o primeiro sujeito educativo
Orientação sexual
e o planejamento
familiar
Orientação espiritual
40
pessoas que eles estão atendendo que procurem o COF. Tornou-se, assim, uma
parceria recíproca.
Outro trabalho é a orientação sexual e o planejamento familiar. O planejamento
familiar não é o uso de métodos contraceptivos; como viver a maternidade e a paternidade responsável é o ponto principal que focalizamos nesse trabalho. A surpresa
para nós é que a demanda maior que apareceu no COF foi justamente de mães que
queriam orientações de como lidar com a educação dos filhos em relação à questão
da sexualidade.
Outras questões são de pessoas com dificuldades sexuais, situação de impotência, frigidez ou mesmo algum problema de adoecimento, ligado a algum vírus.
No planejamento familiar, surgem questões de pessoas que não conseguem
ter filhos e querem lidar com isso, além da orientação sobre os métodos
contraceptivos. A médica apresenta todos os métodos, os riscos implicados nestes e
ainda ensina a fazer uso do método natural.
Focalizamos a questão da escuta médica, porque ela escuta a pessoa como um
todo, a família como um todo e não só aquele ponto do problema que ela traz.
É muito importante no trabalho médico e de toda a equipe a questão
educativa. Por exemplo, como repertório de intervenções, usamos a indicação de
textos, um livro para a família ler, um texto que lemos junto com a mãe sobre os filhos
etc. Na orientação sexual, o trabalho educativo, voltado para a responsabilidade na
vida sexual, ajuda a entender o sentido da própria sexualidade.
A orientação espiritual é principalmente um trabalho de diálogo e confronto,
com o orientador, a pessoa desabafa. Depois, volta aliviada para o atendimento com
a assistente social e consegue falar com mais tranqüilidade das questões que está
vivenciando para os outros profissionais. Há uma abertura maior a partir do momento
no qual se confronta com o orientador espiritual. É muito claro para nós e para as
pessoas que recorrem a este trabalho que não é uma confissão, mas um diálogo de
confronto com o orientador espiritual.
No COF nós temos dois orientadores que nos apóiam que são o padre
Petrini e o Padre Guido. É interessante o trabalho do Padre Petrini nessa perspectiva
de lidar com os conflitos familiares, ou oferecendo esclarecimentos sobre a visão da
igreja. Às vezes, a pessoa tem uma série de superstições e crenças em relação ao que
COF – Uma Experiência com Famílias
a igreja permite, ao que não permite, às proibições etc. Quando faz esse confronto
com o orientador, começa a entender que pode ser acolhida dentro da igreja naquilo
que ela é, com suas dificuldades.
Outro ponto é dos dilemas religiosos, quando as pessoas, diante da
dificuldade, buscam uma resposta mágica em religiões diferentes, indo do candomblé
ao espiritismo, à igreja católica, nessa confusão acerca da fé.
É ainda na orientação espiritual que as pessoas buscam conforto e
acolhimento diante de situações de perda ou adoecimento; aprendem a lidar com isso
e a aceitar essa dificuldade.
O principal aspecto é que, neste trabalho de orientação espiritual, se resgata
a dimensão espiritual, também dentro do trabalho da equipe. É entender a pessoa não
só do ponto de vista biológico, médico, psicossocial, mas a pessoa também como dimensão espiritual. Aqui se percebe mais claramente o significado do reconhecimento
da pessoa em sua totalidade, sua valorização em todas as dimensões.
Contamos ainda com a ajuda do Padre Guido que trabalhou com jovens que
faziam uso de drogas, e nos tem dado grande apoio na orientação a famílias que têm
dificuldades em relação à dependência química.
A orientação jurídica há uma identificação entre o COF e a advocacia. A nossa
advogada sempre fala: qual é o objetivo do direito? É o bem da pessoa. Ela coloca que
no COF é permitido que seja resgatado o interesse pela pessoa, a preocupação com
o bem do outro. Há uma postura de encontro com a pessoa da parte da advogada e
isso dá uma perspectiva diferente do trabalho. Por exemplo, às vezes, no trabalho com
casais separados, temos dificuldade de chamar um pai para o atendimento psicológico.
Este resiste. "Eu? Psicóloga, o quê? Não preciso disso não". Aí, quando enviamos a
carta da advogada, eles vêm na hora, se é questão jurídica aparecem. E se
surpreendem porque, nesse encontro, quando ela fala do COF e conta o que está
sendo feito com a família, esses pais passam a se tornar parceiros e se abrem ao
trabalho como um todo.
Recursos que a advogada usa e que são muito importantes para nós são essas
cartas convite, chamando para a entrevista, e o acordo extra-judicial, por exemplo em
questões de pensão alimentícia ou da guarda dos filhos. A advogada orienta a família
no COF e quando estes vão ao juiz é praticamente para homologar o acordo feito.
Lílian P. Caixêta Reis
Orientação jurídica
41
Família: o primeiro sujeito educativo
Dinâmica do
trabalho
42
Há um atendimento em conjunto com a assistente social, nos casos em que
toda a família é convidada. A assistente social participa e ajuda nas intervenções, o que
é muito importante.
Existe também o trabalho de mediação familiar, que não é buscar a conciliação ou reconciliação. Muitas vezes a mediação familiar é ajudar a família a lidar com
a situação de sofrimento gerada pela separação ou pela situação de sofrimento que as
crianças estão vivenciando, para que os pais possam perceber que eles não são só um
casal, mas são pais, que têm filhos para cuidar. O que se busca mais é essa capacidade
de diálogo do casal em relação à questão dos filhos, a fim de acalmar essa tempestade
dentro do contexto do sofrimento que eles estão vivenciando.
E, finalmente, para vocês entenderem a dinâmica do trabalho como um todo:
a pessoa vem, passa pela secretária, que foi treinada para fazer o atendimento
telefônico e para receber a pessoa. É preciso cuidado de não ficar conversando dos
problemas com a pessoa na recepção. A pessoa chega ali num momento de confusão,
de grande angústia, e às vezes fala muito de si na recepção ou pelo telefone; então,
nós nos preocupamos com essa questão, isto é, cuidar da pessoa desde a recepção.
Depois, acontece a entrevista, e as informações são levadas para a equipe,
que trata da pessoa dentro de um contexto de família. O caso é discutido,
confrontado pela equipe como um todo. A pessoa volta para a assistente social que
faz o encaminhamento para os próprios profissionais ou para outras instituições.
Mesmo quando a pessoa é encaminhada para outras instituições, um tempo depois
buscamos um contato, averiguando como que a pessoa está. Nós já estabelecemos
um vínculo de relacionamento com as instituições de forma que os próprios
profissionais nos ligam para dizer "Olha, recebi alguém de vocês". Ou, quando a
assistente social liga, já tem a confirmação de que aquela pessoa já foi atendida. As
pessoas são sempre encaminhadas com uma cartinha dizendo o nome do profissional
que as está encaminhando. No final, é feita uma avaliação do trabalho com a pessoa,
que é encaminhada para outra instituição ou acontece o desligamento do COF. Esse
desligamento pode acontecer depois de um encontro, de dois, de um ano, depende
da família. Já aconteceu caso em que com apenas um atendimento foi possível
esclarecer e a família já conseguiu entender suas dificuldades e daí pôde ser desligada
do COF.
COF – Uma Experiência com Famílias
Quanto ao trabalho de equipe, funciona como uma rede de apoio interna. As
nossas reuniões são obrigatórias, uma vez por semana, com quatro horas de duração,
duas para discussão dos casos e duas para estudo. Nós nos ocupamos da análise dos
casos, da revisão metodológica, de ver o que a gente está fazendo, se o caminho certo
é esse, que método é o mais indicado.
O momento de estudo, que é obrigatório, parte principalmente das questões
que estamos enfrentando, temas como depressão, psicopatologia, mediação familiar,
planejamento familiar, enfim, aquilo que nasce do nosso trabalho é estudado, aprofundado pela equipe como um todo.
O que motiva o nosso trabalho? Essa pergunta foi muito interessante, porque
no início ficávamos preocupadas em atender à demanda, parecia que tínhamos que
atender toda a população de Salvador. Depois, nós nos demos conta de que não era
isso, que o nosso trabalho nasce da pessoa. Assim, a nossa preocupação hoje é oferecer um trabalho de qualidade para aquela pessoa, o que implica em ser presença para
aquela pessoa e em estabelecer um relacionamento com ela. Quando entendemos isso
começamos a elaborar melhor a angústia da lista de espera.
No primeiro atendimento, a assistente social esclarece para as pessoas que
não há horário para atendimento psicológico, mas caso queiram aguardar seu nome
será inserido em uma lista de espera. Como a demanda é imensa, algumas pessoas só
foram chamadas para atendimento psicológico depois de um ano de inscritas.
Ficamos surpresas ao constatar que estas ainda tinham necessidade de acompanhamento e que até aquela data não tinham conseguido atendimento em outro local.
Por outro lado, estas pessoas ficaram agradecidas por terem sido respeitadas e
chamadas na sua vez. A partir daí, começamos a valorizar a lista de espera de outras
instituições, incentivando as pessoas para que se inscrevam e acompanhando-as até
que sejam chamadas.
Aprendemos a trabalhar juntos, dentro de uma visão complexa e interdisciplinar. A equipe também é um espaço de conforto e de contenção para a própria ansiedade e angústia do profissional. Lidamos com situações de muito sofrimento: muitas
vezes o profissional fica vulnerável e a nossa fragilidade aparece naquele atendimento.
Além disso, a responsabilidade é partilhada, porque você tem uma segurança,
mesmo que cometa um erro no atendimento, pode repensar isso junto com a equipe.
Lílian P. Caixêta Reis
Trabalho de equipe
43
Família: o primeiro sujeito educativo
A rede de apoio
Recursos e
instrumentos
44
As nossas hipóteses são confrontadas, o que nos dá uma firmeza de postura no
relacionamento com o outro. E tanto acontece que percebemos um amadurecimento
dos profissionais do projeto. Se antes recorreríamos à equipe a toda hora, hoje
conseguimos ter uma autonomia no atendimento, porque já assimilamos uma postura
de trabalho, uma postura de como nos colocar perante a outra pessoa. Amadurecemos nessa capacidade de relacionamento com o outro.
A rede de apoio externa é composta por esses contatos já mencionados.
Hoje, temos vínculo com várias instituições públicas e com outros projetos e profissionais, como psiquiatras, farmacêuticos, fisioterapeutas, médicos, homeopatas e
clínicos. Visitamos todas as instituições e profissionais aos quais encaminhamos
pessoas do COF. Nesta visita, avaliamos se a instituição tem uma estrutura que vai
favorecer a pessoa e nos perguntamos se esse profissional tem uma postura coerente,
uma postura ética, e se o espaço que ele está oferecendo é adequado para a pessoa que
estamos encaminhando.
O resultado disso é que hoje as famílias atendidas são nossos maiores
parceiros. Inclusive uma pessoa que foi atendida no COF, elaborou um guia da
comunidade, com uma série de instituições que ela visitou e trouxe dizendo: "– Olha
encontrei esses parceiros para vocês!" Eles se tornam nossos parceiros, dessa maneira:
"– Consultei com um médico que é muito bom, aqui está o nome e telefone dele para
vocês indicarem às pessoas." Enfim, participam do nosso trabalho.
Nossos recursos e instrumentos: – a reunião de equipe, como eu falei que é
obrigatória; – os relatórios de atendimento (todo profissional tem um caderninho onde
anota cada atendimento, os procedimentos que foram feitos, intervenções, o que
pensa de tarefa, de condição do trabalho, para confrontar com a equipe); – indicação de
leituras para as pessoas que estamos atendendo e para os profissionais em relação ao
aprofundamento de algum tema; – o prontuário – toda família ou pessoa atendida no
COF tem um prontuário que só é acessível aos membros da equipe, por uma
preocupação ética, tendo o cuidado no sentido de não estar expondo as famílias que
estão sendo atendidas. Então, esse material, essas anotações nossas só são acessíveis
aos membros da equipe. Enfim, a carta de encaminhamento e as visitas às instituições.
Atualmente estamos nos dedicando ao trabalho de organização do banco de
dados, que parte um pouco do prontuário, no sentido de identificar o perfil das
COF – Uma Experiência com Famílias
pessoas que foram atendidas, as demandas, a situação socioeconômica, a escolaridade
das pessoas que vieram até nós. E à sistematização, que é escrever essa experiência do
COF para que ela possa ser multiplicada e divulgada em outros contextos.
Resultados do nosso projeto – em termos quantitativos já realizamos em dois
anos e meio de trabalho 16 cursos, sendo beneficiadas 150 pessoas. Aproximadamente 350 famílias foram atendidas no COF, isso não quer dizer 350 pessoas, porque
partimos de um núcleo familiar e caminhamos em direção a uma família mais extensa.
Desse modo, é um número bem maior de pessoas atendidas.
Firmamos convênios com cerca de 25 instituições, como a Secretaria de Saúde, o Centro de Referência do Idoso, o Centro de Referência do Diabético, hospitais,
enfim, várias instituições. E fizemos parceria com duas farmácias, isso é importante
porque muitas pessoas que atendemos fazem uso de medicamentos para depressão ou
outros quadros, além de parcerias com profissionais, como médicos, psicólogos, até
fisioterapeutas.
Aspectos qualitativos – o que confirma principalmente o valor do trabalho
que foi realizado em três anos pelo COF é o retorno das pessoas, pelo relato da
história de vida, a mudança, o percurso que a pessoa faz conosco. A pessoa ou família
chega de um jeito no COF e, quando sai, muda, mudou na forma de enfrentar a
dificuldade ou no relacionamento. Não quer dizer que sai dali com todos os
problemas solucionados, mas consegue ter uma compreensão e melhor clareza da sua
própria realidade, da sua situação. O reconhecimento principal vem das famílias que
voltam e que nos dão retorno, depois de um ano. E o COF hoje se tornou uma
referência dentro de Salvador, não só para as famílias, mas para outros profissionais
que ligam pedindo recomendações, indicações de estudo etc. Ainda, o convite
constante para palestras e para participação em congressos ou eventos.
Enfim, a satisfação interna da equipe, a paixão pelo trabalho que realizamos,
o reconhecimento do valor do que fazemos e do quanto amadurecemos como
pessoas e profissionais dentro desse projeto.
O projeto vai ter uma continuidade, através da construção de um centro que
funcionará em Novos Alagados. Implica a participação do COF dentro de um projeto
maior, de um programa de recuperação infantil, de crianças e adolescentes em
situação de risco, não só na questão da desnutrição, mas da violência e outros aspectos
Lílian P. Caixêta Reis
Resultado
quantitativo e
qualitativo
45
Família: o primeiro sujeito educativo
46
de risco. Há perspectivas também de que o projeto, a partir dessa sistematização, atue
no contexto educativo mais amplo. Além disso, há outros centros que estão tentando
multiplicar esta experiência.
Concluindo, o mais importante que descobrimos, nesse trabalho, veio a partir
de uma pergunta de uma pessoa que falou: "Pôxa, como é que vocês conseguem lidar
com tanta pobreza?" Aí nós nos demos conta de que não atentávamos para a pobreza,
porque olhamos a pessoa, o nosso trabalho parte das pessoas que chegam até nós, do
valor dessa pessoa, da dignidade que ela tem. Toda pessoa tem potencialidades, toda
pessoa tem aspectos de qualidade e capacidade de enfrentar suas dificuldades. E
enfrenta sua realidade com os recursos que consegue perceber. Então, quando
consegue ampliar sua visão acerca dessa realidade, também percebe novas
possibilidades de atuação ali naquele contexto. O nosso trabalho é todo no sentido de
fortalecer e capacitar essas famílias para que elas possam se tornar conscientes da
própria vida e da responsabilidade que têm pela própria vida, para serem
protagonistas. A nossa tarefa é ajudá-las a assumir esse protagonismo, e é o que
confirmamos que acontece lá no trabalho. E obviamente isso favorece para o
enfrentamento de outras dificuldades, o desemprego, a violência, quando se abrem
novas perspectivas dentro da comunidade de enfrentar as dificuldades.
Outro aspecto é o valor do trabalho interdisciplinar. Comprovamos que é
possível trabalhar em equipe. Do ponto de vista profissional, a riqueza da diversidade
e a amplitude que um trabalho assim pode abarcar. E do ponto de vista humano, o
apoio para enfrentar a realidade, o caminhar juntos, a certeza de que não estamos
sozinhos. A ajuda para olharmos todos os fatores da pessoa que está sendo atendida.
De fato, a possibilidade foi de olhar a pessoa como um todo, cada membro da equipe
sendo suporte para o outro.
E ainda a formação continuada, o tempo todo nos preocupamos com o
estudo, a formação, tanto valorizando a competência de cada profissional, como
aprofundando esses estudos. Percebemos que nasce uma motivação nos profissionais
no sentido de estudar e ampliar a sua formação. Duas profissionais do COF, hoje,
estão buscando fazer o mestrado. Nossa advogada está se especializando em
mediação familiar; esse desejo de crescer profissionalmente nasceu da experiência do
trabalho do COF.
COF – Uma Experiência com Famílias
Lílian P. Caixêta Reis
Desse modo, conclui-se que, quando a família é valorizada e fortalecida como
primeiro núcleo educativo, ponto de origem, de partida para a vida, conseguindo
enfrentar as adversidades e apoiar seus membros no seu processo de desenvolvimento, torna-se um recurso para a sociedade. Comprovamos isso neste trabalho, em
que a capacitação das famílias repercute no contexto social, contribuindo para a
redução de situações de pobreza e violência. Portanto, nossa perspectiva de agora,
com a proposta de mudança para Novos Alagados, é de nos integrarmos aos projetos
existentes naquela área – creche, centro educativo, projeto de saúde materno-infantil
etc. –, unindo-nos a estes para colaborar com a melhoria de vida de famílias que vivem
em situação de risco.
Espero ter conseguido ser clara e objetiva. O que eu posso dizer é que é uma
experiência muito bonita e é muito bom poder estar aqui partilhando isso com vocês.
47
Família:
O Primeiro Sujeito Educativo em Debate
Maria Grazia
Figini
João Carlos
Petrini
Maria Grazia falou, na sua intervenção, que "Só uma capacidade de olhar
pode permitir um trabalho real com as famílias". A pergunta é: como manter
esse olhar?
Esse é um problema de educação, de educar-se. Há vários tipos de métodos
de observação que ajudam, como se dessem um treinamento para observar. Existem
instrumentos e técnicas de formação que, às vezes, levam anos na formação, mas
aquilo que eu estava entendendo é a capacidade de colocar a atenção em quem está
na minha frente. Uma pessoa tem sempre uma pergunta escondida e nas primeiras
conversas que estabeleço com ela nunca me é feita essa pergunta, esse pedido, só um
homem livre pode colocar um pedido. Logo, nós devemos ajudar para que esse
pedido possa emergir, não devemos dar a resposta. Compreendo que isso possa gerar
uma objeção em vocês, mas a única coisa que eu posso dizer é: experimentem!
Normalmente, quando nós fazemos uma entrevista – também a entrevista para a
inserção na creche ou para enfrentar qualquer problema da situação familiar –, logo
ficamos tensos para entender quais respostas qualificadas podemos dar do ponto de
vista profissional. Estamos pouco atentos para saber o que essa pessoa quer, o que
essa pessoa está me perguntando. É muito fácil escorregar entre o pedido e a resposta,
porque estar atento à pergunta é como se gerasse no operador uma ansiedade porque
a pergunta do outro faz vir à tona também a minha pergunta, o meu pedido. No
momento em que eu estou oferecendo um serviço é como se eu tivesse que dar uma
resposta, sou eu que devo ajudar. Nessa ótica, é impossível permanecer diante do
Descobrir o pedido
do outro
49
Família: o primeiro sujeito educativo
pedido, porque eu não sei dar respostas, mas eu estou ali para escutar o pedido e para
compreender do que se trata. A minha resposta sempre escorrega na questão moral:
estar frente ao pedido me ajuda a estar na origem para não dar respostas que estão
pré-definidas. Como eu faço para saber qual é o bem daquela família, daquela criança?
Eu devo conhecer aquela situação e o conhecimento é sempre uma ação afetiva; eu
devo entrar em relacionamento de conhecimento daquele núcleo familiar ou daquela
criança, devo decidir estar com aquelas pessoas. A distância não me ajuda a compreender, a ordem de um conhecimento afetivo é a verdadeira distância, é o
verdadeiro respeito. Às vezes, a resposta é como uma tentativa de possuir o outro: eu
sei qual é a necessidade e sei responder. Ao invés, a verdadeira posição é descobrir de
que o outro necessita e como se pode ajudar nisso. Essa é a verdadeira reviravolta de
todo trabalho educativo e social. Não é um método cômodo, porque é uma busca
contínua. Para poder trabalhar dessa forma, eu preciso trabalhar com outros e é nesse
ponto que pode nascer a equipe. A verdadeira resposta nasce da unidade de sujeitos
que se colocam em frente ao pedido do outro para compreender e conhecer aquilo de
que ele necessita para fazer juntos um pedaço de caminho, sempre redefinido. É só o
pedido que gera a resposta e é a tentativa de resposta que gera um pedido.
Queremos entender melhor quando Maria Grazia falou que a questão
fundamental é que família e o educador possam participar e compartilhar do
projeto educativo da criança.
Dinâmica do
trabalho
50
Se nós estamos pensando que a escola, a creche, é uma tentativa de adultos:
família, educadores, diretoras, administradores, que procuram acompanhar uma
criança por um período importantíssimo da vida, logo, se entende que esses adultos
devem compartilhar alguma coisa.
A melhor forma para poder compartilhar é realizar passos juntos. Se eu,
educador, dentro da minha sala de aula tenho vinte crianças e consigo olhar cada uma
delas e vejo que uma criança deve aprender as cores ou desenvolver o aspecto
psicomotor, isso significa construir um projeto educativo com a família. Significa
conhecer aquela família, o espaço onde aquela família mora, os relacionamentos
daquela família no território e, por isso, convidar aquela família com o educador de
Família: O Primeiro Sujeito Educativo em Debate
Figini e Petrini
referência, ou com o diretor ou o pedagogo, e descrever e contar o que se faz para
alcançar um objetivo.
Nesse diálogo no qual se explica como alcançar os objetivos, eu posso ter
algumas sugestões por parte da família. Ao mesmo tempo, educo a família, para que
ela não se comprometa somente em levar a criança para passar um tempo na creche,
mas entenda que, se a criança está em um lugar com algumas pessoas a realizar
algumas atividades, essas pessoas sabem o que estão fazendo.
Quando a criança volta para a casa, é diferente o olhar dos familiares, e dessa
forma tudo se une, porque nós devemos lutar contra o fenômeno da cultura pósmoderna, que é o conceito de soma de atividades e compromissos: uma criança
aprende a ler e a escrever, depois faz ginástica, depois aprende uma outra língua, é
como se nós tivéssemos que preencher todos os espaços dessa criança para que ela
não fique à toa. Pelo contrário, uma criança precisa respirar o fluxo de uma vida
cotidiana, um fluxo no qual ela é sujeito com a família e com o educador, de forma
que não passe a vida preenchendo os tempos vazios, mas aprenda a usar o tempo,
aprenda o que significa dormir, o que significa comer com os outros, o que significa
brincar de forma que seja protagonista. Se nós pegamos uma criança sem um projeto
educativo comum, sem envolver a família, tudo aquilo que agora eu descrevi se torna
algo artificial. Lembrem-se que uma criança sabe muito bem se os adultos trabalham
juntos e, se os adultos trabalham juntos, nesse caso uma criança se percebe abraçada,
se percebe pensada, e daqui pode começar a esperança do viver; o delito maior que
nós, adultos, podemos cometer é matar a esperança das crianças.
Novamente outra colocação da Maria Grazia, pois parece que ela gosta de nos
provocar. Ela disse: "Para educar precisa-se de um adulto e de uma morada".
Gostaríamos de entender melhor a concepção de morada.
As crianças e também nós precisamos de uma morada, de uma casa. Usei a
palavra morada para não pensarmos logo na nossa casa. Pensem nas experiências que
vocês viveram nestes dois dias: vocês estão em um lugar onde há limites, no qual são
vividos juntos alguns momentos, alguns vão para casa, mas alguns dormem aqui com
os colegas. Este local que tem um limite permite relacionamentos e conhecimentos
Concepção de
morada
51
Família: o primeiro sujeito educativo
novos. Se esse território não tivesse limites, seria muito mais difícil estabelecer
relacionamentos. A sala na qual nós almoçamos permite-nos nos olhar, nos conhecer,
permite um relacionamento entre nós, permite entender o que gosta a pessoa que está
na minha frente porque eu vejo o que ela come; tudo isso é possível porque há um
lugar. Um lugar é de fato algo que chama atenção para a esperança de uma
construção, que me dá uma certeza para pensar também no meu futuro (a beleza de
um lugar, que não significa um luxo, mas uma ordem, uma cor), me educa, me faz
pensar que é possível para mim ir em frente, me chama atenção para um sentido. Por
que logo que duas pessoas se casam vão procurar uma casa? Porque elas precisam de
um lugar para desenvolver um relacionamento. O lugar é como a academia (lugar para
treinar o relacionamento), a academia da afeição, a academia da certeza, a academia
do sentido. Só através de um lugar posso me lançar também em uma dinâmica de
amor.
O que significa mostrar para a família qual é a sua verdadeira função?
Descobrir a riqueza
dos relacionamentos
familiares
52
Petrini
Em primeiro lugar, eu diria que a ajuda que pode ser dada à família é que o
casal compreenda o significado daquela convivência, porque muito facilmente o
significado da convivência familiar é reduzido à utilidade imediata. Desta forma,
depois de um pouco de tempo, percebe-se o peso. Então, o olhar facilmente se
desloca do valor positivo, do significado positivo para a própria vida sobre o peso, o
problema que aquela criação familiar constitui. Normalmente, as pessoas não são
habituadas a refletir, a pensar; então, a primeira ajuda é essa: uma atenção para
reconhecer quanta riqueza de humanidade está contida e pode ser vivida naquela
relação conjugal e depois na relação com os filhos. Muitas vezes, acontece de se ver
como casais começam, depois de alguns anos, a dedicar toda a atenção aos filhos e
começam a deixar de lado a própria relação de marido e mulher. Isso também é uma
deformação que, ao longo do tempo, poderá ter gravíssimas conseqüências.
Precisa-se reconhecer a riqueza de duas pessoas que compartilham a vida e
que se educaram para dialogar, para pensar juntos e ver o significado de tudo que
estão fazendo e planejam ter uma casa e comprar um móvel e discutem em qual escola
Família: O Primeiro Sujeito Educativo em Debate
Figini e Petrini
as crianças vão estudar e como vão passar as férias; como vão gastar o dinheiro; como
vão fazer diante de uma necessidade.
Mais do que chamar a atenção sobre os deveres, "você está descuidando do
seu filho", "você não está cuidando bem da saúde, esqueceu a vacina...", que são
cuidados em que a mãe pode ser ajudada, incentivada, há algo que vem antes: que é
renovar a consciência de um grande Mistério dentro do qual a pessoa se move e, não
por acaso, se move dentro deste Mistério, junto com outras pessoas ajudando a
recuperar a certeza de caminhar juntos rumo ao destino, um destino – que não por
acaso – os colocou juntos no mesmo espaço, na mesma morada.
O vínculo que une uma pessoa à outra pode ser reconhecido somente como
a resposta a um Desígnio Misterioso de Deus. E eu respondo a Deus através da minha
vida de sacerdote e através de todos os gestos que realizo diariamente; a mulher e o
marido respondem a Deus através daquela dedicação à sua família, aos filhos. Esse
ponto de vista pode estar fora do horizonte de algumas assistentes sociais, de alguns
especialistas e educadores aqui presentes, mas é um ponto de vista fundamental para
que a pessoa possa compreender o espaço familiar como o lugar do encontro, onde
o rosto de Cristo está presente no rosto do próprio marido, da própria mulher, da
própria criança, dos próprios filhos.
É verdade que não é a mulher que corresponde a toda a pergunta de vida,
todo desejo de felicidade que o homem carrega e não é o homem que responde a todo
desejo de felicidade que a mulher carrega, e não é o filho que responde a todo desejo
de felicidade, de satisfação que um homem e uma mulher carregam, necessariamente
para não viver só lamentando-se uns dos outros, das carências, dos problemas e das
dificuldades. É somente encontrando a presença de Cristo no próprio caminho
cotidiano que se pode encontrar aquela satisfação à qual se aspira; e esse ponto de
satisfação não é eliminado pelas condições de pobreza, porque mesmo a família em
condição de pobreza pode encontrar e vivenciar toda a satisfação de um caminho
partilhado rumo ao verdadeiro destino.
Figini
Queria somente fazer um esclarecimento a respeito dessa pergunta, pois não
se trata de falar de função da família, porque se falamos de função da família logo nós
53
Família: o primeiro sujeito educativo
pensamos em alguns serviços que a família deve fazer. Ao invés, se nós pensamos na
tarefa da família, logo nós pensamos que devemos acolher. E, por essa razão, muda
logo a forma da resposta, porque, se eu perguntasse para você qual é a sua função de
trabalho, para mim interessaria só isso. Mas, se eu pergunto quem é você, a minha
pergunta o abraça de uma outra forma e eu vou acolhê-lo de outro jeito.
Se eu olho para a função de uma pessoa, eu olho para um detalhe, para um
pormenor, e essa pode ser a diferença entre amor e sexo.
Como podemos ajudar a família a ser o primeiro sujeito educativo? Nós
colocamos anteriormente as várias situações de risco em que os meninos, com
os quais trabalhamos, se encontram e, às vezes, não sabemos o que fazer, não
sabemos se mandamos para psicólogo, se temos posto de saúde para isso, se
mandamos a escola cuidar do menino... A quem recorrer quando o menino é
muito difícil?
Percursos educativos
individualizados
54
Figini
Parece-me que é preciso esclarecer um pouco a primeira pergunta: O que
significa que a família é o primeiro sujeito educativo? É como dizer: "Eu escutei
muitas coisas nesses dois dias, mas não compreendo o que significa o título desse
Seminário Família: o primeiro sujeito educativo". Se nós chegamos ao final do seminário
colocando essa pergunta, significa que o Seminário surtiu efeito, porque você tem
uma pergunta e não tem uma resposta. Essa não é uma brincadeira, é o que eu tentava
descrever antes. O ponto é quando eu estou em sala de aula e olho para uma criança,
sabendo que ela tem uma família, uma família enfraquecida, com problemas, mas uma
família. A criança tem relacionamentos, tem adultos como referências na vida, e a
minha ação, o meu falar com as pessoas que vêm buscá-la na saída, o meu dizer o que
ela fez, naquele dia, é para a pessoa que é a origem dessa criança.
Dou um exemplo, assim tento introduzir também a resposta à segunda pergunta: Um moço de sétima série na Itália não sabia ficar na sala de aula, os professores
não davam conta disso; ele conseguiu quebrar quatro dedos da professora e por isso
foi expulso da escola, e, assim, o caso dele foi parar no Serviço Social. No Serviço
Social, se perguntaram: "O que vamos fazer com essa criança?" Mas a pergunta era:
Família: O Primeiro Sujeito Educativo em Debate
"Onde nós vamos colocá-lo?" Colocaram-no em um Centro Diurno. Neste Centro,
esse moço começou a quebrar tudo, bater nas outras crianças e o Centro também não
conseguia ficar com ele ali. O menino retornou ao Serviço Social e ali aconteceu algo
de estranho: a criança tinha entrado em contato com uma família e foi pedir para a
assistente social para ficar com essa família durante a tarde; a Assistente Social
chamou a família e obviamente não falou sobre o que fez este moço para não ter uma
recusa da família. A família começou a acompanhá-lo durante todas as tardes, os pais
dessa família iam à escola falar com os professores, depois convidaram os pais da
família de origem para vir até a casa deles. Essas pessoas foram à casa e trouxeram
comida típica da região da Itália de onde eles vinham e começou um relacionamento,
ou seja, começou um conhecimento. Nesse conhecimento emergiram muitos
problemas. A família começou assim a dar notícias à assistente social: descobriu que
o pai abusou das duas filhas, que a mãe sofria maus-tratos por parte do pai e que o
filho agia dessa forma para poder manifestar o mal-estar dele. O que aconteceu? Esse
moço voltou à escola com um programa de intervenção educativa feita para ele.
Foram feitas algumas avaliações médicas para entender o estado dele, e o pai da
família de origem se afastou. O que aconteceu em tudo isso? Ninguém, enfrentando
essa situação, tinha pensado em convocar a família e conversar com ela, mas todo
mundo tentava responder colocando antes de tudo: "Onde vou colocar esse rapaz?"
Se eu venho até você e falo que eu tenho dor de barriga, a primeira pergunta
que você me faz é: "Você vai ao médico?" Ou você me pergunta se eu quero alguma
coisa quente ou um suco de limão. Depois, talvez eu deva ir ao médico, mas o meu ir
ao médico é acompanhado do seu cuidado, é como se eu fosse ao médico protegida.
Dentro de um primeiro relacionamento de cuidado entre mãe e criança,
ninguém soube dar um carinho para esta criança. Por isso, não há contenção que é o
cuidado primário, é algo que sai por todos os lados. Por essas razões, devem tentar
tudo, devem provocar a realidade para ver até que ponto a nossa resposta provoca
essa contenção, algo que tenta envolvê-lo, abraçá-lo, dar alguns limites. Ou a nossa
resposta se torna uma provocação nova.
É uma luta contínua e cotidiana que cada criança faz a cada dia. Por isso, nós
devemos pensar em percursos educativos individualizados e não percursos de grupo,
porque essas crianças já cresceram em grupo.
Figini e Petrini
55
Família: o primeiro sujeito educativo
Primeiramente, pedimos ao João Carlos que aprofunde um pouco sobre o
tema das relações familiares, identidade e diferença. Depois pedimos que
esclarecesse como podemos recuperar na tarefa educativa a qualidade dos
relacionamentos familiares frente às dificuldades encontradas na vida, no
cotidiano das família?
Diferença e
identidade:
realidade
constitutiva do ser
humano
56
A primeira observação é que a diferença entre os sexos é algo originário.
Quando dizemos originário, queremos dizer desde a origem. Devo lembrar que, logo
no início do livro do Gêneses, está escrito: "Deus criou o homem e a mulher à sua
imagem e semelhança". Mesmo na Bíblia aparece esta diferença sexual como originária, quer dizer desde a origem e através de toda a história e chega assim até nós.
Juntamente com a diferença, percebe-se que essa diferença não é motivo de uma
diversidade de valor de humanidade; há uma diferença e há uma identidade. Quer
dizer homem e mulher têm a mesma dignidade: a do ser humano. Aliás, homem e
mulher não são, como muitas vezes se pensa, duas metades de uma maçã, que no
casamento se encontram, porque a mulher não é meio ser humano, o homem não é
meio ser humano que devem encontrar suas unidades no casamento. São, ao
contrário, seres humanos por inteiro. Quando se fala de identidade e de diferença,
fala-se dessa realidade que é constitutiva do ser humano e que já no plano da natureza
predispõe a pessoa – homem e mulher – a buscar o outro e a construir comunhão.
No encontro com a outra pessoa e no estabelecimento de uma relação que é
de aliança, conjugal, de comunhão, na relação com o outro o homem se realiza, a
mulher se realiza. Isso significa que nós todos somos chamados à comunhão. A
pessoa encontra a sua felicidade e a sua realização humana no encontro com o outro
com o qual estabelece relações de comunhão; uma comunhão que imite a comunhão
da Santíssima Trindade.
Quando nós dizemos isso, parece que estamos dizendo algo óbvio, mas não
é, porque, por exemplo, Thomas Hobbes, um filósofo de 1600, dizia: "o homem é
lobo para o outro homem". Então, é lobo ou é comunhão? Eu devo me defender do
outro já que é lobo? Ou então, com o outro eu me realizo? Sartre também dizia: "o
inferno são os outros"; então, o inferno são os outros ou junto com os outros eu
posso encontrar a minha realização humana? Evidentemente se abrem caminhos
Família: O Primeiro Sujeito Educativo em Debate
Figini e Petrini
distintos entre uma perspectiva que valoriza o outro como possibilidade da minha
realização humana e uma outra postura que entende o outro como um adversário
hostil etc. etc. Evidentemente, quando se fala da identidade e da diferença que
constituem o ser humano, pensa-se imediatamente nessa meta, nessa destinação que
é o encontro do outro na comunhão para a própria realização. Quando se fala de
diferença sexual e de identidade, coloca-se o problema nesta forma que é muito mais
positiva e de acordo com a realidade do que todo um debate que está no ar, quando
se fala de gênero. Quando se fala de gênero, fala-se daquelas diferenciações entre
masculino e feminino elaboradas pela cultura. Antigamente um brinco ou uma saia
era um sinal do gênero feminino, um bigode era sinal de um gênero masculino e
assim por diante. Vocês devem saber que há uma linha de feminismo que é chamada
de vetero-feminismo, quer dizer o feminismo dos anos 70, muito radical que
começou a rediscutir todas essas diferenciações entre masculino e feminino,
elaboradas pela cultura. É que encontram ali formas de expressão da prepotência do
machismo, e por esse caminho se chega a dizer que não existe diferença entre sexos,
que tudo é igual, aliás que pode se identificar 6, 7, 9, 14 opções sexuais.
Evidentemente, trata-se de posturas fortemente ideológicas e que pulam o primeiro
elo – que é a observação da realidade – que é a evidência: a diferença sexual existe; é
um fato e é fundamental, pois é constitutivo, originário. Falar de diferença e
identidade é uma maneira que nos ajuda a ser mais atentos à realidade, mais capazes
de valorizar os aspectos que a própria realidade nos apresenta, e a lidar de uma
maneira positiva com isso. Se fosse só diferença, a diferença leva ao prevalecer de um
sexo sobre o outro. Se fosse só identidade, também se perderia um aspecto
importante da realidade. Falar de identidade e de diferença entre homens e mulheres
valoriza a mesma dignidade, os mesmos direitos ao mesmo tempo que não esconde,
não quer camuflar a diferença sexual que está aberta e pronta para promover a
comunhão, o encontro com o outro.
Pensando na fragmentação dos fundamentos da união: amor, sexualidade e
procriação, que uso de métodos anticoncepcionais procede? É possível usar
hoje métodos anticoncepcionais de forma que não cause mais essa
fragmentação? Tem como usar isso sem perder esse sentido?
57
Família: o primeiro sujeito educativo
Fragmentação da
pessoa e
banalização da vida
Unidade da pessoa
e dramaticidade da
existência
58
Vamos ver se eu entendi bem a pergunta: Se o entrelaçamento de amor,
sexualidade e procriação é rompido por causa da contracepção química ou de outro
tipo, como se faz? É possível usar a contracepção sem que se origine a fragmentação
da pessoa?
A pergunta contém um aspecto importante porque associou a cultura desse
entrelaçamento de amor, sexualidade e procriação e a fragmentação do eu; uma característica da pós-modernidade certamente é a fragmentação, e esta ruptura da unidade
do amor, da sexualidade e da procriação se, de um lado, sinaliza a fragmentação, por
outro lado a fortalece e a agrava. Uma outra conseqüência, característica da pósmodernidade, que também é conseqüência dessa ruptura da unidade de amor, sexualidade e procriação, é a banalização da vida. Banalizar significa atribuir um significado
menor a uma coisa que teria um significado muito maior; os significados são reduzidos,
o significado da sexualidade é reduzido, a sexualidade se torna sempre mais um jogo
que se aproxima cada vez mais da expressão da instintividade. Essa dimensão animal
que nós carregamos pode ser vivida dentro de um grande ideal ou de uma maneira
muito próxima como a vivida pelos animais. É reduzido o significado da sexualidade
como é reduzido o significado da procriação, não mais vivido como participação no
mistério criador, que gera uma nova vida, mas como a produção de uma mercadoria.
O amor se reduz, pois acaba sendo identificado não como o dom de si para o bem e
a felicidade de outra pessoa, não como o amor ao destino, uma reciprocidade e atenção
para caminhar juntos rumo ao destino, mas como uma emoção de breve duração.
O contrário da fragmentação é uma personalidade integrada, uma unidade, e
o contrário de uma vida banal é a dramaticidade da existência. Nós estamos, muitas
vezes, fugindo ansiosamente do drama da vida e, no entanto, ela é dramática e nós não
podemos imaginar em eliminar o drama de uma relação conjugal. O que nós estamos
observando atualmente é que sempre mais se foge da realidade e a realidade é cada
vez mais rejeitada. Foge-se da realidade ou vivendo em um mundo da fantasia e de
sonho ou em um cotidiano que é banal e não enfrenta as perguntas, os problemas e
os dramas mais verdadeiros.
Eu não conheço uma forma de usar os meios contraceptivos que não
contribua para a fragmentação e a banalização. Só se responde a estas questões com
uma educação que possa resgatar o significado do próprio corpo, da própria
Família: O Primeiro Sujeito Educativo em Debate
Figini e Petrini
sexualidade, da própria relação amorosa com a outra pessoa, uma educação que seja
capaz de ensinar como se pode planejar, como se pode fazer um planejamento
familiar dentro de métodos que respeitem a nossa natureza que nos foi dada dentro
de um desígnio misterioso e digno.
Assim como quando nós não respeitamos a natureza de uma floresta, nós
dilapidamos aquela floresta e arruinamos o ambiente, assim como quando nós não
respeitamos o rio e envenenamos as suas águas, nós destruímos o ambiente. Da
mesma maneira, quando nós não respeitamos a nossa natureza, não respeitamos o
ambiente humano, inevitavelmente passamos a viver em um ambiente que, de um
lado, é espantosamente banal e, no outro lado, há a agressividade e a violência, pois a
violência é a maneira de reagir a uma banalidade que não se suporta, que é percebida
como agressiva com a própria humanidade, aquilo que temos de mais precioso.
Nosso grupo fez uma discussão bastante intensa sobre a questão de não se
poder ter padrões para normatizar o trabalho com as famílias. Assim, como
considerar um objetivo comum uma idéia de algo que seja essencial que deve
ser preservado?
Figini
Uma vez que eu não tenho um padrão de respostas, para o trabalho com as
famílias, qual é a orientação para um trabalho comum?
Para poder trabalhar com outra pessoa ou com o sujeito família, devo ter
clareza de quem eu sou, ou seja, a minha identidade. E a minha identidade, se eu estou
trabalhando em um certo lugar, deve ser uma identidade comum. Ou seja, quais são
as diretrizes, quais são os critérios que são utilizados naquele lugar? A partir da palavra
identidade, passo para a segunda palavra que é a palavra encontro: como eu encontro?
Como eu fui encontrada? E como eu posso encontrar? E a terceira palavra se chama
caminho ou percurso. O trabalho com a família, dentro de uma família que evolui, não
pode ser algo fixo, mas deve ser algo dinâmico. De fato, todo nosso trabalho, que é
um trabalho de relacionamento e de ajuda, é dinâmico. Os nossos lugares de trabalho
devem ser lugares flexíveis. O saber quem eu sou, de forma precisa, me permite essa
flexibilidade e é isso que permite um encontro de uma forma dinâmica.
Identidade,
encontro, percurso
59
Família: o primeiro sujeito educativo
Considerar-se filho
permite reconhecer
o outro como filho
Trabalho em equipe
60
Além desses três pontos, devemos considerar a palavra filho. Eu fui filha,
posso ter tido um pai ou nem tê-lo conhecido, mas eu sou filho, e a família que está
na minha frente é formada por um pai, uma mãe e os filhos. Não posso enfrentar o
trabalho familiar senão começando por estas palavras que são palavras-chave.
O trabalho com as famílias é um trabalho de acolhida que acontece através
de entrevistas, através de visitas domiciliares ou outras soluções de acolhida, que
espero que vocês possam encontrar. Vocês não podem perceber a família como
sujeito que precisa de assistência e de cura, porque, se nós percebemos assim a família
que está na nossa frente, nós não conseguimos ajudá-la, porque é muito fácil escorregar nessa forma, é fácil não querer encontrar, porque temos medo. Muitas vezes, nós
queremos esquecer de ser filhos, mas é o ser filho que nos permite crescer e nos
tornar adultos, caminhar na aventura da vida. É isso que nos permite trabalhar com
outros filhos e outras famílias.
E como faço para me conceber filho se não tenho mais o pai e a mãe? Onde
está a família dessa criança que não tem mais pai nem mãe? Onde está a família dessa
criança que tem o pai alcoólatra e a mãe esquizofrênica? Onde está o ser filho de um
pai que abusou de mim? Ou vocês acreditam que esses pais existem além das
patologias deles, dos comportamentos desviados, ou será impossível trabalhar com os
filhos deles. E, dessa forma, se trabalha só com os menores. Fazendo assim é como
se se desligasse o relacionamento, o laço ontológico. Nós somos operadores que
criam laços, não devemos desamarrar aquilo que está unido, porque seria um desastre.
A nossa função é de unir, de ser a cola.
Dito isso, é claro que não pode existir uma forma, um modelo de trabalho
familiar. Como eu faço, então, para encontrar aquela família? Como eu faço para levar
em conta todos os fatores encontrando aquela família?
Eu creio que este trabalho com as famílias deve ser concebido como um
trabalho em equipe. Posso ser, eu sozinha, que vou encontrar-me com aquela família.
Mas, se eu estou ligada, se tenho laços com outros operadores, se eu penso como
acolher aquela família com os meus colegas de trabalho, se eu sei que devo depois
trazer aquele encontro com a família para a minha equipe, eu encontro a família,
porque é dentro de uma experiência de laços que eu posso reconhecer os laços. Um
operador sozinho cria solidão, o trabalho em conjunto dá outra forma à abordagem.
Família: O Primeiro Sujeito Educativo em Debate
Figini e Petrini
O trabalho em equipe tem como objetivo aquilo que eu devo encontrar, ou seja o
sujeito com o qual eu devo trabalhar; eu sou paga por isso, eu não sou paga para criar
relacionamentos com os colegas. Se o objetivo do trabalho é aquilo que está na minha
frente, tendo esse objetivo, criam-se laços.
Lembrem-se sempre que, se algumas vezes vocês não se percebem protagonistas no seu trabalho, ou percebem que não podem trabalhar bem por culpa de
outros, é porque o poder já tomou conta de vocês e vocês são usados por uma mentalidade comum. Neste ponto vocês se perguntem: quem eu sou e a quem eu pertenço?
Isso que eu proponho para vocês não é um caminho filosófico ou teológico, mas é um
caminho profissional onde o eu e o trabalho estão unidos, onde o trabalho é a expressão da criatividade de um eu em ação. Só pessoas podem trabalhar com outras pessoas.
Como nos ajudar a não viver solitariamente a tarefa profissional, recuperando
a dimensão do trabalho comum?
Figini
Em parte, parece-me já ter respondido, com a última parte da minha
colocação. O ponto fundamental dessa resposta é sempre quem eu sou. Eu estou
convencida disso e peço que vocês também possam fazer isso. E logo que falo quem
eu sou, eu procuro alguém, eu passo de quem eu sou para ficar com alguém. Isso é
fundamental. Passamos muitas horas de atividade trabalhando sobre essa expressão
trabalho em equipe, mas a única possibilidade de trabalhar juntos é que exista a pergunta,
porque, se eu organizo grupos de trabalhos mas não existe uma pergunta, eu dou uma
resposta que não serve, é só algo de estético que não produz uma qualidade de
trabalho e não gera nenhuma mudança.
No nosso trabalho com as famílias, é solicitada uma contínua mudança nossa.
Cada instante é diferente do outro, é a dinâmica do encontro: joga-se dentro do
instante buscando a tradição do instante anterior. O trabalho em conjunto me permite
mover-me nessa direção porque o outro me chama a atenção conduzindo-me a levar
em conta todos os fatores. Sozinho eu não sei levar em conta todos os fatores, eu
preciso de um outro, preciso de rostos que, juntos, pensem, criem, gerem uma
fecundidade de respostas no social.
61
Família: o primeiro sujeito educativo
O trabalho do relacionamento de ajuda é concebido como uma fecundidade,
uma geração do humano. Para nós, é pedido ser um prolongamento da Criação, dos
relacionamentos da Criação, do olhar da Criação, da beleza da Criação, do drama da
Criação e da unidade da Criação. Esta é a abordagem social que respeita o homem e
que ama o homem livre.
Hoje, pais e educadores têm dificuldades em estabelecer limites. Como fazer
isso de forma adequada?
Regras dentro de
um percurso
62
Figini
Para nascer nós nos submetemos a algumas regras que não escolhemos, mas
sem essas regras nós não saberíamos quem somos nós. Para poder compreender o
que é bem e o que é mal, devo pertencer a alguém. Se não tenho esse pertencer,
essas regras são vazias de conteúdo, são ações moralistas que podem ficar dentro de
uma proibição ou uma permissão. Nós não fomos criados por isso, fomos criados
porque somos amados. A regra está dentro desse percurso, dessa dinâmica de amor.
E, desse modo, para uma criança que quebra um vidro ou que cospe no meu rosto
(estou citando fatos que aconteceram), ou que não responde às minhas perguntas,
ou que quebra meu carro, eu não posso dizer somente "isso não é bom", "isso não
é justo, você deve fazer de forma diferente", porque ela não poderia entender. É
claro que direi que isso não é bom. Mas, enquanto eu digo isso, devo entender a
razão, devo tentar entender o que está acontecendo e talvez eu possa entender que,
quando essa criança vai para casa, o pai bate nela. E, nesse caso, eu devo entender
por que o pai faz assim, e tomar algumas decisões, como chamar o pai e a mãe. E,
se eles não se apresentam, devo eu ir à casa deles. E se me dou conta de que ali não
é possível falar sobre nada, aquela criança começa comigo um diálogo de recuperação, porque é como se eu tivesse mostrado para ela que eu fui ao lugar de onde
ela veio, e a descoberta desse lugar feio ou bonito, violento ou bom é o lugar dela.
E é ali que devo falar de regras, é ali que eu posso entender essa criança, é ali e só
desse ponto que eu posso começar a dialogar com ela. O resultado é garantido? Não,
mas só através dessas contínuas tentativas, desse trabalho de busca contínua e de
aventura com esta criança, estou certa de poder encontrar uma solução. E a solução
Família: O Primeiro Sujeito Educativo em Debate
Figini e Petrini
é que ela possa reconhecer que de frente a uma regra está a liberdade de ela dizer
sim ou não.
Outra provocação do grupo foi a da angústia profissional diante do limite,
diante de certas situações. O João Carlos havia mencionado que nesse limite
profissional entra em jogo a questão da liberdade e da esperança. Nós
queríamos que você falasse um pouco disso.
Petrini
Eu sempre parto do ponto de que eu tenho um limite, de que eu sou limitado.
Aquilo que eu faço são tentativas, e nessas tentativas eu peço ajuda a outros. E eu
perco muitos rapazes, mas eu estou convencido e já experimentei que onde existe esse
interesse, esse olhar para a vida do outro, antes ou depois ele volta.
Por exemplo, eu fiz um percurso com uma criança, eu encontrei os meus
colegas de trabalho sobre esta situação e eu me comparei. A esperança onde está? Eu
não estou sozinho e amanhã eu posso começar de novo com os meus colegas de
trabalho uma nova situação. Eu não posso determinar a vida de ninguém como
ninguém pode determinar a minha, eu só posso acompanhar o outro indicando um
caminho, um percurso, relacionamentos, algumas oportunidades, explicando o
sentido do trabalho, do estudo, da escola, falando de quem é o pai dela, de quem é a
mãe, de quem são os amigos, isso eu posso fazer. Eu posso apontar o caminho.
Pensem quantas vezes de manhã nos levantamos sem a esperança de um caminho,
quantas vezes nós percebemos não ter esperanças sobre a nossa vida, a esperança,
pois a esperança permite um relacionamento com a realidade. Nós devemos viver a
realidade, devemos introduzir esses rapazes na realidade, mas para fazer isso devemos
conhecer a realidade, não devemos ter medo de chamar as coisas com o próprio
nome: o pai é o pai, a mãe é a mãe, os irmãos são os irmãos, os familiares são os
familiares, os amigos são os amigos, os medos são os medos, a fome é a fome, assim
por diante. Muitas vezes, nós vivemos uma ilusão e assim cobrimos a realidade de
relacionamentos instintivos, de um sentimentalismo! É como colocar açúcar no café,
mas é diferente colocar açúcar no café sem ter as razões. Se o café é amargo, devo
colocar o açúcar para fazê-lo doce. Isso parece muito banal, mas nos relacionamentos,
Apontar, não
determinar o
caminho do outro
63
Família: o primeiro sujeito educativo
naquilo que nós fazemos, nós não temos esta clareza de chamar as coisas pelo próprio
nome. E, assim, a aparência, a cultura e o poder dominante nos envolvem, mudando
a realidade daquilo que ela é. Por isso, o nosso trabalho, e só com outras pessoas, é
essa luta. Quando alguém mata a esperança, é como matar uma pessoa, é o gesto mais
violento porque o homem é esperança.
A primeira pergunta é para o Senhor João Carlos: não ficou claro para nós o
que foi abordado sobre a questão do pré-natal.
Maternidade, ato
incondicional de
acolhida
64
Petrini
Quando eu falei do diagnóstico pré-natal, eu dava apenas um exemplo das
mudanças que ocorrem no ambiente, na sociedade, na cultura em que nós vivemos,
mudanças que acabam afetando aspectos importantes da nossa realidade, muitas
vezes sem que nós percebamos. O exemplo foi do diagnóstico pré-natal que pode ter,
não necessariamente tem, como conseqüência a eliminação do acolhimento incondicional, por parte da mãe, nos primeiros momentos de vida daquele que será o seu
filho, porque aquele seu filho, muitas vezes, será submetido a uma condição para ser
aceito, para ser acolhido: a condição de ser saudável.
O que eu disse não significa que não se deva fazer o diagnóstico pré-natal,
mas que se deve ter uma clareza muito grande a respeito do objetivo com o qual se
faz esse exame, porque se pode fazer o diagnóstico por curiosidade, porque existe a
possibilidade de curar um feto, de intervir no feto com ações terapêuticas curativas.
Mas, ao contrário, pode-se fazer o diagnóstico com a hipótese de expulsar o feto caso
ele não seja saudável. Mesmo se este feto for saudável e venha a ser acolhido pela mãe,
algo já está quebrado porque se colocou uma condição para a aceitação dele. Como
essas coisas acontecem e nós não pensamos nelas, o que eu fiz foi tentar ajudar a todo
mundo a refletir para que possamos dar passos na vida: todas as mulheres quando
grávidas vão realizar o diagnóstico pré-natal, que sejam passos refletidos e não apenas
conduzidos, realizados pela pressão de uma sociedade que diz que devemos abortar
caso o feto não seja saudável.
Com isso, nós retornamos àquele problema da dramaticidade da vida e da
banalidade porque significa banalizar uma vida, quando nós dizemos "podemos
Família: O Primeiro Sujeito Educativo em Debate
Figini e Petrini
expulsá-la porque não é saudável". Quem disse que não se deve receber e deixar
nascer uma criança que tenha algum defeito? Quem sabe que riquezas de maturidade
humana uma família poderá receber pelo fato de acolher no seu seio uma criança que
tenha algum problema? Será um sacrifício, mas quem disse que devemos eliminar os
sacrifícios da vida? Que todos os sacrifícios são injustos e insensatos, faz parte da vida
também acolher alguns sacrifícios porque é através deles que nós podemos crescer.
Muitas vezes, uma dor ou um sacrifício é a única forma que nós temos para dar um
passo, para olhar para uma direção para a qual nós nunca teríamos olhado, para
compreender certas coisas que nós nunca teríamos compreendido. Trata-se mais uma
vez de um caminho que se imagina simplificar a vida, banalizando tudo que é mais
sagrado, como o acolhimento por parte da mãe do próprio filho quando está ainda no
seu ventre. Ou um caminho que se depara com a dramaticidade da existência e acolhe
o drama da existência não como uma coisa inimiga, mas como um caminho para uma
maturidade, para uma plenitude humana que nós não poderíamos encontrar pelo
caminho da banalidade. Isso só é possível encarando de frente as diversas circunstâncias da existência.
Permita-me lembrar o que é este drama, relembrando as palavras de um grande teólogo chamado Von Balthasar "Se nós imaginamos o mundo como um grande
teatro, então, nós entramos em cena, mas não escrevemos a peça que está se passando;
temos a necessidade de entrar para representar um papel, mas nós não sabemos
exatamente qual é. Não escrevemos o primeiro ato e não sabemos qual será o último
ato, como irá acabar aquela peça que é a história nossa e do mundo". Em outras
palavras, poderíamos dizer que o drama consiste no fato de que nós não controlamos,
nós não dominamos a vida, nem a nossa nem a dos outros. Então, significa aceitar isso.
E como é que nós podemos estar diante de um TU, que nós não controlamos, diante de um TU que é misterioso e que conduz a minha vida e eu não posso
determinar para onde e de que forma, como podemos vencer o medo diante disso?
Somente vivendo numa companhia que nos acompanha nessa tarefa cotidiana de
viver com dignidade de clareza a nossa existência.
Como podemos construir a separatividade, se é assim que podemos expressar,
do TU (que são as famílias que se nos apresentam com as suas fragilidades)
65
Família: o primeiro sujeito educativo
do EU (fragilidade que se encontra na família do educador e que se reflete na
sua personalidade e nas suas ações), já que no universo toda a espécie humana, pobre ou rica, apresenta conflitos e angústias diferentes cuja dimensão é
infinita?
Seriedade do
encontro entre um
eu e um tu
66
Figini
Eu tenho dificuldades em compreender a pergunta que foi colocada, mas o
tempo é breve: se existe um tu com problemas e um eu com problemas, como é
possível esse trabalho?
Cada um de nós tem problemas. Eu posso ser divorciada, mas posso fazer
um colóquio com a família. O problema é aquilo que eu quero com esta entrevista,
ou seja, o fato de eu ser separada significa que eu não acredito na família? O problema
não é aquilo que aconteceu na minha vida, mas aquilo que eu levo ao encontro, é o
meu eu que é frágil, que tem limites como cada pessoa, porque não existe uma pessoa
que não tenha limites, não existem pessoas que não tenham fragilidades.
Um EU e um TU não são definidos, mas representam uma contínua descoberta, e um encontro é alcançado por uma misericórdia, aquilo que você fez para
curar, já é curado. O ponto é que o que você quer desse encontro, se é para olhar o
outro, para compreendê-lo: que percurso eu posso fazer com essa família para que a
criança esteja melhor? Devo entender se esta criança deve permanecer com esta
família ou com uma outra, e se essa criança deve ficar durante o dia em um lugar e
voltar só para dormir. O ponto está no encontro. A minha experiência, a minha vida,
os meus erros, os meus pecados não determinam um encontro. O ponto é a seriedade
do encontro, o que eu estou fazendo naquele momento, o que eu quero que aconteça
naquele momento, o que eu pergunto naquele momento, se não fosse assim seria
como dizer: Quem pode trabalhar com outro homem? Amar um outro homem que
não está em mim? Se o ponto fosse exclusivamente ter consciência dos meus erros
para poder trabalhar com os outros, seria impossível o trabalho. O ponto, ao contrário,
é: quem eu sou? Não é a conseqüência moral das minhas ações porque existe alguém,
um TU que me permite recomeçar naquele instante e isso permite o trabalho social.
Concluo rapidamente dizendo: atenção para tudo aquilo que eu disse. Para
dizer que um trabalho social é sempre um eu e um tu, as ferramentas são necessárias,
Família: O Primeiro Sujeito Educativo em Debate
Figini e Petrini
o trabalho em equipe é necessário, mas, por favor, não fechem a esperança de um
homem dentro das suas ferramentas.
Luisa
Antes de encerrar este encontro, quero agradecer muito a Maria Grazia, ao
João Carlos, a Lílian por toda a contribuição que nos deram nestes dias e quero
agradecer a cada um de vocês pela forma como se colocaram neste trabalho.
Agradecer todas as pessoas que pertencem às obras educativas que fazem parte do
projeto e que se acrescentaram ao longo destes anos. De fato, estão aqui muito mais
do que aqueles que estavam no Seminário 2001, seja porque cada entidade cresceu,
seja porque outras pessoas se juntaram ao nosso caminho, como as instituições novas,
a Casa Novella e a Creche Tia Sônia.
E depois quero agradecer a todas as pessoas de outras entidades, não vou ler
a listagem pois são várias, mas agradeço de coração, porque isso mostra como um
compromisso com a realidade permite trabalhar juntos seriamente qualquer
instituição.
67
Viver na Gratuidade1
Como é impressionante ouvir Jesus afirmar –"Sem mim, nada podeis fazer"3
– e imaginem quem ouviu isto da própria boca dele. Fiquei tocado, quando era
seminarista, pelo que um pregador dizia: "Pessoal, isso não é só um jeito de falar".
Mas entendi, muitos anos depois, como é preciso lembrar sempre que isso não é só
um jeito de falar.
"Sem mim, nada podeis fazer". Paradoxalmente, daqui nasce uma grande
certeza na alma e uma grande afeição entre nós, como a da criança nos braços da mãe
(é a eterna comparação, que Jesus também fazia): se não formos assim, como crianças,
seremos pretensiosos, julgaremos os outros e não construiremos nada, nem mesmo –
no espaço microscópico da nossa posse estreita – o nosso eu.
É por isso que o Cardeal de Milão, em sua carta sobre os Itinerários educativos4,
diz que o sujeito ativo e promotor do grande itinerário educativo da humanidade é o
mistério da Trindade. Foi o que dissemos antes: estamos aqui como homens, portanto
como pessoas no caminho rumo a seu destino, mas o sujeito ativo e promotor desse
1
Conferência proferida no Dia de Início de Ano para os adultos do movimento eclesial de Comunhão e Libertação
da diocese de Milão, em 2 de outubro de 1988. O texto foi parcialmente publicado em português em: Comunhão e
Libertação nº 12, janeiro/fevereiro de 1989, p. 4-6.
2
Tradução de Durval Cordas.
3
João 15,5.
C. M. Martini. Itinerari educativi. Segunda Carta para o Programa Pastoral "Educar". Milão, Centro Ambrosiano de
Documentação e Estudos Religiosos, 1988.
4
Luigi
Giussani2
Família: o primeiro sujeito educativo
caminho não sou eu; eu o devo acolher em mim: é o Espírito, é o mistério do Deus
uno e trino. O Dia de Início de Ano5 deve fazer "elevar o olhar", como os primeiros,
os grandes profetas repetiam com freqüência6. "Elevar o olhar" significa entrar com
toda a alma, com todo o coração, na grande memória de Cristo: é, portanto, um
momento de entusiasmo por Cristo e pela missão que Ele nos confiou. Essa, de fato,
é a suprema contradição, ainda que aparente: a nós, que não sabemos fazer nada, Ele
confiou uma missão (mas isso não é uma contradição, é um paradoxo). Portanto,
memória de Cristo e entusiasmo pela missão à qual Ele nos destinou: não há um só
entre nós que não tenha sido destinado a essa missão pelo próprio fato de ter ouvido
a palavra "Jesus".
Escreve Soloviev, no Conto do Anticristo: "O imperador se dirigiu a eles,
dizendo: 'Que mais posso fazer por vós? Homens estranhos! O que quereis de mim?
Eu não sei. Dizei-me vós mesmos, ó cristãos, abandonados pela maioria dos vossos
irmãos e chefes, condenados pelo sentimento popular. O que tendes de mais caro no
cristianismo?'. Semelhante a um círio cândido, o staretz João se levantou e respondeu
com doçura: 'Grande soberano! O que nós temos de mais caro no cristianismo é
Cristo mesmo. Cristo, e tudo aquilo que vem dele, porque sabemos que nele habita
corporalmente a plenitude da divindade'"7. Essa é a memória e essa é a missão. Pois,
de Cristo – que é a maneira como o Mistério invadiu a nossa vida e a está arrastando,
empurrando, guiando para seu destino –, o que é que vem? Tudo! "Sem mim, nada
podeis fazer." Se esse pensamento nos acompanhasse mais durante o ano todo, se o
recordássemos entre nós! "O que nós temos de mais caro no cristianismo é Cristo
mesmo. Cristo, e tudo aquilo que vem dele, porque sabemos que nele habita
corporalmente a plenitude da divindade". Reli o que será de hoje em diante o
O Dia de Início de Ano é um encontro das comunidades do movimento eclesial de Comunhão e Libertação que
marca a abertura do ano social, oferecendo as linhas fundamentais do caminho a ser percorrido durante o ano. O
ano social nos países do hemisfério norte começa em setembro, após as férias de verão.
5
6
70
Cf. Oséias 11,7.
V. Soloviev. Breve racconto dell'Anticristo. In: I tre dialoghi. Turim, Marietti, 1975, p. 207. Em língua portuguesa: "O
Anticristo". In: 30 Giorni n. 9, outubro de 1988, p. 45.
7
Viver na Gratuidade
Luigi Giussani
manifesto permanente do nosso Movimento8: não há passagem literária que possa
exprimir melhor do que esta o sentimento que nos anima. O grande poeta lituano
Czeslaw Milosz, Prêmio Nobel de 1980, que nossos amigos encontraram para
convidá-lo a vir à Itália para um encontro público no Centro Cultural San Carlo,
vendo esse nosso manifesto, exclamou: "Como assim? Vocês dizem essas coisas?
Então são pessoas em quem se pode confiar!". Quando soube desse fato, pensei
comigo: quantos entre nós custam a confiar, depois de tudo o que recebemos! Seja
como for, esta é a missão: fazer com que Cristo seja conhecido, pois Cristo é a salvação do homem, Cristo é o redentor do homem. Ao longo deste ano, festejaremos
outra vez ao lembrar a encíclica Redemptor hominis9, que comemora seus dez anos. Toda
a veia profética e todo o ímpeto de caridade, de paixão por Cristo e pelos homens que
distinguem o nosso Papa, o conteúdo de tudo isso está no título de sua primeira
encíclica: "Cristo, redentor do homem". Sem Cristo, o homem não é ele mesmo, não
se conhece, não se reconhece e não se realiza. A nós, às nossas mãos e ao nosso
coração é confiada a grande evangelização da qual o Papa fala sempre: que todos
reconheçam e amem a Cristo, redentor do homem. Elevemos o olhar, portanto, no
início desta nova etapa da nossa vida. Uma longa etapa de uma vida breve ("setenta
anos, oitenta para os mais fortes"10).
A Modalidade Concreta de uma História
Como primeiro ponto, gostaria que nos lembrássemos de uma coisa
importante: que é a relação com Cristo, a minha relação com Cristo não pode deixar
de passar pela modalidade concreta de uma história, dentro da qual Ele se manifestou
a mim persuasivamente, pedagogicamente, suscitando em mim uma capacidade
8
Iniciado por padre Luigi Giussani, o movimento eclesial de Comunhão e Libertação surgiu na cidade de Milão,
em 1954. Depois de se difundir rapidamente por toda a Itália, hoje está presente em cerca de setenta países de
todos os continentes.
9
10
João Paulo II. Redemptor hominis. Carta Encíclica de 4 de março de 1979.
Cf. Salmo 90(89),10.
71
Família: o primeiro sujeito educativo
criativa. Sem obedecer, sem aderir às modalidades concretas, históricas, do encontro
que fizemos, ou seja, sem passar pelas modalidades concretas, históricas, por meio das
quais Cristo se apresentou a nós, mesmo que rapidamente, mas de maneira persuasiva
(intuímos que a fé pode ser persuasiva para a nossa razão, para o nosso coração, útil
para a nossa vida, para a vida dos homens), sem, enfim, viver a relação com a modalidade concreta com a qual Cristo veio ao nosso encontro, de modo a interessar a nossa
humanidade, sem respeitar o amor e a adesão ao que chamamos movimento, sem essa
espessura histórica, até banal, nós apenas buscamos realizar a todo custo a nossa
imagem de Cristo, tal como podemos buscar uma imagem nossa do Movimento.
Perante o mundo, ante o contexto mundano, é preciso que sejamos
determinados por algo que vem antes. O contexto mundano é concreto: pensem na
televisão e nos jornais, na maneira como todos – todos! – são atacados, invadidos por
eles, repetindo o que a televisão e a mídia lhes fornecem. Perante o mundo concreto,
precisamos ser determinados por algo concreto que vem antes, que é a construção da
nossa companhia e do nosso movimento: é isso que dá espessura à nossa presença.
Quando mais pertencemos a essa realidade que nasceu por ímpeto do Espírito, pela
graça do encontro, quanto mais pertencemos, vivemos esse pertencer, mais a nossa
presença é incidente, propositiva e escancarada diante de tudo e de todos, pois
conhecer a Cristo significa inesperadamente sentir o mundo como parte da própria
consciência e do próprio coração.
Em seu plano pastoral, o Cardeal de Milão lembra também que, dentro do
itinerário cristão global, encontram espaço "muitos itinerários pessoais e comunitários
nos quais se articula o caminho do imenso povo de Deus"11. Nossa companhia é uma
das modalidades nas quais se articula o caminho do imenso povo de Deus, e nós não
a escolhemos hoje, como não fomos nós que a escolhemos antes: se estamos aqui, é
porque fomos tocados por alguma coisa. É Deus quem faz, é o Senhor quem escolhe,
elege e requisita, criando em nós uma capacidade, uma sensibilidade, um desejo de
comunicação antes desconhecidos, e assim, mediante a afinidade da escolha, criando
uma companhia que, quando se dilata um pouco, pode ser chamada de movimento.
11
72
C. M. Martini. Op. cit., p. 28.
Viver na Gratuidade
Luigi Giussani
Só dentro da realidade concreta de uma companhia, de um movimento, alguém pode
enfrentar o mundo. O itinerário pessoal pode até mesmo ser o de um eremita, pode
até constituir um caso excepcional; mas, normalmente, o itinerário pessoal gera, tende
a gerar companhia e movimento.
Por isso, ao elevar o olhar, nessa memória de Cristo ("Cristo – se é que posso
falar assim – 'meu'", como dizia Dionísio, o Areopagita) e nesse entusiasmo contido
pela missão que Ele pôs em nossas mãos, quem quer que eu seja e onde quer que esteja,
aonde quer que esteja amanhã e como quer que seja amanhã (eu pensava nisso hoje,
bem cedo, quando acordei, ainda na cama: "Se eu fosse obrigado a ficar aqui e não
pudesse mais me mexer...", e entendia que a única salvação seria esse pensamento, pois
"toda a glória da filha do Rei"12 está na consciência com a qual eu Te reconheço, com
a qual me permites reconhecer-Te, ó Senhor, e amar-Te, apesar do que eu sou; por isso,
só existe um pecado que não se pode perdoar, e é a recusa dessa urgência que penetra
pela nossa porta entreaberta, ou até mesmo fechada, investindo contra ela e forçandoa: Dives in misericordia, rico em misericórdia); ao elevar o olhar, nessa memória e nesse
entusiasmo, dizia eu, nós temos de pagar um primeiro tributo de maravilhamento, de
gratidão, de amor inteligente à vida da nossa companhia, à vida do nosso movimento.
Certamente, um grupinho pode ser mais ajudado e rico do que outro, pode até parecer
ter mais sorte, mas é por meio de todos os dados concretos da nossa vida cotidiana
que Cristo nos guia por este caminho ("Eu sou o caminho, a verdade e a vida"13).
A Gratuidade
A segunda palavra que eu gostaria de lembrar, nesta necessidade de elevar o
olhar, é a que mais caracteriza (não há outra que possamos usar, mais potente e mais
forte do que esta; não podemos nos exprimir de outra forma) o grande gesto com o
qual o Mistério se comunicou a nós, que caracteriza a realidade de Cristo entre nós,
do Mistério que se fez um de nós: é a palavra "gratuidade". Gratuidade, amor sem
12
Cf. Salmo 45(44),14.
13
João 14,6.
73
Família: o primeiro sujeito educativo
74
interesse, humanamente "sem motivos", sem nenhuma "razão", sem razões que a
razão entenda, explique, sem nenhum direito ao qual aderir ou ao qual obedecer.
Ele veio gratis, nessa caritas, nessa caridade. "Por que me criaste?" "Porque te
amei!" "E por que me amaste?" "Porque te amei!" "E por que, em meio à confusão e
às trevas do mundo, vieste como uma luz em meu caminho, em minha estrada, me
agarraste e me puseste dentro de Ti, dentro do mistério da Tua pessoa, me chamaste
à comunhão contigo?" "Porque te amei!" "E por que me amaste?" "Porque te amei!"
A gratuidade é o infinito, que é razão para si mesmo. "E por que, na longa fileira do
povo cristão, tão facilmente distraído, tão facilmente afastado de seu centro pelo
mundo em que vive, tão facilmente abandonado, como ovelhas abandonadas pelos
pastores, por que me alcançaste tão concretamente naquele dia, a ponto de me
determinar uma postura, uma maneira diferente de ordenar a minha vida?". "Por
amor, por caridade, gratuitamente, grátis".
Por isso, num ano em que começamos a meditar sobre o fato de que o que
há de mais caro no cristianismo é o próprio Cristo, não podemos deixar de desejar –
tremendo, mas não podemos deixar de desejar, e com todo o coração – imitá-lo,
segui-lo, segui-lo nessa coisa que nos deixa estupefactos, diante da qual não temos
palavras: o fato de nos ter amado gratuitamente. Ou seja, não podemos deixar de
desejar segui-lo na sua caridade (charis, gratuidade).
Queremos, este ano, nos ajudar mais para que nosso ânimo se una mais ao
dEle. Os apóstolos o seguiram, nos primeiros tempos (tentemos imaginar os primeiros meses), admirados, extremamente apegados e afeiçoados, mas sem poder desejar
ser como Ele, pois esse desejo só desabrochou neles por obra do Espírito de Cristo
no momento do Pentecostes. Só então entenderam! Quantas vezes ele repete isso no
longo discurso antes da Sua morte: "Agora vós não entendeis nada, não podeis
entender, mas eu vos mandarei o Espírito e...". Ora, esse Espírito desceu sobre nós,
desce sobre nós todos os dias, pois Ele nos chamou para sermos invadidos pelo
Espírito. Este ano, portanto, temos de pôr como tema principal, como paixão
principal da nossa relação com Cristo, e portanto como característica mais amada da
nossa companhia, a imitação da caridade dEle.
O verdadeiro trabalho da vida é aquele que não é pago, ou seja, a mudança
de si e, por meio de si, a mudança do mundo. Essa mudança de si e – por meio de si
Viver na Gratuidade
Luigi Giussani
– do mundo é a colaboração para a transfiguração do cosmo e da história de que o
Papa sempre falou, é a verdadeira participação do opus Dei, da obra do mistério da
Trindade no mundo, que é Cristo, da obra de Cristo no mundo. A gratuidade é encarar
a relação consigo mesmo, e com os outros e com as coisas, à luz do destino, na
perspectiva do destino, ou seja – sendo que o destino se fez homem –, à luz de Cristo,
na perspectiva de Cristo. Fiquemos tranqüilos; as pessoas e as coisas não deslizarão
para a monotonia de um pretexto, nunca se tornarão pretexto: as pessoas vão se
tornar mais elas mesmas, se vocês as olharem com os olhos de Cristo, à luz de Cristo;
as coisas vão se tornar mais elas mesmas, se as agarrarem com o amor com o qual a
mão de Cristo as agarrava.
Usei antes a palavra "trabalho", pois ela reveste a totalidade do nosso dia (o
trabalho não é apenas o das oito horas que a pessoa passa no escritório ou na fábrica):
a gratuidade deve se tornar a alma do nosso trabalho. É algo que até os ateus podem
intuir: Cesare Pavese dizia que suportar a dor, sem que exista um significado
adequado, é uma coisa ignóbil, insuportável e ignóbil14. Mas a finalidade adequada do
esforço inerente ao trabalho, da dor que sempre acompanha o trabalho e os
relacionamentos que vivemos, o que pode dar razões para suportar o trabalho é
Cristo, o destino que se fez homem.
Há algo que realmente deve mudar na nossa sensibilidade cotidiana. Deve-se
tornar habitual uma nobreza que nos é ainda desconhecida, mas que pressentimos e
cuja necessidade pressentimos também, para que a vida seja digna, e também cheia de
fascínio, de gosto: a gratuidade. Foi essa idéia que criou a Companhia das Obras15, ou
seja, que o trabalho seja vivido com uma propensão ao significado último da nossa
pessoa, ao significado último da história de todas as pessoas, que é Cristo, e, portanto,
14
Cf. C. Pavese. O ofício de viver. Tradução de Homero Freitas de Andrade. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1988, p. 301.
A Companhia das Obras é uma associação sem fins lucrativos constituída em julho de 1986, na Itália. Surgiu da
livre iniciativa de jovens recém-formados e adultos – de Comunhão e Libertação ou não –, como testemunho dos
frutos da educação a uma fé madura. A associação tem por finalidade promover e tutelar a "dignidade da presença
das pessoas no contexto social, além da presença de obras e empresas na sociedade, favorecendo uma concepção
do mercado e de suas regras capaz de compreender e respeitar a pessoa em todos os seus aspectos, dimensões e
momentos da vida" (artigo 1º do Estatuto da Companhia das Obras). A Companhia das Obras constituiu-se no
Brasil em 1998.
15
75
Família: o primeiro sujeito educativo
76
que todo o nosso empenho sobre o trabalho, no trabalho, tenha como reflexo uma
atenção e uma ternura para com os outros, que devem ser tomados nos braços e
ajudados a caminhar, como crianças ou enfermos, como nós mesmos: é por isso que
agimos, não por menos.
Nesta altura, eu gostaria de poder ler muitos testemunhos (cheguei a trazêlos para ler), especialmente os que as Famílias para a Acolhida me enviaram. A obra
das Famílias para a Acolhida não é "peculiar": é uma grande inspiração, que está
invadindo todas as comunidades do Movimento. Que Cristo nos ajude e que Nossa
Senhora, neste seu mês de outubro, dilate a possibilidade dessa generosidade!
Lamento mesmo não poder ler agora esses testemunhos. Cito apenas algumas passagens. "Quando me faltaram os relacionamentos [o marido foi embora e a mãe
morreu], entendi que estava no mundo por Cristo." Aí está. É justamente isso que
dizem, de um modo ou de outro, todos os testemunhos das famílias que praticam a
acolhida, que vivem a acolhida, não para colaborar com o governo em função de uma
ou outra necessidade, mas por um ímpeto, por algo maior, pelo significado que vive
como espera em seu coração, pelo significado da vida delas. Todas as famílias que se
dedicam à acolhida repetem isso, de um modo ou de outro, nos documentos que me
enviaram (pelos quais sou grato a elas): "No esforço que fazemos, entendemos que
viemos ao mundo por Cristo" – ou seja, pelo Redentor do homem, pela salvação do
homem, por Aquele que é salvação do homem; se viemos ao mundo por Aquele que
é salvação do homem, então toda a nossa vida, mesmo na mesquinhez em que
consegue traduzi-lo, não pode deixar de desejar fazer o bem, algum bem, aos outros,
não pode deixar de participar do esforço do caminho do outro.
"Quando, há dez anos, encontramos a comunidade e o Movimento, éramos
uma família fazia, mesmo que aparentemente não nos faltasse nada. Tínhamos um
filho na época. A falta de sentido nos havia levado ao isolamento: estávamos cedendo
à angústia da solidão. Aquele encontro surpreendente, inesperado, reacendeu o gosto
pela vida, doando-nos uma energia e uma vitalidade que nunca havíamos experimentado antes. Sentirmo-nos acolhidos sem pretensões pela companhia das Famílias para
a Acolhida nos pareceu ser o que deveríamos transmitir a outras pessoas, para que
recuperassem um sentido para sua vida. Nossa casa se abriu às necessidades: primeiro
veio Mário, um garotinho, que ficou conosco alguns meses, depois três irmãozinhos,
Viver na Gratuidade
Luigi Giussani
juntos, por um longo período. Nós os acolhíamos com simplicidade, pondo nossa
casa e nossas coisas à disposição. Lembro-me de que nos momentos críticos, que não
eram poucos, rezávamos ao Senhor para que nos ajudasse: não tínhamos nem colchonetes para estender no chão. Depois chegaram Nella, alcoólica, e Pedro, toxicômano,
experiências carregadas de dor. Nella morreu depois de algum tempo e Pedro, após
quatro anos conosco, nos quais nunca havia usado drogas, recomeçou".
Há um outro exemplo espantoso, espantosamente belo, que, espero, vocês
lerão em Litterae Communionis16. É uma carta da nossa amiga Rose, que conta de uma
ocasião em que, ao final de um dia de trabalho no hospital (ela é enfermeira), viu um
homem que se arrastava com os tocos dos quatro membros, pois era leproso. Havia
gasto três horas para percorrer um quilômetro e ser internado no hospital; estava com
disenteria, e ninguém queria acolhê-lo: vocês vão ler como ela fez com que o
acolhessem17.
Seja como for, no que diz respeito à caridade é preciso que estejamos atentos
a uma coisa. Diante desses exemplos, dos quais as nossas comunidades estão cheias, e
que precisaríamos citar um por um (eu deveria citar um por um aqueles que conheço –
Litterae Communionis – Tracce é a revista internacional de Comunhão e Libertação. A edição brasileira, Passos Litterae
Communionis, chamava-se Comunhão e Libertação até o nº 25, de outubro/novembro de 1991.
16
Cf. "Rose e o leproso". In: Comunhão e Libertação nº 12, janeiro/fevereiro de 1989, p. 7. Alguns trechos da carta:
"Ia indo me encontrar com Eugênia, quando, passando pelo ambulatório, vi alguma coisa sob uma mesa, como
um corpo sem vida. Abaixei-me para ver o que era enquanto uma enfermeira me dizia: 'Deixa para lá, é só um
homem que anda de quatro. Olha os tornozelos e os pés dele!'. Já era de noite e o leproso tinha saído de sua casa
às sete horas daquele dia, tinha gasto três horas para percorrer os mil metros que o separavam do hospital. Estava
doente, com disenteria, e tinha pedido para ser atendido. Recusaram-lhe a ficha de admissão porque não pagara a
taxa necessária. Encontrava-se fraco e deprimido, e dizia-me: 'Pudesse eu morrer agora! Que sentido tem meu
viver?'. Eu não tinha nem um centavo para ajudá-lo, mas peguei um formulário com uma enfermeira, coloquei o
leproso numa maca e dirigi-me com decisão ao médico plantonista. O médico também, de início, gritou comigo,
mas depois perguntou-me: 'Qual o problema com esse velho? É seu parente?'. Então eu lhe expliquei e o médico
perguntou-me se eu era freira. Respondi: 'Não, sou cristã, da Igreja Católica'. [...] Eu desejava que a companhia
estivesse perto de mim, porque eu não sabia o que fazer com o velho leproso, e as minhas amigas enfermeiras
gozavam de mim ao invés de me ajudar. Fui até a cozinha para pedir comida para o doente e responderam-me
que, se eu quisesse alimentá-lo, deveria renunciar à minha refeição. Eu estava com muita fome e não me sentia
disposta a jejuar, mas não havia outra saída: dei meu prato de comida para o leproso, que estava também faminto.
As enfermeiras indagaram-me: 'E agora, ele vai usar seu prato?'. 'Certamente', respondi. Levei o doente para um
canto da sala, dei-lhe o meu cobertor e o meu pulôver, e ele adormeceu em paz. [...] Pela manhã encontrei o
médico que ia indo examinar o leproso. Ele me disse: 'Reza por mim'".
17
77
Família: o primeiro sujeito educativo
já são centenas! –; como, por exemplo, o gesto de uma de vocês que perdeu o marido e
acolheu em casa uma doente de Aids sem esperança, a qual, depois de mais ou menos
seis meses, morreu em paz e alegre pela companhia que lhe fora oferecida); diante das
coisas grandes da caridade, que enchem de exemplos a vida das nossas comunidades (dá
vontade de contar apenas essas coisas); diante, sobretudo, do exemplo das Famílias
para a Acolhida (pois a hospitalidade é a caridade mais difícil: ela exige que você se
empenhe totalmente; vocês, que me ensinam isso, sabem muito bem: a hospitalidade
exige todo o seu empenho, de manhã até a noite e da noite até a manhã, como se fosse
um filho, um irmão, um marido); diante de tudo isso, há uma observação a fazer: tudo
deve se tornar em nós uma dor que nos muda. Não podemos mais ser como antes,
depois de ter visto nossos irmãos e nossos amigos, nossos companheiros da
comunidade, as famílias que vivem conosco fazerem essas coisas. Qualquer um de nós
pode tremer e não se sentir capaz disso, pois o Espírito é dado segundo a medida de
Cristo, mas é dado para que nós também venhamos a mudar: "Se um outro faz cem,
Senhor, eu te oferecerei um".
É uma dor que deve mudar a nós mesmos. Não devemos louvá-los à distância, não devemos olhar para essas coisas erguendo uma parede de auto-suficiência,
ainda que seja cheia de benevolência ou admiração: nós nos detemos na admiração,
mas não é assim que deve ser, essas coisas devem nos determinar. Não se trata de
ficarmos impressionados, mas desconcertados, mudados. De fato, a generosidade das
Famílias para a Acolhida eleva o nível de toda a comunidade.
O Pertencer, Fonte do Critério
78
Há uma terceira e última coisa que eu gostaria de lembrar. Não existe uma
gratuidade autêntica, se não se vive com gratidão a caridade com a qual Cristo tocou
a nossa vida por meio do exemplo de outros ou por meio do encontro com uma
companhia. Ou seja, sem a fidelidade à companhia que encontramos, a nossa caridade
seria falsa: não faria história, isto é, não colaboraria de verdade, da forma devida, com
o reino de Deus, para a construção do reino de Deus.
Quero lhes mostrar imediatamente uma aplicação disso. Um de vocês me
escreveu: "Quando a televisão e os jornais começaram a dizer certas coisas sobre o
Viver na Gratuidade
Luigi Giussani
Meeting de Rímini18, eu me perguntei: 'O que está acontecendo?'. E então decidi
tomar um banho de identidade e fui ao Meeting. Entendi, e voltei sereno". É correto
o que você disse e fez, meu amigo.
Ao contrário disso, imaginemos uma grande comunidade na qual apenas três
pessoas estiveram no Meeting. Todos ficaram calados quando um deles contou como
era; mas o clima entre eles estava repleto de objeções; e eram as objeções da televisão
e da imprensa. Mas, então, quando essas objeções parecem ser suas, significa que
você as absorve de algo a que pertence: você pertence ao mundo da televisão e da
imprensa. Em vez de partir da mesma raiz, como fez o primeiro ("Vou tomar um
banho de identidade"), você deixa prevalecer a sua opinião, tomando distância do
que fazem seus irmãos e companheiros do Movimento, e nem de longe se dá conta
de que sua opinião sofre as conseqüências da mentalidade dominante, da
mentalidade do poder.
Em qualquer âmbito é assim: ou a fonte, a raiz que determina a sua preocupação é aquilo a que você pertence, é a companhia a que você pertence, à qual Cristo o
fez pertencer, ou você, pretendendo afirmar suas opiniões e seus juízos, é imobilizado
e aprisionado na grande prisão que o poder, qualquer espécie de poder, constrói de
maneira cada vez mais ramificada e intensa.
Há muitos anos, dom Enrico Bartoletti, então Secretário da Conferência
Episcopal Italiana, perguntou a alguns dos nossos que foram encontrá-lo: "Onde está
o Estatuto de vocês?". Eles responderam: "Não temos Estatuto". "E como conseguem ser tão coesos, como conseguem ser tão unidos, sem um Estatuto?" No fim, ele
mesmo tirou uma conclusão, e disse textualmente: "Entendi, este é o Estatuto de
vocês: a sua amizade". Não sei se ele pressentiu toda a profundidade dessa palavra, o
poço profundo de fé e caridade que constitui a realidade humana e social que é a
nossa amizade, mas isso é verdade.
O Meeting pela Amizade entre os Povos, realizado anualmente em Rímini, Itália, desde 1980, é fruto da iniciativa
de pessoas e grupos que vivem a experiência cristã por meio de Comunhão e Libertação. Verdadeiro festival de
encontros, cultura, música e espetáculos, o Meeting dura uma semana, sempre na segunda metade de agosto.
18
79
Família: o primeiro sujeito educativo
Um exemplo, nesse sentido, nos é dado por um engenheiro, administrador de
uma grande empresa. Ele queria participar da Escola de Comunidade19 e da vida do
Movimento, por isso nos escreveu: "Ao ler a polêmica levantada pelo jornal Il Sabato20
sobre os valores comuns, coloquei-me alguns questionamentos: que é o cristianismo?
Depois de ter-vos encontrado, experimentei uma dor e uma amargura pela maneira
como eu vinha levando a minha vida, a qual, em nome de uma dedicação genérica aos
ideais cristãos, tinha excluído Cristo. Os jornais jamais dirão que Comunhão e Libertação, assim como eu o entendo, é um movimento pela santidade da pessoa, e que tem
a coragem de submeter tudo a esse desejo. O que escandaliza nos vossos relacionamentos políticos é que o critério não é político. De fato, pode-se, na política, fazer
acordo com qualquer um, sem identidade nenhuma. Mas, diante da vossa proposta,
cada um tem de responder em seu próprio nome e não pelo rótulo que ele carrega. Já
me haviam ensinado que a vida é um Mistério, mas esse ensinamento era como se não
tocasse a vida. Depois de ter-vos encontrado, não sei dizer exatamente o que seja o
Mistério, mas posso dizer que eu o encontrei. Peço-vos aceitar-me, para que eu não
perca este encontro. Gostaria de iniciar um apostolado no meu ambiente de trabalho,
mas tenho tanta dificuldade para começar que eu me pergunto, depois de trinta anos
de trabalho, o que é que eu, na verdade, aprendi a fazer, visto que ser missionário é,
no fundo, o significado do trabalho. Creio ter de iniciar novamente, partindo do zero,
e tenho necessidade de novos mestres. Neste sentido, não é suficiente fazer carreira,
mas é necessário alguém que te convença de que um momento estimado pode durar
para sempre" . O espaço entre esse momento e o sempre é a minha disponibilidade a
aprender. O espaço entre a percepção inicial que tivemos e o "sempre"21 é a disponibilidade a aprender.
A Escola de Comunidade é o principal gesto catequético de Comunhão e Libertação, constituído de encontros,
geralmente semanais, nos quais, por meio da leitura e comparação com textos indicados pelo Movimento, se
procura formar uma consciência mais clara da natureza do fato cristão e da Igreja.
19
Publicação italiana inspirada na experiência de Comunhão e Libertação. Deixou de circular no início da década
de 1990.
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21
80
"O critério nunca é político". In: Comunhão e Libertação nº 12, janeiro/fevereiro de 1989, p. 5.
Viver na Gratuidade
Luigi Giussani
É claro que sobre as contingências podemos ter reações e pensamentos diferentes! Mas o que significa isso? Significa que a mesma raiz, a paixão pela mesma raiz
parece me obrigar a falar de uma forma diferente de você, meu amigo; mas eu o faço
com respeito por você, com um desejo de esclarecer a minha posição a você, insistindo em procurar ajudá-lo naquilo que me parece ser o seu erro, tendo paciência para
esperá-lo, pedindo a você que tenha a mesma paciência e insistência comigo. Mas
então é uma outra questão: não é tomar distância de nada, é entrar mais em tudo! Isso
é a gratuidade.
Gostaria de dizer que a forma mais imponente de gratuidade é a vida da
nossa companhia, é a vida do Movimento, pois ela só pode manter-se unida por um
motivo: Cristo. O Movimento não pode se manter unido, não podemos obedecê-lo,
não podemos segui-lo, não podemos servi-lo, não podemos usá-lo para servir, a não
ser mediante a perspectiva última do nosso destino comum, que é Cristo, a não ser
por essa memória. Essa é a única raiz do entusiasmo pelo nosso Movimento, e nenhum de nós poderia ir embora e se tornar melhor – nenhum! Pois poderíamos repetir a frase terrível de São João: "Eles saíram de entre nós, mas não eram dos nossos"22.
O que determinava o amor de Cristo por nós, a gratuidade que qualificou o
amor de Cristo por nós? A obediência ao Pai, a adesão à gratuidade do amor do
mistério trinitário. Como homem, foi por essa devoção ao mistério do Pai que Ele nos
amou, nos quis.
É isso que queremos desenvolver este ano, densamente, na densidade do
cotidiano concreto, ajudando-nos com piedade para que essa gratuidade seja mais
imitada na nossa vida.
Há uma infinidade de exemplos entre nós que não podem nos deixar hoje
como éramos ontem, que despertam em nós uma irrequietude divina, boa, sacrossanta; não tenhamos medo de seguir, lembremo-nos de que tudo pode acontecer,
quando acontece a primeira coisa da qual somos devedores: a graça pela qual eu o
encontrei, meu amigo, a graça daquele instante em que senti o meu destino idêntico
22
1 João 2,19.
81
Família: o primeiro sujeito educativo
ao seu, o instante em que nos encontramos, nos reconhecemos, mesmo sem dizer,
sem entender, confusamente, mas que foi tão verdadeiro que estamos aqui!
O Cardeal de Milão, em seu plano pastoral, nos indica um instrumento de
educação a essa gratuidade, que é a Liturgia, a vida litúrgica. Por isso, este ano
procuraremos desenvolver a nossa oração seguindo a vida sacramental ainda mais
intensamente, mais humildemente, mais fielmente.
Que a Eucaristia leve a nossa companhia e, portanto, a nossa comunhão a
uma visibilidade cada vez maior, para que a Igreja, toda a Igreja, a Igreja do nosso país
e a Igreja do mundo inteiro antecipe cada vez mais luminosamente a vinda de Cristo!
Essa é a salvação: a salvação é a Sua segunda vinda, quando virá e se manifestará. Nós
nos levantamos todas as manhãs para antecipar, na aurora da nossa pobreza, a Sua
vinda, a Sua manifestação.
"Iluminai nossos sentidos, em nossos corações infundi o fervor"23. "Iluminai
nossos sentidos": que o significado dos rostos que tocamos e das coisas que usamos,
ó Cristo, determine de alguma forma a maneira como os apertamos e a maneira como
os pegamos!
E. Galbiati e A. Schweitzer. "Discendi, Santo Spirito". In: Canti. Milão, Cooperativa Editoriale Nuovo Mondo,
2002, p. 113.
23
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Família: O Primeiro Sujeito Educativo