ASPECTOS DA HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL NO DIREITO
DE FAMÍLIA
Clarissa Aparecida Rodycz
RESUMO
Aliando noções de Direito de Família e Direito Constitucional, este trabalho
tem por objetivo estudar as mudanças sociais e seus reflexos na legislação civil de
família através da interpretação constitucional. Mais precisamente, pretende
investigar se a interpretação das lides familiares consoante os valores
constitucionais torna as decisões judiciais mais efetivas. Para tanto, analisamos a
evolução dos principais institutos do Direito Civil, apresentando críticas a cada
etapa; examinamos a importância da especial proteção dada pela legislação às
unidades familiares; mostramos a influência dos princípios consagrados pela
Constituição, dignidade da pessoa humana e igualdade, nas transformações
permanentes da sociedade e seus reflexos nas leis civis e na jurisprudência.
Também demonstramos a crescente importância do afeto nas relações familiares.
Por fim, enfrentamos a questão da relevância da hermenêutica constitucional como
meio de adequação entre realidade social e legislação, bem como apontamos os
papéis do Estado, do legislador e do julgador na busca da efetivação dos preceitos
constitucionais no âmbito do Direito de Família.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho foi motivado pelo desafio de enfrentar temas que,
por sua complexidade, o Direito só é capaz de dominar através da
adequação entre sociedade e legislação. Nesse estudo, nos deparamos com
as inúmeras modificações presentes na sociedade moderna e a necessária
adaptação de valores para o desenvolvimento de um Direito efetivo.
Partindo de uma concepção histórica do Direito Civil e sua gradual abertura
aos
valores
constitucionais,
e
tendo
em
vista
as
mudanças
de
comportamento ocorrentes na sociedade, compreende-se a evolução dos
institutos do Direito de Família. Este estudo se concentra na busca de
2
subsídios para responder a questão: a interpretação das lides familiares
consoante os valores constitucionais torna as decisões judiciais mais
efetivas?
O trabalho está dividido em três capítulos, versando o primeiro acerca
de um breve histórico sobre a relação dos princípios constitucionais com o
Direito de Família no Brasil e a Constituição Federal de 1988; o segundo,
sobre as mudanças de entendimento no âmbito familiar em conformidade
com a aplicação dos postulados constitucionais; o último explanará de que
forma a interpretação constitucional pode manter as normas jurídicas
atualizadas com as necessidades sociais, bem como o papel do Estado, do
legislador e do julgador frente à necessidade de realizar o Direito em
conformidade com os ditames contidos na Carta Magna.
1 A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA DISCIPLINA CONSTITUCIONAL NO
ÂMBITO DO DIREITO DE FAMÍLIA BRASILEIRO
1.1 HISTÓRICO DO DIREITO CIVIL BRASILEIRO E SUA RELAÇÃO COM
OS DIREITOS CONSTITUCIONAIS
Inicialmente, mostra-se relevante proceder a uma breve análise da
evolução do direito privado e suas conseqüências no Direito Civil brasileiro.
Trata-se de verificar como se chegou à constitucionalização do Direito Civil
e seus reflexos nas normas civis brasileiras. 1
Primeiramente, deu-se o rompimento com o regime absolutista. Tal
ruptura
eliminou,
gradativamente,
o
caráter
dispersivo
e
inseguro,
caracterizador do direito medieval, que passou a ter como fonte o Estado.
Examinando o contexto do século XIX, na vigência do Estado Liberal, temse como fato determinante a Revolução Francesa. É nesse espaço de tempo
1
DONADEL, Adriane. Efeitos da Constitucionalização do Direito Civil no Direito de Família. In:
Tendências Constitucionais no Direito de Família. Sérgio Gilberto Porto e Daniel Ustárroz (orgs.).
Estudos em homenagem ao Professor José Carlos Teixeira Giorgis. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2003. p. 11.
3
que se originaram grandes códigos, como o Napoleônico, de 1804, e o BGB,
alemão, de 1896. O Código Civil brasileiro surgiu da mentalidade da
doutrina individualista da época. O projeto de Código elaborado por Clóvis
Bevilaqua seguiu a tendência das legislações características do século XIX.
O código de matéria civil era o centro do sistema. Tinha-se a
codificação como completa e a atividade do intérprete restrita a isolar o fato
e identificar a norma jurídica aplicável. A influência da Escola da Exegese
sustentava a interpretação minuciosa do texto da lei. A crença na
completude da codificação presumia a existência de uma regra para cada
caso. Estas características levaram à consideração de que um conjunto de
normas organizado em codificação seria suficiente para regular toda a vida
da sociedade civil, como lei maior da comunidade, de forma igualitária. 2
Acreditava-se que a inexistência de regra aplicável em cada situação
subjetiva impediria a realização do bom direito. Havia resistência na
aproximação do constitucionalismo e as relações jurídicas privadas, mesmo
com as mudanças históricas. Os princípios constitucionais eram vistos como
normas políticas. A proteção à família favorecia, em grande parte, as
funções política, religiosa e patrimonial e tinha como base o modelo
patriarcal. Defendiam-se os valores com ênfase na apropriação de bens,
tendo os princípios da valorização humana foco inferior.
Com o crescimento do processo de industrialização e dos movimentos
sociais, tem-se o início do rompimento com o Estado Liberal. Abalaram-se o
Direito Civil europeu e, conseqüentemente, o ordenamento brasileiro,
tornando-se a intervenção estatal necessária no setor econômico. O
contexto resultou por determinar a edição de diversos estatutos especiais,
que tinham por finalidade regulamentar temas específicos. Os legisladores
passaram a produzir leis extracodificadas com o intuito de atender às
demandas e mudanças conjunturais. As leis extracodificadas colaboraram
com o papel constitucional do Código referentemente às relações privadas,
porquanto permitiram que situações não previstas pudessem receber
tratamento jurídico de forma extraordinária pelo Estado. A idéia de
2
RAMOS, Carmem Lucia Silveira. A Constitucionalização do Direito Privado e a Sociedade sem
Fronteiras. In: Repensando Fundamentos do Direito Civil Brasileiro Contemporâneo. Luiz Edson
Fachin (coord.). Rio de Janeiro: Renovar, 1998. p. 5.
4
conservação do caráter estático-qualitativo do ordenamento começa a ruir.
Cresce a noção de que este não é imutável, por vezes é desacreditado pela
sua incompatibilidade com os princípios constitucionais, porém a tendência
é de adequação aos novos valores, na passagem para uma jurisprudência
civil atenta aos valores existenciais. 3 Observa-se a perda de poder do
Código, não mais como uma “constituição do direito privado”. Valores
relacionados com as matérias de ordem civil vão sendo incluídos nos textos
constitucionais, como os princípios da função social da propriedade e da
organização da família.
A Constituição Federal brasileira, instituída em 5 de outubro de 1988,
passa a ser o centro de todo o ordenamento. A influência dos preceitos
constitucionais
recai
sobre
todas
as
normas
infraconstitucionais.
O
antagonismo existente entre as esferas pública e privada perde força. A
abordagem pela Constituição de temas caracteristicamente privados rompeu
com o sistema de Direito Civil clássico, um dos campos mais influenciados
pela mudança foi o Direito de Família.
1.2 O DIREITO DE FAMÍLIA BRASILEIRO AO LONGO DO SÉCULO XX
Ao tempo do Império, o Direito de Família estava compreendido no
Direito Canônico. Esse também tinha sido o regime do período colonial,
vigendo
as
Ordenações
Filipinas,
concomitantemente
com
o
Direito
Eclesiástico. 4 O século XIX terminou com a mudança do regime de governo,
mas
basicamente
com
as
mesmas
normas
de
Direito
de
Família.
Proclamada a República, o Estado foi laicizado. Todavia, a migração para o
Direito laico, no início, não representou progresso.
Ao tempo do início da vigência do Código Civil (1917), como
conseqüência do sistema legal precedente, o Código era o estatuto básico
do Direito de Família; ocupava-se de todas as inter-relações do casamento,
inclusive filiação, pátrio-poder, tutela e curatela. O Estado erigiu o
casamento
3
4
civil
como
o
único
meio
de
formação
da
família,
não
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: introdução ao direito civil constitucional. Rio de
Janeiro: Renovar, 1999. p. 22.
LOPES, José Reinaldo de Lima. O Direito na História: lições introdutórias. 2. ed. São Paulo: Max
Limonad, 2002. p. 302, 338-25.
5
reconhecendo esta, porém, como instituição destinatária de proteção
estatal, o que só viria acontecer na Constituição de 1934. A família
albergada pelo Código Civil tinha uma estrutura semelhante à família
romana: ao casar-se, a mulher tornava-se relativamente incapaz, devendo
ser assistida pelo marido nos atos da vida civil. Os direitos concedidos à
mulher tinham cunho protecionista, reforçando sua posição de inferioridade
na sociedade conjugal. O marido era o chefe da sociedade conjugal e
detinha o pátrio-poder exclusivamente. As relações extramatrimoniais eram
reprovadas, mas as conseqüências atingiam principalmente os filhos. Os
filhos naturais podiam ser reconhecidos, mas só os legitimados pelo
casamento dos pais eram plenamente equiparados aos legítimos. 5 Os
incestuosos e os adulterinos não podiam ser reconhecidos. A situação da
filiação determinava ou não direito a nome, alimentos, sucessão, etc. O
casamento válido somente podia ser dissolvido pela morte de algum dos
cônjuges. A dissolução atingia o vínculo; o desquite restituía a liberdade aos
cônjuges, mas conservava íntegro o vínculo.
Ainda ao longo da primeira metade do século XX, embora de modo
tímido, a legislação foi sendo modificada, sobretudo para diminuir a
discriminação entre os filhos legítimos e ilegítimos. Os rigores da instituição
do casamento em si não foram atenuados, permanecendo a instituição
preferencial para a formação da família. Percebe-se que as transformações
da família herdada do século XIX foi lenta. Sobretudo as imposições
econômicas do período fizeram sentir suas conseqüências. A necessidade
de os filhos e as esposas trabalharem fora do lar 6 deu início a um
movimento que ensejou reivindicações públicas (voto, por exemplo) e
privadas (liberdade para ter filho, igualdade, etc.). Foi o começo do fim da
família patriarcal.
À margem do Código, normas esparsas foram abrindo brechas no
sistema, começando a derruir o apartheid jurídico vigente. Em 19.04.1941,
foi editado o Decreto-lei n. 3.200, ementado como “Lei de organização e
5
6
O art. 126 da Constituição de 1937 firmou o princípio da igualdade entre os filhos naturais e os
legítimos; as diferenças, que eram de pouca monta, foram apagadas, os direitos e deveres
igualados. GOMES, Orlando e CARNEIRO, Nélson. Do Reconhecimento dos Filhos
Adulterinos, p. 46.
GOMES, Orlando. O Novo Direito de Família. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1984. p.
5-6.
6
proteção da família”, como lei geral, revogadora do Código Civil. Nota-se
que a sua principal preocupação foi instituir medidas para proteger e
incentivar o casamento e a prole numerosa. Após a Segunda Guerra
Mundial, o mundo experimentou mudanças na área jurídica. No Brasil, tanto
a Constituição de 1946 como o Código Civil só admitiam a família
constituída
pelo
casamento,
enquanto
as
mudanças
dos
costumes
concorriam para a reestruturação da família. O “Estatuto da Mulher
Casada”, objeto da Lei n. 4.121, de 27.8.1962, promoveu a emancipação da
mulher, colocando-a como colaboradora do marido: passou a não ser mais
considerada relativamente incapaz;
7
essa norma estabeleceu também a
cooperação diferenciada dos cônjuges: a mulher passou a ser companheira,
consorte e colaboradora nos encargos da família e no exercício do pátriopoder. O Estatuto foi um dos fatores mais relevantes que impulsionou as
modificações nas relações familiares. A partir do momento em que a mulher
passou a trazer sua colaboração econômica ao lar, integrando a atividade
produtiva, houve repercussão na hierarquia. 8
Em 26.12.1977 sobreveio a Lei do Divórcio, que permitiu a dissolução
do vínculo conjugal. Essa lei regulamentou o disposto pela Emenda
Constitucional n. 9, de 28.06.1977, que deu nova redação ao § 1º do art.
175 da Constituição de 1969. A redação anterior proclamava: “O casamento
é indissolúvel”; a nova estabelecia que “O casamento somente poderá ser
dissolvido, nos casos expressos em lei, desde que haja prévia separação
judicial por mais de três anos.”
O concubinato é compreendido como a união estável, sob o mesmo
teto ou em tetos diferentes, 9 do homem e da mulher, sem a ligação do
casamento. Geralmente exige-se a concorrência de três condições: a)
notoriedade, b) fidelidade e c) continuidade das relações. No período, não
houve a edição de legislação em relação a ele. Logo após a vigência da
Constituição de 1988, o STJ teve que enfrentar a questão sob o ângulo da
7
8
9
BARBOZA, Heloisa Helena. O Direito de Família Brasileiro no Final do Século XX. In: A Nova
Família: problemas e perspectivas. Vicente Barreto (org.). Rio de Janeiro: Renovar, 1997. p. 98.
BRAUNER, Maria Claudia Crespo. A Monoparentalidade Projetada e o Direito do Filho à
Biparentalidade. In: Estudos Jurídicos. Revista do Centro de Ciências Jurídicas da Unisinos, São
Leopoldo, Unisinos, v. 31, n. 83, p. 139, set.-dez. 1998.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula n. 382. “A vida em comum sob o mesmo teto, more
uxório, não é indispensável à caracterização do concubinato.”
7
diferença entre a “concubina” e a “companheira”, tendo assentado que a
proibição de legar àquela não se aplica a esta. Nesse universo, os que
conviviam sem casamento oficial tinham que encontrar fora do Direito de
Família solução para os problemas emergentes de suas relações. Assim, a
jurisprudência passou a reconhecer o direito de indenização à concubina a
título
de
serviços
domésticos
prestados.
Na
década
de
1960,
a
jurisprudência do STF se cristalizou na Súmula 380, que admitiu a
dissolução da sociedade de fato entre os concubinos. 10 A proteção jurídica,
entretanto,
somente
foi
ocorrer
na
Constituição
de
1988,
que
institucionalizou a união estável.
1.3 A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E AS INOVAÇÕES NO DIREITO
DE FAMÍLIA
A legislação criada ao longo do século XX esfacelou o sistema do
Código Civil. O golpe final veio em 1988, quando o Direito de Família migrou
para a Constituição. As conquistas, criadas principalmente por meio da
jurisprudência
e
da
legislação
esparsa,
restaram
definitivamente
consagradas na Constituição Federal, que incorporou as mudanças de
valores, resultando numa profunda alteração no Direito de Família. Embora
a família continue sendo a base da sociedade, e a gozar de proteção do
Estado, como ocorre desde 1934, o seu conceito mudou.
Conforme o § 8º do art. 226, a assistência que o Estado prestará à
família deve se concretizar através de cada um dos membros que a
integram. A Constituição ensejou a proteção dos membros da família até
mesmo contra a entidade familiar.
A criança e o adolescente ganharam destaque no art. 227. A sua
formação tem prioridade absoluta. A responsabilidade é conjunta da família,
da sociedade e do Estado. Essa proteção deverá se materializar por
programas de assistência à saúde, educação, formação profissional, etc.
No que respeita ao planejamento familiar, o § 7º do art. 226 deixou a
sua adoção à livre decisão do casal, vedada a intervenção coercitiva do
10
MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil. 2º vol., 19. ed. São Paulo: Saraiva,
1980. p. 16.
8
Estado. O poder público tem a incumbência de propiciar os meios científicos
e materiais para o adequado exercício desse direito.
No tocante aos cônjuges, a Constituição estabeleceu a plena
igualdade do homem e da mulher no exercício dos direitos e deveres da
sociedade conjugal: a família não tem mais um chefe, mais se afeiçoando a
um condomínio (226, § 5º), ligado pelo afeto. 11,
12
Finalmente acabou a discriminação entre os filhos: havidos ou não da
relação do casamento, todos têm direitos iguais, sendo proibidas quaisquer
designações discriminatórias (227, § 6º). 13
As uniões fora do casamento, tais como as uniões estáveis, que até
meados do século eram consideradas imorais e ilegítimas, ganharam
proteção constitucional. O concubinato não eventual foi qualificado pela
Carta como união estável, saindo da área do direito puramente obrigacional
para entrar na disciplina do Direito de Família.
Outra instituição objeto de proteção constitucional foi a comunidade
formada por um dos pais e seus descendentes, as famílias monoparentais.
Além das mães (ou pais) solteiras por opção, há a questão dos casais
homossexuais, com filhos biológicos ou adotivos. Embora seja vedado
estabelecer restrição de direito em virtude de opção sexual, a própria CF
estabelece que a união estável somente possa ocorrer entre homem e
mulher (226, § 3º), pelo que em princípio estaria afastado o seu
reconhecimento legal entre pessoas do mesmo sexo. Somente ultimamente
a jurisprudência dos tribunais vem superando esse obstáculo. Exemplo:
APELAÇÃO CÍVEL. ADOÇÃO. CASAL FORMADO POR DUAS
PESSOAS DE MESMO SEXO. POSSIBILIDADE. Reconhecida
como entidade familiar, merecedora da proteção estatal, a
união formada por pessoas do mesmo sexo, com
11
12
13
“A nova família, estruturada nas relações de autenticidade, afeto, amor, diálogo e igualdade, em
nada se confunde com o modelo tradicional, quase sempre próximo da hipocrisia, da falsidade
institucionalizada, do fingimento.” LEITE, Eduardo de Oliveira. A Igualdade de Direitos entre o
Homem e a Mulher face à Nova Constituição. In: Revista AJURIS, Porto Alegre, Diretoria da
Revista de Jurisprudência e Outros Impressos do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, n. 61,
p. 34, jul. 1994.
GOMES, Orlando. O Novo Direito de Família. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1984. p.
8.
BRAUNER, Maria Claudia Crespo. A Monoparentalidade Projetada e o Direito do Filho à
Biparentalidade. In: Estudos Jurídicos. Revista do Centro de Ciências Jurídicas da Unisinos, São
Leopoldo, Unisinos, v. 31, n. 83, p. 141, set.-dez. 1998.
9
características de duração, publicidade, continuidade e
intenção de constituir família, decorrência inafastável é a
possibilidade de que seus componentes possam adotar. Os
estudos especializados não apontam qualquer inconveniente
em que crianças sejam adotadas por casais homossexuais,
mais importando a qualidade do vínculo e do afeto que
permeia o meio familiar em que serão inseridas e que as liga
aos seus cuidadores. É hora de abandonar de vez
preconceitos e atitudes hipócritas desprovidas de base
científica, adotando-se uma postura de firme defesa da
absoluta prioridade que constitucionalmente é assegurada
aos direitos das crianças e dos adolescentes (art. 227 da
Constituição Federal). Caso em que o laudo especializado
comprova o saudável vínculo existente entre as crianças e as
adotantes. NEGARAM PROVIMENTO. UNÂNIME (SEGREDO
DE JUSTIÇA). 14
Dentre inúmeras outras questões relevantes emergentes, há ainda a
das técnicas de reprodução assistida, que, embora não possam ser
restringidas, podem sofrer limitações em face do princípio da paternidade
responsável. 15
Como se vê, com a nova ordem de valores houve completa alteração
do conceito de unidade familiar. O papel da família passa a ser funcional,
servindo como instrumento de concretização da dignidade da pessoa
humana. Não se tem mais a proteção familiar como instituição titular de
interesses superiores ao interesse de seus membros; a proteção está
focada no desenvolvimento da personalidade dos sujeitos que a compõem. 16
O princípio é o da pluralidade familiar. Segundo Paulo Luiz Netto Lobo,
esses tipos de entidades familiares expressamente abordados no texto da
Constituição não constituem numerus clausus. Afasta-se também qualquer
entendimento que termine por tutelar desigualmente qualquer modalidade
de família. Diante do novo entendimento interpretativo dos dispositivos que
tratam da família (Capítulo VII, do Título VIII, da Constituição), e diante dos
princípios
14
15
16
fundamentais
do
ordenamento,
inseridos
no
Título
I
da
RIO GRANDE DO SUL. Apelação Cível Nº. 70013801592, Sétima Câmara Cível, Tribunal de
Justiça do RS, Relator: Luiz Felipe Brasil Santos, Julgado em 05/04/2006.
ZITSCHER, Harriet Christiane. Introdução ao Direito Civil Alemão e Inglês. Belo Horizonte: Del
Rey, 1999. p. 188 e 165.
PEREIRA, Sumaya Saady Morhy. Direito de Família e Proteção Constitucional à Família: a quem
se dirigem? In: A Ética da Convivência Familiar e sua Efetividade no Cotidiano dos Tribunais.
Tânia da Silva Pereira e Rodrigo da Cunha Pereira (coord.). Rio de Janeiro: Forense, 2006. p.
517.
10
Constituição, não se pode instituir famílias mais privilegiadas que outras. As
características da pluralidade, da afetividade e da função serviente podem
ser referidas como os princípios norteadores do novo perfil constitucional da
família, com dimensão mais aberta. Enfraqueceu-se o enfoque antes
concentrado no vínculo formal; o debate da questão de como propiciar
proteção, transferiu-se para o conteúdo, o sentido e a finalidade da família.
Enfim, a Constituição tomou o papel de lei fundamental da família,
posição antes ocupada pelo Código Civil e por leis esparsas. O texto
constitucional entra em conformidade com a realidade e repugna dogmas do
passado. 17
2 OS POSTULADOS CONSTITUCIONAIS APLICADOS AO DIREITO DE
FAMÍLIA
2.1 A IMPORTÂNCIA DA ESPECIAL PROTEÇÃO À FAMÍLIA
A história da família progride com a evolução da própria humanidade.
As entidades familiares compõem a principal forma de agrupamento
humano. Elas preexistem à própria organização jurídica da vida em
sociedade e são consideradas as células mater de uma nação. O caráter
natural da família antecede o Direito Positivo, visando a preservação do
grupo e a perpetuação da espécie humana. A família se constitui como um
fenômeno da natureza e da cultura, que, como estas, também se
desenvolveu, agregou novos conceitos e formas. Restou institucionalizada
pela legislação e, conquanto seja considerada objeto do Direito Privado, não
se afasta da proteção do Direito Público.
Neste novo contexto, a família deixa de ser uma mera instituição para
se transformar num instrumento viabilizador da personalidade humana, de
acordo com o valor da dignidade da pessoa humana. Não mais se considera
a família como um fim em si mesmo. Pelo contrário, passa-se a privilegiá-la,
17
MADALENO, Rolf. Direito de Família – Constituição e Constatação. In: Novas Perspectivas no
Direito de Família. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. p. 21.
11
a considerá-la o ninho afetivo no qual a pessoa nasce e modela a
personalidade, buscando a felicidade.
A proteção à família é ainda mais justa tendo em vista que a violação
dos direitos da personalidade deixa seqüelas duradouras. Por tudo isso, é
necessária uma nova postura dos operadores do Direito que trabalham com
as complexas questões familiares, visto que a construção da decisão
judicial deve respeitar os princípios fundamentais, aplicando, assim, os
preceitos da igualdade, liberdade e intimidade, essenciais no Direito de
Família. 18
A família é o espaço de vivência humana, constituindo uma rede de
relacionamentos que definem o modo como cada um participa dos diversos
ambientes costumeiramente. Nesse sentido, pertencer a um conjunto de
seres ligados por meio de vínculos profundos realiza a pessoa como mãe ou
pai, esposa ou esposo, filho ou filha, etc. A característica que torna a
família um símbolo complexo é, basicamente, a relação de reciprocidade
plena entre os sexos e entre as gerações, formando o primeiro ponto de
apoio e alicerce da sociedade.
Com a constitucionalização do Direito Civil e a adoção do Novo
Código Civil, em 2002, foi no Direito de Família que decorreram as mais
rápidas mudanças de conceitos e princípios. Como resultado do fenômeno
da constitucionalização do ordenamento jurídico, surgiu um novo modelo de
família. A elevação do Direito Civil ao plano constitucional passou a
condicionar a adequação da legislação infraconstitucional consoante o seu
art. 5º, §1º, que expressa a aplicação imediata das normas definidoras dos
direitos e garantias fundamentais, ajustando o princípio da efetivação.
O sentido de promoção da proteção constitucional da família deve
superar a idéia de ser apenas interesse familiar. A família não constitui
pessoa jurídica: não é titular de direitos autônomos: nela a titularidade de
direitos pertence aos seus componentes. Portanto, falar de interesse
familiar não implica privação ao desenvolvimento da personalidade dos seus
integrantes. Ao contrário, o interesse familiar representa a conveniência
comum de todos os participantes da relação, tendo como fito principal o
18
SILVA, Maria de Fátima Alflen. Direitos Humanos e o Novo Direito de Família. Porto Alegre:
Sérgio Antonio Fabris Editor, 2006. p. 84-5.
12
respeito
à
personalidade
individual.
Tal
consideração
deve
ser
compreendida como espécie de preceito geral com a finalidade de evitar a
ocorrência de arbitrariedades por parte de um dos pólos da relação. 19
A compreensão da importância da tutela constitucional da família e a
intervenção do Estado na esfera que reúne os componentes da família não
se satisfaz apenas na afirmação da necessidade de proteção da pessoa. Tal
posição deve ser conjugada com o fato de que cada pessoa se apresenta
como titular do direito à sua própria realização e, simultaneamente, deve
respeitar o desenvolvimento dos outros integrantes da mesma comunidade,
de
forma
solidária.
Quando
observados
tais
pressupostos,
torna-se
efetivamente possível a concretização da vontade e a plena comunhão de
sentimentos e vida.
2.2 O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NAS RELAÇÕES
FAMILIARES
A mais notável inovação da Constituição foi a de conferir destaque
aos direitos fundamentais. Além de agregar ao texto um elenco amplo de
direitos individuais, a Constituição elevou-os à condição de cláusula pétrea,
imunes a mudanças por parte do legislador.
Segundo o Professor Paulo Bonavides, o princípio da dignidade da
pessoa humana é o mais valioso para sintetizar a unidade material da
Constituição, porquanto todo o texto se mostra compromissado com a tutela
da pessoa humana. Assenta-se que este é o princípio que confere unidade
de sentido ao nosso ordenamento, devendo inspirar a interpretação e a
aplicação de todo o direito vigente na esfera pública ou privada. Ademais, o
princípio exprime a primazia da pessoa sobre o Estado, consagrando o
reconhecimento de que a pessoa é o fim e o Estado resta como um meio
19
PEREIRA, Sumaya Saady Morhy. Direito de Família e Proteção Constitucional à Família: a quem
se dirigem? In: A Ética da Convivência Familiar e sua Efetividade no Cotidiano dos Tribunais.
Tânia da Silva Pereira e Rodrigo da Cunha Pereira (coord.). Rio de Janeiro: Forense, 2006. p.
522.
13
para a garantia e concretização dos direitos fundamentais. 20 Tal idéia é
confirmada pelas palavras da Desembargadora Maria Berenice Dias:
A supremacia da dignidade da pessoa humana, lastreada no
princípio da igualdade e da liberdade, é o grande artífice do
novo Estado Democrático de Direito, que foi implantado no
país. Houve o resgate do ser humano como sujeito de direito
e se lhe assegurou de forma ampliada a consciência da
cidadania. 21
O princípio da dignidade desempenha o papel de revelação de novos
preceitos não expressamente elencados no texto constitucional. Porém, tais
princípios poderão ser reclamados quando se verificar a necessidade de
prestação omissiva ou comissiva para a garantia da vida com dignidade. O
preceito simboliza uma orientação para a conduta estatal. Confere-se às
autoridades públicas o dever de proteção ao livre desenvolvimento da
personalidade e o asseguramento das condições mínimas de vida.
Conforme entendimento de Maria Celina de Moraes, o princípio da
dignidade
apresenta,
em
síntese,
quatro
desdobramentos:
direito
à
igualdade, tutela da integridade psicofísica, direito à liberdade e princípio da
solidariedade social. O Direito à igualdade compreende a atuação do Estado
a fim de amenizar as diferenças socioeconômicas, a ser articulado com o
direito à diferença. Quanto à integridade psicofísica, a abrangência não se
limita aos aspectos negativos, como a vedação da tortura, compreendendo
também dimensões positivas, como a existência de salário mínimo que
assegure a sobrevivência, por exemplo. O direito à liberdade discorre sobre
o reconhecimento da autonomia moral da pessoa humana conjugado com
deveres de solidariedade fiscal. A solidariedade implica em um conjunto de
instrumentos destinados a garantir uma existência digna em uma sociedade
que se desenvolva livre, sem excluídos ou marginalizados. 22
20
21
22
SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. 2. ed. Rio de Janeiro: Lúmen
Júris, 2006. p. 87.
DIAS, Maria Berenice. Novos Tempos, Novos Termos. In: Conversando sobre o Direito das
Famílias. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. p. 19.
Apud SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. 2. ed. Rio de Janeiro:
14
Ao referir que o Direito Privado contemporâneo foca a pessoa humana
e os seus valores existenciais, superando o padrão individualista, a
personalização se mostra como uma das causas da socialização do Direito
Privado, visto que compreende a pessoa como um ser social, titular de
direitos e ligado aos seus semelhantes através de deveres. A pessoa tem a
obrigação de cooperar com a realização de seus próximos.
Em casos de embate entre interesses de ordens diferentes (privados e
públicos), se faz necessária cuidadosa ponderação, preservando-se ao
máximo o seu conteúdo e orientando a decisão para a concretização do
princípio da dignidade da pessoa humana, funcionando o preceito como
principal diretriz na resolução de conflitos principiológicos no Estado
Democrático de Direito.
Consoante entendimento do Gustavo Tepedino, o que ocorre é que o
próprio Direito Civil se altera desde sua base. Não se trata apenas de
superposição de elementos do Direito Público sobre conceitos de Direito
Privado, significando que deve compreender uma “interpenetração do
Direito Público e Direito Privado”. 23 O que se faz necessário é uma
reconstrução
do
Direito
Civil
para
amoldar-se
a
um
novo
padrão
constitucional que privilegia os valores da dignidade da pessoa humana
sobre os eminentemente patrimoniais.
24
A Constituição promove a dignidade da pessoa humana como valor
máximo do ordenamento, e, em conseqüência, como princípio orientador de
toda a interpretação legislativa. A personalidade se apresenta como um
valor jurídico a ser tutelado nas múltiplas situações em que o homem possa
se encontrar a cada dia, de modo que o que se busca é salvaguardar a
pessoa humana sob todos os aspectos.
23
24
Lúmen Júris, 2006. p. 89.
TEPEDINO, Gustavo. Normas Constitucionais e Relações de Direito Civil na Experiência
Brasileira. In: Temas de Direito Civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. Tomo II, p. 21-2.
DONADEL, Adriane. Efeitos da Constitucionalização do Direito Civil no Direito de Família. In:
Tendências Constitucionais no Direito de Família. Sérgio Gilberto Porto e Daniel Ustárroz (orgs.).
Estudos em homenagem ao Professor José Carlos Teixeira Giorgis. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2003. p. 19.
15
2.3 A RELEVÂNCIA DO PRINCÍPIO DA IGUALDADE APLICADO À FAMÍLIA
A igualdade formal foi alcançada com a Constituição Federal de 1988.
O que se pretende agora, através do Constitucionalismo do Direito Civil, é a
conquista da igualdade substancial, que não dependa de legislação
infraconstitucional, mas da interpretação a ser dada na compatibilização
destas e do Código Civil à Constituição.
25
A família é considerada a principal ligação entre a vida pública e a
vida privada do sujeito, e essa relação é assentada na igualdade,
estabelecida
na
aplicação
da
legislação
aos
litígios
de
família.
Frequentemente depara-se com a positivação de padrões definidores do
conceito de entidade familiar, e a conseqüência disso é a aplicação, de
forma idêntica, destes padrões, em todos os casos ocorrentes na prática
jurídica, sem levar em conta as peculiaridades de cada família.
Com efeito, não é razoável o tratamento jurídico igualitário às
variadas formas de entidades familiares, visto que, frente às mudanças de
paradigmas do Direito, tal comportamento resta contrário à moderna ciência
jurídica. A norma não deve permanecer estanque, havendo necessidade de
preservação das particularidades em cada situação fática. O conceito de
igualdade, preconizado na Constituição, pode ser compreendido como
identidade. Porém, coisas mesmo que iguais não se confundem em uma só,
diferenciam-se, apresentando, contudo, grande uniformidade. Lembra-se os
ensinamentos de Hans Kelsen, que exaltou o papel do jurista como
investigador do Direito e enfatizou a igualdade na aplicação da lei. Kelsen
afirmou que, embora existam desigualdades entre os homens, para o
ordenamento jurídico, provido de coação, todos eles estão submetidos à
mesma regra. A aplicação da norma jurídica implica apenas na abrangência
do sujeito e do suporte fático que melhor se enquadre. Contudo, na nossa
ordem legal, que tem a igualdade como princípio primordial, sobressai o
preceito da dignidade da pessoa humana, afastando-se o critério rígido da
obediência à lei.
25
SILVA, Maria de Fátima Alflen da. Direitos Fundamentais e o Novo Direito de Família. Porto
Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2006. p. 77.
16
A igualdade está consagrada no art. 5º do texto constitucional e
reproduzida no capítulo referente à família, à criança, ao adolescente e ao
idoso – artigos 226, § 5º, e 227, § 6º. Conforme Humberto Ávila:
... a igualdade pode funcionar como regra, prevendo a
proibição de tratamento discriminatório; como princípio,
instituindo um estado igualitário com o fim a ser promovido; e
como postulado, estruturando a aplicação do Direito em
função de elementos (critérios de diferenciação e finalidade
da distinção) e da relação entre eles (congruência do critério
em razão do fim). A concretização do princípio de igualdade
depende do critério-medida objeto de diferenciação. 26
Entretanto, a igualdade, como princípio preconizado na Constituição,
não remete a uma igualdade absoluta. Neste ponto, ganha força a idéia de
que por mais que se defenda a igualdade de forma ampla entre os membros
de uma família, a plena igualdade entre eles não prospera. Deve haver
limitação a ser observada pelos operadores do Direito em respeito ao ponto
máximo de intervenção passível de ser exercida pelo Estado nas relações
familiares. As normas que regem a família devem se restringir ao essencial,
a fim de não afetar a liberdade ou a autonomia dos sujeitos, ou violar a
privacidade do cidadão. Entre as esferas do público e do privado, no âmbito
familiar, deve-se buscar permanentemente o equilíbrio. Há diferenças
essenciais entre os membros de uma família, que devem ser preservadas;
há deveres diversos de uns em relação aos outros. A análise do caso
concreto
definirá o
melhor caminho a
ser seguido,
levando-se
em
consideração o momento histórico daquela entidade familiar, a idade dos
filhos, etc. A relação familiar resta ajustada não numa simples relação de
“igualdade entre iguais”, mas sim na solidariedade entre seus componentes,
caracterizando o afeto entre eles.
Quando da aplicação do preceito da igualdade, faz-se necessário agir
com cautela no tocante aos litígios de família. Ocorrem situações em que
26
ESTROUGO, Mônica Guazzelli. O Princípio da Igualdade Aplicado à Família. In: Direitos
Fundamentais do Direito de Família. Belmiro Pedro Welter e Rolf Hanssen Madaleno (coord.).
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. p. 328.
17
deve se considerar a desigualdade e refletir a diversidade de cada caso
concreto. Tal entendimento é percebido na medida em que todas as famílias
carregam características e peculiaridades, que devem ser respeitadas
juntamente com a aplicação integral da regra jurídica. O que ocorre, muitas
vezes, é que o legislador, ao tentar a máxima efetivação principiológica,
acaba por desconsiderar as especificidades do caso, podendo incorrer em
injustiça. Assim, a construção feita pela doutrina e pela jurisprudência é o
meio mais adequado de conformação com as mudanças e reflete de forma
mais realista a família contemporânea. Deve-se buscar a igualdade, mas
sem se afastar da idéia de que existem diferenças em cada família, que
precisam ser individualmente consideradas, bem como que não se pode
negligenciar as diferenças entre os indivíduos que a integram.
2.4 O PAPEL DO AFETO NAS RELAÇÕES FAMILIARES
Discorrer sobre o afeto nas relações familiares parece, em princípio,
um tema redundante. Sua noção é parte fundamental nas relações
interpessoais, porquanto as pessoas se aproximam ou se afastam em razão
do sentimento. 27 O afeto passou a ter importância externa e ingressou no
mundo do Direito. Sua relevância se modificou no decorrer dos tempos: por
certo tempo se presumiu a presença da affectio somente por existir a
relação de família; após, se revelou na forma de elemento causador, por lhe
dar maior visibilidade. Nas palavras de Sérgio Gischkow Pereira:
O Direito de Família evoluiu para um estágio em que as
relações familiares se impregnam de autenticidade,
sinceridade,
amor,
compreensão,
diálogo,
paridade,
realidade. Trata-se de afastar a hipocrisia, a falsidade
institucionalizada, o fingimento, o obscurecer dos fatos
sociais, fazendo emergir as verdadeiras valorações que
orientam as convivências grupais. 28
27
28
CARBONERA, Silvana Maria. O Papel Jurídico do Afeto nas Relações de Família. In:
Repensando Fundamentos do Direito Civil Brasileiro Contemporâneo. Luiz Edson Fachin (coord.).
Rio de Janeiro: Renovar, 1998. p. 273.
PEREIRA, Sergio Gischkow. Tendências Modernas do Direito de Família. In: Estudos de Direito
de Família. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. p. 35.
18
O elemento “sentimento”, antes não tomado em consideração, começa
a ganhar maior extensão. Com ele, a noção de afeto ganha espaço e revela
o desejo de estar junto à outra pessoa ou pessoas. Diante disso, o Direito,
pouco
a
pouco,
adaptou-se,
cuidando,
através
da
legislação
e
da
jurisprudência, deste “novo” elemento. A nova concepção jurídica de família,
gradativamente elaborada, transferiu a importância dada ao aspecto da
desigualdade, formalidade e patrimonialidade para uma compreensão mais
pessoal e igualitária. Ocorreu a progressiva valorização de elementos antes
considerados secundários. Ganharam espaço os interesses individuais dos
sujeitos da família, a busca destes pela própria felicidade e a afetividade.
A dignidade e a igualdade formam os princípios norteadores e abrem
o caminho para que os indivíduos tentem, quantas vezes forem necessárias,
a formação de uma família feliz. As pessoas passaram a viver numa
sociedade mais tolerante e com mais liberdade, sem se sentir pressionadas
a ficar dentro de estruturas preestabelecidas e engessadoras. Ocorreu uma
democratização dos sentimentos, aumentando-se o respeito mútuo e a
liberdade individual.
Constituição
acabou
29
A adaptação legislativa ocorrida por meio da
moldando
novos
contornos
jurídicos
à
família
contemporânea. A satisfação dos interesses dos membros da família e de
sua realização afetiva proporciona o seu crescimento pessoal.
Estabelecidos os princípios da igualdade e da liberdade na família, o
vínculo jurídico, antes priorizador do formalismo, cedeu espaço à verdade
sócio-afetiva. A noção jurídica de família se amoldou aos conceitos de
felicidade e afeto, consoante as modificações que já haviam ocorrido na
esfera social. A evolução partiu do contrato, da família matrimonializada,
chegando
à
família
mais
informal,
ligada
pelo
afeto.
A
família
contemporânea resulta da mistura dos conceitos de comunidade de afeto e
de entre-ajuda. Transforma-se num espaço onde as habilidades individuais
podem ser desenvolvidas e a continuidade da união de seus membros só
ocorre na existência de afeto.
A família é o núcleo de desenvolvimento e de proteção dos filhos. As
omissões pelos pais na manutenção das necessidades físicas e emocionais
29
DIAS, Maria Berenice. Conversando sobre o Direito das Famílias. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2004. p. 25.
19
dos filhos têm provocado o sentimento jurisprudencial e doutrinário de
proteção e de reparo dos danos psíquicos causados pela privação do afeto
na formação da personalidade da pessoa. O bom senso acusa a
necessidade de a criança e o adolescente serem nutridos do afeto dos pais,
representado
por
trocas
físicas
e
emocionais,
cujos
valores
serão
determinantes para o seu suporte psíquico e a sua futura inserção social.
Para isso, não se discrimina a natureza do vínculo, sejam eles de ordem
genética, civil ou socioafetiva. Os pais têm a obrigação de exercer o papel
parental, de extrema importância para a formação moral e intelectual de sua
prole. 30 O seguinte julgado do TJRS ilustra:
APELAÇÃO. REGULAMENTAÇÃO DE VISTAS E OFERTA DE
ALIMENTOS. O convívio com o pai e os irmãos paternos é
direito do menor, que tem a possibilidade de consolidar
vínculos afetivos essenciais para a formação da sua
personalidade. O fato de o pai possuir outra família
constituída não pode ser óbice à visitação, pois não prejudica
a noção do papel paterno e viabiliza o contato paulatino com
uma situação cada vez mais presente nos dias atuais pais
que vivem separados e mantêm outra família. ... DERAM
PARCIAL PROVIMENTO. UNÂNIME. 31
Destarte, conclui-se que a afetividade é a característica fundante da
família
brasileira
atual
na
forma
em
que
se
encontra
traçada
constitucionalmente. Assim, foram colocadas em segundo plano as funções
política, econômica e religiosa e valorizada a dignidade de cada um dos
componentes da família.
30
31
32
32
MADALENO, Rolf. Direito de Família – Constituição e Constatação. In: Novas Perspectivas no
Direito de Família. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. p. 113-14.
RIO GRANDE DO SUL. Apelação Cível Nº. 70011471281, Sétima Câmara Cível, Tribunal de
Justiça do RS, Relator: Luiz Felipe Brasil Santos, Julgado em 01/06/2005
DONADEL, Adriane. Efeitos da Constitucionalização do Direito Civil no Direito de Família. In:
Tendências Constitucionais no Direito de Família. Sérgio Gilberto Porto e Daniel Ustárroz (orgs.).
Estudos em homenagem ao Professor José Carlos Teixeira Giorgis. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2003. p. 17.
20
3 A INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL E O PAPEL DOS OPERADORES DO
DIREITO
3.1 A RELEVÂNCIA DA INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL
As mudanças que ocorrem no seio da sociedade interferem na
composição
da
modificações.
legislação,
Não
é
que
concebível
deve
procurar
que
as
acompanhar
normas
essas
constitucionais
se
encontrem afastadas e defasadas da realidade fática. Embora não seja
possível a previsão de todas as transformações ocorridas na sociedade, é
necessário que haja meios capazes de acompanhar essas evoluções. Uma
das formas de transformação da Constituição é por meio da atividade
interpretativa. Tal mecanismo revela-se eficaz para conduzir alterações
constitucionais, sem que para isso haja a necessidade de modificação no
texto da norma jurídica. Contudo, essas alterações não podem contrariar o
conteúdo essencial da Constituição – este deve permanecer intocável.
A interpretação consiste em atividade que tenciona extrair o conteúdo
e o sentido de determinada norma jurídica para que esta seja aplicada ao
caso concreto. O Poder Judiciário tem papel de destaque nessa atividade na
medida em que se apresenta como o grande intérprete da lei.
A relevância da hermenêutica constitucional é bem apontada por
Pietro Perlingieri: “um sistema jurídico não é mais considerado uma
conquista
definitiva,
um
resultado
final
e
exaustivo,
mudando
quotidianamente com a interpretação dos operadores jurídicos, que apontam
os seus rumos atuais.”
33
Cabe aos estudiosos do Direito desenvolver uma atitude crítica diante
dos indicativos jurisprudenciais e dos novos textos de lei. Num primeiro
momento, temos a busca do intérprete pela compreensão da lei, buscando o
seu
33
sentido.
Num
segundo
momento,
são
utilizados
os
métodos
Apud RAMOS, Carmem Lucia Silveira. A Constitucionalização do Direito Privado e a Sociedade
sem Fronteiras. In: Repensando Fundamentos do Direito Civil Brasileiro Contemporâneo. Luiz
Edson Fachin (coord.). Rio de Janeiro: Renovar, 1998. p. 17-8.
21
interpretativos (literal, sistemático, lógico e histórico). Ao final, através das
convicções alcançadas para firmar o real sentido da lei é que se passa a
expressar a interpretação a ela conferida. Assim, pode-se conceber a
atividade interpretativa como hipótese criadora de Direito.
É fato que as normas jurídicas sofrem alterações conforme as
modificações do meio social. Mesmo não havendo a possibilidade de a
legislação antecipar esta evolução, busca-se a adaptação dessa, evitando
que as leis fiquem apartadas da realidade fática. Persegue-se o objetivo de
harmonizar a Constituição pela via interpretativa.
O seguinte julgado do STJ entendeu pela defasagem da lei vigente e,
através da interpretação constitucional, buscou a aplicação de valores
sociais no caso concreto:
DIREITO CIVIL. AÇÃO NEGATORIA DE PATERNIDADE.
PRESUNÇÃO LEGAL (CC, ART. 240). ... DIREITO DE
FAMILIA.
EVOLUÇÃO.
HERMENEUTICA.
RECURSO
CONHECIDO E PROVIDO. I - NA FASE ATUAL DA
EVOLUÇÃO DO DIREITO DE FAMILIA, E INJUSTIFICAVEL O
FETICHISMO
DE
NORMAS
ULTRAPASSADAS
EM
DETRIMENTO DA VERDADE REAL, SOBRETUDO QUANDO
EM PREJUIZO DE LEGITIMOS INTERESSES DE MENOR. ...
III - O SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, PELA
RELEVANCIA DA SUA MISSÃO CONSTITUCIONAL, NÃO
PODE DETER-SE EM SUTILEZAS DE ORDEM FORMAL QUE
IMPEÇAM A APRECIAÇÃO DAS GRANDES TESES
JURIDICAS QUE ESTÃO A RECLAMAR PRONUNCIAMENTO
E ORIENTAÇÃO PRETORIANA. 34
O texto constitucional não expressa soluções fechadas para aplicação nos
casos concretos; o que se encontra são diretrizes fundamentais. As normas
constitucionais
programáticas.
expressam,
Diante
disso,
principalmente,
a
interpretação
princípios,
pode
ou
promover
normas
a
sua
atualização. A perspectiva de interpretação civil-constitucional permite que
sejam revigorados os institutos de Direito Civil, muitos deles defasados da
realidade contemporânea e por isso mesmo relegados ao esquecimento e à
ineficácia, dando-se-lhes nova potência, de molde a torná-los compatíveis
34
BRASÍLIA. REsp Nº 4987/RJ, Quarta Turma, Superior Tribunal de Justiça, Relator: Ministro Sálvio
de Figueiredo Teixieira, Julgado em 04/06/1991.
22
com as demandas sociais e econômicas da sociedade atual. 35 Tendo em
vista a morosidade do processo legislativo, que impede a contemplação
imediata das novas exigências da sociedade, tem-se argumento favorável
ao desenvolvimento da interpretação como meio de atualização das normas,
tornando-as operativas.
A nova interpretação constitucional é resultado de uma evolução que
teve por fim conservar conceitos tradicionais e somar idéias que atendem as
novas demandas. Com base nessa tradução, o aplicador da norma
infraconstitucional, quando existirem múltiplas interpretações possíveis,
deve buscar a noção que mais se compatibilize com a Constituição, ainda
que não seja a que mais expressamente derive do texto. 36
O intérprete constitucional deve zelar pela realização do Direito,
fazendo valer no mundo dos fatos os valores tutelados. Por conseguinte, o
operador do Direito necessita ter compromisso com a efetividade da
Constituição. Para isso, deve privilegiar o entendimento que permita a
atuação da intenção constitucional. Este novo meio de composição do
entendimento constitucional tem assentamento nos princípios, aplicáveis
com ponderação, cabendo ao intérprete se interar com os fatos e as
normas, realizando escolhas consoante fundamentação. Esses fundamentos
se limitam pelas possibilidades ofertadas pelo sistema jurídico, objetivando
a solução mais justa para o fato concreto. A ponderação consiste em tomar
por base valores, interesses, bens e normas e utilizá-las em situações em
que a técnica jurídica não acompanha a complexidade dos casos. O
mecanismo funda-se na busca por maior objetividade, selecionando as
normas aplicáveis e os fatos de maior relevância, atribuindo pesos aos
elementos envolvidos na disputa.
Em múltiplos exemplos a jurisprudência mostra bons resultados
através da interpretação constitucional. A jurisprudência tem se antecipado
aos demais Poderes na percepção de pungentes dramas individuais e
sociais e notáveis esforços de adaptação do Direito vigente aos novos
35
36
TEPEDINO, Gustavo. Premissas Metodológicas para a Constitucionalização do Direito Civil. In:
Temas de Direito Civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 21.
BARROSO, Luís Roberto (org.) e BARCELLOS, Ana Paula de. O Começo da História. A Nova
Interpretação Constitucional e o Papel dos Princípios no Direito Brasileiro. In:A Nova
Interpretação Constitucional, Ponderação, Direitos Fundamentais e Relações Privadas. São
Paulo: Malheiros Editores, 2005. p. 333 e 361.
23
problemas e valores. Tardiamente, vêm as leis prever situações já
desbravadas pelos juízes e tribunais. 37 Do ponto de vista interpretativo, a
crescente
atribuição
de
eficácia
normativa
aos
princípios
ocorre
conjuntamente com a abertura do sistema jurídico. A aplicação dos
princípios essenciais serve de base para a reconstrução do Direito Civil com
fundamento constitucional.
3.2 O PAPEL DO JULGADOR, DO LEGISLADOR E DO ESTADO NO
DIREITO DE FAMÍLIA À LUZ DOS PRECEITOS CONSTITUCIONAIS
É inegável que existe um grande distanciamento entre as previsões
constitucionais que dispõem a respeito dos preceitos fundamentais nas
relações privadas e a sua real aplicação no cotidiano dos tribunais.
Contudo, há uma progressiva inserção do conteúdo valorativo dos direitos
fundamentais na legislação de Direito Privado. O problema é que a
produção legislativa não abrange, nem tem a capacidade de regular e
prever, todas as situações passíveis de gerar ameaça ou violação dos
direitos em questão.
Do ponto de vista fenomenológico, o quadro de intensas modificações
ocorridas nas últimas décadas no âmbito do Direito de Família revela
inegável transformação da estrutura familiar. A alteração mais profunda é a
ocorrida no vértice do ordenamento, que migrou para a Constituição,
impondo radical reformulação dos critérios interpretativos.
Quando da análise de litígio nas relações de família, mostra-se
complexo o papel do julgador, porquanto se depara com conflitos da ordem
mais íntima do indivíduo; na maioria das vezes, o que resta sob ameaça são
os direitos fundamentais do sujeito da relação. 38 Cabe ao julgador interferir
e remediar a situação de forma eficaz, por mais delicada que se apresente.
Aqui nasce para o juiz o desafio de encontrar a providência útil e capaz de
37
38
PEREIRA, Sérgio Gischkow. Interpretação Jurídica e Aplicação do Direito: um exórdio necessário
ao estudo do Direito de Família. In: Estudos de Direito de Família. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2004. p. 31.
PEREIRA, Sumaya Saady Morhy. Direito de Família e Proteção Constitucional à Família: a quem
se dirigem? In: A Ética da Convivência Familiar e sua Efetividade no Cotidiano dos Tribunais.
Tânia da Silva Pereira e Rodrigo da Cunha Pereira (coord.). Rio de Janeiro: Forense, 2006. p.
512.
24
interferir na esfera mais privada do cidadão, para garantir a efetividade do
direito fundamental ameaçado. As constantes transformações sociais,
muitas vezes sequer imaginadas pelo legislador à época da elaboração das
leis, exigem do juiz decisão coerente diante do caso concreto. Assim a
jurisprudência:
.... ADOÇÃO INFORMAL. PATERNIDADE AFETIVA. ...
PRINCÍPIO DA APARÊNCIA. ESTADO DE FILHO AFETIVO.
INVESTIGAÇÃO
DE
PATERNIDADE
SOCIOAFETIVA.
PRINCÍPIOS DA SOLIDARIEDADE HUMANA E DIGNIDADE
DA PESSOA HUMANA. ATIVISMO JUDICIAL. JUIZ DE
FAMÍLIA. DECLARAÇÃO DA PATERNIDADE. A paternidade
sociológica é um ato de opção, fundando-se na liberdade de
escolha de quem ama e tem afeto, o que não acontece, às
vezes, com quem apenas é a fonte geratriz. Embora o ideal
seja a concentração entre as paternidades jurídica, biológica
e socioafetiva, o reconhecimento da última não significa o
desapreço à biologização, mas atenção aos novos
paradigmas oriundos da instituição das entidades familiares.
... Isso ainda ocorre com o "estado de filho afetivo", que além
do nome, que não é decisivo, ressalta o tratamento e a
reputação, eis que a pessoa é amparada, cuidada e atendida
pelo indigitado pai, como se filho fosse. O ativismo judicial e
a peculiar atuação do juiz de família impõe, em afago à
solidariedade humana e veneração respeitosa ao princípio da
dignidade da pessoa, que se supere a formalidade
processual, determinando o registro da filiação do autor, com
veredicto declaratório nesta investigação de paternidade
socioafetiva, e todos os seus consectários. APELAÇÃO
PROVIDA, POR MAIORIA. 39
A
complexidade
inacessíveis.
Há
humana
ainda
ressentimentos,
mantém
frustrações
muitos
e
tudo
compartimentos
isto
explica
o
comportamento das partes, que acaba influindo no processo, tornando-o
repleto de características particulares. Torna-se necessário que o juiz seja
auxiliado
com
informações
técnico-científicas
capazes
de
trazer
esclarecimentos para que o julgamento seja o mais justo e adequado
possível. É de se insistir na aplicação da interdisciplinaridade da ciência do
Direito com a Medicina, especialmente as áreas da psicologia e da
39
RIO GRANDE DO SUL. Apelação Cível Nº. 70008795775, Sétima Câmara Cível, Tribunal de
Justiça do RS, Relator: José Carlos Teixeira Giorgis, Julgado em 23/06/2004.
25
psiquiatria. O perfil do juiz que lida com os conflitos de família também
precisa ser moldado de modo que ele possa se conscientizar da postura que
deve adotar nesses conflitos, de pacificador, despindo-se, ao máximo, da
posição moralista ou apenas crítica. Os juízes e tribunais, mais do que os
outros
operadores,
devem
estar
sensíveis
às
transformações
hermenêuticas, porquanto são eles que decidem os dramas humanos no seu
cotidiano. 40
São inúmeros os processos em que se encontra ameaça aos direitos
fundamentais no âmbito familiar sem que exista norma reguladora com a
solução apropriada. Em certas situações, é facultado ao julgador fazer uso
da analogia ou realizar uma interpretação dos dispositivos legais à luz dos
princípios constitucionais diante do caso particularizado. Porém, em
questões complexas esses mecanismos não se mostram satisfatórios para
efetivar os direitos fundamentais dos familiares. Nesses casos, estimula-se
a busca de solução do conflito pelas próprias partes envolvidas –
conciliação. Incluem-se as técnicas de diálogo e mediação buscando,
através da colaboração de outras áreas, viabilizar a melhor compreensão e
solução mais adequada das lides familiares. A intervenção do julgador em
situações de conflito só se justifica quando, após as tentativas de
composição, não há possibilidade de acordo, ou, se este é firmado,
apresenta condições de desequilíbrio. A discordância de interesses entre
familiares em circunstâncias como as questões que envolvem violência
física ou moral entre companheiros, ou abrangem os interesses dos filhos,
por exemplo, pode representar ameaça aos direitos fundamentais de quem
figura na posição mais submissa na relação familiar. Desta forma, mostra-se
imprescindível que o juiz de família, além de fazer uso dos argumentos
jurídico apontados pelas partes, utilize-se do diálogo e através da sua
escuta componha a resolução da lide. Essencial se faz que o juiz de família
considere e ouça o sofrimento dos familiares envolvidos para perceber
possíveis ameaças aos direitos fundamentais. Por vezes, nas convivências
familiares, o constrangimento de revelar os comportamentos íntimos acaba
40
PEREIRA, Sérgio Gischkow. Interpretação Jurídica e Aplicação do Direito: um exórdio necessário
ao estudo do Direito de Família. In: Estudos de Direito de Família. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2004. p. 26.
26
acobertando a permanência da violação contra o sujeito mais frágil da
relação.
O papel do legislador mostra-se de extrema importância quando se
trata de formular mecanismos capazes de garantir a eficácia dos direitos
fundamentais. A principal tarefa consiste na introdução, através da
legislação
infraconstitucional,
efetivação
dos
desempenha
a
valores
sua
de
preceitos
constitucionais.
atividade
de
capazes
Muitas
forma
de
vezes,
assegurar
o
demasiadamente
a
legislador
abstrata,
desvinculando-se das praticidades comunitárias e forenses, distante do
drama humano, vivenciado pelo juiz. Ao aprovar o texto normativo, é
impraticável a previsão exaustiva de todos os detalhes e variações dos
fatos. Tudo isto se acentua ao máximo no campo do Direito de Família, que
lida com os aspectos mais íntimos e delicados do ser humano.
Quando se trata de proteção aos direitos fundamentais nas relações
familiares, o Estado deve ter uma atuação positiva. Nas palavras de
Sumaya Saady Morhy Pereira, “... promover as condições necessárias para
o efetivo exercício dos direitos fundamentais, fornecendo às famílias os
recursos de que necessita para cumprir sua função, principalmente no que
diz respeito aos direitos sociais...”. 41 Compete ao Estado, portanto, o
desenvolvimento de políticas públicas destinadas à garantia dos direitos
basilares constantes da Carta Magna, quais sejam, a saúde, a educação, a
seguridade social, etc. O papel estatal consiste na manutenção de creches,
no fortalecimento da previdência social, do sistema de pensões, nas
atividades de lazer organizado, no aumento da ingerência e poder dos
juízes sobre o grupo familiar, além de outras modalidades. O agir estatal
deve consistir, também, na produção de benefícios à família, protegendo-a,
amparando-a, ajudando-a em suas funções primárias, trazendo-lhe meios de
melhor alimentar e educar os filhos, entre outras implementações. Ao
legislador incumbe a função de elaborar textos legais adequados à nova
realidade da família. Aos seus operadores (magistrados, Ministério Público,
advogados), o papel de interpretá-los consentaneamente, evitando a
41
PEREIRA, Sumaya Saady Morhy. Direito de Família e Proteção Constitucional à Família: a quem
se dirigem? In: A Ética da Convivência Familiar e sua Efetividade no Cotidiano dos Tribunais.
Tânia da Silva Pereira e Rodrigo da Cunha Pereira (coord.). Rio de Janeiro: Forense, 2006. p.
543.
27
desmedida entre as leis e a realidade social, o descompasso entre o povo e
o Direito. O estímulo ao bom desempenho destes encargos é necessário
para que o Direito não seja obstáculo, mas meio de construção de uma
sociedade nova e melhor.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com
base
na
revisão
histórica,
constatamos
que
a
constitucionalização dos institutos do Direito Civil é resultado de gradual
transformação
dos
valores
determinantes
da
sociedade.
No
Brasil,
progressivamente, os entendimentos vão se adaptando aos novos tempos
culminando na promulgação de uma Constituição baseada em valores que
enaltecem a pessoa humana.
Analisando as principais implicações desse novo Direito Civil mais
humanizado, concluímos que a família merece uma tutela diferenciada por
parte da legislação e da sociedade. Além disso, os princípios da dignidade
da pessoa humana e da igualdade, reconhecidos pela Carta Magna como
basilares no Estado Democrático de Direito, focam a tutela jurisdicional na
proteção ao desenvolvimento da personalidade e na igualdade, com
respeito, porém, às particularidades do caso em concreto.
Em relação à presença do afeto no âmbito das relações familiares,
antes não tomado em consideração, conclui-se que começa a ganhar maior
proteção no mundo jurídico através da legislação e da jurisprudência, sendo
a inclusão do sentimento aspecto a ser observado.
Podemos compreender que o sucesso do processo de interpretação
depende, prioritariamente, da integração dos dados coletados na sociedade,
bem como da integração desses com a construção valorativa constitucional.
Essas conclusões preliminares oferecem subsídios para responder à
questão central deste trabalho – é possível a interpretação das lides
familiares consoante os valores constitucionais de modo a tornar as
decisões judiciais mais efetivas? A resposta é afirmativa.
Quando nos deparamos com um caso concreto, no âmbito do Direito
de Família, é preciso analisar as suas peculiaridades. Cada família tem sua
28
construção própria. Aí nasce a necessidade de respeito por parte dos
operadores do Direito a essas particularidades e de imprescindível análise
casuística a fim de evitar violações aos direitos dos componentes da família.
A prática de interpretação conforme os princípios constitucionais
implica em um processo em que estão envolvidos, além dos valores tidos
como fundamentais, a aceitação de que a sociedade se transforma num
dinamismo que a legislação não consegue acompanhar. O descompasso
entre as regras jurídicas e as situações que são levadas ao Judiciário pode
ser suprido, de forma eficiente: basta que o intérprete utilize da ponderação
ao aplicar os primados essenciais da Constituição, adaptando-os às
particularidades do caso concreto.
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