Bruno Oliveira
Maria Helena Cunha
Natacha Rena
[Orgs.]
uma situação política
do século XXI
A DUO Editorial tem um enorme prazer em apresentar, em meios digitais, a publicação Arte e Espaço: uma situação política do século XXI, um
dos importantes resultados de organização do conteúdo do curso homônimo realizado em 2014. Tivemos a oportunidade de contar com três
alunos estrangeiros e com representantes de dezoito estados das cinco
regiões brasileiras, o que enriquece o debate com visões de diversas
realidades do País.
A Região Sudeste abarca um número considerável de inscritos (75%) em
função de estarmos sediados em Belo Horizonte (MG), e realizamos o
curso por meio da legislação municipal de incentivo à cultura, que nos
levou ao compromisso de considerarmos, em percentuais, um número
maior de vagas para a cidade e para o estado de Minas Gerais. No entanto, já na construção inicial da ideia do curso, baseados na lógica da
educação a distância e na possibilidade de ampliação do espaço virtual,
prevíamos dentro dos critérios de seleção um percentual de vagas que
abarcasse pessoas de outras localidades e realidades diversas, incentivando a discussão e a construção coletiva do conhecimento capaz de
gerar esta publicação ao final dos trabalhos.
Dessa forma, a própria estruturação deste curso já nasceu com a perspectiva de publicar seus resultados, levando à organização dos conteúdos produzidos pelos professores e pelo conteúdo gerado durante a
sua realização no fórum de discussão, ampliando exponencialmente
seu alcance e sua capacidade de multiplicação e reverberação para um
grande público. Esta iniciativa significa ampliar a capacidade de circulação de conhecimentos específicos para além dos alunos que tiveram a
oportunidade de acesso gratuito ao curso, contribuindo para suprir uma
deficiência no campo editorial de arte e cultura na contemporaneidade.
Por fim, destacamos que, para a realização de projetos voltados para
a formação cultural, estruturada em um curso a distância e em uma
publicação on-line, de amplitude nacional, é preciso o desenvolvimento
de um trabalho articulado e cooperativo, o que leva à construção de
parcerias permanentes e propositivas. Por esse trabalho precisamos
agradecer a todos os parceiros, patrocinadores, apoiadores, produtores,
monitores, técnicos, professores, coordenadores e, principalmente, aos
alunos participantes, que justificam nosso empenho e nosso trabalho.
Maria Helena Cunha
DUO Editorial
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Reconsiderar as possibilidades da arte e sua relação com o espaço é
um importante desafio que nos apresentam a contemporaneidade e as
variadas faces do século XXI. Num tempo de contradições cada vez mais
latentes e alto desgaste de vários modelos institucionais estabelecidos,
estamos diante de uma sociedade que recusa os limites estabelecidos,
sejam eles físicos, geográficos, ideológicos ou de identidade.
Não por acaso, os movimentos sociais e culturais assumem, deliberadamente, inúmeros papéis, não apenas reafirmando sua posição histórica
de enfrentamento da ordem estabelecida. Ponto nevrálgico da crítica,
esses movimentos superam o lugar da oposição para se assumirem
como protagonistas estratégicos de uma reconfiguração espacial, econômica e criativa em andamento.
Nesse sentido, discutir as múltiplas dimensões, dissonantes ou não, da
estreita relação entre arte e espaço numa perspectiva política torna-se
fundamental para o entendimento da livre expressão neste século. E,
para além da reflexão, esta publicação se oferece como ponto de referência em que se estabelecem diálogos primordiais para esta e futuras
gerações.
Este livro apresenta o registro material das discussões entre artistas
plásticos, educadores, arquitetos e designers, durante o curso a distância Arte e Espaço: uma situação política no século XXI, da DUO Editorial.
No entorno das várias temáticas abordadas, direta e transversalmente,
a oportunidade de realimentar de forma contínua o sentido crítico, a
visão multidisciplinar e o fortalecimento da cultura por viés diferenciado
e transformador, que transcende o fomento como único fator relevante
à cadeia produtiva.
Solanda Steckelberg
Superintendente de Cultura do Banco Bonsucesso
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Apresentação
Prefácio
Reginaldo Luiz Cardoso | Ricardo Macêdo
Arte espaço e biopolítica
Natacha Rena
Arte, espaço e comunidade:
modos de endereçamento e
produção de singularidade
Simone Parrela Tostes
Arte e cotidiano:
aproximações táticas
Paula Bruzzi Berquó
Arte contemporânea,
texturas, território
Isabela Prado
Relações entre arte e
tecnologia: traços históricos
e desdobramentos atuais
Eduardo de Jesus
Artesanias do desejo
Marcela Silviano Brandão Lopes
Apontamentos sobre educação a distância
e construções coletivas de conhecimento:
a experiência do curso arte e espaço –
uma situação política do século xx
Patricia Faria | Maria Helena Cunha
arte, espaço e política
Este projeto Arte e Espaço: uma situação política do século XXI,
apresentado nesta publicação on-line, acontece em um momento de amplo desenvolvimento de práticas interdisciplinares
e indisciplinares no campo das artes e do ativismo urbano brasileiro. Para abordar essa temática criou-se, primeiramente, o
uso de uma plataforma on-line que pudesse ativar discussões
envolvendo a arte em seu campo expandido, como um modo
constitutivo de espacialidades múltiplas, que possibilite a ampliação democrática do uso das cidades, assumindo a diversidade como presença ética fundamental para a ampliação das
relações sociais e políticas territoriais.
Foi objetivo desta iniciativa, entre pesquisadores e professores
do Indisciplinar, profissionais da Inspire e outros parceiros, a
constituição de um campo teórico que abordasse a potência
presente no cruzamento da arte com ações políticas, produzindo novos campos de conhecimento, assim como formas híbridas de produção de modos de vida no território. Aposta-se que há um novo sujeito político multitudinário (nem
povo, nem massa) que se recusa a participar como artista em
processos que, de forma neutra ou alienada, possam simplesmente colaborar com a construção de espaços neoliberais produzidos pelo capitalismo global. A ideia dessa proposta (que
agregou um curso a distância on-line e esta publicação digital
colaborativa) foi incentivar a constituição de uma cartografia
composta por ações artísticas, ou estéticas, fortemente atravessadas por conteúdos políticos ativados por uma subjetividade que deseja explicitamente democracia real. Para traçar
8
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essa cartografia buscaram-se alguns eixos temáticos que pudessem criar platôs nos quais surgissem trabalhos e ações
que fossem contaminados pelo desejo (do artista ou dos coletivos) de produzir de maneira menos autoral e mais colaborativa,
muitas vezes anônima, configurando intervenções espaciais
mais políticas ou, até mesmo, ativistas. Observa-se e experimenta-se a existência de uma condição criativa e de produção
em redes ubíquas que acontecem de forma mais horizontal,
produzindo espacialidades que possibilitam a existência de
resistências positivas e afetivas, configuradas por uma lógica
que não a das vanguardas combativas. Diferentemente das
vanguardas, a grande maioria das referências cartografadas
existe muito mais como produção singular-plural performática, que contamina ou ativa o ato artístico-político e social por
meio de ocupações efêmeras, muitas vezes festivas, anônimas
ou produzidas horizontalmente.
Esse processo, envolvendo participantes de todo o Brasil, acabou por configurar uma cartografia realizada de forma colaborativa a partir de textos produzidos pelos professores do curso
e da plataforma EAD, o que possibilitou o diálogo cotidiano
entre professores e alunos. A cada momento em que um professor assumia um módulo do curso, a proposta era que todos
lessem um texto produzido pelo professor, que o finalizava
com três perguntas. Ao longo de 10 dias todos comentavam,
respondendo às perguntas, e isto era acompanhado por respostas e comentários de todos, inclusive do professor. Após
a finalização dessa etapa, iniciou-se um trabalho de coleta
dos comentários mais significativos aos olhos de cada um dos
professores para que estes compusessem o conteúdo da publicação do livro digital. Todos os textos dos professores que
foram usados como base para as discussões cotidianas estão
aqui presentes, assim como um prefácio redigido por alguns
alunos selecionados como mais ativos pelos professores e posteriormente convidados para escrever conjuntamente na organização desta publicação. Também há um texto que finaliza o
livro e analisa todo o processo do curso EAD, que vem sendo
adotado pela Inspire ao longo dos últimos anos.
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O conteúdo do curso Arte e Espaço: uma situação política do século XXI foi estruturado de maneira transversal, assumindo-se
que a produção artística não está mais contida exclusivamente
em uma esfera particular e limitada. Torna-se fundamental,
portanto, perceber as práticas disciplinares e técnicas anteriormente associadas ao campo da arte que não mais comportam a produção multitudinária. O primeiro debate, proposto
para a turma pela professora Natacha Rena sobre Arte, espaço e biopolítica, tem como base a percepção da metrópole
como palco de disputa: seria nesses territórios, cujo controle
dos corpos e as ações biopolíticas se articulam de maneira
intensiva e estruturante, que se poderiam perceber expressões
potentes de resistência para além dos conceitos de representação e identidade. O texto afirma, ainda, que “há uma construção em tempos táticos e estratégicos de resistências mundiais
contra o urbanismo neoliberal, que se configura performaticamente nas ruas e nas redes, utilizando ao mesmo tempo
processos destituintes (via ação direta, manifestações, ações
judiciais) e constituintes (via ocupas e acampadas, produção de
cultura, arte, textos, vídeos, imagens e novos modos de vida)”.
O módulo seguinte, articulado pela professora Simone Parrela
Tostes sobre Arte, espaço e comunidade: modos de endereçamento e produção de singularidade, se desenvolve a partir das
noções de comunidade e diferença. É necessário perceber,
nesse ponto, como diversas ações desenvolvidas em prol de
uma ideia de comunidade são articuladas como estratégicas
para interesses corporativos e institucionais. A dimensão autêntica, potente e livre do compartilhamento do comum é tanto
o vetor de desvio e subversão da lógica mercadológica quanto
o ponto de captura utilizado pelo capital. A ideia de participação, configurada como um processo com metas, propostas e
expectativas bem definidas, é um exemplo desse esvaziamento
da capacidade de criar e produzir diferença da comunidade,
reduzindo a potência do outro a um receptor de comandos por
parte de uma determinada ordem e determinado poder. E sendo possível, ainda assim, operar nas brechas das estruturas
de controle, a partir de reinvenção e reconstrução de novas
relações.
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Nesse sentido, a professora Paula Bruzzi, no texto Arte e cotidiano: aproximações táticas, discorre sobre as práticas comuns
e a dimensão política: o cotidiano, em contraponto a um domínio estratégico da vida, se articula a partir de uma potência
tática, sem limites de dentro e fora. Ao rastrear diversas iniciativas de apropriação das superfícies urbanas, das ocupações
coletivas e graffitis anônimos à produção dos iconoclassistas,
podemos encontrar iniciativas que não se reduzem a lógicas
de achatamento da pluralidade e das diferenças, e contribuem
para a ativação de redes de partilha de um mundo comum.
Em Arte contemporânea, texturas, território, a professora
Isabela Prado contextualiza o debate sobre especificidade e
orientação aos sites no campo da arte. Nessa perspectiva torna-se necessário considerar o território com suas dimensões
tanto simbólicas quanto materiais: ao apresentar obras de artistas como Gabriel Orozco, Mona Hatoum, Cildo Meireles e
Francis Alÿs, pode-se perceber maior complexidade no debate
desse lugar da arte em relação às ordens de homogeneização
do território e à crítica institucional.
O penúltimo módulo do projeto propõe uma discussão sobre
as interações entre a tecnologia e o campo da arte. Relações
entre arte e tecnologia: traços históricos e desdobramentos atuais, do professor Eduardo de Jesus, constrói um panorama
dessas aproximações, desde os procedimentos fotográficos
aos instrumentos de comunicação a distância e às redes sociais. Também relevante é o processo de subversão desses
instrumentos e seus usos como suportes artísticos por artistas
como Marcel Duchamp, Walter Ruttman e René Clair. Com os
novos suportes e processos artísticos, desestruturando-se as
formas tradicionais das obras de arte, “tornou-se necessário
reivindicar outras formas de compreensão” para as mesmas:
provocavam outro tipo de experiência, ainda mais complexa,
do mundo e da arte.
maiores, a experiência cotidiana se apresenta como um escape
a um sistema político-corporal conformado pelo capitalismo
cognitivo. “O que é produzido [...] não são apenas bens materiais, mas relações sociais e formas de vida concretas” (NEGRI;
HARDT, 2005, p.135). Alerta, ao final, para os riscos de captura
por processos de capitalização da experiência e da vida: constituir linhas de fuga torna-se, portanto, um exercício essencial.
Em tempos de capitalismo cognitivo, criativo, flexível, conseguiu-se levantar, durante todo o processo, uma miríade de
ações potentes que constituem os espaços das cidades em seu
cotidiano. Acreditando-se que, principalmente nas metrópoles
contemporâneas, detectam-se práticas biopolíticas glocais que
acabam por gerar ações portadoras de experiências biopotentes e de estruturas que se instauram para além dos limites do
público e do privado, ou seja, dentro de uma possibilidade de
imaginar-produzir o espaço passando pela produção intensiva
do comum. A lógica seria a de um pensamento a partir de um
ser-em-comum que não possui relação com o sentido de comunhão ou com uma identidade que é única e exclusiva, mas
com a exata inexistência de um discurso homogeneizador e
o próprio compartilhamento da ausência deste fundamento.
Finalmente, incentivou-se pensar a importância da arte como
vetor fundamental na configuração desses espaços contemporâneos a partir do encontro com temas envolvendo política,
comunidade, modos de fazer do cotidiano (design e artesanias),
tecnologia e território urbano.
Portanto, esperamos que esta publicação possa contribuir para
a ampliação do debate que intencione ativar e ampliar o caráter
político e transformador da arte conectada ao território em
constante disputa.
Bruno Oliveira
Natacha Rena
Por fim, em Artesanias do desejo, a professora Marcela Silviano
Brandão discute as expressões menores das respostas cotidianas, “subversivas em relação àquelas designadas pela ciência”. Em contraponto à técnica e às construções de saberes
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Querida imaginação, o que amo, em ti, é que não perdoas.
(André Breton)
Etimologicamente, prefácio vem do latim, praefatio, que significa preâmbulo, prólogo, aquilo que se diz no princípio. Indo
mais longe, Otto Maria Carpeaux, em seu ensaio O artigo sobre os prefácios, chegou ao ponto de dizer que o prefácio tinha
alcançado foro de gênero literário independente. Isso é uma
verdade se formos ao Prefácio Interessantíssimo, que Mário de
Andrade fez, em 1921, para sua obra Paulicéia Desvairada. Lá,
um dos pais do modernismo brasileiro abre o prefácio declarando que estava fundado o “desvairismo”. Isso em um momento em que ninguém compreendia bem o que era o dadaísmo, o surrealismo procurava seus rumos, o cubismo era visto
com espanto e inúmeros outros “ismos” ainda estavam por
se fazer. Mas, afinal, de que se tratava tal “desvairismo”? De
uma proposta de abordagem artística, a qual, rompendo com
as categorias aristotélicas da natureza — a matéria, a energia,
o espaço e o movimento —, procurava preencher as lacunas
do mundo de maneira sincrônica. Essa visão viria a estar muito próxima daquela desenvolvida por Anne Cauquelin, já na
virada do segundo milênio, decupada dos estoicos — filósofos
pós-aristotélicos — e na qual define os incorporais: o tempo,
o lugar, o vazio e o exprimível. É através dessa abordagem
que Cauquelin acredita que possamos discutir, com melhor
chave de percepção, a Arte Contemporânea, toda aquela criada
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depois da década de 1970. Assim, frequentando um dos incorporais, seja ele qual for, estaremos abordando os outros, dada
a sua sincronicidade. Dessa maneira, se abordarmos o vazio
contido em uma obra — por exemplo, nas pinturas brancas da
última fase de Tomie Ohtake —, estamos também abordando,
conscientes ou inconscientes do fato, o espaço, o exprimível e
o tempo. Essa era a proposta provocadora e avant la lettre do
Prefácio Interessantíssimo que, em seu final, conclama: “E está
acabado o Desvairismo”.
Assim sendo, falemos do espaço, tendo como linha de raciocínio aquela proposta por Cauquelin. A rigor, o espaço não é um
lugar. A priori é uma dimensão física — uma categoria elemental da Física — que apresenta possibilidades de acomodar corpos, mas não quaisquer corpos: somente os corpos políticos.
Para um corpo ser político presume-se que este seja pleno de
desejos — wishful thinking. Desejos tornando-se práticas discursivas procuram se realizar em ações, em ações concretas
sobre a realidade. Isso é o que nos diz o princípio do prazer:
uma realidade pronta para ser moldada, criada de acordo com
o desejo de cada um. O desejo de cada um, sobreposto ao desejo de outros, cria uma esfera de interesses, por definição,
conflituosa. O que se segue ocorre, necessariamente, dentro
do princípio de realidade. Essa esfera de interesses e conflitos estabelece um espaço, um território. Ou seja, um espaço
só passa a existir como território a partir de seu uso, de sua
possibilidade de ter alguma serventia aos interesses dessa
gama de interesses difusos que é o que define o lugar. Bem,
se há interesses em jogo, estamos a falar de política que é o
exercício de ações que buscam atenuar e, no limite, sobrepujar
o interesse do outro.
Se há um lugar, há um território. Se for plural, territórios. Cada
território vai criando uma cultura política, econômica, social,
etc., e este movimento cultural unitário, eventualmente, pode
lançar um olhar para uma determinada cultura alheia e, por
interesses — agora coletivos —, pode tentar sobrepor-se ao
interesse alheio. Estamos agora no campo do choque cultural,
o qual, qualquer que seja o resultado do mesmo, provoca uma
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des/reterritorialização que é o reposicionamento/deslocamento do desejo: da subjetividade individual à subjetividade coletiva.
Assim, política, economia e sociedade são termos facilmente encontrados em boa parte dos textos sobre Arte
Contemporânea ou nas proposições de variados artistas da
contemporaneidade. Escritas preenchidas por discursos inflamados que alavancam críticas e instigam reflexões sobre os
problemas sociais do Brasil e do resto do mundo. Por meio de
uma variada gama de linguagens e procedimentos artísticos,
as contradições do paradigma econômico atual — que se faz
“fazer” sem que se faça percebido — são esgarçadas, sofrem
uma prospecção. A palavra prospecção designa em geologia a
busca em depósitos minerais na tentativa de descobrir filões
e jazidas, um tesouro subjacente, escondido. Metaforicamente,
uma prospecção, muito acima dos valores que pode revelar, é
um processo de escavar o solo, de debulhar, de procurar entender suas situações passadas, suas crises, seus colapsos e
relacionar todo esse histórico com o tempo presente.
Olhando por esse ângulo, os termos que configuram o grupo
de estudo Arte e Espaço: uma situação política do século XXI advieram de uma prospecção, de demandas dos pesquisadores,
coordenadores e alunos do grupo, mas, antes de tudo, advieram também de uma percepção global de enfrentamento de
situações e categorias que, por vezes, reduzem e regulam a
vida de todos nós: a comunidade, o cotidiano, o território, a
tecnologia e o design. Isso nos leva a uma questão: de que
maneira a Arte Contemporânea e o pensamento contemporâneo estão a lidar com a estrutura política, econômica e social
atual? De que maneira a arte e o pensamento atravessam as
situações postas dentro dessas esferas? A quais estratégias
e espaços os cidadãos comuns hoje têm direitos (os quais não
acontecem no espaço, mas sempre no lugar)? Alguns pesquisadores e artistas nos dizem que não cabe à arte inventar
proposições pragmáticas e/ou voluntaristas e que o lugar da
arte está em sua vacuidade, em seu fora, no invisível indisponível ao olhar. Isso implica uma problemática muitos graus
acima da complexidade descrita anteriormente: até que ponto
as proposições artísticas, que se prestam ao enfrentamento e
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ao trabalho colaborativo especificamente, que buscam dar voz
às demandas políticas, sociais ou econômicas nos territórios
(bairros, comunidades, cidades, metrópoles, etc.), respondem,
realmente, às necessidades de empoderamento do outro nesses espaços onde se inserem?
Essas e muitas outras questões foram surgindo em nosso
grupo de estudo quando o solo da arte atual e seu contexto
começaram a ser debulhados, revelando-nos evidências de
um colapso paradigmático que, a seu modo, é o retrato de
nosso tempo. Nesse sentido, compreender o que nos desvela
essas subcamadas torna-se uma postura de enfrentamento,
e nisso reside tanto o enigma quanto uma nova possibilidade de horizontalizar práticas (diferentemente das revoluções
clássicas), desierarquizar o estatuto da obra individual, autonomizar neogrupos e empoderar o indivíduo, estabelecendo
aproximações entre arte e cotidiano, na descoberta de espaços
festivos, mergulhado nas surpresas, nos convívios, vivências,
experiências, conflitos, vexames, ou seja, nos erros e acertos
próprios do vivido.
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imaginado: como obter lealdades de povos tão distantes, de
culturas tão díspares, sob a égide romana? Povoando o espaço
com símbolos arquitetônicos, alegorias, emblemas, tudo que
imaginariamente levava a um centro. Com o fim do império
Romano, essa questão foi posta de lado, inaugurando assim a
‘mesmidade’ do mundo. Essa só foi quebrada no Renascimento,
em que a questão do tempo e do espaço foi recolocada conjuntamente. Contudo, lentamente, a categoria tempo foi tornando-se hegemônica. Esse foi o mote da modernidade. Com
a pós-modernidade, sob o cadáver do tempo, priorizou-se o
espaço. E isso se fez através da compressão espaçotemporal
e da invasão do conteúdo das Artes à forma da Arquitetura.
É como se, aos poucos, fôssemos tomando consciência dos incorporais, uma vez que, como quer Cauquelin, viemos frequentando-os há muito tempo, porém sem o saber. Isso nos coloca
diante de uma percepção de outras qualidades do espaço que
são de outra ordem. E, assim, se formos observando a cidade,
qualquer que seja ela, há inúmeras camadas, hierarquias, etc.,
deste espaço, numa mescla contínua que vai além do público
e do privado. Essa, então, é a nossa problemática. E qual é a
questão que ela guarda com a arte?
Como veremos nos textos apresentados nesta publicação, a
arte tem naturalmente um conteúdo político, uma vez que
este, obrigatoriamente, como disse o crítico Mário Pedrosa,
é condizente com a consciência social de cada época. Ou, se
quisermos ir mais adiante, com a cotidianidade, conceito caro
ao crítico Karel Kosik, que nos revela a especificidade, localização, identidade e, portanto, uma maneira de existir. No mundo contemporâneo há uma espécie de convergência entre as
formas artísticas performáticas e formas propriamente políticas. É essa cotidianidade, como nos chama a atenção Jacques
Rancière, que forma o comum, uma espécie de aparição de
uma democracia estética que se transforma, nas ruas, em
democracia política. É só abrirmos os canais midiáticos para
percebê-la: uma democracia estética que ainda não está configurada porque é completamente nova, e que traz em seu bojo
a ideia de que o espaço, o lugar, cabe a todos e não a alguns.
Interrogar o lugar, a identidade, o pertencimento.
O espaço não era uma questão para os gregos. A questão pertinente para os gregos era o tempo. Por que não o espaço?
O controle do espaço na polis fazia-se pelo olhar. Até onde a
vista, o olhar, alcançasse, tudo era a polis. Isso fez com que os
gregos se tornassem presas fáceis para os invasores bárbaros, pois não passava em seu imaginário vivenciar um espaço
imaginado, abstrato, puramente representacional. Esse foi um
dos limites da democracia direta em seus primórdios. Com a
supremacia dos romanos, foi colocada a questão do espaço
A questão é que a Arte Contemporânea passa pela cidade, pelo
urbano, pelas influências que o ambiente urbano causa na arte
e vice-versa. Uma vez perdida a crença ingênua na natureza, a
arte vai se amparar quase que exclusivamente no urbano. Se
historicamente a cidade foi inventada, antes de dizer sobre os
problemas da cidade seria importante dizer: o que pode ser
a cidade? Lugar dos desejos. Se desejos são tão subjetivos,
por que não se pensa a cidade como o espaço dos sujeitos?
Ou melhor, como espaço de novos processos de subjetiva-
19
ção e, consequentemente, de novas reconfigurações das
subjetividades?
* Reginaldo Luiz
Cardoso
Graduado em
psicologia
(FAFICH-UFMG),
mestre em ciência
política (DCPUFMG) e doutor
em planejamento
urbano e regional
(IPPUR-UFRJ).
Paralelamente
às atividades
acadêmicas
desenvolve
trabalhos em
fotografia, tendo
participado
de diversas
exposições
coletivas no Rio
de Janeiro (RJ) e
em Belo Horizonte
(MG).
** Ricardo Macêdo
Professor e
pesquisador de
Artes Visuais.
Mestre em Arte
e Tecnologia da
Imagem pela
UFMG, Design
de Interiores
pelo IFPA (antigo
CEFET) e Artes
Visuais pela UFPA,
além de curioso e
autonomista em
tempo integral.
20
Constituição de zonas de desprogramação e chances de
levante das pessoas, dentro dos gaps, das zonas autônomas
temporárias ou não, que liberam áreas físicas e/ou subjetivas: contra-nets (Wikileaks, Pirate Bay, Hidden Wiki, 4chan,
etc.), deep webs (Onion, Marina’s, Surface Web, Bergie
Web, The Fog, etc.), espaços comuns (Espaço Comum
Luiz Estrela - BH, Wig Nuts - EUA, Rede Aparelho - Belém,
Coletivo Puraqué - Santarém, Espaço Ystilingue - BH, Park
Fiction - Hamburg, Ala Plástica - Argentina, etc.), estabelecendo atravessamentos nas bordas dos conflitos e no
núcleo da singularidade, aqui entendida como aquela que
é indesculpável para a hegemonia, pelos ruídos que causa
na superestrutura. Desprogramação do indivíduo a partir
dos estilhaços do solo prospectado e emergência do sujeito.
Cintila dessa forma, em vários espaços urbanos, um ideário
a ser divulgado, uma rebelião, uma refundação do “desvairismo”, não das massas e dos corpos, mas, acima de tudo,
uma “rebelião do pensamento”, como nos diria FW, rapper
e ex-detento do Carandiru.
Reginaldo Luiz Cardoso*
Ricardo Macêdo**
Belo Horizonte | Ouro Preto, 15 de abril de 2015
Natacha Rena*
arte,
espaço e
biopolítica 1
INTRODUÇÃO
A metrópole é para a multidão o que a fábrica era
para a classe operária industrial.
(Michael Hardt and Antonio Negri)
* Natacha Rena: Graduada
em Arquitetura e
Urbanismo pela UFMG
(1995), mestre em
Arquitetura pela UFMG
(2000), doutora em
Comunicação e Semiótica
pela PUC São Paulo (2006).
É professora adjunta da
Escola de Arquitetura da
UFMG e pesquisadora
dos grupos PRAXIS
e INDISCIPLINAR do
Departamento de Projetos
da Escola de Arquitetura
da UFMG.
1. Parte deste artigo foi
apresentada no texto: A
performance dos corpos
multitudinários em choque
com a propriedade privada
do Estado-Capital, no
evento ENANPARQ e no
projeto Escuela de Garaje,
do grupo Laagencia
de Bogotá.
22
As políticas públicas neoliberais, impostas pelo
Estado-Capital sobre o território urbano, configuram evidências claras de como a cidade vem se
tornando um palco de disputa territorial. Se a fábrica configurava o campo de exploração do trabalho até os anos 1970, atualmente o Estado-Capital
extrai a mais-valia em todo o espaço. Em tempos
de capitalismo cognitivo, no qual a tendência da
produção cotidiana no mercado vem construindo
redes de trabalho voltadas para setores criativos
e sociais, as biopolíticas implementadas vão consolidando uma dinâmica de produção do espaço
complexa, realizando processos de exclusão social em diversos níveis. Compreender essas novas
estratégias de políticas territoriais é fundamental
para mapearmos os campos de luta mais importantes nas nossas cidades.
O que está em disputa, a partir dos movimentos
multitudinários detonados desde 1999 em Seatle
(USA), e que ganharam força no Brasil a partir de
junho de 2013, é, principalmente, o urbano. Urbano
aqui entendido como um amplo platô que envolve as ações no espaço-tempo (públicos, privados,
comuns), dissolvendo a noção dicotômica cidade X
campo, rua X rede, casa X trabalho. Segundo Hardt
e Negri (2009), num texto intitulado Metrópoles, a
metrópole é para a multidão o que a fábrica era
para a classe operária industrial, o que poderia
nos induzir a pensar nas metrópoles como territórios conectados nos quais as ações biopolíticas
e de controle dos corpos e das espécies se dão
com maior intensidade. Ao
mesmo tempo, poderíamos QUESTÃO 1
pensá-las como o lugar no Existe a possibilidade da sobrevivência de uma
qual a biopolítica das re- produção artística biopotente e transformadora
sistências primeiras são quando esta pertence ao sistema da arte, particitambém potentes, possibi- pando do esquema galeria, bienais e feiras, circulitando encontros que, ape- lando como produto de colecionador e funcionando
sar de todas as estratégias como investimento dentro da lógica do capitalismo
para evitá-los, se dão com rentista? É possível fazer a arte potencializar um
maior ênfase em processos discurso e uma ação política sem simplesmente
constantes de contamina- naturalizar as lutas e estetizá-las dentro de um
ção. A metrópole, para campo de elite próprio do capitalismo rentista,
Hardt e Negri,
cognitivo e criativo?
poderia ser considerada em primeiro
lugar o esqueleto e
a espinha dorsal da
multidão, ou seja, o
entorno urbano que
sustenta sua atividade e o entorno social
constitui um lugar e
um potente repertório de habilidades no
terreno dos afetos,
das relações sociais,
dos costumes, dos
desejos, dos conhecimentos e dos cir-
Ricardo Macêdo (24 de outubro de 2014)
Caros colegas, achei esse vídeo com 1h37min
de fala do Antônio Negri no SESC Pompeia, em
julho de 2014. Muito bom! Multitude - A democracia da multidão Disponível em: https://www.
youtube.com/watch?v=tPvSKiNKyds
Reginaldo Luiz Cardoso (24 de outubro de 2014)
Acho que primeiro deveríamos pensar a respeito do papel da arte na sociedade. Pensando na
aurora da humanidade, Hegel dizia que o homem (a consciência de si mesmo), deparandose com obstáculos do mundo, criou esquemas
de defrontamento e de superação dos mesmos. Diante do enigmático, defrontou-se com
o crer e tentou (tenta) superá-lo com o mito,
23
cuitos culturais [...] a metrópole é a sede
da produção biopolítica porque é o espaço
do comum, das pessoas que vivem juntas,
compartindo recursos, comunicando, intercambiando bens e ideias. (HARDT; NEGRI,
2009, p.255-256)
2. Brasil maior no sentido de que é um país que
hoje é a sétima economia
do mundo e se opõe aos
devires minoritários para
crescer.
Mas sabemos que a metrópole é também o lugar,
por excelência, da expropriação desse comum produzido no encontro e na criação das novas formas
de vida e de luta. Em tempos de Brasil maior2, sétima economia mundial, celeiro para oportunidades
de expansão do capitalismo global, torna-se cada
dia mais evidente que é nas metrópoles (para além
da exploração dos bens naturais comuns como
minérios e petróleos) onde há uma tentativa de
expropriação do comum pelo Estado-Capital com
maior ênfase e violência. Rio de Janeiro, São Paulo,
Belo Horizonte são exemplos de cidades globais
eleitas para sediar grandes eventos e para sofrer
grandes transformações territoriais via projetos
urbanísticos neoliberais em grande escala, e têm
se tornado, ao mesmo tempo, celeiros de lutas
urbanas e de resistências radicais, conformando
corpos insurgentes multitudinários que vêm se expandindo e contaminando, não somente os grupos
políticos oficiais e não oficiais já existentes, mas
trazendo para dentro das lutas artistas, pensadores, professores universitários, grupos organizados e desorganizados das favelas, advogados e,
inclusive, políticos de esquerda que acabam por
se verem pressionados para assumir lutas desconfortáveis politicamente.
Nesta conjuntura política de revoltas conectadas
em rede, pergunta-se: o que pode a arte?
24
CAPITALISMO COGNITIVO
E BIOPOLÍTICA NA METRÓPOLE
CONTEMPORÂNEA
O sistema capitalista global contemporâneo, que
conecta indissociadamente Estado e empresas,
pode ser também denominado de Império ou
Neoliberalismo. Diferente do capitalismo fordista,
no qual a mais-valia era prioritariamente explorada via força de trabalho nas fábricas, atualmente
se dá via capital em expansão dirigindo a exploração para todo o território metropolitano, dentro e
fora das fábricas. Além disso, o tempo do trabalho
envolvido na produção do capitalismo industrial
referia-se ao tempo da jornada oficial das leis trabalhistas. Atualmente, o tempo de expropriação
do capitalismo pós-fordista,
imperial, neoliberal ocupa à procura de satisfazer suas dúvidas. Assim
todo o tempo de nossas vi- foi: diante do últil, defrontou-se com o fazer e
das. A exploração capitalis- tenta superá-lo com a técnica, a manipulação
ta atual passa pela captura do mundo; diante do inteligível, quis saber e
dos desejos e, neste sentido, superar esse obstáculo com a ciência. O maior
todo um sistema simbólico obstáculo à jornada dessa consciência de si
abduz a subjetividade e nos mesmo (história) foi a lacuna, cujo esquema
torna trabalhadores e con- de defrontamento ocorre através do criar e no
sumidores obedientes, den- qual se tenta romper através do esquema de
tro de um sistema capitalis- superação que é a arte: o fazer algo novo no
ta financeiro. Assistimos ao mundo. A arte, portanto, é fruto dessa dialésurgimento de um novo ho- tica, o fio condutor da história feita por e para
mem: o homem endividado. os homens. Marx, um hegeliano por excelênAlém de vermos configurar cia, notou então que, no capitalismo, todas as
(via Estado-Capital) a cons- diferenças de qualidade entre as mercadorias
trução de sujeitos dóceis desaparecem diante do dinheiro, o que equi(próprios da sociedade dis- vale a dizer que o capitalismo faz da obra de
ciplinar em que o controle arte uma mercadoria. Se a premissa de Marx
incidia – e ainda incide – di- é verdadeira, então não há saída possível? O
retamente sobre os corpos), mesmo Marx tinha como lema preferido “duestamos imersos em práti- vidar de tudo”. Etimologicamente, estética
cas de controle mais sutis tem duas raízes: aisht, que significa sensação,
e flexíveis, uma tomada da sentir; e ethos, que signifca costume, moral.
25
subjetividade que nos torna controlados biopoliticamente. Segundo David Harvey,
o neoliberalismo é em primeiro lugar uma
teoria das práticas político-econômicas que
propõe que o bem-estar humano pode ser
mais bem promovido liberando-se as liberdades e capacidades empreendedoras individuais no âmbito de uma estrutura institucional caracterizada por sólidos direitos à
propriedade privada, livres mercados e livre
comércio. O papel do Estado é criar e preservar uma estrutura institucional apropriada a essas práticas; o Estado tem de garantir, por exemplo, a qualidade e a integridade
do dinheiro [...] o neoliberalismo se tornou
hegemônico como modalidade de discurso
e passou a afetar tão amplamente os modos
de pensamento que se incorporou às maneiras cotidianas de muitas pessoas interpretarem, viverem e compreenderem o mundo.
O processo de neoliberalização, no entanto, envolveu muita destruição criativa, não
somente dos antigos poderes e estruturas
institucionais (chegando mesmo a abalar as
formas tradicionais de soberania do Estado),
mas também das divisões do trabalho, das
relações sociais, da promoção do bem-estar
social, das combinações de tecnologias, dos
modos de vida e de pensamento, das atividades reprodutivas, das formas de ligação
à terra e dos hábitos do coração. (HARVEY,
2012, p.12-13)
Para Hardt e Negri (2001), esse sistema neoliberal
que atua na lógica imperial, em contraste com o
imperialismo, não estabelece um centro territorial
de poder, nem se baseia em fronteiras ou barreiras fixas, pois é um aparelho de descentralização
e desterritorialização global “que incorpora gra-
26
dualmente o mundo inteiro dentro de suas fronteiras
abertas e em expansão, já que o Império administra
entidades híbridas, hierarquias flexíveis e permutas
plurais por meio de estruturas de comando reguladoras” (HARDT; NEGRI, 2001, p.12-15).
Portanto, pode-se dizer que estéMas esse sistema global enredado pelo tica significa a moral ou o costume
Estado-Capital, baseado na democracia da sensação e do sentimento. Entre
representativa, no qual nos deparamos 1789 e 1799, na França, tudo aquilo
com o Império, não deveria, de modo que estava indigesto transformoualgum, segundo esses autores, nos se em possibilidades inumeráveis,
deixar saudosos das antigas formas ‘possibilismo’, cenário onde tudo
de dominação, porque esta transição parecia possível num grande arpara o Império e seus processos de remedo de suspensão da dúvida.
globalização e mundialização conexio- Schiller estava lá. Em um fragmennista nos oferece novas possibilidades to, dizia: “no povo tudo jogo cênico”.
de redes insurgentes que possibilitam Naquele momento indigesto (cruel,
a ampliação das lutas pela libertação. crudelis, cru, não-digerido, daí indiEssas singularidades globais que vão gesto) a ‘estética’ foi outra além da
surgindo como resistência ao neolibe- representação. Tudo confuso e vago.
ralismo vêm tecendo uma nova forma Artaud, quando escreve o primeiro
de luta que envolve o que chamam de manifesto do teatro da crueldade,
multidão. Para os pensadores, essas também é acusado de confuso e
forças criadoras da multidão que sus- vago. “Se o signo da época é a contentam o Império são capazes também fusão, vejo na base dessa confusão
de constituir “um Contra-império, uma uma ruptura entre as coisas e as
organização política alternativa de flu- palavras, as ideias, os signos que
xos e intercâmbios globais. Os esforços são a representação dessas coipara contestar e subverter o Império, sas” (ARTAUD). Voltando a Hegel:
e para construir uma alternativa real, A consciência capta o mundo, neterão lugar no próprio terreno imperial” gando-o, estabelecendo uma distin(HARDT; NEGRI, 2001, p.12-15). Os auto- ção. Não se confunde com o mundo
res afirmam que é na metrópole que as porque se não houvesse diferencianovas configurações de resistência se ção não haveria nem um nem outro.
configuram com maior intensidade, e Esse é o campo de possibilidades
em tempos de produção biopolítica em da arte. E da política.
que as forças produtivas que movem o
capitalismo pós-fordista, trabalhando principalmente com ideias, afetos e comunicação, não estão mais
simplesmente concentradas nas fábricas, mas, sim,
27
3. Estatuto da Cidade - Lei
10.257/00, que estabelece
diretrizes gerais da política
urbana.
4. Operação Urbana
Consorciada - OUC é o
conjunto de intervenções
e medidas coordenadas
pelo Poder Público
com a participação dos
proprietários, moradores,
usuários permanentes
e investidores privados,
com o objetivo de alcançar
em uma determinada
área transformações
urbanísticas estruturais,
melhorias sociais e
valorização ambiental,
podendo ocorrer em
qualquer área do
município.
5. É importante observar
que não é somente no
universo do planejamento
urbano e dos grandes
projetos nas metrópoles
que o neoliberalismo
domina as políticas
públicas. Além disso,
essas políticas neoliberais
ocuparam, no Brasil, o
Ministério da Cultura, por
exemplo. Não somente
com as políticas das leis
de incentivo à cultura, que
partem do princípio de que
o mercado decide o que vai
ser financiado e produzido
culturalmente no País,
mas também criando
políticas culturais que
entendem a cidade como
empresa e a produção
cultural que acontece nela
como mercadoria através
da lógica das cidades
criativas e da economia
criativa.
28
espalhadas por terreno social urbano, ou seja, por
toda a metrópole, lugar privilegiado onde as múltiplas forças residem e interagem (HARDT; NEGRI,
2014).
De qualquer forma, para pensar o urbanismo e a
produção do espaço no sistema neoliberal imperial, é preciso estar atentos à tomada do Estado
pelo capital, que agora atua de dentro dos processos políticos institucionais e por meio de mecanismos de gestão pública, gerando políticas e
instrumentos urbanísticos que fazem parte, muitas
vezes, do próprio Estatuto da Cidade3 . Atualmente,
um dos exemplos mais claros disso é o instrumento denominado Operação Urbana Consorciada4 , uma
espécie de Parceria Público-Privada que determina as regras do jogo para o uso e a construção
do espaço, gerando territórios determinados por
manifestações de interesse do próprio mercado,
conformando territórios predefinidos para investimentos e projetos que gerem mais-valia para o
Estado através de títulos5 . Visivelmente uma passagem das formas de exploração da mais-valia
que se dava na fábrica em tempos de capitalismo
fordista, e agora se dá no território urbano gerando lucro via renda, dentro da lógica do capitalismo
financeiro pós-fordista ou rentista.
Do ponto de vista urbanístico, essas políticas públicas se dão em diversos níveis e, mesmo quando
não há o uso explícito destes instrumentos neoliberalizantes, a lógica das gestões das cidades
contemporâneas, tanto no mundo quanto no Brasil,
seja nos governos de esquerda, seja nos governos
de direita, é a lógica da cidade-empresa, da especulação imobiliária, da gentrificação (enobrecimento e expulsão dos pobres que não conseguem
viver mais nas áreas valorizadas), das políticas de
revitalização (substituindo vidas pobres por vidas
ricas e turismo), das intervenções utilizando equi-
Carlos Muñoz Sánchez (23 de outubro de 2014)
Aproveitando que essa pergunta foi a que mais pessoas estão
acompanhando, queria escrever algumas coisas sobre o texto
que a gente leu: “homem endividado”. Gostei dessa nova evolução do homem. No final do século XIX começou a se falar do
homo faver como o homem ligado à produção, e, por contraposição, na década de 1930, Huizinga falou do homo ludens como
resposta a esse homo faver. Um homem que vivia para o lazer,
um homem que nunca chegou a existir. É engraçado como hoje,
embora esse homo ludens tivesse existido, do mesmo jeito viraria homo endividado devido à transformação do lazer em objeto
de consumo. O mercado da arte e o negócio da produção cultural transformam o lazer em um luxo. Assistir a um show ao vivo
no Brasil é difícil para a grande maioria da população pelos
preços dos ingressos, iguais aos dos ingressos nos museus ou
outros depósitos de cultura. “[...] no Brasil, tanto os arquitetos
e urbanistas [...] contribuíram e contribuem para a realização das Parcerias Público-Privadas e para a privatização dos
bens comuns”. No meu ponto de vista, os arquitetos foram os
grandes cúmplices da corrupção imobiliária (como arquiteto
tenho vergonha disto), na Espanha. Para qualquer construção
é preciso a assinatura de um arquiteto, então, embora a ideia
de muitos arquitetos não fosse ajudar para esse “boom imobiliário”, se transformaram em cúmplices das construtoras.
Carlos Muñoz Sánchez (23 de outubro de 2014)
Muitas das pessoas no fórum falaram de alguns artistas que
produzem uma obra ligada ao ativismo, um jeito de se posicionar frente ao mundo das galerias e ao mercado da arte,
mas inserido neste mesmo mundo. Pensei que tem algo a ver
com parte do texto em que se fala da metrópole como figura
perversa que aliena e transforma as pessoas em consumidores, mas ao mesmo tempo é o espaço onde surge a luta
contra esse sistema. Esses artistas estão inseridos no mundo
do mercado da arte, mas lutando desde dentro. Porém, achei
que a pergunta tinha mais a ver com uma arte produzida fora
desses circuitos, uma arte ligada à multidão, que não tem um
nome individual ligado à obra de arte, e como ela pode se inserir sem perder a qualidade de biopotente e transformadora. Eu me lembrei, por exemplo, da acampada da “Plaza del
29
pamentos culturais (museus, bibliotecas, salas de
música e afins), do planejamento estratégico que
faz surgir novas centralidades urbanas para que o
capital se expanda para novos territórios e possa
fazer circular recursos dentro do sistema empreiteiras-bancos. Essas lógicas encabeçam o eixo da
gentrificação de grandes regiões, principalmente
nos centros das cidades que já detêm meios de
transporte e serviços abundantes. E, perversamente, em muitos momentos, é utilizando o discurso da arte e da cultura, da melhoria do espaço,
do embelezamento e da segurança que o EstadoCapital com seu biopoder (poder sobre a vida)
avança por toda a cidade, expropriando os bens
comuns já existentes ou em processo de formação.
6. Termo lançado por
Foucault, em meados dos
anos 1970, se referindo ao
momento em que a vida
das populações e a gestão
desses processos são
tomadas pelo poder como
objeto político.
30
Segundo Pelbart (2011), o biopoder está ligado à
mudança fundamental na relação entre poder e
vida. Na concepção de Foucault, o biopoder se interessa pela vida, pela produção, reprodução, pelo
controle e ordenamento de forças. A ele competem duas estratégias principais: a disciplina (que
adestra o corpo e dociliza o indivíduo para otimizar
suas forças) e a biopolítica6 (que entende o homem
como espécie e tenta gerir sua vida coletivamente).
Nesse sentido, a vida passa a ser controlada de
maneira integral, a partir da captura, pelo poder,
do próprio desejo do que dela se quer e se espera,
e assim o conceito de biopoder se expande para
o conceito de biopolítica. Há uma diluição dos limites entre o que somos e o que nos é imposto, à
medida que o poder atinge níveis subjetivos passando a atuar na própria máquina cognitiva que
define o que pensamos e queremos. Segundo o autor: “Nunca o poder chegou tão longe e tão fundo
no cerne da subjetividade e da própria vida, como
nessa modalidade contemporânea do biopoder”
(PELBART, 2003, p.58), que podemos chamar de
biopolítica.
Esse contexto se deve ao fato de o poder Imperial abarcar
tudo aquilo que representaria o comum numa estratégia
biopolítica, ou seja, expropriando as linguagens, os símbolos, as imagens, enfim, todos os meios compartilhados pelos indivíduos, através dos quais
estes se tornam capazes de se Sol”, em Madrid, durante os movimentos
comunicar e de, assim, produzir do 15M na Espanha, que, quase um ano
algo em sociedade. Em tempos depois de ser tirada pela prefeitura, recede capitalismo cognitivo, criativo beu o Prêmio Europeu de Espaço Público
e imaterial, a produção do comum Urbano 2012, um prêmio ligado ao mundo
baseia-se na colaboração e nos da arquitetura e do urbanismo convencioprocessos criativos e afetivos nais. Isso me faz pensar que pode existir
que incorporam todos os níveis uma arte transformadora que pertence
da vida. Todo o tempo é produtivo ao sistema da arte, mas sem ter essa
e o comum que compartilhamos pertença como um objetivo da obra, quer
serve de base para a produção dizer, pode existir uma produção (artístifutura, numa relação expansiva. ca ou não) ligada à multidão, de autoria
Para Hardt e Negri, isso talvez compartilhada, colaborativa ou inclusive
possa ser mais facilmente en- anônima, que a posteriori seja absorvida
tendido em termos da comunica- pelo sistema, como obra de arte, às vezes
ção como produção, inclusive de tirando a ideologia da mesma e, outras,
afetos, pois só podemos comuni- colocando valor nelas.
car criativa e colaborativamente
utilizando linguagens, símbolos, João Paulo de Freitas Campos (23 de outuideias que constituem novas ima- bro de 2014)
gens, novos símbolos, ideias e re- Vou comentar uma coisa bastante ponlações comuns. Para os autores, tual. A produção artística pode - e deve
hoje essa relação entre a produ- - proporcionar a construção conectiva de
ção, a comunicação e o comum é novas potências e novas possibilidades
a chave para entender toda ati- de vida e expressão - à margem do mapa
vidade social e econômica pró- biopolítico oficial -, seja no circuito inforpria do capitalismo pós-fordista mal das novas insurgências estético-po(HARDT; NEGRI, 2005, p.256-257). líticas ou no sistema oficial de arte, entre
lutas simbólicas e materiais pela legitiA ampliação dessa acepção de midade propriamente artística em um
biopolítica adotada por Hardt e campo da arte mais amplo, com suas insNegri situa o conceito como algo tituições específicas de consagração e reque acontece plenamente na produção do cânone artístico, seu sistema
31
sociedade de controle, na qual o poder subsume
toda a sociedade, suas relações sociais e penetra nas consciências e nos corpos. Sendo assim,
as subjetividades da sociedade são absorvidas no
Estado. Mas a consequência disso é a explosão dos
elementos previamente coordenados e mediados
na qual as resistências deixam de ser marginais e
tornam-se ativas no centro de uma sociedade que
se abre em redes (HARDT; NEGRI, 2001, p.44). Isso
significa que o poder desterritorializante que subsume toda sociedade ao capital, em vez de unificar
tudo, cria paradoxalmente um meio de pluralidade
e singularização não domesticáveis, incontroláveis e incapturáveis. Assistimos a essa situação no
Brasil, efetivamente e em grande escala, a partir
de junho de 2013. A multidão que se formou, contaminando e hibridando diversas pautas libertárias e progressistas, vem crescendo e tomando
novas formas a cada dia. Para Pelbart (2003) ou
para Hardt e Negri (2001, 2005, 2009, 2014), essa
inversão de sentido do termo foucaultiano “biopolítica” pode deixar de ser o “poder sobre a vida”,
para tornar-se o “poder da vida”, o que poderíamos
chamar também de biopolítica da multidão ou, segundo Pelbart (2003), biopotência.
O COMUM COMO
PROJETO POLÍTICO
CONSITUINTE DA MULTIDÃO As políticas neoliberais (mencionadas anteriormente), incorporadas ao Estatuto da Cidade, que
vem permeando todo o discurso político urbanístico no Brasil, se fazem presentes desde propostas
de revitalização de áreas centrais, passando pelo
discurso da melhoria das condições de mobilidade urbana, e culminando na construção de novas
centralidades em regiões periféricas abandonadas historicamente pelo Estado. Em todo o mundo,
mais visivelmente em alguns países que recebe-
32
simbólico específico (não imutável, obviamente), etc. Dou um
exemplo sucinto: no Brasil contemporâneo podemos encontrar
cineastas “autorais” - Adirley Queirós, Cristiano Burlan, entre
outros - que subvertem editais oficiais com propostas ousadas
e inovadoras - tanto na dimensão estética como na política -,
construindo uma nova estética colaborativa - com forte diálogo entre a equipe -, horizontal e, muitas vezes, experimental.
Como o próprio Adirley Queirós afirmou numa entrevista sobre
seu primeiro longa, A cidade é uma só? (que, inclusive, saiu de
um edital sobre os 50 anos da cidade de Brasília): “fazer um
filme é, primeiramente, um ato político”.
Camila Vieira (23 de outubro de 2014)
Outro exemplo é a potência política trabalhada pelo artista
Francis Alÿs. Só para citar uma ação: “Quando a fé move montanhas” (ver vídeos no Youtube), realizado em 2002, no Peru.
Ele convocou quinhentas pessoas de branco para mover em
dez centímetros uma duna de areia; é a comunidade ativa, com
passos que movem o mundo, digamos (a duna moveu). O que
essa comunidade sentiu com essa experiência, essa potência?
Houve uma organização extrema nesse processo sem simplesmente naturalizar as lutas, acredito. Não foi uma ação que
teve resultados concretos em si, mas uma ação que perpassa
a discussão aqui apresentada.
33
7. Vídeo Se acabó la fiesta,
um documentário que
reflete o contexto da
arquitetura neoliberal na
Espanha. Entrevistas a
Felix de Azua, Sir Richard
Rogers, Blanca Lleo, Emilio Tuñon, y Luis Mansilla,
assim como os diretores
da Revista El Croquis e o
periodista Llazer Moix.
http://www.rtve.es/alacarta/videos/archivos-tema/
archivos-tema-se-acabofiesta/1269406/; e vídeo
Españistan: https://www.
youtube.com/watch?v=UJ8-dJ5WCo4.
ram essa grande investida do capitalismo Imperial
como Espanha e Grécia, hoje podemos assistir ao
estrago social e econômico dessas políticas, que
nada mais são do que formas de endividamento do
Estado e do cidadão7 . Com a promessa de desenvolvimento, obras de infraestrutura, projetos para
megaeventos, construção massiva de habitação
criaram com eficácia um exército humano endividado e quebraram os caixas do Estado. Esses
movimentos multitudinários em todo o mundo,
como o que ocorreu a partir do Parque Gezi, na
Turquia, contra a construção de um shopping center em lugar de uma praça pública, fazem surgir
uma multidão enfurecida que percebe, de maneira muito evidente, os mecanismos imperiais do
Estado-mercado que vem expropriando direitos
garantidos constitucionalmente e transferindo os
bens comuns e a produção do comum para o universo do privado. Mas essas insurgências já prefiguravam uma radicalização popular contra esse
Estado-Capital globalizado desde Seattle, e alguns
autores como Hardt e Negri, Lazzarato e Harvey
vêm traçando uma cartografia dessas dinâmicas
do novo capital, e também da rebeldia popular que
insurge quando se retira radicalmente o bem-estar social defendido como base constitucional de
países democráticos.
Em 2012, Hardt e Negri (2014), escrevendo sobre os
movimentos multitudinários a partir da Primavera
Árabe em 2011, afirmam que desde a década de
1990 esse movimento neoliberal Imperial avançou
inclusive sobre as democracias de esquerda dos
governos de alguns dos maiores países da América
Latina, mesmo quando estes governos tinham
chegado ao poder graças ao apoio de poderosos
movimentos sociais – movimentos contra o neoliberalismo e a favor da autogestão democrática do
comum (o que para nós, no Brasil, fica mais claro a cada dia). Em muitos casos, esses governos,
34
a princípio progressistas,
promoveram grandes avanços sociais, ajudando vastos
contingentes populacionais
a sair da pobreza, abrindo
possibilidades de participação democrática e rompendo
relações externas de dependência muito antigas, em
termos de economia global,
de mercado mundial e de
imperialismo norte-americano. Entretanto, mesmo
quando esses governos estão no poder e, em especial,
quando repetem as práticas
dos antigos regimes, os movimentos sociais continuam
a luta, agora direcionada
contra os governos que afirmam que os representam
(HARDT; NEGRI, 2014).
Camila Vieira (23 de outubro de 2014)
Também acredito nessa potencialidade
transformadora de ações políticas dentro
e fora do sistema da arte. Chamou minha
atenção, agora que estou lendo alguns posts,
o da Maria Goretti quando ela fala sobre o
capitalismo rentista e suas manipulações,
principalmente em relação ao espectador.
Pode até haver essa limitação na participação intelectual do espectador, mas também
não podemos engolir isto de pronto, visto
que é um discurso favorável ao sistema
como um todo... Digo que devemos pensar
na emancipação do espectador e, para isto,
refiro-me a Rancière, que fala exatamente
dessa emancipação como forma de constituição do sensível da coletividade. A questão
política é a capacidade de tomarmos mãos
do nosso destino, afinal. E é exatamente
nesse ponto que a arte mostra sua potência,
indo além do circuito fechado no sistema da
arte, mas também agindo nele... A Natacha
citou o Gordon Matta-Clark e logo pensei
também na Rachel Whiteread, quando fez
um molde de concreto de uma casa programada para demolição num bairro operário
do leste de Londres, em 1993. O trabalho se
chama House. Infelizmente a obra foi destruída, talvez pelo fato mesmo de preservar
a cultura da classe operária no local, mas
foi uma ação que conseguiu em certa medida criticar o desenvolvimento voraz ali na
região.
Dentro da própria lógica
capitalista de produção coletiva, colaborativa e em
rede, que é própria da lógica
do capitalismo pós-fordista, surgem também novas
formas de colaboração e de
“fazer-com” que recusam os
mecanismos representativos da democracia burguesa,
mesmo quando sob as siglas
de esquerda. Essas resistências assistem à expropriação do comum, desde os bens comuns como a
água, as florestas, as praças e os parques, ou até
mesmo a expropriação da produção do comum em
processos informais dos novos modos de vida que não
cabem na lógica do Estado-Capital. Para essa nova
35
geração conectada em redes múltiplas que se superpõem globalmente, a democracia representativa não
corresponde mais à produção dos desejos por mais
direitos, ou por uma vida na qual não apenas se participa de processos eleitorais garantindo plenos-poderes aos governantes. A crise da representatividade
abarca uma crescente necessidade por participação
direta, por democracia real, por participação-decisão
como palavras inseparáveis. Portanto, independentemente da crise do capitalismo global, assistimos
ao surgimento de uma nova ontologia do precariado
própria da multidão, configurada ao mesmo tempo:
(a) por um homem endividado (LAZZARATO, 2014 ou
HARDT; NEGRI, 2014) completamente imerso no capitalismo financeiro, que tem a sua riqueza criativa
expropriada constantemente pelo fluxo econômico; (b)
por um homem constituído pela lógica do fazer-junto,
do fazer-com, criativa e colaborativamente.
Para Negri (2010), essa multidão possui também um
nome de singularidades não representáveis, que, assim como um conceito de classe, é sempre produtiva
e está sempre em movimento. A multidão seria, então,
um ator social ativo, uma multiplicidade que age; seria também o conceito de uma potência que desconfia da representação e em contraste com o de povo,
porque é uma multiplicidade singular, um universal
concreto. O povo constituía um corpo social; a multidão, não, porque ela é a carne da vida e, ao contrário
da pura espontaneidade, é como algo organizado num
corpo sem órgãos, fora da organização do Aparelho
de Estado, ou seja, é um ator ativo de auto-organização, nos introduzindo num mundo completamente
novo, dentro de uma revolução que já está acontecendo. A multidão é para o autor, ao mesmo tempo, sujeito e produto da praxis coletiva, assim como também
cada corpo é multitudinário, ou pode tornar-se uma
multidão, formando redes e potencializando contaminações que desejam liberdade na coletividade. A multidão é um monstro híbrido, uma legião, e um projeto
36
Flávio Pinto Valle (22 de outubro de 2014)
Sim. Penso que é possível uma produção artística fora
da lógica do capitalismo rentista. Para isso, acho que
é preciso pensar mais em ações artísticas que em
produtos artísticos. Ações que ajam de maneira oportuna frente às estratégias do capital, por isso estão
sempre em (re)configuração, e que tenham como tática a (re)apropriação simbólica dos produtos do capital.
Carlos Dalla Bernardina (22 de outubro de 2014)
Acho que o Bruno Dorneles tocou no ponto central: é
impossível pensar numa arte biopotente em si mesma... Por mais que ela seja forjada a partir de um
campo biopotente, é em seu processo de comunicaçao com o outro que ela definirá seu destino e seu
impacto sobre o meio. Nesse sentido, o artista vê-se
atado a uma rede global, da qual sua arte depende
para existir de fato. É através de sua interação com a
rede que ela se tornará, ou não, biopotente. Vejo isso
ao mesmo tempo como um bálsamo e uma tragédia.
Acredito que o processo de interação em redes não
reguladas oferece o único campo possível para a existência de uma produção artística que nos (re)conecte
ou nos (re)ligue com a vida. Acredito que é cada vez
mais difícil obras criadas dentro de um sistema capitalista cognitivo carregarem a força necessária para
cumprirem um papel efetivamente transformador,
mas ainda acho possível. À medida em que o tempo
passa parece que vai ficando mais difícil, como se o
cerco fosse se fechando e as contradições, estrangulando os processos vitais da sociedade. Nesse sentido,
acredito que, pelo menos para as novas gerações do
Brasil, o caminho da produção não profissional em
rede tende a ser a saída no curto prazo para a existência de processos artísticos biopotentes (capazes
de reprogramar nossos afetos). Mas isso coloca em
xeque a figura do artista profissional. É uma questão
complexa que abordei em dois textos: http://roadtocydonia.com.br/quase-samba-5-ser-independente/
e http://gvcult.blogosfera.uol.com.br/2014/04/27/chi-
37
que se faz cruzando-se multidão com multidão,
misturando corpos, operando a mestiçagem e a
hibridação, já que o próprio corpo é trabalho vivo e
recusa, maquinicamente, a organização constante
operada pelo sistema capitalista, portanto, expressão e cooperação. Enfim, o poder constituinte da
multidão é algo diferente, não é apenas uma exceção política, mas uma exceção histórica; é um
produto de uma descontinuidade temporal, radical, metamorfose ontológica, ou seja, a multidão
é um nome ontológico de produção de resistências ativas contra sobrevivências parasitárias que
constituem a engrenagem da máquina capitalista
contemporânea (NEGRI, 2010).
Toda a estrutura política da modernidade ocidental se construiu como política da totalidade e da
universalidade, mesmo as esquerdas marxistas
que pretendiam uma crítica radical ao projeto
burguês. Ou seja, o movimento de Seattle abriu
uma nova possibilidade de criação de uma política da multiplicidade multitudinária. Segundo o
pensador, o êxito do livro de Negri e Hardt denominado Multidão, “seguramente está relacionado
com esta direção, indicada não sem ambiguidade:
sair do conceito de povo, categoria que aponta ao
uno, reivindicando ao mesmo tempo uma fundação
marxista desta transição” (LAZZARATO, 2006, p.17).
Com as jornadas de Seattle tem se criado
um novo campo de possibilidades (que não
existiam antes do acontecimento, chegou
com ele). O acontecimento dá a ver o que
uma época tem de intolerável, mas também emergir novas possibilidades de vida.
Esta nova distribuição de possíveis e de
desejos abre por sua vez um processo de
experimentação e de criação. Há que se experimentar o que implica a mutação da subjetividade e criar os agenciamentos, disposi-
38
co-buarque-se-tornaria-musico-profissional-setivesse-nascido-em-1990/. Ao mesmo tempo, não
concordo com a bandeira da desmonetização da
arte como única possibilidade de preservá-la em
sua dimensão ativa, transformadora, vivificadora.
Não acho justo que os artistas sejam sacrificados
em nome de um “enxergar primeiro” a decadência
de nosso sistema de vida “sociopolíticoeconômicocutural”. Acredito que fomentivos e instituições que sejam capazes tar a relação direta, em todos
de desenrolar novas possibilidades de os níveis (econômico, simbólico e afetivo), entre o artista
vida. (LAZZARATO, 2006, p.36)
e o indivíduo tocado por sua
Neste texto, nos interessa pensar, portan- arte é a única saída no curto
to, junto com Lazzarato, que é possível sair prazo. E em relação a isso,
dessa lógica binária entre socialismo esta- me lembro de uns versos de
tal totalitarista-universal ou neoliberalismo um grupo inglês que costugeneralizado do Estado-Capital financeiro. ma circular nas intercessões
Para compreender as relações de força na entre o mainstreaming e os
sociedade contemporânea e realizar um espaços de transformação, o
diagnóstico mais próximo da realidade das Radiohead:
lutas globais, seria preciso investir em um
I will shake myself into your
pensamento-ação, através da filosofia-prápocket
xis, que possa nos abrir um campo teórico
Invisible
mais complexo fora do universo da totalidaDo what you want
de e que nos permita “entrar no mundo do
Do what you want
pluralismo e da singularidade, em que as
conjunções e as disjunções entre as coisas I will sink and I will disappear
são em cada momento contingentes, especí- I will slip into the groove
ficas e particulares e não remetam a nenhu- And cut me off
ma essência, substância ou estrutura pro- Cut me off
funda que as possam fundar” (LAZZARATO,
We will shake and we’ll be quiet
2006, p.19). Esse pensamento-ação nos peras mice
mite compreender-experimentar a realidade
And while the cat is away
política atual a partir das relações exteriores,
Do what we want
fora dos fundamentos, das raízes profundas,
Do what we want
39
dos modelos arborescentes nos quais cada relação só expressa um dos aspectos de alguma coisa.
Aqui uma escolha pela teoria pós-estruturalista da
multiplicidade, que afasta as relações binárias para
compreensão do mundo político, social e econômico, nos lança num campo de pensamento complexo
e configurado em múltiplos platôs que se conectam
transversalmente. Aponta-se para um pensamento da
imanência através do qual possamos constituir uma
ontologia pluralista formada por singularidades que
compõem as resistências ao Império neoliberal do
capitalismo financeiro que, segundo Negri e Hardt,
poderia ser chamado de processos multitudinários,
construindo um projeto político de produção do comum. Assim como Lazzarato, Hardt e Negri nos apontam a resistência em Seattle no ano de 1999 como um
primeiro indício claro dessa nova formação popular
insurgente. Segundo os autores, o que diferencia a
multidão de povo (diretamente relacionado ao estado-nação) ou de massa (diretamente relacionado ao
mercado) é que ela é um conjunto de singularidades
que possui a potência da construção do comum, fora
da lógica socialista ou capitalista. Para eles “quando
você se tornar uma singularidade, jamais será um eu
integral. As singularidades são definidas por meio de
um ser múltiplo internamente e de um descobrir a si
mesmo externamente apenas em relação aos outros”
(HARDT; NEGRI, 2014, p.57).
Sem um delineamento preciso dessas insurgências
que formam grupos de singularidades não mais baseados nas identidades de classe, de gênero, de raça,
fora da lógica dos sindicatos e dos movimentos organizados, amplia-se a impossibilidade de desenhar
com maior clareza a nova classe multitudinária configurada nas resistências ao neoliberalismo. Essas
insurgências vêm se expandindo e ganhando as ruas
de todo o mundo, não necessariamente em países em
crise econômica, mas também no Brasil, em pleno
processo neodesenvolvimentista. Há uma constru-
40
ção em tempos táticos e estratégicos de resistências
mundiais contra o urbanismo neoliberal, que se configura performaticamente nas ruas e nas redes, utilizando ao mesmo tempo processos destituintes (via
ação direta, manifestações, ações judiciais) e constituintes (via ocupas e acampadas, produção de cultura,
arte, textos, vídeos, imagens e novos modos de vida).
Hardt e Negri, em um pequeno e precioso livro denominado Declaração, escrito após a jornada de acampadas que ocorreram por todo o mundo em 2011, dão
continuidade ao projeto de mapeamento da multidão
e nos ofertam uma sintética e potente análise dos
processos revolucionários, ressaltando que a estrutura rizomática Maria Goretti Gomide Pinheiro (22 de oumultitudinária é coletiva e recusa tubro de 2014)
toda forma de ordenação vertical, O que ainda estamos vendo hoje é um
assim como, o processo biopolítico puro capitalismo rentista, uma manipunão se limita à reprodução do ca- lação e monopolização intelectual dos
pital com uma nova relação social, interesses da sociedade. A arte vem
mas, sim, apresenta também o sendo tratada apenas como objeto de
potencial de um processo autôno- mercadoria, sujeita às leis de procura
mo que poderia destruir o capital e oferta do mercado que, de certa mae criar algo completamente novo neira, afeta a criatividade, as formas
de fazer e suas múltiplas linguagens,
(HARDT; NEGRI, 2014).
não permitindo a partiticipação intelecÉ interessante observar que, des- tual dos espectadores, impedindo-os
de 2011, os movimentos multitudi- de compartilhar, recriar, refazer para
nários (em todo o mundo) ocupam que, desta forma, possam alcançar o
praças e ruas, reforçando a luta território dos pensamentos. O capicontra projetos neoliberalizantes talismo rentista manipula produzindo
de privatização do espaço públi- uma padronização da cultura em busco e, nestes processos de ocupas, ca do lucro, reproduzindo ideias que
apesar dos curtos espaços de tem- servem apenas para a própria perpepo, surgem múltiplos processos tuação e legitimação, e por extensão a
constituintes de outra sociedade sociedade capitalista como um todo. As
que pode se organizar independen- classes exploradoras não assimilam
temente da lógica Estado-Capital as mensagens veiculadas, tornando-se
da democracia representativa, for- receptáculos vazios. A interpretação da
mando novas redes afetivas e no- mensagem está relacionada com sua
41
vas formas democráticas, novos modos de vida baseados na produção do comum (em defesa dos bens
comuns e em processos constituintes de modos de
organização “em-comum”). Os acampamentos são
uma grande fábrica para a produção dos afetos sociais e democráticos, constituindo-se uma plataforma para o desenvolvimento de novas formas políticas
nas quais o autodidatismo possa ser organizado como
um exemplo de acesso livre ao comum, incluindo informações, conhecimentos, livres de obstáculos financeiros e também dos obstáculos provenientes do
dogmatismo e da censura. Sendo assim, a produção
do conhecimento se torna um comum por excelência.
Para os autores, tornar-se comum é uma atividade
contínua, orientada pela razão, vontade e pelo desejo da multidão, que deve passar por uma educação
de seu conhecimento, pela criatividade, pelos afetos
políticos inovadores, para que as decisões sobre o
comum sejam tomadas por meio da participação-decisão democrática, e não por meio de representantes
eleitos (HARDT; NEGRI, 2014).
Na esteira desses movimentos insurgentes globais,
a ocupação massiva das ruas no Brasil em junho de
2013 fez parte de um processo mundial de resistência ao neoliberalismo, que se destacou com muita
evidência nos processos de construção de grandes
obras para a Copa do Mundo. Compreender que esse
novo movimento faz parte de um processo global é
fundamental para compreender tanto os processos
destituintes quanto os constituintes que estão sendo
realizados no País desde junho de 2013. Isso também
amplia a discussão para fora da simples lógica nacional envolvendo partidos políticos definidos e governantes específicos. Perceber que, no Brasil, tanto
os arquitetos e urbanistas quanto os políticos de esquerda contribuíram e contribuem para a realização
das Parcerias Público-Privadas e para a privatização
dos bens comuns nos auxilia no entendimento das
revoltas locais.
42
Nesses movimentos multitudinários globais, a política é uma ontologia plural: o pluralismo das lutas,
que emergem das tradições divergentes e expressam objetivos diferentes, combina-se com a lógica
cooperativa e federativa da assembleia para criar um
modelo de democracia constituinte, em que estas diferenças são capazes de interagir e se conectar umas
com as outras, formando uma compo- consciência e com os valores que só podem ser comsição compartilhada. preendidos com base na análise de seu modo de vida.
Essa pluralidade de Percebo, hoje, uma tentativa de sair das entranhas
movimentos contra o dessa produção capitalista. Tenta-se alcançar nocapital global, contra vos espaços e meios para criar uma nova existência
a ditadura das finan- fora das formas de capitalismo de Estado, mercado,
ças, contra os biopo- regulados pelo poder. Estamos ainda numa fase de
deres que destroem transição para uma nova sociedade, todavia, proo planeta surge em gressivamente devemos nos afastar, ir alcançando
busca do acesso li- uma economia mista, heterogênea, com múltiplas
vre e compartilhado formas de propriedade estatal, pública, privada, indo comum e de sua cluindo vários tipos de empreendimentos. Acredito
autogestão; discutir, que existirá uma produção artística transformadora,
aprender, ensinar, mesmo pertencente ao sistema de arte. Será possível
estudar, comunicar- fazer uma arte potencializando um discurso dentro
se e participar das da lógica do capitalismo rentista e existirá outra arte
ações: estas são al- fora dos padrões impostos que forçará o avanço e um
gumas das formas de diálogo cognitivo e criativo. Estamos num processo
ativismo, constituin- de constante contaminação e o entorno social constido o eixo central da tui um lugar e “um potente repertório de habilidades
produção de subjeti- no terreno dos afetos, das relações, dos costumes,
vidade numa ontolo- dos desejos, dos conhecimentos e cicuitos culturais”.
gia plural da política Num espaço comum as ideias são compartilhadas e
que é colocada em absorvidas de forma mais intensa, porque também
prática por meio do ocupam espaços em nossas vidas. Dessa forma o disencontro e da com- curso afetará os modos de pensamento, o que podeposição de subjetivi- rá modificar os indivíduos, a maneira de interpretar,
dades militantes.
viver e compreender o mundo, destruindo o bloqueio
criativo, promovendo o bem-estar social, com o uso
É no território me- das combinações tecnológicas, formas de ligação à
tropolitano que es- terra e dos hábitos do coração, oferecendo novas possas lutas multitudi- sibilidades e ampliação das lutas pela libertação. A
43
nárias geram um contorno plural, singular e coletivo
de forma espacial, ganhando visibilidade e forçando
o Estado a repensar as formas burocráticas e pouco participativas que vêm imperando na construção
dos planos via parcerias público-privadas. Ou seja, a
produção do comum é o que já acontece no trabalho
biopolítico imaterial do cotidiano, a metrópole é onde
esta biopotência ativa da multidão ganha intensidade e dimensão, e, portanto, a constituição do comum
nos processos insurgentes contra o Estado-Capital
faz crescer novas formas de vida que vão se tornando
desejo de uma ampla gama de jovens e minorias até
então excluídas dos processos democráticos, tanto no
Brasil quanto no mundo.
Em meio a esse caldo biopolítico da multidão, vemos
também o cruzamento de grupos e sujeitos antes
isolados e marginais ao processo das lutas urbanas
organizadas, como: pixadores, funkeiros, rapeiros,
prostitutas, população de rua, skatistas, vendedores ambulantes, estudantes. Essa mistura maluca,
híbrida, biopolítica também vem assumindo formas
inusitadas, que fogem ao simples ato de marchar enfileirados nas ruas guiados pelos carros de sons dos
sindicatos e partidos, mas se envolvem cada vez mais
numa estratégia tática afetiva, gerando heterotopias
através de festas, carnavais, atos artísticos, intervenções nas redes de forma ubíqua, fazendo cruzar o
espaço topológico das redes com o espaço físico das
ruas. Também surgem novas formas de construção
de novas subjetividades políticas que passam pelas
assembleias populares em praças e parques, ou ocupas que vão ocupar tanto o espaço público (do Estado)
quanto o espaço privado (do Mercado) através de
ações diretas de diversas ordens, gerando situações
territoriais autônomas (temporárias ou não). Mas não
é somente através de atos curtos e de instantes de
lutas que se veem crescer as resistências positivas,
diversas ações que envolvem o aparato jurídico e político oficial estão sendo construídas cotidianamente
44
arte é, nas palavras de Adorno (1970,
p.117), “protesto constitutivo contra
a pretensão à totalidade do discursivo [...]”. Um protesto radical contra
todo o poder, inscrito não em seu
conteúdo, mas em sua forma. É na
forma que se encontra o verdadeiro
elemento de protesto. Para ter forças
contra uma sociedade gananciosa e
e surgem das conexões multitudinárias de concorrência, a arte precisa ser
redes-ruas. Atitudes antidemocráticas inútil em sua forma, uma inutilidade
envolvendo a expropriação do comum, radical para resistir ao poder da falsa
que até 2013 eram decisões políticas integração.
tomadas somente pelo poder público,
agora vêm sendo sistematicamen- Natacha Rena (22 de outubro de 2014)
te denunciadas ao Ministério Público. Bingo, Ricardo Macedo! Se pararmos
Mecanismos de participação popular, pra observar o modo como todo o esaté então abandonados pela sociedade paço vem sendo privatizado, não sode maneira geral como os espaços das mente as instituições (exemplo: BH
Câmaras do Legislativo, têm sido dia- hoje tem suas Escolas Municipais
riamente ocupadas por movimentos so- geridas por uma empreiteira!), mas
ciais que trazem debates fundamentais toda a cidade: praças, parques, ruas,
para a construção da cidade, envolven- passeios, espaços aéreos, etc. A lógido principalmente o tema do transporte ca da privatização vem sendo incorpúblico via movimento Tarifa Zero, ou a porada e a arte tem grande potencial
Reforma Urbana e a luta pela moradia crítico para atuar também nesses
via movimentos organizados e em ex- espaços, em grande escala. Eu sempansão como MLB, Brigadas Populares, pre penso no Coletivo Projetação (Rio)
grupos de pesquisa das universidades em como eles vêm participando ativae ativistas de diversos setores. Esse mente de todo esse processo. Em São
conjunto destituinte dos poderes tradi- Paulo também coletivos como Cobaia
cionais se soma ao conjunto de ações e Frente 3 de fevereiro são exemplaconstituintes que vêm tomando forma e res nessas atuações junto de pretos
dimensão, como é o caso da ocupação e pobres, de ocupas de edifícios, etc.
cultural Espaço Comum Luiz Estrela, Mas acho também que os artistas e
45
em Belo Horizonte (MG), que tem sido referência
para diversos grupos minoritários de loucos a feministas, de sem teto à população de rua, de estudantes
a artistas.
A multidão, na defesa do comum, performa novos
modos de vida e questiona, com ênfase poética e política, a propriedade privada. Sabe-se que as formas
de representação estão em crise, mas é a democracia gerida pelo Estado-Capital que mais sofre com a
radicalidade das novas lutas, porque é nela que se
escondem todas as redes de perversidades do poder
instituído (governos com seus legislativos, executivos e judiciários, mercado, mídias, igrejas, sindicatos,
etc.). A propriedade privada é a forma mais evidente
da democracia burguesa e foi criada para garantir a
eternidade das elites no poder. O que se explora é a
vida, a vida dos pobres, que somos, em tempos pósmodernos, todos nós, os precarizados. Acontece que
é nos processos colaborativos em rede que essa nova
classe precariada avança insurgente, exigindo democracia real e a construção do comum urbano, livre do
Estado e do mercado.
Se desde Seattle, mas, com muita intensidade, desde
a crise econômica de 2008 nos EUA e na Europa, vivemos uma crescente revolta global conectada contra
os processos de expropriação do comum em diversos
níveis, experimentamos neste último ano no Brasil:
do Parque Gezi, em Istambul, passando pela revolta
em Gamonal, na Espanha, pelo movimento Fica Ficus,
em Belo Horizonte, pelo Parque Cocó, em Fortaleza,
ou pelo Parque Augusta, em São Paulo, vemos surgir
uma multidão de singularidades e grupos artísticos,
de ativistas, moradores locais e vizinhos, população
de rua e comerciantes interessados em recuperar
o debate político sobre a cidade e a construção do
ambiente que pertence às suas vidas cotidianas. A
democracia representativa já não mais representa o
cidadão comum e vem deixando de lado os interesses
46
intelectuais precisam ocupar as instituições, participar de conselhos, atuar politicamente também... Porque esses espaços
vazios deixados por todos nós são constantemente ocupados
pelos que vivem disto: interesse financeiro. Precisamos retomar o gosto pela política dentro e fora da arte. Na vida cotidiana e principalmente atuando nos processos constituintes
de novas formas de vida. Isso requer mais articulação e um
tempo para isto...
Ricardo Macêdo (22 de outubro de 2014)
Eu gostaria muito de ter de volta aquilo que um dia foi meu:
as áreas de recreação na cidade, praças com eventos sem
grades, etc. Acho que o texto sensibiliza o olhar nesse tocante,
estamos a viver uma privatização do que deveria ser público,
às vezes sem perceber. Nesse caso, a experiência também se
torna objeto de consumo. Gilles Lipovetsky diz que estamos
vivendo uma mercantilização da experiência. Reconstruir a
metrópole nesse sentido mais coletivo e geral, sem centro,
parece ir para além dos já conhecidos discursos primitivistas
(John Zerzan), niilistas (anarco-punks, cyber punks), apocalípticos e distópicos (K. DicK, J. Baudrillard), ninjas (H. Bey) e ir
numa outra direção, porque ampara todos eles e muitos outros,
mas não fecha em um só. Acho que esse é um dos sentidos das
conexões que formam outras conexões, como proposto pelo
autor dentro da ideia de multitude. Tô achando bem legal o
estudo aqui com vocês, contudo, ainda caminhando e tentando
assimilar as concepções.
Natacha Rena (20 de outubro de 2014)
Vou fazer um documento aqui pra gente ir cartografando junto
exemplos de artistas e projetos citados por todos nós para que
possamos ter este conjunto de referências para avançarmos
no debate. O conhecimento livre, a ideia de autoria compartilhada, o copyleft, processos mais horizontais, configurados colaborativamente, podem, sim, auxiliar na constituição de novos
modos de vida e de produzir arte e cultura. Empoderamento do
outro via estratégias (institucionais públicas ou privadas e políticas públicas) e táticas (envolvendo processos multitudinários)
acontecem em diversos campos do conhecimento, mas a arte
possui uma potência de atuação subjetivante, construtora de
47
de todos para garantir o interesse do mercado que
financia o Estado e suas campanhas políticas que garantem a permanência de grupos no poder. Contudo,
a sociedade se rebela. O espírito de multidão que encara o Império de frente e exige democracia real e,
em muitos casos, o direito de ter seus bens comuns
administrados autonomamente fazem parte dessas
novas organizações ativistas que trazem o frescor da
coleção subjetiva das diferenças e a pauta ampliada
das lutas.
Seria também interessante notar que esses movimentos são horizontais, sem lideranças definidas, e
possuem uma dinâmica de articulação, que, por ser
rizomática, é impossível de cooptar. Vemos o EstadoCapital na tentativa desesperada de se aproximar desses movimentos para capturar a sua dinâmica que se
recusa a pertencer à lógica do Aparelho de Estado,
pois são máquinas de guerra configuradas por maltas
híbridas. A autonomia e a autogestão é tudo o que o
Estado-Capital não pode suportar.
A construção da subjetividade via mecanismos oficiais
do poder imperial (grandes mídias) já não convence
mais a sociedade com tanta facilidade, e assistimos
a uma ampliação dos campos de luta pela construção do comum, seja nas ruas, seja nas redes. Não
se trata somente do território verde dos parques e
praças, mas também da exigência de função social
para a propriedade e o direito de ir e vir via tarifa zero
nos transportes, direito de morar. Pode-se detectar
essa demanda nos movimentos pró-habitação; a força política dos movimentos pela mobilidade; a força
estética e afetiva dos movimentos de ocupas culturais.
Sabemos que esse é um movimento muito maior que
possui relações com o fim do esplendor do capitalismo neoliberal e a chegada de um novo mundo biopotente, mundo no qual o poder sobre a vida é substituído pelo poder da vida. Esses novos espaços do comum
são habitados por jovens, crianças, artistas, ativistas,
48
militantes de todas as ordens, idosos, comerciantes,
gays, lésbicas, bis, trans, queers, e muitas outras categorias e outros gêneros que representam uma nova
sociedade ativa e plural.
Fora da lógica dos movimentos viciados da esquerda clássica, que acredita na ideia unitária de povo, e
fora da lógica do mercado, que só pensa nos cidadãos
como massa, a multidão é plural e atua no trabalho
vivo e imaterial produzido em rede coletivamente e
criativamente. Portanto, estancar a força motriz que
move esses movimentos não vai ser tarefa fácil para
o Estado-Capital, já que o que os move é o amor e o
afeto e o próprio sentido ativo da vida.
afetos que poderiam se expandir na vida cotidiana, não pertencendo apenas a um círculo fechado envolvido no sistema
da arte. Essa é uma grande questão, né? Como expandir a
bipotência ativadora de novos desejos pra toda a sociedade?
Como fazer com que essa sensibilidade crítica, corporal,
afetiva da arte possa ser um modo de constituir um mundo mais democrático? Muitos artistas em todo o mundo
vêm tentando construir novas plataformas de trabalho fora
desse sistema... Mapear esses exemplos pode realmente
nos ajudar a pensar melhor sobre isso. Fico imaginando
também que muitos de vocês têm razão, não podemos dizer de forma simplificada que se algum trabalho de arte
está inserido no sistema da arte (Estatal ou mercadológico)
perde sua potência tranformadora. E, pra isso, penso que
pode ser interessante criarmos indicadores qualitativos que
possam dizer da multitudinariedade da produção artística
em termos de intensidade; de que projetos, obras, ações
sejam mais ou menos intensas dependendo do conjunto de
qualidades multitudinárias que eles tenham. Vamos pensar
juntos nesses indicadores qualitativos? Bom, aqui iniciando um resumo de alguns processos já citados por colegas
aqui e outros que já podemos antecipar de outros textos e
espaços de debate:
49
Referências
FOUCAULT, M. O corpo utópico, as heterotopias. São
Paulo: Editora n-1, 2013.
HARDT, M.; NEGRI, A. Império. Rio de Janeiro: Record,
2001.
HARDT, M.; NEGRI, A. Multidão. Rio de Janeiro:
Record, 2005.
HARDT, M.; NEGRI, A. Commonwealth. El projecto de
una revolución del común. Madrid: Akai, 2009.
HARDT, M.; NEGRI, A. Declaração. Isto não é um manifesto. São Paulo: Editora n-1, 2014.
HARVEY, D. O neoliberalismo. História e implicações.
São Paulo: Edições Loyola, 2012.
LAZZARATO, M. Signos, máquinas, subjetividades. São
Paulo: Editora n-1, 2014.
LAZZARATO, M. Por una política menor.
Acontecimiento y política en las sociedades de control.
Madrid: Traficantes de sueños, 2006.
NEGRI, Antonio. Para uma definição ontológica da
multidão. In: DIAS, B.; NEVES, J. (org.). A política dos
muitos. Povo, Classes e Multidão. Lisboa: Tinta da
China, 2010.
PELBART, P. P. Vida capital. Ensaios de biopolítica. Ed.
Iluminuras: São Paulo, 2003.
RENA, Natacha; BERQUÓ, Paula. As Ocupações culturais em BH: biopotência estética e performativa da
multidão. In: CAVA, Bruno; COCCO, Giuseppe. Amanhã
vai ser maior. São Paulo: Annablume, 2014.
RENA, N. Neves-Lacerda declara guerra à multidão. Rio
de Janeiro, 30 de abril de 2013. Disponível em: http://
uninomade.net/tenda/neves-lacerda-declara-guerra
-a-multidao/. Acesso em: 06 dez. 2013.
50
Presente
Huit Facettes (África),
Ala Plástica (Argentina)
Bijari (Brasil)
Kaprow
Guerrilla Girls
Frozen (Chris Buck, Jennifer Lee, 2013)
Paulo Bruscky
_________
Gordon Matta-Clark
Hélio Oiticica
Lygia Clark
Hans Haacke
Natacha Rena (20 de outubro de 2014)
Outras questões como o sistema da arte indissociado da
lógica do mercado talvez não exclua a potência de projetos
e ações artísticas que trazem críticas, temas, pautas e propostas constituintes. Intuo que é possível, sim, transformar
de dentro dos sistemas, ocupar as instituições com novas
propostas e práticas. Na verdade, se pensarmos bem, a
democracia deveria ser um tema constante em todas as
disciplinas, em toda a vida, e a forma como as instituições
agem são, sim, direcionadas pelo capital que investe todo
o seu tempo e grande parte do seu recurso produzindo desejos e processos de expropriação do comum. Mas, podemos também participar mais ativamente dos processos e
das instituições. Sempre me pergunto o quanto todos nós
fazemos para disputar sentido com o Estado-Capital. Será
que não poderíamos ser muito mais ativos e atuarmos mais
inventivamente, deslocando, desviando e constituindo novos
mundos, tanto politicamente participando de debates sobre
políticas públicas quanto autonomamente, atuando em rede
e construindo novas formas biopotentes pra atuar junto ao
mundo?
Thaís Mor (19 de outubro de 2014)
A arte deve potencializar e gerar uma reação dos padrões
neoliberais do Estado-Capital, do Império. Talvez a Arte
Multitudinária seja essa nova “plataforma” de criar contex-
51
tos biopolíticos com uma biopotência autônoma. Essa nova fase
retoma conceitos simplistas afetivos e simplistas da vida. Vejo
um pouco como o movimento dos anos 1960/70, dos movimentos artísticos de Hélio Oiticica e outros que criavam encontros
“de vida” em praças e locais públicos, onde relações sociais,
afetos e criatividade criavam essa biopotência”. A “antiarte”,
proposta com que Oiticica pretendeu radicalizar a situação, é
exemplar. Não visava à criação de um “mundo estético”, pela
aplicação de novas estruturas artísticas ao cotidiano, nem
simplesmente nele diluir as estruturas, mas transformar os
participantes, “proporcionando-lhes proposições abertas ao
seu exercício imaginativo”, visando a “desalienar o indivíduo”,
para “torná-lo objetivo em seu comportamento ético-social”.
Apontando para outra inscrição do estético, Oiticica visualiza
a arte como intervenção cultural e o artista como “motivador
para a criação” (citação retirada do texto: Inconformismo estético, inconformismo social, Hélio Oiticica - por Celso Furtado).
Apoderar-se das próprias possibilidades empreendedoras do
neoliberalismo com um pensamento coletivo, estruturado, estético e conscientizador multitudinário. Questionar a gentrificação e essa “descontrução de uma metrópole bioconstrutiva
do pensamento”. Acredito numa arte biopotente organizada.
A estética X falta de planejamento urbano, o encontro X falta
do espaço coletivo, os afetos e relações sociais X estrutura do
pensamento neoliberalista = contra-Império.
Natacha Rena (18 de outubro de 2014)
Ricardo Macedo, você tem razão, realmente estamos aqui
adentrando num campo teórico que envolve alguns pensadores
como Foucault, Deleuze e Guattari, Hardt e Negri, Lazzarato,
dentre outros. Hardt e Negri possuem uma trilogia importantíssima para a compreensão da nossa situação contemporânea: Império, Multidão e Commonwealth. Sugiro, pra quem
quer começar a adentrar nesse universo teórico, a leitura do
livro Multidão, pois é simples e direto e faz uma boa análise
conjuntural do capitalismo atual numa primeira parte, depois
descreve e caracteriza o conceito de multidão, e numa terceira
parte fala sobre democracia real. Outro bom livro, pequeno e
muito direto dos dois autores, é o Declaração, da Editora n-1
(que curiosamente é de um dos grandes pensadores brasilei-
52
ros, Peter Pál Pelbart). Nessa editora já existem muitos livros
importantes para esse debate mais conceitual sobre arte e política. Citei isso num post anterior, mas, repetindo aqui, temos
no Brasil um grupo de investigadores da Universidade Nômade
que vem trabalhando esses conceitos já incorporados de questões que são mais próprias ao nosso contexto local brasileiro:
http://uninomade.net/lugarcomum/. Há um texto escrito por
mim, pela Nanda Chagas e pela Paula Bruzzi nessa revista
que faz um apanhado mais detalhado de temas envolvendo o
urbanismo e seus processos gentrificadores e também as manifestações estéticas biopotentes ocorridas em Belo Horizonte
nos últimos anos:
http://uninomade.net/wp-content/files_mf/111404140911Biopol%C3%ADticas%20espaciais%20gentrificado ras%20
e%20as%20resistências%20estéticas%20biopotentes%20
-%20Natacha%20Rena%20e%20Paula%20Berqu ó%20e%20
Fernanda%20Chagas.pdf
Natacha Rena (18 de outubro de 2014)
Concordo com quem respondeu que sim a esse primeiro questionamento! Acredito que seja possível deslocar/desviar o status quo normatizante que envolve as capturas de subjetividade
pelo Estado-Capital, produzindo novas subjetividades estéticas
políticas e transformadoras. Artistas, coletivos, curadores e
até mesmo eventos de grande porte como as bienais estão
ampliando esse debate que relaciona arte e política em todo
o mundo. Acho importante citar o exemplo de duas Bienais de
São Paulo que anteciparam (e a arte quase sempre antecipa)
temas multitudinários que surgem e desaparecem desde 1968:
Um e/entre Outro/s, curadoria de Paulo Herkenhoff (http://issuu.com/bienal/docs/name423574) e também a Bienal Como
viver junto, organização de Adriano Pedrosa e Lisette Lagnado
(http://editora.cosacnaify.com.br/ObraSinopse/11068/Comoviver-junto---Catálogo-da-27a-Bienal-de-São-Paulo.as px). A
primeira consegue trazer e apresentar temas e obras potentes, já a segunda tem um caráter mais conceitual e político
no sentido de revelar novas práticas coletivas e colaborativas
(como viver juntos?) envolvendo grupos e artistas nacionais
e internacionais em residências artísticas pelo Brasil afora,
53
gerando uma relação mais fecunda entre a produção da arte e
as políticas envolvendo situações singulares brasileiras (passando pelas comunidades ribeirinhas no Amazonas ou favelas
paulistas), além de criar um ambiente para um debate teórico
importantíssimo para qualificar as ações que envolvem o tema
transversal entre arte, política e vida. No caso dos coletivos,
como citaram alguns de vocês, estes vêm se multiplicando
em todo o mundo, o que já demonstra como o fazer-junto, colaborativamente, é uma tendência ao mesmo tempo produzida pela precarização e por processos próprios do capitalismo
cognitivo e como táticas desejantes já entranhadas em nossa ontologia multitudinária. Acho interessante pensar mais
uma vez nos anos 1960 e 70, décadas nas quais artistas como
Gordon-Matta-Clark já desenvolviam uma infinidade de trabalhos introduzindo fortes críticas aos processos de gentrificação
territorial, tanto em Nova Iorque (ver trabalhos como: Blowout,
Splitting) como em Paris com a intervenção Interseção Cônica/
Conical Intersect (http://vimeo.com/10617205), realizada ao lado
do Museu Pompidou (projeto de arquitetura realizado claramente para gentrifcar a região do Les Halle, território central
da cidade habitado por afrodescendentes). Ver texto de apresentação de uma das melhores exposições que tive a chance
de visitar no MAM sobre esse artista americano: http://mam.
org.br/exposicao/gordon-matta-clark-desfazer-o-espaco/. É
claro que nesse caminho, já apontado no texto de apresentação
dessa exposição de Matta-Clark no MAM citada anteriormente,
temos Hélio Oiticica, que já trazia naquele momento a potência da pobreza como vetor de criação de novos mundos, mais
sensíveis. Outros exemplos e um debate mais profundo sobre o
tema aqui tratado podem também ser lidos no artigo Processos
criativos biopotentes constituindo novas possibilidades de produção do comum no território urbano, meu e da Paula Bruzzi,
também professora deste curso. Esse artigo foi escrito para a
revista Lugar Comum, também outra fonte de pensamento ético
e estático envolvendo o tema do comum como projeto multidão
(http://uninomade.net/lugarcomum/) e deve ser publicado num
próximo número da revista.
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Bruno Dorneles (16 de outubro de 2014)
O que nos leva a perguntar: Quem imbui na cabeça das novas
gerações mais ideais feministas, as já citadas Guerrilla Girls
ou Frozen (BUCK, Chris; LEE, Jennifer, 2013)? A dilatação das
nossas ideias sobre biopotência e todas as micropolíticas que
a ela se associam tendem a se ligar a essa ordem de mensagem recebida como mensagem dada, conotação via denotação.
Acreditando que essa arte institucionalizada, parte dela, se
preocupa em propor ação política, seria contraditório (para
dizer o mínimo) presumir que artista e público dividem as mesmas perspectivas de vida, tanto quanto as mesmas ferramentas e habilidades para interpretá-las, cruzá-las e armazená-las
de forma a fazer reverberar esta mensagem para fora do espaço museológico em que se encontra. Dito isso - a dependência
da mensagem pelo sistema que a legitimiza e a valoriza e o
fato de que nenhuma mensagem comunica simplesmente o
que pretende comunicar - é de se esperar que qualquer tentativa de produção artística biopotente se veja, impreterivelmente, modificada no ato de seu consumo; seja pela reformulação
que sofre pelas vontades daqueles que adquirem direito sobre
sua exibição, seja por aqueles que a podem consumir.
Maria Caram Santos de Oliveira (14 de outubro de 2014)
Acredito que possamos pensar numa arte crítica mesmo dentro das galerias. Um exemplo interessante para mim é Hélio
Oiticica. Começando como pintor, quanto mais questionadora
e urbana se tornou a obra de Hélio, mais “invendável” e “incolecionável” ela foi se tornando, uma vez que as peças se
tornaram maiores, mais interativas, mais questionadoras e
intransportáveis. As obras de Oiticica, mesmo em galerias,
questionam os limites do espaço público, do coletivo X individual. Além disso, dentro do trabalho do artista é sempre possível trazer a reflexão sobre o artista e o real executor da obra.
Outro exemplo interessante é Hans Haacke, artista alemão que,
em 1971, na obra Shapolsky et al. Manhattan Real Estate Holdings,
A Real Time Social System, documentou e trouxe a público documentos que provavam o envolvimento de um empresário
com a especulaçao imobiliária na maior favela nova-iorquina. A
exposição que aconteceria no Solomon R. Guggehein Museum
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foi cancelada seis semanas antes de seu início e o curador que
a selecionou, demitido.
Ricardo De Cristófaro (14 de outubro de 2014)
Gostei do texto, Natacha, principalmente quando aborda, faz
um diagnóstico e analisa a situação social e política contemporânea (claramente sentida pelos cidadãos das grandes cidades). Entretanto, acho que o texto pouco aborda a maneira
como os artistas estão respondendo a essas situações. Mas
não vejo isso como um problema, uma vez que muitas das
afirmações são polêmicas e provocadoras, levando a reflexões importantes que precisam ser levadas em consideração,
quando nos propomos a pensar o que seria efetivamente uma
produção artística com “teor político” - não desconsiderando a possibilidade de pensar a “dimensão política” que pode
existir em qualquer proposição artística. Eu me refiro especificamente a proposições artísticas com intenções, motivações
e estratégias que perpassam questões de identidade e força
política dos movimentos sociais. Nesse sentido acredito que
o “mercado” e, muitas vezes, a necessidade de sobrevivência
dos artistas e grupos de artistas irão corromper a capacidade
de “transformação”. Considero que você tem razão ao citar o
método cartográfico “como um dos meios para produção artística enquanto resistência positiva, primeira e ativadora de
afetos revolucionários”. Também concordo com seu diagnóstico que coloca a cidade como “lugar no qual a biopolítica das
resistências primeiras são potentes, possibilitando encontros
que, apesar de todas as estratégias para evitá-los, se dão com
maior ênfase em processos constantes de contaminação”. Na
cidade contemporânea essa “cartografia” não é mais topográfica e, sim, topológica.
Ricardo Macêdo (14 de outubro de 2014)
Em termos mais práticos, o trabalho de grupos que não se
configuram nem como artistas e nem ativistas, mas estão na
fronteira, como Huit Facettes (África), Ala Plástica (Argentina)
e Bijari (Brasil), que propõem oficinas e workshops e têm na situação ou no acontecimento estopins para processos artísticos
críticos, que eu entendo como obras de arte contemporâneas,
no fim das contas. A situação hoje é obra, como nos diz a Claire
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Bishop. Não me refiro à instrumentalização do Outro, mas ao
empoderamento do Outro; instrumentalizar é despontencializar o conhecimento do Outro e cair no paradigma hierárquico
(isso pode ser acessado nos textos de Grant Kester – The one
and many, ou de Michel de Certeau, A invenção do cotidiano).
Contudo, como propor mudanças de paradigma se aquilo que
propomos ao Outro não é evidenciado em nossa prática diária?
Não falo de autoajuda (risos), não é isto! É poder nos rever
como pessoas que se esforçam por ser educadores ou artistas críticos da realidade, despertando isto nos participantes.
Esse despertamento tem ocorrido via lúdico (se lembrarmos
das atividades de Kaprow ou das participações nas obras de
Lygia Clark), e parece estar sendo entendido como dispositivos
(estratégia e táticas) novos para ativar a participação crítica e
menos fria na obra convivial. Acho que isso quebra o valor das
obras mercadológicas dentro do sistema (ou, por um lado mais
perverso, cria uma nova praia pra curadoria: mercantilização
das obras conviviais, mercantilização do outro, isto é horrível!),
pois se negam a ser apenas obras, e passam a ser vivências
que transformam o Outro na ação, no processo da oficina ou
processo colaborativo. Contudo, se isso fica apenas no texto
(pois agora é moda) e no discurso, acaba ocorrendo um simulacro, um pastiche, como ocorre nas proposições encabeçadas
pelo Nicolas Bourriaud, uma teatralização do convívio sem
participação política e esforço para mudar a própria mentalidade (Quem ensinará aos educadores, Edgar Morin?). Enfim,
desculpem a enxurrada de palavras e os cacoetes acadêmicos,
mas isto tem tomado muito do meu tempo. Já fui artista unicamente de galeria um dia e hoje procuro as brechas desse
sistema para agir dentro dele, ainda não sabendo bem como
fazer isto...
QUESTÃO 2
Não seria necessário às lutas uma produção estética como ação
fundamental na disputa pelas subjetividades? Onde estão e quais
são as manifestações estéticas e artísticas que surgiram nos últimos anos e que fazem parte de um movimento maior, glocal, de
produção de novas subjetividades, multitudinárias, atuando no
território e produzindo novos espaços mais democráticos?
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Fred Triani (31 de outubro de 2014)
Já que várias pessoas falaram das ocupas, do Piolho, guerrilla
girl, vou citar o grupo Voinahttps://www.youtube.com/watch?v=pUu5GkXiOfM. Este projeto aqui também é interessante:
http://www.thing.net/~rdom/ecd/ZapTact.html
Reginaldo Luiz Cardoso (26 de outubro de 2014)
Os movimentos multitudinais, embora presentes desde sempre
nas vanguardas modernas, foram inaugurados simbolicamente
em 30 de novembro de 1999, na cidade de Seattle. Todos eles
apontam, sem dúvida alguma, para novas práticas da subjetividade e, consequentemente, da política. São formas de ativismo que propôem uma redefinição das relações de poder
no território, que é o que, afinal de contas, define o território.
Inúmeras dessas práticas foram citadas aqui pelos colegas.
Esses momentos de ação contribuem à criação momentânea
de situações em que tudo parece possível, em que a ordem
balança, em que a cidade parece reapropriada, “liberada” em
alguns pontos. Essas Zonas Autônomas Temporárias (TAZ) são
muito importantes: trata-se de toda uma ação sobre o território, sobre as possibilidades que ela deixa entrever às pessoas - o fato de que outra coisa é possível, de que o cotidano
vai além da fatalidade. Esses instantes de exaltação - quando
o mundo todo parece desmoronar - estão certamente deslocados em relação à realidade, que em geral logo restabelece
a ordem, mas são indispensáveis e imprescindíveis (portanto,
não concordo quando a Natacha diz que a dinâmica desses movimentos “é impossível de cooptar”). Porém, são as pequenas
ocasiões que dinamizam, dando essa impressão de que nada
será mais como antes, podendo ser catalisadoras de energias,
pontos de partida de iniciativas, de criações e de ações. Nos
muros de Seattle lia-se: “We are winning!”.
Cristiano Araújo (23 de outubro de 2014)
Movimentos que subvertem (ou pelo menos tentam) instituições e o mercado da arte, que segrega e impõe limites, consequentemente produzem espaços mais democráticos. A expressão artistica é, por si só, política. A produção da estética
está, sem dúvida, relacionada a essa potência na disputa pelas
subjetividades, porém não mais como antes. Talvez influen-
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ciadas pela internet, são criadas novas formas de se relacionar com espaços comuns, amplia-se o acesso e se exige a
constante renovação e experimentação nas lutas multidinárias.
Exemplos disso, como já citado por aqui: o Espaço Comum Luiz
Estrela, a Praia da Estação, entre outros. Destaco também
o movimento Tarifa Zero BH, que apostou em uma estética
diferente das que são geralmente realizadas nas expressões
artísticas/políticas por movimentos tradicionais (ou não) de
esquerda. Mas confesso minha inquietação para o pouco que
isso é discutido e trabalho em certos movimentos, coletivos
artísticos, etc. Considero fundamental uma produção estética
estritamente ligada com os objetivos das lutas. Há um poder
forte e transformador nisso, que ainda é pouco explorado ou
não é dada tanta atenção.
Carlos Muñoz Sánchez (23 de outubro de 2014)
Respondendo a muitos dos comentários que falam da arte urbana como essa nova arte ligada à cidade, acho que ainda há
um caminho pra fazer. Explico: sempre entendi o graffiti (pixação no Brasil) como arte involuntária, sem intenção artística,
mas com uma carga importante de estética. Quando era mais
novo já fui graffitero na Espanha, e me lembro como passava
tardes e tardes tentando melhorar minha assinatura pra ela
ser a melhor da minha cidade. Inclusive hoje, quando ando pela
rua, vou vendo os diferentes nomes escritos nas paredes e vou
analisando. Dá pra ver quem está começando, quem já tem um
tempo no mundo do graffiti, quem se preocupa mais pelo lugar
(por exemplo, na parte alta dos prédios) do que pela estética.
Mas, no final das contas, a porcentagem de pixadores que têm
uma intenção artística na ação de pixar é pequena. Eu acho que
a arte urbana tem que pegar todo o desenvolvimento crítico
feito pelos artistas de Land Art, mudando essa ideologia até as
cidades. Richard Long, em obras como A line made by walking,
transforma o ato de caminhar numa obra de arte, levar isto
até as cidades tem como resultado ações como as derivas feitas pelos situacionistas, ou, mais recentemente, o movimento
Jane’s Walk, que organiza passeios pelas cidades mantendo viva
a luta de Jane Jacobs pra usar o espaço público. Além disso,
na Espanha vem aparecendo a cada ano um monte de propostas de novos coletivos. Arquitecturas Colectivas foi criada em
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2007 para dar suporte a alguns coletivos que trabalhavam com
metodologias e ideias parecidas, mas, depois do início da crise,
o número de coletivos cresceu exponencialmente. Propostas
como LaFábrika detodalavida estão criando um espaço para
práticas abertas e o estudo do bem comum num âmbito rural
de uma das regiões mais pobres da Espanha, concretamente
em Los Santos de Maimona. A facilidade que oferece a internet
hoje permite estar ligado com o mundo, embora seu projeto
esteja num entorno afastado das metrópoles. Algumas respostas da anterior pergunta falaram dos problemas de uma
cidade pequena. Eu não acho que de fato seja um problema,
não agora, com a facilidade e a velocidade de conexão com
qualquer parte do mundo.
João Paulo de Freitas Campos (23 de outubro de 2014)
A arte possui uma potência - manifesta e, principalmente,
latente - de transformar nossa experiência - para lembrar
Gilbert Simondon, estamos em um constante processo de
transducção, ou transformação de sistema, em diversos níveis, através da troca de vetores informacionais. Assim, a arte
exerce, no mundo contemporâneo, um papel importantíssimo
nesse constante movimento de reinvenção da vida. Através
dela nós ressignificamos nosso cotidiano criativamente, transformamos estética e discursivamente nosso eu e nosso ambiente - no caso, a cidade.
Carlos Dalla Bernardina (23 de outubro de 2014)
Acredito num caminho mais afirmativo e criativo, baseado no
afeto, no amor, que sempre foi e sempre será o grande tabu
da sociedade. Pessoas sempre foram assassinadas por praticarem a inteligência afetiva, o amor, em suas formas mais
radicais. Esse caminho, para mim, envolve o que o Bernardo
colocou lindamente em seu texto, “a disposição em arriscar a
própria identidade para podermos escutar o outro e comunicar
efetivamente, pela arte ou não”. Porque nesse caminho criativo e carregado de inteligência afetiva o ser humano sente-se
nutrido e forte o suficiente para não precisar valer-se dos modelos de identidade herdados e impostos pelo meio social... Ele
tem uma relação criativa com a construção da própria identidade... E ele pode fazer isso sem surtar ou deprimir, pois está
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ancorado no afeto que o une aos outros de modo mais genuíno
do que qualquer ideal ou interesse comum. A partir disso ele
pode, de um modo mais descomplicado, entrar no fluxo citado pela Júlia Nascimento, agrupando-se em rede, formando novas redes a partir do encontro desses agrupamentos, e
produzindo então, “fora da guerra”, novas subjetividades que
não têm mais o tempo e a energia para cultivar qualquer processo de persuasão, além daquele engajamento espontâneo
que surge pela vitalidade que a própria rede emana para fora
de seus domínios.
Taís Freire de Andrade Clark (23 de outubro de 2014)
Acredito que não só uma forma alternativa de produção estética é fundamental para dar voz às lutas, como é natural que
isto ocorra, já que a arte se configura como um ótimo meio
de diálogo. Em Belo Horizonte, nos últimos anos, surgiu um
movimento muito representativo nesse sentido que foi o Duelo
de MCs que ocorria toda sexta-feira embaixo do viaduto de
Santa Tereza. No Duelo, uma forma de disputa consiste na
utilização de recursos de autoafirmação para ganhar adesão
do público. O outro tipo de duelo é o temático, no qual os MCs
devem desenvolver rimas que se relacionam a um determinado tema sorteado. Aqui assuntos que envolvem questões
sociais são abordados e expressos pelo viés dos MCs, sempre
ressaltando a cultura Hip Hop. Além disso, durante o Duelo
de MCs, há também a prática do Street Dance e do Graffiti.
Apesar de não acontecer mais semanalmente (já que o viaduto
de Santa Tereza foi fechado para uma reforma-surpresa), o
Duelo atingiu seu grande objetivo, que era levar ações da cultura Hip Hop de Belo Horizonte para a rua. Mas, mais do que
isso, ele configura um movimento de resistência do Coletivo
Família de Rua, que, através da transformação de um espaço
público esquecido em um grande palco, se transformou em
um marco de resistência para as juventudes de Belo Horizonte,
mostrando que a construção de espaços mais democráticos
através de uma produção cultural alternativa é, sim, possível.
Para mais informações sobre o Duelo de MCs: https://twitter.
com/familiaderua; http://duelodemcs.blogspot.com.br/; http://
variavel5.com.br/blog/caps-lock-duelo-de-mcs/.
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Victor Hugo Tozarin dos Santos (23 de outubro de 2014)
Como manifestações estéticas e artisticas atuais pode-se citar
a Ocupação Luiz Estrela, que gerou como resultado o Espaço
Comum Luiz Estrela, um lugar público, aberto a todos, que
oferece oficinas, exposições, apresentações, debates e muitas
outras interações artístico-político-sociais, trazendo à tona a
democratização da arte e a dominância de um novo uso, mais
pertinentes à comunidade local, a edifícios abandonados pelo
governo. Pode-se citar também o Occupy Wall Street, um movimento de protesto contra a desigualdade econômica e social,
a corrupção, a especulação imobiliária indevida, proveniente da
influência gananciosa das grandes empresas. Tal movimento
entra em concordância com a lógica de que a multidão, quando
em rede, através de táticas estéticas, atua na discussão política e ataca o capitalismo contemporâneo.
Claudia Laport Borges (22 de outubro de 2014)
Movimentos como o RAP (que envolvem aí dança de rua, por
exemplo), valorização de festas e danças populares (maracatu, samba de roda, dança do coco, etc.); grafites; poesias em
espaços públicos; tricô nas ruas; democratização de livros/
conhecimento, como as paradas culturais (em Brasília várias
paradas de ônibus possuem livros que podem ser emprestados
- esta é uma ação promovida pelo Açougue Cultural T-Bone);
estátuas vivas; circo no trânsito; le parkour, entre outros. Na
minha cidade, por exemplo, os espaços públicos, geralmente
utilizados pelo governo, hoje são “invadidos” por atividades
culturais gratuitas, promovidas ou não pelo governo distrital. O
Museu da República, por exemplo, localizado na Esplanada dos
Ministérios, é ponto de encontro de skatistas, rappers, shows
de bandas da cidade, etc. Ou seja: a arte tomando conta de
espaços que, no dia a dia, são direcionados às questões puramente políticas e econômicas.
Bernardo Romagnoli Bethonico (21 de outubro de 2014)
A produção estética das lutas viraliza desejos de outros mundos. Coloca os temas de reivindicação política na ordem do dia
ao mesmo tempo que aponta para lá deles, para modos de vida
e para o coração, para o singular como ponto de enunciação.
Da mesma forma como a antiga esquerda torna-se redutora,
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simplista, ao reduzir-nos a categorias (povo, burguesia), a arte
faz-se opressora ao insistir na exclusividade do belo, da erudição e em uma língua reservada. As lutas não necessitam somente de uma estética para nos dar mais alento. As lutas necessitam de uma estética que seja flexível, moldável, que faça
sentido às pessoas. E aqui entram a selvageria, a rugosidade,
a aspereza das subjetividades como elas estiverem sendo, sem
ter que caber em moldes. Não se trata de criar novos fetiches
da forma, pois é exatamente na estética que o valor da mercadoria é cultuado. Fica marcada a produção estética de um
shopping, onde rolezinhos devem ser proibidos, diante da obra
do Paulo Nazareth, artista mineiro que andou a pé da América
Latina até Nova Iorque e tem o cabelo crespo. Vejo uma constelação guerreira que parte das vanguardas no início do século
XX, passando pelos anos 1960 e 1970, chegando hoje em um público, um espectador, um leitor que pode ecoar ou mesmo ser
ator do que ele vê. Desde nossos antepassados que não devemos mais explicações na língua de quem nos oprime. Surgem
diversas vozes: os negros, os índios, os LGBTs, as mulheres, os
usuários de drogas, as novas e as antigas espiritualidades. A
estética aí é fundamental, pois o silêncio recai historicamente
sobre essas vozes assinalando-as justamente pela forma, pela
cor, pelo modo, pelo espaço que produz subjetividades, modos
de vida. Na dança contemporânea não temos mais o bailarino
ou a bailarina como seres superiores, fechados em mundos
etéreos inatingíveis. Pede-se que façamos a nossa dança, com
o nosso jeito. Podemos encontrar uma forma própria de mover
sem a viagem de que é preciso ser magro, branco e perfeito,
e sem a viagem de que o corpo tem que caber num espelho. O
corpo tem a oportunidade de se fazer corpo e de conviver com
outros que se fazem corpos à sua maneira. Não está pronto
em um espelho do ego ou da identidade tão bem construída
que não possa se deformar. O ser dançante vai para os espaços urbanos gentrificados, para os prédios abandonados,
para a cidade onde as pessoas não têm corpo e não podem se
olhar. O coletivo Centro em Movimento (c.e.m), de Lisboa, está
aprofundando esse trabalho de criar outros corpos para estar
na cidade, partindo da união entre quem dança e quem não
dança. Torna-se possível arriscar a própria identidade. Sair do
próprio script. E aí entram também a ética e a solidariedade
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com formas de vida distantes, inclusive práticas que não têm a
ver com o campo da arte. Eu me lembro da foto “To Change Art
Destroy Ego” (1965), de Ben Vautier (http://tongueoftheworld.
tumblr.com/post/55264410691/to-change-art-destroy-ego1965-by-ben-vautier). Para um mundo mais democrático, onde
a multidão seja capaz de produzir subjetividades, é essencial
que estejamos dispostos a arriscar a própria identidade. Só assim podemos escutar o outro e comunicar efetivamente, pela
arte ou não.
Natacha Rena (21 de outubro de 2014)
Pensando na importância da estética como dispositivo afetivo
das lutas multitudinárias na cidade estética e na importância
da arte para os movimentos multitudinários no Brasil nos últimos anos, vou fazer aqui uma contextualização breve pra quem
não é de Belo Horizonte. Desde a origem do Duelo de MCs sob
o Viaduto Santa Tereza em 2007, mas, principalmente, desde
2010, com o surgimento da Praia da Estação em manifestação
contra um decreto do prefeito Márcio Lacerda proibindo o uso
livre das praças. Depois surge o Fora Lacerda (movimento laranja), depois o carnaval quase inexistente de Belo Horizonte
surge e vem crescendo exponencialmente por toda a cidade
com suas marchinhas ativistas e ocupando sem alvará ou direcionamento determinado espaços inusitados da cidade. Vou
postar aqui alguns vídeos dessas manifestações e também
um link do Indisciplinar, contendo um Atlas das Insurgências
Multitudinárias (http://blog.indisciplinar.com/) que fez parte
do evento Cartografias do Comum (https://www.facebook.com/
pages/Cartografias-do-Comum/241739899361022?fref=ts), que
realizamos no Espaço do Conhecimento da UFMG.
com diversas ações que deram visibilidade às pautas principais
de diversas ocupações culturais, realizando inclusive links entre os movimentos multitudinários de BH, SP, Rio e Brasília
através do Bandeirão “Unfair Players”. Vale a pena dar uma
passeada pela fanpage desse grupo.
Desde os corações que integraram artisticamente a ocupação
da Câmara Municipal de BH até a intervenção que eles utilizaram no MAR (museu que fez parte de um dos mais perversos
projetos de gentrificação ocorridos no Brasil nos últimos tempos - https://www.facebook.com/pages/Nós-Temporários/5
05720246182481?fref=tsE), a atuação dos banhistas junto aos
movimentos sociais quando fecharam o Viaduto Santa Tereza,
novo QG da Assembleia Popular Horizontal que surge durante
as manifestações de junho de 2013 (esta ocupação durou uma
semana, envolvendo diversos grupos artísticos e culturais da
cidade numa programação cultural de 24h).
Movimento #ViadutoOcupado, criado provisoriamente aglutinando vários movimentos sociais e culturais numa luta comum
(https://www.youtube.com/watch?v=IQ_61bPbdX4).
• Praia da Estação: https://www.youtube.com/watch?v=Xv3a07FG9OQ, https://www.youtube.com/watch?v=F-ZjyReKO6I,
http://www.youtube.com/watch?v=5354OiTR07EO
Aqui também é interessante observar o surgimento do
Carnaval de rua de BH empoderado pelas pautas política e
ativista. Podemos dizer que é um carnaval ativista de ocupação massiva das ruas durante 10 dias (vídeo com vários blocos,
mas observem no segundo vídeo como há uma construção
híbrida de sentido envolvendo cultura oriental indiana, carnaval, Caetano Veloso, outros instrumentos, bicicletinha que leva
adereços e caixas de som, ocupando em 2014 uma favela deslocada do centro/Zona Sul de BH). Segundo Negri, na segunda
parte do livro Multidão, a multidão é queer, o carnaval-performance, ao contrário das vanguardas enfileiradas em linha com
caminhão e microfone na frente, e fazem das ruas um verdadeiro festival estético (https://www.youtube.com/watch?v=USoICaoXCvU, https://www.youtube.com/watch?v=pgAjDlgFT1g).
O Coletivo “Nós, temporários”, de Belo Horizonte, vem atuando
desde as manifestações de junho de 2013, incluindo a mudança
do nome da Praça da Estação para Praia da Estação e também
Espaço Comum Luiz Estrela e o teatro como forma de ocupar
com afeto e convencer a cidade da importância de espaços
democráticos para a cultura, fora da lógica do mercado e do
• Duelo de MCs de BH: http://duelodemcs.blogspot.com/;
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Estado (https://www.youtube.com/watch?v=Z7ftnoW0gzQ e
https://www.youtube.com/watch?v=KgFhTfp4GFQ), incluindo
negociação com PM e com advogado das Brigadas Populares
e o Coletivo Margarida Alvez, Joviano Mayer, vestido de mulher.
A multidão é queer (https://www.youtube.com/watch?v=lj1hNFo22rs) e, no carnaval, o Espaço Comum Luiz Estrela também
cria seu bloco e sai junto com o Tarifa Zero, outro movimento com fortes tendências estéticas. Vale também um passeio
pela fanpage do movimento (https://www.youtube.com/watch?v=EuKZSqXUsN0&list=PLQuZp9VAKTuRNZ3MEtZTaGr50gmUrZzHH&inde x=8).
• Tarifa Zero (https://www.facebook.com/tarifazerobh?fref=ts).
Maisa Cristina da Silva (19 de outubro de 2014)
Compreendo que as produções estéticas sempre foram fundamentais na luta da subjetividade. Podemos perceber essas
manifestações no conceito de Pop Art, que torna a arte um
produto de massa; em Duchamp, que confunde o mercado
das artes com a Fonte. Indo mais atrás na história, notamos
a subjetividade na poética do cotidiano captado por Vermeer.
Na atualidade as manifestações estéticas e artísticas também
produzem novas formas de subjetividade como os objetos de
Nelson Leirner que discutem a sociedade de consumo; inserção no mercado ideológico de Cildo Meireles; Néle Azevedo
voltado para o consumo dos recursos naturais do planeta; no
Cristo de Alexander Kosolapov ou no de León Ferrari, até mesmo nos objetos de Renato Vale, ou nas crianças crucificadas
de Erik Ravelo, na banana de Luciana Rondolini coberta de
diamantes.
Adriana Covolan (15 de outubro de 2014)
Com essa pergunta veio à memória recente o Parada Poética,
que surgiu através do poeta, escritor e cantor Renan Inquerito.
Não se restringiu a Nova Odessa (SP), ganhou espaço e vem
circulando por várias cidades do interior de São Paulo. Nas
palavras de Renan: “Um lugar para recitar textos, versos, frases, poemas e revoltas. Seus e dos outros. Lendo, decorado,
de improviso, não importa a forma, nós não temos fôrma. Não
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somos profissionais, queremos ser amadores, amadores da
arte do ofício da palavra”.
Vanessa Camila da Silva (15 de outubro de 2014)
Acho que todas as obras, principalmente aquelas de intervenção urbana, ajudam tanto num novo olhar estético quanto na
reflexão para a utilização do espaço público, não como disputa,
mas como um local de apropriação e reconhecimento. Bons
exemplos são Os Gêmeos, Eduardo Srur e tantos outros que
fazem trabalhos artísticos fantásticos com propostas que ampliam o olhar.
Dalba Roberta Costa de Deus (14 de outubro de 2014)
Concordo que seria necessária às lutas uma produção estética como ação na disputa pelas subjetividades e isso já vem
acontecendo. No Brasil, desde a década de 1970, despontam
grupos de artistas e artistas que tomam a cidade como campo
de investigação, procurando expandir o circuito e mesmo a
noção de obra de arte. Um exemplo em Belo Horizonte, na década de 1970, foi a artista Teresinha Soares, cuja participação
em salões era sempre aguardada com interesse, com seus
trabalhos originais e suas performances provocativas.
Ricardo Macêdo (14 de outubro de 2014)
Acho que rever as posturas, estratégias e táticas de grupos
artísticos anteriores em situação de mudança de paradigma é
um bom começo para não se pensar que se está descobrindo
a pólvora (rsrs). Tem uma série de artistas no passado que
decidiram rever a arte como ela era entendida em suas épocas, repensar a arte fora da arte, aceitar com humildade que
precisamos nos rever. Isso acaba caindo na interdisciplinaridade: estudar política, cultura atual local e global, assimilar
as culturas de margem popular (como referenda Paulo Freire
e N. G. Canclini), educação (mediação, métodos), filosofia, etc.
Isso, como falaram a Raissa Leão e a Luiza Alcântara, acaba
desembocando nos movimentos de rua, ocupações e coletivos,
como o trabalho lindo e crítico do Espaço Comum Luiz Estrela,
a galera do Estilingue, do Piolho Nababo, o Lotes Vagos e, fora
de BH, tem o GIA (Bahia), o Capacete Entrenimentos e vários
espaços autonomistas de arte. Acho que a democracia aí vem
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de ações fora do sistema de arte atual, mas com um pé, por
vezes, dentro dele, criando ruídos, como foi o leilão 1,99 do
Piolho Nababo no Palácio das Artes. Vocês foram? Foi ótimo!
Tem muita coisa legal também de ler no livro Escavar o Futuro,
resultado de uma exposição em 2014 no Palácio das Artes.
QUESTÃO 3
Seria possível falar em uma arte multitudinária trabalhada via processos criativos, colaborativos e horizontais atuando na constituição do comum contra a prática própria do capitalismo pós-fordista
também chamado de Império? Uma arte que transite junto com
os processos de resistência aos avanços do capitalismo financeiro? Uma arte que estimule a liberdade de pensamento e que
esteja envolvida com a ideia da criação de novas formas de vida?
Uma arte que crie conexões e insira cada vez mais pessoas nos
processos de criação? Uma arte menos autoral e mais coletiva
e copyleft? Uma arte como agenciadora de processos criativos,
colaborativos e horizontais da multidão que se constitui contra a
expropriação do comum? Poderíamos imaginar uma produção
biopotente, fora da lógica do sistema da arte como riqueza da vida
que excede, transborda e torna-se também processo constituinte
de produção do comum? Fazer arte de forma autônoma, desvinculada do Estado-Capital e das instituições tradicionais de arte?
Uma arte que estimule o afeto, a criatividade e a sensibilidade?
Uma arte que produza verdadeiros espaços heterotópicos? Uma
arte do encontro e da festa?
Greice Teixeira de Souza (13 de dezembro de 2014)
Todo artista vive pouco ou muito as consequências dos avanços do capitalismo financeiro. A arte, na maioria das vezes,
transita junto com os processos de resistência, estimulando
a liberdade de pensamento e agenciando os processos inovadores, criativos. Contudo, para que a arte consiga ganhar
espaço apropriado para se proliferar, é necessário vencer as
tendências do capitalismo e, muitas vezes, ela se esgota nessas fronteiras.
Fred Triani (31 de outubro de 2014)
Arte fora da lógica do sistema. Ela existe, está aí, por toda
parte, subterrânea e marginal, mas não é chamada de arte.
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Não é chamada de arte por esse sistema, até o momento em
que esse mesmo sistema decide chamá-la de arte. Gosto de
pensar na arte em seu campo expandido. A arte que simplesmente acontece.
Reginaldo Luiz Cardoso (27 de outubro de 2014)
Achei interessantes as questões levantadas em torno do “ego”,
da “individualidade”, etc. A possibilidade da arte multitudinária
passa necessariamente pela existência de sujeitos que despertem a(s) subjetividade(s) alheia(s). E isso independe, a meu ver,
de que a iniciativa seja coletiva ou individual, já que há espaço
para ambas as ações. Uma experiência muito bem-sucedida foi
a que se deu na longa discussão em torno do que seria feito do
aeroporto Tempelhof, em Berlim. Demolição pura e simples?
Um shopping center em seu lugar? Um conjunto habitacional
(Condomínio fechado) que atenderia ao mercado especulativo?
E assim foi... Até que, para dar um fim ao quiproquó, o prefeito
de Berlim resolveu criar um concurso público para projetos
arquitetônicos. E então surgiu Jakob Tigges, um arquiteto e
professor da Universidade Técnica de Berlim, que, para demarcar a sua crítica à proposta do Poder Público, fez um projeto irrealizável ao qual chamou de The Berg. Bem, a história
é comprida e muitíssimo interessante. O fato é que essa ideia
reacendeu o imaginário dos berlinenses (que já andava meio
apagado) e uma nova discussão foi retomada por toda a cidade. The Berg provou ser a própria concretude da profanação,
conceito caro ao filósofo político Giorgio Agamben. Assim, o
território transformou-se em Feld Tempelhof, o maior parque
público de Berlim, inaugurado na primavera de 2012.
Thais Mor (26 de outubro de 2014)
A busca por novos caminhos autônomos e independentes do
poder Estado-Capital tem tornado a web e as redes sociais ferramentas para o encontro de ideias comuns e detecção de rizomas. O uso desses meios de forma estruturada em benefício
do bem comum vem buscando unir pessoas e gerar biopotências. Um exemplo disso são as Crowdfunding, plataformas que
captam recursos para projetos através de incentivo de pessoas
físicas. Ideias e projetos independentes são apresentados e as
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pessoas que acreditam nas propostas podem contribuir para
viabilizar as ideias. O que conta, nesse caso, é uma análise
pública, de cidadão X cidadão para um financiamento coletivo.
Eliane Maris da Silva (23 de outubro de 2014)
Ou admitimos que tudo é arte, e então a criação artística é
um OFÍCIO/TRABALHO como o de um marceneiro, pedreiro,
vendedor, etc., ou admitimos que a arte não deve ser fator de
sobrevivência, daí (perdoem-me os artistas) temos que assumir
uma segunda atividade para sobreviver. A arte assim deverá ser sempre doada ou podemos voltar ao escambo em que
comprador e vendedor se entendem na determinação do preço.
Murilo Cesar Silva de Andrade (23 de outubro de 2014)
Se primeiro pensarmos a Arte e os movimentos artísticos fora
dos esquemas de cooptação capitalista, que muitas vezes os
capturam e alimentam uma produção seriada ou os transformam em verdadeiros produtos de acesso privilegiado e
comprometidos com a manutenção de um status e uma segregação com relação ao que se pode considerar Arte ou não,
teremos que visualizar também o papel do artista nesse contexto, o entendimento do que vem a ser um artista nos tempos
atuais e como ele se articula e interpreta a si próprio como
tal. Nesse sentido, o artista, dissociado dos mecanismos do
Estado-Capital, provavelmente tentará dar um sentido à sua
Arte e se representar e representar a sua Arte num movimento
e numa concepção de mundo maior ou diferente das impostas
pelo sistema capitalista. Nesse ponto ele terá condições de se
reconhecer e interpretar, como artista, não como profissional,
no sentido do desempenho de uma função institucionalizada no
Estado-Capital, mas como a(u)tor de sua política e sua relação
com o mundo. Nesse sentido, os movimentos artísticos críticos
de seu tempo poderão estar, mesmo em alguns momentos,
circulando dentro dos circuitos tradicionais, comprometidos
com outra dinâmica e outros conceitos, agindo também dentro do próprio discurso institucionalizado. A mudança, nesse
sentido, caminha então para a reestruturação de conceitos
tradicionais e, consequentemente, para formas de criação e de
experiências estéticas novas e a partir de modelos inéditos ou
marginalizados, utilizando parâmetros criativos baseados na
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colaboratividade e na coletividade, utilizando principalmente
as formas de articulação em rede como vias paralelas aos
circuitos privilegiados. Correndo “por fora” dessa lógica, movimentos multitudinários agem numa concepção de mundo
diferenciada, implementando diversos campos de saber e cultura, como a Arte, numa perspectiva dissonante dos processos
burocráticos do Estado-Capital, fazendo emergir atitudes autônomas e espontâneas comprometidas apenas com sua essência, sua expressão e sua filosofia estética sem, no entanto,
se dissociar do diferente e do comum coletivo.
Janaina Faleiro Lucas Mesquita (23 de outubro de 2014)
Acredito que é possível, sim! Uma arte que estimula o afeto, a
criatividade e a sensibilidade, ao mesmo tempo que é colaborativa e libertadora.
Carlos Muñoz Sánchez (23 de outubro de 2014)
Outra das coisas a mudar é o que Ricardo Macêdo falou na sua
resposta, os egos. A ideia do artista individual está obsoleta.
Sem se esquecer de si mesmo, tem que passar de ser individual pra ser um indivíduo dentro de uma coletividade. Um exemplo é o coletivo Boa Mistura, depois de um tempo trabalhando
juntos, assinando os projetos com os cinco nomes dos artistas
que formam o coletivo, eles passaram a assinar com o nome
do coletivo, esquecendo-se dos egos pessoais.
Ártemis Garrido (23 e outubro de 2014)
Sim, vem se tornando possível. Tomemos como exemplo a performance, prática artística que vem sendo descoberta e estudada a cada ano. Os artistas performers, quando não pretendem
dialogar com o espaço (ou criar outro espaço dentro do espaço), pretendem dialogar com o outro, o que vê e/ou participa da
ação. O artista pode propor ações performáticas gratuitamente
ou pode ser pago, quando há uma instituição que promove um
festival ou um projeto de curadoria em performance, como é
o caso do Memorial Minas Gerais Vale que, periodicamente,
contrata artistas convidados pelo curador Marco Paulo Rolla
para se apresentarem no espaço.
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João Paulo de Freitas Campos (23 de outubro de 2014)
Penso que redes de produção, distribuição e apreciação da arte
que “escapam” da lógica do capitalismo rentista e da “nova
indústria cultural” (criativa) não só são possíveis como já são
um fato - como exemplos podemos citar os diversos saraus,
filhos dos vira-latas nômades e insurgentes (e, obviamente, os
próprios vira-latas). Essas redes se espalham a partir de uma
lógica colaborativa e desterritorializada - principalmente as
mobilizações nômades -, construindo um espaço de inovação
estética e crítica política contundente. Porém, uma questão
que esquecemos é que, apesar de ser praticamente a mesma, a indústria cultural transformou também a sua lógica, se
desterritorializando. O foco da nova indústria cultural - além
da criação de criadores empreendedores - é a circulação dos
bens culturais e, neste ponto, ainda nos encontramos inseridos na lógica industrial. Não obstante, acredito que podemos
“jogar” esse jogo entre processo produtivo e circulação - nas
redes sociais virtuais, por exemplo, com seus gate keepers e
agentes com papéis específicos - para construir novos processos constituintes através da produção artística, construção híbrida: ao mesmo tempo horizontal e hierarquizada (pois,
como constato na minha pesquisa sobre os vira-latas, esses
movimentos insurgentes horizontais também constroem, naturalmente, hierarquias e constrições, porém estas seguem uma
lógica incrivelmente díspare em comparação com as amarras
canônicas dos mundos da arte oficiais).
Taís Freire de Andrade Clark (23 de outubro de 2014)
Sim, é possível! E somente é possível a arte multitudinária
existir dentro de um sistema que a todo momento tenta se
apropriar dela. Ou seja, esse tipo de liberdade, ou de resistência só existe porque se consolida em uma afronta direta a uma
produção estética já mercantilizada, ou cooptada pelo mercado.
O mais interessante é que as características e os questionamentos próprios desse tipo de movimento criativo que presenciamos são o que o torna tão difícil de ser apropriado pelo
mercado, a horizontalidade do processo, a coletividade das
criações, tudo isto dificulta, para não dizer impossibilita, essa
apropriação. Portanto, não acreditar nesse papel desempenhado pela arte é o mesmo que fechar os olhos para todos os
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processos criativos e transformadores que temos presenciado
ao longo dos últimos anos.
Maria Goretti Gomide Pinheiro (23 de outubro de 2014)
Acredito, sim, em uma arte multitudinária, que transita junto
com os processos de resistência aos processos do capitalismo. Por ser livre, a arte estimula os pensamentos e pode nos
ajudar a criar novas formas de viver, pensar e relacionar com
a vida. A demonstração artística social existe há muitos anos e
aos poucos veio ganhando terreno. Tinha a função de envolver
os transeuntes, pelos movimentos do artista e o sentido das
falas. Lentamente foi crescendo e hoje ganhou muita força em
função da resistência contra o Estado-Capital. É uma arte que
dialoga diretamente com os indivíduos e vai além da criação.
É a democratização da arte, uma valorização da expressão e
relaciona o conceito do espaço público comum, fazendo uma
interação, um diálogo, construindo uma convivência mútua
entre arte e pessoas, e isto dá legitimidade às cidades. É uma
arte de diálogo íntimo e cúmplice com a cidade, e está carregada de força e significados. Isso faz com que a arte de rua deixe
de ser uma arte marginalizada e passe a ser reconhecida como
Arte Contemporânea. Significa possibilidades, os artistas conseguem uma ascensão e passam também a ocupar os espaços
das galerias, fazendo parte também do sistema da arte tradicional. Isso nos mostra o quanto a arte urbana se desenvolveu
e a quantidade de artistas que foram surgindo ao longo destes
últimos anos, sem contar que é também uma ferramenta capaz
de educar. É uma arte em que o artista desenha sua verdade,
uma atitude que leva a sociedade a refletir e se transformar.
Júlia Nascimento de Oliveira (22 de outubro de 2014)
Sim, as manifestações de arte multitudinária não só são factíveis, como estão ganhando força no cenário da resistência
contra o Estado-Capital através da conexão de redes (coletivos,
ocupações, correntes artísticas autônomas). Essa arte chega à cidade com propostas de ocupações mais espontâneas
e democráticas, questionando os processos de gentrificação.
Tudo isso é feito através da aglutinação de ideias comuns, insatisfações e desejos compartilhados, que se orientam para
uma trajetória de alcance exponencial, como é o caso de Belo
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Horizonte, onde encontramos o Salve Santaterê, Duelo de MCs,
Fora Lacerda, dentre outros citados aqui.
Dalba Roberta Costa de Deus (20 de outubro de 2014)
De todas essas questões, um movimento que venho notando
dos artistas contemporâneos é a expressão através da coletividade e menos autoral. Cada vez mais parece se buscar uma
arte de encontro, estimulante da liberdade de pensamento
e cheia de conexões. Não encaro muito a arte apenas como
processo de resistência, mas, principalmente, como processo
criativo e colaborativo nos tempos atuais...
Ricardo Macêdo (14 de outubro de 2014)
Acredito que sim! Contudo, os modos de se ativar isso ainda
estão caminhando, penso que a fronteira a ser ultrapassada
ainda é a do ego, da disposição e abertura de espírito para trabalhar com o Outro. Sair de uma postura mental e emocional
de autoria para outra de coautoria, de preocupação com a própria cidade, com o país ou o mundo é lento, acho que qualquer
mudança neste sentido é lenta, um ativismo lento. Começar a
fazer obras fortes que questionem o sistema facilmente chama a atenção dos curadores e editais, daí o embate do artista
consigo mesmo: é difícil resistir aos holofotes, bajulações e à
grana, pra quem vive de editais. Acho que é preciso uma vontade muito grande interna (e um molejo pra falar coisas sem se
queimar no circuito - rsrs), de acreditar mais na necessidade
de mudança urgente do que nas cifras. Ganha-se muito dinheiro hoje com bons projetos.
74
Simone Parrela Tostes*
Arte, espaço
e comunidade:
modos de endereçamento
e produção de
singularidade
* Simone Parrela Tostes:
Arquiteta pela UFMG,
Mestre em Teoria e
Crítica da Arquitetura e
Urbanismo pela mesma
instituição. Doutoranda
em Geografia no Instituto
de GeoCiências da UFMG.
Professora do curso de
Arquitetura e Urbanismo
da Universidade de
Itaúna. Tem experiência
em projeto, ensino
(graduação e pósgraduação) e pesquisa em
Arquitetura e Urbanismo.
É pesquisadora dos
grupos de pesquisa
INDISCIPLINAR (no qual
é co-editora da revista
homônima) e PRAXIS, da
Escola de Arquitetura da
UFMG.
76
Cada época é caracterizada pelo aparecimento de
novas possibilidades que modificam relações de
forças anteriormente existentes. A interdependência, em escala global, dos processos que regem a
produção dos espaços-tempos na atualidade, indissociáveis do funcionamento e das condições do
Capitalismo Mundial Integrado, faz do espaço hoje
um campo de forças complexo no qual coexistem
tanto tendências de especialização como de inter
-relação dos seus diversos componentes, em uma
nova tensão entre o local e o global. Menos que
uma oposição, trata-se de uma interdependência entre essas duas instâncias, a partir da qual
abrem-se novas potencialidades com a criação de
novas comunidades e localidades e de novas relações entre ambas.
Diante dessas novas possibilidades, a noção e a
experiência da comunidade têm constituído um
foco importante nas atuais rearticulações de forças. Menos que uma dimensão originária e autêntica a ser protegida ou resguardada da voracidade dos interesses capitalistas aos quais seria
supostamente anterior, a comunidade é também
ativamente investida e produzida por eles. Nas
atuais condições de desenvolvimento do capital, este
não se reduz mais aos domínios econômicos e a própria produção transborda os espaços estritamente
industriais e se propaga por todo o território. De fato,
como observam Guattari e Rolnik (1986), há um axioma operatório do capital que consiste num sistema
de equivalência generalizada, presente tanto nos domínios da produção econômica como cultural: “Desse
ponto de vista o capital funciona de modo complementar à Questão 1
cultura enquanto conceito de É possível pensar relações entre arte e cultura
equivalência: o capital ocupa- com a comunidade que se contraponham às
se da sujeição econômica, e a relações e aos interesses ditados pelos vetores
cultura, da sujeição subjeti- econômicos e mercadológicos na atualidade?
va” (GUATTARI; ROLNIK, 1986,
p.16).
Bernardo Romagnoli Bethonico (1 de novembro
de 2014)
Com efeito, o funcionamento Acredito que a grande armadilha reside em
da máquina financeiro-produ- se contrapor. Estar contra os interesses
tiva nos quadros da economia econômicos e mercadológicos que regem o
de mercado comporta meca- mundo hoje não significa que a nossa arte
nismos de regulação das de- não possa virar mercadoria e publicidade.
sigualdades e dos excessos Penso que a arte tem que exercer o seu
próprios de seus modos de olhar adicionando dimensões, atuando no
operação, elegendo popula- que existe: se tivermos que esperar deterções e lugares afetados dire- minadas condições para só então podermos
ta ou indiretamente por suas fazer, ficamos velhos. A luta com o grande
ações como alvo de atuação. capital não é para ser vencida, pois a lógica
Seja como cláusula imposta da competitividade elimina muitas possibilinos contratos de empréstimos dades de “estar com”. No plano micro, quanou repasses de recursos entre do no dia a dia nos permitimos nos comparar
agências de fomento e finan- menos e estar mais, outras comunicações se
ciamento em escala global, fazem. Não há como atuar no plano macro se
nacional ou local e os diver- não for a partir do que está ao meu alcance.
sos níveis da administração Dessa forma, as relações comunitárias são
estatal no estabelecimento de por excelência revolucionárias, quando eu
contrapartidas sociais; seja no me permito me relacionar e me desconstruir.
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setor privado como adesão a práticas afinadas a tal funcionamento, em que grandes e médias empresas têm sua
reputação atrelada a ações no domínio da responsabilidade
social e passam a dedicar quantias consideráveis de seus
orçamentos a tal finalidade (ou mesmo são impelidas a fazê-lo por meio de incentivos fiscais e tributários); seja ainda
no terceiro setor, a demanda reguladora de práticas com
responsabilidade social implica e assim produz a comunidade como objeto privilegiado de políticas e intervenções
dos mais diversos matizes.
Marina Annes Duarte (1 de novembro de 2014)
Acho que é possível, em todos esses aspectos que foram citados - direitos autorais e
copyleft, open source, produção coletiva, financiamento coletivo. A própria economia
solidária tem muito a ver com isso tudo, né?
Cooperativismo... Acho que são outras formas de organização com outros raciocínios
que já estão rolando, não só na arte e cultura, aliás, e realmente cada vez mais evidentes e conectados - imagino que um pouco
por conta dessa facilidade das redes e da
internet.
Sem prejuízo dessas obrigações, empresas e instituições
se inserem nas comunidades e localidades movidas também por seus interesses e lógicas particulares: enquanto
algumas pautam suas estratégias nos quadros da ação filantrópica, reatualizando certa tradição do paternalismo e
do assistencialismo do século XIX, por sua vez tributária das
práticas e dos objetivos da ação doutrinária que acompanhou o projeto colonizador, outras orientam seus projetos
em direção a populações diretamente afetadas por suas
atividades, numa espécie de reparação de danos. No mais
das vezes as ações são concebidas visando à gestão e ao
controle estratégicos da imagem das instituições. Ademais,
quando não são gerenciadas por fundações atreladas às
corporações, grande parte das verbas destinadas para projetos em comunidades acaba sendo gerida por agências de
publicidade que detêm as contas das empresas que investem neste setor ou por produtores profissionais que transitam com maior desenvoltura pelos meandros burocráticos
dos programas e projetos existentes. Há também todo um
universo de atuação conduzido pelas instituições de ensino
que veem na comunidade um universo leigo a ser trabalhado ou instruído. Assim o incremento de programas, projetos e ações destinados a comunidades tem aberto todo um
campo de atividades a profissionais e organizações da sociedade civil ligados aos setores mais diversos, da saúde à
habitação, passando por educação, cultura, esportes, artes,
Reginaldo Luiz Cardoso (31 de outubro de 2014)
Essa possibilidade passa, a meu ver, pela
afirmação de uma democracia radical (nos
sentimentos, nos pensamentos e nas ações).
Pois o que vemos, hoje, são mecanismos
cada vez mais “democráticos” (naturalizados) de controle, conforme prenunciou
etc., e que, não obstante sua Deleuze. Do panóptico (vigilância) passamos
aparente diversidade, compar- para o sinóptico (controle). Lembro aqui o
tilham o ponto de vista privi- arquiteto Sérgio Ferro que, no momento em
legiado de centro de comando que todos teciam loas e boas à arquitetua partir do qual algum tipo de ra moderna desenvolvida por Niemeyer (e
intervencionismo se exercerá ele foi uma unanimidade), ousou criticar o
sobre as comunidades.
mito. Para Ferro, não é possível construir
uma cidade emancipada sem emancipar o
Entrincheirada por corpora- canteiro de obras. Se aí acontecesse isso, aí
ções e instituições diversas teríamos arquitetura emancipadora. Com
como beneficiária de ações
reparadoras, objeto de marketing empresarial, de
contrapartidas contratuais ou ainda objeto de investimento e experimentação de toda uma pedagogia de
inclusão/ajuste à ordem social, à comunidade, como
finalidade estratégica ou nicho de mercado, não restam muitas alternativas fora da reprodução do potencial alienante da sociedade capitalista em sua vertente liberal contemporânea.
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Entretanto, sem desconsiderar as implicações dessas modalidades de produção instrumentalizada de comunidade, há
que se ampliar o entendimento do que a comunidade possa vir a ser e realizar. A produção de relações desviantes
das pautas e dos interesses mercadológicos é um possível
que se anuncia, e, por curioso que pareça, incrementado
precisamente a partir das mesmas condições que propiciam essas capturas. Um direcionamento que parta das
comunidades e dos grupos sociais não hegemônicos pode
fomentar outras modalidades de criação e afirmação da
vida e há vários indícios que apontam para tal possibilidade.
De fato o alcance e a viabilização de ações e iniciativas protagonizadas pelas próprias comunidades, inventando novas
maneiras de estar junto, de viver, de criar, de trabalhar, de
se relacionar e de produzir as próprias existências, têm
adquirido consistência cada vez maior.
isso, para se chegar aos gaps (frestas) do
sistema - conceito caro a H. Arendt - os
atores sociais devem, necessariamente,
começar observando minuciosamente
se suas práticas cotidianas são, de fato,
democráticas. Caso contrário, tudo aquilo que se almeja cai na vala comum de
uma comunidade homogênea, calcada em
identidades, sobrepujando as subjetividades. Isto é, aquilo que se pensava como
um avanço transforma-se em um lugar
que em nada se revaloriza como espaço
de sociabilidade e de vida. Enfim, se não
houver um novo homem, não haverá uma
nova compreensão e, logicamente, uma
nova interpretação da realidade.
O maior dinamismo das trocas e relações sociais devido à
grande mistura de povos, raças e culturas em todos os continentes e aos progressos da comunicação e da informação
possibilita a mistura de filosofias e modos de vida em detrimento da referência predominante baseada no racionalismo
europeu, propiciando, de modo inédito no momento atual,
condições de uma rica sociodiversidade, conforme observa o
geógrafo Milton Santos (2010). A rapidez dos processos leva
a uma rapidez das mudanças, e tanto do ponto de vista da
ordem material quanto na ordem intelectual, este dinamismo característico das condições atuais é capaz de ensejar
novas possibilidades de compreensão “do mundo, do lugar
e da respectiva posição de cada um, no mundo e no lugar”
(SANTOS, 2010, p. 167), assim como novos processos de singularização em prol de modos de vida mais ricos.
Yuri Amaral (30 de outubro de 2014)
Acredito que um dos melhores caminhos
seja usar as regras do jogo contra o próprio jogo. Não há como nos isolarmos do
mundo, muito menos como nos desvincularmos da maneira que ele funciona. No
entanto, criamos nossos meios de reorganizar e reconfigurar às nossas necessidades. Como já foi citado aqui, o financiamento coletivo é um desses caminhos,
copyleft, creative commons, a internet em
si se alimenta dessas “regras antigas” e
corrobora com a quebra delas, fornecendo meios de se [re]programar o mundo e
as comunidades. A descentralização da
emissão, as possibilidades de produção
(qualquer indivíduo hoje pode produzir,
independentemente de sua localidade e
de seus atributos identitários) e a consequente reconfiguração do mundo e da
maneira com que se dialoga com ele. Já
vivemos essas novas relações, de maneiras sutis ou em escala global, a favor do
E são essas novas condições que hoje demandam um empenho de redefinição radical do entendimento da comunidade
e de suas implicações e possibilidades. Empenho que, por
sua vez, não passará aqui pela busca ou circunscrição de
atributos fundantes capazes de conferir um quadro estático
de referências, mas será desdobrado em uma problemati-
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zação feita de novas relações e
de reenvios a uma multiplicidade
de outras questões.
Vivemos hoje uma comunhão global dos lugares com o Universo,
a partir da qual se pode falar de
uma interdependência universal
dos lugares, conforme salienta
Milton Santos (2008). Trata-se,
segundo o autor, de um processo que altera o arranjo anterior
baseado no Estado-Nação e sua
noção jurídico-política de território. Tal noção desenvolve-se a
partir do conhecimento e da conquista do mundo desde o Estado
Moderno e o Século das Luzes
até a era da valorização dos chamados recursos naturais. O terri-
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tório foi a base e o fundamento do Estado-Nação, instância
que efetivamente definia os lugares, ainda que nem todo
território fosse subordinado a um comando estatal. Hoje os
lugares são solicitados por novas dinâmicas que, não sendo mais exclusivamente derivadas do comando de Estados
Territoriais, permitem que se fale de uma transnacionalização dos territórios, ainda que, mais uma vez, não se possa
afirmar que todos os territórios sejam transnacionalizados
ou que os que o são o sejam completa e totalmente.
Esse novo funcionamento do território cria novas relações,
estudadas por Milton Santos a partir de duas categorias,
as horizontalidades e as verticalidades (2006, 2008). As horizontalidades são os domínios da contiguidade e de vizinhanças definidas por uma continuidade territorial ou de
superfície, própria do vínculo que une os seus membros.
Já as verticalidades referem-se a uma vinculação que se
dá por todas as formas e todos os processos sociais que
ligam pontos distantes uns dos outros. Mas são os mesmos
lugares que se relacionam horizontalmente e verticalmente,
caracterizando o que Milton Santos denomina de acontecer
simultâneo (SANTOS, 2008, p.139).
Embora não coincidam, território e comunidade se implicam mutuamente, ainda que o vínculo de contiguidade
territorial não seja uma condição para a constituição da
comunidade: se, por um lado, ele está implícito quando se
trata de agrupamentos do tipo associações de bairro, de
moradores, de vizinhos, etc., pode haver o compartilhamento de vínculos de outra natureza, como no caso de um
credo religioso, uma afinidade musical e uma série de outros exemplos possíveis, em que sequer a presença física
e compartilhada dos membros é necessária. Nesse caso,
ainda que a contiguidade territorial não seja o ponto comum, o território ainda está presente, uma vez que são os
mesmos elementos que se vinculam por meio de uma e/ou
outra modalidade numa simultaneidade possível e passível
de produzir laços comuns.
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Seria preciso agora determo-nos um pouco mais
no entendimento desse comum, base da palavra
comunidade e que se refere precisamente ao que
é compartilhado - linguagens, símbolos, ideias, valores e relações – e também ao resultado de tal
compartilhamento. Antonio Negri e Michael Hardt
(2005) associam a produção do comum ao conceito
de hábito herdado do pragmatismo americano, associado mercado ou contra ele (usando suas regras e
menos a uma instância sub- seus meios). A dificuldade reside, justamenjetiva e internalizada do que te, no entender o papel do outro em relação
a relações com a experiên- ao seu, em se reposicionar no mundo como
cia, com as práticas e com “nós” e não mais apenas “eu”. Seria entender
os comportamentos diários. que nós somos comunidades. Acredito que
Nessa constelação, o hábito estamos em um processo de mudança, lento,
seria o comum na prática: o porém sem volta.
que estamos constantemente produzindo e que serve de Elton Monteiro (30 de outubro de 2014)
base para nossos atos. Nesse Pensar nesse movimento cultural indepensentido, hábitos e condutas dente das relações capitalistas requer um
são sociais e compartilhados, olhar contrário ao que se tem normalmente
“[...] nunca são realmente indi- realizado. Quando se procura nas comunidaviduais ou pessoais. [...] só se des algum tipo de valor cultural existente à
manifestam com base na con- parte de qualquer instituição, podemos enduta social, na comunicação, contrar vivas – ainda que muitas vezes sutis
no agir em comum. Os hábitos – manifestações pulsantes de algum tipo de
constituem nossa natureza manifestação de cultura, de arte popular. A
social” (HARDT; NEGRI, 2005, questão está na tendência que ativistas culp. 257), e, longe de serem um turais têm de trazer formatada a produção
obstáculo à criação, são sua da arte. Quase sempre, essas ações vêm
base, o lugar da criação e da de fora para dentro. Quase sempre ideias
inovação: a ação comum é o formatadas. Formatação de pré-valores, de
próprio motor da produção. pré-conceitos. Atuar nessas comunidades de
Para os autores, a experiên- forma marginal aos valores mercadológicos
cia de produção do comum e econômicos exige lidarmos, entre outras
tenderia, ademais, a deslocar coisas, com uma acepção mais ampla do
as coordenadas tradicionais conceito de sustentabilidade aplicado à arte
que criam divisões entre indi- e à cultura.
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víduo e sociedade, público e privado, subjetivo e objetivo.
Por outro lado, é precisamente essa potência do comum
que é interditada pelo sentido tradicional de comunidade
como instância moral e unitária “que se posiciona acima da
população e de suas interações como um poder soberano”
(HARDT; NEGRI, 2005, p. 266).
Essa ressalva com relação ao sentido tradicional de comunidade aproxima-se das formulações de muitos outros
autores que têm se dedicado a compreender seus desdobramentos diante de uma aparente crise, em que modos de
associação que outrora pareciam garantir certo contorno
comum parecem ter perdido sua coesão na atualidade. O filósofo Peter-Pál Pelbart (2011) retoma as críticas do filósofo
Jean-Luc Nancy dirigidas à tradição teórica segundo a qual
a comunidade, em seu sentido de intimidade e comunhão
orgânica com a própria essência, seria precisamente o que
o advento da sociedade destruiu. Começando por apresentar as formulações de Nancy, para quem seria necessário
recusar essa consciência de perda da comunidade e de sua
identidade, assim como a nostalgia de uma fraternidade e
de uma convivialidade perdidas, Pelbart prossegue afirmando que, diferentemente de uma perda a ser lamentada,
a inexistência da fusão e da homogeneidade na comunidade é antes positiva e constitutiva: “A comunidade tem por
condição precisamente a heterogeneidade, a pluralidade, a
distância” (PELBART, 2010, p.33). A comunidade seria mais
bem definida, então, a partir do compartilhamento de uma
separação dada pela singularidade, e não pela identidade
fusional. Fora de qualquer anseio de pertencimento ligado
a atributos de substância e interioridade, talvez a distância
e a diferença sejam o que possa ser colocado em comum;
a inexistência de fechamento identitário talvez seja condição afirmativa e de abertura para a criação do comum e da
comunidade.
Ao cotejarmos essas observações com as categorias territoriais de horizontalidade e verticalidade anteriormente descritas, poderemos avançar um pouco mais em sua
compreensão. Por um lado, não parece difícil associarmos
84
a heterogeneidade e a diferença a relações
em rede, em que os membros que se conectam não estabelecem entre si relações de
vizinhança ou contiguidade, havendo uma
heterogeneidade que é mesmo constitutiva
deste vínculo. Por outro lado, imagina-se
com bastante frequência que tudo se dá de
maneira diferente quando o vínculo é o lugar,
imaginado como portador de uma identidade
calcada em uma história e uma herança particulares, muitas vezes consideradas como
um atributo referencial de identidade extensivo a seus habitantes. Entretanto, será necessário desconfiar também dessa abordagem internalizada e identitária do território
e do lugar, como observa a geógrafa Doreen
Massey, para quem o lugar é
um processo dinâmico que Carlos Muñoz Sánchez (30 de outubro de 2014)
se constrói “a partir de uma No mundo da informática trabalham com
constelação particular de re- conceitos de autoria coletiva há um tempo.
lações sociais que se encon- O software livre permite compartir e moditram e se entrelaçam num lo- ficar, licenças como creative commons percus particular” (MASSEY, 2000, mitem que uma banda coloque sua música
p.184). Cada lugar é um lugar na internet e escolha se o usuário pode só
de encontro, ponto único de ouvir, ou baixar, ou lucrar com ela. Outros
uma interseção de redes de conceitos como as redes P2P, em que a prorelações sociais, de movimen- dução é entre pessoas, ou copyleft já estão
tos e de comunicações, das no vocabulário comum do mundo hacker. A
quais grande parte se constrói extrapolação dessas ideias para o mundo
e se reconstrói em uma esca- tangível pode trazer não só um novo modela que implica um contexto lo de autoria para obras artísticas, mas um
geográfico muito mais amplo novo modelo de vida mesmo.
que o do lugar em questão.
Por tal motivo não se sus- Maria Goretti Gomide Pinheiro (30 de outubro
tenta o entendimento de que de 2014)
o lugar seria aquele recorte Penso que sim, rompendo com as estruturas
do território isolado e isolável do passado. Podemos pensar o urbano tomado mundo, portador de uma do pela reflexão, pela crítica e pela liberdade
identidade particular extensi- de pensamento. Tomar esse espaço como o
va a seus ocupantes e exclu- lugar da experiência, da ação social que faz
85
siva deles. A noção de identidade, apoiada em um conjunto
de atributos fixos que serviriam de referências, mostra-se
como abordagem não só insuficiente, mas incapaz mesmo
de sustentar as potencialidades da comunidade e de seus
lugares de ação. Mais rico que o conceito de identidade, o
conceito de singularidade não passa pela circunscrição da
realidade a quadros de referência, implicando, pelo contrário, a possibilidade de ruptura com tais enquadramentos. A
singularização será precisamente o processo de criação de
movimentos desviantes por meio da afirmação de outras
maneiras de ser, de outras sensibilidades e percepções
(GUATTARI; ROLNIK, 1986). Assim, a singularidade de um
lugar e de uma comunidade se construiria em sua relação
com o que lhe é exterior e desconhecido, não sendo um
atributo fixo e preexistente a tal relação. Trata-se de um
processo aberto, em constante transformação e refratário
a qualquer fundamentação estacionária. Ademais, a consideração desse caráter sempre aberto à alteração permite
refutar a defesa de uma pretensa pureza das identidades,
seja dos lugares, seja das comunidades, pretensão esta
que fundamenta violências, sectarismos e preconceitos de
cunho segregador, cujo objetivo é sempre o de proteger
uma identidade idealizada dos riscos de descaracterização.
Por outro lado, não se trata apenas de ampliar o raio de
abrangência do recorte geográfico ao qual se ligam as comunidades. Grandes ou pequenos, tais recortes extensivos
do território dizem respeito a um regime macropolítico de
funcionamento que distribui as grandezas de uma mesma
natureza, como é o caso da escala geográfica, mas que incide também sobre as pessoas, transformando-as em indivíduos aptos a serem classificados e agrupados segundo
sistemas hierárquicos e de submissão. A comunidade deve
ser pensada então fora desse regime que a reduz a agrupamento unitário de sujeitos individuados e normalizados, tributário dos sistemas de pensamento que se desenvolveram,
com a modernidade ocidental, como esteio da ordem social
capitalista e como condição e efeito de Estados, empresas
e mercados. É assim que por meio desses sistemas, base
do desenvolvimento das ciências do homem, construiu-se
86
um inventário de vivências, percepções e sensações, como
seres interpretativos e instituidores de sentido, criando-se
assim um vínculo de confiança com diferentes indivíduos
que impactam e que são impactados por suas atividades e
dão legitimidade a partir da formação de identidades culturais. Assim mudam-se as condições de existência das
organizações e, com isto, mudam também as condutas. A
arte, a cultura e a comunidade precisam recusar os modos
de manipulação para construir a sensibilidade, modos de
relacionar com o outro, modos de produção e de criatividade que produzam uma subjetividade singular.
Carlos Muñoz Sánchez (28 de outubro de 2014)
Acho possível, sim, mas difícil. Concordo com Ricardo na
questão de que o importante é uma mudança de mentalidade mesmo, mas não concordo em colocar um problema em
cobrar pelo trabalho feito com uma comunidade. Quer dizer,
se um coletivo é chamado para trabalhar numa comunidade,
e doa este trabalho, no final das contas está agindo igual a
uma ONG, inclusive a recepção deste trabalho vai ser vista
como um presente e não como um trabalho que tem um
custo. Referente ao texto, também não concordo com ligar a
participação com uma liderança do projeto, ou, se for assim,
não necessariamente isto é uma coisa ruim. Se o projeto é
um projeto surgido de uma iniciativa própria, que chama
uma equipe, um coletivo ou um indivíduo pra fazê-lo, e este
coletivo (por exemplo) escolhe uma metodologia participativa como processo de trabalho, acho que essas questões
ficam mais diluídas. Esse coletivo vai dirigir o trabalho, mas
o projeto é um projeto de um cliente, não uma iniciativa
própria em que você impõe uma participação.
Ricardo Macêdo (28 de outubro de 2014)
O Maximiliano tocou num ponto fulcral: muitas vezes as
ações de projetos não buscam resultado monetário, mas
buscam por notoriedade, e acaba sendo, no fim das contas,
lógica de mercado também, pois isto tem valor simbólico
dentro dos sistemas (na arte, na mídia, etc.). Ontem mesmo participei de uma aula gratuita on-line sobre produção
de projetos para lei de incentivo, o professor é catedrático
87
uma abordagem antropocêntrica que pensa o mundo como
domínio de indivíduos racionalmente organizados em sintonia com um contrato social responsável pelas garantias
aos direitos humanos, individuais e coletivos, adequados às
demandas do capital (como é o caso dos direitos de propriedade privada) em detrimento de outros seres vivos.
Maurizio Lazzarato (2014) observa, desdobrando o pensamento de Michel Foucault, Felix Guattari e Gilles Deleuze,
que somos equipados com uma subjetividade individual a
partir de atributos de identidade - um sexo, uma profissão,
uma nacionalidade, etc. - que nos constituem como sujeitos
individuados reagrupáveis em todos os níveis da produção
e do consumo, enquadrados em papéis e lugares dentro
da divisão social do trabalho. Trata-se de um processo de
sujeição social de personificação e também de equivalência, no nível dos indivíduos, das relações hierárquicas de
trocas capitalistas, “[...] um modo de comando, de regulação e de governo ‘assistido’ pela tecnologia, constituindo,
como tal, uma especificidade do capitalismo” (LAZZARATTO,
2014, p.29). Esse processo fabrica um sujeito a ser vinculado a um objeto externo (entendido num sentido amplo, de
um serviço público, por exemplo) que funciona como meio
numa lógica sujeito-objeto ou sujeito-sujeito, referenciada
no indivíduo.
Ainda segundo o autor, paralelamente a esse processo de
sujeição a partir da fabricação de indivíduos (e de grupos
deles derivados, poderíamos acrescentar) moldados para
determinadas ações e, portanto, efeito e condição das demandas do capital, ocorre outro, de servidão, por meio do
qual o indivíduo é despossuído de seu papel de referente,
numa desarticulação dos componentes de sua subjetividade.
No processo de servidão a síntese subjetiva não mais reside
ou se referencia na pessoa, mas em um funcionamento
coletivo de máquinas, objetos, signos e fluxos. Nesse processo de servidão desumanizante, a subjetividade é ativada
e posta para funcionar a partir de seus componentes infraindividuais no interior de complexos de relações que não
fazem distinção entre humano e não humano.
88
Assim, sujeição e servidão definem as modalidades de captura e de funcionamento em
cuja interseção se dá a produção de subjetividade. Essa é uma questão política incontornável, para a qual não há caminhos prontos.
Como criar franjas de singularização capazes
de desvio com relação às cadeias de metas,
objetivos e interesses já dados de antemão,
para que se produzam novas singularidades
no trabalho com comunidades? Se é possível
já afirmar certas recusas, há que se ir mais
longe, para além da recusa e da mera enunciação de intenções, de modo a produzir uma
diferença com – e não para - a comunidade,
em um encontro que escape dos protocolos
de sujeição e de servidão.
Sem pretender encaminhar respostas ou
prescrever métodos, essas questões têm
por objetivo instigar um
trabalho de criação e em formatação de projetos. Vi que isso virou um
problematização de ex- mercado, que cobram R$370,00 por pessoa para
periências com comuni- participar, todos pagam (menos eu - rsrs) e a lógidades, e neste sentido ca é esta mesma: ganha-se por conta do dinheiro
uma primeira questão do edital, mas ganha-se também pela notoriedade
talvez seja o abandono que o projeto oferta. Se o comprometimento fosse
da própria denominação com as demandas de uma comunidade (por exemplo) e não somente com a grana do edital (R$100
mil, 200 mil), acho que a coisa engrenava. Acho
que realmente, acima do lucro e da boniteza do
projeto, deve-se ter em mente outro paradigma...
Este é um desafio foda: mudança de mentalidade.
Maximiliano Barbosa (28 de outubro de 2014)
Possível, porém, mais difícil. Acredito que, para
atingir a autonomia necessária para tal, é necessário um sistema de produção fora dos padrões
habituais. Note-se aqui que, mesmo em ações comunitárias, coletivos, etc., ainda que com grau reduzido de comprometimento com a lógica de mer-
89
de comunidade como agregado unitário ou como conjunto
circunscrito de pessoas. Os processos de singularização
que permitem declinar dos recortes identitários das comunidades deverão ser produzidos na hibridização dos seres
vivos: as conexões envolvem relações entre seres humanos,
não humanos e o meio ambiente. Ademais tais conexões
devem ser construídas fora dos modos tradicionais de endereçamento que estabelecem o outro como alvo de uma
ação intervencionista conforme aos interesses dos centros
de comando, sejam tais interesses de natureza epistemológica, disciplinar ou empresarial. Assim, o outro constituído
em público, habitante, consumidor, beneficiário, usuário,
cliente, leitor ou espectador já é efeito de um poder que
primeiramente exclui e depois recupera por meio de uma
inclusão em tudo ambígua.
Essa problematização não é propriamente nova, embora
marginal ou secundária se comparada com o funcionamento majoritário da própria racionalidade ocidental. Nas artes
plásticas, por exemplo, desde os anos 60 do século XX tem
sido comum certa reivindicação de ruptura com a noção de
obra como produto acabado derivado da ação de um sujeito privilegiado – o artista – a ser admirado por um público
que não interfere em tal produto. Também os situacionistas, grupo de artistas e arquitetos, desenvolveram desde
os anos 1960 toda uma crítica ao urbanismo racionalista
como produção especializada do espaço afinado com as
demandas alienantes da sociedade capitalista. Também na
filosofia das ciências e na epistemologia há todo um campo
de problematização das posições e dos papéis atribuídos
às figuras do leigo e do especialista, por meio das quais se
perpetuam hierarquias e distribuições assimétricas de ação
nos modos de endereçamento prevalentes.
Sequer a noção bastante em voga de participação é suficiente, já que, surgida de uma convocação, mantém o controle
dos processos, metas e posições em jogo, fazendo com que
este outro com o qual se relaciona permaneça como alvo
enquadrado de uma concessão. Todas essas modalidades
esvaziam a potência e a capacidade de criar e produzir di-
90
ferença do outro, sempre reduzido a receptor de um comando
por parte de um poder que primeiramente exclui e depois recupera por meio de uma inclusão feita de vínculos desfavoráveis. Entretanto, sempre permanecem brechas por onde pode
se dar todo um outro modo de existência a partir de uma reinvenção e reconstrução de novas relações. A inserção nas frestas pode permitir a subversão ou a suspensão temporária dos
modos tradicionais de endereçamento em prol da constituição
de encontros feitos de outras forças e matérias. A exposição ao
fora, o compartilhamento e a diferença cado, podemos nos deparar com agendas de interesse
são apostas a serem nesse sentido (por exemplo: uma ação pode não ter
acolhidas. De modo objetivos financeiros diretos, mas ter um agendamensemelhante ao que to de busca de notoriedade - outra forma de geração
ocorre com o lugar, de valor ligada à lógica de mercado).
entendido como ponto singular de rela- Rafael de Araújo Teixeira (26 de outubro de 2014)
ções com o que está Também tentei pensar em alguns exemplos de que
fora dele, também a é possível e de que na verdade sempre existiu, aincomunidade se defi- da que de modo underground... O ato mais clássico e
ne pela singularidade simplório de passar o chapéu após intervenções artísticas já coloca na relação artista-expectador um
valor para além das cifras das moedas colocadas no
próprio chapéu. Atualmente têm crescido os financiamentos coletivos ou colaborativos através dos sites
de crowfundind em que a multidão tem na rede virtual uma ferramenta importantíssima de construção
do comum. Outras formas de geração de renda ou
mesmo de levantamento de fundos para viabilizar a
cultura e a arte via economia criativa têm se mostrado possíveis, enfim, é um trabalho árduo para atuar
dentro do sistema.
Bruno Dorneles (24 de outubro de 2014)
Algumas semelhanças com a questão abordada na
aula anterior. Sim, é possível pensar em exemplos
teóricos e práticos que debatem as relações de mercado e arte e que, por vezes, podem negar o primeiro
a fim de potencializar (ou simplesmente permitir) o
segundo. A cultura, porém, como sistema de produção e legitimação simbólica, na atualidade, tornou-
91
de relações que estabelece com o que está fora dela. E fora
aqui, sublinhe-se, não equivale a uma exterioridade empírica calcada em delimitações estacionárias de um regime
de distribuição de posições, mas a uma diferença intensiva,
capaz de romper contornos e segmentações e assim produzir o novo.
Referências
GUATTARI, Felix. Caosmose Um novo paradigma estético. São
Paulo: Editora 34, 2012 (Coleção TRANS).
GUATTARI, Felix; ROLNIK, Suely. Micropolítica. Cartografias
do desejo. Petrópolis: Vozes, 1986.
HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multidão. Guerra e democracia na era do Império. Rio de Janeiro: Record, 2005.
LAZZARATO, Maurizio. Signos, máquinas, subjetividades. São
Paulo: Edições SESC/ n-1 edições, 2014.
NANCY, Jean-Luc. La comunidad inoperante. Santiago de
Chile: LOM Editores/ Universidad ARCIS, 2000. PACHECO, Anelise; COCCO, Giuseppe; VAZ, Paulo (Org). O
trabalho da multidão. Império e Resistências. Rio de Janeiro:
Gryphus/Museu da República, 2002.
PELBART, Peter-Pál. Vida Capital. Ensaios de Biopolítica. São
Paulo: Iluminuras, 2011.
SANTOS, Milton. A natureza do espaço: Técnica e Tempo,
Razão e Emoção. São Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo, 2006 (Coleção Milton Santos; 1).
____________. Da Totalidade ao Lugar. São Paulo: EDUSP,
2008 (Coleção Milton Santos; 7).
92
se uma moeda de troca de valoração específica
bastante própria, especializada em um modo de
especulação de lucro como se vê em poucos outros sistemas econômicos. Esse sistema, por si só,
permitiu e continua permitindo que toda a globalizada lógica de produção, distribuição e consumo
de produtos culturais (do seriado de TV ao imã de
geladeira com a reprodução da Mona Lisa na lojinha do Louvre) adquira um valor de mercado que
monetariza e intercede na experiência não apenas
do observador com o objeto que compra, como do
observador com todos os objetos multimídia que
envolvem o produto cultural (ou seja, da compra
da edição de colecionador do box com todas as
temporadas de Breaking Bad à própria pintura
da Mona Lisa). Se então partirmos do axioma de
que existe uma parcela da arte e dos produtos
culturais que não pretende ser monetarizada por
vetores macroeconômicos, estes precisam estar
atentos a formas outras de produção, distribuição e consumo do resultado de seus esforços em
construir propostas estésicas - tais como financiamento público via editais de cultura, fomentos
e produções coletivas...
Questão 2
A consideração da comunidade como conjunto heterogêneo composto de humanos e não humanos
traz alguma problematização para a arte e a cultura?
Justifique.
Gustavo Wolff (3 de novembro de 2014)
Uma problematização no bom sentido, acredito. A
diferença é sempre uma força de movimento tanto
para a comunidade quanto para a arte e a cultura.
Carlos Dalla Bernardina (3 de novembro de 2014)
Traz, sim, muitas problematizações, no melhor
dos sentidos. Essa mudança de perspectiva parece resolver conceitualmente um dos grandes
93
problemas da contemporaneidade: esta necessidade dupla
que temos de mais liberdade e de mais vínculos. De algum
modo, a pós-modernidade, em sua fase inicial a partir dos anos
1970, nos apresentou esses dois valores tão essenciais como
contraditórios, na medida em que a noção de vínculo estava
sempre associada à questão da identidade. Muitos psicanalistas, inclusive, associaram o alastramento da depressão à
crise de identidade. E na medida em que ampliamos nossa
noção de identidade para a noção de singularidade, a partir
de uma base relacional, ao mesmo tempo que desterritorializamos a noção de comunidade, podemos caminhar com mais
desenvoltura pelos fenômenos que já vemos ocorrendo em
nosso cotidiano. Nesse cenário, a arte joga um papel crucial,
embora talvez bem diferente do que jogava no cenário anterior:
o papel de vetor para a construção dessas singularidades, não
mais preocupada em traduzir identidades, mas em possibilitar
a invenção de singularidades. Nesse sentido, processos que
há 50 anos eram considerados marginais, como os de Lygia
Clark, talvez agora possam estar no centro da construção de
um campo de convivências mais genuíno entre as pessoas, e
entre elas e o mundo não humano.
Bernardo Romagnoli Bethonico (1 de novembro de 2014)
É certo que vivemos em um mundo no qual humano é um lugar considerado como privilégio, como um dado de prestígio
na criação. Isso vem de uma cultura antropocêntrica europeia
que recebemos de herança no Brasil – esta também postula
a comunidade como uma construção homogênea e coerente
com os princípios territoriais do Estado-Nação. Considerar a
comunidade como heterogeneidade em que o humano não é a
única vida implica considerar muitas culturas que resistem à
normalização da cultura brasileira. Trata-se da visão indígena
de que as árvores ou as pedras dividem um destino em comum
conosco, são nossos antepassados. Isso se contrapõe à visão
hegemônica de que a espécie humana é conquistadora e praticamente sem comunicação com o que não seja ela. Apontam
a comunidade como espaço heterogêneo não exclusivamente
humano também o veganismo e o vegetarianismo, modos de
viver que problematizam o modo como a vida animal é tratada,
fazendo do hábito uma ação que não aceita a mercadologi-
94
zação da vida. Também os movimentos de alimentação viva,
sem agrotóxicos, problematizam a suposta superioridade do
homem e sua crença na eficiência. A problematização da comunidade como campo de movimento heterogêneo está na
relação dos humanos com a paisagem, com os objetos, com
os animais e entre si. Habitar um espaço, observá-lo, documentá-lo, dançar nele, relacionar-se com um objeto, deixá-lo falar
e não simplesmente considerá-lo a partir das minhas referências habituais são questões fervilhantes que produzem vozes
singulares. Estar com animais ou com a imagem de animais
é um ato que pode acordar um humano não domesticado pelos escritórios. Considerar a comunidade como complexidade,
como distâncias mais do que proximidades, abre espaço para
o humano se reinventar.
Yuri Amaral (31 de outubro de 2014)
Luiza, gosto (e defendo muito) esse pensamento tanto da singularidade de cada ator/elemento como também dos desdobramentos que suas relações geram/podem gerar. Isso apenas
enriquece nosso (multi)universo e nossas sinapses, ao ponto
de passar não a criar expectativas e planejamentos estratégicos em longo prazo, mas de entender como é possível trabalhar com e (re)combinar o que se tem em mãos.
Yuri Amaral (31 de outubro de 2014)
Penso que essa problematização depende, também, de como
se enxergam essas relações, seus atores e desdobramentos.
Qualquer coisa é possível conforme as combinações realizadas
entre esses elementos, independentemente de essas combinações serem “induzidas” ou “acontecerem naturalmente”.
Luiza Alcântara (31 de outubro de 2014)
É claro, podemos pensar as artes relacionais em que a comunidade está completamente associada ao projeto artístico,
assim como os sites specific e a arte educacional, entre outros.
Esses projetos (porque não são criações de objetos, mas a produção/proposição de relações estéticas) envolvem todo o ambiente em torno (pessoas, natureza, construções, paisagem...),
o contexto de onde e quando estão inseridos, assim como o
resultado expositivo do trabalho (o tornar público). Concordo
95
com a professora Simone, quando diz que a arte não é a única
forma de “conectar e nos abrir ao que não somos, de nos fazer
variar, transformar, diferir [...]” Vejo as produções de diferentes áreas se mesclando muito, tanto que não conseguimos
distinguir se um trabalho é ou não arte. Podemos pegar vários
exemplos dessa Bienal de São Paulo, em que os trabalhos
expostos se confundem com educação, pesquisa de campo de
um antropólogo e por aí vai. Talvez a arte esteja deixando de
ser arte e se tornando cultura, por perder sua característica
de autonomia (o que a define como algo distante da vida) para
se tornar algo mais próximo da vida.
Ricardo De Cristófaro (30 de outubro de 2014)
Penso que muitas comunidades, como conjunto heterogêneo,
permanecem e se identificam de maneira muito intensa com
a dimensão do não humano. O não humano como um vetor de
significação e identidade. Também de localização. Isso ocorre
com a raça humana já na formação dos primeiros grupos sociais. Penso, por exemplo, no momento em que o ser humano
arrastou e levantou grandes pedras e a partir daí criou o que
conhecemos como “menir”. O menir é a produção de um lugar.
Um espaço ocupado. A questão da transformação de espaços
em lugares a partir dessa ação embrionária do menir está
muito ligada a práticas e intenções artísticas desde sempre.
Arte como lugar.
Júlia Nascimento de Oliveira (28 de outubro de 2014)
Acredito que a grande problematização criada a partir do conceito de comunidade como conjunto heterogêneo seja o reflexo
que a comunidade implica no espaço onde está inserida e viceversa. As manifestações comunitárias alteram dinamicamente
o espaço habitado, transformando usos, formas e sentidos,
tanto dos seus agentes quanto dos seus reagentes. O resultado
dessa dinâmica é uma constante renovação.
Ricardo Macêdo (28 de outubro de 2014)
Ô, Bruno, boa reflexão. Mas ainda assim, tentando entender
aqui tua linha de raciocínio, fiquei me perguntando como pode
não haver nenhuma problematização na RELAÇÃO entre homem e meio ambiente? RELAÇÃO como modo/estratégia/tática
96
pra chegar ao Outro, na comunidade, enfim, sem prejuízos
maiores para não só a comunidade, mas para o planeta. Veja,
por exemplo (só pra jogar mais palha na fogueira - rsrs), a
VALE, independentemente do local no Brasil onde essa mineradora se estabelece, o modo como chegam às comunidade é
sempre invasivo e depredador, não levam em conta a cultura
ancestral local, nem os valores, nem a crise ambiental emergente, ou seja, o planeta dentro desse paradigma de consumo
(algo identificado por alguns autores como lógica da “obsolescência programada”: consumir e descartar como se a natureza fosse infinita, uma lógica criada nos EUA na década
de 1920, diga-se de passagem). Dentro dessa ótica, olha-se
mais para o resultado (lucro para a empresa) do que para o
processo (modos, estratégias) menos hostis à comunidade.
Então, sendo prático, qual é a forma/modo de chegar ao Outro
(levando em conta questões psíquicas, emocionais e físicas
como colocastes) sem ser hostil à comunidade? É isso que me
pergunto atualmente. Vejo em alguns grupos de arte ou de ativismo problematizações desse paradigma predatório e busca
por alternativas para essa postura de indiferença ao contexto
ambiental, social, econômico. Enfim, se a pergunta estiver sob
esse ponto de vista, acho que é por aí, senão, desconsiderem
minha fala, please.
Bruno Dorneles (28 de outubro de 2014)
Não consigo perceber a natureza dessa problematização, no
caso de sua existência. Mais uma vez devo me limitar ao pouco
que é possível tirar dos conceitos que envolvem o enunciado.
Partindo do princípio de que a figura humana é uma construção
baseada em princípios fisiológicos, mas, principalmente, em
princípios psíquicos (aceitamos os corpos estranhos, desde
que conscientes de seus próprios atos) e que o não humano
é um espelho inverso do conceito anterior, fico limitado a supor que não existe qualquer tipo de problematização pela qual
arte e/ou cultura sejam capazes de operar através de reflexão
dialógica. Por exemplo, a relação do humano com o não humano, como apontada pelo Ricardo, não consegue se mostrar
heterogênea. Vejamos que somos criados a acreditar e a agir
de acordo com a ideia de que somos o topo da cadeia alimentar, sendo as nossas vontades todas saciáveis e nossos atos
97
para alcançá-las, todos justificáveis - talvez por isso Michael
Apple, no riquíssimo artigo Consumindo o outro: branquidade,
educação e batatas fritas baratas, consiga demonstrar o capricho capitalista das formas de produção bastante não humanas
em que se dão o cultivo das batatas do McDonald. Desse ponto
de vista, a comunidade é sempre uma série de agrupamentos
irregulares que dividem muitos poucos princípios operadores
de suas formatações práticas. No mundo moderno, as fontes
de energia não renovável, principalmente o petróleo, são no
que se baseia a cola de boníssima parte do capital. Não havendo uma comunidade como um ideal de união entre todos os
seres que configuram o contexto em que vivemos, seu tempo
e seu espaço, o que resta à arte e à cultura pode ser o oposto
imediato: evidenciar a discrepância que existe entre aqueles
que erguem as bandeiras do social em nome de um mercado
que conforta sua posição elevada em sua cadeia de poderes.
Cândida Soares Leão Teixeira (27 de outubro de 2014)
A comunidade traz uma problematização para a arte e a cultura que a enriquecem, porque a diversidade dos tipos unidos
em uma comunidade deveria ser motivo para engrandecer o
universo das singularidades agrupadas neste lugar. O outro
deve ser visto como outro, e não como espelho identitário no
qual cada um se reconhece, mas o outro como aceitação da
alteridade inerente dele próprio. Cada um deve fazer o exercício de aceitar o diferente e incluí-lo em seu mundo, aceitando
com este pensar a multidão que existe também em cada um.
A comunidade também pode pertencer ao mundo virtual. Hoje
com a internet podemos nos unir em qualquer localidade pela
afinidade de ideias ou também pela vontade de discutir e propor inovações dentro de pensamentos diversos.
98
Paula Bruzzi Berquó*
Arte
e cotidiano:
aproximações táticas
* Arquiteta
e urbanista
graduada na
Escola de
Arquitetura
da UFMG.
Mestranda
no Núcleo de
Pós-Graduação
em Arquitetura
e Urbanismo
da UFMG.
Integrante
do grupo de
pesquisa
INDISCIPLINAR.
Pesquisadora
no projeto
“Cartografias
Emergentes:
a distribuição
territorial
da produção
cultural em
Belo Horizonte”
(SEC/MinC/
CNPq). Membro
da equipe
idealizadora do
projeto “Museu
do Instante”
(2014).
100
Em que medida o fazer artístico atravessa a vida cotidiana?
Como esses cruzamentos operam e qual é a sua potência
em promover questionamentos críticos em torno ao modo
como o espaço urbano é vivido e produzido? De forma a
suscitar reflexões a esse respeito, parece-nos oportuno
abordar, primeiramente, as práticas cotidianas e a sua dimensão política.
Segundo Michel de Certeau (1994, p.31), “o cotidiano é aquilo que nos é dado cada dia (ou que nos cabe em partilha),
nos pressiona dia após dia, nos oprime, pois existe uma
opressão no presente”. Nos dois volumes de sua obra A
invenção do cotidiano, o autor dedica-se à análise da dimensão política das práticas ou maneiras de fazer cotidianas,
empreendendo, para isto, uma distinção entre tática e estratégia. Para ele, trata-se de duas modalidades de ação, as
quais promovem diferentes tipos de operações no espaço:
enquanto a estratégia produz, mapeia e impõe um espaço
próprio, a tática utiliza o espaço existente, altera-o e manipula-o. Uma ação tática intervém, assim, no próprio campo que a regula, introduzindo a esse patamar regulatório
primeiro um nível outro, que obedece a regras distintas e
instaura, no lugar mesmo de sua dominação, uma pluralidade de possibilidades.
A estratégia caracteriza-se, assim, pela definição de um
lugar circunscrito, que sirva de base para a gestão das relações com o que lhe é externo. Esse lugar-base é o que
lhe confere autonomia em face ao caráter contingente do
tempo, que a protege da variabilidade constante das
circunstâncias, e que lhe permite capitalizar vantagens, prever expansões e antecipar-se às etapas do
jogo. Esse tipo de ação, característica da atividade
militar, configura, segundo Certeau, a base da ciência
e da política modernas.
A tática, por sua vez, é determinada pela falta de um
próprio: ela existe onde não há limites entre dentro e
fora, isto é, onde o terreno da ação é o lugar
do Outro. Uma operação Questão 1
de ordem tática não se Em que medida a arte, em sua interseção com a esrefere, portanto, à to- fera cotidiana, apresenta potenciais táticos? Discuta
talização imbricada na esta questão com base em exemplos.
existência de um campo
próprio, mas a um mo- Thaís Mor (23 de novembro de 2014)
vimento que se faz no Na medida em que interferimos numa realidade
espaço controlado pelo “comum” imposta pelo sistema e construímos
“inimigo”, em meio às fa- questões e outras possibilidades de realidade
lhas de suas condições com uma “organização estética” que desperte
de vigilância. É um tipo um novo potencial estrutural, esta arte passa a
de ação hábil, movida ter um potencial tático. A arte precisa se equipar
pelas ocasiões. É a pri- de instrumentos, conhecimentos, ferramentas e,
mazia do tempo frente finalmente, criar estratégias, para então iniciar
ao lugar, pura mobilida- suas ações táticas. Isso me soa como empreende subversiva em meio der, ou criar projetos, controles de produção, enaos espaços de poder fim, a arte também deve ser encarada como algo
postulados pelas estra- estruturado e planejado para ser tático. Como
tégias. Trata-se, para exemplo, temos em Belo Horizonte a manifesCerteau, das maneiras tação contra a requalificação do Viaduto Santa
de fazer dos consumido- Teresa, em que a intervenção tática reuniu mores, que modificam, por radores, MCs, artistas, arquitetos, estudantes e
meio do uso, os produ- ocupantes do Corredor Cultural para mostrarem
tos e espaços que lhes que ali já existia uma cultura vigente, uma bioposão dados à assimilação. lítica interferindo na vida diária do local.
101
Se o que subjaz o esforço do autor em caracterizar esses
diferentes tipos de ação é justamente a tentativa de pensar
esse uso para além das representações redutoras comumente usadas pelos gestores do espaço urbano, a nós cabe
aqui outro desafio: trata-se de pensar possíveis relações
entre esse uso e as práticas artísticas. De que maneira a
arte atravessa as maneiras com que os cidadãos se apropriam do território que ocupam? Em que medida seus processos são capazes de suscitar incorporações subversivas,
por parte desses cidadãos, das formas urbanas que lhes
são impostas? Se, na ótica de Certeau, a estratégia é uma
forma de operação baseada no estabelecimento de lugares
de poder, em que medida processos artísticos podem ser
pensados como táticas de baralhamento desses lugares?
Na base de tais questionamentos reside um ponto que
nos parece fundamental: a ideia de que o espaço cotidiano é, antes de mais nada, o espaço de um mundo comum
partilhado, e de que uma discussão a seu respeito deva
ser, portanto, acompanhada por outra, referente a como
esse mundo comum se constitui e se presta à participação.
Trata-se, em outras palavras, de salientar o caráter fundamentalmente político do espaço da vida cotidiana e das
contínuas negociações que lhe são constitutivas.
Para a análise de tais questões, a ideia de partilha do sensível, desenvolvida pelo filósofo francês Jacques Rancière,
nos parece especialmente relevante.
1. Segundo
Aristóteles, em
trecho citado
por Rancière, “o
cidadão é quem
toma parte no
fato de governar
e ser governado”
(RANCIÈRE,
2005, p.16).
102
Denomino partilha do sensível o sistema de evidências sensíveis que revela, ao mesmo tempo, a existência de um comum e dos recortes que nele definem partes respectivas. Uma partilha do sensível fixa,
portanto, ao mesmo tempo, um comum partilhado e
partes exclusivas. (RANCIÈRE, 2005, p.15)
Segundo o autor, essa partilha, que se encontra no cerne da
política, não se reduz, contudo, a um simples tomar parte1
como governado ou governante, mas inclui uma etapa anterior, referente ao ato de determinação de quem pode tomar
Valéria da Silva Freitas (11 de novembro de 2014)
Ao ler as contribuições dos colegas e o texto
principal, eu me lembrei de uma experiência que
acompanhei em um projeto de artes plásticas na
periferia de São Paulo. Foi uma experiência curiosa que gerou opiniões divergentes. Em síntese,
o projeto social consiste em pintar as fachadas
das casas com cores e desenhos produzidos pelos próprios moradores. A princípio, a adesão da
comunidade a esse projeto foi imediata. Eles se
apropriaram da ideia do projeto e começaram a
atuar junto com a artista plástica para a transformação da fachada da casa. Entre os moradores,
houve um que colocou a casa à venda assim que a
pintura foi finalizada. A casa rapidamente foi vendida, por um valor acima da média. Esse fato gerou
diversos questionamentos: “Como se desfazer da
própria casa, pintada e desenhada pelos próprios
filhos? Que oportunistas!”; “O projeto não foi capaz
de sensibilizar o morador a gostar do seu bairro e
da sua casa?”; “O morador tem o direito de escolher onde quer morar ou não?”. Vejo esse como
um exemplo. Qual é a opinião de vocês sobre essa
experiência e seus desdobramentos?
Carlos Dalla Bernardina (7 de novembro de 2014)
Na medida em que ressignifica, reorganiza e atualiza o material simbólico que subjaz no inconsciente coletivo das singularidades, estruturando
aquelas “arquiteturas do sensível” rancierianas...
A questão é se o simples “baralhamento” desse
material simbólico, por si só, seria capaz de levar a uma ação/transformação no âmbito político... Penso que não seria justo com a arte cobrar
dela esse peso... Seria inclusive perigoso... A partir
de determinado ponto, outras instâncias devem
arrematar os movimentos visionariamente incitados pela arte, libertando-a da responsabilidade
de liderar uma transformação efetiva da organização “policialesca” de determinado contexto social.
103
parte nesse mundo partilhado. A definição de tal “competência” refere-se a uma questão estética, que se encontra
na base do que o autor entende como política.
2. Cf. RANCIÈRE,
Jacques. O
que significa
“estética”? .
Lisboa: KKYM,
2011.
Rancière (2011) caracteriza a política - ou a lógica política
- como um contraponto ao que denomina ordem policial. A
Polícia, para ele, não se refere a um aparato estatal destinado à repressão, mas a uma “ordenação da comunidade
em que cada parte é compelida a manter-se fiel a seu lugar,
à sua função e à sua identidade” (2011, não paginado). Tal
ordem diz respeito, portanto, a um arranjo do mundo sensível baseado em uma concepção estática da comunidade,
na qual os sujeitos têm seus lugares definidos em função
de sua “ocupação”: daquilo que se faz, de onde e de quando
se faz. Nesse arranjo, o pensável, o visível e o audível se
distribuem com base em uma clara separação entre o real
e o ficcional e, de forma mais abrangente, entre o possível
e o impossível2 .
A política teria como objetivo justamente romper com tal
organização, de forma a expor as circunstâncias que a
subjazem, e possibilitar a recriação dos códigos sensíveis
que a sustentam. O seu papel seria, assim, o de ativar uma
espécie de baralhamento entre o que se dá a ver no mundo
sensível ou, em outras palavras, de apontar para outras
partilhas desse universo. É por meio dela, e da dimensão
estética a ela inerente, que, na perspectiva de Rancière,
sujeitos excluídos do arranjo ordenado pela Polícia teriam
a possibilidade de se fazer ouvir ou, dito de outro modo, de
se tornar seres pertencentes a um mundo e a uma linguagem comuns.
Dessa breve reflexão parece-nos possível intuir que o que
está em jogo no espaço da vida cotidiana é justamente essa
negociação em torno à possibilidade de tomar parte em um
universo comum. Ora, se considerarmos tais questões a
partir das ações artísticas urbanas, podemos retomar, sob
outra ótica, a indagação que fizemos acima. Se antes nos
perguntávamos em que medida tais práticas poderiam ser
tidas como táticas, ora podemos ampliar tal questionamen-
104
to para: como poderiam estas
configurar mecanismos táticos
capazes de fazer frente à ordem
policialesca, dando a ver o até
então invisível e promovendo,
assim, deslocamentos no regime do sensível vigente na cidade? Em outras palavras, como a
arte assume, em meio à experiência cotidiana do espaço urbano, um papel político entendido
nos termos de Rancière?
Na falta de memória sobre os inúmeros
exemplos cotidianos, além dos já citados
por aqui, podemos pensar em Duchamp
como icônico desse movimento tático-artístico, valendo-se de objetos do cotidiano
instituído para subverter-lhes e inventarlhes novos sentidos críticos.
Bruno Dorneles (3 de novembro de 2014)
Tentando escapar do que considero ser o
óbvio, vou me ater à resposta que foge de
exemplos do mundo da arte institucionalizada - a fim de evitar chegar aos mesmos
exemplos que vêm sendo vistos ao longo
das últimas décadas dentro das escolas
de arte de pesquisa estética contemporânea. Eu me atenho, portanto, na aparente
desigual medida que existe entre esta tal
esfera cotidiana e o que podemos perceber
como arte neste contexto. Ressalvo aqui
uma interpretação minha da pergunta:
minha resposta se dá na procura da arte
DA esfera cotidiana, em contato com o cotidiano, e não da arte NA esfera cotidiana,
traduzida em modos operários de transferência de matéria e sentido do seu lugar
de banalidade ao pedestal institucional da
legitimação absoluta. A ideia do cotidiano
sobre arte é, a meu ver, tudo aquilo que
Nesse ponto cabe um questionamento importante: quais são
os limites da arte como categoria? O que dela ainda podemos
esperar? É preciso salientar
que o que reunimos aqui - de
maneira talvez excessivamente redutiva - sob tal nominação,
refere-se a um campo mais
abrangente, não restrito às
instituições da arte, ou a obras
que apresentem pretensões
explicitamente “artísticas”.
Interessa-nos, mais do que isso,
investigar formas de experiência estética que permeiam o
espaço vivido, muitas vezes a
ponto de quase confundiremse com ele. É o caso, por exemplo, daquelas envolvidas nas
inscrições urbanas e nos atos coletivos de ocupação cultural ocorridos recentemente nos espaços públicos de Belo
Horizonte (MG), os quais analisaremos à frente. É importante salientar que a investigação que aqui faremos é pensada
como forma de suscitar possíveis continuações. O objetivo
é estimular os leitores a rastrearem outras situações/ações
que, residindo no tênue limite entre ação cotidiana e prática
artística, apresentem uma dimensão potencialmente tática.
105
Inscrições superficiais
No pensamento de Gilles Deleuze e Felix Guattari (1995), a
superfície aparece como espaço privilegiado de manifestação das forças e potências horizontais. O superficial é tido
pelos pensadores como contrário ao profundo, à verticalidade, ao linear e aos sistemas hierarquizados, assim como o
sistema rizomático é definido, em sua obra Mil Platôs, como
contraponto ao sistema-raiz. Segundo os autores, o rizoma seria uma espécie de ramificação superficial, “que se
expandiria em todos os sentidos até suas concreções em
bulbos e tubérculos”. Já a raiz, representação do profundo,
apresentaria necessariamente uma forte unidade principal,
essencial para a satisfação da ordem binária que caracteriza a sua estrutura. Se no rizoma qualquer ponto pode e
deve ser conectado a qualquer outro, sendo a ruptura de
suas possíveis conexões assignificantes para o funcionamento do sistema, na raiz o princípio reside na fixação de
um ponto principal, a partir do qual se opera uma ordem
hierarquizada. A superfície, como espaço de ramificação do
rizoma, apresentaria, assim, um caráter múltiplo e desierarquizado. Seu perene estado de movimento permitiria, na
perspectiva dos filósofos, um constante processo de desterritorialização-reterritorialização dos pontos, de forma a
gerar uma rede dinâmica. O espaço superficial seria, nesse
sentido, um espaço nômade, de eterno devir. Seria a superfície, para Deleuze e Guattari, o espaço da tática, tal como
entendida por Certeau?
106
Feita essa breve digressão, voltemo-nos
ao questionamento que motiva o presente
item: como o uso das superfícies urbanas pode conferir-lhes um caráter tático?
Propomos a investigação dos muros da
cidade como potencialmente passíveis de
abrigar processos de subversão da forma
com que a urbe encontra-se organizada.
Mas seria isso possível, sendo
se mostra eficientemente útil e que al- esses - limites físicos entre o
cança um atributo de beleza construído dentro e o fora, entre o público e
de forma coletiva, mesmo que desigual, o privado - a expressão máxima
entre o design de grandes marcas e o tão da ordem imposta no ambiente
problemático “gosto médio”. As modula- urbano? Forma de estratificação
ções da moda ao longo dos anos, o design e estriamento, instrumento de
industrial e seus paradigmas formalistas, separação por excelência, mameia polegada a mais ou a menos em um nifestação nítida da constituição
smartphone - que vêm nas cores branca de lugares próprios - de que
ou azul -, são exemplos de como a arte maneira pensar tais estrutupode transfigurar a interface do relacio- ras como espaço de experiência
namento humano ao seu redor. O que a subversiva?
arte institucionalizada, por outro lado,
tem feito ao longo das últimas seis déca- Voltemos ao pensamento de
das, para mais, é olhar atentamente para Certeau. A tática não seria, para
essas novas formas de operar os meca- o autor, justamente uma ação
nismos estéticos e relacionais dos seres que se faz na ordem imposta, de
sociais com os seus aparatos moderado- forma a desmontá-la? Em meio
res, abstraindo daí uma linguagem tanto a esse caráter rígido do muro,
estética quanto política, em uma investi- pensemos as possibilidades de
gação em que o resultado é o retrabalho mutação engendradas por suas
do cotidiano baseado em si mesmo, em faces. Palco de apropriações
objetos, formas ou momentos capazes de múltiplas, de construção e sodemonstrar tanto a fragilidade do que as breposição de narrativas e lingrandes corporações entendem ser um guagens, tais superfícies conforsistema infalível quanto a força destrui- mam espaços de movimento, e,
dora que a dúvida e o passo cego podem assim, de transformação conscausar. Penso que muito do ativismo fe- tante. Tratemo-las, com base
minista na arte possa se encaixar neste nas ideias deleuzianas, como esmeu pensamento, com artistas como paço de deslocamento e conexão.
Barbara Kruger ou Jenny Holzer.
Seria possível, nessa perspectiva,
107
pensá-las como expressão de um universo compartilhado?
Lugar de visibilidade e conflito, o fato é que as superfícies
urbanas configuram desde o início do século XX, importante palco de disputa simbólica e ideológica nas cidades.
Nesse período inicial, contudo, as intervenções superficiais
deviam-se, sobretudo, à atividade midiática, impulsionada pelo amplo desenvolvimento das indústrias de bens de
consumo. Em 1928, Walter Benjamin escreve: ”nuvens de
gafanhotos de escritura, que hoje já obscurecem o céu do
pretenso espírito para os habitantes das grandes cidades,
tornar-se-ão mais densas a cada ano seguinte” (BENJAMIN,
1997, p.28). De fato, as apropriações dos muros urbanos
ganharam grande amplitude ao longo do tempo, adquirindo
formas e pautas variadas. A atividade publicitária passa a
disputar espaço com inserções artísticas, textos poéticos e
intervenções de forte viés político.
3. Deve-se
pontuar que o
graffiti, apesar
de ter sido aqui
considerado
como pertencente
à mesma
modalidade que
a pixação, já
encontra-se bem
mais assimilado
pela indústria
cultural que esta
última.
4. Rancière
desenvolve a
ideia de glória
do qualquer um
em: RANCIÈRE,
Jacques. A partilha do sensível:
estética e política.
São Paulo: Exo/
Ed. 34, 2005.
108
Os outdoors produzidos pela norte-americana Barbara
Kruger, na década de 1980, podem ser vistos como expressão das várias faces dessa disputa. A artista, que se apropria da linguagem midiática na tentativa de promover uma
sua ressignificação, inscreve, sobre imagens amplamente
difundidas pelos meios de comunicação, frases que suscitam um pensamento crítico frente às condições de controle
a que a sociedade contemporânea encontra-se submetida.
Na Documenta VII, de 1982, a artista espalhou, pela cidade
alemã de Kassel, pôsteres nos quais imagens publicitárias
eram acompanhadas de frases como “os seus momentos
de alegria têm a precisão de estratégias militares”.
Mas, para além de intervenções autorais como essa, destaca-se outra modalidade de apropriação superficial do
espaço urbano. Trata-se das pixações e do graffiti3, que se
distinguem dessas últimas pelo fato de serem produzidos,
ao menos em teoria, através da ação direta do homem comum, ou daquele a que poderíamos chamar, apropriando-nos das ideias de Rancière, de qualquer um4. Assim, se
as obras de Kruger nos parecem tentativas de promover
um deslocamento do lugar do sujeito de simples observador passivo – “doutrinado” frente à paisagem dominada
por imagens publicitárias vazias e
neutralizantes – para alguém supostamente interpelado pelo meio,
o ato de inscrever-se na cidade diz
respeito a uma ruptura mais radical.
Seria essa uma forma de o sujeito
marginalizado, excluído do mundo
comum, tornar-se, ao menos potencialmente, parte do processo de
construção de seus significados?
A esse respeito, destaca-se o estudo
feito por Hygina Bruzzi, na década
de noventa, a respeito dos graffiti nova-iorquinos e de sua relação
com as inscrições produzidas na cidade de Belo Horizonte, a partir do
seu contato com o grupo de grafiteiros Posse de Santa Lúcia. Segundo
a filósofa, que utiliza as teorias de
Jean Baudrillard como base para
sua análise, as inscrições representariam uma forma de reivindicação do direito ao simbólico, que se
apresenta, na cidade formal, como
exclusividade da classe letrada. O
cerne da questão das inscrições
residiria, assim, na busca pelo domínio de uma linguagem comum por
parte dos grupos marginalizados,
que lhes concedesse a possibilidade
de influir na vida política da cidade.
Em suas palavras:
Questão 2
O que ainda podemos esperar da arte
como categoria? Quais são os limites
entre o que é legitimado como trabalho
artístico e as práticas cotidianas? Ilustre
os argumentos com exemplos.
Thaís Mor (23 de novembro de 2014)
Estamos passando por um novo momento das manifestações artísticas
e as suas relações com o cotidiano.
As superfícies e plataformas do dia a
dia nos obrigam a repensar em como
criar estratégias e ações táticas para
executar movimentos estéticos cada
vez mais políticos. Parece que a arte
ganha cada vez mais essa necessidade de um planejamento coletivo para
repercutir em respostas eficazes e,
finalmente, em ações que interfiram
na nossa realidade. Hoje as informações são exageradas e os interesses,
dispersos, mas esta exacerbação “virtual” está criando um efeito contrário
no sentido de repensar para criar critérios e escolhas e pautarmos nossa
vida em algo significativo e vital (independentemente do Estado e das políticas neoliberais) para finalmente nos
tornarmos CIDADÃOS DA ARTE, em
que qualquer um pode criar ou intermediar possibilidades de interseção
entre arte, política e cotidiano. Um
exemplo de tudo isso começa nas opções e atitudes diárias, cotidianas, de
o que “compartilhar”, de do que participar, de o que conversar, de o que
consumir. Hoje a Europa já acredita
na falência do capitalismo (mas aqui
temos um Estado que estimula um
109
No nosso caso, onde a violência é direta e muda, e a
passagem ao ato não é mediada por nenhuma fala ou
escrita legitimadora, esse tipo de inscrição, vem, a
contrapelo, demandar o mínimo de reconhecimento e
de direito à participação na civitas, através da reivindicação, não só do direito à palavra, mas de algo que
a precede: o aprendizado da palavra. Pronunciar e
pronunciar-se: é a partir daí que tem início a cidadania e a vida política, ou seja, a vida na polis. (BRUZZI,
1997, p.23)
A superfície aparece, assim, como lugar de negociação, de
repartilha do mundo comum e, mais do que isto, de refundação de uma sua linguagem. A frase “só assim você me
escuta!”, inscrita na estrutura do Viaduto Santa Tereza, no
centro de Belo Horizonte, é um das muitas expressões dessa condição.
Um exemplo recente e emblemático das formas com que a
linguagem vem tomando as superfícies urbanas no Brasil é
a ação do coletivo Projetação, surgido no Rio de Janeiro (RJ)
em meio às manifestações de junho de 2013. O grupo opera
de forma colaborativa, projetando em muros, escadas (e até
no Cristo Redentor) frases sugeridas por qualquer cidadão
que esteja disposto a colaborar. Graças à sua ação, frases
estampadas nos cartazes que povoaram as ruas durante alguns dos atos de manifestação coletiva em junho puderam
imprimir-se nas estruturas urbanas e ganhar maior visibilidade. Seria tal ação uma possível forma de amplificação
das vozes inauditas na cidade?
Feita essa breve análise, que se insere como convite ao
questionamento das formas e dos preceitos que nos são
dados à assimilação na cidade, restam-nos algumas questões: seriam, afinal, as inscrições superficiais urbanas
movimentos táticos? O que se sabe é que, a partir dessas
intervenções, constrói-se, paulatinamente, uma cidade
informal, que ao sobrepor-se à cidade formal, aos seus
anúncios, edifícios, muros e limites, dá a ver os conflitos pretensamente camuflados pela ordem que a regula.
110
consumo “burro/inconsciente”).
Acredita-se no consumo compartilhado, em que o ter será um valor
passado. Por que não nos apoderarmos disso estrategicamente e
iniciarmos ações táticas estéticas
para desconstruirmos nossa lógica econômica? Exemplos: comprar carro compartilhado, bazar
de trocas de roupas, reinventar e
interferir em espaços urbanos com
ações culturais... Acho que a arte
pode enveredar por questões muito
mais cotidianas que simplesmente
superfícies e plataformas políticas,
criando categorias tão próximas
e palpáveis de qualquer cidadão
que chegue a interferir no sistema
de uma forma dominó gradativa e
crescente até romper as estruturas
vigentes com ações e cidadãos vigilantes no seu cotidiano.
Nesse processo, os símbolos inscritos
constituem testemunhos de uma história viva e dinâmica, de uma narrativa
conflitante e heterogênea, que, bem
ou mal vista, permanece acesa, como
sintoma relevante em meio à tentativa
latente de transformação da cidade em
cenário pasteurizado e artificialmente
consensual.
Experimentações
colaborativas
Ao pensarmos as práticas artísticas a
partir de sua aproximação com a vida
cotidiana, outra relevante dimensão
nos ocorre: trata-se do que poderíamos considerar como esfera colaborativa, ou àquela que se refere, em linhas
gerais, à busca por uma ressignificação
da realidade a partir da ação em comum. De forma
a introduzir a análise de tais práticas e de suas possíveis implicações táticas, apresentaremos, em um
primeiro momento, as origens do que a teórica Miwon
Kwon designa como “arte comunitária”. Em seguida,
abordaremos o que estamos denominando “práticas
artísticas colaborativas”. Tais ideias, como veremos,
apesar de similares, apresentam entre si algumas
diferenças relevantes.
Segundo Kwon (1997), a “arte comunitária” configura
um desdobramento tardio do movimento site-specific,
surgido em meio ao Minimalismo, no final da década
de sessenta. Trata-se de uma ampliação da ideia do
site, que deixa de referir-se apenas ao caráter espacial ou locacional da obra, como ocorria nas décadas
111
de sessenta e setenta, e passa a incluir, nas realizações siteoriented da década de noventa, a comunidade e os conflitos
sociopolíticos a ela relacionados.
Segundo ela, o primeiro momento, ou a formação da arte
site-specific, caracteriza-se por uma ruptura com o caráter
ideal do espaço modernista e com a ideia de obra autônoma e autorreferencial. Tal período é denominado fenomenológico, e apresenta como prioridade a relação da obra
com o corpo, a ideia de ‘imediatez’ sensorial no tempo e no
espaço. Em um segundo momento, o site passa a ser visto
não mais em termos apenas físicos e espaciais, mas como
“estrutura cultural”. Essa etapa, por lidar diretamente com
questões concernentes ao confinamento dentro do qual o
artista opera nas instituições artísticas, é chamado por ela
de crítico-institucional. Apesar de já aí observarmos uma
ampliação da noção de site e da abrangência dos questionamentos presentes na obra de arte como um todo, é no
terceiro momento que esta ampliação parece atingir, de
maneira mais incisiva, a esfera do espaço urbano.
Tal momento, referente à década de noventa, diz respeito
à busca por um maior engajamento da arte com o mundo
externo e a vida cotidiana. Devido à expansão de sua relação
com a cultura e com a realidade social, a arte site-specific
(ou site-oriented) desse período passa a configurar, segundo
Kwon, uma espécie de “arte comunitária”, envolvendo práticas culturais ativistas e políticas de afirmação de contextos
locais. Trata-se, segundo ela, de um amplo processo de
fortalecimento da ação artística como instrumento social e
político. Segundo Kwon:
[...] formas atuais de arte site-oriented, que prontamente se apropriam de questões sociais (com frequência por elas inspiradas) e que rotineiramente
incluem a participação colaborativa de grupos de público para a conceitualização e produção do trabalho,
são vistas como uma forma de fortalecer a capacidade da arte de penetrar a organização sociopolítica
da vida contemporânea com impacto e significado
112
Ricardo De Cristófaro (15 de novembro de 2014)
O questionamento sobre a pertinência das práticas artísticas estar pautada em categorias me parece uma questão
muito fomentada no modernismo, mas que ainda levanta
debates em nosso momento contemporâneo. É relevante
não perder de vista a existência de um campo específico,
mesmo que isso não seja importante para alguns e não
agrade a todos. A própria constatação de existência de
uma “arte contemporânea” já é uma forma de raciocínio
por categoria de arte. A produção artística está por natureza envolvida por um sistema de práticas e conceitos que
definem o campo. Certamente proposições artísticas que
atuam no limite desse campo nas fronteiras entre arte e
vida ou arte e cotidiano problematizam constantemente a
noção de categoria.
Taís Freire de Andrade Clark (13 de novembro de 2014)
A arte como meio de expressão pode ser apropriada por
todos, tanto por aqueles que a veem como meio de fuga
(como já trabalhamos na questão anterior) quanto por aqueles que, por sua posição na sociedade, já detêm essa voz.
Assim a arte passa a ser mais uma forma de monopólio
de um ponto de vista único - o legítimo. É muito comum
a tentativa de delimitar a arte e enquadrá-la em um sentido estético que não admite outro tipo de opinião, como
se apenas um dito “especialista” pudesse interpretá-la e
traduzi-la para os leigos. Por trás disso existe um grande
interesse - o de controle da produção artística. Ora, controlar algo que muitas vezes visa exatamente a quebrar o
próprio controle é completamente descabido! Como podem
criar critérios para legitimar algumas práticas enquanto
se deslegitimam outras, baseado em algo extremamente
subjetivo? Esse enquadramento da arte, apesar de não fazer
o menor sentido, é utilizado exatamente para restringir a
expressão de certos grupos; é muito fácil marginalizar as
pessoas simplesmente categorizando sua obra como “não
arte”. Assim acontece com alguns estilos musicais (como
o funk) e artistas (principalmente da periferia), que não têm
sua arte reconhecida como tal.
113
maiores. Nesse sentido, as possibilidades de conceber o site como algo mais do que um lugar – como
uma história étnica reprimida, uma causa política,
um grupo de excluídos sociais – é um salto conceitual crucial na redefinição do papel “público” da arte
e dos artistas. (KWON, 1997, p.8)
Na arte site-specific comunitária, a ideia de site é deslocada
do âmbito físico para o discursivo, e passa a basear-se na
troca cultural, no movimento e na construção de significação em rede. Ao estruturar-se “inter(textualmente) mais
do que espacialmente”, o site adquire, nesse momento, um
caráter transitório e, consequentemente, transterritorial,
constituindo não um ponto ou um mapa, mas um itinerário,
“uma sequência fragmentária de eventos e ações ao longo
de espaços, ou seja, uma narrativa nômade cujo percurso é articulado a partir da passagem do artista” (KWON,
1997, p.172). O artista adquire, nesse contexto, o papel de
catalisador ou mediador de ações articuladas, que visam,
principalmente, ao engajamento político das comunidades.
É importante salientar, contudo, que as etapas da produção
site-specific apresentadas por Miwon Kwon nem sempre
ocorrem, como bem sabemos, de maneira linear. Em um
processo de sobreposição e entrecruzamento, tal produção acabou por configurar, em seus diferentes momentos
históricos, verdadeiros híbridos das temáticas apresentadas. Além disso, há uma diferença fundamental da maneira
com que isso se deu nos Estados Unidos e no Brasil. Para
Douglas Crimp (2005), se nos Estados Unidos das décadas
de sessenta e setenta observam-se preocupações de caráter predominantemente fenomenológico, no Brasil, nesse mesmo período, a tentativa de criação de um espaço
agonístico, ou de caminhos para a desconstrução da ordem representada, no caso, pela ditadura - é tônica fundamental.
Após essa breve explanação “genealógica”, voltemo-nos à
análise da “arte comunitária” apresentada por Kwon, e de
sua possível configuração tática. Como exemplo embrionário dessas práticas poderíamos citar a produção do brasilei-
114
Vanessa Camila da Silva (11 de novembro
de 2014)
Acho estranho categorizar a arte, tendo
em vista que daí entra a questão estética, o que é belo e feio e para quem? As
práticas cotidianas são um convite para
refletir o espaço e como o ocupamos e
cuidamos dele. O grafite e a pixação são
manifestações que expressam uma linguagem das ruas, seja de grito ou protesto. O documentário Pixo expõe muito bem
em seus relatos o cotidiano dos pixadores
e apresenta a pixação como uma escritura urbana da contemporaneidade que é
feita em meio a escaladas em prédios que
desafiam a autoridade policial, para que o
registro de protesto e também reconhecimento social seja observado em meio aos
prédios cinza das grandes cidades.
ro Hélio Oiticica, em meio a qual
destacamos a ideia do Crelazer,
referente à busca pelo desenvolvimento, por parte do artista, do
que seria um “sonho comunitário”. Esse vetor do pensamento
oiticiquiano preconiza a ideia de
que atividades coletivas inventivas e não repressivas, incluídas
no âmbito do lazer, seriam formas políticas por si só. Uma espécie de gesto tático, se quisermos nos aproximar das questões
levantadas nessa análise. Isso
ocorreria pelo fato de essas expressarem uma forma de não
subestimação da vida cotidiana
a instâncias regulatórias, ou ao
que Oiticica denomina “dessublimação programada”.
Júlia Nascimento de Oliveira (10 de novembro de 2014)
Penso em como essa categorização pode
criar dentro da arte um processo de hierarquização, discriminando manifestações que têm potencial e são subjulgadas.
Para mim, a arte não tem que ser rotulada, o que importa é o que ela se dispõe a
transmitir.
No âmbito dessa ideia, surge a
concepção do Mundo-abrigo (texto-obra escrito em 1973), e, com
ela, o projeto Barracão, que parte
do reconhecimento do espaço urbano, e principalmente da favela,
como possível palco para experiências de grupo. A ideia era
usar o Barracão como princípio
estruturador para a construção de uma comunidade no Rio
de Janeiro, o que não se concretizou. Foram realizados, no
entanto, alguns protótipos para o desenvolvimento das chamadas estruturas-abrigo, que tinham como princípio estimular
o viver comunitário. A “célula Barracão 1” foi construída em
Sussex, na Inglaterra, junto a estudantes universitários, e era
constituída por uma série de Ninhos, que funcionariam como
abrigos, salas de recreação ou commom room.
115
Tomada como paradigma, a obra de Oiticica foi amplamente
explorada em um momento emblemático para a discussão das intercessões entre arte e comunidade no Brasil:
a 27a Bienal de Arte de São Paulo: Como viver junto?, em
2006. A exposição, organizada sob a curadoria de Lisette
Lagnado e Adriano Pedrosa, baseou-se nas notas dos cursos e do seminário “Como viver junto”, de Roland Barthes,
e apresentou uma série de indagações a respeito da vida
em comunidade, da “justa distância” e dos possíveis elos
que possibilitariam o desenho de uma vida comum, para
além da coincidência espacial e temporal dos indivíduos
(PEDROSA; LAGNADO, 2008).
Passemos, ora, à análise de grupos que expressam uma
modalidade de atuação no mínimo relevante para o estudo
das interseções entre arte e vida em comunidade: trata-se
dos coletivos artísticos. Como o próprio nome indica, a noção de coletividade permeia toda a atividade desses grupos,
mostrando-se presente não apenas em sua ação propriamente dita, mas também, e principalmente, em sua estrutura organizacional. Dentre as ideias que permeiam tais
organizações têm-se a horizontalidade, o movimento em
rede e a interdisciplinaridade. Contrariamente à lógica mercadológica que prioriza a marca e o autor, os coletivos expressam uma tentativa de diluição dessas ideias em prol do
desenvolvimento de ações conjuntas, por vezes anônimas.
Segundo Ricardo Rosas (ROSAS apud LABRA, 2009), apesar
de a ideia de “coletivo” não restringir-se apenas à prática
artística contemporânea - a formação de agrupamentos
artísticos teria ocorrido durante todo o século XX, atravessando as obras da Internacional Situacionista, de Gordon
Matta-Clark e do grupo Fluxus, de Nova York - é a partir
da década de noventa que os coletivos parecem atravessar
a sua mais ampla expansão. Impulsionados pelos novos
meios de comunicação em rede e em meio a um contexto
marcado pelo desenvolvimento do capitalismo tardio nos
países emergentes, esses insurgem como sistemas de cooperação e reciprocidade, em uma espécie de contraponto
à tendência mercadológica dominante.
116
Nesse âmbito, o trabalho desenvolvido pelo
grupo argentino Iconoclasistas nos parece
paradigmático. Com base em Buenos Aires,
essa organização atua desde 2006 no fomento à construção de redes e no desenvolvimento de práticas cartográficas colaborativas, cujo objetivo último seria o engajamento
social. As práticas de mapeamento por eles
realizadas consistem em atividades de reflexão coletiva a respeito do território. Feitas
junto às comunidades, essas
ações têm o princípio de sub- Questão 3
verter o lugar de enunciação Os recentes avanços no âmbito da tecnologia
da prática cartográfica formal, da informação, e as novas possibilidades de
questionando os discursos conexão em rede assim geradas, têm contridominantes a partir de rela- buído para uma crescente disseminação das
tos de experiências cotidianas. práticas colaborativas. Como esse movimento
Os principais objetivos dos influencia o âmbito artístico? Seria o caso de
mapeamentos seriam, assim, pensar uma forma de arte para além da “arte
ativar processos de territori- comunitária” pensada por Miwon Kwon (e aprealização, socializar práticas e sentada no texto)? Discorra a esse respeito a
pensamentos, estimular o es- partir de exemplos.
pírito da coletividade e elaborar estratégias de transfor- Carlos Muñoz Sánchez (16 de dezembro de
mação social.
2014)
Nas oficinas promovidas pelo
grupo, um primeiro momento é normalmente dedicado à
produção de mapas individuais. Tal prática impulsiona, de
maneira lúdica, a narração de
experiências e memórias singulares, trazendo à tona áreas
do território e questionamentos por vezes invisíveis aos
olhares externos. Uma segunda fase refere-se à superposição desses mapeamentos:
as composições gráficas ge-
Deixei essa pergunta sem responder durante
a semana da aula, e agora, depois de ter lido
os outros textos, e participado das outras
discussões, muitas perguntas ficam ligadas.
Aqui o tema é arte e cotidiano, mas tem a ver
com assuntos discutidos na aula de território, e na aula de comunidade. Já conhecia o
trabalho do coletivo Iconoclasistas e tive a
oportunidade de participar da oficina deles
na Noite Branca 2014, em BH. Achei muito interessante a metodologia participativa
de mapeo, aproveitando os conhecimentos
de todos, e criando de um jeito colaborativo, quase se esquecendo da autoria. O mais
legal é que eles sabem que um mapa não
117
radas exibem padrões complexos de percepção coletiva e
explicitam abordagens e pontos de interesse comuns dos
participantes. Nas fases que se seguem os integrantes são
normalmente divididos em grupos, cada qual tornandose responsável pela produção de um tipo de mapa. Como
exemplos, têm-se os mapas realizados em Caracas, em
março de 2013.
5. Website do
grupo Iconoclasistas: <http://
iconoclasistas.
net>
Essas oficinas são gratuitas e os guias práticos para a sua
execução são disponibilizados no website do grupo5 para
serem utilizados livremente. Tal prática expande a lógica
comunitária para o amplo universo das redes virtuais, de
forma a contornar tanto a dificuldade geográfica de acesso
a tais conteúdos quanto a lógica da propriedade privada, por
meio das licenças Creative Commons.
A prática mostra-se bastante útil no sentido de promover
discussões a respeito do território e das relações de poder
nele presentes. Sua potência, ao nosso ver, reside principalmente no fato de configurar um instrumento de reflexão
coletiva, na qual a cidade, suas fronteiras imateriais e seus
movimentos invisíveis são considerados de forma espacializada e crítica. Quanto a isso, cabem alguns questionamentos: em que medida a reconstrução simbólica, e em
comum, dos lugares definidos em um território é potente
em engendrar outras possibilidades para a sua partilha?
Até que ponto dar a ver o invisível, por meio de um mapa
colaborativo, pode gerar deslocamentos no regime sensível
vigente em uma comunidade?
A ação configura um exemplo central para a nossa análise,
trata-se de uma expressão da conjunção entre as ideias
apresentadas acima, sob o nome de arte comunitária, e
as de um fazer propriamente colaborativo. Atenhamo-nos
brevemente a essa tênue, mas importante, distinção. Se o
que Kwon denomina “arte comunitária” ainda apresenta
certa dependência de um artista-mediador - que permanece, contudo, como uma espécie de autor da ação em comunidade - na prática em questão essa posição autoral já encontra-se mais diluída, na medida em que os participantes
118
muda nada, mas é uma ferramenta a ser usada para futuras
mudanças. Nesse sentido, eles oferecem uma metodologia
bem estudada e são guias num trabalho que finalmente é
feito em coletivo, sendo o produtivo final desenvolvido pelos
participantes. Numa das perguntas de outra aula falei que
o artista, embora não seja a pessoa que executa a obra, não
perde a autoria, inclusive se a obra é feita com participação.
Mas pensando no trabalho dos Iconoclasistas, acho que há
vezes em que isso acontece, por exemplo, nos produtos
finais das oficinas deles. Afinal, a obra de arte para eles é a
própria metodologia, não o cartaz ou o mapa final.
Thaís Mor (23 de novembro de 2014)
A possibilidade de criar conexões como rizomas e desterritorializar o espaço através de redes virtuais, possibilitadas
pela tecnologia, cria uma tática cada vez mais política e
descentralizada de um “artista mediador”. “[...] essa posição autoral já se encontra mais diluída, na medida em que
participantes assumem uma posição de construção real
do produto, cujas pretensões são mais políticas que propriamente artísticas”. Apoderar-se dessas tecnologias de informação e conexão em prol da comunidade, com caráter
heterogêneo, aberto a diferentes seres “singulares” que
se conectam em ações tem gerado formas estéticas e manifestações artísticas cada vez mais táticas. Um exemplo
disso é o coletivo Partio, de São Paulo, que criou o Viva Rio
Pinheiros, que cria ocupações artísticas à margem do Rio
Pinheiros. “Desde quando foi inaugurada, em 2010, a ciclovia que fica às margens do rio abriu uma nova perspectiva
e possibilidade de interação com aquele espaço. Através de
intervenções na ciclovia que começam com artes visuais e
arte de rua, o projeto tem como objetivo a modificação aos
poucos das margens do Rio Pinheiros. O Projeto, idealizado
por Carol Ferrés, surgiu durante seus passeios que fazia
de bike pela ciclovia, entre março e maio deste ano. Ela
conta que, apesar da situação agonizante do rio, tinha muita vida lá, e pensava nas possibilidades de fazer com que
mais gente conhecesse o rio de perto e pudesse ver que ele
ainda está vivo. Dessa maneira, o projeto associou a arte,
o design, a informação e a educação aos espaços públicos,
119
assumem uma posição de construção real do produto, cujas
pretensões são mais políticas que propriamente artísticas.
6. O G Arte e
Cultura surgiu
no âmbito da
Assembleia Popular Horizontal, criada em
Belo Horizonte
durante as manifestações de
junho de 2013.
De forma a ilustrar situações em que essa ideia é tomada de maneira mais radical, apresentaremos, como último
exemplo desta análise, A Ocupação, uma ação artístico-cultural coconstruída pela sociedade civil nos espaços públicos
de Belo Horizonte. A ação surgiu em julho de 2013, motivada pela insatisfação de um amplo grupo de cidadãos a um
projeto de requalificação da área do Viaduto Santa Tereza,
na região central da cidade. Se o projeto governamental
tinha como escopo a construção de um Corredor Cultural na
área, o intuito do ato era, de forma colaborativa e articulada,
mostrar que tal corredor já existia. Diversos atores uniramse em torno a essa ideia, dentre os quais o recém-criado
Grupo Temático Arte e Cultura6 , alguns movimentos sociais
já atuantes na região, arquitetos, artistas, estudantes, professores, agentes culturais e moradores.
A ideia era reunir, além das ações que já ocorriam no local,
qualquer atividade proposta por quem quisesse participar,
promovendo em torno a estas, uma ocupação coletiva e horizontal do espaço que duraria um dia. Mas como agenciar
um evento que se pretende aberto e articulado? Para que a
realização do ato fosse possível, a ideia de colaboração foi
central. O processo de definição de atividades e espaços a
serem ocupados, por exemplo, fez-se por meio de planilhas
compartilhadas online. Foi criado, também, um grupo de
discussão no Facebook, em que qualquer um podia entrar
e participar. Da mesma forma, as reuniões preparatórias
presenciais funcionaram a partir de um modelo assembleário no qual todos poderiam dar a ver (e a ouvir) suas ideias
e propostas.
Esse caráter colaborativo permeou também a realização do
evento, que começou com um mutirão de limpeza e abarcou, durante uma tarde, variadas microações simultâneas.
Além da apresentação de diversas bandas e da realização
de múltiplas performances, pneus velhos foram pendurados na estrutura do viaduto de forma a gerar “balanços” e
120
apostando em um potencial de grande transformação, principalmente se tratando de um
espaço degradado, porque modifica o olhar
das pessoas para aquele lugar, as conecta
com sentimentos de que para todo problema
existe uma solução” (https://partio.com.br/
projeto/viva-rio-pinheiros/, http://www.conexaocultural.org/blog/2014/10/projeto-rioviva-pinheiros). Dá vontade de fazer algo na
Andradas, não dá?
fanzines ilustrativos das ações
cotidianas dos moradores de
rua da área foram distribuídos. Desenhados a partir do
acompanhamento, por um
grupo de estudantes, de uma
jornada de moradores de rua
daquela região, esses folhetos buscavam tornar visíveis
histórias da cidade muitas
vezes ocultas. Mostrar ações
corriqueiras do seu cotidiano
Ricardo Macêdo (13 de novembro de 2014)
Oi, Paula, pois é, “sem restringir o comum”. seria uma forma de dá-los a
Fora do virtual, o que tenho em mãos e em ver como atores ativos, parte
que ando acreditando agora mais do que do mundo em comum, partinunca - pela abertura que o dispositivo ofer- cipantes da cidade e de suas
ta - é a dobradinha arte e educação (é claro, dinâmicas.
vinculadas a outros parâmetros). Imersão
em comunidades, bairros, cidades, mais o Além dessas, diversas outras
que a experiência indicar em termos de ca- ações ocorreram. O coletivo
minhos táticos e estratégicos. Mas, ainda “Trajeto do afeto”, por exemassim, tenho minhas dúvidas sobre quais os plo, espalhou barquinhos feimodos adequados de aproximação, modos tos de papel em vários pontos
de resolução de conflitos (um tabu na arte do espaço, e os passantes pucontemporânea, né? Envolve questões éti- deram dependurar, no “varal
cas...), a questão dos trâmites inter e intra- coletivo do amor”, imagens,
pessoais... Enfim, um grande abacaxi pra ir frases e impressões momenpensando. Acho que nesse sentido vai para tâneas do lugar. Fez-se um
além da arte comunitária, o buraco é bem “banquete comunitário” em
mais embaixo.
torno a uma grande mesa
montada sob o viaduto, e uma
pequena estrutura foi construída para que mudas de plantas fossem trocadas por sementes e
receitas.
As superfícies também foram utilizadas. Stêncils
com os dizeres “o meu corredor cultural tem” ocuparam as paredes de forma a convidar os transeuntes a também ocupá-las. No chão foi estendido um grande tecido com o mapa da área, no qual
121
os ocupantes eram convidados, sob a frase “inscreva-se”,
a imprimir - com canetas, adesivos ou panos - as linhas de
força que, em sua percepção, atravessavam o lugar.
Como podemos observar, esse ato configura um exemplo
diverso daqueles pontuados anteriormente, relativos à “arte
comunitária”. Apesar de guardar muitas semelhanças com
a ação do coletivo Iconoclasistas, inclusive quanto às técnicas utilizadas, parece configurar algo fundamentalmente
diverso. Mas onde está a sua peculiaridade? Talvez no fato
de não se tratar de uma obra e tampouco de uma única
oficina em torno da qual a comunidade se reúne, mas de
uma experimentação coletiva aberta, baseada na ação de
singularidades múltiplas que, apesar de agirem em comum,
partem de formas e interesses heterogêneos. A “unidade”
que nela se forma parece ser, nessa perspectiva, precária
ou lacunar: o encontro que se produz entre as partes não
promove fusão, mas é fragmentário e contingencial. Não
se trata, portanto, de uma ação centrada em torno a uma
identidade unívoca de forma a afirmá-la, mas de um ato em
rede, de conexão e agenciamento.
Nessa perspectiva, mais do que uma ação comunitária, A
Ocupação parece configurar um tipo de experiência baseado
na heterogeneidade e na abertura. O tipo de colaboração
em rede que a caracteriza, em que “o artista” não adquire
papel nem de autor nem de mediador, parece apontar para
outras e profícuas possibilidades de interseção entre arte,
política e cotidiano, baseadas na tomada de ação direta pelo
“qualquer um”. O estabelecimento das novas tecnologias
de informação e a expansão dos processos de participação
equipotencial - como o modelo ponto a ponto (peer to peer)
ou parecem contribuir fortemente nesse sentido.
122
Considerações finais
Nesse texto, buscamos dar a ver algumas possibilidades
de interseção entre a vida cotidiana e as práticas artísticas,
entendendo estas últimas como potenciais táticas capazes
de baralhar os lugares estabelecidos na cidade pela chamada ordem policial. A título de exemplo das muitas análises
que se poderiam fazer a partir de tais questões, optamos
por rastrear experiências relacionadas a duas dimensões
João Paulo de Freitas Campos (12 de novembro de 2014)
As redes sociais se distinguem em duas categorias: as presenciais e as virtuais. As novas tecnologias da informação
que permitem a conexão, a comunicação e a organização
rápida e eficaz de pessoas no ciberespaço potencializam e
ordenam, sob outra lógica, relações que já existiam. Como
Robert Darnton argumenta em sua obra Poesia e polícia:
redes de comunicação na Paris do século XVIII, nós somos
inclinados a pensar que redes de comunicação são um fenômeno contemporâneo, que vivemos numa “Sociedade
da Informação”, o que é um termo incrivelmente banal,
pois as sociedades - letradas e iletradas, antigas e modernas - sempre foram “sociedades da informação” - Gilbert
Simondon também demonstra isso em A individuação. Nesse
sentido, essas novas tecnologias da comunicação/informação proporcionam uma nova lógica do mesmo fenômeno
humano: a comunicação - que existe desde sempre! O fluxo
de informações veiculadas no ciberespaço serve de maneira
incrivelmente positiva - no sentido em que estou argumentando, acredito que existam pontos negativos também, que
não comentarei aqui - para movimentos artísticos. Existem
obras literárias copyleft sendo construídas coletivamente
na internet, movimentos artísticos se organizam e promovem ações pelas redes sociais virtuais, enfim, a colaboração nas práticas artísticas segue, através destes novos
dispositivos, uma nova lógica: mais rápida, “impessoal”
(termo perigoso, porém necessário aqui, em certo sentido)
e desterritorializada.
123
específicas: a apropriação das superfícies urbanas e a ideia
da colaboração. Se apresentamos, ao longo do texto, mais
perguntas do que respostas, é porque nosso objetivo foi,
mais do que propor conclusões fechadas, abrir caminho
para outras análises, que deem a ver outras possíveis partilhas desse “mundo comum” que subjaz às dinâmicas da
cidade e da vida cotidiana. A nossa expectativa, assim, é de
que o leitor sinta-se estimulado a cartografar outras ações,
situadas nesse espaço entre cotidiano e prática artística, de
forma a nelas identificar novas possibilidades táticas.
Yuri Amaral (9 de novembro de 2014)
Tanto a professora como os colegas Fred e Ricardo levantaram fatos
e questionamentos importantes - essa outra face de controle e supervisão. É claro que não podemos fugir dessa vigilância (não temos
mesmo como escapar disso. Mesmo a deep web é constantemente
vigiada, e vale lembrar - corrijam-me se eu estiver enganado - que a
internet, em sua gênese, foi criada para uso militar, não?). Na publicidade, costumamos dizer que, quando não pagamos nada é porque
nós somos o produto (Facebook, por exemplo). É claro que, fugindo
de generalizações, o mercado encontra dispositivos para continuar
controlando, porém são velhos jogadores, com regras antigas tentando controlar um mundo novo de possibilidades inventivas, e isto
pela quantidade absurda de pessoas que usam e descobrem falhas
e caminhos em todos esses processos. O Facebook atualiza seu(s)
algoritmo(s) diariamente, justamente pra tentar manter o máximo
possível de controle. Nos EUA houve uma evasão dos adolescentes dessa mídia social, pois queriam privacidade (sem propagandas,
sem família). Já existem aplicativos que bloqueiam a publicidade (Ad
Blocker, por exemplo. Tenho há três meses instalado e já bloqueou
quase 400 mil propagandas de qualquer site que visito). Há, aí, uma
resistência sutil, porém poderosa. As mesmas ferramentas usadas
para controle são usadas para a “criação de si” (Foucault), dobrando
esse poder vigilante. Parece inocência acreditar nisso, mas é algo
tímido, espalhado e irreversível em sua totalidade. As pessoas já
entenderam esse potencial, porém precisam aprender a usá-lo e
revertê-lo para si e sua comunidade. As novas tecnologias não só
conduzem para a possibilidade de troca, como potencializam isso.
Poder ter alcance global não significa que terá alcance global. É
preciso entender o meio para usar esse potencial. No entanto, como
124
já mencionado, quem tem o poder do capital ainda comanda
o que terá ou não alcance global e cabe a nós, singulares e
comunidades, formar resistência usando as mesmas ferramentas que eles, não é?
Fred Triani (7 de novembro de 2014)
A tecnologia permite, como colocou o colega Yuri Amaral, a
“qualquer um produzir e publicar conteúdo, de e em qualquer lugar do globo”. Porém vejo com certo ceticismo esse
argumento. Sim, qualquer um pode produzir e disseminar
conteúdo, mas como isso ocorre na prática? Por exemplo, o
que eu escrevo aqui, agora, chegará a todo mundo em qualquer parte do globo? Qual é a capacidade de disseminação
que minha produção pode abranger? Realmente, não sei se
as novas tecnologias têm contribuído para uma crescente
disseminação de práticas colaborativas. Práticas colaborativas existem independentemente da tecnologia. Temos
diante de nós uma nova tecnologia que permite, sim, uma
abrangência maior de troca de informação. Mas percebo
que estamos cada vez mais reproduzindo a lógica off-line e
criando guetos on-line do que criando alternativas ao monopólio da informação. O acesso e a disseminação não são
plenamente abrangentes, ao contrário, são restritos, basta
ver quem tem acesso a suas publicações no Facebook. Este
site: http://www.tenbyten.org/index.html é um bom exemplo
de minha colocação. Trata-se de um mapeamento global
das mais acessadas e compartilhadas notícias do mundo.
É interessante notar o tanto que elas se repetem. E não só
isso, a quem elas estão direcionadas. Ou melhor dizendo,
quem direciona e detém a informação? A informação ainda
é centralizada. No entanto, a internet abre brechas para
uma comunicação global. O que é muito interessante, mas
eu faço aqui meio que um apelo: ou criamos redes consistentes de produção e troca de informação ou acabaremos
presos na lógica vigente do monopólio da informação! Aqui
coloco links que vão na contramão dessa lógica, não são
todos sobre arte, mas acho interessante compartilhar, pois
são de grupos que se organizam em torno de uma causa:
http://revolution-news.com/
http://crimethinc.com/
125
Referências
BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas II. 5.ed. São Paulo:
Brasiliense, 1997.
BRUZZI, Hygina. Nos passos de Baudrillard: uma trajetória.
Suplemento Literário, Belo Horizonte, nov. 2007. Disponível
em: <http://www.cultura.mg.gov.br/files/2007-novembro-1307.pdf>
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Rio de
Janeiro: Vozes, 1994.
CRIMP, Douglas. Sobre as ruínas do museu. São Paulo:
Martins Fontes, 2005.
DELEUZE, Gilles; GUATARRI, Félix. Mil Platôs, Vol.1:
Capitalismo e Esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34. 1995
KWON, Miwon. One Place after Another: Site-Specific Art
and Locational Identity. Cambridge: The MIT Press,1997.
LABRA, Daniel. Coletivos Artísticos como Capital Social.
Dasartes. Rio de Janeiro, 2009. Disponível em: <http://
www.dasartes.com/site/index.php?option=com_content&view=article&id=101&Itemid=240&showall=1ttp://>
http://pib.socioambiental.org/pt
http://www.streetnet.org.za/
http://toronto.nooneisillegal.org/
http://www.thing.net/~rdom/ecd/ZapTact.html
http://www.adpsr.org/home/ethics_reform
Dalba Roberta Costa de Deus (6 de novembro de 2014)
No artigo intitulado Arte colaborativa X cibercultura, Ana
da Cunha discorre sobre a atuação de dois coletivos: o
Superflex (dinamarquês) e De Geuzen (holandês), a respeito da linguagem digital. A proposta do artigo era analisar a
visão a respeito da cibercultura desses dois coletivos, que
usam a proposta colaborativa e a estética relacional como
poéticas de criação. Penso que a estética relacional, mesmo
no ciberespaço, nos convida para o futuro. A colaboração,
as trocas sociais, a criação de ambientes comunicacionais
para discussão e compartilhamento de ideias sinaliza para
uma concepção de arte em que não há um produto final,
mas várias possibilidades. As trocas sociais são o motriz
para pensar uma forma de arte para além da “arte comunitária”. Quando o trabalho faz uso da internet, o público
deixa de ser pessoas específicas que costumam frequentar
exposições de arte. Ao adentrar no ciberespeço, o trabalho
entra em contato com fronteiras desconhecidas, atraindo
os mais diferentes públicos.
PEDROSA, Adriano; LAGNADO, Lisette. Como Viver Junto
- Catálogo da 27ª Bienal de São Paulo. São Paulo: Cosac
Naify. 2008
RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: Exo/Ed. 34, 2005.
RANCIÈRE, Jacques. O que significa "estética"? . Lisboa:
KKYM, 2011.
126
127
isabela prado*
arte
contemporânea,
texturas,
território
* Isabela Prado
Artista visual, professora
e pesquisadora em artes.
Graduada em Belas Artes
pela UFMG e Mestre em
Artes Visuais pela Indiana
University (EUA). Participou de vários programas
de residência artística e
de exposições individuais
e coletivas no Brasil e no
exterior. Foi contemplada
com o Prêmio Funarte de
Arte Contemporânea, com
o projeto “Entre Rios e
Ruas”.
A elaboração de identidades ligadas a um lugar
tem-se tornado mais ao invés de menos importante em um mundo de diminuição das barreiras
espaciais nas trocas, nos movimentos e nas
comunicações.
[David Harvey – From space to place and
back again]
As relações entre arte e território são extensas
e podem ser vistas sob inúmeras perspectivas. A
análise de tais relações passa, antes de mais nada,
pela forma como a ideia de território se coloca e
evolui ao longo do tempo, bem como pela evolução
das manifestações e proposições artísticas associadas ao(s) conceito(s) de território.
Este texto tem como objetivo apresentar e discutir a relação entre arte e território, em uma perspectiva contemporânea, levando em consideração
uma definição ampla de território e o enfoque da
arte site-specific e site-oriented. Apresenta-se inicialmente uma breve reflexão acerca do conceito
de território e sua associação com certos desenvolvimentos recentes em arte contemporânea. Ao
longo do texto, serão apresentados trabalhos de
quatro artistas contemporâneos – Gabriel Orozco,
128
Mona Hatoum, Cildo Meireles e Francis Alÿs – que abordam questões
diversas relacionadas ao território sob a(s) perspectiva(s) discutida(s)
aqui. Por fim, na última seção, apresento parte de minha produção
como artista, também com foco em trabalhos em que a relação com
o território tem importância central.
Arte e território: breves considerações
território
sm (lat territoriu) 1 Terreno mais ou menos extenso. 2 Porção
da superfície terrestre pertencente a um país, estado, município, distrito, etc. 3 Jurisdição. 4 Região sob a jurisdição de uma
autoridade. 5 Região um tanto populosa mas sem habitantes
em número suficiente para constituir um Estado, sendo pois
administrada pela União. 6 Área certa da superfície de terra que contém a nação, dentro de
cujas fronteiras o Estado exerce a QUESTÃO 1
sua soberania, e que compreende A partir dos conceitos apresentao solo, rios, lagos, mares interiores, dos no texto, discuta em que mediáguas adjacentes, golfos, baías e da se observam processos de terportos.
ritorialização e desterritorialização
no mundo atual. Dê exemplos.
Em uma definição mais tradicional (e superficial), como aquelas que aparecem Thais Mor (7 de dezembro de 2014)
nos dicionários de língua portuguesa, o A globalização hoje é o maior
território tem sido frequentemente asso- processo de desterritorializaciado a suas características físicas, ou tem ção, visto com as multinacionais
sido visto como o espaço sobre o qual se que hoje entram e ditam uma
constitui um Estado. Tal definição, no en- cultura de consumo em diferentanto, é insatisfatória por deixar de lado tes países, sem falar que, hoje,
uma série de aspectos essenciais na dis- grande parte delas produz tudo
cussão sobre território, particularmente na China. Nota-se nas grandes
em sua dimensão simbólica – o que nos metrópoles a padronização das
interessa em particular para pensar as comunicações, das imagens e
relações entre arte e território.
dos hábitos de consumo; e toda
a felicidade enlatada estão inConsiderando uma definição mais ampla, seridas em um arquétipo ideal,
o território seria visto a partir de uma construído primeiramente pelos
perspectiva que considerasse várias ins- interesses econômicos e, muito
tâncias, partindo do pressuposto de que posteriormente, pelos sociais/
129
o território sempre comporta uma dupla conotação, material e simbólica. Primeiramente, em sua dimensão física: o
território sendo delimitado por uma área geográfica, com
características peculiares de clima, relevo, vegetação, hidrografia, etc. Em segundo lugar, devem-se considerar a
ocupação e o uso do território, que se associam, mas não
se restringem, à sua definição como espaço de constituição dos Estados nacionais. Abrange, assim, aspectos econômicos, políticos, sociais e demográficos que caracterizariam determinado território. Por fim, em sua dimensão
mais simbólica, o território se define a partir de aspectos
de sua história e de sua cultura, associados à construção de
identidades, de elementos de identificação comum, de uma
memória coletiva. Trata-se de, a partir da relação entre
território, territorialização e territorialidade, considerar o
território físico como uma condição de existência material
sobre a qual se constituem o tecido social e o simbólico.
Como resume Gonçalves (2002, p. 229-230):
O território não é simplesmente uma substância
que contém recursos naturais e uma população (demografia) e, assim, estão dados os elementos para
constituir um Estado. O território é uma categoria
espessa que pressupõe um espaço geográfico que é
apropriado e esse processo de apropriação – territorialização – enseja identidades – territorialidades
– que estão inscritas em processos sendo, portanto,
dinâmicas e mutáveis, materializando em cada momento uma determinada ordem, uma determinada
configuração territorial, uma topologia social.
É interessante notar que a ideia de território está e esteve
frequentemente associada ao conceito de fronteiras. Mas,
também nesse caso, pode-se considerar um conceito mais
amplo, de modo que a cada uma das instâncias em que o
território se define corresponderia uma definição equivalente de fronteira. Assim, teríamos primeiramente a ideia de
fronteira definida como a separação entre dois territórios a
partir de elementos da geografia física – rios, lagos, mon-
130
tanhas. Além disso, deve-se considerar a fronteira em sentido político-jurídico, como o elemento de demarcação e separação entre Estados nacionais
– e muitas vezes como objeto de disputa entre nações (por exemplo, IndiaPaquistão, Israel-Palestina, Rússia-Ucrânia, etc.). Consideram-se também
fronteiras como limites mais ou menos visíveis de demarcação territorial
dentro de um país (como a ideia de
“fronteira agrícola”) ou de segregação culturais. Contra a onda, a volta, ou
espacial, particularmente relevante a tentativa de volta da valorização
no espaço urbano (como a fronteira da cultura local, as novas organientre o “morro” e o “asfalto”). Por fim, zações sociais virtuais – que se
no plano simbólico, podem-se pensar juntam por interesses comuns de
fronteiras como elementos de separa- cunho social/ambiental e pela reção ou segregação de caráter cultural/ tomada de valor do genuíno – cosocial, independentemente de qualquer meçam a renascer em pequenos
sentido espacial ou geográfico (como o grupos ou até mesmo em grupos
organizados que começam a ques“fosso entre ricos e pobres”, etc.).
tionar a legitimidade das informaEm qualquer de suas definições, en- ções, dos produtos e da cultura que
tretanto, as fronteiras carregam con- recebemos. No meu ponto de vista,
sigo um caráter político, derivado dos a territorialização acontece no âmlimites (físicos ou não) que elas estabe- bito da organização de ideias e do
lecem, o que se expressa inclusive do intelecto, no plano virtual, porque
ponto de vista etimológico, consideran- no plano da vida cotidiana parece
do o front como seu elemento constitu- só ser possível reterritorializar. A
tivo. Assim, fronteiras são definidas po- não ser que sejamos capazes realliticamente e por isso apresentam um mente de criar uma nova forma de
caráter contraditório, mutável, aberto viver, organizar e conviver biopoliticamente acima das forças ecoe potencialmente conflituoso.
nômicas, neoliberais, políticas e/ou
estatais.
Carlos Dalla Bernardina (30 de dezembro de 2014)
Tais processos ocorrem com crescente intensidade e de modo simultâneo nos níveis real e virtual,
objetivo e subjetivo. No campo da
música, ao qual sou mais próximo,
a grande novidade são os processos
de criação e produção a distância...
131
O movimento sistemático de reconstituição e redefinição
de fronteiras (particularmente as simbólicas) se reflete na
permanente destruição e reconstrução de territórios. Sobre
a primeira, Guattari e Rolnik (1996, p.323) afirmam:
O território pode se desterritorializar, isto é, abrir-se,
engajar-se em linhas de fuga e até sair do seu curso
e se destruir. A espécie. humana está mergulhada
num imenso movimento de desterritorialização, no
sentido de que seus territórios ‘originais’ se desfazem ininterruptamente.
Assim, concebe-se a desterritorialização como o movimento de destruição ou abandono do território, ao passo que
a reterritorialização pode ser vista como o movimento de
(re)construção do território. Note-se que territorialização
e desterritorialização são vistas como processos concomitantes e que não há desterritorialização sem reterritorialização, uma vez que – como mencionado antes – o território
é condição de existência para a humanidade.
O processo de globalização observado nas últimas décadas –
expressão da expansão em escala mundial do capital financeirizado, acompanhada por intensa evolução da tecnologia
e das telecomunicações – é fonte permanente de des(re)
territorialização, tendo gerado crescente homogeneização
dos lugares e apagamento das diferenças culturais. A indiferenciação e a desparticularização dos espaços alimentam
os efeitos de alienação e fragmentação na vida contemporânea, e a concomitante articulação e o cultivo das diversas
particularidades locais podem ser vistos como a reação
pós-moderna, recriadora de territórios, a esses efeitos.
Segundo Henri Lefebvre (1991, p.52):
Considerando que o espaço abstrato [do modernismo
e do capital] tende na direção da homogeneidade, na
direção da eliminação das diferenças ou peculiaridades existentes, um novo espaço não pode nascer
(ser produzido) a não ser que ele acentue diferenças.
132
Assim, não surpreende que o esforço para resgatar identidades, a partir das diferenças e particularidades locais,
torne-se central em face de um processo de homogeneização e redução das características específicas que definem as identidades dos diversos lugares. A reafirmação
das especificidades leva à produção de diferenças e de
particularidades. Em um contexto de globalização, em que
a homogeneização abafa as diferenças, sua reafirmação
embute um caráter crítico e contestatório, ao gerar e promover “texturas” e imperfeições nos espaços padronizados
do capitalismo, a partir de práticas em que a especificidade
adquire caráter central.
Em linhas gerais, a arte
pode cumprir esse papel
como geradora de diferenciação e construção de
identidades. Nesse caso, a
arte é vista como um instrumento de criação de
território a partir de sua
capacidade de lidar com
as sensações, os sentidos,
a memória e outros elementos no campo simbólico (GROSZ, 2005).
Arquivos são enviados com as faixas gravadas
por diferentes instrumentos em diferentes lugares, para depois serem mixados e remixados também num contexto desterritorializado.
Porém, um ponto subjacente a todo esse debate
tem me incomodado muito. Numa reação natural e genuína aos movimentos de homogeneização e padronização impostos pelo jogo de forças
do processo globalizatório, caímos facilmente
no erro de confundir o que deve ser uma crítica
a este jogo de forças e o que deve ser uma crítica ao processo de globalização em si mesmo.
Desse modo, o valor da conservação de modos
tradicionais é defendido sempre a priori, independentemente de uma avaliação mais cuidadosa a respeito de serem ou não pertinentes
aos territórios que os sustentam. Precisamos
estar atentos ao fato de que, ao defender “identidades”, muitas vezes os movimentos contraglobalizatórios acabam sufocando importantes
processos de emergência de “singularidades”,
que em diversos contextos necessitam de uma
A instalação Mi mano es la
memoria del espacio (1991),
de Gabriel Orozco, trata
precisamente desse papel da arte – e do artista
– como elemento provocador, catalisador. O trabalho, uma instalação de
25 metros quadrados feita
com colheres de sorvete, ilustra a capacidade do artista de
difundir um conceito ou uma sensação a partir da fruição
de uma obra pelo público. Assim, o artista, crítico e atento,
seria capaz de irradiar e expandir sua percepção acerca de
133
proposições específicas sobre questões políticas, econômicas, sociais, ambientais, etc. Nessa instalação, em particular, a escolha das colheres de sorvete representa também
a noção de que o “consumo” da arte gera um resíduo, um
registro, uma memória após sua efetivação – construindo,
assim, território.
movimento, à medida que o público esbarra neles
ao se deslocar pela sala de exposição. A instalação explora uma representação abstrata e condensada de territórios urbanos para se referir a
temas como migração, deslocamento, identidade
e pertencimento.
Mona Hatoum, em + and – (1994-2004), explora de forma
quase literal a ideia de que vivemos permanentemente um
processo de construção e destruição de territórios – como
“texturas” no movimento de homogeneização associado à
globalização. Trata-se de uma instalação de quatro metros
de diâmetro, em que uma haste de metal gira em torno de
um eixo central sobre uma superfície de areia. Seu movimento ininterrupto causa, a um só tempo, a geração de sulcos na areia e seu posterior apagamento, com a superfície
se tornando novamente lisa.
Em linhas gerais, pode-se argumentar que aquilo
que se convencionou chamar de arte site-specific e
site-oriented, em sua versão mais contemporânea,
é particularmente interessante para a produção de
“texturas”, formação de identidades e construção
de território. “É essa função diferencial associada aos lugares que as formas primeiras de arte
site-specific tentaram explorar e que as atuais
incorporações de trabalhos site-oriented buscam
reimaginar” (KWON, 2008, p.182).
A ideia de território e, particularmente, de fronteiras é um
tema constante no trabalho de Mona Hatoum, artista de
origem palestina nascida no Líbano. Present Tense (1996) é
uma instalação em que o mapa da Palestina, tal como definido pelos Acordos de Oslo de 1993, é representado com
miçangas vermelhas, incrustadas sobre uma superfície formada por 2.200 barras de sabão de Nablus (um produto tradicional da Palestina, feito com sal mineral e azeite de oliva).
O mapa mostra a fragmentação do território Palestino, que
mais parece um arquipélago do que um território contínuo,
como havia sido definido após a Guerra dos Seis Dias, em
1967. A escolha de um material perecível para a instalação
sugere a insustentabilidade e o potencial de alteração das
fronteiras definidas em Oslo.
Temas como territorialização e desterritorialização são
também presentes em outros trabalhos de Mona Hatoum,
a partir das noções de deslocamento cultural e exílio.
Suspended (2011) é uma instalação composta por 35 balanços de madeira, em cujos assentos estão gravados mapas
de grandes cidades ao redor do mundo. Os balanços são
dispostos de modo desalinhado no ambiente, criando uma
sensação de deslocamento, e se mantêm em constante
134
situação de ruptura e
ruído para poder florescer. Acredito muito
no valor da manutenção
dos processos de subjetivação dos indivíduos e
das coletividades, mas
Cabe notar que a definição de arte site-specific acredito também no vafoi se alterando ao longo do tempo, e que sua lor da constante transevolução reforça os argumentos colocados aqui. formação das formas e
Inicialmente, era associada a trabalhos que incor- dos símbolos que nos
poravam aspectos físicos de certa localidade ou animam para a vida e
espaço como parte importante na sua concepção, para o mundo. O imporapresentação e recepção. Isso significa que a pró- tante é cuidar para que
esse processo ocorra
sempre de dentro para fora, mantendo os processos de subjetivação
em estado dinâmico, e não através de uma imposição externamente
codificada, como muitas vezes acontece.
Claudia Laport Borges (24 de novembro de 2014)
Como havia colocado em um anterior, e citando Milton Santos, o
território (territorialização) abarca do global ao local, e se torna um
conceito quando o consideramos na perspectiva do seu uso. Então
a territorialização está sempre ocorrendo, de acordo com o significado que está se dando para o uso dos espaços (cidade, praças,
web, viadutos, etc.). Por outro lado, entendo como um processo de
desterritorialização a retirada do significado simbólico do território.
Dando um exemplo prático: uma comunidade indígena que perdeu
um território, onde possuía significado espiritual e antropológico
135
pria construção da obra era definida pelo espaço físico e a
ele se vinculava de forma inseparável. Esse paradigma é
denominado de fenomenológico ou experiencial.
A arte site-specific inicialmente tomou o ‘site’ como
localidade real, realidade tangível, com identidade
composta por singular combinação de elementos
físicos constitutivos. […] O objeto de arte ou evento
nesse contexto era para ser experimentado singularmente no aqui-e-agora pela presença corporal
de cada espectador, em imediatidade sensorial da
extensão espacial e duração temporal. […] O trabalho
site-specific em sua primeira formação, então, focava
no estabelecimento de uma relação inextricável, indivisível entre o trabalho e sua localização, e demandava a presença física do espectador para completar
o trabalho (KWON, 2008, p.167).
Ao longo do tempo, a noção de site foi ampliada, de modo a
incluir outros aspectos anteriormente negligenciados. Em
um primeiro momento, questionou-se o papel das instituições de arte, explicitando elementos associados a seu
funcionamento e buscou-se revelar a maneira (não neutra)
como a obra se relaciona com o ambiente expositivo e todo
o sistema que o envolve. Note-se que a noção de site que
decorre de tais considerações se torna mais complexa, ao
incluir também aspectos históricos, sociais, econômicos e
políticos, configurando a abordagem “crítico-institucional”.
Por fim, a partir dos anos noventa, a arte site-specific ampliou ainda mais sua abrangência, atingindo uma perspectiva de descontinuidade no tempo e no espaço, e explorando
seu potencial de ambiguidade e des(re)territorialização a
partir de uma abordagem discursiva. Nesse caso, tanto o
espaço quanto a obra não se prendem a uma noção fixa, e
se movem em direção a instâncias mais públicas, sendo
organizados intertextualmente a partir do movimento nômade do próprio artista. Assim, o site deixa de ser apenas
uma localização geográfica ou um ambiente físico, se con-
136
figurando antes de tudo como uma rede de relações sociais. Nas palavras de
Miwon Kwon (2008, p.171),
a característica marcante da arte site-oriented hoje é a forma como
tanto a relação do trabalho de arte com a localização em si (como site)
como as condições sociais da moldura institucional (como site) são
subordinadas a um site determinado discursivamente que é delineado
como um campo de conhecimento, troca intelectual ou debate cultural.
Além disso, diferente dos
modelos anteriores, esse (como um cemitério antigo, um local de
site não é definido como celebrações, um local de pesca tradiciopré-condição, mas antes é nal, etc.). O local foi desterritorializado,
gerado pelo trabalho (fre- pois perdeu seu significado simbólico e
quentemente como ‘conte- cosmológico.
údo’), e então comprovado
mediante sua convergên- Reginaldo Luiz Cardoso (23 de novembro de
cia com uma formação 2014)
Antes de mais nada, quero destacar o
discursiva existente.
ótimo texto da Isabela Prado, de rara ‘leO território passa então a ser veza e exatidão’. E, é claro, as instiganfluido e disperso, e suas fron- tes intervenções dos colegas. Bem, em
teiras passam a ser de difícil O Anti-Édipo, Guattari e Deleuze afirmam
definição. O espaço da obra se que a sociedade encontra-se quadriculatorna mais amplo, podendo in- da em circunscrições que aprisionam a
cluir o próprio espaço físico, mas produção e o desejo para canalizá-lo em
também outros elementos, reais um sentido reprodutivo e antiprodutivo.
– como textos, imagens, objetos E acrescentam que um processo revolu– ou virtuais, como um conceito cionário desejante tem de passar por (e
teórico abstrato. Assim, o espaço gerar) uma desterritorialização: linhas
da arte passa a ser colocado em de fuga do desejo, conexões insólitas
segundo plano, em favor de outro que fazem explodir, desterritorializam as
locus que pode ser desmateria- formas concretas ou abstratas do poder.
lizado, nômade e virtual. Como Ainda em 1972, ano do lançamento do refebem resume Miwon Kwon (2008, rido O Anti-Édipo, Guattari, em um pequep.173), “na prática das artes avan- no texto (Psychanalyse et Transversalité),
çadas dos últimos 30 anos, a definição operante de site foi transformada de localidade física – enraizada, fixa,
real – em vetor discursivo – desenraizado, fluido, virtual”.
137
A evolução da arte site-oriented em direção à sua versão
discursiva permite ampliar ainda mais seu alcance como
geradora de territórios (simbólicos ou não). Isso porque
pode promover a singularidade de identidades locais, gerando visibilidade a grupos ou assuntos negligenciados pela
cultura dominante. Sua estruturação deixa de depender de
sua espacialidade e seu modelo passa a ser uma narrativa, ou um itinerário – visto como uma sequência de ações
ou eventos no tempo ou no espaço – cujo alcance se torna
potencialmente ilimitado, e cujo percurso é definido pela
passagem do artista.
O papel do artista, nesse caso, passa a ser o de elaborar
e definir conceitualmente a obra, mobilizar os elementos
necessários para sua produção e legitimar ou validar o trabalho com sua “presença”, principalmente quando o trabalho envolve a participação do público em sua execução,
de modo a potencializar seu impacto e significado. Nesse
sentido,
o artista se aproxima de ser a ‘obra’. […] É o aspecto
performativo de um modo característico de operação de um artista (mesmo quando em colaboração)
que é repetido e transportado como nova mercadoria,
posto que o artista funciona como o veículo principal
de sua legitimação, repetição e circulação. (KWON,
2008, p.177)
A intervenção Elemento desaparecendo/Elemento desaparecido (2002), de Cildo Meireles, representa uma contribuição
interessante nessa tendência, em que a obra se constrói
com sua disseminação pública a partir de uma proposição do artista. O trabalho, apresentado na Documenta de
Kassel, consistiu na montagem temporária de uma pequena
fábrica de picolés e na venda de sua produção nas ruas e
nos espaços públicos da cidade. Todos os picolés eram feitos apenas de água e apresentavam, em um dos lados do
palito, a inscrição “elemento desaparecendo”. Uma vez que
os picolés eram consumidos, se revelava, no outro lado do
palito, a inscrição “elemento desaparecido”.
138
propõe um conceito operacional ao processo de desterritorialização: a transversalidade. Uma dimensão que pretende
ultrapassar os dois impasses, o de uma pura verticalidade e
o de uma simples horizontalidade, na qual tende a realizar-se
logo que uma comunicação máxima se efetua entre os diferentes níveis e, sobretudo, nos diferentes sentidos. Ou seja, a
transversalidade permeia o universal (pura verticalidade) e o
particular (simples horizontalidade). Vejamos isso no concreto.
Há cerca de seis anos, surgiu na Comunidade do Campinho
(Congonhas, MG), oriunda de uma iniciativa dos docentes da
Escola Municipal Dona Maria de Oliveira Castanheira, a questão da consciência patrimonial na formação do sujeito (seja ele
individual ou coletivo). E então começou o Projeto Consciência
Patrimonial naquela comunidade.
Uma vez que a globalização denota um processo contínuo de
“anulação do sujeito”, percebeu-se ali que uma prática artístico-cultural estava à beira da extinção. Tratava-se do culto à
Santa Cruz, festejada no dia 2 de maio, cujo ápice é a confecção
de pequenas cruzes de madeira forrada com flores, papel celofane, miçangas, etc., que, benzidas no dia do festejo, são colocadas nas portas e/ou janelas das casas para que, acredita-se,
o domicílio fique selado contra os males ao longo do ano. O
fato é que a única moradora que ainda (naquele momento) preservava o culto era uma senhora de 84 anos. Essa foi a razão
maior desse projeto, levado à Escola num ensejo de trazer de
volta um pouco da identidade da Comunidade – que, diga-se de
passagem, é majoritariamente composta por afrodescendentes. Ao fim e ao cabo desse projeto, a partir de 2009, deram-se
os festejos do culto à Santa Cruz. Confeccionadas pelas crianças da Escola, cruzes de singela beleza plástica foram distribuídas à população, benzidas pelo pároco, ao qual se juntou o
grupo de Congado. Hoje, inegavelmente, percebe-se o aumento
da autoestima da comunidade. Assim depõe a pequena Carol,
de 9 anos: “É uma cultura da comunidade. Estamos lutando
para registrar a tradição de Santa Cruz como patrimônio local.
Tenho certeza de que vamos conseguir”. Finalizando, com os
mesmos Guattari e Deleuze, a ideia de dispositivo consiste na
montagem espontânea de um artefato absolutamente novo que
articula elementos heterogêneos, dos coletivos até aqueles
139
Elemento desaparecendo/Elemento desaparecido aborda a
questão do território pela ótica dos recursos naturais, ampliando a percepção do público a respeito de uma questão política essencial na atualidade, e que apresenta sérias implicações territoriais no presente e no futuro. Ao
mesmo tempo, a intervenção questiona o circuito da arte
e seu caráter mercadológico, uma vez que o trabalho só se
completa com o gradual derretimento do objeto, de modo a
tornar visível o texto impresso no palito. A participação do
espectador também se faz essencial na concretização da
obra, o que implica outra dimensão de autoria – tal como
mencionamos anteriormente. Segundo Moacir dos Anjos,
Elemento desaparecendo/Elemento desaparecido traz em sua
constituição um elemento ambivalente, pois “[solicita] a
participação do público na construção de objetos simbólicos
[...], pedindo, ao mesmo tempo, que deles se desfaça ou que
os consuma para que as criações ganhem pleno sentido”
(ANJOS, 2010, p.67).
Por fim, apresentam-se aqui alguns trabalhos de Francis
Alÿs, que refletem sobre questões territoriais e de identidade, e que têm grande identificação com alguns dos
elementos da perspectiva de arte site-oriented, tal como
mencionado anteriormente. Em particular, os trabalhos de
Francis Alÿs têm em geral caráter público e performático,
apontam para a singularidade de identidades locais e se
exploram conceitos de des(re)territorialização a partir de
ações e eventos articulados pelo artista-nômade. Assim
como Cildo Meireles, Alÿs também questiona o status da
obra de arte ao produzir trabalhos que se esgotam na própria realização, ou que se expressam simplesmente pelo
engajamento corporal do artista ou dos participantes – caminhando, varrendo, dirigindo, etc.
A performance Paradox of Praxis I: Sometimes doing something leads to nothing (1997) ilustra precisamente esse ponto.
Nesse trabalho, Alÿs empurrou um bloco de gelo pelo centro da Cidade do México até que todo o gelo se derretesse.
Sua ação – pública, na cidade – discute o papel da arte e
140
do artista como criador de identidades (e, portanto, de
território) a despeito de não haver um “produto” ou objeto artístico sendo gerado ao final do processo. Como
o título já sugere, às vezes fazer
de microscópicas funções subpessoais.
alguma coisa leva a nada.
Esses dispositivos podem ser os mecaEm Barrenderos (2004), o aspecto nismos que veiculam a desterritorializapúblico e performático dos traba- ção. De fato, foi o que vimos!
lhos de Francis Alÿs entra novamente em cena, também tendo Ricardo De Cristófaro (15 de novembro de
a relação entre cidade e meio 2014)
ambiente como pano de fundo. A redefinição constante do conceito de
Nessa intervenção, varredores de território em várias áreas de conhecirua são orientados a empurrar o mento nos leva a pensar e concluir que,
lixo de uma rua para outra, até o a todo momento, vivenciamos processos
ponto em que a quantidade de lixo de territorialização e desterritorialização.
acumulado ao longo do percurso Penso que um território existe apenas
forma uma montanha e impossi- em função de sua capacidade de estabilita que se continue com esse belecer relações. O território entendido
movimento. Também nesse caso, como um objeto estável cede lugar a um
observa-se que o trabalho se es- processo de construção permanente de
gota em seu próprio processo, e comutações. Assim, o conceito de terrique a ação e o esforço dos corpos tório contemporâneo renuncia ao “local
não levam à geração de um pro- físico” como um topos ou um invólucro
estável que o identifica. Nesse sentiduto artístico tangível ao final.
do, as reflexões de Miwon Kwon sobre
Em Green Line (2004), por sua práticas artísticas são importantes na
vez, Alÿs explora a questão do atualização ou redefinição do conceito
território com ênfase na ideia de site-especific ao abordar trabalhos
de fronteiras. Nessa performan- artísticos nos quais a condição física
ce, executada em Jerusalém, o de uma localização específica deixa de
artista caminha por vários quilô- ser o elemento principal na concepção
metros sobre a chamada “linha de um site. Acredito que várias obras
verde”, demarcação de fronteira do artista Maurice Benayoun, especialentre Israel e Palestina estabele- mente World Emotional Mapping e Frozen
cida após o final da guerra entre
árabes e israelenses em 1948, e que prevaleceu até a
Guerra dos Seis Dias, em 1967. Alÿs carrega consigo
uma lata de tinta verde com um pequeno furo, o que
faz com que o artista vá redesenhando a fronteira (que
141
já não existe mais) ao longo do percurso. A partir de uma
ação quase literal de reconstrução de território, o trabalho
discute a conflituosa relação entre palestinos e israelenses,
perpassada por questões políticas, históricas, econômicas,
religiosas, e explora a relação entre arte e política, particularmente delicada em situações de conflito.
O denominador comum nessa produção é a ideia de que
territórios são construídos e desconstruídos continuamente,
e que a arte tem um papel relevante para apontar e refletir sobre diferenças, identidades locais, “texturas”, em um
mundo guiado pela homogeneização e pela padronização
dos espaços, dos costumes – enfim, do território.
When Faith Moves Mountains (2002) também representa
uma intervenção direta sobre o território, mas desta vez
em escala muito maior, e com grande participação pública.
Nessa ação, quinhentos voluntários se perfilaram sobre
uma grande duna de areia nos arredores de Lima (Peru) e,
com o auxílio de pás, tentaram mover a posição da duna em
alguns centímetros. Assim como em vários outros trabalhos
de Alÿs, a obra só se concretiza com a participação do público, e se completa e ao mesmo tempo se esgota em seu
processo. O resultado final, embora tenha sido movido um
grande volume de areia, é praticamente imperceptível na
escala macro da paisagem, mostrando uma vez mais como
um enorme esforço pode levar a “nada”.
Arte e território: reflexões pessoais
Por fim, Bridge/Puente (2006) é também uma intervenção
site-oriented que explora as relações entre arte, política
e território. Nesse trabalho, Alÿs mobilizou comunidades
de barqueiros de Havana (Cuba) e Key West (Flórida, EUA)
para construir uma ponte flutuante, formada por barcos
alinhados. Partindo simultaneamente dos dois territórios,
cada extremo da ponte apontaria em direção ao outro, de
forma que, no limite, poderia ser construída uma ligação
entre os dois países. A ação explora a ideia de identidade e
o papel da arte para promover um diálogo entre dois países,
de modo a romper o isolamento historicamente imposto a
Cuba.
Em resumo, os trabalhos de Gabriel Orozco, Mona Hatoum,
Cildo Meireles e Francis Alÿs, aqui apresentados, representam uma amostra da produção de arte contemporânea
em que questões associadas ao território são examinadas.
142
Temas associados ao território, a fronteiras, a particularidades locais, à construção e ao apagamento de identidades
estiveram frequentemente presentes em minha produção
recente como artista. Em muitos desses trabalhos, o caráter site-specific ou site
-oriented, a efemeridade Feelings, são exemplos dessa nova forma de enda obra e a participação tendimento e atuação artística em territórios “oudo espectador também tros”. Disponível em: http://www.benayoun.com/.
têm grande relevância.
Várias vezes, os traba- QUESTÃO 2
lhos refletem também Como a arte pode contribuir para a construção de
o caráter nômade do territórios (do ponto de vista simbólico) no mundo
artista, pois foram pro- globalizado?
duzidos em períodos
de residência em di- Carlos Dalla Bernardina (30 de novembro de 2014)
versas partes do mun- Existe uma conceituação, meio precipitada, a meu
do. Apresento aqui uma ver, mas que, no entanto, é bem didática para essa
parte dessa produção, nossa questão. Refiro-me à oposição entre “cultucomo forma de comple- ra” e “arte”, a cultura sendo o sedimento de tudo
mentar a discussão pro- o que já foi produzido e criado pelas civilizações,
posta no texto.
e a arte sendo tudo aquilo que vem para atravessar e promover rupturas com a cultura instituída,
Nueva Córdoba (2008) é trazendo o novo, o ruído, o espanto, o ascender
uma série de cartões de uma nova ideia ou possibilidade. Dentro despostais produzidos a sa perspectiva, não apenas no mundo globalizado,
partir de fotografias mas em todas as épocas, a arte caracterizou-se
de imóveis demolidos essencialmente pela construção de novos terem Córdoba, Argentina. ritórios simbólicos. É o que a difere da cultura.
Revela os resquícios do Falando especificamente de nossa época globaliinterior das casas, com zada, é de especial importância que a arte seja casuas particularidades, paz de atravessar e transformar os movimentos de
143
como que revelando parte da intimidade e da identidade
de seus antigos moradores. Como em outros lugares, as
antigas casas darão lugares a edifícios, promovendo a padronização e a homogeneização dos espaços. O título do
trabalho corresponde ao nome do bairro onde as fotos foram feitas, e os postais são, então, um registro da antiga
Nueva Córdoba.
Em 2009, fui convidada a participar de uma residência na
Cisjordânia. Como se poderia esperar, a delicada situação
política e social da Palestina – que se refletia em restrições à circulação no território, ao controle de fronteiras,
às limitações econômicas e de infraestrutura – influenciou
decisivamente minha percepção e minha produção durante
a residência. Dois trabalhos foram executados, abordando
questões cruciais na região: primeiro, a presença do muro
e dos checkpoints e as limitações à liberdade de movimento
no território; segundo, as restrições no abastecimento de
água na Palestina, que se refletem na presença maciça de
caixas d’água, em grande número, nos telhados.
O primeiro desses trabalhos – um vídeo intitulado Vanishing
Point (Ponto de Fuga) – captura o fluxo de veículos e pedestres no checkpoint de Qalandia, perto de Ramallah,
durante um dia inteiro. O título traz um jogo de palavras,
pois Vanishing Point também significa “ponto de desaparecimento”, e o trabalho propõe uma reflexão sobre desaparecimento da cultura, perda de identidade e restrições
à liberdade.
As caixas d’água – massivamente presentes nos telhados
da Palestina e tão visualmente marcantes na paisagem –
são o elemento central em Water Skyline, uma instalação
com uma série de imagens impressas em fotocópia P&B
no papel sulfite A3. As fotografias são coladas diretamente
sobre as paredes, uma ao lado da outra, usando o processo de lambe-lambe, e formam uma linha do horizonte
imaginária. Assim, a instalação cria uma nova paisagem e
ressalta as restrições do abastecimento de água na região,
fonte permanente de conflito territorial.
144
Outro grupo de trabalhos recentes – parte do projeto
intitulado Entre Rios e Ruas – reflete sobre a questão
territorial, com foco na relação entre cidade, meio
ambiente e indivíduo1. O ponto de partida, nesse caso,
é a relação que Belo Horizonte (MG) estabeleceu desde sua fundação e estabelece ainda hoje com os rios e
córregos presentes em seu território. Menciono aqui
três dos trabalhos desenvolvidos.
1. A apresentação
desses trabalhos
está baseada em
Prado (2013).
Jóia é um broche feito em ouro e explora a relação entre corpo, espaço e escala. O desenho dessa joia, de
9,5cm de comprimento, replica em escala 1:10.000 o
traçado dos últimos 950m de leito
natural do Ribeirão Arrudas dentro destruição das identidades em movimendos limites do município de Belo tos de criação de singularidades, virando
Horizonte. De acordo com Eduardo o jogo da tendência de padronização das
subjetividades. Essa é a contribuição mais
de Jesus (2012, p. 22):
importante, a meu ver, que a arte pode
Carregar a Jóia é o mes- nos fornecer na atual conjuntura.
mo que carregar o que
ainda resta. Fixá-la pró- Luiza Alcântara (25 de novembro de 2014)
xima ao corpo, carregá-la A arte faz parte da construção da identicomo adereço é o mesmo dade social, faz parte da cultura. Dessa
que carregar um pequeno forma está completamente ligada ao simfragmento de tempo e es- bólico social. Voltando ao exemplo dado
paço que remetem de uma na questão anterior, as ocupações podem
só vez para a ausência de ser (e alguns trabalhos de arte possuem
uma paisagem e para o esta proposta) chamadas de arte. Como
ocupar e ressignificar os espaços? Que
jogo da escala.
outras subjetividades são possíveis ali?
A instalação Repaisagem, por As residências de arte podem ser outro
sua vez, utiliza mantas magné- exemplo disso. Artistas se deslocam para
ticas que correspondem a todos pesquisar e interagir com um lugar espeos trechos de córregos em lei- cífico e para criar com e a partir dele.
to natural no município de Belo
Horizonte e sugere a participação Claudia Laport Borges (24 de novembro de
2014)
Sou geógrafa e não poderia aqui deixar de
buscar os ensinamentos de Milton Santos.
Para o autor, um território é analisado
145
do espectador, criando novos desenhos, novas paisagens.
Assim, o trabalho é definido mediante a participação do
outro, que é quem efetivamente o constrói e o transforma
continuamente. A instalação contém ainda um elemento de
áudio, que corresponde ao som desses mesmos córregos,
em trechos canalizados, que correm sob as ruas da área
central da cidade.
A performance Lição: se essa rua fosse um rio consiste em
uma sequência de aulas de violino na rua, em que o professor tenta me ensinar a execução da melodia Se esta rua
fosse minha. As aulas ocorrem sempre em ruas sob as quais
correm trechos dos córregos da cidade. O trabalho é visto
como uma metáfora para a dificuldade em estabelecer uma
nova relação e uma nova consciência da cidade acerca do
ambiente. “Repetitivamente, a artista encena um percurso
que não se conclui, próprio à aprendizagem, assim como
aos rios” (DINIZ, 2012, p.16).
Os trabalhos do projeto Entre Rios e Ruas trazem, por meio
da metáfora, da participação do espectador e da experiência
espacial, uma reflexão sobre o uso do território urbano e
uma proposta de recriação da cidade.
A ideia de território a partir da formação de identidades é
um dos aspectos centrais da intervenção urbana Estrangeiro
(2006), realizada em um bairro de Berlim, na Alemanha.
Nesse trabalho, foram distribuídos por mim e mais quatro
voluntários uniformizados cerca de 900 balões coloridos,
com a palavra “estrangeiro” impressa em cor branca e inflados com gás hélio. Anexada a cada balão havia uma etiqueta que sugeria que o mesmo fosse solto às 20h. Dessa
forma, a participação do público era condição essencial
para a execução do trabalho. O resultado pôde ser visto
na região durante o período da intervenção, primeiro pela
identificação entre os participantes que carregavam seus
balões ao longo do dia e depois pela imagem dos vários balões subindo ao céu simultaneamente, a partir de diferentes
pontos do bairro.
146
Por fim, cabe mencionar a intervenção Wind Catcher
(2007), realizada em Shatana, uma pequena vila na
Jordânia, de paisagem montanhosa e monocromática. Para esse trabalho, foram construídos 50 objetos
de tecido colorido, semelhantes a pequenos paraquedas, que foram dispostos no alto de uma colina, em
uma estrutura que remetia a uma tenda de beduínos.
A intervenção incentivava a participação do público e
promovia a interação entre os habitantes da vila, pois
os objetos eram usados sempre por duas pessoas. No
horário determinado, os participantes saíram em duplas a caminhar pela vila, vestindo os objetos de tecido
inflados como paraquedas pelo vento que incessantemente soprava no vilarejo. O trabalho, assim, propiciou
uma experiência de interação e troca dos indivíduos,
entre si e com a própria cidade, bem como um efeito
visual na paisagem monocromática da região.
sob a perspectiva do uso: o território usado constitui-se como um
todo complexo onde se tece uma trama de relações complementares
e conflitantes. Deve ser compreendido como uma totalidade que vai
do global ao local. Em sua análise argumenta que o território em si
não é um conceito, ele só se torna um conceito quando o consideramos na perspectiva do seu uso. Tal entendimento é demasiadamente
importante, visto que tem como preocupação principal a ação e a utilização desempenhada pelos seres humanos na produção do espaço.
Ou seja, a arte, em todas as suas formas e vertentes, ao se apropriar
dos espaços, está criando um território de uso.
Reginaldo Luiz Cardoso (23 de novembro de 2014)
Com o desmonte do muro de Berlim, em 1989, rapidamente as forças conservadoras conclamaram o “fim da história”, das ideologias
e, consequentemente, o advento do livre caminho para a harmonia
entre os povos – leia-se: heterogeneidade sociocultural sob os rigores da lei do mercado. Porém, depois da queda do muro de Berlim,
houve a proliferação de um sem número de cercamentos. Por que
isso em um mundo globalizado? E penso aqui no muro da Cisjordânia,
no muro da fronteira entre os EUA e o México, nos muros dos bairros
fechados... Uma das respostas é que, na era do acesso, nem todos
são bem-vindos. Em um mundo de mercadorias perfeitas, a pessoas
147
Referências
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2010.
DINIZ, Clarissa. “Rios, ruas, visibilidades”. In: Entre Rios
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34, 2005.
SÁNCHEZ, O. Conwell, D. (ed.). [Situational] Public. San
Diego: inSite, 2006.
148
menos que perfeitas é vedado o livre fluxo. Tudo isso junto é a questão que envolve o InSITE, citado aqui pela Isabela Prado. Criado em
1992, esse festival de arte pública decolou em 1994, ao conseguir capturar a importância que as fronteiras haviam assumido no discurso
político da arte global. No InSITE 97, causou sensaçâo, dentre outras,
a instalação de Marcos Ramirés Erre denominada Troyan Horse: um
Cavalo de Tróia de 25m de altura, instalado na fronteira entre EUA/
México (San Diego/Tijuana), com duas cabeças – uma virada para o
Norte e outra para o Sul. Como observou Néstor Canclini: “evitou
assim o estereótipo da penetração unidirecional do Norte pelo Sul”.
Estava criada a 'Post-Border Art'.
Isabela Prado (24 de novembro de 2014)
Oi, Ricardo, gosto muito do formato de residências. Concordo que
parte de um deslocamento que, por si só, pode ter grande potencial
criativo. E que a troca cultural que se estabelece nesses casos é
muito interessante e pode também acabar influenciando a produção do artista. Sabemos que existem opções de residências com
características opostas, em termos de localização, duração, escala,
formato, recursos, etc. Dependendo do local da residência (como
nas ovelhinhas e montanhas com neve), funciona quase como uma
“bolha” de imersão, em que o artista se afasta do ritmo acelerado
de seu cotidiano na cidade e abre a possibilidade de explorar outro
tempo. De todo modo, independentemente do grau de isolamento do
local, o mero afastamento da rotina e da zona de conforto do artista
já gera um olhar crítico, um olhar “de fora”, e isto pode ser um elemento de criação. Eu tive esse tipo de percepção em casos tão extremos como um pequeno vilarejo na Jordânia ou em grandes cidades
como Berlim. Uma das experiências de residência mais marcantes
que eu tive foi na Palestina, em 2009. Acabei publicando um relato
sobre isso na Revista Tatuí (http://issuu.com/tatui/docs/tatui_08_pdf),
sobre a relação entre paisagem e território. Acho o tema riquíssimo.
Queria especular um pouco sobre isso, a partir do que entendi da
sua pergunta. Acho que território e paisagem estabelecem uma relação de mão dupla (considerando ambos como constructos sociais,
mentais, simbólicos). Por um lado, me parece que a paisagem é
elemento constituinte do território. Ou seja, a paisagem é um dos aspectos que definem nossa visão ou percepção sobre o território. Isso
significa que quando construímos novos valores para a paisagem
recriamos o território. Ao mesmo tempo, existem aspectos do terri-
149
tório – particularmente, mudanças do território físico (verticalização
das cidades, por exemplo) – que podem alterar nossa percepção da
paisagem, que por sua vez leva à nova reterritorialização (no plano
simbólico). Mas parece também que a alteração do território físico
e a do simbólico operam em escalas de tempo diferentes, ou seja,
parte da nossa percepção da paisagem é fruto da nossa memória
sobre o território, mesmo que na realidade aquele território já não
exista da mesma forma...
Maria Caram Santos de Oliveira (19 de novembro de 2014)
Apesar de não me ocorrer nenhum exemplo concreto a dar, acredito
que a maior contribuição da arte para a construção do território simbólico no mundo globalizado esteja ligada ao ambiente de fronteiras,
em que a arte pode (e costuma) agir. A arte contemporânea mantém-se sempre na fronteira simbólica - e mesmo física - recriando
espaços físicos, simbólicos e culturais, e se retroalimentando dessas
mudanças, desterritorializações e reterritorializações. Ao agir nessa
fronteira, entre o convencionalmente aceito e o próximo passo, a arte
cria espaços para várias novas linhas de pensamento e atuação, não
só artisticamente, mas social e urbanisticamente também.
Ricardo Macêdo (19 de novembro de 2014)
Acho que artistas em residência são um bom exemplo. É onde o
deslocamento é a base e a origem da coisa. E, ainda por cima, eles
pontuam a importância do agenciamento de formas diferenciadas de
administrar o tempo de produção de seu trabalho. E, nisso, propõem
outros alicerces frente ao paradigma frenético do mercado atual,
revitalizando um ritmo desacelerado, pré-industrial. Alargando e
estendendo o tempo dentro de outra temporalidade, e isso é muito
legal. Vi umas chamadas para residências atuais e encontrei uma
com ovelhinhas e montanhas com neve no meio do nada (http://www.
transartists.org/air/listh%C3%BAs-artists-residency-program). Essa
residência não ocorre em uma comunidade grande, mas em uma
pequena, com outros artistas de várias regiões do globo; não menos válida, pois, ainda assim, rola um intercâmbio cult fortíssimo,
imagino, com trocas e vivências de uma multiplicidade cultural pesada. Nas residências, acho que o modus operandi da produção de
uma ideia e criação de algo já é, em si, uma potência agenciada, um
poder simbólico frente à segregação das cidades, à velocidade das
gentrificações, das “desocupações” de terrenos (desterritorializa-
150
ções, diga-se de passagem), etc. Ocupar territórios nesse sentido,
dentro de outra lógica, é contribuir para a disseminação desta lógica,
seja através dos resultados em publicações, vídeo e exposições. O
Amilcar Paker* bem disse que “quem fala em residências, fala em
deslocamento” e “promove literalmente desterritorialização como
condição básica de criação”. O já falecido Octavio Ianni também nos
dizia, já em 1992, que a despeito da “ilusão da origem, tudo tende a
deslocar-se [...] línguas, hinos, bandeiras, tradições, santos”, espaço
global em tempo presente. Nisso, fiquei me perguntando qual é a
relação entre a construção de paisagens (como constructos mentais
históricos) e a noção de território/reterritorialização? Você falou no
texto, Isabela, sobre “a desterritorialização como o movimento de
destruição ou abandono do território, e a reterritorialização como reconstrução do território”. Isso, em termos mais subjetivos, pode ter
a ver com o modo como concebemos as paisagens? Já que elas são
constructos sociais, históricos, mentais, que mudam com o tempo.
Reterritorializar também é imaginar, construir nesse sentido novos
valores para paisagem? Não sei se fui claro na pergunta...
*Há um texto do Amilcar sobre residências muito bom, chamado
“resiliências artísticas” (http://www.funarte.gov.br/residenciasartisticas/wp-content/uploads/2014/07/miolo+capa-livro-res-artisticasFINAL_baixa-res.pdf).
Questão 3
Considerando a evolução da arte site-specific em direção à sua versão
discursiva, com ampliação da participação do público e relativização da
noção de autoria, qual é o papel do artista na produção artística contemporânea associada à questão do território?
Thaís Mor (30 de novembro de 2014)
A arte destaca as especificidades/características locais que diferenciam e determinam um território (sensações, sentidos, memórias).
Ela é capaz de “legitimar” símbolos, diferenciando-os de um “site”
para outro - territorialização/ desterritorialização/reterritorialização. A partir da premissa “O território é uma condição de existência
para a humanidade”, o artista, como um nômade, muitas vezes com
vivências “globais”, é responsável por organizar esses elementos,
símbolos, e mobilizar a participação do público para construir um
conceito potencial e de significado.
151
Carlos Dalla Bernardina (30 de novembro de 2014)
Acredito que seja justamente ancorar a própria mudança de percepção sobre o conceito de território como algo estático e enraizado,
trazendo à tona a noção de território como trajetória experiencial,
fluxo de encontros e agenciamentos. Mas, ainda e principalmente, contribuir para a vivificação dos territórios formais, para que vibrem e estejam tanto quanto possível prenhes de movimento crítico
e transformador. Nesse sentido, cabe ao artista do século XXI estar
fora dos espaços institucionalizados, promovendo ruídos, rupturas
e ressignificações da paisagem cotidiana, para que seu vínculo com
as pessoas possa ser (r)estabelecido e (re)vivificado.
Reginaldo Luiz Cardoso (24 de novembro de 2014)
Como disse no post anterior, com o InSITE tomou forma a chamada
Post Border Art. Isso porque, uma vez que o festival ocorre em uma
região fronteiriça extremamente problemática e emblemática, visa
a por a nu a retórica do livre fluxo global. E é simbólico esse evento
porque coloca a questão do artista contemporâneo equilibrando-se
na borda, na fronteira entre o reconhecido – o Norte/Centro –, e o
relegado a segundo plano – o Sul/periferia, na borda entre o mainstream e o basfond. Não à toa, o InSITE 05 teve como conceito central
a arte (in)visível. Um exemplo tirado dessa mostra é a intervenção
One Flew Over The Void/Bala Perdida, do venezuelano Javier Téllez
em colaboração com pacientes de um centro de saúde mental de
Mexicali, e dos quais surgiu a proposta de cruzar a fronteira pelo
ar. Tratou-se do lançamento do homem-bala Dave Smith do lado
da fronteira mexicana para o lado norte-americano, uma festa de
encerramento de um projeto coletivo. Ali, coisas importantes foram
postas: 1°) que o caráter processual do projeto resultou em nada
tangível, em ausência de objeto; 2°) os suportes utilizados foram
muito além daqueles convencionados pelo cânone; 3°) o registro do
processo é fundamental. Tudo como descrito por Miwon Kwon. Como
observou R. Bont, com grande acuidade, o InSITE, nesse sentido, se
converteu em um legado tático para futuras atuações que, sem dúvida, mudaram o rumo do mundo da arte. E, provocativo, questiona:
“abolido o objeto, o ‘espetáculo’, entendendo a arte como uma prática
política, de que vão viver os artistas?”. Seja lá qual for a resposta,
corroboro aqui a opinião de Jenni Klein, de que depois do InSITE 05
o futuro das práticas artísticas se assenta definitivamente fora das
galerias.
152
Bárbara Rodrigues Tavares (22 de novembro)
O artista se apresenta como intelectual crítico que traz à tona as
inquietações da sociedade que ele habita, incluindo as próprias inquietações. Acredito na força do trabalho do artista para criar novos
territórios - em todos os sentidos. As manifestações mais participativas e com autores plurais estão relacionadas à iniciativa do artista.
Ele pode ser considerado o ponto de partida, determinante para os
rumos que as ações vão tomar.
Maria Caram Santos de Oliveira (19 de novembro de 2014)
Creio que mesmo em obras abertas o artista mantenha o seu papel de criador e orientador. Obras interativas e que necessitam do
público para ser contempladas não minimizam a autoria. Autorias
coletivas, que têm se ampliado principalmente em face das redes digitais, são também (e ainda) formas de autoria. As diversas licenças
alternativas, espaços de questionamento e amplitude entre copyleft
e copyright ainda assim são alternativas de autoria e não o fim delas.
Na literatura, por exemplo, se fala muito a respeito da incompletude
do livro sem a existência de um leitor e, ainda, que as interpretações
de textos, de certa forma, geram obras diversas - não se passa nem
perto de tocar as questões de autoria. Ainda é o artista quem concebe e usa o território nas artes, ainda que ele possa propor novos
usos e construções para os espaços que se dispõem a explorar. O
público pode, sim, tornar-se artista ao propor uma subversão para
a proposta inicial e criar uma completude para a obra originalmente
proposta.
Ricardo De Cristófaro (15 de novembro de 2014)
Acredito que o artista passa a desempenhar novos papéis e a alcançar um novo estatuto como propositor artístico. Um território
pode ser criado a partir de um mapa de relações. Mapas que não
correspondem a mapas geográficos. Mapas nos quais o conceito
de vizinhança passa a adquirir outros sentidos a partir do momento
em que o espaço de ação do artista também adquire características
mais abstratas.
153
Eduardo de Jesus*
Relações
entre arte
e tecnologia:
traços históricos
e desdobramentos
atuais
Introdução
* Eduardo de Jesus
Mestre em Comunicação pela UFMG (2001),
Doutor em Artes pela
ECA/USP (2008), é
professor do Programa
de Pós-Graduação em
Comunicação Social da
Faculdade de Comunicação e Artes da PUC
Minas. Atua como pesquisador e curador em
diversos projetos e exposições como Festival
de Arte Contemporânea
SESC_Videobrasil (São
Paulo, 2013) e Festival
Internacional de Fotografia (Belo Horizonte,
2013), entre outros.
Em A noiva desnuda pelos seus celibatários, mesmo1
(1915-1923), Marcel Duchamp buscava mostrar certa dimensão orgânica nas formas arredondadas e
volumosas daquelas máquinas: moedores de chocolate, engrenagens e ganchos que aproximavam,
de forma quase assustadora, o ambiente sequencial, aparentemente frio e sem vida das máquinas,
do universo humano. Uma proximidade inusitada.
O Grande Vidro, como também é conhecida a mesma obra de Duchamp, mostrava os sintomas de
um grande encontro entre as naturezas da máquina e do ser humano. Para a época, um grande
enigma, iluminado pela intensa transparência do
vidro trincado. Hoje, apesar de experimentarmos manifestações ainda mais intensas na
relação entre ser humano, técnica e máquina,
engendradas na vida cotidiana, alterando sensivelmente toda a ordem social, ainda vivemos o enigma proposto na obra de Duchamp.
1. Tradução nossa de:
La mariée mise à nu par
ses célibataires, même
No campo da arte, a máquina compareceu inicialmente, com a chegada da fotografia. A máquina
fotográfica, fruto das sucessivas descobertas no
154
campo da Física aplicadas à produção artística, iniciou e
disseminou a mediação técnica na produção das imagens
(desde o Renascimento, algumas técnicas de produção
de imagem eram utilizadas na produção artística, como a
câmera escura, a tavoletta e outros instrumentos).
Com a chegada da fotografia houve uma primeira ruptura
com as formas mais tradicionais de produção das imagens, que passaram a ser reproduzidas e deslocaram o
lugar antes ocupado pelo original. Assim como a fotografia se firmou no campo da arte, outras máquinas, outros
instrumentos e outras técnicas foram sendo incorporados pela produção artística
ao longo do tempo. Em pouco Questão 1
tempo, os impressos, a ima- Qual é a possível relação histórica e contemgem cinematográfica, o vídeo, porânea entre arte e tecnologia e qual é o
as transmissões televisivas, o lugar da arte tecnológica no domínio da arte
computador e as redes, den- contemporânea?
tre outros suportes e dispositivos técnicos, tornaram-se Reginaldo Luiz Cardoso
meio e material para a criação Caros (Professor e Colegas), gostei muito
artística, que não apenas os das questões levantadas neste módulo.
incorporou, adequando-os às
formas já consagradas pela Em primeiro lugar, foi muito bom o Eduardo
tradição, mas também deixou- de Jesus ter levantado logo de cara a quesse transformar profundamen- tão da historicidade que está presente na
te por eles. Naturalmente que chamada arte contemporânea (algo que
surgiu em um lugar incerto entre Duchamp
e Warhol). E, afinal, a dobradinha arte e tecnologia é uma constante na história da humanidade: está na invenção da perspectiva,
nas artes gráficas, na indústria química, nas
tecnologias da informação...
Segundo, podemos dizer que vivemos em
um mundo pós-aurático, aquele mundo que
se desenvolveu a partir das questões trazidas à tona por W. Benjamin e desenvolvidas
posteriormente dentro e fora da Escola de
Frankfurt. Talvez quem resuma bem isso
155
essas incorporações dos meios técnicos pelo ambiente artístico provocaram profundas alterações tanto na
produção artística em si quanto na forma de perceber
e experimentar as obras. Mesmo porque, em alguns
casos, as máquinas foram rapidamente incorporadas à vida social, colaborando para uma nova visão de
mundo e, com isto, gerando novas formas de conhecimento e cultura.
Os instrumentos de comunicação a distância foram
alterando as formas de perceber o tempo e o espaço,
conseguindo aproximar pontos distantes. Cada novo
instrumento descoberto ia tornando cada vez mais
complexas essas aproximações. Com a chegada da
televisão e, depois, dos satélites, computadores, internet e redes sociais, o mundo acabou ficando pequeno para a enorme teia comunicacional que se estendeu sobre ele, varrido pelas imagens transmitidas
por inúmeros meios, envolvendo tanto os meios de
comunicação massivos quanto aqueles de uso pessoal, como smartphones, que permitem acesso às redes
sociais e podem alcançar em seus desdobramentos
formas de comunicação pessoal de alcance massivo.
Quando os instrumentos de comunicação tiveram
seus usos subvertidos e tomados como suportes artísticos, dando prosseguimento, em nova chave, a trabalhos pioneiros como os de Marcel Duchamp, Walter
Ruttman e René Clair – que já exibiam a possível desconstrução do objeto artístico – a produção artística
tomou então um rumo completamente novo. Com a
entrada dos suportes imateriais em cena, tornou-se
necessário reinvidicar outras formas de compreensão
para essas obras de arte, principalmente pela natureza complexa da experiência estética que elas provocavam. A utilização dos instrumentos típicos da comunicação a distância na produção artística reposicionou
inteiramente a relação espaço-temporal e, com isto,
alterou também radicalmente, a experiência estética.
156
Arte e tecnologia
Se buscarmos a etimologia do termo
arte, veremos que ao radical ars, de origem latina, corresponde outro, vindo
da cultura grega – techne – indicando,
conforme nos lembra Arlindo Machado,
“que, nas origens, a técnica já implicava
a criação artística, ou, em outros termos,
havia já uma dimensão estética implícita na técnica” (MACHADO, 1994, p.09).
Apesar de techne e ars indicarem uma
produção voltada para a execução e a
construção do objeto, o uso desses termos já mostrava na Grécia Antiga níveis
de hierarquia no domínio do fazer artístico, como ressalta Renato Barili:
seja o crítico e curador norte-americano Joshua Decter, ao afirmar que “chegamos à época da
obra de arte enquanto (sic) aparições e desaparições”. Como
contradizê-lo em um momento
em que se discute de tudo hoje
no campo das artes, desde os novos/velhos suportes até a morte/
presença da autoria em uma ampliação e um rompimento sem
precedentes históricos da arte?
A minha questão: se se trata de
alcançar uma interpassividade, como quer Zizek (citado por
Eduardo de Jesus), em um mundo que está constantemente reconfigurando as subjetividades,
não seria afirmar a priori que os
sujeitos foram capturados pelos
dispositivos e, portanto, caberia
à arte tecnológica resgatá-los
através de novos processos de
(des)subjetivação?
O certo é que tanto a “ars” latina
como a “techne” grega indicavam
precisamente graus primários de
intervenção técnica, numa acepção extremamente larga e genérica: tanto que logo se tornou indispensável introduzir hierarquias de
valores retiradas de uma escala
ascendente destinada a premiar
os valores da mente relativamente aos da mão e da fadiga física. Como disse, esse módulo trouxe-me várias questões e esta se
(BARILLI, 1989, p.20)
tornou mais premente, pois tem
Essas hierarquias provocaram a criação atravessado todos os módulos
de outro termo que fosse capaz de de- anteriores. Não é uma questão
signar aquela atividade artística menos fácil e não há respostas prontas
ligada à manipulação dos materiais, “um (ainda bem).
fabricar por excelência, dado que precisamente não usa mármores e cores, mas apenas
a substância ‘espiritual’ ou parcamente a palavra gráfica” (BARILLI, 1989, p.20). Surgiu assim
o termo poiesis. Desde a Grécia Antiga, passando
157
pelo Renascimento e depois pelo século XIX, com a
descoberta da fotografia e do cinema, até o vídeo e o
computador em nossos dias, encontramos diferentes
maneiras de relacionar técnica e produção artística.
Em alguns momentos, em particular, há mesmo uma
relação de confronto entre ars e poiesis, o que tem
gerado, além de manifestações artísticas das mais
diversas, um intenso debate.
Nos ateliês do Renascimento era comum a presença de aparelhos de pintar baseados na Tavoletta de
Brunelleschi, que serviam para que o artista produzisse um esboço da imagem, materializado ali, na superfície do vidro. O olhar monocular da perspectiva
renascentista também fazia uso da câmera obscura,
que projetava as imagens, de forma invertida na parede da câmera oposta ao orifício por onde entrava a
luz, “enquanto o papel do artista consistia apenas em
fixar estas imagens com pincel e tinta” (MACHADO,
1994, p.09).
Posteriormente, no século XVI, com a descoberta das
lentes objetivas por Daniele Barbaro, estava criado o
cenário para, mais tarde, no século XIX, o surgimento
da fotografia:
Num certo sentido, a fotografia vem sancionar o primado do sistema descritivo escolhido
quatro séculos antes pela cultura ocidental; ou
inversamente, pode dizer-se que Leon Battista
Alberti, já quando em 1432, ao escrever De pictura, falava de uma ‘janela aberta’ e de uma
pirâmide de raios visuais por ela enquadrados,
ou melhor, talhados, rescindidos, de forma a
oferecer um corte vertical, antecipava de algum modo os critérios ópticos sobre os quais
se fundou o aparelho da máquina fotográfica.
(MACHADO, 1994, p.09)
158
Além de dar continuidade a
um modelo clássico de representação, herdado, de certa
forma, do avanço da tecnologia na fabricação de aparelhos ópticos utilizados na
Renascença, a produção comercial da fotografia inaugurou uma forma de reproduzir
imagens quase sem a intervenção humana: uma imagem
de natureza técnica. Pode-se
argumentar, contudo, que a
imagem renascentista já era
de natureza técnica, uma vez
que os efeitos dos diferentes
tipos de pincéis, o uso da madeira, da tela e dos aparelhos
ópticos condicionavam, de
certa forma, o fazer artístico.
A diferença é que, com a fotografia, iniciava-se um período
em que as técnicas não eram
mais só de produção, mas
também de reprodução.
Ricardo De Cristófaro (28 de novembro de
2014)
Relações históricas entre arte e tecnologia
podem ser percebidas nos momentos em
que os artistas buscaram na ciência uma
maneira de aperfeiçoar seus processos de
trabalho, buscando respostas objetivas para
o comportamento de certos materiais, desenvolvendo novas técnicas com a ajuda da
ciência. Nesse sentido, formas embrionárias
de relação entre arte e tecnologia já podem
ser percebidas com a utilização de estudos
relacionados à ótica, ao comportamento das
cores e a métodos relacionados à aplicação
da perspectiva pelo ponto de fuga.
A Revolução Industrial ocorrida no início do
século XIX permitiu um contato maior da
produção artística com processos de produção de manufaturas. Avanços no campo da
química, física, matemática e, consequentemente, das engenharias influenciaram o
imaginário de muitos artistas. Tecnologias
de produção e relação com imagens estão
presentes na produção dos panoramas, na
utilização experimental da fotografia, do
Walter Benjamin, em A obra cinema e de dispositivos eletromecânicos.
de arte na era da reproduti- Desse modo, muito antes da era digital
bilidade técnica, mostra que, a articulação entre arte e tecnologia já se
mesmo antes da fotografia, a manifestava.
obra de arte podia ser reproduzida como forma de exercício pelos discípulos ou para a própria difusão,
como, por exemplo, através da xilogravura
ou da litogravura. Na fusão com a imprensa
e com as artes gráficas, as formas de reprodução das imagens “adquiriram os meios de
ilustrar a vida cotidiana” (BENJAMIN [1936],
1993, p.165). Esse processo de divulgação de
imagens, que ilustrava o cotidiano, ganhou
159
novo impulso com a descoberta da fotografia: “A obra
de arte reproduzida é cada vez mais a reprodução
de uma obra de arte criada para ser reproduzida. A
chapa fotográfica, por exemplo, permite uma grande
variedade de cópias; a questão da autenticidade das
cópias não tem nenhum sentido” (BENJAMIN [1936],
1993, p.165).
Com as reproduções das obras, segundo Benjamin,
perdemos o “aqui e agora”, a existência única da obra,
sua autenticidade. Perdemos a “aura”, essa “figura
singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais
perto que ela esteja” (BENJAMIN [1936], 1993, p.165).
Ao perder a aura, as obras de arte perderam o seu
caráter de ritual e de sagrado. As imagens das catedrais, por exemplo, com seu valor único e autêntico,
a serviço do ritual, da transcendência, passaram a
coexistir com outras imagens criadas para serem reproduzidas em série.
Marc Jimenez, ao comentar o texto de Benjamin,
aponta duas consequências geradas, contraditória e
simultaneamente, pela perda da aura, “uma negativa,
pois ela provocaria um empobrecimento da experiência baseada na tradição; a outra positiva, pois favoreceria a democratização – e a politização – da cultura”
(JIMENEZ, 1999, p.330). Ressalte-se que na época em
que Benjamin refletia sobre isso – década de 1930 –,
os acontecimentos históricos não permitiram que o
entusiasmo acerca de uma possível democratização
da cultura vingasse. No entanto, as reflexões do autor ultrapassaram aquele momento e até hoje acompanham as preocupações contemporâneas sobre o
papel ambíguo dos meios técnicos de reprodução e
transmissão no domínio da arte e da cultura, sobretudo nas formas mais cotidianas intensamente marcadas por processos globais de midiatização.
160
Entendo que estamos presenciando no
momento contemporâneo novos passos
na relação histórica entre arte e tecnologia. O fator que determina diferenças
com o passado certamente é a preponderância na utilização da tecnologia digital,
meio que substitui, congrega e supera as
tecnologias do passado de várias maneiras. Gerencia antigas e novas tecnologias.
Um bom exemplo é a própria fotografia.
Mecânica e analógica no passado, agora
digital. Mas ambas ainda dependentes de
Em primeiro lugar, relati- princípios óticos, lentes, filtros, etc.
vamente ao original, a reprodução técnica tem mais Elen Maria de Souza Friche
autonomia que a reprodu- A sociedade já incorporou, pelo uso do
ção manual. Ela pode, por telefone e de outros mecanismos de coexemplo, pela fotografia, municação, a relação de contato a disacentuar certos aspectos tância, em particular pela internet com
do original, acessíveis à sua popularização nos anos 1990 e, mais
objetiva – ajustável e ca- recentemente, com os dispositivos ‘vespaz de selecionar arbi- tíveis’ e wireless.
trariamente o seu ângulo
de observação –, mas não
acessíveis ao olhar humano. [...] Em segundo lugar,
a reprodução técnica pode colocar a cópia do original em situações impossíveis para o próprio original.
Ela pode, principalmente, aproximar do indivíduo a
obra, seja sob a forma de fotografia, seja do disco.
(BENJAMIN [1936], 1993, p.168)
A perda da aura também provocou uma ruptura da relação espaço-temporal constitutiva da
experiência estética, alterando
sensivelmente a percepção das
obras. Com efeito, a reprodução
técnica alcançou um regime diferente da reprodução manual,
considerada então como falsificação. Benjamin aponta duas razões para isso:
A reprodução técnica permite, por exemplo, que os detalhes das fotos ampliadas sejam vistos e que a orquestra
seja ouvida no disco. Ou seja, as mediações técnicas fazem
com que esses eventos passem a ter uma nova duração no
tempo, o que gera novas formas de produzir e compreender
a obra de arte.
Para Benjamin, “o modo pelo qual se organiza a percepção humana, o meio em que ela se dá não é apenas consi-
161
derado naturalmente, mas também historicamente”
(BENJAMIN [1936], 1993, p.165). A alteração nas formas de percepção, seja do mundo ou da obra de arte,
está ligada, entre outros fatores, à utilização de determinados instrumentos, técnicas e procedimentos
típicos de cada época, o que gera deslocamentos não
só históricos, mas também sociais, políticos e, por
isso, subjetivos. Com isso, temos uma rearticulação
dos meios de produção artística, que também se alteram em busca de outras possibilidades de criação
e de formas de diálogo com as questões emergentes de seu tempo. Isso explica o fato de que, com a
chegada da fotografia, a pintura tenha se libertado
da representação e alcançado outras maneiras de
organização formal que acabaram por gerar novos
movimentos artísticos, como o Impressionismo, por
exemplo. Além disso, surge a possibilidade de copiar
as obras e também de criar novas obras de arte usando as facilidades técnicas e específicas da fotografia,
por exemplo.
Assim, é possível notar que a percepção é alterada,
como consequência do convívio com um enorme fluxo
de imagens que tornam todo o mundo mais próximo.
Esse conhecimento do mundo estabelece-se agora
numa relação espaço-temporal deslocada entre a
imagem reproduzida e o fenômeno capturado pela
imagem originalmente. Segundo Benjamin, a destruição da aura é a característica “de uma forma de
percepção cuja capacidade de captar o semelhante no
mundo é tão aguda que, graças à reprodução, ela consegue captá-lo até no fenômeno único” (BENJAMIN
[1936], 1993, p.101).
Ao desenvolver seus estudos sobre a reprodutibilidade técnica, Benjamin privilegia o cinema como meio
capaz de produzir as alterações mais significativas
nas formas de percepção. Norbert Bolz indica a natureza dessas alterações: “O cinema não é nada mais
nada menos do que a escola de uma forma de per-
162
cepção do tempo, a saber, uma percepção do tempo para o qual não há mais
continuidade, para a qual não há nenhum valor no sentido clássico do termo
” (BOLZ, 1992, p.95).
A nova forma de percepção inaugurada pela fotografia, levada mais adiante
pelo cinema, subverte a noção comum de tempo. Em vez de percebermos o
tempo numa sucessão linear dos acontecimentos, no cinema experimentamos
um ritmo irregular e descontínuo, “feito de empurrões, com as suas superposições e montagens” (BOLZ, 1992, p.95). Essa temporalidade típica do cinema
e da própria experiência da modernidade, segundo Benjamin, nos ensina
a viver em descontinuidade. A percepção dos As novas possibilidades de relação usuário/dispochoques e dos fluxos sitivo proporcionaram um espaço interativo que
de imagem no cinema, explora as sensações de ubiquidade, deslocamento
de acordo com Bolz, faz e simultaneidade, e propiciaram o aparecimencom que seja possível to de ambientes multiusuários e mídia tática com
exercitar “descontinui- grupos e coletivos de ação artística, permitindo
dades num estado de novos esquemas de ação e participação artística.
distração”, o que leva a
percepção a “tomar os Quando se circula na imaterialidade dos territóchoques como rotina” rios digitais, a interatividade permite que tudo se
conecte com tudo, tudo esteja em estado de ‘per(BOLZ, 1992, p.95)
mutabilidade’, de possibilidade e contaminação.
Assim, para se pensar a relação entre arte e tecnologia, deve-se considerar:
• passagem da cultura material para a imaterial;
• estreita relação entre arte e ciência;
• diluição do conceito de artista, que dispersa sua
autoria;
• tecnologias digitais que favoreçam a arte da
participação;
• troca do conceito de objeto artístico pelo de
processo;
• abandono de uma produção artística centrada na
pura visualidade.
163
Desdobramentos na vida social
Na sociedade contemporânea, além da reprodutibilidade técnica, contamos ainda com diversos meios de
comunicação, que nos proporcionam agora novo tipo
de experiência (do mundo e das obras de arte), como
comenta Couchot:
A questão que se coloca então – questão política por excelência – é aquela de uma sociedade
partilhada entre a necessidade de dar conta de
seus (velhos) mecanismos de regulagem, de
mediação e de temporização e a necessidade
imposta por uma revolução tecnológica irreversível para reorganizar seus meios de comunicação, seu acesso ao saber e à informação
e sua apropriação de envolver cada um mais
e mais individual e diretamente em todos os
níveis de decisões possíveis. Uma sociedade
dividida entre o tempo da História – um tempo
que se refere ao seu tempo – e o tempo real,
impaciente e febril das trocas interativas que
torna a espera intolerável, numa sociedade dividida entre a reflexão e o reflexo, entre o signo
e o sinal. (COUCHOT, 1997, p.143)
As novas relações entre o tempo histórico e o chamado tempo real, típico do domínio da tecnologia, provocam alterações nas nossas formas de perceber o
mundo e experimentar as obras de arte que surgem
nesse novo ambiente. Estamos falando de uma sociedade que, cada vez mais, experimenta e conhece o
mundo de forma mediada. Somos pressionados, como
mostrou Couchot, pela urgência de uma forma de comunicação que, por meio das suas formas sincrônicas
de interação, acaba gerando uma forma de percepção
posicionada no fluxo da transmissão.
164
Questão 2
No atual cenário experimentamos um intenso uso de diversas tecnologias em nossa vida cotidiana. Como isso reverbera na produção artística?
Maria Caram Santos de Oliveira
Tanto na produção quanto na temática, o uso intenso de tecnologia
reverbera no fazer artístico contemporâneo.
Citei na questão anterior o Coletivo Gambiologia. Em sua exposição
Gambiólogos 2.0, no Oi Futuro, em 2014, eles fizeram uma interessante mistura entre crítica e uso de tecnologia. Usando em sua maioria
material descartado - televisões velhas, brinquedos, celulares e peças de celulares -, a exposição fazia uso da tecnologia para a criação e a execução de peças e, ao mesmo tempo, criticava o descarte
frequente e intenso, a produção de lixo, a falta de reflexão sobre a
maneira melhor de descartar esse suposto lixo e como prolongar a
sua vida e/ou reutilizá-lo.
No FAD (Festival de Arte Digital) vemos outros usos e outros questionamentos para as tecnologias atuais e mesmo para as “passadas”
com a sua colocação em peças artísticas totalmente voltadas para a
produção de arte tecnológica.
Júlia Nascimento de Oliveira (29 de novembro de 2014)
A arte aliada a tecnologias contemporâneas de produção traz uma
miscelânea de texturas que permitem uma percepção e absorção
maior pelo espectador. Essa mesma arte também pode possibilitar
maior interatividade entre obra e expectador e pode permitir a ruptura de fronteiras culturais, sociais e políticas:
• Culturais, pois o campo da arte passa a ser transitório e volátil, ou
seja, a arte associada à tecnologia permite que se produza sem necessariamente estar ligado diretamente a uma determinada cultura,
daí a caracterização de ser uma arte plural;
• Sociais, pois pode minimizar a diferenciação de classes sociais dentro do mundo da arte. É possível conhecer manifestações artísticas
do mundo inteiro através da internet. A própria disponibilização da
arte por seus autores nas redes, de forma gratuita, é uma forma
expressiva de popularização da arte;
165
As transmissões jornalísticas ao vivo, via satélite, vistas em todo o mundo simultaneamente, a comunicação pessoal e massiva dos telefones ou do computador nas redes sociais, os jogos e também as obras de
arte alteraram sensivelmente nossa forma de percepção do mundo.
Assistimos, atualmente, à ascensão de velozes processos de produção, reprodução, recepção e transmissão de informações, assim como de difusão de
imagens, nas quais diversas passagens e trajetos acabam por deslocar ainda mais a experiência única do
aqui e agora da aura, tal como definida por Benjamin,
e provocar, assim, uma ruptura ainda maior na relação espaço-temporal constitutiva da experiência
estética. Agora, não se trata mais de experimentar a
aparição única de uma coisa distante, e, sim, de aproximar, conectar o próximo e o distante, proporcionando a interação entre sujeitos, objetos e signos que se
encontram distantes no espaço e próximos no tempo.
A produção artística contemporânea também se nutre dessas novas relações espaço-temporais em um
intenso hibridismo entre suportes, domínios e possibilidades de criação. A popularização de inúmeros
dispositivos e a facilidade de acesso à rede ampliaram
sensivelmente as possibilidades de circulação, de um
modo geral, da produção simbólica (texto, som, imagem em movimento).
O que ocorre é um trânsito entre os mais diversos
suportes, indo do desenho em papel, passando pela
pintura, performance, fotografia, instalações que,
combinadas com opções e estratégias pessoais que
incorporam técnicas bem distintas (tradicionais e
novas), fazem da arte contemporânea um amplo e
dinâmico território.
166
Como percebemos, existe um enorme escopo de possibilidades subjetivas, materiais
e técnicas que podem ser articuladas livremente pelos artistas. Nesse gigantesco panorama, as mais diversas técnicas foram aos
poucos sendo incorporadas pela produção
artística, reconfigurando os circuitos, as formas da experiência estética e o domínio da
arte contemporânea.
• Políticas, pois a arte digital
tem sido utilizada recorrentemente como veículo de manifestações políticas, popularizada cada vez mais pelas
redes sociais.
Porém, esse campo de discussão pode também se dirigir
para questões mais compleHoje em dia assistimos a outros desdobra- xas como, por exemplo: seria
mentos das relações entre arte e tecnologia, a utilização dos aplicativos
ampliando e rompendo fronteiras. Desde o voltados à arte, que permifim da década de 1990 que os telefones ce- tem tirar fotos profissionais,
lulares se colocaram fortemente como ins- transformar rascunhos em
trumento de comunicação, mas foi após a obras de arte com apenas um
primeira década do século XXI que houve clique, dentre diversos outros
uma convergência das tecnologias em torno encontrados gratuitamente,
da internet, culminando no cenário atual: um uma forma de banalização do
processo criativo? Ou seria
uma forma contemporânea de se relacionar e permear as múltiplas camadas sociais que nos envolvem em
nosso cotidiano?
Acredito também que a agilidade de informações, bombardeando constantemente os meios de comunicação em
massa, a subjetivação do conceito de presença e as sobreposições das camadas de interação social fazem com
que o processo criativo seja constantemente reinventado,
adequando-se à dinâmica da sociedade contemporânea,
na qual o tempo disponível é cada vez mais curto, assim
como a urgência da absorção de informações
167
2. Em torno da comunicação
e da arte na contemporaneidade. Disponível em:
https://www.academia.
edu/4147070/Em_torno_
da_comunica%C3%A7%C3%A3o_e_da_arte_
na_contemporaneidade.
Apresentado na VIII edição
dos Seminários Internacionais Museu Vale - “Cyber
-arte-cultura: a trama das
redes” - 13 a 17/03/2013.
3.POPPER, Frank. Art of
the eletronic age. Londres:
Thames and Hudson, 1997
e DOMINGUES, Diana.
(org). A arte do século XXI,
a humanização das tecnologias. São Paulo: Editora
Unesp, 1997.
4. KRAUSS, Rosalind.
A voyage on the north
sea – Art in the age of the
post-medium condition.
Nova York: Thames &
Hudson, 1999 e KRAUSS,
Rosalind. Two moments
in the post-medium
condition. In: October.
Spring 2006, No. 116, p.
55-62. Massachusetts: MIT
Press, 2006. Em ambos os
textos Krauss desenvolve
e amplia a ideia de uma
condição pós-mídia.
novo regime tecnológico2 , trazendo desdobramentos na arte, tanto na produção quanto nas formas
de circulação e construção do conhecimento. Os
smartphones, tablets, notebooks e, sobretudo, as
redes sem fio disseminadas no espaço urbano reconfiguraram fortemente a infraestrutura tecnológica de acesso às redes, gerando novas formas da
experiência estética reconfigurando a própria vida
cotidiana e, também, o domínio da arte.
Se anteriormente havia todo um regime diferenciado em um circuito apartado para abrigar as manifestações artísticas de traço mais tecnológico
como festivais e mostras, hoje em dia tudo isto se
torna um grande circuito composto por obras nos
mais diversos suportes. Pouco a pouco, a própria
história da arte tecnológica3 ganha novos contornos e começa a dialogar de forma ainda mais intensa com a história da arte, por um lado, e, por
outro, com as tecnologias envolvidas em inúmeros
agenciamentos sociais na vida cotidiana, gerando
um circuito ampliado em um contexto pós-mídia4
no qual as especificidades das mediações tecnológicas não são determinantes para a definição das
obras. Tudo ocorre num intenso trânsito entre
suportes, técnicas, procedimentos e estratégias,
abarcando tanto os suportes mais tradicionais
quanto os mais novos.
Referências
BARILLI, Renato. Curso de Estética. Lisboa: Editorial
Estampa, 1989.
BOLZ, Norbert. Onde encontrar a diferença entre uma
obra de arte e uma mercadoria? In: Revista USP, nº 15.
São Paulo: Editora da USP, 1992.
COUCHOT, E. A arte pode ainda ser um relógio que
adianta? O autor, a obra e o espectador na hora do
tempo real. In: DOMINGUES, Diana. (org). A arte do
século XXI, a humanização das tecnologias. São Paulo:
Editora Unesp, 1997.
GIMENEZ, Marc. O que é estética? São Leopoldo:
Editora da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, 1999.
MACHADO, Arlindo. As imagens técnicas: da fotografia à síntese numérica. In: Imagens nº 3, São Paulo:
Editora da Unicamp, 1994.
168
169
Yuri Amaral (1 de dezembro de 2014)
Sendo a arte uma forma poderosa de manifestação da subjetividade do autor/artista/criador sentida sobre a rotina e a
realidade, se mudarmos os mecanismos de percepção/interação/troca, consequentemente o resultado disto também
será alterado, criando ad infinitum novas formas resultantes
desta percepção.
Hoje ainda temos o choque de diversas gerações, saudosistas de um tempo no qual nunca viveram e que buscam, à
sua maneira, reviver esse passado. Ora, a percepção daqueles que viviam naquela época (seja ela qual for) é evidentemente diferente da percepção dos que vivem hoje, principalmente pelos meios de conexão com o real. Acho divertida
essa reconstrução e readequação das experiências “do
passado” (re)vividas pelos sujeitos do agora, reconstruindo
significados a partir do que eles acreditam.
Isso, citando apenas um exemplo. A acessibilidade, assim
como permite alcance/produção/leitura por muitos, também permite o controle e a institucionalização do que não
quer ser reconhecido como tal, “devolvendo” para o mundo
ressignificado aquilo que veio de seus singulares.
Para citar alguns exemplos, simples e, talvez, equivocados: perfis no twitter de microcontos, (a)temporais em sua
essência; páginas no facebook de pessoas que produzem e
publicam sua maneira de perceber algo (seja lá o que for
esse algo), fotógrafos de Instagram... Seria tudo isso, e mais
um monte, [novas] formas de arte?
E isto me deixa muito em dúvida: o que, de fato, legitima a
arte como tal? O que difere um fotógrafo de exposição em
um espaço feito para tal de um fotógrafo de instagram? Não
são, ambos, autores de suas percepções?
170
Bernardo Romagnoli Bethonico (2 de dezembro de 2014)
Em experiências de “tempo real”, cada vez mais mediadas,
não raro mergulhamos as cabeças (separadas do tronco)
em smartphones, computadores, transmissões ao vivo. É um
problema comum que o tempo de nossas vidas não suporte
a espera ou a entrega. É preciso ter a ilusão do controle do
fluxo da comunicação, é preciso participar, atualizar, curtir
o tempo todo, diz-nos o ritmo dos hiperlinks e das redes
sociais.
Diante disso, são importantes na produção artística atual
as questões do aqui, do agora, da percepção do corpo e da
relação entre pessoas, objetos e signos, para uma crítica
do real.
Questão 3
O que ocorre com os processos de fruição artística quando experimentamos obras que se utilizam de diversas tecnologias?
Luiza Alcântara (29 de novembro de 2014)
Maria, concordo com sua responda a mim. Quando eu disse
“Gosto de pensar a participação do espectador para além
de manusear e entrar nas obras”, é nesse sentido que você
aponta. Porém, em grande parte da produção dessas obras
a interatividade está associada a: aperte isto e veja o que
acontece, puxe a alavanca, desenhe, etc. Acho pobre esse
tipo de concepção, não sei dizer de que período são essas
obras, assim como Eduardo, mas vejo que está mudando,
sim, toda a forma de participação.
Eduardo, eu percebo que ‘artemídia’ está lidando com
questões para além da interatividade. Como eu disse na
resposta anterior, ela aponta para questões de tempo-espaço, duração da obra, materialidade, orgânico e não orgânico de formas muito potentes. Assim, também trabalham
com questões políticas e simbólicas muito fortes. Podemos
pensar no feminismo que fala de corpos pós-humanos, os
ciborgues, e por aí vai.
171
Ricardo De Cristófaro (28 de novembro de 2014)
Nesse tópico acredito que proposições artísticas que lidam
com a produção de realidade virtual tecnológica apresentam algumas experiências enriquecedoras para o campo
da arte que estão além da topografia do espaço real e da
tradicional materialidade dos objetos sólidos. As características peculiares desses territórios e os mecanismos de
relação do homem com os mesmos tornaram possível o
aparecimento de percepções, lógicas e liberdades advindas
de experiências singulares, abrangendo toda uma ontologia de telepresença, de imersão sensorial e conectividade
imaterial.
Nesse campo é relevante destacar o esforço que tem sido
despendido por artistas e cientistas no intuito de produzir
instrumentos de relação com os ambientes virtuais que
possam potencializar a “convicção de realidade” destes
espaços e o “sentido de presença” no interior dos mesmos.
Essa “convicção” e esse “sentido” têm sido alcançados por
meio da utilização de dispositivos que geram a percepção
de “imersão na imagem”.
Certamente, um nível diferenciado de “imersão na imagem”
se dá nos ambientes de realidade virtual. O que ocorre de
específico nesses ambientes está relacionado à possibilidade de o sujeito se fazer presente de maneira muito mais
efetiva, através de ações e deslocamentos que se processam em ambientes no “interior” da imagem.
São ambientes que configuram uma espécie de geografia
diferente da experiência no mundo físico e palpável, mas
que não são menos reais por não serem materiais. O fato
de esses ambientes não serem materiais não significa que
são irreais e, embora destituídos de fisicalidade, podem
ser exatamente lugares que permitem formas de relação
e inserção.
configurando roteiros sem determinação. Lugares sem trajetos, frente ou verso, certo ou errado, que dialogam com
a oscilação entre próximo e distante, presente e ausente,
na convergência de uma existência determinada por uma
participação.
Aprender a se relacionar com a realidade virtual pode ser
compreendido como um modo de adquirir certo estilo de
relação, um modo diverso de usar o corpo próprio, de enriquecer a capacidade perceptiva e reorganizar nossos esquemas corporais.
Maria Caram Santos de Oliveira (27 de novembro de 2014)
Luiza, concordo com você em parte. Acredito realmente que
existam muitos projetos que simplesmente joguem com a
ideia de “interatividade” ou “tecnologia” em detrimento do
projeto artístico. No entanto, me interessam muito propostas que realmente jogam com a participação do espectador,
principalmente quando fazem isso misturando tecnologias
“obsoletas” com novas técnicas.
Eduardo, eu creio que a questão da fruição e do tempo é
essencial nessas novas obras. A meu ver, as pessoas disponibilizam cada vez menos tempo e atenção para a fruição
(não apenas de obras, mas de vivências cotidianas também).
Nesse ponto, vejo a arte utilizando a questão temporal como
ponto de tensão, seja estendendo o tempo, desafiando o
espectador a esperar ou abandonar a obra, ou reduzindo a
obra a formatos mínimos, para encaixar e questionar esse
padrão de tempo cada vez mais curto.
Lugares a serem perpassados, visitados internamente em
suas topografias, por caminhos escolhidos pelo público.
Escolhas que podem ser mudadas sob diversas ordens,
172
173
Marcela Silviano Brandão Lopes*
Artesanias
do desejo
Afogando em números
Assisto a um programa na TV sobre ciclistas, bicicletas e
campeonatos. Bicicletas lindas, levíssimas. O uniforme
dos ciclistas, supercoloridos, justos nos corpos. Capacetes
também coloridos, com relevos e detalhes aerodinâmicos.
Tudo pensado e desenhado para obter maior velocidade. As
bicicletas, magrelas, com pouca massa, com pneus ultrafinos. As roupas colantes mostram corpos moldados pelo
esporte. Musculosos e sem gordura alguma. Nada pode ser
a favor da inércia. Os relevos nos capacetes acompanham o
traçado do vento. E além da velocidade, a segurança: capacetes, joelheiras, óculos cortavento, cotoveleiras. Leveza e
inteligência. Juntas. Tudo projetado e planejado.
* Professora
do curso de
Arquitetura e
Urbanismo na
PUC Minas,
doutoranda na
Escola de Arquitetura da UFMG,
pesquisadora
dos grupos de
pesquisa PRAXIS
e INDISCIPLINAR, ambos da
UFMG.
174
Quem quer comprar uma bicicleta, mesmo que seja apenas
para seu lazer, encontra uma variedade infinita de opções.
E não só no quesito beleza-cor-preço. É preciso estudar
o assunto antes da compra. Além disso, será impossível
sair da loja sem o kit capacete, cotoveleira e joelheira. As
estatísticas mostram o quanto é perigoso andar de bicicleta.
Segurança, antes de tudo!
E as estatísticas estão por toda parte. Elas também
mostram, por exemplo, como é perigosa a maternidade.
Durante a gestação é preciso fazer muitos exames. De sangue, de urina, de fezes. Ultrassom, doppler e outras imagens. E é ótimo, dá quase para ver com quem a criança
vai se parecer antes de ela nascer. Exames para ver se ela
será normal, se não tem nenhuma doença. Controle e prevenção! Ah, é preciso também fazer aulas com enfermei-
ras especializadas. De preferência, para o casal “grávido”.
Aula de respiração. Aula de amamentação. Alimentação.
Alongamento. Agachamento. E o design, o que tem a ver
com isso? É importante que a informação seja atraente, de
fácil assimilação, de imediata compreensão.
O design é importante também na moda, na roupa do bebê,
na roupa da jovem mamãe. Sutiã reforçado. Sutiã para amamentar em público. Sutiã bege (ops!, nude) para não marcar
a roupa. Sutiã colorido para a mamãe ficar mais sexy.
Depois do parto, aula para aprender a cuidar do filho, criá-lo
sem traumas. A mãe não sabe educar, a avó desaprendeu,
o pai, coitado, está entrando em cena há pouco tempo. Mas
a moça do programa da TV sabe.
Estudou psicologia, pedagogia, Questão 1
filosofia, biologia, mapa astral. E É possível pensar o design para além dos
tudo pode ser adquirido aos mon- pressupostos do mercado e da indústria?
tes nas bancas de revistas.
Ricardo De Cristófaro (3 de dezembro de
Já no programa sobre saúde se 2014)
ensina a cuidar do corpo. Como Acho que é possível. Entretanto, quando
emagrecer. Alimentar-se melhor. estamos diante de objetos que possuem
Ser saudável! Um amigo meu dis- uma relação de grande intimidade com
se uma vez que na nossa infância a anatomia humana, outras questões se
a rúcula não tinha sido descober- fazem presentes.
ta ainda. Será? Pois agora vieram
a quinoa, o arroz selvagem, o ar- Muito do que rege o comportamento das
roz de jasmim, a comida francesa, pessoas diante de determinados objetos,
a comida japonesa, a peruana, a em termos de percepção, emoção, indavietnamita e, a melhor, a culinária gação e mesmo rejeição, está vinculado
criativa, inventiva, internacional! a um repertório cultural particular, a
uma significação, à presença ou não de
Junto ao programa de culinária certos objetos no interior e nos hábitos
tem aquelas propagandas – que de determinadas sociedades.
nem parecem propagandas – que
mostram utensílios de cozinha Os objetos cotidianos causam, nas peslindos, facas específicas para soas, determinados estímulos, a exemplo do desejo de interação com o objeto
por um processo de recriação de situa-
175
cada corte, em inox, coloridas, grandes, pequenas, e livros
de receitas bem diagramados.
ções conhecidas, ou pela vontade de vivenciar uma
nova experiência.
Mas o programa não ensina apenas a cozinhar, ensina também a comer. Comer melhor, comer de forma mais saudável, comer com elegância e estética. E também ensina a
beber. É preciso saber harmonizar. Há de se conhecer as
melhores vinícolas, as cervejarias mais artesanais. Tudo
com nomes e sobrenomes. As papilas devem ser estimuladas e o olhar deve ser educado.
Outros objetos nos levam a rememorar, a ter fantasias, desejos e lembranças. Os objetos também
podem moldar comportamentos, formar conceitos
ou reafirmar “pré-conceitos” que temos sobre determinadas formas e assuntos.
A moça que apresenta o programa – mas pode ser um cara,
homem na cozinha é cool – é superviajada. Aí tem aqueles
programas sobre viagens. Lugares certos. Dicas práticas.
Pontos turísticos, restaurantes, lojas, feiras. E é lógico que
os livros e os guias são superdidáticos.
Além, é claro, das malas anunciadas nos reclames. Com
duas rodinhas, com quatro rodinhas, mais fáceis para puxar,
melhor para empurrar, coloridas para fácil identificação na
esteira das bagagens, de material leve para não pesar na
balança do aeroporto.
O design inteligente requer designers inteligentes, criativos
e “proativos”, que saibam trabalhar em ambientes colaborativos, em busca de desenhos “diferenciados” e “divertidos”! Trata-se de uma atividade que ocupa o corpo e a mente do designer, no horário do trabalho e fora dele. Trata-se
de um trabalho que não produz apenas um produto, mas
também imagens, ideias, patentes, direitos autorais. Em outras palavras, trata-se de um “trabalho imaterial” (NEGRI;
HARDT, 2005, p.149).
Esse design inteligente, testado cientificamente, desenhado para prevenção, segurança, prazer e lazer, exige pouco
de quem vai adquirir o seu produto. Aquilo que era fácil,
intuitivo e corporal é anunciado como sendo assunto de
especialistas. É o design da estatística, da segurança, mas,
principalmente, do consumo, para o mercado.
176
Várias configurações de intimidade ocorrem entre
os homens e os objetos. Há objetos que são íntimos por pertencerem a nós; outros, mais distantes, por pertencerem a terceiros. Mas há também
uma forma de intimidade que não diz respeito à
posse do objeto, e, sim, a um sentimento de saber
lidar com este. Certamente, esse fato está relacionado ao design e a um sentido de pregnância, à
carga denotativa do objeto, à ambiência, aos hábitos e comportamentos que assumimos diante
da particularidade dos objetos. É uma espécie de
dimensão natural que acompanha a própria evolução dos objetos através da história humana, condicionando, de modo educativo e cultural, uma regularidade de ação, sempre indicando maneiras de
agir. Diante de muitos objetos, sem qualquer tipo
de aprendizado, sentimos intimidade e sabemos
como usá-los e operá-los.
Uma percepção de intimidade entre o homem e
determinados objetos configura-se fortemente na
conformação da anatomia humana à forma total
ou a um detalhe do objeto, e uma infinidade de objetos apresenta esta possibilidade de casamento
de ajuste confortável e receptividade à anatomia
humana.
O corpo do homem está virtualmente acoplado a
determinados objetos e seus usos comuns, e a
eficiência dessa conformação é, frequentemente,
uma das condições para o bom funcionamento de
177
E para ser consumido não basta o produto ser necessário,
ele precisa ser desejável. Precisa invadir também o corpo
e o imaginário de quem vai comprá-lo. Trata-se um “capitalismo cognitivo”, afinal: “O que é produzido [...] não são
apenas bens materiais, mas relações sociais e formas de
vida concretas”. (NEGRI; HARDT, 2005, p.135)
O movimento que habito
Como escapar, então, desse sistema político-corporal? A
resposta está justamente no efeito paradoxal do funcionamento desse sistema. Se, cada vez mais, o poder do capital nos invade por dentro, é justamente de dentro que ele
poderá ser enfrentado. Como bem resume Pelbart (REF):
quando parece que “está tudo dominado”, no extremo da linha se insinua uma reviravolta que ressignifica a própria dominação como segunda. Aquilo que
parecia submetido, subsumido, controlado, dominado, “a vida” revela no processo mesmo de expropriação sua positividade indomável e primeira. Não
se trata de romantizar uma capacidade de revide e
de resistência, mas de repensar a relação entre os
poderes e a vitalidade social na chave da imanência.
Poderíamos resumir esse movimento do seguinte
modo: ao biopoder responde a biopotência, ao poder
sobre a vida responde a potência da vida, mas esse
“responde” não quer dizer uma reação, já que a potência se revela como o avesso mais íntimo, imanente e coextensivo ao próprio poder – daí a dificuldade
de separar o joio do trigo, de saber de que lado estamos. (PELBART, 2014)
Nessa perspectiva, se o corpo é moldado pelos aparatos
tecnológicos, ele é também escultor! O movimento precisa
dele. No caso das bicicletas, se o corpo está posicionado
mais à frente, consegue-se mais velocidade. Pedalando
sem sentar no banco, mais velocidade ainda. Para o alto,
para baixo, para os lados. O corpo dirige o movimento, cria
a dança, faz deslizar na pista, descolar do chão. E essa inte-
178
ligência é também pura intuição, ciência da rua, aprendida com
os pais, irmãos, vizinhos, mas, principalmente, andando de
bicicleta. E é assim: andar de bicicleta a gente nunca esquece...
Artesanias do desejo
Didi-Huberman (2011), quando se refere à experiência, afirma
ser ela “indestrutível, mesmo que se encontre reduzida às
sobrevivências e às clandestinidades de simples lampejos à
noite”. E sugere: “Devemos, portanto [...] nos tornar vaga-lumes e, assim, formar novamente a comunidade do desejo, a
comunidade de lampejos emitidos, de danças apesar de tudo,
de pensamentos a transmitir” (DIDI-HUBERMAN, 2011, p.154).
E aí encontramos, nas soluções engenhosas e bem-humoradas que acontecem à revelia das estatísticas e do mundo
especializado, invenções que não se deixam disciplinar, não
se cristalizam no tempo, nem no espaço, justamente porque
estão em movimento.
Podemos identificá-las nas respostas cotidianas dos “homens
ordinários” (MAN), dos “homens lentos” (SANTOS), subversivas em relação àquelas designadas pela ciência, por se tratamuitos objetos. Esse acoplamento operacional, simples e direto, ocorre, por
exemplo, na relação com muitas máquinas, ferramentas, com instrumentos
e utensílios cotidianos não autônomos, que só funcionam como extensões
do corpo humano por serem altamente dependentes da motricidade e da
energia de nossos órgãos, a exemplo da força exercida pelas pernas, pelos
braços e mãos.
O hábito e o modo de relação com objetos cotidianos dessa natureza nos
fornecem e estabelecem em nossa memória um arquivo de referências que
molda nossas ações e nossos movimentos. Naturalmente nossas mãos e
nossos dedos se acomodam a esses objetos.
Leilane Antunes de Paula Neves Maia (6 de dezembro de 2014)
Creio que pensar sempre é possível. O que eu me pergunto é se nós podemos produzir o design por nós mesmos. Se é possível termos uma educação
estética e prática na escola de base para que nós tenhamos a capacidade de
179
rem de ações “menores” (DELEUZE) e mais difusas que as
subsidiadas pela eficiência e segurança. São invenções da
ordem do subversivo porque extrapolam o estabelecido e
estão na esfera do imprevisível. Inspirados em Boaventura,
vamos chamá-las aqui de “artesanias”:
O lugar de enunciação da ecologia de saberes são
todos os lugares onde o saber é convocado a converter-se em experiência transformadora. Ou seja, são
todos os lugares que estão para além do saber enquanto prática social separada. [...] É este o terreno
da artesania das práticas, o terreno da ecologia de
saberes. (SANTOS, 2008, p.33)
As artesanias, além de não se apoiarem exclusivamente no
capricho e na eficiência, podem surgir na emergência dos
acontecimentos, e, com isto, serem engendradas no precário e inventadas a partir do imprevisto e da improvisação,
resolvidas imediatamente, no cotidiano, em ato.
Milton Santos, quando compara as zonas “luminosas” com
as “opacas”, afirma que na primeira a naturalização do
instituído – inclusive dos objetos técnicos produzidos –, a
regularização e a racionalização dos espaços criam “uma
mecânica rotineira, um sistema de gestos sem surpresa”.
Em oposição, nas zonas opacas, a precariedade faz surgir
o criativo, o aproximativo, o imprevisível (SANTOS, 2008,
p.326).
Já Canclini (1997) nos chama a atenção para a interação e a
hibridação de várias referências locais, nacionais e transnacionais presentes nessas invenções. Sob nosso ponto de
vista, tal hibridação permite às artesanias escaparem de
qualquer ordem de valor dicotômica, que separe o bom e o
belo do mau e do sem valor, já que são soluções carregadas de urgência e emergência, que nos surpreendem pela
forma inventiva e às vezes inusitada em juntar e misturar,
resultando em forma-ação, conteúdo e intenção em ato,
estética e política hibridadas.
180
E quando o material usado nas artesanias é a sucata, acontece uma
subversão maior, um “golpe” no sistema de produção: o tempo usado na fabricação do objeto descartado é revertido para o saber-fazer
da invenção livre, sem ganho nem mais-valia para o capitalista:
Acusado de rou- pensar o design e, também, se quisermos,
bar, de recuperar ter habilidades técnicas para fazer uma
material para seu peça de design, ou saber como fazer.
proveito próprio
e utilizar as má- Dalba Roberta Costa de Deus (8 de dezemquinas por conta bro de 2014)
própria, o traba- Bom, vou um pouco na contramão das
lhador que “tra- respostas dos meus colegas, talvez até
balha com sucata” com uma opinião simplista demais e muisubtrai da fábrica to ingênua, mas é meu ponto de vista nestempo (e não tan- te momento.
to bens, porque
só se serve de Acho difícil pensar o design além dos
restos) em vista pressupostos do mercado e da indúsde um trabalho tria, até porque o design surge depois
livre, criativo e da Revolução Industrial, como uma esprecisamente não tratégia de ampliação dos lucros das
lucrativo. Nos indústrias. No Brasil, o design teve seu
próprios lugares impulso na década de 1950, com o desenonde reina a má- volvimentismo e a rápida expansão indusquina a que deve trial. O International Council of Societies
servir, o operário of Industrial Design (ICSID), conselho
trapaceia pelo internacional que protege e promove os
prazer de inven- interesses do profissional de Desenho
tar produtos gra- Industrial, define design como “uma atituitos destinados
somente a significar por sua obra um saber-fazer pessoal e
a responder por uma despesa a solidariedades operárias ou
familiares. Com a cumplicidade de outros trabalhadores [...]
ele realiza “golpes” no terreno da ordem estabelecida. Longe
de ser uma regressão para unidades artesanais ou individuais de produção, o trabalho com sucata reintroduz no espaço
industrial (ou seja, na ordem vigente) as táticas “populares”
de outrora ou de outros espaços. (CERTEAU, 1994, p.82-83)
181
Vale ressaltar que não preconizamos aqui uma mudança
de “cardápio”, e muito menos uma idealização romântica
de uma identidade “genuína” ou de um modo de fazer “original”. Antes de tudo, é preciso perceber que tais artesanias
não são o avesso de uma realidade que se pretenda normatizar, mas que são parte inerente e potente dessa realidade.
E como bem já observou De Certeau:
A criação é perecível. Ela passa, pois é ato. [...]. A
festa não se reduz aos registros e aos restos que ela
deixa. Por mais interessantes que sejam, esses objetos “culturais” são apenas os resíduos do que não
mais existe, a saber, a expressão ou a obra – no sentido pleno do termo. Ligada desse modo à atividade
social que ela articula, a obra perece, portanto, com
o presente que ela simboliza. Ela não se define por
sobreviver a si própria, como se o trabalho de uma
coletividade sobre si mesma tivesse como finalidade
encher os museus. Ao contrário, a obra é a metáfora
de um ato de comunicação destinado a cair, estilhaçando–se e a permitir assim outras expressões do
mesmo tipo, mais distantes no tempo, apoiadas em
outros contratos momentâneos. Muito ao contrário
de se identificar com o raro, o sólido, o dispendioso
ou o “definitivo” (características da obra-prima, que
é uma patente), ela visa se esvanecer naquilo que ela
torna possível. (CERTEAU, 1995, p.243-244)
Nossa intenção é de, colocando lado a lado as invenções
daqueles considerados especialistas do design com as
ações daqueles considerados leigos do ofício, promover a
discussão sobre a validade desta diferenciação, como já o
fez Boaventura quando recorreu à “douta ignorância” de
Nicolau de Cusa:
A designação “douta ignorância” pode parecer contraditória, pois o que é douto é, por definição, não
ignorante. A contradição é, contudo, aparente já que
ignorar de maneira douta exige um processo de co-
182
nhecimento laborioso sobre as limitações
do que sabemos. (SANTOS, 2008, p.15)
Diante disso, há que se pensar numa necessária
“profanação” daquelas ações ainda hoje crédulas
das disjunções pretendidas pela modernidade
(prática/teoria, saber/fazer, ciência/técnica/cultura) – seja pelo contágio com essas outras dinâmicas ou pelo (re)uso incongruente do que foi
sacralizado:
Uma das formas mais simples de profanação ocorre através de contato (contagione)
no mesmo sacrifício que realiza e regula a
passagem da vítima da esfera humana para
a divina. Uma parte dela (as entranhas,
exta: o fígado, o coração, a vesícula biliar,
os pulmões) está reservada aos deuses, enquanto o restante pode ser consumido pelos
homens. Basta que os participantes do rito
toquem essas carnes para que se tornem
profanas e possam ser simplesmente comidas. Há um contágio profano, um tocar
que desencanta e devolve ao uso aquilo
que o sagrado havia separado e petrificado.
(AGAMBEN, 2007, p.66)
vidade criativa cuja finalidade é estabelecer as qualidades multifacetadas de objetos, processos, serviços e seus sistemas em ciclos
de vida inteiro. Portanto, design é fator central da humanização inovadora de tecnologias e o fator crucial de intercâmbio cultural e
econômico” (2012).
Dessa forma, acho que pensar o design para além dessa funcionalidade é primordial, mas não desvinculado do mercado e da indústria.
Nas palavras de Maíra Fontenele Santana: “se o papel do design
está voltado para a humanização inovadora de tecnologias e é fator
crucial de intercâmbio cultural e econômico, deve ser tanto na interação do usuário com o objeto quanto na interação do produtor com
o objeto produzido e na aproximação do produtor com o usuário e a
183
Assim, outro campo de atuação se abre para o designer. Não
mais aquele que apenas soluciona problemas (afinal, o que
é um problema?), mas também que cartografa, evidencia,
articula, e, com isto, constrói outras tessituras de saberes
e potencializa outros possíveis:
Produzir o novo é inventar novos desejos e novas
crenças, novas associações e novas formas de cooperação. Todos e qualquer um inventam, na densidade social da cidade, na conversa, nos costumes,
no lazer – novos desejos e novas crenças, novas associações e novas formas de cooperação. A invenção
não é prerrogativa dos grandes gênios, nem monopólio da indústria ou da ciência, ela é a potência de
todos e de cada um. (PELBART, 2011, p.23)
Entretanto, o risco de captura, cooptação, capitalização estará sempre por perto, e novas “linhas de fuga” (DELEUZE)
devem ser inventadas o tempo todo. O movimento não pode
parar.
REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo
Editorial, 2007.
CANCLINI, Nestor García. Culturas Híbridas: estratégias para
entrar e sair da modernidade. São Paulo: Editora EDUSP,
1997.
DE CERTEAU, Michel. A Cultura no Plural. Campinas: Editora
Papirus, 1995. (Coleção Travessia do século)
184
sociedade, tendo a responsabilidade e o compromisso de diminuir a lacuna que provoca a alienação do trabalho e alienação
do consumo”.
Thaís Mor (8 de dezembro de 2014)
Hoje convivemos com o crescimento da economia criativa.
“Diferenciações” nos produtos e serviços de design tentam ir
muito além do desejo, da funcionalidade e da forma. E chegamos à citação do texto: Didi-Huberman (2011), quando se refere
à experiência, afirma ser ela “indestrutível, mesmo que se
encontre reduzida às sobrevivências e às clandestinidades de
simples lampejos à noite”.
O design “fala” e retrata contextos históricos e econômicos
de cada época e espaço, ele é capaz de captar movimentos e
delinear origens. Hoje temos um design submetido aos desejos
já estabelecidos antecipadamente e globalmente. Um design
“assistencialista”, massivo e imediato.
Oposto ao excesso ou à perda da qualidade e intenção do objeto, o design vive e tenta reconstruir e resgatar a identidade de
um movimento, o que chamamos de EXPERIÊNCIA. Criar novos
hábitos de vida, formas mais simples de consumo, produtos
com maior durabilidade, linhas de produção com menos impacto ambiental e uma compra consciente pelos consumidores
finais colocam o design como inteligência no uso da matéria e
autônomo diante do domínio econômico. O discurso, o ciclo de
produção, a proveniência da matéria-prima, uma comunicação
mais organizada, todos os processos são concebidos em cima
de uma ideia, de um conceito e um ideal que são construídos
e fazem parte de uma EXPERIÊNCIA (que marca e fica) e que
cada vez mais pode ser utilizada para definir novos valores.
__________. A invenção do Cotidiano. Petrópolis: Editora
Vozes, 1994.
Reginaldo Luiz Cardoso (9 de dezembro de 2014)
Marcela, gostei muito do seu texto, da estratégia que você utilizou para montá-lo. Primeiro apresentou a empiria e depois
partiu para o campo da análise.
DIDI-HUBERMAN, A sobrevivência dos Vagalumes. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2011.
Bem, vamos ao tópico. Dizer que sim ou que não, penso, é cair
em duplo cego: o “sim” seria uma espécie de capitulação ao
185
HARDT, Michael; NEGRI, Antônio. Multidão. Guerra e democracia na era do Império. Rio de Janeiro: Editora Record,
2005.
PELBART, Peter Pál. Vida Capital. Ensaios de Biopolítica. São
Paulo: Iluminuras. 2011.
PELBART, Peter Pál. Biopolítica e Contraniilismo. Disponível
em: <http://blogs.cultura.gov.br/culturaepensamento/files/2010/02/const-comum_Peter-Pal-PELBART.pdf>.
Acesso em: ago. 2014.
______. A filosofia à venda, a douta ignorância e a aposta
de Pascal. Revista Crítica de Ciências Sociais, 80, Março
2008: 11-43. Disponível em: <http://www.ces.uc.pt/myces/
UserFiles/livros/47_Douta%20Ignorancia.pdf>. Acesso em:
jul. 2014.
SANTOS, Boaventura. A filosofia à venda, a douta ignorância
e a aposta de Pascal. Revista Crítica de Ciências Sociais, 80,
Março 2008: 11-43. Disponível em: <http://www.ces.uc.pt/
myces/UserFiles/livros/47_Douta%20Ignorancia.pdf>.
Acesso em: jul. 2014.
SANTOS, Milton. A natureza do espaço. São Paulo: EDUSP,
2008.
mercado, uma maneira de dizer explicitamente que não há alternativas ao atual sistema econômico; o “não” poderia indicar
uma espécie de pensamento ingênuo no qual, acredita-se, desde Trotsky, que o combate ao sistema somente seria eficaz se
fosse feito de dentro para fora. Daí a complexidade da pergunta
cujo campo de possibilidades situo em outro eixo.
Tomo aqui como referência a fala do designer Marc Kandalaft:
“il est essentiel que le designer ait pour objectif d’humaniser la ville”. De fato, qualquer que seja a questão do design hoje, passa
pelas cidades e, consequentemente, pelos corpos (como nos
lembra a Marcela Brandão). E, desta vez, penso em Foucault,
lá na Microfísica do Poder, quando afirma que “na verdade, nada
é mais material, nada é mais físico, mais corporal que o exercício do poder”.
Apesar de o design atravessar a história, na sua versão moderna ele aparece, inexoravelmente, junto com o desenvolvimento
da microeconomia, resultando nos métodos do melhor posicionamento de um produto no mercado e, com isto, facilitar a
sua venda (a Valéria e a Dalba falaram muito bem sobre isso!).
Tomo como exemplo uma publicação que saiu há poucos dias
em encarte no jornal Valor Econômico: “Valor setorial: embalagem” (nov. 2014). Dentre inúmeros depoimentos de empresários do setor, da constante inovação de materiais, etc., é
espantosa a força do mesmo no crescimento econômico de
um país. Mas causa maior perplexidade saber que o setor de
embalagens é, pois, um termômetro de maior ou menor atividade econômica. Se vai bem, ótimo. Se vai mal, provoca um
rearranjo do marketing e, consequentemente, do design.
Portanto, o desafio está em quebrar essa simbiose entre o
design e o capitalismo. Isso implica, necessariamente, lidar
com as coisas de maneira diferente, o que implica, por sua vez,
um sistema econômico diverso, ou em ter isto no horizonte do
provável e do possível.
Além do mais, sem mudar o capital simbólico dos sujeitos, as
artesanias correm o risco de estar reforçando o fetiche das
mercadorias. Isso é importante porque junto com o capital
186
187
simbólico tem também o capital econômico que, sabemos, é
extremamente mal distribuído em nossa sociedade. Tomando
unicamente esses dois capitais, fica uma questão pairando no
ar: quanto as pessoas estão dispostas a pagar (sim, há um custo no nível do desejo também) por um mundo sustentável que,
é necessário dizer, implica um mundo mais lento? Um mundo
mais lento (ou mais caro com as artesanias) se enquadra em
que grau de viabilidade, uma vez que a acessibilidade tem a ver
diretamente com a embalagem, que facilita maior (ou menor)
circulação de mercadorias?
É claro que esse não é o único caminho trilhado pelo design,
mas, sem dúvida alguma, é o hegemônico. Então, penso no
pressuposto que lancei no início deste texto: todo movimento
libertador deve ter como meta assumir a cidade como palco
de experimentações que possam ser capazes de despertar (ou
formatar) novos capitais simbólicos, culturais, econômicos e
sociais. Trata-se de uma reconfiguração das subjetividades,
daquilo que Bourdieu chamou de “habitus”. É por esse caminho
que pretendo retomar as questões posteriores.
Ricardo Macêdo (10 de dezembro de 2014)
Não sei... Esta é a primeira vez que penso sobre isso e, depois
de uns dias afastado daqui, acho que é uma boa reflexão. O design é uma estética programada - de certa forma - voltada para
o uso, para a funcionalização da beleza que está ali inserida.
Se faço um objeto a partir de uma demanda social, penso em
vendê-lo. Como fazê-lo sem pensar em vendê-lo?
Acho que essa reflexão está para além do design e vai bater nas
portas de alguma ideologia de plantão ou... de alguma urgência: crise planetária, crise ética, crise econômica, etc. Se eu
me munir de um espírito ligado a um desses fatores, acho que
consigo implementar no objeto esse desejo: de ligá-lo mais a
um pressuposto libertário (um design anarcopunk!? Straight
Edge!? Kiki!? Design SOMA!?) do que à mercadoria, mais à ação
que ele possa instigar do que ao consumo de si mesmo, mais à
ativação de uma nova mentalidade do que ao reforço da antiga
mentalidade.
188
Acho que a partir daí, de um fundamento interno que se concretiza em ações (conquanto eu tenha de onde tirar dinheiro
para viver, porque não sou “Madre Tereza”), posso pensar em
design para além do mercado e da indústria.
Ricardo Macêdo (11 de dezembro de 2014)
O problema é que muitos tendem a confundir operações estéticas (da arte) com o processo de um designer por não ter
experiência como designer. O ato criativo tem um momento
específico no design, contudo, se aquele objeto não corresponder à realidade humana, pessoas podem se machucar no seu
uso. Por isso a existência de várias disciplinas além da que lida
com o processo criativo. O povo da arte geralmente mistura
tudo e acha que dá no mesmo, mas não é assim. Até pra se
pensar esse entrecruzamento (arte e design) é muito delicado,
pois, como falei, envolve a saúde física/psicológica do usuário.
Questão 2
Em que medida romper fronteiras entre o erudito e o leigo pode
ser suficiente para repensar o ofício do designer?
Valéria Costa Pinto (5 de dezembro de 2014)
Acredito que os dois se complementam na medida em que soluções criativas dos leigos possam ser elaboradas e difundidas
pelo erudito. Como, por exemplo, as bordadeiras da Rocinha
que trabalham para uma grife de moda. Boa parceria para
ambas porque aumentou o número de funcionárias no setor,
valorizando um ofício em extinção e dando visibilidade ao trabalho delas. Por outro lado, a grife introduziu no mercado um
produto inédito e diferenciado e, por ter retorno social, foi reconhecida mundialmente.
Thaís Mor (8 de dezembro de 2014)
Romper a fronteira entre o erudito e o leigo me parece estar
diretamente ligado à inovação. O design é capaz de dialogar
com os dois lados e, através dele, é por onde se concebe o
novo. Técnicas tradicionais com linguagens estéticas contemporâneas, conhecimentos milenares em novos suportes...
189
O inovador com um suporte na tradição pode garantir a qualidade e durabilidade de um produto ou serviço, assim como
algo tradicional com o suporte de novas linguagens gráficas
pode garantir a democratização de um ofício quase esquecido.
As referências num projeto de design não se restringem ao
erudito ou ao leigo. Novas maneiras de pensar e produzir
não podem desconsiderar conhecimentos e tradições, mas,
sim, incorporá-las em prol de uma nova maneira de pensar e
produzir.
Carlos Muñoz Sánchez (10 de dezembro de 2014)
Acho que essa questão dá para fazer um paralelo entre os designers e os arquitetos. É fato que não é preciso um arquiteto
para fazer arquitetura, do mesmo jeito que não é preciso um
designer para criar um objeto. Porém, são profissionais que
estão preparados para desenvolver coisas concretas.
No mundo da arquitetura está virando uma tendência a chamada autoconstrução, que toma como referência aquela arquitetura feita sem arquitetos e construída pelos próprios usuários.
Mas inserindo o arquiteto nesse processo. O arquiteto pode ser
a pessoa que desenha o produto, mas também vai se envolver
na construção, e às vezes, vai ser um dos futuros usuários da
obra.
Para colocar um exemplo, poderia falar do projeto LaFábrika
detodalavida, na Espanha. Um galpão de uma antiga fábrica de
cimento abandonada que tem sido reabilitado (ou reciclado)
para ser um espaço de trabalho colaborativo e um lugar de
pesquisa sobre o bem comum. No processo de reabilitação
estiveram envolvidos todos os futuros usuários do espaço:
artistas, arquitetos e, inclusive, advogados, que trabalharam
como pedreiros durante um ano para conseguir um espaço de
trabalho.
Na minha opinião, acho que não tem que existir essa fronteira
entre o erudito e o leigo, esse repensar pode ser a sinergia
entre os dois. A profissionalização dos leigos e a volta ao trabalho manual dos eruditos. Novos processos cocriativos que
190
têm inclusa uma troca que poderia ser formação para os leigos
e novas técnicas para os eruditos.
Júlia Nascimento de Oliveira (11 de dezembro de 2014)
Penso que romper a fronteira entre o erudito e o leigo é um
passo importante para a democratização do design, pois aproxima o processo cada vez mais das necessidades verdadeiramente humanas, não se deixando levar pelos interesses do
mercado.
Porém, acho que essa ruptura não é suficiente para o aprimoramento completo do ofício do designer, pois não se deve ater
apenas ao produto final, mas também a todo o processo criativo e de produção, que deve ir além do percurso criador-produto-receptor. Acho que essa inovação deve vir acompanhada
de discussões mais profundas no âmbito social, aproximando
cada vez mais o designer dos usuários de suas criações.
Reginaldo Luiz Cardoso (12 de dezembro de 2014)
Inspirada em Bakhtin, a grande tese de Carlo Ginzburg, que
perpassa toda a sua obra, é a noção de circularidade cultural.
Para Ginzburg, em diferentes momentos históricos, as elites
conseguem preservar, com maior ou menor êxito, as fronteiras
entre a cultura tida como própria desta mesma elite, e a dos
outros, entendida como menor. Assim, podemos ter maior ou
menor circularidade.
O problema é que, com a modernidade, essas elites, naquilo
que Marx chamou de ideologia, conseguiram criar um sistema
que faz com que a cultura delas prevaleça como hegemônica.
Isso faz com que a maioria abdique ou pense que os seus interesses são os mesmos daqueles que os oprimem. Marx resumiu assim essa situação: “disso eles não sabem, mas o fazem”.
O filósofo Sloterdjik nos diz que essa hegemonia cultural pode
ser hoje traduzida pela prevalência da “razão cínica”. Cínica
porque, ao se dar razão a Marx, deu-se outro sentido à famosa frase. Essa hoje seria reinterpretada da seguinte maneira:
“eles sabem muito bem o que estão fazendo, mas mesmo assim
o fazem”. O sujeito cínico tem perfeita ciência da distância en-
191
tre a máscara e a realidade social, mas, apesar disso, continua
a insistir na máscara.
“mas dos seres humanos enquanto (sic) sujeitos, isto é, criadores de si mesmos, de sua vida individual e coletiva”.
Percebe-se que a circularidade é necessária à arte, pois, do
contrário, a arte “entraria em processo de entropia” (FLUSSER,
Vilém. Nossa Embriaguez, 1983).
Ricardo De Cristófaro (16 de dezembro de 2014)
O campo de atuação do leigo coexiste com o erudito em um
mesmo tempo e espaço, levando a uma percepção de que naturalmente existe algum tipo de interação entre eles. A coexistência de linguagens cultas e populares na contemporaneidade é uma realidade e, por diferentes vias, os grupos que as
utilizam estabelecem relações de trocas e diálogos constantes.
Além da interação entre leigo e erudito, ainda devemos considerar que existe um diálogo de ambos com a cultura de massa.
Se não atentarmos para a existência da “razão cínica”, esse
processo se torna autofágico. Em suma, para romper fronteiras, o pressuposto está em romper com a “razão cínica”.
Bernardo Romagnoli Bethonico (12 de dezembro de 2014)
A não-compartimentação de erudito e de leigo gera diálogos entre cultura acadêmica e cultura intuitiva. Romper essas fronteiras não quer dizer misturar tudo, mas, sim, admitir que estamos todos no mesmo barco quando o quesito é
humanidade.
Vejo o designer não somente pensante, mas tateante, na escuta
de uma sabedoria antiga das mãos, na consciência de que o
design é feito para pessoas concretas e não abstratas.
Tanto as artesanias quanto as academias têm a ganhar com a
recriação do design ao lado dos antigos ofícios, como marcenaria, artesanatos, tecelagem, encadernação, sapataria e todo
tipo de atividade realizada por pessoas com as quais podemos
ter uma comunicação cara a cara.
Reginaldo Luiz Cardoso (12 de dezembro de 2014)
É perfeita a última intervenção da Marcela. Apenas um complemento: conforme Maturana (A Democracia é uma Obra de
Arte), etimologicamente, “con-versar” vem da contração de
dois vocábulos latinos: con, junto com, e versare, dar voltas
em redor de uma coisa. Isto é, conversar é ir junto, caminhar
em companhia.
Portanto, a condição política de existência do sujeito é a democracia (e tudo o mais que a acompanha). Consoante a isso, a
democracia não está a serviço da sociedade ou dos indivíduos,
192
Néstor Garcia Canclini pode ser um bom caminho para a compreensão do fenômeno de hibridação cultural e da complexidade das relações entre grupos culturais, especialmente as
tradições culturais e populares na contemporaneidade.
Canclini argumenta que, para abordar a conjuntura latinoamericana, por exemplo, seria indispensável uma perspectiva pluralista, na qual são aceitas as fragmentações e combinações
múltiplas entre tradição, modernidade e contemporaneidade.
Nesse sentido não percebo fronteiras rígidas a serem rompidas pelo ofício do designer contemporâneo.
Questão 3
Quais são os mecanismos para que a profanação e a contaminação anunciadas por Agamben não se transformem em captura e
cooptação pelos interesses do mercado?
Ardesson Reis Santana (19 de dezembro de 2014)
Pelo que entendi, o que se pode fazer é enxergar a situação
considerada como cooptação como uma oportunidade de infiltração no “sistema”, utilizando-se das ferramentas que este
pode oferecer para ações de subversão.
Carlos Muñoz Sánchez (14 de dezembro de 2014)
A diferença entre lazer e trabalho pode não existir. Eu falei de
tempo de lazer em referência ao tempo que as pessoas têm
193
fora da atividade remunerada que fazem para comer. Se você
tem um emprego “convencional” de 30 ou 40 horas semanais,
sem responsabilidades para levar pra casa, e o resto do tempo
você trabalha na atividade na qual você realmente acredita,
seu trabalho e seu lazer são o mesmo. Mas nessa situação
temos que escolher alguma palavra pra definir essas horas
que você dedica para conseguir dinheiro. O trabalho e o lazer
são o mesmo, mas durante a semana tem um período de “[...]
coloque palavra que não seja trabalho aqui...”, que é o que
permite você se sustentar.
Eu queria que não existisse, mas eu mesmo estou dentro de
vários processos que estão sendo difíceis. Alguns deles comentei nas outras questões. Porém, sei de fato que é possível
se sustentar nessas margens, conheço e sou amigo de muitas
pessoas que conseguiram, e muitos que estão (estamos) lutando para isso.
Barbara Rodrigues Tavares (12 de dezembro de 2014)
Assim como questões debatidas a respeito da arte em geral,
existem mecanismos que podem fugir aos interesses do mercado. Essas alternativas podem ser percebidas em ações e
atividades que vêm sendo praticadas nas cidades e é importante apontar os coletivos artísticos nesse sentido. São grupos
autogestores e autodependentes que buscam soluções heterogêneas para questões comuns na cidade, a maioria delas à
margem do mercado.
194
restaurante que frequento. Inventar um sistema com o porteiro
do prédio. Ressignificar o vizinho. Quem sabe aprender a fazer
um bolo? Ou aprender a estar lado a lado de um desconhecido
enquanto atravesso a rua. E criar um grupo de estudos-práticas informais? Tenho me convencido de que a revolução não
será mesmo televisionada. Se eu não mudar o entorno, me
permitindo usar o que se encontra apartado, nada muda.
Júlia Nascimento de Oliveira (11 de dezembro de 2014)
Acredito que o design pensado de forma colaborativa, buscando uma integração social e inovação constante, pode ser um
importante mecanismo subversivo, profanando o que é ditado
pelo mercado ou pelas teorias engessadas que nos são oferecidas. Uma maneira de contaminação do que é sacralizado
pela máquina produtora seria o design a partir da experiência,
não apenas aceitando o que é dito como “bom” ou “correto”
pelo capital, mas buscando uma vivência cotidiana, reciclando
conceitos, aperfeiçoando teorias, sempre se aproximando do
humano.
É válido ressaltar que o processo criativo é tão importante
quanto o produto final, pois o ato de produzir fora dos parâmetros estabelecidos pelo mercado já é um ato de subversão, que
pode aglutinar diversas esferas de debate e reflexão.
Bernardo Romagnoli Bethonico (12 de dezembro de 2014)
O movimento não pode parar. Lembro-me da bailarina Sofia
Neuparth, que dizia que “O movimento não para, nós é que
imobilizamos nossa relação com ele”. Esse é um convite a
alargar a escuta do mundo e ser de outra forma: quando tudo
parece corrompido e estagnado.
Luiza Alcântara (11 de dezembro de 2014)
Acredito em duas coisas apontadas abaixo: a primeira é na
criação desses espaços de que a Maria Caram fala, espaços
autônomos que pensam a criação de objetos, ações, serviços, e que buscam gerar outros espaços (mesmo que sejam
deslocamentos intelectuais) de forma diferente. Por onde vão
circular essas produções? Quem está querendo o serviço?
Concordamos com suas ideias? Se sim, ok. Se não, o que podemos fazer? Aceitar e subverter? Ou recusar?
Escutar o movimento que já está aí é conversar com aquela
pessoa com a qual sempre me deparo na rua. E ver o que pode
surgir da conversa. É articular uma ação com as cozinheiras do
E, nesse sentido, chego ao segundo ponto citado, com o qual
concordo. Podemos, sim, aceitar propostas de trabalhos dentro do sistema que tanto questionamos, mas sem a ingenui-
195
dade de que não estamos nele. Sabendo de nossas posições e
das dos outros, sabemos como subverter, como jogar a nosso
favor e, assim, não seremos cooptados.
Maria Caram Santos de Oliveira (10 de dezembro de 2014)
Creio que a melhor resposta aqui é algo que já citei em módulos anteriores: espaços lisos e espaços estriados.
Como a Greice citou antes, o capitalismo age de forma predatória, capturando e transformando em objetos de consumo mesmo aquilo que nasce à sua margem. Como disse na primeira
pergunta, é a substituição da “utilização” pelo “consumo”.
Assim, creio que, quase inevitavelmente, novos mecanismos
serão constantemente capturados e refeitos em embalagens
prontas para uso. Como enfrentamento, creio que a possibilidade seja achar brechas e se infiltrar nelas sempre que possível, criando sempre espaços - que podem ser chamados de
espaços lisos, contratempos, zonas autônomas temporárias
- de escape e inovação dentro desse sistema.
do da cidade, de política, de multidão... Mas aqui aparece um
conceito parecido.
Ricardo falou do Lipovetsky e Marcela adicionou a Marina
Abramovic. Não tenho estudado esses casos concretos, e não
saberia dizer se eles estão tentando subverter as empresas por
dentro. Mas existem alguns problemas nos processos criativos
dos designers que trabalham além do mercado - um deles é
“comer”.
Conheço muitos designers ou coletivos que gostariam de trabalhar só com a parte ativista do design, mas desistem ou deixam
essa parte para o tempo do lazer, porque são obrigados a ter
um emprego convencional, cooptados pelas empresas, para
poderem se sustentar. E alguns dos que conseguem se sustentar com isso, é com as palestras que dão sobre outras metodologias no design (ou na arquitetura, por exemplo). Porém, são
metodologias que nem para os melhores dessas disciplinas
dariam para viver, e, afinal, vivem da teoria mais do que da
prática desses processos.
Greice Teixeira de Souza (10 de dezembro de 2014)
Pelbart sugere a produção do novo, sendo que no seu conceito, produzir o novo é inventar novos desejos e novas crenças,
novas associações e novas formas de cooperação. Mas quando
nos referimos à sua captura e cooptação pelos interesses do
mercado, vale lembrar “que o mercado capitalista é uma máquina que sempre foi de encontro a qualquer divisão entre dentro e fora. O mercado capitalista é contrariado pelas exclusões
e prospera incluindo, em sua esfera, efetivos sempre crescentes. […] Em sua forma ideal, não há um fora no mercado
mundial: o planeta inteiro é seu domínio” (HARDT, 2000, p.361).
Carlos Muñoz Sánchez (10 de dezembro de 2014)
De volta aqui uma questão do primeiro texto: “Mas sabemos
que a metrópole é também o lugar, por excelência, da expropriação deste comum produzido no encontro e na criação das
novas formas de vida e de luta”. Naquele texto e também nas
questões relativas a ele, a gente falou sobre como é possível
mudar algo desde dentro. Daquela vez a gente estava falan-
196
197
Apontamentos sobre educação
a distância e construções coletivas
de conhecimento:
a experiência do curso arte e espaço –
uma situação política do século xx
Maria Helena Cunha*
Patricia Faria**
Com o curso Arte e Espaço – uma situação política
do século XXI, cujo conteúdo buscou abarcar de forma ampla os temas relativos à arte, aos espaços e
à política, avaliamos que seria bastante pertinente
discutir com os alunos a perspectiva de transformar uma plataforma virtual de educação em um
espaço processual de construção do conhecimento.
Com base nessa ideia, lançamos intencionalmente a questão: o que acham de uma plataforma de
educação a distância como um espaço virtual de
construção do conhecimento coletivo?
Essa questão foi trabalhada durante a primeira
disciplina - Ambientação em EAD - destinada ao
conhecimento e à discussão da própria plataforma.
Assim, a partir dos debates e das observações dos
alunos a respeito do tema e de suas expectativas
com relação ao curso a distância, fomos alinhavando e desenvolvendo este texto.
A plataforma EAD|Inspire, desde sua criação, teve
como metodologia de trabalho estabelecer a discussão direta entre os professores e todos os
alunos e entre os próprios alunos no Fórum de
Discussão, no qual o debate é aberto e compar-
198
1. Maria Helena Cunha Mestre em Educação pela
FAE/UFMG, especialista
em Planejamento e
Gestão Cultural pelo
Instituto de Educação
Continuada - PUC/MG e
licenciada em História
pela UFMG. É diretora da
Inspire Gestão Cultural
e da DUO Editorial. Fez
a coordenação geral e
pedagógica do curso
que deu origem a esta
publicação.
2. Patricia Faria Professora da disciplina
Ambientação em EAD
deste curso. Graduada
em Psicologia pela
UFMG; especialista em
Planejamento e Gestão
Cultural pelo IEC/
PUC_Minas; e especialista
em Cooperação Cultural
Iberoamericana pela
Universidade de
Barcelona/Espanha.
Produtora e Gestora
Cultural, coordena o
Pontão de Cultura Escola
Livre COMUNA S.A.
199
tilhado para que todos possam participar e acompanhar o
raciocínio, as opiniões e as reflexões sobre o tema proposto.
Ao mesmo tempo, buscamos entender como eles poderiam
se apropriar dessa ferramenta de estudos ao longo de todo
o curso como processo de sua formação. Um dos alunos,
Marco Antônio Souza Borges Netto, afirma: “Acredito nessa
plataforma. Mas requer muita disciplina do estudante. A
vantagem é que há uma memória e que podemos interagir
sempre que possível”.
Reiterando a fala acima, em uma plataforma de educação a
distância – assim como acontece também nos cursos presenciais - a construção do conhecimento coletivo requer de
todos os envolvidos uma apropriação do tema proposto com
uma disposição para o debate, que intensifica e qualifica a
discussão.
Portanto, o objetivo da inserção dessa discussão inicial
no curso era compreender como um curso virtual poderia favorecer ou gerar uma discussão que propiciasse ou
incentivasse a reflexão dos alunos para a possibilidade da
construção do conhecimento coletivo, a partir de suas realidades, expectativas e do conhecimento sobre a experiência de cursos a distância. Uma das alunas do curso reflete
especificamente sobre isso e reforça um ponto de vista ao
afirmar que acredita:
[…] na construção do conhecimento coletivo, pois
hoje, mais do que nunca, temos um excesso de informações, mas que nem sempre são coletadas da
melhor maneira. Uma plataforma de educação a
distância é capaz de reunir diversas percepções e
olhares que são lançados a partir do espaço de cada
participante. A união, por uma busca em comum, e
o direcionamento dessas informações podem gerar
um conhecimento múltiplo e inovador. Se é a melhor
forma ainda não sei, mas acredito que temos que
nos apoderar das plataformas virtuais para o melhor
aproveitamento delas: o conhecimento. (THAÍS MOR)
200
O modelo pedagógico estabelecido como linha norteadora
do processo formativo da plataforma EAD|Inspire sempre
buscou envolver, por um lado, a autoinstrução (leitura de
textos), que depende muito da disciplina e da força de vontade de aprendizagem individual, e, por outro, a aprendizagem colaborativa por meio de debates entre os alunos. Esse
é um importante diferencial desse processo formativo, que
estabelece um diálogo contínuo e compartilhado na construção de um conhecimento comum e “com o qual podemos
interagir sempre que possível”.
Em uma provocação feita pela Profa. Patricia Faria, para
instigar o debate durante o período de sua disciplina, ela
questionou: “Gostaria de aproveitar o post de hoje para
colocar uma ideia que se faz presente sempre que vamos
trabalhar com educação a distância: muitos autores citam
que um grande desafio está relacionado com a melhor maneira de usar as tecnologias de informação e comunicação
em benefício do bom aprendizado e da construção coletiva
do conhecimento. Penso que essa preocupação está relacionada com muitos fatores que já enumeramos [...]. Como
usamos as tecnologias de informação na nossa vida hoje
em dia? Vocês acham que fazemos um bom uso delas? O
quanto nos perdemos nesse mar de informações?”.
A partir dessa colocação, estabeleceu-se um debate no
Fórum e destacamos duas falas. Em uma delas uma aluna
afirma que “opinar sobre se fazemos um bom uso ou nos
perdemos nas informações é difícil, pois acho que acontecem as duas coisas...”. Continuando, ela aponta sua observação para os jovens:
Tenho percebido que crianças e adolescentes, que já
nasceram com essa tecnologia, possuem mais facilidade de acesso, porém precisam de uma mediação
para fazer bom uso dela, pois a maioria só acessa as
redes sociais e quando precisa realizar um trabalho
escolar de leitura, interpretação e construção de texto fica muito perdida.
201
Dessa forma, ela traz a problematização para o outro lado,
o das escolas e professores, e conclui:
Cabe, também, aos professores introduzirem e discutirem o assunto da educação tecnológica nas escolas. O que muitos teóricos chamam de ‘letramento
tecnológico’ tem que evoluir para uma ‘competência informacional’ que requer um trabalho árduo da
Educação... (DALBA ROBERTA COSTA DE DEUS).
Outro aluno, Bruno Dorneles, traz uma discussão pertinente
ao processo educativo. Ele afirma:
Tenho alguns problemas com a ideia de educação
a distância, talvez por ela tentar reduzir a distância
a uma questão geográfica, quando, na verdade, eu
(como professor de artes da rede pública de ensino) me sinto muito mais próximo dos meus alunos
quando dividimos uma plataforma digital (whatsapp
ou facebook), em que os interesses de cada um se
tornam mais evidenciados, como modelos de apresentação claros da pessoa (quase como a roupa que
se veste on-line).
Ele ressalta ainda que:
Apesar dos problemas, considero essa uma das poucas e legítimas formas de construção de conhecimento coletivo, dado que para estarmos aqui precisamos estar equipados com aquilo que nos dispõe
um número quase infinito de conhecimentos. Apesar
de não orgânico, apesar de nos trans-humanizar, a
internet permite que consultas rápidas e em diálogo com uma comunidade transformem dificuldades
individuais em curiosidades coletivas, o que auxilia
de forma vertebral no desenvolvimento do indivíduo
e do coletivo.
Um ponto inegável a ser identificado no contexto do ensino
a distância é a capacidade de proporcionar o encontro de
202
um número significativo de pessoas, tão distantes geograficamente e com diversos níveis de formação e informação.
Neste curso, especificamente, contamos com a participação
de alunos de dezoito estados brasileiros, tornando possível,
e de maneira muito simples atualmente, a realização de
um debate a partir da nossa diversidade. Alguns alunos se
posicionaram com essa perspectiva, deixando registrados
no debate os seus pontos de vista sobre o tema:
Penso que, utilizando os meios de tecnologia da informação, nós estamos cada vez mais a romper as
barreiras que antigamente segregavam diversas
pessoas. A democracia presente na construção do
conhecimento coletivo é essencial para que disseminemos o que outrora ficou restrito a um grupo muito ínfimo de pessoas, num verdadeiro monopólio do
conhecimento. O conhecimento coletivo, como bem
citou a Patrícia Faria, torna-se cada vez mais refinado quando agregamos àquelas ideias postas e tidas
como “dogmáticas” uma nova forma de pensar ou
interpretar, que tem muito a ver com o crescimento
moral e intelectual e o agregado regional de cada um
de nós. (DENY EDUARDO PEREIRA ALVES)
E na visão de outro aluno:
Acredito que seja um mecanismo forte e de grande
promessa na construção do conhecimento. Por meio
da educação a distância é possível ter alunos conectados de diversas partes do País, o que pode gerar
não apenas um debate construtivo e enriquecedor,
como também se apresentar como uma forma de democratização do ensino, seja do ponto de vista formal,
como também do aperfeiçoamento e da livre busca
pelo saber. Essa modalidade exige autodisciplina e
empenho redobrado do aluno, uma vez que, sem um
“professor presencial” no dia a dia, a sua organização
e dedicação serão pontos-chave na efetiva construção do saber. (FELIPO LUIZ ABREU DE OLIVEIRA)
203
O mapa abaixo ilustra o perfil geográfico dos alunos, traçando a capacidade de abrangência dos cursos a distância.
Nesse caso específico, destacamos um número de alunos
bem superior da Região Sudeste, com percentual de 75%
do total, fato que se deu em função de estarmos sediados
em Belo Horizonte (MG), e realizarmos o curso por meio da
legislação municipal de incentivo à cultura, o que significa,
em termos percentuais, um número maior de vagas disponíveis para a cidade e para o estado de Minas Gerais.
A EAD é uma forma de estar, principalmente na forma de debates e fóruns, onde não seria talvez momentaneamente possível. A mobilidade de acesso
permite que diversas pessoas estejam em constante
interação. Podemos discutir, discordar e rever nossos conceitos e conhecimentos. Para mim, é com a
EAD que a globalização exerce seu papel: a mundialização do espaço geográfico por meio da interligação
econômica, política, social e cultural em âmbito planetário. (JOANA D´ARC JESUS DOS SANTOS)
inscrIçÕes por estado
1%
4%
1%
2%
1%
1%
62%
1%
1%
11%
4%
2%
3%
1%
4%
2%
1%
204
Além da possibilidade de ampliar a capacidade de articulação de pessoas de locais diferentes, a flexibilidade com
relação ao tempo para o estudo e o não deslocamento físico
foram apontados como as grandes vantagens do ensino a
distância, e podemos afirmar que este sempre foi um ponto
destacado por outros alunos de cursos anteriores nesta
plataforma. As palavras de uma das alunas deste curso
evidenciam esse fato:
1%
Por outro lado, vimos em vários comentários, neste e em
outros cursos, que a falta do contato físico é vista também
como uma desvantagem. Isso talvez se justifique por uma
visão ainda muito arraigada do padrão de sala de aula que
estabelece a relação presencial entre professor e aluno.
Considerando o contexto atual, nós acreditamos que o EAD
tem, na verdade, criado a possibilidade de aprendizagem
para aqueles que estão distantes dos centros urbanos (que
possuem grande parte dos programas formativos específicos) e, ao mesmo tempo, traz para todos os alunos a opção
de não terem que enfrentar a dificuldade da mobilidade
urbana e de otimizar seu tempo disponível (flexibilização do
horário de estudo). Assim, o tempo e o espaço passam a ter
outro significado, fortalecendo a vantagem do acesso sobre
a necessidade do contato físico.
Nesse sentido, quando nos mobilizamos para a realização
deste curso a distância, Arte e Espaço – uma situação política
do século XXI, não foi só pela metodologia, que acreditamos
possibilitar a construção coletiva e um processo contínuo de
205
aquisição de conhecimento, mas também por considerarmos a extensão territorial brasileira, com
um grande número de pequenas cidades no interior de cada estado, e a dificuldade de mobilidade
nos grandes centros urbanos. Ou seja, buscamos
democratizar o acesso a conteúdos específicos e
de qualidade para muitos que teriam dificuldade
em participar de formatos presenciais.
Dessa forma, entendemos que os recursos das
tecnologias de informação que atuam como mediadores do processo de desenvolvimento de estudos a distância significam um diferencial para os
alunos que tiveram a oportunidade de estabelecer
um diálogo contínuo com especialistas de temas
variados e relacionados à sua formação.
3. Nas citações referentes
às avaliações finais não foram citados os nomes dos
alunos, pois preferimos
manter sigilo por ser uma
avaliação individual. Citamos, no entanto, os nomes
de alunos em comentários
que foram postados no
fórum de discussão, espaço aberto para os debates.
206
Voltando à questão que motivou a discussão inicial
durante o curso - O que acham de uma plataforma
de educação a distância como um espaço virtual de
construção do conhecimento coletivo? –, é importante falar das expectativas, do que foi atendido e
mesmo de frustações após a realização do curso.
Buscamos nos comentários de uma avaliação final
e nos comentários de alguns alunos, que voltaram
para responder a essa questão na disciplina inicial,
as referências para levantarmos algumas observações pertinentes.
Nem todos os alunos se adaptam a esse formato
específico da plataforma, na qual as leituras de
todas as questões colocadas e os debates também
entre alunos são uma proposta de discussão aberta. Isso significa que ela não deve ser estabelecida
no grupo de forma unilateral - em que o professor
responde direcionado a um único aluno - conforme uma observação apresentada na avaliação final: “Seria interessante se pudéssemos comentar
diretamente as mensagens enviadas por outros
alunos”. Embora esse seja um ponto recorrente,
avaliamos que essa proposição foge completamente da linha pedagógica escolhida pelo EAD|Inspire, na qual todos
os participantes – professores e alunos – mantêm um diálogo aberto e podem acompanhar os debates a partir de uma
leitura completa e contínua de todos os comentários. A proposta metodológica é a busca constante para manter uma
interatividade diária entre os todos os usuários envolvidos.
Assim, a metodologia utilizada pela plataforma a distância
EAD|Inspire tem como proposta responder a uma busca de
formação continuada e aprofundada, que consiga acompanhar os profissionais nos desafios e atividades cotidianas,
motivando-os à discussão constante para o desenvolvimento de seus trabalhos. Isso pode ser retratado em um dos
comentários da avaliação final:
Como primeira experiência posso dizer que tentei
aproveitar ao máximo. A monitoria sempre atenta e
presente me chamou a atenção. Quanto ao conteúdo, achei interessante, por ser ainda novo para mim,
e consegui ampliar muito meus conhecimentos. Os
professores souberam se posicionar, despertando
reflexões sobre os conteúdos. A coordenação, secretaria e plataforma funcionaram adequadamente, sem
problemas. Por ser gratuito, possibilitou-me ampliar
meus conhecimentos e interagir com professores
e colegas, incentivando-me a ler sempre mais e a
refletir sobre as perguntas e as respostas.
Outro ponto importante, que já foi muito identificado entre
as observações dos alunos da plataforma, é o compartilhamento do conhecimento, dos textos e debates, com seus
parceiros externos à plataforma, de trabalho ou de escola:
Essa plataforma é muito eficaz, achei ótima, fácil
de lidar. Gostei demais dos textos, vou repassá-los
todos; os depoimentos e intervenções dos professores dessa forma mais livre é bem instrutivo. Talvez
pudesse ter mais interação dos professores com os
207
alunos. A monitoria do Bruno é ótima, não precisei
usar o suporte técnico.
Outro aluno volta à questão na plataforma após o final do
curso e a responde da seguinte forma:
Penso que não substitui a aula presencial, o estudante de curso a distância tem que ser muito mais
atento aos estudos por ter que ser autodidata, mesmo sendo orientado, porém, é uma ferramenta muito
boa e possibilita acesso e conhecimento. (GUSTAVO
PIRES DE PAULA)
Por fim, a plataforma EAD|Inspire, que abrigou o curso Arte
e Espaço – uma situação política do século XXI, cumpriu com
seus objetivos ao manter uma estrutura de navegabilidade
amigável e de acesso simples, que proporciona a facilidade no processo de interação entre alunos e professores e,
consequentemente, segue enfrentando seu principal desafio: ampliar as condições que levam à aprendizagem e
ao conhecimento específico de forma colaborativa, entendida aqui como um diálogo aberto que leva à reflexão e à
ampliação de repertório, e não, necessariamente, apenas
como a construção colaborativa de um texto coletivo. Para
a EAD|Inspire, o que vale são o bom debate e a vontade de
participar dele.
208
Curso
Arte e Espaço – uma situação política do século XXI
Realização
Duo Editorial
Patrocínio
Lei Municipal de Incentivo à Cultura e Bonsucesso
Apoio
Inspire| Gestão Cultural e Indisciplinar | EA UFMG
Plataforma de Educação a Distância EAD|Inspire
Coordenação geral e pedagógica
Maria Helena Cunha – Inspire| Gestão Cultural
Coordenação de conteúdo
Natacha Rena – Indisciplinar | EA UFMG
Professores
Eduardo de Jesus Isabela Prado Marcela Silviano Brandão Lopes Natacha Rena Patricia Faria Paula Bruzzi Berquó Simone Parrela Tostes Monitoria
Bruno Oliveira
Suporte Técnico
Harmisweb
Produção executiva
Michelle Antunes
Gestão Financeira
Maria Helena Batista
210
Assessoria de comunicação
Thaís Almeida Maia Design gráfico
Ana C. Bahia
Assessoria jurídica
Diana Gebrim
Publicação
Arte e Espaço – uma situação política do século XXI
Realização
Duo Editorial
Patrocínio
Lei Municipal de Incentivo à Cultura e Banco Bonsucesso
Apoio
Inspire| Gestão Cultural e Indisciplinar | EA UFMG
Organizadores
Bruno Oliveira, Maria Helena Cunha e Natacha Rena
Coordenação Editorial
Natacha Rena
Produção Editorial
Bruno Oliveira
Produção executiva
Michelle Antunes
Gestão Financeira
Maria Helena Batista
Revisão de textos
Trema ([email protected])
Design gráfico
Ana C. Bahia 211
alunos aprovados
Alexsandra Silva Oliveira Buriti
Barbara Rodrigues Tavares
Bernardo Romagnoli Bethonico
Carlos Dalla Bernardina
Carlos Muñoz Sánchez
Cândida Soares Leão Teixeira
Claudia Laport Borges
Dalba Roberta Costa de Deus
Elen Maria de Souza Friche
Eliane Maris da Silva
Eva de Fátima de Aquino Pereira
Gustavo Pires de Paula
Gustavo Wolff
José Moraes Júnior
Júlia Nascimento de Oliveira
Luiza Alcântara
Maisa Cristina da Silva
Maíra de Castro Botelho
Maria Caram Santos de Oliveira
Maria Goretti Gomide Pinheiro
Marlene de Souza Sardinha
Natália Ribeiro de Paula
Reginaldo Luiz Cardoso
Renata Santos Souza
Ricardo de Cristófaro
Ricardo Macêdo
Suely Aparecida dos Santos
Taís Freire de Andrade Clark
Thaís Mor
Thiago Vetromille Ribeiro Gomes
Valéria Costa Pinto
Valéria da Silva Freitas
Vanessa Camila da Silva
Vanessa Tamietti
Victor Hugo Tozarin dos Santos
Wagner Pina
Yuri Amaral
A786
2015
Arte e espaço [recurso eletrônico] : uma situação política do século XXI /
Natacha Rena, Bruno Oliveira, Maria Helena Cunha, orgs. – [ Belo Horizonte] :
Duo Editorial, [2015].
1 recurso online (216p.) : il.
ISBN: 978-85-62769-06-1
Inclui bibliografia.
Apresentado pela Fundação Municipal de Cultura.
1. Arte. 2. Arte e educação. I. Rena, Natacha. II. Oliveira, Bruno. III. Cunha, Maria
Helena.
CDD: 707
Este livro foi realizado com recursos da
Lei Municipal de Incentivo à Cultura da Prefeitura de Belo Horizonte.
Fundação Municipal de Cultura
1065/2012
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Arte e espaço: uma situação política do século XXI