Direitos das comunidades – Da retórica à prática
Carlos Manuel Serra
1. Notas introdutórias
Na sequência da Constituição de 1990, bem como da aprovação das
primeiras políticas governamentais no domínio dos recursos naturais,
resultantes do primeiro Governo democraticamente eleito, foi aprovado
o pacote eleitoral fundamental constituído pela trilogia Lei da Terra (Lei
n.º 19/97, de 1 de Outubro), Lei do Ambiente (Lei n.º 20/97, de 1 de
Outubro) e Lei de Florestas e Fauna Bravia (Lei n.º 10/99, de 7 de
Julho).
Esta legislação assenta no princípio democrático de governação,
conferindo às comunidades locais um amplo e significativo conjunto de
poderes e direitos no que toca aos recursos naturais, bem como
prevendo a criação de modalidades de gestão participativa. A própria
comunidade local emerge como pessoa jurídica, com todas as
consequências dai inerentes no plano do Direito1.
Comemora-se, este ano, dez anos de existência da Lei de Florestas e
Fauna Bravia (LFFB), à qual nos cingiremos no presente artigo, tempo
mais do que suficiente para realizar uma reflexão sobre o processo de
implementação,
levantando
os
principais
méritos
bem
como
constrangimentos encontrados na prática.
1
O conceito de comunidade local foi consagrado no n.º 1 do artigo 1 da Lei da Terra,
como “agrupamento de famílias e indivíduos, vivendo numa circunscrição territorial de
nível de localidade ou inferior, que visa a salvaguarda de interesses comuns através da
protecção de áreas habitacionais, áreas agrícolas, sejam cultivadas ou em pousio,
florestas, sítios de importância cultural, pastagens, fontes de água, áreas de caça e de
expansão”. Esta definição foi reforçada no n.º 5 do artigo 1 da Lei de Florestas e Fauna
Bravia, com o acréscimo da expressão “áreas de caça”.
1
Coloca-se, portanto, a seguinte questão: em que medida esta lei, bem
como a respectiva regulamentação, se encontra a ser correctamente
implementada, especialmente no que se refere aos direitos comunitários
na gestão dos recursos florestais? E, intrinsecamente associada a esta
pergunta, coloca-se uma outra: até que ponto esta nova legislação se
encontra a contribuir para a geração de desenvolvimento sustentável ao
nível local?
Um estudo levado a cabo em 2002 com o propósito de verificar se os
direitos das comunidades, derivados da nova legislação de recursos
naturais,
constituíam
realidade
efectiva
ou
mera
retórica,
nomeadamente no contexto do maneio comunitário dos recursos
naturais, culminou em diversas conclusões importantes: (1) a ausência
de
instrumentos
de
operacionalização
da
legislação,
(2)
fraco
conhecimento desta, (3) fraqueza das instituições locais, (4) e fraca
capacidade de fiscalização das actividades dos diferentes autores2.
Conforme veremos adiante, volvidos sensivelmente seis anos, a situação
pouco mudou.
Seleccionaremos três dos principais marcos da legislação de florestas e
fauna bravia, com o propósito de contribuir para debate e reflexão em
torno da sua efectiva e real implementação, nomeadamente: (1) o direito
à participação nos processos de consulta no âmbito do licenciamento
florestal; (2) a parceria como factor de desenvolvimento local; (3) e a
partilha de benefícios do uso e aproveitamento de recursos florestais.
Estes marcos serão sumariamente analisados, enfatizando-se as
dificuldades que se colocam à sua integral e correcta implementação,
em prol do grande objectivo governamental de combate à pobreza
absoluta, através do desenvolvimento local e do respeito pelos direitos
das comunidades.
NHANTUMBO, Isilda/MACQUEEN, Duncan, Direitos das Comunidades: Realidade ou
Retórica, DNFFB, DFID e IIED, Maputo, 2003, p. 43.
2
2
Para o efeito, servimo-nos fundamentalmente da experiência no
programa de trabalho levado a cabo, desde o ano de 2001, pelo Centro
de Formação Jurídica e Judiciária3, com o apoio técnico da FAO e
Financeiro do Reino dos Países Baixos, e que tem como centro de
atenção a trilogia de leis acima referida, encontrando-se estruturado em
diversos componentes, nomeadamente: (1) a formação jurídica de
diversos actores (2) a pesquisa, (3) a publicação de diversos trabalhos e
a (4) documentação e informação4. As componentes formação e
pesquisa permitiram recolher um manancial de dados do terreno, parte
destes encontra-se actualmente a ser tratado para oportuna divulgação.
II. O direito à participação nos processos de consulta no âmbito do
licenciamento florestal
A consulta comunitária constitui um dos grandes pilares da legislação
de recursos naturais, assumindo um espaço privilegiado nos processos
de atribuição de direitos de uso e aproveitamento da terra, e enquadrase plenamente no entendimento de legislador constitucional de que a
República de Moçambique é um Estado democrático5.
3 O Centro de Formação Jurídica e Judiciária (CFJJ) é uma instituição sob tutela do
Ministério da Justiça, criada pelo Conselho de Ministros em 1997, e que começou a
funcionar em pleno desde o ano de 2001, tem como objectivos fundamentais: “a
formação, a capacitação e a qualificação profissional nomeadamente de magistrados
judiciais e do ministério, conservadores, notários, assistentes jurídicos e outros
quadros do sector judiciários” e “a investigação e a realização de estudos na área do
direito, a organização de documentação e informação jurídica, bem como a
participação na educação legal do cidadão”.
4 Este programa, na realidade, já vai no seu terceiro projecto de implementação: o
primeiro decorreu entre os anos de 2001 e 2004, intitulando-se “Apoio ao Judiciário no
domínio das Leis de Terras, do Ambiente e de Florestas e Fauna Bravia”
(GCP/MOZ/069/NET.3); o segundo teve lugar no período de 2005 e 2008, tendo sido
denominado de “Apoio Jurídico Descentralizado e Capacitação para a Promoção do
Desenvolvimento Sustentável e Boa Governação a Nível Local” (GCP/MOZ/081/NET.3);
o terceiro encontra-se prestes a iniciar, com um horizonte temporal de três anos (2009
a 2011), e será subordinado ao lema “Promover o Uso de Terra e dos Recursos em Prol
de um Desenvolvimento Sustentável” (GCP/MOZ/096/NET.3).
5 Cfr. Artigos 1 e 3 da Constituição da República de Moçambique. Segundo o artigo 3,
“a República de Moçambique é um Estado de Direito, baseado no pluralismo de
expressão, na organização política democrática, no respeito e garantia dos direitos e
liberdades fundamentais do Homem”.
3
Na legislação de florestas e fauna bravia, foi igualmente consagrada
como um dos requisitos substanciais do licenciamento florestal, sendo
que, nos termos do artigo 35 do Regulamento da Lei de Florestas e
Fauna Bravia (RLFFB), aprovado pelo Decreto n.º 12/2002, de 6 de
Junho,
tivesse
recebido
a
designação
de
“auscultação”
das
comunidades locais6. Veja-se que, segundo o artigo 36, para que haja
efectiva
participação
da
comunidade
local,
impõe-se
uma
obrigatoriedade de fazer chegar a informação sobre os objectivos do
encontro com determinada antecedência7.
Um dos maiores problemas que se tem vindo a revelar, prende-se com a
tendência de perspectivar a consulta comunitária como mero requisito
formal, despido, portanto, de qualquer relevância material, fazendo com
que não haja grande esforço na realização de um processo de
participação efectivamente abrangente, dirigido à efectiva colecta da
opinião das comunidades residentes nas áreas de exploração dos
recursos naturais, com vista a contribuir para o combate à pobreza,
bem como a prosseguir e alcançar o desejável desenvolvimento local.
No caso mais frequente, a consulta é realizada somente ao nível das
lideranças comunitárias, na sequência do falso pressuposto de que
assim se cumpre o requisito legalmente imposto8. Na maior parte dos
casos, as comunidades não chegam realmente a participar no processo,
sendo somente avisadas, pelos seus líderes, de que foi tomada
determinada
decisão,
ainda
que
esta
os
venha
a
afectar
6 Segundo o n.º 1 do artigo 35, do RLFFB, a auscultação às comunidades locais
deverá ser realizada pelos órgãos da administração local do Estado, na presença do
próprio requerente da concessão florestal.
7 À luz do artigo 36, do RLFFB, implica a realização de uma reunião com a
comunidade local, a ser convocada pelo órgão da Administração Local onde se situa a
área da concessão florestal, “com a indicação expressa e clara dos objectivos do
encontro, com uma antecedência mínima de 15 dias assegurando o conhecimento e a
participação da comunidade”.
8
Segundo Nhantumbo e Macqueem, quando é feita (a consulta), é superficial e
resume-se no contacto com as estruturas administrativas e algumas autoridades
comunitárias que legitima o pedido através das suas assinaturas”. NHANTUMBO,
Izilda/MACQUEEN, Duncan, Direitos das Comunidades, Ob. Cit., p. 39.
4
significativamente. Noutras situações, quando as lideranças estão
desprovidas de escrúpulos, são facilmente manipuláveis e entregam
terras comunitárias mediante o pagamento de quantias monetárias ou
da atribuição de outro tipo de benefícios.
As
pseudo-consultas,
como
assim
lhes
chamaríamos,
decorrem,
portanto, de uma interpretação literal e errónea do disposto na
legislação, que confunde consultas comunitárias com consultas junto
de
lideranças
comunitárias,
ou
então
como
meras
e
pontuais
audiências públicas, significando, na prática, a realização de um único
encontro, muitas vezes mal conduzido9.
Sendo equacionadas como pressupostos essencialmente burocráticos, a
acrescer a uma lista de requisitos já por si considerada longa, pretendese perder com as mesmas o menos tempo possível. Aliás, para
determinados sectores, as consultas comunitárias são entendidas como
obstáculos ao processo de investimento, até porque, segundo estes, a
terra é propriedade do Estado, não fazendo sentido condicionar o
capital à observância de uma formalidade de discutível necessidade.
Claro que, no caso de ocorrência de uma pseudo-consulta, o processo
de investimento é verticalmente imposto à comunidade, e sem que haja,
grande parte das vezes, lugar à entrega de contrapartidas ou benefícios
justos da exploração de recursos naturais em áreas comunitárias, o que
ocasiona um enorme risco de ocorrência de conflitos, despoletando a
necessidade de aceder à justiça para obter a reposição dos direitos
violados.
Veja-se o exemplo abaixo colocado, referente a um caso de uma
consulta comunitária no contexto da legislação de terras, levantado pelo
Extraído de TANNER, Christopher/BALEIRA, Sérgio, O quadro legal de acesso aos
recursos naturais em Moçambique: o impacto das novas legislação e das consultas
comunitárias sobre as condições de vida locais, série Sociedade e Justiça, Volume 1,
Fevereiro de 2009, pp. 6 – 7.
9
5
CFJJ, no decurso de 2005, e que fornece elementos bastante úteis para
reflexão10.
Projecto Agrícola – Província de Maputo
Este caso envolve 500 hectares na zona centro sul da Província de Maputo. A área foi
definida como ‘terra baldia’ pelos técnicos dos SPGC no processo do pedido de terra, o
que implica que ninguém a estava a usar e que estava portanto disponível para
atribuição a um novo requerente.
Contudo, para a comunidade, esta terra está longe de ser ‘terra baldia’ – tem
importância religiosa (encontram-se aí sepulturas), e está a ser mantida para uso
futuro e para os seus filhos.
Um cidadão Moçambicano requereu o DUAT sobre a área e, de acordo com o processo,
foi feita uma consulta, que foi assinada pela comunidade. A consulta parece ter sido
uma visita à área pelo requerente “acompanhado por dois amigos” que disse querer
ocupar 500 hectares.
Os líderes comunitários disseram que era provável que pudesse ter 150 hectares, mas
que teria que voltar de novo – todos os membros da comunidade deviam estar
presentes. O requerente nunca voltou.
Os líderes comunitários insistem em que nunca assinaram qualquer acta ou outro
documento, mas aparentemente as assinaturas de ‘habitantes locais’ encontram-se no
documento. O Chefe de Posto da Localidade (o posto governamental de nível mais
baixo) confirma que assinaram …
A comunidade local nega consistentemente que tenha tido lugar qualquer consulta
(isto numa reunião de 17 pessoas incluindo o líder comunitário). Entretanto, a terra
foi ocupada pelo requerente, que desde então ‘a vendeu’ a um outro investidor que
quer levar a cabo actividades agro-pecuárias.
Fonte: Moisés (2005); Seuane e Rivers-Moore (2005)
A isto acrescentamos o envolvimento de funcionários da Administração
Pública,
individualidades
influentes
da
nomenclatura
política
e
empresarial e líderes comunitários no cometimento de ilegalidades,
nomeadamente actos de abuso de poder, corrupção11, entre outros,
fragilizando sobremaneira o processo de implementação do quadro legal
sobre recursos naturais12.
Importa frisar que, nestes casos, quando menos informação for
veiculada ou partilhada melhor. O objectivo é, tão-somente, delapidar
até à exaustão os recursos florestais, com vista à exportação de madeira
Veja-se TANNER, Christopher/BALEIRA, Sérgio, O quadro legal (…), p. 16.
Veja-se os dois relatórios produzidos pela investigadora Catherine Mackenzie,
referente à situação florestal na província da Zambézia: Administração da Floresta na
Zambézia – Um Take Away Chinês, realizado para o Fórum de Organizações Não
Governamentais da Zambézia (FONDZA), 2006; e Tristezas Tropicais – Não há mais
madeira, realizado para o Movimento Amigos da Floresta (Não publicado), 2008.
12 As ilegalidades ocorridas no processo de implementação da legislação foram
sistematicamente referidas em quase todas as acções de formação conduzidas pelo
Centro de Formação Jurídica e Judiciária, de 2001 a 2008.
10
11
6
na forma bruta (em toros), gerando benefícios para uma minoria
privilegiada, através do cometimento de inúmeras ilegalidades13, e com
recurso à exploração intensiva de mão-de-obra barata, em situação de
semi-escravatura14.
Como escrevemos anteriormente, “para que se cumpra o requisito
formal, a consulta pode esgotar-se num único tempo (mesmo que não
suficiente para se fazer uma verdadeira auscultação das sensibilidades),
em um único espaço físico (mesmo que assim não se consiga a
necessária cobertura da comunidade local) e junto de supostos
representantes da comunidade (não se conseguindo fazer chegar a
informação ao nível da base). Como resultado, não há lugar à
legitimação necessária do processo de consulta, gerando-se um clima de
desconfiança forte, o qual muitas vezes degenera em situações mais ou
menos complexas e turbulentas de conflitualidade, com inúmeras
consequências negativas para todas as partes envolvidas”15.
III. A parceria como factor de desenvolvimento local
O artigo 35 do RLFFB faz alusão à figura da parceria entre o investidor
e
a
comunidade
local16,
enquadrando-se
na
perspectivação
constitucional da República de Moçambique como Estado de justiça
constitucional17.
MACKENZIE, 2006.
TERRA FIRMA, Global Forest Product Chains – A Mozambique case study identifying
challenges and opportunities for China through a wood commodity chain sustainability,
Prepared for IIED and FGLG, Maputo, 2007, pp. 45 – 46.
15 In. Prefácio à 2.ª Edição do Manual de Delimitação de Terras das Comunidades, da
Comissão Interministerial para a Revisão da Lei de Terras, com o apoio técnico da FAO
e Financeiro do Reino dos Países Baixos.
16 Segundo o n.º 2 do artigo 35, do RLFFB, sempre que a área que constitua objecto do
pedido de concessão florestal esteja numa zona, total ou parcialmente ocupada pelas
comunidades locais, haverá lugar à realização de uma negociação dos termos e
condições de exploração entre as comunidades locais, o requerente e o Estado,
traduzida na figura da parceria.
17
A parceria enquadra-se no espírito de um dos pilares fundamentais da Constituição
da República de Moçambique, plasmado no artigo 1, que se traduz na configuração do
Estado moçambicano como de justiça social, e no artigo 11, que define como um dos
13
14
7
A realidade prática tem demonstrado que a parceria constitui palavra
de ordem politicamente correcta nas questões de desenvolvimento rural
e promoção dos direitos das comunidades locais.
Antes de mais, importa conceber a parceria como um instrumento de
carácter não figurativo, que, em termos de reciprocidade, se encontra ao
serviço do desenvolvimento sustentável, visto que, olhando para a sua
génese, encontramos todos os elementos para implementar, em termos
práticos, uma maior justiça social, buscando a distribuição de parte do
valor do investimento privado para o desenvolvimento local, criando
benefícios directos ou indirectos para as comunidades locais.
Conforme defenderam Isilda Nhantumbo e Duncan Macqueem, “noutros
países, as parcerias entre o sector privado e as comunidades têm
trazido benefícios mútuos. O aspecto central é que os dois lados têm
que perceber as vantagens (preferencialmente vantagens financeiras)
resultantes das parcerias. Ao mesmo tempo as parcerias apenas
funcionam quando integram ou são estabelecidas entre indivíduos
capacitados a negociar, quando há clareza na legislação e existe um
processo e contrato formal para legitimar as negociações e um sistema
independente de aplicar a lei e repreender as transgressões. Neste
momento estes mecanismos de operacionalização não existem e urge o
seu desenvolvimento. (…) “Parcerias mutuamente benéficas são um
veículo para a redução da pobreza e tal objectivo poderá ser alcançado
através da regulamentação do sector privado18.
Na sua variante mais simples – Investidor/comunidade local – a
parceria traduz-se no possível cumprimento das seguintes obrigações:
“o investidor compromete-se a facilitar o exercício de alguns dos direitos
fundamentais das comunidades, como o direito ao trabalho (criando
seus objectivos fundamentais, “a edificação de uma sociedade de justiça social e a
criação de bem-estar material, espiritual e de qualidade de vida dos cidadãos”.
18
NHANTUMBO, Isilda/MACQUEEN, Duncan, Ob. Cit., pp. 38 - 39.
8
directa ou indirectamente postos de trabalho) à educação (através da
construção, reabilitação ou apetrechamento de uma escola), à saúde
(através da construção, reabilitação ou apetrechamento de uma
unidade sanitária), de acesso à água, enquanto direito fundamental
constitucionalmente não previsto (fazendo chegar este importante
recurso para satisfação de inúmeros usos legalmente protegidos), à
habitação (garantindo o apoio na construção de habitações das
comunidades locais), entre outros. Já a comunidade local, por sua vez,
compromete-se a facilitar o acesso do investidor às terras comunitárias,
bem como a fornecer recursos naturais solicitados, como ainda a
fornecer a mão-de-obra necessária, entre outras obrigações”19.
A realidade levantada pelos investigadores do CFJJ apresenta alguns
exemplos paradigmáticos de parcerias, nos quais há, efectivamente, um
comprometimento sério por parte do investidor, em primeira linha, bem
como das comunidades locais, que são chamadas a participar
activamente na partilha de benefícios ou, inclusivamente, no processo
de investimento propriamente dito20. Dois aspectos imediatamente
positivos: em primeiro lugar, as comunidades locais entram na rota do
desenvolvimento; em segundo lugar, os índices de conflitualidade são
baixos, dado o grau de satisfação alcançado.
Contudo, os dados recolhidos no terreno revelam que a maioria das
experiências
está
longe
de
constituir
um
bom
exemplo
de
implementação do espírito e letra da lei, especialmente no que diz
respeito à razão de ser da consagração legal das parcerias. Os termos
das parcerias são, por vezes, mal elaborados, gerando situações de real
desigualdade, ou, então, não são total ou parcialmente cumpridos21.
Nesse sentido, o CFJJ tem vindo a constatar uma multiplicidade de
19
SERRA, Carlos, Desafios e Constrangimentos Legais das Parcerias entre as
Comunidades Locais e o Sector Privado na Gestão dos Recursos Naturais em
Moçambique, documento apresentado publicamente em seminário organizado pela
IUCN – Moçambique, no dia 8 de Agosto de 2006, p. 2.
20
TANNER, Christopher/BALEIRA, Sérgio, O quadro legal (…), pp. 13 – 16.
21 Idem, pp. 16 – 19.
9
casos de falta de cumprimento dos compromissos assumidos pelos
investidores aquando da celebração de parcerias, ocasionando um
profundo descontentamento no seio das comunidades locais, o que
pode conduzir à ocorrência de situações de conflito eminente ou real.
Não deixa de ser relevante que, para além da falta de cumprimento dos
termos da parceria, a legislação seja bastante vaga sobre o “tipo de bens
e serviços que devem ser contemplados durante as negociações e a
monitoria do processo”22.
Mais uma vez estamos perante casos em que a lei foi formalmente
cumprida, tendo sido celebrada a necessária parceria entre o investidor
e a comunidade local, mas sem que tal acordo venha a produzir
consequências no plano material, isto é, gerando benefícios reais para
as comunidades locais23. As razões podem advir do próprio conteúdo do
contrato, do silêncio da lei no que toca à previsão de mecanismos de
implementação, mas também da falta de sinceridade de alguns dos
investidores, bem como de outros parceiros.
Relativamente à exploração florestal, em particular, este cenário decorre
das dificuldades surgidas no processo de implementação das primeiras
concessões
florestais,
regime
privilegiado
por
excelência
para
construção de parcerias. De acordo com alguns estudos realizados, as
concessões não vieram, como se esperava, melhorar o quadro da
exploração florestal em Moçambique, substituindo gradualmente as
polémicas e destrutivas licenças simples, rumo à sustentabilidade
florestal24. Pelo contrário, tendo sido permitida a entrada de muitos
operadores sem o adequado perfil, associado à extrema dificuldade de
controlo por parte das entidades públicas, e tendo presente a existência
NHANTUMBO, Isilda/MACQUEEN, Duncan, Ob. Cit., p. 39.
Veja-se, nesse sentido, OGLE, Alan/NHANTUMBO, Isilda, Improving the
Competitiveness of the Timber and Wood Sector in Mozambique, Prepared for the
Confederation of Mozambican Business Associations under the Mozambique Trade
and Investment project, USAID, Maputo, 2006, p. 37.
24 MACKENZIE, 2006 e 2008.
22
23
10
de crime organizado no sector florestal, verificou-se que, afinal, a
maioria dos concessionários opera, presentemente, como se titulares de
licenças simples se tratassem, actuando sem o devido plano de maneio,
ou com um plano altamente inadequado para a conservação da floresta,
ou ainda simplesmente passando por cima de toda a regulamentação,
limitando-se a promover a extracção pura e simples das espécies com
valor comercial, até ao seu esgotamento.
Obviamente que, com semelhante perfil de operadores, muito pouco se
pode esperar em termos de respeito pelos direitos das comunidades
locais, havendo inclusivamente casos em que aqueles vedam o acesso
da população locais a áreas comunitárias, incluindo zonas sagradas, ou
aos recursos necessários à sua sobrevivência, violando expressamente o
disposto na legislação sobre esta matéria25. Ainda que haja lugar à
celebração de parcerias, no âmbito das quais são definidas obrigações
de parte a parte, estas correm o risco de, em grande parte dos casos,
mais não passarem do que letra morta, originando situações de
eminente conflito entre as comunidades e os concessionários. Sempre
que uma comunidade não está contente com o operador florestal,
manifesta-se imediatamente através da invasão das terras sob o regime
da concessão florestal, praticando a caça, queimadas, agricultura
itinerante e abate de árvores, caçando, praticando a agricultura
itinerante26.
A isto acresça-se o facto de não existir nenhuma modalidade de
monitoramento relativamente aos compromissos sociais dos operadores
florestais, ao impacto social das actividades florestais, bem como aos
Segundo o artigo 32 do RLFFB, constitui obrigação do concessionário, entre outras,
“Permitir o acesso das comunidades locais aos recursos naturais de que estes careçam
para o consumo próprio nos termos da Lei n.º 10/99, de 7 de Julho”
26
Este tipo de situações tem sido constantemente reportado pelos participantes aos
cursos realizados no programa de capacitação de paralegais em legislação dos
recursos naturais e desenvolvimento, em curso no CFJJ desde 2006. A maior parte
dos formandos trabalham ao nível local, junto das comunidades rurais, e, como tal,
alimentam o processo de formação com exemplos da vida real.
25
11
padrões de mão-de-obra dos empregados florestais, cujos salários e
regalias se encontram bem abaixo do mínimo legalmente estipulado27.
IV. A partilha de benefícios do uso e aproveitamento de recursos
naturais
Em torno deste assunto muitas linhas se têm escrito, fazendo com que
seja, quase certamente, o que mais atenção tem merecido em toda a
problemática
florestal.
Na
sequência
da
aprovação
do
RLFFB,
determinou-se que “vinte por cento de qualquer taxa de exploração
florestal ou faunística destina-se ao benefício das comunidades locais
da área onde foram extraídos os recursos”28. Através do Diploma
Ministerial n.º 93/2005, de 4 de Maio, foram aprovados mecanismos de
canalização e utilização dos vinte por cento das taxas florestais e
faunísticas.
De acordo com os cerca de três anos de implementação do Diploma
Ministerial dos 20%, várias são as ilações que podem ser extraídas a
partir da realidade:
Em primeiro lugar, um pouco por todo o País, algumas centenas de
comunidades
locais
começaram
a
ser
beneficiadas
através
da
percentagem de 20% das taxas de exploração florestal, gerando,
nalguns casos, uma melhoria das condições de vida. Porém, a cobertura
não foi total, visto haver ainda muitas comunidades que não foram
beneficiadas ou que, por razões diversas, foram preteridas em favor de
outras, não obstante fazerem parte da mesma área onde decorreu a
exploração florestal.
Seguidamente, após um período em que muita polémica foi levantada
na interpretação do Diploma dos 20%, causando diversas experiências
27
28
NHANTUMBO, Isilda/MACQUEEN, Duncan, Ob. Cit., p. 40.
Cfr. Artigo 102/1, do RLFFB.
12
na
implementação,
designadamente
quanto
aos
mecanismos
de
canalização e quanto ao próprio destino a dar aos montantes a
transferir, foi elaborado um Manual de Procedimentos, buscando o
desejável esclarecimento e necessária harmonização. Ainda assim
persistem problemas ao nível da própria modalidade de canalização,
havendo casos em que as somas monetárias são transferidas para os
órgãos locais de Estado29, em vez de darem entrada em contas abertas
para as comunidades beneficiárias, deixando espaço para as mais
diversas e erróneas interpretações, havendo quem entenda que, assim,
o dinheiro possa não chegar, total ou parcialmente, ao destino, podendo
estar a receber aplicação indevida30.
Depois, o exercício do direito aos 20% encontra-se condicionado, a
médio e longo prazo, à sustentabilidade com que o recurso florestal é
gerido e utilizado. Caso não se proteja devidamente a floresta, não
haverá, para as gerações futuras, quaisquer benefícios da exploração
florestal, e, com isto, serão comprometidos todos objectivos que foram
definidos aquando da consagração deste direito das comunidades
locais.
Há um défice informativo no processo de gestão das taxas de exploração
dos recursos florestais, e que ocorre desde o início. Isto é, em momento
algum as comunidades recebem a informação que, das suas áreas,
foram explorados X metros³ de madeira, que geraram para os cofres do
Estado Y mil meticais, sobre os quais deverá incidir uma percentagem
de 20% para as comunidades das áreas de exploração florestal31. Tudo
se passa demasiado no final do processo, no qual as comunidades
recebem a informação de que irão beneficiar-se de determinado
É o caso da decisão do Governo da Província de Nampula.
Uma das justificações é que não existem estabelecimentos bancários na maioria dos
distritos, sabendo que o Diploma dos 20% determina a abertura de uma conta
bancária em nome da comunidade beneficiária. Outro é que os montantes são, por
vezes, tão insignificantes, que não justificam a abertura de uma conta, dado que esta
pressupõe igualmente custos.
31
MACKENZIE, 2008.
29
30
13
montante monetário, lançado em abstracto, levando-as a não fazer uso
dos adequados mecanismos de pressão para o exercício de direitos.
Coloca-se ainda a questão de saber se os eventuais benefícios advindos
da legislação, que no que diz respeito aos 20%, quer ainda derivados
das parcerias eventualmente celebradas, são susceptíveis de compensar
a pressão que se encontra a ser realizada sobre os recursos naturais,
especialmente os florestais, ao que nós respondemos com muitas
reservas, dada a crescente problemática ambiental que caracteriza o
País32.
Para além dos 20%, importa fazer referência a outros mecanismos de
criação de benefícios para as comunidades, dos quais emerge a
possibilidade de estas se tornarem concessionárias florestais, nos
termos da LFFB. Neste caso, uma vez reunidas as condições legalmente
definidas, caberia à comunidade gerir a sua própria concessão florestal,
na sequência da celebração de um contrato com o Estado, por um prazo
até 50 anos. Porém, salvo raras excepções, as comunidades locais têm
ficado à margem do processo de celebração de contratos de concessão
florestal.
5. Considerações finais
Moçambique possui um quadro jurídico-legal no domínio dos recursos
naturais consideravelmente notório, especialmente no reconhecimento
dos direitos das comunidades como salvaguarda do desenvolvimento
sustentável a partir do nível local, através da consagração de um
conjunto diversificado de mecanismos, entre os quais destacamos a
consulta comunitária, a parceria e o direito aos 20%.
32
Veja-se NHANTUMBO, Isilda/MACQUEEN, Duncan, Ob. Cit., p. 40.
14
Nos já cerca de 10 anos da LFFB, várias foram as experiências positivas
no que se refere à implementação deste instrumento legal e da sua
regulamentação. Estas experiências estão associadas normalmente a
um envolvimento seriamente comprometido das instituições do Estado,
bem como da existência de operadores privados intrinsecamente
interessados no cumprimento da lei e no bom relacionamento com as
comunidades locais, bem com no apoio prestado por organizações da
sociedade civil às comunidades locais.
Porém, abundam demasiados exemplos negativos, revelando, entre
outros aspectos, uma intenção excessivamente centrada no mero
cumprimento formal da lei ou, então, simplesmente no seu não
cumprimento, como são exemplos paradigmáticos as pseudo-consultas,
as pseudo-parcerias ou os constrangimentos na canalização de 20% a
comunidades localizadas em áreas onde decorrem actividades de
exploração florestal.
Tudo isto nos conduz para a necessidade de equacionar como transitar
da teoria para a prática, isto é, como tornar implementável um quadro
jurídico-legal que assenta no postulado do desenvolvimento sustentável,
bem como no respeito pelos direitos fundamentais dos cidadãos. A
realidade demonstra tão-somente um sério défice na aplicação da lei,
apesar dos inúmeros programas de divulgação e disseminação dos
instrumentos jurídico-legais.
Urge
trabalhar
na
definição
de
mecanismos
direccionados
à
implementação da legislação, autêntico calcanhar de Aquiles do sistema
jurídico moçambicano, e na concepção de uma modalidade de
monitoramento da referida implementação, susceptível de garantir a
observância da lei e, simultaneamente, alimentar o próprio processo de
actualização e melhoria do quadro jurídico-legal, sempre que se
constarem erros, omissões, imprecisões e contradições cometidos pelo
legislador.
15
Há que prosseguir o trabalho junto das entidades públicas responsáveis
pela implementação, não apenas em termos de aperfeiçoamento do
processo propriamente dito, mas também na dissipação de eventuais
interpretações
incorrectas
ou
eventualmente
contraditórias
da
legislação, especialmente no domínio das florestas e fauna bravia.
No capítulo da administração da justiça, espera-se do judiciário uma
maior intervenção quando estão em causa situações de violação da lei e
dos direitos fundamentais das comunidades locais, particularmente do
Ministério Público, órgão que tem a defesa da legalidade como
atribuição constitucional33.
Aguarda-se por parte do Estado uma maior enfoque na criação de
condições
para
o
exercício
real
do
direito
constitucionalmente
consagrado de acesso à justiça34, quer através do fortalecimento da
instituição pública que tem, por excelência, um papel fundamental no
apoio aos cidadãos mais carenciados – o Instituto de Assistência e
Patrocínio Judiciário (IPAJ), quer na legitimação da intervenção de
outros actores que, actualmente, contribuem para reduzir o fosso entre
a justiça e os cidadãos, como é o caso da figura do Paralegal35.
Finalmente, uma atenção especial para o processo legislativo, que deve
necessariamente pautar-se pela harmonia, simplicidade e objectividade,
bem como pela definição de mecanismos de implementação de cada
novo instrumento jurídico-legal aprovado, prevendo, entre outros
aspectos importantes, um programa de monitoria e avaliação.
Cfr. Artigo 236, da Constituição da República de Moçambique.
Cfr. Artigo 62, da Constituição da República de Moçambique.
35
O Paralegal foi definido ao nível do programa de formação conduzido pelo CFJJ,
como uma peça chave para facilitar o acesso à justiça e promover acções e
intervenções para que os direitos resultam em mais benefícios concretos, contribuindo
ao alívio da pobreza. A justiça, e no meio do processo, o Paralegal, visto como
formador e como conselheiro, são elementos chaves na luta contra a pobreza, e para
um desenvolvimento equitativo e sustentável onde todos os moçambicanos participem
e ganhem do exercício construtivo e eficaz dos direitos atribuídos por lei, e
consagrados na Constituição da República de Moçambique”.
33
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16
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