UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE / INSTITUTO DE LETRAS /
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS / MESTRADO EM
LITERATURA PORTUGUESA E AFRICANA / LINHA DE PESQUISA:
PERSPECTIVAS TEÓRICAS NOS ESTUDOS LITERÁRIOS
MUNDO COMUM E POVOAMENTO DA PAISAGEM –
LER COM O APRENDIZ DE FEITICEIRO DE CARLOS DE OLIVEIRA
por
LEONARDO GANDOLFI
NITERÓI
2007
Leonardo Gandolfi
Mundo comum e povoamento da paisagem –
Ler com O aprendiz de feiticeiro de Carlos de Oliveira
Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Letras da Universidade Federal
Fluminense, como requisito para a obtenção do
título de Mestre em Letras. Área de
concentração: Estudos de Literatura. Subárea:
Literatura Portuguesa e Africana
Orientadora: Profa. Dra. Ida Maria S. F. Alves
NITERÓI
2007
Leonardo Gandolfi
Mundo comum e povoamento da paisagem –
Ler com O aprendiz de feiticeiro de Carlos de Oliveira
Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Letras da Universidade Federal
Fluminense, como requisito para a obtenção do
título de Mestre em Letras. Área de
concentração: Estudos de Literatura. Subárea:
Literatura Portuguesa e Africana
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________________________________
Prof. Dr. Ida Maria Santos Ferreira Alves - Orientadora
Universidade Federal Fluminense
_____________________________________________________________________
Prof. Dr. José Horácio de Almeida Nascimento Costa
Universidade de São Paulo
___________________________________________________________________
Prof. Dr. Celia Pedrosa
Universidade Federal Fluminense
___________________________________________________________________
Prof. Dr. Silvio Renato Jorge - Suplente
Universidade Federal Fluminense
___________________________________________________________________
Prof. Dr. Mônica Figueiredo - Suplente
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Dedicatória e agradecimento:
Ida Ferreira Alves,
Fernando Muniz, Rosa Maria Martelo,
Jorge Fernandes da Silveira, Ângela Sarmento,
Franklin Alves, Fábio Malaguti,
Ângela de Oliveira, Célia Pedrosa
e Silvio Renato Jorge
CNPq e CAPES –
por bolsa e apoio para
pesquisa em Portugal
RESUMO
Este trabalho percorre o livro O aprendiz de feiticeiro de Carlos de Oliveira em busca
de imagens em que a primeira pessoa textual – sujeito, narrador, personagem –
reconheça-se explicitamente como leitor, com a constante valorização do ato de leitura.
Análise da estrutura dessa obra em torno da noção de leitura. Demarcação do espaço e
das funções que o leitor assume aí e seu desdobramento na leitura do poema
“Estalactite” de Micropaisagem, observando como a construção da referência à
realidade – por meio, entre outras coisas, de um conceito de mímesis que valoriza a
recepção – se efetiva a partir da mesma noção de leitura aprendida em O aprendiz de
feiticeiro.
PALAVRAS-CHAVE: Carlos de Oliveira, O aprendiz de feiticeiro, Poesia portuguesa
contemporânea, leitura, leitor, mímesis.
ABSTRACT
In this study we go through the book O aprendiz de feiticeiro by Carlos de Oliveira
searching for images in which the first person in the text – subject, narrator, character –
recognises him/herself explicitly as a reader, constantly valuing the act of reading. It is
thus an analysis that always bears in mind the notion of reading. We therefore
circumscribe the space and the functions assumed by the reader in this work and intend
to reveal his/ her manifold dimensions, which are evidenced in the poem “Estalactite”,
from Micropaisagem. Employing, among others, a concept of mímesis that values
reception, we pay particular attention to the way reference to reality is constructed
through the same notion of the act of reading learnt from O aprendiz de feiticeiro.
KEY-WORDS: Carlos de Oliveira, O aprendiz de feiticeiro, Portuguese contemporary
literature; reading, reader, mimesis.
SUMÁRIO
1.INTRODUÇÃO..............................................................................................
9
2. BALIZAS DO TRABALHO
2.1. Leitura e povoamento...................................................................
2.2. Povoamento e mímesis..................................................................
12
15
3. MUNDO COMUM
3.1. Protocolos de leitura para O aprendiz de feiticeiro.......................
3.2. Todos os textos – o texto...............................................................
3.3. Criptógrafo e musa – a personagem Gelnaa..................................
3.4. Biografia e leitura – a primeira pessoa de alguns textos................
3.5. Sujeito e leitura – o narrador de “A viagem”.................................
3.6. Leitura e tempo em “Janela acesa”.................................................
27
31
36
43
59
67
4. POVOAMENTO DA PAISAGEM – “ESTALACTITE”
4.1. Preâmbulo.......................................................................................
4.2. O porquê da leitura.........................................................................
4.3. Paisagem, linguagem......................................................................
4.4. Sujeito e objeto, objeto e sujeito.....................................................
4.5. The dancer from the dance..............................................................
4.6. Camões e Cabral.............................................................................
4.7. Ponto Morto.....................................................................................
4.8. Eliot, Yeats e Pessoa.......................................................................
4.9. Foco do silêncio..............................................................................
4.10. Arquétipo do vôo..........................................................................
4.11. Povoamento da paisagem..............................................................
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102
5. CONCLUSÃO.................................................................................................
110
6. BIBLIOGRAFIA
6.1. De Carlos de Oliveira......................................................................
6.2. De outros escritores.........................................................................
6.3. Sobre Carlos de Oliveira..................................................................
6.4. Teórico-crítica..................................................................................
115
115
116
117
Somente as coisas tocadas
pelo amor das outras
têm voz.
Fiama Hasse
Pais Brandão,
As fábulas
1. INTRODUÇÃO
Este trabalho se constitui, predominantemente, na abordagem analítica de O
Aprendiz de Feiticeiro (1971) de Carlos de Oliveira, livro de textos diversos, mas
detentor de uma evidente unidade interna. Um dos principais fatores dessa unidade é a
constância com que a primeira pessoa tão dominante ao longo do livro – como autor,
narrador e personagem – se representa, de maneira privilegiada, como um leitor. No
entanto, sua leitura é mais que um simples gesto, na medida em que esse leitor é
transformado por ela e age nela, interage, ou em outras palavras, o escritor- leitor encena
a leitura partir de suas próprias experiências e história s, seja no registro de outras
referências literárias, seja com lembranças pessoais ou, como será mais comum, na
união dessas duas possibilidades. Até porque as referências literárias também fazem
parte das memórias pessoais. Com essa perspectiva, entre os diferentes protocolos de
leitura (SCHOLES , 1989) que os textos deste livro vão exigindo – o biográfico, o
ensaístico, entre outros –, vai-se construindo a imagem de um leitor povoador de
paisagens, que são os poemas. Por isso, pretendemos também reler parte do longo
poema (ou conjunto de poemas) “Estalactite”, que compõe o livro Micropaisagem
(1968), com o que colhemos em O aprendiz de feiticeiro.
Carlos de Oliveira é um poeta de grande importância no panorama da poesia
portuguesa do século XX e essa importância se deve a muitos fatores. O principal deles
talvez seja a coerência de seu próprio percurso. Seus primeiros livros (décadas de 40 e
50), tanto em prosa como em verso, são marcados por uma forte presença do ideário
neo-realista que defendia então uma bandeira de literatura engajada e de denúncia com
fins objetivos de intervenção e transformação político-socia l. Porém, com o tempo, mais
precisamente ao longo da década de 60, Carlos de Oliveira vai reavaliando essa ação
diretiva e se volta mais para a realidade material do texto – do canto dos primeiros
livros à caligrafia dos últimos – criando uma literatura assumidamente do rigor e
compromissada, sobretudo mas não só, com sua especificidade estética. Essa mudança
de tom acarretou o retorno aos antigos livros e sua reescrita, depurando a forma e
redimensionando o seu carácter político-social. Esse posicionamento o aproximou de
poetas mais novos como aqueles que integraram a publicação Poesia 61, especialmente
9
Gastão Cruz e Fiama Hasse Pais Brandão. Tal proximidade fez não só com que
repensasse a estrutura da linguagem poética, mas também possibilitou a esse novos
poetas a discussão sobre literatura, conhecimento e ética
Em O Aprendiz de Feiticeiro – livro ainda pouco estudado na bibliografia sobre
Carlos de Oliveira – procuraremos evidenciar o quão importante é para esse autor a
encenação do que se lê a partir de um instrumental que pertence a cada leitor e seu
“mundo comum”, para citar sua expressão. Com essa visão, o texto terá uma
repercussão diferente em cada leitor, a qual, no entanto, não se caracterizará como
dispersão. Pelo contrário, será a pluralidade necessária que, como veremos,
proporcionará o povoamento da paisagem que se desenha em toda obra de Carlos de
Oliveira. Visto assim, consideramos que O Aprendiz de Feiticeiro pode alterar
sensivelmente – já que chama a atenção para esse povoamento das paisagens da escrita
– o restante da obra do autor, pois dá a ver a consciência da leitura que ativa nos poemas
uma referência à realidade, realidade dupla: a paisagem geográfica que o formou como
indivíduo e a do poema, na sua autonomia e figuração. Tal jogo, presente em sua
escrita, assume um caráter ético muito forte, já que está ligado a uma operação de
conhecimento: aqui se vê que a obra de Carlos de Oliveira, embora acabe por se
desvincular do Neo-Realismo, não abandona sua vontade social, que se antes vinha de
fora para dentro do texto, agora vai de dentro para fora. Assim, a leitura dessa poesia é
gesto cognitivo que paga algum tributo, como veremos, ao conceito da mímesis
aristotélica e seu potencial de cognição, lida à luz tanto de outra bibliografia de
Aristóteles (a relação ato e potência), quanto de outros teóricos como Costa Lima e Paul
Ricoeur.
É a “função” leitor que ligará a referência à realidade, ou melhor, é a leitura –
experiência própria de cada leitor – que ativará a referência à realidade no texto (e isso
se chama mímesis). Em nosso trabalho colocaremos em diálogo também alguns dos
críticos que igualmente privilegiaram a questão da referência, na leitura da poesia de
Carlos de Oliveira, como Manuel Gusmão, Rosa Maria Martelo e Silvina Lopes
Rodrigues, entre outros.
Na estruturação de nosso trabalho, o capítulo Mundo comum é inteiramente
dedicado a O aprendiz de feiticeiro. Nele veremos como a unidade desse livro – rescrita
e organização de textos dispersos do autor – é fruto sobretudo da temática da leitura, ora
através de uma personagem central como Gelnaa, leitora primeira, ora através da
insistência da imagem do autor como um leitor apaixonado pelo objeto livro. Nesse
10
capítulo também discutiremos como a mudança incessante dos protocolos de leitura
acaba por gerar uma movimentação que, por sua vez, torna o trabalho do leitor um
trabalho muito ativo e exigente, valorizando-o. No segundo, veremos como o
instrumental que nos fornece O Aprendiz de Feiticeiro – através sobretudo da
valorização desse mundo comum, o do leitor – pode modificar a leitura do poemailustração “Estalactite”, revelando-se as estratégias para que sua paisagem inóspita
possa ser finalmente povoada.
11
2. BALIZAS DO TRABALHO
2.1.LEITURA E POVOAMENTO
Podemos dizer que a poesia de Carlos de Oliveira dá a conhecer uma realidade
específica. Paisagem já mencionada pelo menos desde as primeiras resenhas de Gastão
Cruz, na década de sessenta, ou desde o cuidadoso ensaio que Nelson de Matos dedicou
em 1969 ao até então recentíssimo Micropaisagem 1 . Mas é claro que a passagem do
poema a esse conhecimento de uma realidade a que nos referimos não é algo direto,
imediato. Há muito, sabemos que grande parte da poesia moderna tem fim em si
mesma, sem que isso signifique um gesto de alienação. Com isso, não há como negar
que, na poesia de Carlos de Oliveira, haja esse acesso a uma paisagem específica que
aparece através de índices bem concretos: estalactite, calcário, água, pedra, cal, cristal,
gelo, poços, só para recuperar parte da lista feita por Nelson de Matos no estudo
mencionado anteriormente. Uma das principais questões é tentar entender como o
poema, modernamente tendo fim em si mesmo, também pode dar- nos a conhecer uma
paisagem. Para isso, talvez não seja absurdo utilizarmos uma metáfora brusca e
falarmos que o poema é a própria paisagem (principalmente a da Gândara, lugar onde
passou a infância). Ou melhor, quando lemos o poema, conhecemos a paisagem,
realidade específica, que só o poema, apenas ele, pode nos fazer conhecer.
Como lermos então essa poesia? Há diversos caminhos. O escolhido por nós
configurar-se-á apenas como uma possibilidade: a de o leitor de Carlos de Oliveira, em
contato com o poema, experimentar essa realidade, povoá- la, levando em consideração
aquilo que essa paisagem tem de grave, de inabitável. Ou seja, se o lugar é árido e o
1
Gastão Cruz diz acerca do soneto “Rudes e breves as palavras pesam” presente em “Cantata”:
“Analisando as relações entre o “canto” e o “mundo”, Carlos de Oliveira verifica que a “torre” do seu
“canto” não se limita a ter no mundo alicerces, mas se identifica com ele. Donde as palavras nomeiam
uma realidade e são essa mesma realidade.” (CRUZ, 1999, p.64). Já Nelson de Matos percebe em
Micropaisagem “(...) o limitado vocabulário todo com grande incidência substantiva: as constantes
referências a um mundo mineral fossilizado ou em movimento (...)” (M ATOS, 1972, p.146-147). E depois,
mais a frente, ainda escreve: “A secura no entanto em grande parte se mantém e é ela, sem dúvida, uma
das principais características da escrita de Carlos de Oliveira ” (itálicos do autor) (Idem, p.149). Até que
sentencia sem, no entanto, qualquer inclinação ingênua a realismos ou a neo-realismos: “Não nos
iludamos, nada existe aqui que não seja pura representação” (Idem, p.150).
12
poema é o lugar, teremos uma poesia difícil, de acesso breve, não por ser obscura – e
não o é –, mas por ser substantiva, elíptica, material, concreta e ainda assim silenciosa,
tanto nas suas imagens como em sua sintaxe. Nesse sentido a poesia de Carlos de
Oliveira ainda teria uma inclinação social, já que “denunciaria”, através mesmo da
forma, a dureza de uma realidade social. O poema não nos fala, por exemplo, dos
problemas da Gândara, mas configura os próprios problemas através da encenação
deles 2 . Tal encenação se dá evidentemente pelo rigor e precisão da forma. Assim o ato
de leitura é o momento em que o leitor não é informado sobre a falta de água, mas
experimenta a sensação estética análoga à da sede. Esta será a possibilidade de
povoamento. Por assumirmos essa analogia entre a realidade experimentada física (e
socialmente) e a realidade estética do poema, precisaremos de uma fundamentação
teórica da mímesis. Tal abordagem não é nova no que se refere à obra de Carlos de
Oliveira, visto que essa relação foi abordada, entre outros, por Rosa Maria Martelo,
Américo Lindeza e Manuel Gusmão, embora de formas distintas. Para nós, a mímesis
poderá nos ajudar a compreender como a paisagem do poema pode ser povoada pelo ato
de leitura. Para isso, retornaremos à Poética de Aristóteles, entre outros textos seus, e
perceberemos que o conceito de mímesis, como já se sabe, não está necessariamente
preso ao de imitatio; ele vai além dele. Isto é: a mímesis está tanto na relação entre
objeto estético e realidade (natureza), quanto na relação entre objeto estético e
espectador.
Sem ir, no entanto, imediatamente a uma teoria da recepção 3 , o que
procuraremos em parte da obra de Carlos de Oliveira é o privilegiado lugar do leitor,
cuja imagem que escolhemos do mundo comum quer simbolizar. É ele quem povoará o
poema e sua paisagem4 . Para isso, centraremos nossa atenção em O Aprendiz de
feiticeiro, livro de textos dispersos que o autor escreveu ao longo de sua vida –
resenhas, esboços de contos, entrevistas, ensaios e afins –, para nele encontrarmos algo
que nos ajude no que diz respeito à relação entre leitor e texto, segundo Carlos de
2
O que se faz aqui, de certa forma, é uma referência indireta à comparação que Eduardo Lourenço faz
entre o “Cântico Negro” de José Régio e a “Ode Marítima” ou a “Saudação a Walt Whitman” de Álvaro
de Campos. Enquanto no primeiro tería mos apenas uma confissão de revolta, nos outros dois teríamos a
própria manifestação dessa revolta. Ou seja, o que temos de fato é aquela diferença entre, de um lado,
dizer que se fez algo e, do outro, realmente fazê -lo. (LOURENÇO, 1974, p.152).
3
Dado o reduzido tempo para redação de uma dissertação e o fato de ser uma leitura da escrita de Carlos
de Oliveira e não uma abordagem teórica da função do leitor, não concentraremos exatamente nosso
instrumental teórico em uma teoria do efeito estético, mas sim numa conceituação de mímesis, já que
privilegia nossa delimitação do que seja aqui a paisagem.
4
Para utilizarmos termos do próprio Carlos de Oliveira no subtítulo de sua última narrativa Finisterra:
paisagem e povoamento.
13
Oliveira. A tarefa primeira é ir aos textos, alguns, percorrendo as variadas referências
feitas ao ato de leitura. Em seguida, dar a essas referências, quando possível, certa
linearidade, transformando-as numa espécie de narrativa que configura, de certo forma,
um papel possível do leitor nessa poesia. Papel fundamental no desdobramento do
processo de mímesis, visto que é na reverberação de sentido, ou seja, quando o poema se
une a cada leitor (o “cada” quer apontar para alguma multiplicidade) que acontece o tal
povoamento da paisagem que, sabemos, é o próprio poema, em um processo apenas
cognitivo porque estético.
A partir desse levantamento em O Aprendiz de feiticeiro, perceberemos que
Carlos de Oliveira tem uma visão em que convergem as figuras do escritor e do leitor.
Antes do escritor, ele se coloca sempre ou quase sempre como leitor 5 . Ou melhor, não
há antes nem depois, como se primeiro ele fosse o leitor e em seguida o escritor. Não.
Seu posicionamento é simultâneo. Carlos de Oliveira, a partir de O Aprendiz de
feiticeiro, é um autor- leitor, leitor-autor. Leitor-autor no entanto todo escritor é, na
medida em que sua obra necessariamente estará inserida num contexto literário, ou seja,
em qualquer obra haverá um diálogo implícito ou não 6 . Porém o caso de Carlos de
Oliveira, em certo sentido, vai um pouco mais além, pois o que temos nesses textos é a
própria encenação do ato de leitura por parte do escritor. Antes de observamos alguns
exemplos, adiantemos que Carlos de Oliveira na própria escrita de seu texto – se não diz
– deixa entender através mesmo de seu gestual encenado no narrador e primeira pessoa
textual do livro em questão – algo de biográfico – que quem está ali é um leitor, um
apaixonado leitor.
Dito isso, podemos sintetizar alguns objetivos imediatos de nosso trabalho. O
primeiro deles é buscar e discutir a encenação do ato de leitura realizada pelo narrador
de O Aprendiz de Feiticeiro. Entendê- la como a própria maneira de Carlos de Oliveira,
o sujeito, estar ante os textos que lê, questionando, assim e também, as relações entre
escrita, representação e conhecimento do mundo. Somente a partir disso, poderemos
discutir o gesto e movimento de leitura em sua poesia. Perceberemos sua importância, a
partir do instrumental dado pelo próprio autor em O Aprendiz de Feiticeiro. Com isso,
5
Isso ocorreu-nos principalmente via leitura de dois também leitores autores: o primeiro é Borges e o
segundo, um autor contemporâneo, o catalão Enrique Vila-Matas, através sobretudo de dois de seus
livros: O mal de Montano e Bartleby e cia. Toda obra de Borges é um elogio à leitura, o poema “Um
leitor”, no entanto, pode pontuar tal elogio; seguem apenas seus dois primeiros versos: “Os outros que se
jactem das páginas que escreveram; / a mim me orgulham as que li” (BORGES, 1999, p. 418).
14
entender esse movimento de leitura como aquele que ativa no poema a referência à
realidade, realidade tanto da paisagem como realidade do poema. Ver nessa operação,
que é sobretudo de conhecimento a alteridade, uma operação da mímesis, já que dá a ver
essas realidades.
2.2. POVOAMENTO E MÍMESIS
Dizer que Carlos de Oliveira é um poeta realista talvez seja incorrer em erro.
Mas, dizer o contrário, também seria incorreto. Precisamos entender a mímesis para
além da idéia de cópia. Com isso, podemos chegar a um termo mediador em que a
realidade não seja algo a se evitar nem algo, como muito já se disse, de onde somente se
parte para se chegar ao estético, como se o estético não fizesse parte do que se entende
por realidade. Não é à toa que herdamos a palavra mímesis dos gregos. Não há tradução
exata para o termo, nem deve haver. Como veremos, circunscrevê- la à representação ou
mesmo, por exagero, à apresentação é limitar seu potencial.
Para evitar isso,
discutiremos alguns desdobramentos da mímesis em Platão e Aristóteles. E em seguida
alguns comentários de Costa Lima e principalmente de Paul Ricoeur. Feito isso,
poderemos entender melhor a relação entre mundo, leitor e referência.
O termo mímesis é anterior a Platão. No entanto, foi ele quem deu consistência à
palavra 7 . Embora já possamos ver algo a respeito da mímesis em diálogos como
Górgias e Crátilo, é na República que ela distingue-se, tanto que não aparece apenas
com um significado.
Primeiro veremos a mímesis como personificação. No Livro III da República,
Platão diz que os poetas podem contar estórias por meio de “simples narrativa, através
de imitação, ou por meio de ambas” (392d). São três as possibilidades: ou utiliza-se um
discurso que, hoje, chamaríamos de indireto, ou um que seria o direto, com a presença
mesma da voz dos personagens fingida pelo poeta; ou mesclam-se ambas. A primeiro
6
T.S. Eliot em “Tradição e talento individual”: “Nenhum poeta, nenhum artista, tem sua significação
completa sozinha. O significado e apreciação que dele fazemos constituem a apreciação de sua relação
com os poetas e os artistas mortos” (ELIOT , 1989, p. 39). E vivos também.
15
caracterizaria a poesia ditirâmbica; a segunda, a tragédia e a comédia; e a terceira, a
épica. O autor disfarça-se com uma voz que não é a sua, ou melhor, ele transforma-se
em outra pessoa, personifica-se. E é justamente tal procedimento que, segundo Platão, é
condenável na república platônica. Já que cada pessoa, para bem desempenhar seu
trabalho, pode apenas possuir uma função; um desvio dessa função comprometeria o
funcionamento da cidade. Um trecho de A República quando Platão fala acerca da
possível repercussão na cidade do exemplo negativo dado pelos poetas:
– Considera pois, ó Adimanto, o seguinte: se os guardiões devem ser
imitadores ou não. Ou resulta do que dissemos anteriormente que cada um só
exerce bem uma profissão, e não muitas, mas, se tentasse exercer muitas,
falharia em alcançar qualquer reputação? (394e)
Depois de criticar Homero pela imitação de personage ns, ele transfere a atitude
do poeta para os guardiões da cidade. A implicação moral é imediata. Até porque não há
em Platão separação entre o moral e o poético 8 . Segundo Paul Woodruff (WOODRUFF,
1992, p. 75), Platão não tem medo que o público, ao assistir as ações dramáticas, seja
enganado pelo ato mimético. O filósofo não menospreza a capacidade de discernimento
do público. O que ele teme é que os cidadãos se tornem como os poetas, ou seja, que
possam assumir vozes que não são suas, funções que não lhes cabem e assim
prejudiquem o bom funcionamento da cidade. O que importa aqui para uma leitura da
poesia de Carlos de Oliveira é a crença de Platão numa repercussão moral imediata da
poesia, embora aqui ela seja negativa.
Agora vejamos a mímesis como produção de imagem. Essa segunda acepção
desse conceito na República de Platão, em verdade, reparte-se em duas. No início do
Livro X, deparamos-nos com essa pergunta, há muito esperada, de Sócrates: “– Serás
capaz de me dizer em geral o que é a mimese?” (595c). O filósofo dá como exemplo os
objetos cama e mesa. Primeiro há a forma: uma forma para a cama e outra distinta para
a mesa. É a partir disso que os marceneiros produzem camas e mesas. Nada mais são do
que cópias imperfeitas do eidos, a forma única e real da cama e da mesa. Estamos diante
da teoria platônica das idéias. E não seria pela mímesis que ela se dá?
Dessa desdobra-se outra mímesis, cujo exemplo do filósofo agora é o pintor.
Depois de copiadas pela primeira vez das idéias, mesa e cama são copiadas pela
7
8
Principalmente no livro III e X da República.
Assim como em Carlos de Oliveira o estético está diretamente condicionado pelo ético e vice-versa.
16
segundo vez agora pelo pintor. Se a primeira cópia havia sido autorizada, dessa segunda
não podemos dizer o mesmo. Segundo Platão, o marceneiro imita a verdade; e o pintor,
a imitação da verdade; o que não é bom:
- Considera então o seguinte: relativamente a cada objecto, com que fim faz a
pintura? Com o de imitar a realidade, como ela realmente é, ou a aparência,
como ela aparece? É imitação da aparência ou da realidade?
- Da aparência (598b).
A analogia é logo feita com a poesia e, diferente do livro III, Platão não faz
distinção entre textos não-narrativos e narrativos. Todos são produtos da mímesis cuja
metáfora do espelho, usada aqui pelo filósofo, é elucidativa. Sócrates diz que a
produção de imagens, por quem de fato não as conhece, é:
(...) variada e rápida de executar, muito rápida mesmo, se quiseres
pegar num espelho e andar com ele por todo o lado. Em breve criarás o
Sol e os astros no céu, em breve a ti mesmo e aos demais seres
animados, os utensílios, as plantas e tudo quanto há pouco se referiu
(596d).
O perigo da produção de imagens se assemelha ao perigo do Livro III. A questão
não é que os gregos sejam enganados pela representação, mas que eles sejam
convencidos que o conhecimento do poeta, através de imagens a partir da aparência,
seja tão grande a ponto de ele poder dizer, amiúde, como deve se comportar um general,
ou seja, no que consiste sua arte, melhor mesmo de que o próprio general. Há o general
verdadeiro, único, existente somente no plano ideal. E há os demais, os possíveis,
apenas semelhantes ao verdadeiro. O problema é que pode haver um terceiro nível de
generais, aqueles semelhantes aos semelhantes, que pelo poder da mímesis podem
acabar sendo mais convincentes do que aqueles de segundo nível. Em relação a esse
tópico, talvez seja isso o que mais importa para a compreensão da realidade, ou da
referência à realidade na poesia de Carlos de Oliveira. Talvez seja a partir desse ponto
também que Aristóteles comece.
O fato de Aristóteles não definir previamente o que seja mímesis, implica
pensarmos que ele utiliza um conceito platônico do termo. Mas qual? No entanto,
diferente de Platão, nele tal conceito não repercute negativamente nem possui qualquer
reverberação metafísica. O papel desse filósofo será o de, na mímesis, respeitar sua
dimensão para o ético, sem deixar que isso a paralise. Aqui ela é congênita aos homens,
17
e é por ela que eles aprendem. Não só aprendem, mas, segundo Aristóteles, se
comprazem com isso.
Sinal disto é o que acontece na experiência: nós contemplamos com prazer as
imagens mais exatas daquelas mesmas coisas que olhamos com repugnância,
por exemplo [as representações de] animais ferozes e [de] cadáveres. Causa é
que o aprender não só muito apraz aos filósofos, mas também igualmente aos
demais homens, se bem que menos participem dele. Efetivamente, tal é o
motivo por que se deleitam perante as imagens: olhando-as, aprendem e
discorrem sobre o que seja cada uma delas, [e dirão], por exemplo, “isto é
aquilo”. (Poética, IV, 14)
Daí a possibilidade do verossímil, não o que é, mas o que poderia ser. O “isto é
aquilo” possibilita a mímesis. É uma operação metafórica de dissociação e
recontextualização. A imagem é separada, afastada de sua instância primeira, e
vinculada à outra ou outras da ordem, como diria Aristóteles, do possível, i.e., da
potência. É com essa distância que se dá não só o aprendizado, mas o estético. O que
importa mais não é o grau de fidelidade ao objeto – aqui, como em Platão, o espectador
não será enganado –, mas o quanto ele se aproxima, atua e é atualizado por quem o
experimenta. A imagem não é a coisa; e sim, a falta da coisa. Daí, a grande importância
da Tragédia. Algo de horrível está acontecendo diante de nós e ao mesmo tempo não
está acontecendo, por isso permanecemos no teatro. Por isso, a catarsis, como motivo
da experiência mimética.
Para entendermos tal efeito, talvez seja necessário fazer uma rápida distinção
entre mímesis e verossimilhança. A primeira é um possível desdobramento do
verossímil. Antes, no entanto, é necessário acompanhar as relações da verossimilhança
com a verdade. Como já sabemos, com Aristóteles, a vantagem da poesia sobre a
história reside justamente em tal tópico. A primeira possuiria maior poder cognitivo,
porque estético, sobre a segunda, devido ao seu maior alcance. O embate é entre o que é
e o que pode ser. O que pode ser inclui o que é; por isso o ultrapassa. A relação básica
é a de semelhança e diferença. O verossímil se assemelha ao que é e também se difere,
chegando assim ao que pode ser. É aqui que a mímesis se desdobra. Ela é justamente a
conseqüência disso no espectador da Tragédia. Se na verossimilhança o jogo é entre
semelhança e diferença, na mímesis – uma possível conseqüência do verossímil – será
entre simpatia e hostilidade, ou seja, é algo que queremos e não queremos próximo de
nós. No encantamento mimético, até o último instante, estamos na obra, ou melhor,
18
somos também a obra. No entanto, no momento-chave, quando nós mesmos sofreremos
as conseqüências de Édipo, desligamo- nos afastando- nos. Daí o páthos. (porque se não
nos desligássemos, não haveria movimento nem catarsis).
Uma das razões da exclusão da mímesis da crítica moderna é a confusão feita
com a palavra latina imitatio. Costa Lima fala um pouco disso: “Não é hoje segredo que
sua apropriação pelos tratadistas italianos teve um equívoco por base: mímesis
entendida por imitatio” (COSTA LIMA, 1995, p. 63). A leitura da Poética de Aristóteles
pelos homens do Renascimento foi feita com muito fervor. A vontade de organização,
que eles entenderam nesse livro, dizia respeito “exatamente” ao espírito da época. É
válido lembrar que, no século XV, o homem buscava erigir uma verdade, de alguma
forma, diferente daquela de ordem religiosa. O melhor contraponto seria seguir os
modelos fornecidos pela natureza. Daí uma leitura que privilegie a imitação. Diferente
da mímesis, no imitatio o que mais importa é a aproximação do objeto estético da
phýsis. Não que essa phýsis fosse desinteressante para Aristóteles; pelo contrário, basta
atentarmos para A Física aristotélica, livro ao qual recorreremos ainda. Mas ela só
adquiria razão de ser quando posta em movimento, ou seja, quando entrasse no jogo
com o espectador, quando se tornasse páthos.
A partir da mímesis em Aristóteles, o comentador Paul Woodruff faz um
levantamento do que não se entende por mímesis (WOODRUFF, 199, p. 89-91). Já vimos
que o termo não pode ser equivalente à imitação, embora seja essa sua definição mais
recorrente, via herança quinhentista. A mímesis também não é a ficção, mas pertence à
ficção, ou seja, é parte constituinte do mecanismo ficcional: aquilo com o qual a ficção
nos atinge.
A questão é diferente quando se fala da mímesis como reprodução. Segundo o
mesmo Woodruff, por um lado, a mímesis é reprodução; por outro, não. Eis seu
exemplo:
Se um operário, para não errar na medida, faz uma nova rédea a partir do
modelo de uma outra rédea anterior, ele não é um artista que opera por
mímesis, mas um operário (...) Apesar de o operário ter imitado o modelo, seu
objeto final não é uma imitação de rédea (idem, p.90).
A mímesis opera por reprodução, mas não se limita a ela; se não, no exemplo
acima, não teríamos talvez uma rédea e sim uma imitação, uma imagem, ou melhor, um
mímema da rédea. Mímema será o objeto, produto da ação mimética. Também não é
19
representação, já que somente algumas representações podem ser miméticas. Podemos
dizer, por exemplo, que nesta há mímesis e naquela, não. Os termos se tocam, mas não
se equivalem. Pela mesma razão, o conceito em Aristotélico também não pode se
equivaler à expressão, produção de semelhança ou de imagens. Em verdade, a mímesis
talvez seja o que nelas se movimenta e atinge os espectadores da Tragédia e a nós,
leitores de Carlos de Oliveira. Se a ficção cria, talvez seja a mímesis que transforme essa
criação em experiência própria.
A grande questão é como pode a poesia tratar e participar da realidade sem ser
passivamente descritiva. Essa phýsis, que aqui tomamos como paisagem, é a referência
a algo, o lugar, o exterior ao poema. A operação não é somente de descrição, mas
também de composição, pois não se trata de uma visão pacífica. A paisagem, no poema,
é um lugar alegórico que – além de ser, na poesia de Carlos de Oliveira, sobretudo, a
Gândara – é também a questão da linguagem como experiência crítica e resistente –
forma de vivência do homem, permanência no mundo sujeita à experiência da
brevidade. Ou seja, buscar lugares geográficos e encontrar lugares lingüísticos que nem
por isso deixam de ser também geográficos, culturais.
É como se o texto povoasse a paisagem: a mímesis não se dá em expor, em
versos, a realidade, mas em provocar no leitor, através do processo de autocrítica do
poema (distanciamento) uma sensação, porque estética, análoga à experiência da
paisagem em suas contradições e limitações físicas (aproximação). Essa vivência talvez
esteja perto daquilo que falamos acerca do páthos. Artaud, quando falava da função
social da arte, argumentava que a arte nunca havia salvado ninguém de ter fome, o
mínimo que poderia fazer seria provocar em quem a experimenta a sensação próxima a
da fome. (ARTAUD, 1999, p.1).
Embora seja principalmente vista como maléfica na filosofia platônica, importa
destacar a importância moral e até social da mímesis. Essa vitalidade, de certa forma,
está presente na obra de Carlos de Oliveira. Mas o que importa mesmo é chamar
atenção para seu legado aristotélico, lido aqui, como veremos, através da relação ato e
potência. O que teremos em sua poesia é a revalorização da phýsis, distante da maneira
renascentista, que, como vimos, através do imitatio, pouca distinção fez entre natureza e
verdade e entre verdade e verossimilhança. Em Carlos de Oliveira, no entanto, essa
phýsis não só está atrelada, mas forma uma unidade com o páthos, que é aquilo que, na
tragédia, move o espectador; e no poema, o leitor.
20
Chegamos ao ponto fundamental: a repercussão do que há no poema em quem o
lê. A mímesis é aquilo que na produção de imagens nos atinge, ou seja, aquilo que nos
vincula ao poema. Para Costa Lima, “(...) a mímesis não se origina da vontade de se
assemelhar a algo, a alguém ou a alguma forma de conduta sua, mas sim da demanda de
constituir uma identidade para quem a empreende” (COSTA LIMA, 2000, p. 323), tanto
autor como leitor. Por essa via ganhamos embasamento para chegar com maior
segurança a um Costa Lima mais antigo, aquele que em Mímese e modernidade falava
que “o próprio da mímese de produção é provocar o alargamento do real (...)”, o
produto mimético “só é capaz de funcionar pela participação ativa do receptor” (COSTA
LIMA, 2003, p. 181). Para ele, é como se a referência à realidade fosse apenas um
dispositivo para que o leitor, subjetividade outra, a desenvolva.
E é aqui que está Carlos de Oliveira. A paisagem é o dispositivo para que o leitor
ocupe o poema. Ele experimenta-a (a paisagem no poema) através das significações que
constrói (o povoamento). Tal processo se dá, não por uma alta exposição realista da
paisagem, mas por um auto-reconhecimento do poema como poema, ou seja, da
realidade do poema. Essa recorrente consciência do texto tanto afasta a paisagem
enquanto realidade, transformando o lugar em referência de lugar, como também
aproxima alguma outra coisa que atualiza a mesma paisagem e faz com que a
experimentemos em suas dificuldades e contradições.
Como em Aristóteles, no entanto, esse conceito de mímesis é utilizado às vezes
com uma definição não tão clara (até porque talvez pressuponha entre seus alunos um
pré-conhecimento desse conceito, já que a Poética constitui-se de algumas notas para
aula), tentemos, agora a partir de outra leitura, dar suporte a ele através de outros
conceitos que em princípio não guardam relação direta com a Poética. Na Metafísica,
ao conceituar o que é substância, Aristóteles chega à forma e, com isso, àquilo a que
chamamos ato e potência. Essa passagem é tema de toda a Metafísica. Não vamos aqui
tentar demonstrá- la, não só por falta de tempo como principalmente por nossa distância
do tema, que em muito ultrapassa o âmbito deste trabalho. “Digamos de imediato que o
problema da substância é o mais delicado, o mais complexo (...) para aquele que procura
entender a metafísica aristotélica” (REALE, 1997, p. 45). Assim, apontaremos para o
tema, em específico para ato e potência, na medida em que ele nos ajude a lidar com a
mímesis. Se os conceitos de ato e potência de fato não correspondem exatamente aos
mecanismos que estruturam o conceito de mímesis, eles podem ao menos se aproximar,
21
na medida em que integram, agora sim, mecanismos que estruturam as substâncias, a
realidade. E, como sabemos, a mímesis é uma forma de conhecer essa mesma realidade.
O que propomos é a possibilidade de encarar a construção mimética como o ato cuja
potência seria a realidade. É assim que lemos na Física que o bronze seria
potencialmente uma estátua de bronze (Física 1, p.199). Já na Metafísca lemos: “It
seems that everything which actually functions has a potentiality” (Metafísica, p. 141143). O que não quer dizer que a potência seja mais importante que o ato: “Can there be
motion if there is no actual cause? Wood will not move itself – carpentry must act upon
it; nor will the menses or the earth move themselves – the seeds must act upon the earth,
and the semem on the menses” (Idem). A passagem da potência para o ato se dá através
de conhecimento e trabalho. E essa atualização implica em principalmente dar forma às
coisas em potência. Assim, se formos agora ao tratado De Anima, leremos que “a
matéria é ela mesma enquanto potência, sendo a forma enteléquia [atualização], e isto
em dois sentidos: como conhecimento e como exercício, em acto, do próprio
conhecimento” (De anima, p.51). Seria interessante lembrar que a mímesis imita (o
verbo ainda é um problema) a ação dos homens e tal operação está profundamente
ligado, como vimos, à cognição. Podemos agora trocar o verbo e dize r que a mímesis
atualiza a ação dos homens e justamente por isso está ligada ao ato cognitivo. E porque
atualiza e leva ao conhecimento, está também e principalmente relacionada à
movimentação e transformação. Agora novamente a Física:
The act of builidng, then, is the energizing or bringing into actuality of
the potentiality of the materials qua materials; and the passage of the
materials of a house into the texture of the house itself, so long as it is
in progress, is their ‘movement’ qua materials of building. And this is
the theory of all other ‘movement’ equally. (Physics III, i-ii)
Construir a paisagem no texto, para além de imitá- la ou reproduzi- la, é atualizar
a paisagem enquanto potência. É conferir a ela, embora já reúna os itens que a
caracteriza m como tal, a capacidade de transformar-se. Logo, é através da mímesis,
sobretudo entendida a partir dessa relação entre ato e potência, que o poema faz
referência à realidade. Assim como cada ação humana é uma forma de atualização da
realidade, a obra de arte também o é, na medida em que é mais uma ação humana – um
trabalho, e em Carlos de Oliveira isso ganha um sentido ainda mais especial dado o uso
e importância da palavra ‘trabalho’ em sua obra – sobre a realidade. E como essa obra
constitui um todo em que as partes se determinam e funcionam entre si, sua relação com
22
a realidade é análoga à relação existente entre si e o leitor. Assim, o texto está para a
realidade assim como a leitura está para o texto, melhor, da mesma forma que o texto
atualiza a potencialidade do real, o leitor atualizará a potencialidade que para si é o
texto. Trata-se de se chegar à melhor forma, para que o poema permita a presença, aqui,
participativa e decisiva do leitor: o povoamento.
Como veremos, a dimensão semântica do sujeito no poema não só permite,
como exige que a leitura interceda nela. Nesse movimento, tanto ela conduz, como é
conduzida pelo leitor. Quanto mais atualização do mundo, mais do mundo ela passa a
ser parte integrante. É no que ela se reconhece como texto – daí a presença metapoética
– que cada vez mais é parte da realidade, do mundo. Por isso não seria absurdo
convocar para essa leitura a partir da mímesis tanto algum instrumental que valorize a
forma – reconhecendo a relação entre o todo e as partes, sintática e semanticamente 9 –
quanto um instrumental que considere que o texto, principalmente o poético, atualize-se
no momento em que as estruturas poéticas, reconhecidas como
características no objeto estético acabado, são transportadas, a partir da
objetivação da descrição, para o processo da experiência com o texto, a
qual permite ao leitor participar da gênese do objeto estético (JAUSS,
2002, p.876)
Assim estaríamos diante de um texto em que, como muitas vezes acontece na
poesia de Carlos de Oliveira, aquilo que é intra-textual reconhece-se no extra-textual,
não porque a leitura do poema não tenha limite, mas porque é sempre uma manifestação
direta do funcionamento da realidade. Ou para falar com Iser: “Se o texto literário é um
ato intencional dirigido ao mundo, então o mundo com que ele se relaciona não é
simplesmente nele repetido, mas experimenta ajustes e correções” (ISER, 2002, p. 942).
Podemos ainda ampliar esse horizonte: se ao invés da palavra ‘contexto’ ou ‘mundo’,
individualizássemos a proposta. Assim como Barthes sugere num famoso trecho seu:
“reescrever o texto da obra dentro do texto de nossas vidas” (apud S CHOLES, 1991,
p.25). Posicionamento tão valorizado por Robert Scholes em seu Protocolo de leitura
(Idem) – “A leitura é sempre o esforço conj ugado de compreender e de incorporar”
(Idem). Trata-se de um trabalho que chama atenção por seu interesse tanto pela forma
como pela maneira com que essa forma é recebida. A esse texto de Scholes em parte
voltaremos mais adiante.
9
Como por exemplo Jakobson na leitura de “Le Chats” de Baudelaire (JAKOBSON, 2002, pg.833-854).
23
Para finalizar, podemos trazer rapidamente aqui algumas considerações de Paul
Ricoeur que parecem seguir um caminho parecido com aquele proposto por Costa Lima,
antes. Ricoeur também vê o potencial de criação na mímesis:
se continuarmos a traduzir mimese por imitação, deve-se entender
totalmente o contrário do decalque do real preexistente e falar de
imitação criadora. E, se traduzimos mimese por representação, não se
deve entender, por esta palavra, alguma duplicação da presença (...)”
(RICOEUR, 1994, p.76).
Em Tempo e narrativa distingue pedagogicamente – a partir da Poética – três
modalidades de mímesis para melhor operacionalizar o conceito. Não vale a pena aqui
estabelecer o campo de ação dos três, pois precisaríamos de alguns capítulos. Para o
nosso trabalho, importa dizer apenas que o primeiro, o mais recorrente deles, está
relacionado à transposição da ação humana, modelo da mímesis, para a forma da obra.
O que irá nos interessar mais será, no entanto alguma coisa do segundo e do terceiro,
pois lida de perto com o nosso tema: “a mimese que é, ele nos lembra [Aristóteles], uma
atividade, a atividade mimética, não acha o termo visado por seu dinamismo só no texto
poético, mas também no espectador ou no leitor” (Idem, p.77). O prazer previsto por
Aristóteles é a finalidade do objeto mimético e, para Ricoeur, “esse prazer é ao mesmo
tempo construído na obra e efetuado fora da obra” (Idem, p.80). É pelo prazer que se
encontra o fator cognitivo da obra de arte. E o principal recurso para tal, como sabemos,
é a catharsis – ela pressupõe sempre a presença do receptor, já que, seguindo ainda o
autor, “é uma purificação (...), uma depuração – que tem sua sede no espectador” (Idem,
p.83). No entanto coerentemente Ricoeur não deixa que a balança pese excessivamente
para um lado apenas – só há determinado tipo de recepção, porque uma forma dada a
permite e condiciona: “a dialética entre o dentro e o fora atinge seu ponto culminante na
catharsis: experimentada pelo espectador, é construída na obra” (Idem). Se há, como
veremos em Carlos de Oliveira, a possibilidade de o leitor traçar seu próprio caminho
por dentro do texto, tal caminho não excede um espaço que pode apenas ser delimitado
por esse mesmo texto; de novo Ricoeur: “Qualquer que seja a capacidade do espectador
de abranger a obra de uma só vez, esse critério externo entra em composição com uma
exigência interna da obra que é a única que importa aqui [na Poética]” (Idem, p.67).
O filósofo francês chega mesmo a destacar alguns pontos da poética onde
podemos notar essa referência, como ele mesmo diz, à “estética da recepção, em
germe em Aristóteles” (Idem, pg.67)
24
quando diz que a poesia ensina o universal, que a tragédia,
representando a piedade e o terror, ... realiza uma depuração deste
gênero de emoções, ou ainda quando evoca o prazer que temos de ver
os incidentes aterrorizantes ou lamentáveis concorrem para a inversão
de sorte que constitui a tragédia – significa que é bem no ouvinte ou no
leitor que se conclui o percurso da mimese (Idem, p.110).
E, embora não mencione exatamente, deixa a entender a possível relação, aqui já
traçada, entre o conceito de mímesis e os de ato e potência ao escrever que “Seguir uma
história é atualizá- la na leitura” (Idem, p.118), ou quando, ainda antes, fala que “os
termos da semântica da ação adquirem integração e atualidade”:
Atualidade: termos que só tinham uma significação virtual na ordem
paradigmática, isto é, uma pura capacidade de emprego, recebem uma
significação efetiva graças ao encadeamento seqüencial que a intriga
confere aos agentes, ao seu fazer e ao seu sofrer (Idem, pg.91).
Em verdade a proposta de Ricoeur é muito mais ousada e pretende, na esteira de
Gadamer, uma fusão de horizontes. Horizontes que em seu livro assumem a roupagem
de tempos distintos. Ele busca na mímesis instrumental para entender como no espaço
temporal da narrativa pode haver uma fusão de tempos distintos. Vejamos o comentário
que faz de Santo Agostinho no que se refere a esse mesmo tópico:
Dizendo que não há um tempo futuro, um tempo passado e um tempo
presente, mas um tríplice presente, um presente das coisas futuras, um
presente das coisas passadas e um presente das coisas presentes,
Agostinho pôs-nos no caminho de uma investigação sobre a estrutura
temporal mais primitiva da ação (idem, p.96).
De certa forma is so faz algum sentido, como veremos, durante nossa percurso
por O aprendiz de feiticeiro; e também mais tarde, na leitura que faremos, induzidos por
esse mesmo livro, do poema “Estalactite”. O que interessa marcar agora é a importância
dada por nós, através da mímesis, ao leitor no ato de recepção. Importância que não o
torna solitário, onipotente. O contrário – ele não só é fiel, mas também inteiramente
condicionado pela forma que o antecede. O que não quer dizer que não seja um ato
livre, até porque a sua liberdade – isso que tanto valorizamos, mesmo quando a
chamamos de insubmissão – está inteiramente conduzida pela consciência que tem
dessa mesma forma que a motiva. A melhor imagem que possuímos, sem dúvida, é a de
Aristóteles, através dos conceitos de ato e potência. Como atualizar algo que não existe
em potência? Com isso, a relação leitor-obra é simétrica à relação obra- mundo. Assim
como a obra é livre, pois, quando atualizada, confirma o mundo – a leitura é livre, pois,
25
quando atualizada, confirma a obra. Dizer que o leitor – pelo menos aquele que Carlos
de Oliveira quer, é claro – corrompe a obra é tão absurdo quanto dizer que a obra
corrompe o mundo. Já que esses dois eixos, leitura-obra e obra- mundo, são produzidos
sobretudo por uma forma : fator que possibilita nessa obra tanto sua ligação com a
realidade, o mundo (como ato, i.e., trabalho), quanto sua ligação com a leitura, o leitor
(como potência. i.e., algo a ser trabalhado) 10 .
Na análise que se segue, não veremos no entanto uma preocupação última de
aliar, para um conceito de mimesis, uma perspectiva estruturalista a um instrumental
retirado a alguma estética da recepção e do efeito. Pelo menos por agora, interessa-nos
não propriamente essa questão teórica, embora ela às vezes nos pudesse ser muito útil,
mas sim a motivação que ela produz numa obra em que se tem notado, digamos, já há
algum tempo e de forma quase indiscutível, uma preocupação excessiva com o trabalho
da forma. Longe de negar isso, nosso texto de alguma maneira relaciona tal vontade de
rigor a algo que nessa obra acaba sempre por se extraviar e errar. Em outras palavras, a
preocupação da forma em Carlos de Oliveira está ligada à ‘forma’ que o leitor também
pode dar ao texto, já que o texto é a potência que esse mesmo atualiza.. Esta é a
motivação que nos leva a percorrer um livro tão importante como O aprendiz de
feiticeiro, percorrê- lo em busca de uma espécie de resposta a este extravio, erro
(lucidamente encenado) que, acreditamos, encontra alguma explicação nessas seguidas
representações do leitor e do ato de leitura, como agora pretendemos demonstrar.
10
Giovanni Reale ao comentar Aristóteles: “(...) a matéria é ‘potência’, isto é, potencialidade, no sentido
de que é capacidade de assumir ou de receber a forma: o bronze é ‘potência’ da estátua, porque na
realidade é capacidade de receber e acolher a forma da estátua; a madeira é ‘potência’ dos diferentes
objectos que com ela se podem fazer, porque é capacidade concreta de assumir as formas dos diferentes
objectos” (REALE, 1997, p.51).
26
3. M UNDO COMUM
Preciso quase sempre de imagens e, embora me
digam que é um hábito grosseiro em escritos
destes, não desisto de ligar tudo o que penso ao
mundo comum, quotidiano: os objectos, a
paisagem, os homens.
C.O., “Imagem turva ”
3.1. PROTOCOLOS DE LEITURA
PARA O APRENDIZ DE FEITICEIRO
“O que me interessa em Osório Bastos não é o escritor frustrado mas o seu
‘adiar’, embora seja difícil por a frustração ali e o resto aqui, bem separados”
(OLIVEIRA , 2004, p.141)1 , escreve o autor em “Fausto”, um dos muitos textos que
integram o livro O aprendiz de feiticeiro. Escolhemos essa imagem, a do adiamento,
porque nosso trabalho de alguma forma lidará com o tempo, com seu atraso e seu
avanço, na obra de Carlos de Oliveira. A escrita de um tempo próprio da literatura ou,
se quisermos, da poesia. Mas essa escrita, como veremos, mais do que uma forma de
exercício de permanência – aquilo que geralmente se cobra dos grandes textos –, será a
escrita de uma tentativa máxima de imersão no tempo presente. “Chega mos ao que
julgo importante. O adiar de Osório Bastos conduz a uma falsa concepção fáustica da
vida” (p.142). Esse adiamento, pequena imagem desse tempo de que falamos, como ele
afirma, não é uma operação de imobilização e inscrição eterna para fora do tempo,
como o exemplo do amor de Fausto por Margarida pode sugerir, mas sim a
possibilidade da experiência daquilo que os tempos, inclusive o nosso, têm em comum:
aquilo que nesses tempos pode ser partilhável. Referimo- nos à experiência da
brevidade, melhor, à experiência do fim. A criação desse tempo da literatura em Carlos
de Oliveira implica nisso, na possibilidade de seus textos darem a quem os ler tal
1
Neste capítulo as referências a O aprendiz de feiticeiro virão apenas com a indicação do número da
página. Preferimos a edição da Assírio & Alvim (2004), já que é a última. Quanto às variantes que essa
apresenta, comentaremos a seguir.
27
vivência. E nisso talvez resida um dos maiores trunfos dessa obra. Como veremos, é
essa vivência, pelo poema, da errância e da brevidade que faz de sua obra um caminho
por onde chegamos ao outro, num exercício de alteridade muito especial.
Contudo, nossa menção a Osório Bastos, “futuro romancista, de 38 anos,
grisalho, casado, pai de um filho” (p.141) servirá não exatamente para a verificação
disso, pelo menos, não assim, diretamente. Osório Bastos e o seu adiar funcionarão aqui
não apenas para iniciarmos a leitura de O aprendiz de feiticeiro, mas para já nesse livro
destacar o tópico que mais nos interessa: o do povoamento da paisagem. E este tópico é
o da leitura, mais especificamente do leitor e da recepção do texto. A menção neste
momento a Osório Bastos acontece porque, de alguma forma, o texto “Fausto”, de onde
a extraímos, parece na indefinição do que seja – um conto ou uma resenha sobre
Enseada amena de Augusto Abelaira – com alguns textos de dois autores que de uma
forma ou outra sugeriram a nós um percurso em que sobretudo o mais importante é
sempre a paixão pelos livros. O primeiro é Borges e sua vasta coleção de personagens.
O segundo trata-se de um autor catalão chamado Enrique Vila-Matas e de um livro em
especial, O mal de montano, em que uma personagem incorpora e é a representação de
toda a literatura. Em ambos, é a figura do leitor que ganha destaque. Em ambos, tal
figura está relacionada a certa vivência que não abole o tempo, mas o multiplica em
tempos distintos, contraditórios e complementares.
A indefinida não- finalização que Carlos de Oliveira atribui a Osório Bastos2
também aqui usamos com a finalidade de olharmos melhor para outro livro que apenas
aparentemente se finalizou. O aprendiz de feiticeiro em sua montagem reúne textos e
blocos de textos oriundos de épocas diferentes e escritos com finalidades também
diferentes. Falamos que se trata de um livro que apenas aparentemente se finalizou,
porque cada texto exige um posicionamento distinto do leitor. Não porque trate de
temas muito diferentes. Não é isso. Mas porque foram escritos não só em circunstâncias
diversas, mas para funções diversas. De modo que não podemos dizer: isto é um conto e
aquilo é um ensaio. Carlos de Oliveira sabia que um escritor trabalha com palavras. Por
isso toda manifestação escrita sua, mesmo que não resultasse num livro de poemas ou
num romance, deveria ser fruto do mesmo rigor com que escrevia aqueles. Nisso a lição
de seu amigo e “mestre” (p.16) Afonso Duarte é patente: “A palavra que digas / A carta
2
Osório Bastos é o personagem de Enseada Amena de Augusto Abelaira e o que interessa destacar é
apenas o seu adiamento em relação às coisas, posição análoga ao Bartleby de Melville, que aliás motivou
Bartleby e Cia de Vila Matas, uma história sobre escritores que não escrevem.
28
que escreva, / Que sejam obra de arte” (p.167). Como homem público (se alguma vez o
foi, porque nunca quis sê- lo) manifestou-se sempre de forma que suas palavras não
pudessem atrapalhar o curso de seus livros ou que, se atrapalhassem, atrapalhassem
pouco. Chegou ao extremo – pelo menos foi como quis que o conhecêssemos a partir de
O aprendiz de feiticeiro – de levar tal posição rigorosa mesmo às cartas que escrevia.
Falando ainda sobre Afonso Duarte escreve: “Segui- lhe a lição à risca: que as cartas
sejam obra de arte. Mas incapaz de obras de arte no já lá vou de cada dia reduzi a minha
correspondência ao mínimo possível para sobreviver socialmente: dois, três leitores;
quatro, cinco amigos” (p.167).
É essa economia que garantiu que esses textos, esparsos na imprensa ou mesmo
inéditos, alguns anos depois pudessem ser reunidos num volume como O aprendiz de
feiticeiro. O grande problema é a multiplicidade, portanto, de direções que se toma a
partir da leitura do livro. Nossa tarefa seria quase impossível se nos propuséssemos a
mapear a particularidade de cada texto, porque, como já sabemos, cada um desses textos
muitas vezes exige uma postura diferente do leitor. Em outras palavras, exigem
contratos de leitura distintos: conto, resenha, uma entrevista que deu e até mesmo uma
que não deu. Cada uma dessas modalidades textuais, por mais abertas que possam ser,
exigem um determinado posicionamento. Não podemos ler uma entrevista como se
lêssemos um conto. Ou não podemos encarar uma carta como se estivéssemos diante de
um prefácio. Por maior liberdade que o leitor deve possuir, não podemos tratar esses
textos da mesma maneira. Para falarmos com Robert Scholes (S CHOLES, 1991, p.18-19)
cada texto pressupõe um protocolo de leitura. Por mais que nossa leitura se configure
como produção. “Ler é escrever, é viver, é ler, é escrever” (Idem, p.23). Essa produção
somente avança, i.e., a leitura somente é escrita se for detentora de um trabalho, um
esforço de leitura que, como sabemos, recupere ou tente ir ao encontro de tudo aquilo
que possibilitou a produção do texto, com tudo aquilo que fez com que o texto existisse
materialmente na folha. No debate entre a hermenêutica e alguns desconstrutivistas, que
não vale a pena reproduzirmos aqui, Robert Scholes, assim como muitos também o
fizeram, afirma a impossibilidade de definir exatamente o protocolo de leitura de um
determinado texto. O que não quer dizer que nós não devamos trabalhar para desenhar
as suas linhas de força, tarefa – até porque não aponta para uma imobilização do texto –
não só possível, mas necessária. “A leitura tem duas faces e orienta-se para duas
direcções distintas, uma das quais visa a fonte e contexto original dos sinais que se
decifram, baseando-se a outra na situação textual da pessoa que procede à leitura”
29
(idem, p.23). Assim chegamos a alguns pontos que podem ser interessantes, entre eles:
“A leitura é sempre o esforço conjugado de compreender e incorporar” (idem, p.25). A
palavra esforço implica em uma tarefa que quase deixa ver algo de falhado. Se em
Carlos de Oliveira houver tal “falhanço”, como ele mesmo diz, veremos isso através do
trabalho com as palavras do autor português 3 . Por isso seria mais interessante convocar
Scholes outra vez e deixá- lo dizer que a leitura, agora sim, é “um processo activo que
envolve um misto de pesquisa e de imaginação” (idem, p.21).
Nossa tarefa, embora prometa o título do subcapítulo, não é determinar os
protocolos de leitura, seriam muitos, para O aprendiz de feiticeiro, mas, ao menos,
aprender a não tratar seus textos da mesma forma ou até retirar algum proveito dessas
diferenças e poder observar se elas produzem significados ou não para a interpretação
da obra de Carlos de Oliveira. E dentre essas muitas direções, escolhemos aquela que de
certa forma permeia muitos desses textos, muitos vezes atravessando registros
diferentes. Nosso trabalho é o de perseguir a imagem da leitura em O aprendiz de
feiticeiro. Ver como em ensaios, entrevistas e mesmo em contos, a questão da recepção,
mais até que a da produção, é mencionada pela primeira pessoa do livro que ora, devido
aos contratos distintos de leitura, chama-se autor (e portanto seria possível uma idéia de
biografia em Carlos de Oliveira, por mais distante que isso ainda possa ser), ora chamase de narrador e às vezes, dado sua não-fixação, apenas de a primeira pessoa do texto,
um personagem da linguagem. É claro que na preparação para a publicação do livro em
sua primeira edição (OLIVEIRA , 1971), esses textos passaram por certa homegenização
tanto estilística como semântica para dar a unidade que o livro tem. Aliás, a consciência
do rigor está presente em O aprendiz de feiticeiro assim como está em Finisterra e
Entre duas memórias, só para mencionarmos dois livros seus em que a organização e
unidade são a tônica.
Essa menção ao leitor se dá das mais variadas formas, todas, entretanto, parecem
se conjugar num mesmo propósito: o da necessidade de uma leitura ativa, participativa
em que o texto mesmo em sua feitura não só necessita do leitor, mas, quando lido, dá a
ver, entre outras coisas, o próprio ato de leitura. Ou como se vê em “Micropaisagem”,
não o livro – ao qual chegaremos apenas no capítulo dedicado à encenação da leitura –,
mas a penúltima parte de O aprendiz de feiticeiro, homônima do livro de poemas de
1968. O que vemos? “Um texto diante do espelho: vendo-se, pensando-se” (p.185).
3
“Mas então, que alegria triste assumir como última conseqüência de ser livre a responsabilidade do
falhanço” (p.164).
30
3.2. TODOS OS TEXTOS – O TEXTO
A título de exemplo façamos um breve passeio por caminhos do bosque que é
este livro. “Assim continuarei até entrar na floresta donde não se volta. Que seja o mais
tarde possível. Apesar de tudo gosto de perder-me entre as árvores” (p.123). Entremos
para ver alguns temas, algumas modalidades de texto e um dos principais recursos que
fornece unidade ao volume. O Aprendiz de feiticeiro, nome que remonta a uma narrativa
tradicional recriada por Goethe em um pequeno poema homônimo de 1797 sobre um
pequeno bruxo que aproveita a rápida ausência de seu mestre para se apoderar de sua
vassoura e arriscar alguns feitiços que não conseguirá reverter 4 . Claro que a máxima “o
feitiço voltou contra o feiticeiro” aí talvez conheça sua origem ou pelo menos uma de
suas primeiras manifestações. Esse poema de Goethe de algum modo pode ser visto
como prenúncio de questões trabalhadas no Fausto. Como vimos, há também no livro
de Carlos de Oliveira um texto homônimo do clássico maior do poeta alemão. Pensar no
narrador ou primeira pessoa do livro de Carlos de Oliveira, que, como esse pequeno
bruxo, não sabe controlar os poderes proporcionados pela magia é um começo. Quinto
trecho do texto intitulado “Na floresta (1966 e 1970)”, citação integral, “Provérbio a
propósito: semeias florestas, colhes tempestades. Como todos os aprendizes de
feiticeiros. Ainda bem. O vento nas ramagens confusas. Quem tem medo do vento?”
(p.124). Ou seja, aventurarmos-nos nessa floresta, bosque de algumas direções, para
errar por elas. Quem tem medo desse passeio? Outra pergunta que também viria a
propósito, quem tem medo de Carlos de Oliveira? Ou, melhor, quem tem medo desse
convite que é O aprendiz de feiticeiro? Convite este menos implícito do que pode
parecer: “O que falta é conhecer o segundo termo da relação autor- leitor, sondar o
destino do romance ou do poema, a tarefa anónima que os modela continuamente e lhes
dá vida” (p.68), escreve ele para uma resposta a uma entrevista (que não chegou a dar).
Esses caminhos diversos incluem um breve olhar nas modalidades dis tintas de
texto. Por ocasião de sua publicação em 1971, algumas resenhas já tentavam dar conta
da multiplicidade do livro. O crítico João Gaspar Simões diz, devido aos muitos textos,
ser uma “obra em prosa de gênero indefinido, ‘conversa à toa sobre literatura’ se nos é
permitido usar deste designativo lançado ao azar pelo autor na dedicatória com que nos
31
enviou o seu in folio” (S IMÕES , 1971, p.18-19). A citação é curiosa, porque dá a ver um
Carlos de Oliveira inédito, o da dedicatória a Gaspar Simões. Pequena nota que
transforma a experiência de leitura de seu livro numa “conversa à toa sobre literatura”,
deixando explícito – através sobretudo do tom carinhoso da dedicatória – a necessidade
de aproximação entre autor e receptor, já proposta no livro. Mas o que queríamos
chamar a atenção mesmo é o fato de Gaspar Simões considerar o volume uma “obra em
prosa de gênero indefinido”. Nuno Sampayo, em outra resenha do mesmo ano, prefere
não delimitar o raio de ação do livro: “O aprendiz de feiticeiro é uma coleção de
memórias, projectos, esboços, tentames, opinião, uma viagem dentro de uma
personalidade e em redor de uma cultura” (SAMPAYO , 1971, p.8). Já Urbano Tavares
Rodrigues, por mais que quisesse, não consegue colar o autor empírico ao narrador do
livro. Nesse sentido, a crônica seria a maneira possível de fazê- lo: “não se trata
exatamente de um livro de crônicas, segundo a convencional classificação do gênero”
(RODRIGUES , 1971, p.10). Baptista-Bastos, ainda em 1971, faz um pequeno
levantamento dos diferentes protocolos: “A riqueza (a raridade) de O aprendiz de
feiticeiro advém do seu aparente hibridismo: estranha mistura de memórias, de
confissões, de discurso sócio- literário, de novela, de poema, de ensaio.” O “aparente
hibridismo” é a “riqueza” do livro porque lhe fornece unidade. E depois o autor finaliza
com acuidade, revelando de algum modo de onde vem a tal raridade (unidade na
dispersão) da obra: “O aprendiz de feiticeiro é a história de uma pesquisa” (BAPTISTABASTOS, 1971, p.1-2).
No livro, há alguns ensaios menores que se aproximam, porque já o foram,
resenhas como é o caso de “Imagem turva (1947)” sobre Abel Boelho, “A pergunta
(1947)” sobre algum teatro de Raúl Brandão ou “Autor, encenador, ator (1968)”, um
cotejamento entre José Gomes Ferreira e Pessoa; outros ensaios um pouco maiores
como é o caso de “Tesoiro ao sol (1957 e 1959)”, texto – que em parte acompanhava o
segundo volume da antologia de contos populares portugueses, que organizara
juntamente com o já mencionado José Gomes Ferreira – onde se lê que os textos (aqui
orais) estão “condenados a morrer como arte alada e fluida que vai de narrador em
narrador, de metamorfose em metamorfose” (p.90). Talvez seja esse um dos poucos
momentos em que neste livro critica-se deliberadamente a mobilidade que os textos
ganham quando disseminados pelo ato de leitura. Nesse sentido, há outro momento de
4
O poema de Goethe foi adaptado pelos Estúdios de Walt Disney e resultou no longa-metragem de
animação Fantasia de 1938, com o ratinho Mickey.
32
crítica na segunda parte de “Almanaque literário (1949-1969)” em que escreve sobre um
mal-entendido acerca de uma menção que fez à importância das representações sociais
na obra de Camilo Castelo Branco: “Devia haver em todo o caso um limite
constitucional à deturpação das palavras alheias”5 . E diz isso claramente em relação ao
contexto político em que se insere: “é permitido ao cidadão português deturpar à
vontade o que lê e o que não lê, mas quando a ideia deturpada estiver inteiramente às
avessas, a Constituição nega- lhe o direito de ir mais longe” (p.54). O que só nos alerta
para a impossibilidade de o texto dizer o que não pode dizer, ou seja, há protocolos e
protocolos de leitura: uns admitem ambigüidade, outros; como o caso dessa entrevista,
não. E mesmo os que permitem tais indefinições não podem dizer tudo aquilo que não
dizem. Como veremos na encenação de leitura do poema “Estalactite”, isso que agora se
diz ambíguo, lá se traduz muitas vezes na imagem do “silêncio”. E mesmo esse silêncio,
que é aquilo que vem implícito no poema, não pode significar qualquer coisa. Pois,
como já vimos na teorização da mímesis, durante a leitura atualiza-se apenas aquilo que
de certa forma a potência permite.
Isso confirma apenas que o papel da leitura, como o lemos em O aprendiz de
feiticeiro, é, antes de tudo, crítico. E é de tal lucidez que se constrói a possibilidade de
construção de uma paisagem a ser povoada pelo gesto de leitura. Continuemos pelo
livro. Ao lado dos textos de cunho ensaístico, temos alguns contos como “Serenata
(1965)”, “Corvos (1947)”, “A viagem (1970)”, “A bela adormecida (1957), “Janela
acesa (1964)” ou o micro- finisterra que é a narrativa de “A fuga (1961 e 1967)”, cada
um porém guardando certa peculiaridade, que de algum modo desestabiliza o já amplo
formato do gênero, pois, o confunde com a escrita do diário, da crônica ou com a do
próprio ensaio, como é o caso do já visto “Fausto (1966)”, que mistura o registro da
resenha de Enseada amena de Abelaira com o de uma pequena narrativa. Ou ainda o
curioso “Chuva (1947)”, que justapõe à narrativa de uma personagem, Luciana, a sua
própria concepção, i.e., a primeira pessoa – que num registro ambíguo, cujo protocolo
também o é (somam-se a figura biográfica com a de um narrador-personagem) –
descobre-se em seu próprio ato de criação. “Seja como for, hoje, rompeu uma ponta de
sol e desço à beira-rio. Levo Luciana comigo. Conheço-a ainda mal. Cabelo azulado,
um pouco mais claro que a asa dum corvo (...) (p.81). De repente, a narrativa revela-se
5
Segundo o autor, essa foi uma “asneira” dita em uma “breve entrevista ao ‘Primeiro de Janeiro”. Pois
algumas palavras suas foram deturpadas. É o risco que se corre quando o protocolo do texto não permite
ambigüidades.
33
outra, a da sua feitura: “O tempo que demorou a descrição gastámo- lo nós a chegar.
Exactamente o mesmo tempo” (p.82). Até que, talvez justamente por essa consciência
meta-narrativa, vemos que a chuva, “nas poucas folhas do rascunho poisadas sobre a
mesa diante da vidraça aberta, dissolveu o perfil de Luciana ainda mal esboçado,
apagou- lhe a voz rouca, desfez- lhe o cabelo azul, sumiu-a sem eu dar por nada” (p.83).
Veja-se que – embora saibamos que a descrição na narrativa é uma forma prática de
prolongamento do tempo, conforme disse a voz, que é narrador-personagem e, ao
mesmo tempo, narrador-externo, “o tempo que demorou a descrição gastámo- lo nós a
chegar”, – ele continua a fazê- la, mesmo que para relativizá- la: a “as folhas do rascunho
poisadas sobre a mesa diante da vidraça aberta”. A ocorrência num mesmo texto de uma
narrador-personagem, aquele que de fato está com Luciana, e um narrador externo a
este plano narrativo, aquele que diz que está escrevendo a história, mostra apenas a
convivência de tempos distintos num mesmo espaço. Mecanismo que iremos
acompanhar mais à frente durante leitura de “Janela acesa (1964)” e depois ainda no
próximo capítulo, durante a leitura que faremos – a partir de algumas sugestões de O
aprendiz de feiticeiro – do poema “Estalactite”.
Ainda poderíamos apontar para outros textos que confundem o registro de uma
entrevista, diário ou, no mínimo, crônica, em que assumidamente a primeira pessoa do
texto parece se aproximar daquele que conhecemos por Carlos de Oliveira, o autor dos
textos. Por exemplo, “Manual de jogos (1963)”, em que um apaixonado por livros
descobre em um alfarrabista um velho volume sobre alguns jogos e faz conjecturas
sobre seus primeiros donos- leitores, devido a uma dedicatória, conforme veremos mais
à frente, na folha de rosto. Há também “Almanaque literário (1949-1969)” com trechos
de intervenções na imprensa, entrevistas e outros registros afins do autor. No entanto,
como sabemos, as indicações de proveniência dos textos não estão assinaladas no livro.
A única discriminação são datas que entre parêntesis acompanham os títulos, no
entanto, apenas no índice do livro. Já “O inquilino (1966)”, outro texto em que se pode
utilizar um protocolo de leitura que aceite o biográfico, é um momento bem curioso em
que o narrador(-autor) fala de seus projetos teatrais que nunca avançaram nem
avançarão, fazendo eco um pouco ao Osório Bastos e “seu adiar” permanente. Adiar
que confirma o rigor que o autor dejesava aos seus textos e que parece não conseguiu
dar às duas peças que não pôde finalizar. “O inquilino”, a peça homônima do texto e
não terminada, é símbolo daquilo a que os texto de Carlos de Oliveira evitavam ao
máximo estarem expostos. Vejamos. “E de repente, apesar do cansaço, desatei a redigir
34
os versos de ‘O inquilino’ no envelope que recebera do laboratório. Uma desatenção do
anjo ou do diabo encarregado de me deter. Não consigo explicá- la.”. Como vemos, o
autor, através do registro biográfico, está construindo a imagem que a partir de um dado
período quis que sua obra tivesse. “Não percebo também porque transcrevi há pouco
essa fala sem riscar uma simples vírgula: correcções, rasuras, acrescentos, são o meu
forte (e o meu fraco). Superstição? Quem sabe.” (p.40). Depois desse arroubo, digamos,
de inspiração, outra coisa não poderia acontecer. “Levantei- me e andei para a janela,
metido na pele do inquilino”. Havia algo de diferente na ordenação das coisas, escrever
assim de uma só vez, por isso questionou a si mesmo e a seu recente personagem “se
não haveria outras perguntas a fazer antes duma decisão que podia ferir o equilíbrio do
mundo ou coisa parecida”.
Vemos como sua obra tem implicações mais do que sociais, humanas. Sua
poesia sedimenta-se sob o signo da oficina porque só esse trabalho pode dar o rigor
suficiente para a ordenação do mundo, por mais precária e provisória que seja. Esse
erro é rapidamente consertado pela própria natureza. Abalado “o equilíbrio do mundo”
o resultado é este: “Neve por toda a parte: árvores, telhados, ruas, cintilando sob a luz
das lâmpadas (...)”. A neve um Lisboa, depois de anos, foi o sinal do desequilíbrio
causado pelo quase automatismo de “O inquilino”. A peça portanto deve ser
abandonada. Isso mostra a necessidade do trabalho que move a obra de Carlos de
Oliveira. O fenômeno funcionou como alarme, controle natural que decanta o
andamento de sua escrita. “O filtro mágico das palavras (pensei, cheio de espanto), aí
está ele. E senti a mão de Gelnaa apertar- me o ombro: – Nunca vi nada como isto”
(p.41).
35
3.3. CRIPTÓGRAFO E MUSA
– A PERSONAGEM G ELNAA
“E senti a mão de Gelnaa apertar- me o ombro: – Nunca vi nada como isto”
(p.41) E nem poderia. Gelnaa é a personagem que passeia por todo O aprendiz de
feiticeiro. Ela é o principal fator de unidade de um livro cujo primeiro texto é de 1945 e
o último de 1970. Ou seja, o livro, por mais que seus textos estejam sujeitos a reescritas,
se inscreve num recorte temporal de vinte e cinco anos. “Só aparentemente é O aprendiz
de feiticeiro a apresentação de soltos escritos de circunstâncias” (GUIMARÃES , 1991,
p.8), escreveu Fernando Guimarães, vinte anos depois de primeira edição do livro. Já
havíamos lido qualquer coisa sobre um “aparente hibridismo” e agora lemos que só
“aparentemente” há “soltos escritos de circunstâncias”. Essa aparência traduz uma
dispersão que em verdade converge para a profunda unidade que norteia o livro,
unidade que se deve sobretudo à presença de Gelnaa. Como se sabe, o nome é um
anagrama da mulher do autor, Ângela de Oliveira. Ao transformá- la no entanto em
personagem do livro 6 , que passeia pelos diversos textos, entre eles aqueles em que ela
normalmente poderia estar, como os que se aproximam de uma escrita diarística –
apesar de propriamente não darem a ver fatos biográficos, mas utilizá- los em torno do
tema tratado 7 – como é o caso de “Gás”, brevíssima narrativa em que o sujeito,
narrador, personagem e, quem sabe, autor, a partir de experiências tão quotidianas,
como por exemplo o que acontece próximo a sua janela, “falaremos como Lisboa
anoitece no verão” (p.119), escreve sobre desmatamento e poluição incorporando para
isso outras falas como as de Joyce e Tchekov. O que faz, aliás, sem aspas, mostrando de
algum modo como todas as referências integram um mesmo todo. Até porque são
biográficas também as suas experiências de leitura. Falávamos de Gelnaa, citemos então
sua sempre breve, mas fundamental aparição: “Três nuvens rectilínias de céu a céu, três
6
O anagrama constitui já aqui um gesto de aproximação e distanciamento do protocolo de leitura da
biografia. Ou, por outro lado, poderíamos dizer que constitui um gesto de distanciamento e aproximação
do protocolo de leitura da ficção. Em O aprendiz de feiticeiro, temos portanto certa movimentação que
não deixa que se fixe o estatuto da voz que diz o texto. E um dos principais fatores que caracterizam a
unidade, apesar de tudo, dessa voz é a referência constante a Gelnaa.
7
“Não, não sou vegetalista, quer dizer, não sou nenhum exacerbado idólatra do bucolismo. Venho de
famílias arenosas (pântanos, pinheiros, dunas), gente por assim dizer alimentada a cerne, avós carpinteiros
36
traços de fumo deixados pelos jactos duma patrulha. Urbanização nas alturas. Como é
que a tua beleza, Gelnaa, há-de sobreviver sem uma máscara antigás” (p.121). É em sua
breve participação que o texto, mesmo que em negativo, ganha nome, “Gás”.
Acerca disso, Rosa Maria Martelo escreve que este diálogo entre sujeito e
Gelnaa “irá ressurgir na maioria dos textos recolhidos, constituindo uma das linhas de
sutura que permitem associar experiências disjuntas e momentos diferentes, tornando-se
um factor de articulação macrotextual” (MARTELO , 1998, p.143). Arriscaríamos até
dizer que Gelnaa é a principal linha de sutura de associação do livro, pois é sua presença
que paradoxalmente aumenta no livro o caráter ficcional, já que introduz uma
personagem que, independente do protocolo que o texto exija, está presente, mesmo que
muitas vezes apenas em uma frase 8 . É essa pequena presença que dá a O aprendiz de
feiticeiro a aparência às vezes de uma narrativa. Como bem reparou Martelo, na reunião
das obras de Carlos de Oliveira, pela editora Caminho em 1992, o volume na
bibliografia do autor aparece em uma seção intitulada “Crônicas” (OLIVEIRA , 1992,
p.1162). Martelo prefere a classificação proposta por Manuel Gusmão que inclui o livro
na seção “Prosa” juntamente com os romances. O que só ressalta o potencial ficcional
de O aprendiz de feiticeiro ou, ao contrário e com certa provocação, aproxima os
romances do potencial “biográfico” deste livro. Em parte, para além do caráter de
reescrita e do decantado estilo presente em todos os livros, a grande responsável por
isso é Gelnaa, presença que por si só também é provocante: é uma personagem que,
porém, remonta a uma referência externa, apesar do distanciamento e ocultamento que o
anagrama produz. O que pode ser caracterizado como uma estratégia ficcio nal. Ao fim,
vemos sobretudo como de certa forma esse esforço de classificação mais do que difícil,
soa obsoleto para O aprendiz de feiticeiro. Se estas modalidades estão no livro,
precisam de um novo entendimento nosso do que elas sejam. Em outras palavras, dizer
autobiografia ou ficção já não é suficiente para falar com estes textos. Ou precisamos de
novos protocolos para acreditar – o que só adiaria futuros problemas – ou precisamos
sabê-los precários e moventes. Precisamos tê- los como interseccionáveis, ou seja,
enquanto ainda os utilizarmos, não podemos imobilizá- los, mas sempre colocá- los em
insistente diálogo.
de soalhos, pranchas, moveis trabalhados, grandes plantadores e lavrantes de madeira. Mas isso é outra
coisa.” (p.119)
8
Martelo escreve que o “sujeito da enunciação-escrevente tem a mesma dimensão de presença-ausência
que caracteriza Gelnaa (Ângela-personagem)” (M ARTELO, 1998, p.145)
37
Leiamos somente alguns textos em que Gelnaa está presente e percebamos como
ela introduz de algum modo o protocolo da ficção e, a um tempo, o da biografia, na
maioria das vezes a textos que não admitiriam nem um nem outro. Em O aprendiz de
feiticeiro há vinte e quatro textos que cobrem vinte cinco anos. Desses vinte e quatro,
dez explicitamente mencionam Gelnaa. Seu nome aparece num total de vint e nove
vezes ao longo do livro. Além desses dez textos, em “Serenata (1965)” seu nome forma
outro anagrama, Jane L. Já em outro, “Janela acessa (1964)”, o nome de Gelnaa não é
mencionado, mas sabemos que é ela quem segura o livro na breve narrativa, conforme
ainda veremos adiante. Além disso, a palavra ‘janela’ no próprio título de algum modo
também forma outro anagrama. Portanto, acrescentando mais essas aparições, o número
de textos passa para doze, metade, como vimos, do número total. Ou seja, Gelnaa está
em metade dos textos do livro e neles aparece um número significativo de vezes, vinte
nove. Isso confirma apenas o que já desconfiávamos: que Gelnaa é tão importante
quanto a primeira pessoa (narrador, personagem, autor, escritor). A dedicatória do livro
não se encontra no início, mas dentro do texto “Na floresta”9 , mais especificamente em
seu sétimo tópico: “Falei sobretudo de árvores e amor. Chegou a altura de oferecer este
livro a Gelnaa, mulher- floresta, acolhedora e imperscrutável.” (p.138). Ao fim desse
mesmo texto, que veremos mais amiúde à frente, chega-se a algumas equivalências
matemáticas: “floresta = labirinto / labirinto = deserto / deserto = floresta” (p.139). Ser
portanto a mulher- floresta, para além da declaração de amor, é desempenhar um papel
importante na obra de um autor que escreve o seguinte: “Cada passo, livro, acaso,
opção, paixão, me levou a uma floresta.” (p.121) Ou ainda em Sobre o lado esquerdo:
“Contar os grãos de areia destas dunas é o meu ofício actual. Nunca julguei que fosse
tão parecidos, na pequenez imponderável, na cintilação de sal e oiro que me desgasta os
olhos” (OLIVEIRA , 1992, p.222). A obra de Carlos de Oliveira, de algum modo, sempre
esteve nesse labirinto entre a “Amazônia” e “Gândara”, para falarmos com seu primeiro
livro Turismo. Ou entre a memória e a projeção, como veremos na leitura do poema
“Estalactite”, de certa forma, análogos à floresta e ao deserto. Ser portanto essa mulherfloresta é em O aprendiz de feiticeiro ser o interlocutor, a segunda pessoa do discurso a
quem se dirige o texto. Gelnaa é o receptor ideal. O livro é dedicado a ela, pois também
é um livro antes de um autor, um leitor. O aprendiz de feiticeiro é um livro sobre a
leitura. “Revelação de um bom leitor que todo escritor deve ser também” (NAVARRO,
9
Carlos de Oliveira utiliza o modelo da epopéia ao inserir a dedicatória dentro do texto e não fora, como
é feito principalmente a partir do Romantismo.
38
1971, p.41), palavras de António Rebordão Navarro por ocasião da publicação do livro.
Ou ainda J. A. Osório Mateus: “Obra que, até pelo ocultar de seu unificador carácter
fictus, se não oferece de imediato, que exige um ‘lavrar’ que o autor- leitor sabe não se
limitar ao processo de escrita (MATEUS, 1971, p.87-88). Gelnaa representa o modelo de
leitura que o “autor- leitor” também é e quer para si. Ainda em “Na floresta”, algumas
páginas antes da dedicatória, lemos: “Mal se vê dentro destas frases. Só com a lâmpada
da paciência. Felizmente não falta paciência a Gelnaa, que se tornou o meu criptógrafo.
Decifra a escrita semi-secreta e copia-a à máquina” (p.124). Diríamos, se Carlos de
Oliveira acreditasse nisso, que Gelnaa é sua musa inspiradora, assim como outras
interlocutoras, a saber, Beatriz, Laura, Dinamene, Marília, Lídia. Gelnaa é apenas o seu
criptógrafo. Aquela que pode, mais do que decifrar, entrar pela sua escrita cujos
protocolos, como sabemos, são moventes. Portanto, não há decifração, mas sim abertura
de caminhos. Para entrar na floresta somente uma mulher- floresta. Por isso, seja Gelnaa
talvez a principal fornecedora de unidade ao livro. Ela nos representa, nós, os leitores.
Ou seja, precisamos ser como criptógrafos e leitores- floresta. Entrarmos no textos,
povoá- lo.
Vejamos alguns momentos de Gelnaa no livro antes de pesquisar mais acerca
dos protocolos. Gelnaa aparece em “O tesoiro ao sol”, um texto ensaístico sobre o conto
popular português. Quando publicado pela primeira vez, é claro, no texto não havia
menção alguma à personagem. No entanto, para O aprendiz de feiticeiro, acerca da
presença ou não do mar nestas histórias, lemos: “Não encontrei nada, por exemplo, que
evocasse a época dos Descobrimentos. Gelnaa aponta-me o seguinte passo de José Leite
de Vasconcelos nas ‘Tradições populares de Portugal’ (1882): ‘Apesar de Portugal ser
um país de navegadores, não tenho recolhido nem muitas nem muito extraordinários
tradições do mar. O que há é a abundancia de cantigas marítimas’. Coincide” (p.110).
O texto se estende por vinte e quatro páginas de caráter analítico e impessoal.
Até que súbito encontramos a referência à personagem acima. O que de uma forma sutil
desestabiliza o formato e ativa no leitor outro protocolo de leitura. Em “O inquilino
(1966)”, da qual já lemos o trecho da tempestade de neve como possível filtro do texto
de Carlos de Oliveira contra a inspiração, vemos como Gelnaa tem um papel
importante. Além de dar certo caráter, ao mesmo tempo autobiográfico a esse texto que
em certa medida já o tem10 , perturba sua linearidade, na medida em que desvia a
10
Como vimos, “O inquilino (1966)” é um texto que trata, principalmente, das peças que Carlos de
Oliveira, autor, não escreveu. O que nos leva a um contrato que é sobretudo biográfico. Mas que,
39
pequena narrativa, sobre as peças que o autor não escreveu, para a janela, para ver, na
rua, as árvores que o vento vai derrubando. Vejamos:
A idéia [de uma possível peça com tema histórico] é mais ou menos
contemporânea de ‘El-Rei Sebastião’ de José Régio e ‘O indesejado’
de Jorge de Sena (...). Faltam alguns com certeza, mas cito de
memória, sem estantes para consultar, neste ermos dos arredores de
Lisboa batido por um vento de tempestade que vai derrubando
centenas de pinheiros, colaborando exemplarmente no arboricídio
geral.
Gelnaa, a escorrer chuva, entra pelo escritório:
– A acácia grande caiu agora mesmo.
A acácia grande, cem anos vagarosos de crescimento. O
fascínio de certas árvores, o seu charme antigo recebemo-lo de
plantadores mortos há muito e não podemos improvisá-lo ou
substituí-lo durante a nossa vida. Não chega para tanto. Plantaremos
outra acácia, claro, mas a que foi derrubada deixou mais um pouco de
sombra nos olhos de Gelnaa (p.35).
Ela é a concretização do que há por fora do texto, mas que nem por isso deixa
de estar no texto. Até porque as árvores que caem por causa do vento podem funcionar
como correspondentes às peças que o sujeito, embora quisesse, jamais escreverá. A fala
de Gelnaa concretiza tal analogia. Analogia esta que faz com que o texto, que fala
desses projetos não-realizados, possa também significar de algum modo a ação do
tempo. A voz do narrador se transforma em eco da fala concreta de Gelnaa, “A acácia
grande”. Sua voz faz com que represente essa ação do tempo tanto sobre o texto como
sobre as árvores, até porque, como lemos em “Na floresta (1966 e 1970)”, texto e árvore
constituem um movimento de convergência 11 . Esse movimento, cuja parte mais visível
é a fala de Gelnaa, atinge o narrador e passa a ser visível também, como vimos na
citação, somente a partir da personagem, “Plantaremos outra acácia, claro, mas a que foi
derrubada deixou mais um pouco de sombra nos olhos de Gelnaa”.
No último texto do livro, “A fuga (1961 e 1970)”, narrativa cujo narrador se
aproxima da voz que narra outro livro, o último de Carlos de Oliveira, Finisterra.
Paisagem e povoamento, o lugar de interlocutora de Gelnaa é, embora tal opere pela
negativa, confirmado. O que revela a inevitável solidão que o trabalho de escrita tanto
combate como reforça. Repulsa pelos convidados e, a só um tempo, convite para que
venham:
sabemos, devido a Gelnaa, uma personagem que encontra e não encontra equivalência na vida do autor –
ou no texto da vida do autor – deixa de sê-lo exclusivamente.
11
O que só reforça o fato de Gelnaa ser a “mulher-floresta, acolhedora e impercrustável” (p.139).
40
Eles continuam a procurar-me, continuariam até ao fim do mundo se
lhes parecesse necessário, e embora ignorem que passei alguns anos
aqui hão de descobrir este abrigo. Não revelei a ninguém, nem mesmo a
Gelnaa. Fiz apenas o que faz o bicho em perigo, fugi para a toca, sem
pensar, num simples reflexo de defesa. Mas sei que vão aparecer como
apareceriam onde quer que eu fosse. Arma, faro, matilha, duma
abstracção que os torna implacáveis, de tão exterior à consciência
individual” (p.189).
Não sabemos quem são eles, leitores? poemas?, nem que lugar é esse, memória?
texto? Mas isso não importa tanto, o que de fato conta aqui é que são exteriores “à
consciência individual”, inclusive Gelnaa, segunda pessoa do discurso que talvez agora
comece a ganhar ares de representação de uma alteridade. Como vimos no capítulo
sobre a mimesis, um movimento de aproximação e distanc iamento necessário à
construção ficcional: “Estou de facto só. Apesar de tu existires, Gelnaa, rejeito em bloco
o passado, o presente, o futuro e escrevo as duas palavras, desolação, desilusão, que
tanto ponderei. Para quê afinal se hoje não tenho outras?” (Idem)
A personagem que passeia pelo livro e faz com que de fato suas árvores
constituam uma floresta é a imagem do receptor dos textos de Carlos de Oliveira. A
essa imagem, como veremos adiante, sobrepõe a do próprio narrador dos textos, em
suas mais variadas modalidades. Nessa primeira pessoa, podemos ver não só uma
preocupação com a leitura, como já vimos através de algumas citações do livro em
questão, mas a imagem mesma de um leitor. Veremos a seguir que o narrador de O
aprendiz de feiticeiro é um leitor. E Gelnaa, anagrama que disfarça algum apelo
biográfico, revela tanto a companheira de uma vida como uma companheira dos textos.
É o outro do discurso que está sempre presente por mais que a “solidão compacta”, que
a escrita convoca, sempre insista. “Estou de facto só”, escreve. Mas, afinal, a literatura
não é uma forma de aproximação, uma possibilidade de encontro?
A porta sossegou. Afinal o presente, o futuro, interessam-me
também. Não os rejeito, Gelnaa. Não rejeito nada. Espero. A solidão
compacta desapareceu. Perante as estrelas torna-se difusa, que dizer,
suportável. Perde a consistência interior, evola -se de mim (não toda
evidentemente), dissolve-se no mundo. Respiro outra vez (p.196).
A “consciência individual” perde-se tanto devido a um passado irrecuperável
através da memória, como também devido à direção imprecisa que a obra toma no ato
da leitura. É aqui que o leitor pode também ser a primeira pessoa do texto e a primeira
pessoa do texto também pode ser o leitor. E nisso a poesia de Carlos de Oliveira é
muitas vezes exemplar. Seja por meio de uma primeira pessoa cujas características
41
acabam sendo abrangentes, seja por meio de verbos no infinitivo, convites, como é o
caso em “Estalactite” de Micropaisagem. A solidão desaparece porque o sujeito é
tornado múltiplo. Assim, a paisagem, que o poema é, passa ser povoada, mesmo sendo
um povoamento condenado à errância, por esse sujeito expandido pelo ato de leitura do
poema. Como diz o trecho citado, sua dissolução no mundo é a única maneira de
continuar respirando. Por isso talvez que a última e decisiva fala de Gelnaa no livro faça
referência a um “comboio eléctrico”. Brinquedo este que encontramos em outro poeta
cuja perseguição, em muitos sentidos, era também o fim dessa “solidão compacta”
através de sua dissolução no mundo como forma de permanência 12 .
Memória, estrelas. Mesmo nos dias chuvosos ou de névoa. O planetário
servia para isso. (Para alguns encontros também). Agradava-me ter à
tarde, por antecipação, o céu invisível da noite e ia lá com freqüência.
Exactamente como dizia Gelnaa:
– O teu brinquedo, o teu comboio eléctrico (p.190).
A imagem de estrelas e infância juntas já estavam presentes em “Árvore”,
poema de Micropaisagem, sobretudo sua oitava estrofe: “(...) na constelação / exígua /
que fulgura / ao canto do quarto: / o baú ponteado / como o céu / por tachas amarelas,/
por estrelas / pregadas na madeira / da árvore” (OLIVEIRA , 1992, p.266). E a imagem da
criança percorre toda a obra de Carlos de Oliveira e culmina no desenho infantil de
Finisterra, geralmente representando uma tentativa de perseguir o passado
irrecuperável. No entanto aqui a menção a “Autopsicografia” de Pessoa deixa ver como
o trabalho dessa escrita e dessa leitura, e o tanto que têm de lembrar e de esquecer,
aproximação e distanciamento, dizem respeito à noção de um sujeito cuja dispersão
aponta para algo de muito potente tanto relacionado à possibilidade de multiplicação,
simultaneidade que possibilita o povoamento, como relacionado à necessidade da
errância, ocasionada pela experiência da brevidade que é a experiência subjetiva no
poema.
12
Última estrofe da “Autopsicografia” de Fernando Pessoa: “E assim nas calhas de roda / Gira, a entreter
a razão, / Esse comboio de corda / Que se chama coração” (PESSOA, 1986).
42
3.4. BIOGRAFIA E LEITURA –
A PRIMEIRA PESSOA DE ALGUNS TEXTOS
Livros vivos, no texto, na presença
quotidiana, entre o que se toca, olha, bebe,
ama dia a dia.
C.O., “Almanaque literário”
Antes procuramos mostrar como O aprendiz de feiticeiro é um livro múltiplo,
mas que possui uma unidade estruturante muito forte. No entanto tal unidade, não se
caracteriza por encaixar todos os seus textos, muito diversos entre si, num padrão único
de protocolo de leitura. Essa unidade é formada pelo caráter plural de cada texto, i.e.,
quando pensamos estar diante de um ensaio, possíveis aspectos da vida cotidiana do
autor surgem no texto. Isso acontece de tal modo que também quando estamos diante de
textos em que aparentemente o caráter autobiográfico é a tônica, algumas menções a
outras leituras introduzem certo tom ficcional que alteram nossa expectativa de leitura.
O resultado disso é que tais classificações são importantes apenas para vermos como
estas se deslocam durante a leitura do texto. O que nos interessa é notar como estas
mudanças podem se dar. Vemos alguns textos em que a autobiografia – trechos de
entrevista, por exemplo – exigem do leitor outros protocolos. Assim como também
vemos o inverso. Por isso chega a altura de falarmos da importância do termo biografia
aqui. Ao utilizarmos tal palavra não estaríamos contradizendo em certa medida uma
obra que nunca precisou que seu autor falasse por ela? Autor este que aliás sempre
privilegiou uma vida pública silenciosa. Durante a leitura de O aprendiz de feiticeiro em
nenhum momento podemos de fato falar de algo realmente autobiográfico, embora a
todo o momento o leitor tenha vontade de o fazer. E nisso mais uma vez a presença de
Gelnaa é central: ela suscita tanto uma aproximação da vida do autor, quanto um
distanciamento. Se quisermos sempre ligarmos Gelnaa a Ângela de Oliveira, embora
continuemos com alguns problemas, o protocolo biográfico minimamente talvez se
cumpra. No entanto, Gelnaa pode ser uma personagem, como é, e não guardar qualquer
relação imediata com alguma pessoa exterior ao livro O aprendiz de feiticeiro. O
anagrama seria mais um achado do “inventor de jogos”. Ambos os posicionamentos
43
acima são extremos: o primeiro usa o protocolo exclusivo da autobiografia; o segundo,
o exclusivo da ficção.
Todos sabemos a importância da memória para a obra de Carlos de Oliveira:
como o poema é o resultado de um esforço construtivo para recuperar algo que já se
sabe irrecuperável, algo que mesmo se inteiramente recuperável seria presentificação de
escassez, dureza e morte. Segue abaixo o célebre trecho em que o autor fala de uma
mimetização da paisagem:
Meu pai era médico de aldeia, uma aldeia pobríssima: Nossa Senhora
das Febres. Lagoas pantanosas, desolação, calcário, areia. Cresci
cercado pela grande pobreza dos camponeses, por uma mortalidade
infantil enorme, uma emigração espantosa. Natural portanto que tudo
isso me tenha tocado (melhor, tatuado). O lado social e o outro, porque
há outro também, das minhas narrativas ou poemas (...) nasceu desse
ambiente quase lunar habitado por homens e visto, aqui para nós, com
pouca distanciação (p.184).
A pergunta é a seguinte: a partir dessa perspectiva não haveria no texto de
Carlos de Oliveira um esforço autobiográfico através desse retorno ao passado? Isso
parece não ser possível, porque de alguma forma seus textos não permitem tal
expectativa nossa. Talvez porque a primeira pessoa no poema, quando há, não se liga
imediatamente a uma experiência – inclusive do autor – reconhecível e facilmente
verificável; talvez porque esses versos dêem conta de um universo semântico em
princípio abstratizante, com suas lentes que dão grandes dimensões a espaços e ações
mínimas ao olho humano 13 . Muitas vezes também a já conhecida “consciência oficinal”
(GUSMÃO, 1981, p.79) ou o “profissionalismo torturante” (RUBIM , 2003, p.115) desses
textos ajudam a distanciá- los de um texto mais discursivo, melhor, que encontra mais
facilmente no discurso cotidiano seus referentes sem maior necessidade de trabalho por
parte da leitura. Queremos chamar atenção justamente para essa espécie de contradição
que está nos poemas e, como vimos no subcapítulo anterior, também em O aprendiz de
feiticeiro. Se neste livro a principal responsabilidade disso é de Gelnaa, nos poemas se
dá por esse desejo de retorno – a memória que constrói – contraposto ao resultado final:
que é o poema na mão do leitor, sendo lido, tomando caminhos incertos, errando de
leitura em leitura e assim se afastando daquela vontade de lembrança. Como vimos,
para além disso ou mesmo por essa causa, Gelnaa é a interlocutora. Nos poemas tal
papel será realizado pela inevitável projeção do poema no ato de leitura, como veremos
13
Por exemplo, o poema “Estalactite”.
44
adiante a partir de “Estalactite”: “A tarefa, o trabalho do escritor (inventor de jogos para
outros jogarem) consiste em garantir que a promessa mantenha a sua eficácia de
promessa, em abrir uma ‘margem de silêncio’ que deixe lugar ao leitor para escrever o
livro que lhe foi prometido” (RUBIM , 2003, p.118).
Nesta parte do percurso de O aprendiz de feiticeiro, veremos alguns momentos
em que a primeira pessoa dos textos revela-se, mais do que um ensaísta, um leitor
apaixonado, sobretudo, pelo objeto livro. Ou seja, percorreremos alguns textos, uns
aparentemente não-biográficos, em que possamos entrever alguns hábitos desta primeira
pessoa do discurso, que a julgar quais são, podemos dizer que se aproxima do texto da
vida de Carlos de Oliveira, autor empírico. Aquilo que em princípio julgávamos não ser
necessário saber para lermos sua obra, mas que, a partir do momento que se revela,
passa a integrá- la. A parte visível deste iceberg que é sua biografia, i.e., aquilo que é
visível, porque interessa que o seja, é sempre a imagem de um Carlos de Oliveira leitor.
Quando, quase sempre brevíssimo, o protocolo da biografia é ativado – por mais
ficcional que essa biografia também seja, pois se trata afinal também de um texto – o
que encontramos é sempre alguém encantado por livros e que valoriza ao extremo o ato
de leitura. Ao fim de O aprendiz de feiticeiro, percebemos que o sujeito desses textos,
por mais que se aproximem e se afastem do autor empírico, tem como ponto de
convergência o interesse pela leitura. Às vezes mais evidente, como quando relata seus
encontros com os livros, onde, quando e como: por exemplo, em “À espera de leitores
(1959 e 1966)” ou “Manual de jogos (1963)”; às vezes, ao sabor da lembrança, como
quando segue errando por versos, frases de autores: é o caso, entre outros, de “A viagem
(1970)” e “Na floresta (1966 e 1970)”; ou finalmente quando escolhe sua leitora
preferida, Gelnaa, como é o caso do importantíssimo “Janela acesa (1964)”.
A partir da proposta do povoamento da paisagem, essa biografia valeria mais
que uma autobiografia, na medida em que o poema passa a ser um espaço a ser
povoado, um papel a ser desempenhado ou, como vimos, uma potência a ser atualizada.
Pois esta vida que se escreve, por mais que criticamente encene tal tentativa, não
consegue ou consegue apenas parcialmente – talvez venha daí sua perfeição – o retorno
pela memória. Dito isso, podemos pensar de duas formas que podem parecer
excludentes, mas não são: 1) o texto não consegue escrever o passado tal qual gostaria
de fazê-lo, assim o poema seria o resultado deste “falhanço”, ou seja, porque não
consegue, deixa um espaço de entrada para outras biografias; 2) o texto consegue
inscrever-se com essa memória na medida em que encena a paisagem da infância, não a
45
descrevendo, mas reproduzindo seus mecanismos estruturais: a escassez, a dureza, a
umidade de charcos, o movimento errante e incontrolável das dunas, a doença, enfim,
uma sorte de itens que dificultam a fixação do homem na terra, através sobretudo de
recursos estilísticos como elipses e outras formas de ambigüidades, apesar do registro
muitas vezes denotativo. Com isso, a criação em texto de mecanismos análogos, em
correspondência, aos de uma paisagem implica alguns deslocamentos. Vejamos: o
transporte das características citadas da paisagem acabou por criar um resultado,
digamos, oposto ao dela em relação ao seu povoamento. Enquanto a Gândara real e
vivida pelo autor era um convite de fuga e emigração, já “esse ambiente quase lunar”,
de que fala no texto, é vivido pelo leitor de outra forma: é como um convite a sua
experimentação. Nos dois, no entanto, temos sentidos que dão a ver formas de
brevidade, se a Gândara real suscita a emigração, sua recriação literária exige a errância.
Visto isso, vamos a “O iceberg (1966)”, conjunto de dois textos dedicados à
temática, digamos, da biografia. “Pensando bem não tenho biografia” (p.163), diz numa
possível carta a uma estudante que lhe escreve pedindo dados biográficos. Dois pontos
lemos nisso: 1) o protocolo parece ser o autobiográfico, pois de algum modo lida com a
instância autor; 2) a estudante lhe pede obviamente porque não encontrou biografia
alguma, ou seja, o texto já pressupõe certo silêncio do autor. No entanto a estudante o
questiona e ele menciona tal fato no texto: o que por si só já mostra sua importância
mesmo que pela ausência. Antes que tal silêncio se revele outra coisa, o autor – agora
podemos dizer assim – continua: “Melhor, todo o escritor português marginalizado
sofre biograficamente do que posso denominar complexo do iceberg: um terço visível,
dois terços debaixo de água” (Idem). Esse silêncio é causado por alguma marginalidade,
melhor, por contingências políticas do período, em outras palavras, pela censura. “A
parte submersa pelas circunstâncias que nos impediram de exprimir o que pensamos, de
participar na vida pública, é um peso (quase morto) que dia a dia nos puxa para o
fundo” (Idem). O que abre a possibilidade de encararmos também sua obra como essa
parte submersa de gelo que pode apenas aparecer através da relação outra, chame-se
mimética, chame-se ficcional, da literatura que se dá em relação ao leitor. Por isso
também, para além da Gândara, sua obra incorpora mecanismos de silêncio como, entre
outras, a elipse. Assim quanto maior o “trabalho oficinal” – “Mesa, papel, caneta, luz
eléctrica. E horas sobre horas de paciência, consciência profissional” (p.185) – maior o
efeito que esse silêncio pode produzir: “Quanto mais depurada for a proposta (dentro de
certos limites, claro está), maior a sua margem de silêncio, maior a sua inesperada carga
46
explosiva ” (p.184). É como se silêncio que a censura lhe impôs – não se trata mais da
biografia de um homem, mas da de uma época – fosse incorporado e depois devolvido
na mesma medida: “A proposta, a pequena bomba de relógio, é entregue ao leitor. Se a
explosão se der ouve-se melhor no silêncio” (Idem). Tais mecanismos de sentido e
silêncio que o leitor – e ele precisa ser ativo, claro está – atualiza são criados a partir de
uma forma de instância biográfica: “a linha de flutuação vai subindo e a parte que se vê
diminui proporcionalmente”. Sua poesia justamente por se inscrever em negativa a uma
biografia, através da vontade de silêncio, confirma a escrita dessa vida: “Esta
acumulação de dados negativos transformou-nos a existência naquilo que os franceses
gostam de chamar a travessia do deserto (aqui solitária, mas solidária, compreende?)”
(p.164). A imagem do deserto, da secura, sabemos, é muito cara à poesia de Carlos de
Oliveira, imagem comparada a de uma biografia. Não bastasse isso, acaba por criar uma
filiação já vista: “A parte submersa do iceberg cada vez maior, faz-se também do que
não houve em cima, suporta o peso dos acontecimentos por acontecer, como diria
(talvez) Fernando Pessoa” (p.165). Ou seja, suporta o peso do que ainda pode acontecer,
imprevisível, como o rumo incerto do poema que, como sabemos, “no seu perfil /
incerto / e caligráfico, / já sonha outra forma” (O LIVEIRA , 1992, p.223).
Mas voltemos à parte visível do iceberg, pelo menos aquela que podemos ver em
O aprendiz de feiticeiro. Sempre numa zona de intercessão entre o ensaio, a ficção e a
crônica, há momentos em que podemos identificá- la mais rapidamente, como é o caso
da entrevista dada a Maria Teresa Horta e transformada no texto “Micropaisagem
(1969)” em que vemos apenas as respostas rearranjadas e numeradas. Aqui o sujeito fala
da importância da memória, sua terra de origem. É um dos momentos mais explícitos de
Carlos de Oliveira ao falar de sua obra: “A paisagem da infância que não é nenhum
paraíso perdido mas a pobreza, a nudez, a carênc ia de quase tudo. Desses elementos se
sustenta bastante toda a escrita de que sou capaz, uma vezes explícitos, muitas outras
apenas sugeridos na brevidade dos textos” (p.186). Fala ainda sobre o então último
livro, Micropaisagem : “não é um desses livros súbitos em que fala Eda Olivier 14 ”
(p.183); e de possíveis influências: “«J’imite. Tout le monde imite, tout le monde ne le
dit pas» (Aragon). Porém os poetas nestas coisas não devem ser tomados muito à letra.
Quem não sabe que o poeta é um fingidor?” (p.185) Ao responder uma pergunta sobre
influência, ele ironicamente se vale de citações, Aragon e de novo Pessoa.
14
Eda Olivier é outro anagrama criado pelo “inventor de jogos”: de Oliveira.
47
Outro texto em que o autor pode aparecer é “A dádiva suprema (1956 e 1958)”.
Trate-se de uma aparição quase física, textual, pois tudo se dá através de citações, que
faz de Afonso Duarte: “Certo dia de outubro, ao entardecer, Gelnaa e eu descemos do
carro e fomos surpreende- lo na adega, em mangas de camisa, sem a bengala das
calçadas escorregadias da cidade, debruçado sobre as dornas” (p.14). Antes desse trecho
tão narrativo, encontramos outro um pouco menos: “«O prédio onde resido é de
aluguer: Velhas salas de tecto apainelado». Assim descreveu Afonso Duarte a sua casa
de Coimbra num dos sonetos sobre a morte da rola. O prédio vai agora meter obras e o
poeta já lá não vive” (p.13). Na segunda parte do texto, mais uma vez o autor fala da
importância da paisagem de sua infância para o desenvolvimento de sua escrita, dizendo
por ocasião da morte de Duarte, que de certa forma os textos mimetizam uma realidade.
Sem dúvida, um ponto alto do livro:
Escrever é lavrar, penso comigo, olhando esta Ereira onde se fecha hoje
o círculo que o seu cantor traçou com a própria vida. E lavrar, numa
terra de camponeses e escritores abandonados, quer dizer sacrifício,
penitência, alma de ferro. Xistos, areais, cobertos de flores, de frutas, se
a chuva deixar, o sol quiser, o tempo não reduzir as sementes e o
coração a cinza. Tanta colheita perdida na literatura e eu que o diga
nesta linguagem de vocábulos como enxadas, na voz lenta, difícil,
entrecortada de silêncios, que os cavadores e os mendigos me
ensinaram, lá para trás, no alvor da infância: um pouco de frio e neblina
coalhada, sons ásperos, animais feridos.
Agora, pouco importa. Caminho entre o povo, atrás do caixão de
Afonso Duarte, o extraordinário gravador de lápides rústicas, e sinto
que nem todas as colheitas se perdem, que as coisas se compensam
umas às outras no seu obscuro equilíbrio natural (p.15-16).
A idéia de que o texto pode reproduzir alguns mecanismos da paisagem é uma
ocorrência em O aprendiz de feiticeiro. Por isso, escrever é como lavrar, cria um espaço
a ser ocupado: o que proporciona algo entre uma “colheita perdida”, nome também do
terceiro livro de poemas do autor, e uma outra ainda, quem sabe, a se perder num
“obscuro equilíbrio natural”, parecido com aquele “filtro mágico das palavras” (p.41)
que vimos com a tempestade de neve em “O inquilino (1966)”. Também aqui vemos
essa “voz lenta, difícil, lenta, difícil, entrecortadas de silêncios” aprendida com os
camponeses em que vemos o mesmo silêncio necessário para que o leitor ouça a
explosão que ativa no texto (p.184).
No entanto, julgamos que o protocolo da biografia ajuda mais quando
identificado à posição de leitor que o autor ocupa no livro. Pois é a partir dessa
freqüente recorrência que podemos perceber como é importante para os textos de Carlos
48
de Oliveira, principalmente para os poemas, o ato de recepção, forma de atualização da
potência que é o texto, possibilidade de relação mimética entre obra e realidade, texto e
referência. No livro, esse narrador que se mostra como leitor aparece muitas vezes.
Primeiro dois exemplos mais rápidos – rápidos, porque o leitor se revela em um
pequeno trecho apenas – mas não menos importantes. Em “Imagem turva (1947)”,
pequeno comentário sobre a série de romances que formam a “Patologia Social”.
Lemos: “Abel Botelho é uma fraca compleição de escritor. Empasta a linguagem com
freqüência, torna a leitura custosa. Justificações estritamente biológicas, outras
limitações naturalistas. Contudo, o inventário deste ciclo ganha aqui e ali o fulgor da
compreensão social” (p.27). O autor escolhe Botelho, porque implicitamente o que está
em jogo é o próprio Carlos de Oliveira. Um está para o naturalismo, assim como o outro
poderia estar para o neo-realismo. No entanto, o autor de Casa na duna não cometeria o
mesmo erro que o autor da Patologia Social: “Abel Botelho cingiu-se demasiado à sua
própria escola, radicalizou-a” (p.28). Para agora, porém, talvez o mais interessant e nesse
texto seja seu início. Identificamos a voz como aquela que analisa um outro texto e, a
princípio, não deixa espaço para outros planos do discurso. No entanto, o texto começa
assim: “Fechei há pouco o último volume da ‘Patologia Social’. Com a noite lá fora,
adiantada, morna, e a cidade num grande silêncio” (idem). Ou seja, antes de analisar a
obra, ele faz questão de se colocar como leitor empírico do livro, do objeto livro,
integrando isso de alguma forma às suas ações diárias com “a noite lá fora”. A leitura é
mais uma de suas atividades:
Virada a última página desta série de romances não encontro em
verdade nada que de momento me possa melhor concretizar a ideia
final e ainda turva da leitura que a noite quente, surgida de súbito, sem
quê nem para quê, sobre dias inteiros de frias chuvadas (p.27).
Chamamos a atenção para o fato do ensaísta colocar-se antes como leitor que
todos somos: “Fechei há pouco o último volume da «Patologia Social»”. E integra a
leitura que faz do texto ao texto de seus dias: “Com a noite lá fora, adiantada, morna, e a
cidade num grande silêncio”.
E assim segue por todo esse primeiro parágrafo,
integrando a leitura que fará por escrito aos dias de seu “mundo comum”:
(...) sobre dias inteiros de frias chuvadas. Preciso quase sempre de
imagens e, embora me digam que é um hábito grosseiro em escritos
destes, não desisto de ligar tudo o que penso ao mundo comum,
quotidiano: os objectos, a paisagem, os homens. A chuva encharcou os
49
campos e agora, às mãos do calor nocturno, extemporâneo, os pequenos
pântanos, os poços, os afundamentos, evaporam já em cheiro discreto
mas nítido de terra que apodrece e fermenta (Idem).
Ao mesmo tempo que se coloca, deixa que o texto de Botelho, que criticará
ainda, agir sobre a primeira pessoa do texto. Vemos acima isso acontecer: “evaporam já
em cheiro discreto mas nítido de terra que apodrece e fermenta”. É o próprio ato de
leitura sendo assimilado pelo leitor, o texto integrando-se ao sujeito que lê. Somente
depois disso pode começar, através da já ameaçada imparcialidade de um texto de
crítica, a trocar o protocolo: “Abel Botelho é uma fraca compleição de escritor” (Idem).
E segue em frente pela resenha, como se nada acontecera.
Outro texto em que encontramos algo parecido é em “À espera de leitores (1959
e 1966)”. Nele, como indicam as datas de produção há duas partes; a primeira é
dedicada ao «Maria Adelaide» de Teixeira-Gomes e a segunda à questão: “Porque não
se lê Irene Lisboa?”. O que mais nos interessa e mais faz jus ao seu interessante título
está na primeira parte e, como no texto anterior, logo no início. Antes porém de citá- lo,
gostaríamos de nos certificar se o texto, antes de seu começo, segue de fato o modelo de
uma resenha: “Há duas epígrafes na portada de «Maria Adelaide» e uma delas, de Paul
Bourget, diz que «um romance não deve ser bem escrito». Cuidadoso escritor que foi
Teixeira-Gomes semelhante aviso põe-nos de pé atrás. E com razão” (p.151). O texto
transcorre assim até o fim. Nele, como no outro sobre Abel Botelho, Carlos de Oliveira
estabelece uma relação com o escritor: ela será, como já se pode perceber, a do cuidado
e trabalho com a linguagem para se chegar a um texto, nas palavras do autor de O
aprendiz de feiticeiro, “muito despojado” (p.185), análogo, como se vê abaixo, ao
romance de Teixeira-Gomes, aquele que a princípio “não deve ser bem escrito”:
Não creio, apesar da citação de Paul Bourget e da mediana cultura de
Ramiro d’Ager, que um artista como Texeira-Gomes considerasse
escrever mal o que era pelo contrário escrever ainda melhor. Quereria
talvez sugerir que a narrativa, a «história», exigia uma maneira mais
direta, mais concisa e nua. Uma escrita que se prestasse menos soa
grandes fulgores da palavra (p.152).
Antes ainda escreve sobre o «Maria Adelaide» algo que muitos já escreveram
sobre o Trabalho poético e seus romances: “A escrita atinge nestas páginas breves uma
decantação verbal que as transforma na obra-prima de Teixeira-Gomes. Decantação
verbal” (Idem). Ou seja, a autor acaba perseguindo em outros textos aquilo que mais
50
pode interessar para o seu. Mas, como dissemos, o que mais nos interessa nesse texto é
seu início em que podemos ver o sujeito – agora mais do que nunca um leitor –
encontrando-se com o livro que irá comentar:
Aqui há anos encontrei um exemplar de «Maria Adelaide», de
Texeira-Gomes, num estande da Feira do Livro:
– Quanto é?
– Leve-o, faz-se-lhe um preço de amigo. (Idem)
Não bastasse a encenação da compra do livro naquilo que seria um comentário
ou resenha do mesmo, o leitor conta a sua história em relação ao livro de TeixeiraGomes; feito isso, cria uma relação – mais do que com o livro – com seu exemplar:
detalhes da edição e afins. Se nos é dado conhecer alguma coisa da vida de Carlos de
Oliveira, por mais ficcional que isso também o seja, o que conhecemos, para além de
seus posicionamentos em relação a sua obra, ou melhor, não o que conhecemos, mas o
que vemos, é um leitor que faz imensa questão de dar a ver seus livros, não os que
escreveu, mas os que frequentemente lê:
Eu conhecia a novela duma leitura de empréstimo e desde então
procurara-a com afinco por livreiros e alfarrabistas. Quando me achei
finalmente cara a cara com a tentação (uma dessas sóbrias edições em
elzevir 10 entrelinhado que saíam da tipografia da “Seara Nova”, à
calçada do Tijolo), não resisti. Disse que sim. Mas a factura ensinou-me
logo depois como os preços “de amigo” podem desolar ainda mais uma
carteira já tão árida. (Idem)
Para continuarmos com as mesmas questões – paginação, tipografia, etc. –,
desloquemo- nos até “Almanaque literário (1949-1969)”, conjunto que reúne os mais
diversos textos e, como diz as datas, num recorte de tempo tão extenso quanto o do
próprio livro. De algum modo, esse almanaque, em sua diversidade, é uma amostra do
próprio O aprendiz de feiticeiro, já que há diversos textos reunidos num só. Em sua
décima primeira parte, a penúltima, lemos uma espécie de confissão do autor-narrador
pelo fascínio que tem pelos livros, objetos, como indissociáveis dos textos que
transportam:
O livro-objecto. Há espíritos superiores que ficam insensíveis diante
dele. O livro é o que lá está dentro e, uma vez que se leia com
comodidade, importam pouco. Não sou um espírito superior mas se
fosse creio que nada me afastaria do pecado quase sensual de olhar,
tocar, folhear uma bela edição (p.71).
Se o podemos, o momento a que conseguimos chegar mais próximo do autor,
apesar de todos os protocolos e de seus frágeis pactos autobiográficos, é no momento
em que Carlos de Oliveira fala de sua experiência com o livro, que, como se pode
51
perceber no trecho acima, é análoga à experiência de contato com um corpo a que se
deseja. Mais uma vez compra o livro e descreve não o que se passa em suas páginas,
mas os pormenores do exemplar:
Ontem estive-me nas tintas e comprei uma nova edição das “Cartas” de
Flaubert. Le texte a été composé en caractères garamond, corps 10, et le
tirage executé sur papier blanc sans bois. La reliure (imitação de pele,
melhor, uma estilização da sua textura, manchas, tons, nervuras) est due
aux soins de la maison Elbinger. Na capa, apenas o fac-símile da
assinatura do escritor, um sulco sinuoso, verde musgo, ao alto, sobre a
esquerda. Lá dentro, aqui e ali, os velhos impressores, recuperados com
bom gosto (Idem).
Ora, o trecho acima não deixa dúvida de que tipo de escritor é Carlos de
Oliveira, aquele que, como todo leitor apaixonado, valoriza ao máximo o livro, não
dissociando o objeto do que vem nele. É por isso que antes de falar sobre os textos
muitas vezes ele faz referência não só ao seu exemplar, mas como o adquiriu (como já
vimos, frequentemente reclama dos preços). O exemplo de Flaubert no entanto atinge
um nível ainda não visto aqui, pois Carlos de Oliveira lerá não o livro-texto, mas o
“livro-objecto”, como o disse há pouco: mostra do poder que o leitor tem quando
detentor de um livro em mãos. Vejamos seu trabalho de leitura:
Viro e reviro as “Cartas” na vaga impressão de conhecer alguma coisa
parecida com um pormenor deste arranjo gráfico. Que será? Torno a
olhar a capa, a assinatura. De súbito sinto o declique duma lembrança
submersa, puxo-a pelos cabelos e aí está ela. Corro à estante
desarrumada, procuro na confusão de títulos e línguas, não encontro,
procuro outra vez e, como a biblioteca-babilónia apesar de tudo de pode
conferir (de lombada) em pouco tempo, acabo por achar. Dois volumes
de péssima oficina, péssimo papel, péssima encadernação, péssimo
tudo, à parte o romance que resiste lá dentro ao meia -bola-e-força
editorial: “Os Maias” (...). Na capa, a única (e mesmo assim falhada)
graça do conjunto: ao alto (demasiado ao alto), sobre a esquerda, o facsímile da assinatura do autor (p.72).
Antes de vermos o final da leitura que se segue, seria interessante prestar
atenção ao conjunto de traços mencionados pelo narrador que, de algum modo, diz
muito da obra de Carlos de Oliveira. A saber: 1) a questão da memória como lugar
frágil: “De súbito sinto o declique duma lembrança submersa, puxo-a pelos cabelos e aí
está ela”; 2) crítica, mesmo que indireta, à sociedade portuguesa através das cond ições,
“péssima oficina”15 em que lhe foram apresentado Os Maias (basta compararmos a
15
A palavra ‘oficina’ está relacionada à palavra ‘trabalho’, termo este muito valorizado pelo autor. Aliás,
a tradução italiana para o volume Trabalho poético chama-se Officina poética (Ed. Accademia, Milano,
1975).
52
descrição que fez das Cartas de Flaubert); 3) a importância e a minúcia com que chega
à assinatura, valorização das letras que vê, entre outros lugares, no “perfil incerto / e
caligráfico” do poema “Lavosier”. Para além, é claro, da citação a Borges, talvez o
grande modelo de leitor-autor.
A letra de Eça de Queiroz é talvez mais nítida. Mas não quero falar de
semelhanças caligráficas. Não há. Quero dizer que as duas assinaturas
se aparentam em algo de amplamente formal a ressaltar do seu recorte,
do seu desenho tomado no conjunto. Alguns pormenores, já se vê,
embora de pouco importância: a breve e única interrupção entre o l e o
a em Flaubert; o traço que sublinha o todo com uma volta final para a
direita em Eça, volta que não existe em Flaubert; e as inevitáveis
diferenças dos nomes diversos, aliás perturbando um pouco o “vulto”
similar das assinaturas, até porque o automatismo, o carácter de
chancela, de quase-carimbo, que as caracteriza, elide inúmeros detalhes
da escrita normal (Idem).
Através de uma justaposição que só o leitor pode realizar, o narrador funde as
assinaturas de Eça e Flaubert, não a partir dos textos, como se esperaria de um ensaio
que compare os dois romancistas, mas a partir do desenho caligráfico das assinaturas,
estilizadas, impressas nas capas dos respectivos livros. É claro que por trás disso pode
estar em jogo a relação muitas vezes de semelhança entre o autor de Primo Basílio e o
autor de Madame Bovary, mas o efeito mais sentido talvez seja o de dar a ver que
estamos de fato diante menos de duas pessoas, Flaubert e Eça, do que de dois objetos
literalmente manipuláveis, dois livros: Os Maias e Cartas. Movimento de leitura que se
utiliza de algum modo da biografia – afinal os dois livros estavam na estante do autor –
para torná- la relativa depois da impessoalização que o texto exige, depois de publicado
o livro. Utiliza o que há de mais pessoal em um texto, mais do que a assinatura, a
caligrafia dessa assinatura; talvez o que de mais corporal haja num texto. Assim, acaba
confirmando aquilo que já dissera no início deste mesmo texto quando se referia ao
“pecado quase sensual de olhar, tocar, folhear uma bela edição”, menos pelo sensual e
mais pelo que nesse sensual pressupõe um corpo.
O resto, a inclinação da letra, a linha contínua (exceptuando o corte já
assinalado), a abreviatura dos dois primeiros nomes colocada num
plano ligeiramente superior, o encadeamento para os apelidos, o correr
da mão, enfim, o arranjo global, o perfil destes signos pessoais, é
perturbadoramente parecido. (72-73, grifos nossos)
Ainda em “Almanaque literário”, voltando ao terceiro trecho, podemos de novo
encontrar essa espécie de leitor empírico que Carlos de Oliveira deixa entrever.
“Acabou a Feira do Livro com resultados práticos assim assim, nem muito de esfregar
as mãos nem muito deprimentes” (p.55). A propósito de sua visita à feira, o leitor
53
começa por dar impressões da sociedade portuguesa a partir, como vimos há pouco, do
objeto livro: “No entanto as edições de luxo (na sua maioria, de mau gosto) encontram
bastante saída. Servem sobretudo para pôr nas salas provincianas, em cima das mesas de
pé de galo (...)” (Idem). E continua sua crítica: “À parte as péssimas edições de luxo,
produtos pequeno-burgueses do prelo, e dois ou três autores consagrados, a venda das
obras portuguesas é difícil” (Idem). A partir disso, o autor desenvolve seus comentários,
passa pela acusação da “mediocridade” nacional (p.56) e chega até a descrença na
cultura que contaminou grande parte dos leitores portugueses (p.57). Ou seja, consegue
a partir do livro-objeto, a partir de sua leitura em muitas direções, criticar alguns
mecanismos de embrutecimento social em Portugal. Vale notarmos inclusive como
menciona – e assim que o faz o integra – o título de seu livro, Pequenos burgueses,
romance de forte cunho social, aliás como todos que publicou. No entanto, não demora
muito e retorna às suas experiências especificas, as de um visitante de uma feira de
livros. “Voltemos à Feira do Livro” (Idem). E então seguem algumas aquisições que
aqui interessam menos pelos autores que representam do que pela raridade dos
exemplares. “O «Mefistófeles em Lisboa», de Gomes Leal, tiragem única e rara, deve
considerar-se de facto uma pechincha por vinte e cinco escudos” (Idem). Poucas vezes
podemos ver a escrita de Carlos de Oliveira assim tão imediata, em que aparentemente
não há filtros entre representação e realidade. Se o texto permanecesse apenas como
publicação esporádica num jornal, como o foi uma vez, não utilizaríamos a expressão
‘aparentemente’, mas como autor o introduziu em sua obra, colocando-o em O aprendiz
de feiticeiro, acabou por submetê- lo também – pois há outros, como sabem – ao estatuto
da ficção. Seguimos com outros exemplares: “o «Anatômico Jocoso» (Biblioteca
Universal Antiga e Moderna, 1899), obra dos fins do século XVIII (?), atribuída ao Dr.
Pantaleão d’Escaria e a Frei Lucas de Santa Catarina” (Idem). E assim segue por alguns
outros exemplares até que volta, a partir ainda dos livros, a falar da repercussão social
da literatura, aqui a poesia, na sociedade portuguesa: “A poesia, não obstante vivermos
numa terra de poetas, quem sabe se por isso mesmo, contenta-se com que eles se
presenteiem reciprocamente os livros e se leiam uns aos outros” (p.59). Poucas vezes
um comentário sobre o mercado de livros de poesia terá sido mais verdadeiro. Ainda há
em “Almanaque literário (1949-1969)” outros momentos de destaque à figura do leitor,
se bem que num registro diferente. Na conclusão de nosso trabalho, voltaremos a esse
texto.
54
Ao continuar nossa busca por aque le que seria um protocolo em que haveria
mais transparência em relação ao autor Carlos de Oliveira – por exemplo, quando se
coloca como um apaixonado pelo objeto livro – chegamos ao curiosíssimo texto
“Manual de Jogos (1963)”. Momento máximo em O aprendiz de feiticeiro em que
vemos o narrador inteiramente dedicado a um exemplar de um livro:
Este “Manual de jogos”, que traz como subtítulo “jogos de cartas, jogos
de sala, jogos de prenda e jogos diversos”, de autor desconhecido,
impresso nos fins do século XIX em Lisboa pela Casa Torreira &
Filhos, é um volume grosso, cartonado a vermelho, com gravuras
características da época, que têm aliás pouco a ver com o texto:
apontamentos bucólicos, dentro de cercaduras ou grinaldas de hera,
folhas, flores, o costume de então. Tipo redondo, corpo 12. Bom
trabalho de prelo, tintagem uniforme e sem repassar o papel fino,
bastante calandrado (p.19).
A citação foi grande mas necessária. Vemos aí todo o cuidado de descrever os
pormenores do exemplar. Um livro como esse interessaria muito ao inventor de jogos.
Sabemos o ano, a editora, a cor da capa, tamanho da tipologia e até o desencontro que
há entre os motivos floridos das ilustrações e o texto. Apesar de ser um livro raro,
qualquer exemplar poderia ser descrito assim. Por isso, o autor agora se apossa mais do
livro quando introduz as características e histórias do seu livro:
O meu exemplar (primeira edição, hoje rara) descobri-o em
Coimbra, por acaso, durante o despejo dum armazém de alfarrabista
pobre. Não está mal conservado apesar de duas manchas amarelas de
humidade no segundo terço do livro e um túnel de traça, ainda
incipiente, que eu próprio limpei e desinfectei, assim como meti cola
nova na lombada, esta sem dúvida em mau estado: a tela interior no fio,
o papel de fora a esfarelar-se (p.20).
Não temos dúvida, este exemplar é de fato do autor. Desde como o conseguiu
até o esforço para salvá- lo das traças, da umidade e de seu péssimo estado de
conservação. Porém há algo ainda sobre sua aquisição que não sabemos, algo muito
importante para vermos como tem destaque em O aprendiz de feiticeiro a figura do
leitor, importante para vermos como o trabalho da leitura demanda um posicionamento
ativo de que quem o realiza 16 . Insistimos, não há dúvida de que quem fala aqui nunca
16
“Importa finalmente sublinhar que a poesia em movimento e sobre o movimento, que é a de Carlos de
Oliveira, não se apresenta apenas como o fruto de um trabalho – um objecto em que esse trabalho se
imobilizou definitivamente. Esse trabalho que a produz transforma-se, é certo, nela, em trabalho
cristalizado (no objecto na página, o poema, com o seu número definido de frases, versos, palavras, com a
sua organização estrófica, sintática, morfológica, lexical, fonológica), mas também o trabalho em
55
esteve tão próximo de ser, pela cumplicidade com que o faz, Carlos de Oliveira. O
exemplar se torna cada vez mais dele: “O ante-rosto tem um carimbo azul do «Club
Recreio Musical, 1887, Corgos», com a legenda circular em torno duma lira e, a cercar
tudo, a indispensável grinalda, agora de louros” (p.20). A cumplicidade biográfica
aumenta ainda mais quando a primeira pessoa, narrador, autor e leitor resolve dizer-nos
que o livro já pertenceu a outros leitores.
À lápis, ao lado do carimbo, a seguinte nota (com toda a certeza
redigida apressadamente avaliando pela letra irregular, fugidia):
«Ayres, tirei o livro do club mas descansa ninguém deu por nada, vê lá
tu do que sou capaz por ti, escreveu-me a livraria, já não há em Lisboa,
e eu não quero que te falte um coisa em que pões tanto empenho, é um
segredo entre nós e uma prova de amor, guarda-o ambos bem, o
segredo e o amor da tua Lydia» (21)
Não há melhor forma de demonstrar o amor pelos livros do que presenteando
alguém, de quem também gostamos, com eles: os livros. Roubar um livro por amor.
Essa dedicatória – nela o autor está ausente – consegue de algum modo ser metonímia
da relação sujeito- livros que atravessa todo O aprendiz de feiticeiro. E tudo isso estando
ainda sob o protocolo biográfico, pois afinal o livro pertence a sua biblioteca. Não há
dúvida de que de fato a folha de rosto possa ter essa dedicatória.
Não pude averiguar quem foram Ayres e Lydia. Em todo o caso prestolhe homenagem a ela, que roubou por amor o “Manual” do club,
correndo perigos de pôr cabelos em pé só para satisfazer o desejo ou o
capricho de Ayres que nem sequer se deu ao trabalho de pegar num
borracha e apagar a mensagem comprometedora (Idem).
O momento é tão importante que antes de começar a ler, como faz com os
demais livros aqui, o autor resolve investigar, quase como num romance policial, quem
foram os amantes. Ao fazer isso, de alguma forma, ele realiza também o desejo de
conhecer seus próprios leitores, porque como veremos no seguinte capítulo, a poesia de
Carlos de Oliveira tem um forte potencial para projetar-se, i.e., para transformar-se no
ato de leitura, integrar-se ao mundo do leitor, floresta onde quem a percorre traça suas
veredas, paisagem a ser povoada. De algum modo ao investigar quem foram os amantes
está tentando, inútil porém lucidamente, identificar com alguma precisão o leitor real.
Que interesse seria o dele pelo “Manual”? Como disse, não encontrei
nenhum elemento concreto sobre o par nas minhas investigações em
Corgos, mas o dever de um estudioso quando os elementos faltam é
erguer hipóteses. Não? De qualquer modo sugiro uma: a vontade de ser
movimento pela leitura, em trabalho latente de sentido que provoca e exige o trabalho oficinal, rigoroso e
apaixonado ética e ideologicamente, da leitura pelo qual aquele se continua.” (GUSMÃO, 1981, pg.86)
56
proprietário do “Manual” estava relacionada em Ayres sobretudo com
os jogos de cartas, codificados e explicados na primeira parte do livro.
Ou eu me engano ou Lydia conhecia -o mal (Idem).
O autor de “Manual de jogos (1963)”, pois o texto de O aprendiz de feiticeiro
também se chama assim, levanta hipóteses para a biografia Ayres, o dono anterior do
livro chamado «Manual de jogos», publicado “nos fins do século XIX”, como nos
deixou saber o narrador, o novo dono do livro.
Se me permitem outro palpite, aí vai: era caixeiro. Por essa época não
há um único Ayres no rol dos funcionários públicos, dos proprietários,
dos comerciantes estabelecidos, das grandes crianças nascida na
paróquia desde 1837, quer dizer, cinqüenta anos antes do roubo de
Lydia. Caixeiro vindo de fora, é o mais provável, um tipo que fazia
mão baixa na gaveta da loja para perder tudo à noite numa taberna mal
alumiada. Ora o Ayres queria ganhar e nisso, que diabo, tinha razão.
Daí a necessidade do «Manual», dum prévio trabalho teórico. (p.22).
De fato parece que o autor conhece melhor Ayres que sua própria amante, Lydia,
tamanho é seu afinco em conhecer o leitor do «Manual», que por analogia também é o
“Manual” e que agora por metonímia são todos os textos de Carlos de Oliveira. Como
se assim – sabendo da vida do leitor – pudesse dar conta do encontro entre seu texto e
este leitor, melhor, dar conta das atualizações realizadas na potência que é a obra.
No meio das hipóteses, palpites e desconfianças em que posso envolver
este homem (este perigo público e familiar) uma certeza, a única:
escapou sabe-se lá como ao castigo. Que triste justiça. Não achei de
facto nenhum Ayres entre os indivíduos então julgados e condenados
no tribunal de Corgos. Com desgosto o digo. (Idem)
O crime é não saber quais as direções tomam nosso texto. Através de sua suposta
biografia e a invenção da biografia dos outros, quem ganha destaque é a vida, não a do
autor nem propriamente a vida dos leitores – porque parafraseando o próprio Carlos de
Oliveira, “Quem não sabe ainda que o poeta é um fingidor?” (p.185) – mas a vida que
nasce no encontro entre texto e leitor, a vida da leitura. Combinação daquelas forças de
que fala Robert Scholes: “Aquilo a que dei o nome de movimento para trás e para frente
e depois de impulsos centrípeto e centrífugo representa as forças diferenciais que
accionam o processo de leitura” (S CHOLES , 1991, p.24). Processo de alguma forma
semelhante já ao mecanismo mimético, desenvolvido principalmente por Aristóteles, de
atualização de algo que é potencial na medida em que trabalha com algo dado – não
57
pode fugir dele – e o presentifica de acordo com as experiências – inclusive de leituras –
que trazemos conosco, i.e., nossa biografia.
Para terminar este momento de nosso trabalho, vale abrir um pequeno parêntesis
no texto e acrescentar alguns dados específicos e importantes para o trabalho sempre
delicado que envolve o termo ‘biografia’. Em momento algum quisemos de fato
encontrar a biografia de Carlos de Oliveira em O aprendiz de feiticeiro. Nosso trabalho
foi o de mostrar como ele se utilizou desse recurso, aquele que parece exigir a verdade
do texto, para tornar mais efetivo, por mais mimética e fictícia que seja a referência ao
real em sua poesia, como veremos em breve. Não houve inocência de acreditar
fielmente no protocolo da autobiografia, ou seja, vermos da forma mais transparente
possível Carlos de Oliveira em seu texto, por mais que ao fim e ao cabo seja esse de fato
o projeto, mas, é claro, não de forma transparente. Fomos, melhor, fui 17 de fato à casa
de Ângela de Oliveira, viúva do escritor. Além de me dizer que a cidade de Corgos em
verdade aponta para o referente real que é a cidade de Cantanhede, disse-me que o
«Manual de jogos» de fato existe, embora não tenha em sua folha de rosto nenhuma
dedicatória que envolva “Ayres” nem “Lydia”. O que de modo algum pode invalidar o
estatuto autobiográfico do texto, estatuto que envolve menos a verificabilidade dos fatos
do que um acordo, uma aposta feita entre texto e leitor. O que só mostra como esse
narrador sabia manipular e ser manipulado por seus textos. Enfim, para fechar esse
parêntesis, Paul Valéry que diz o seguinte: “aquele que pensa reconstituir um autor a
partir da sua obra acaba por fabricar um personagem imaginário” (VALÉRY, 1994, p.19).
Sem virar a página deste mesmo livro, ainda podemos ler: “Retirar-se da literatura para
retornar a esta”. Parece que sim.
17
Mudança exigida pelo caráter da informação que se segue.
58
3.5. SUJEITO E LEITURA –
O NARRADOR DE “A VIAGEM”
Vejamos como essas referências à leitura podem se dar em um plano distinto do
que foi visto até agora. Voltemos ao início que também é o fim. Início porque é o
primeiro do livro; fim, porque foi um dos últimos a ser escrito para O aprendiz de
feiticeiro. “A viagem (1970)”, uma pequena narrativa, é, como dissemos, o texto de
abertura do livro. Nele o narrador, em primeira pessoa, está viajando dentro do carro
com uma acompanhante, que logo é nomeada: Gelnaa 18 . Nesse percurso, o narrador
pronuncia em voz alta – Gelnaa está dormindo – o verso em latim de Adriano:
“Animula vagula blandula”. Diz em voz alta como que fazendo justiça ao nome do
livro, funciona como uma espécie de abracadabra. Para isso, citamos as palavras de
Rosa Maria Martelo, palavras que confirmam o que anteriormente vimos acerca da
biografia e antecipam nossos próximos passos:
Curta narrativa de datação imediatamente anterior à publicação da obra,
“A viagem”, cujo incipit é a forma verbal performativa “Digo”, num
contexto frásico conotado com o domínio da magia ou da feitiçaria
(“Digo as palavras em voz alta”), introduz o sujeito de enunciação
privilegiando como função actancial a acção de dizer, sugerindo, assim,
que não é a escrita que se aproxima da vida, como deverá acontecer na
biografia, mas a vida, em sentido mais amplo, que se precipita (e se
constitui) nas palavras ditas e escritas. (MARTELO , 1998, p.142)
O texto a partir daqui, embora o narrador continue dirigindo o carro e Gelnaa
continue dormindo, se transforma numa espécie de preenchimento do verso citado e
acaba, sem grande mudança de tom, tornando-se um texto próximo ao de uma crônica:
18
Não tivemos tempo de falar ainda que a palavra ‘Gelnaa’ está muito próxima também de Geena,
palavra presente em O livro do esplendor (Zohar) e que designa o lugar para aonde vão os pecadores.
Zohar é um livro da mística judaica, publicado no século XII, um dos mais importantes para o
conhecimento da cabala. Essa menção pode parecer despropositada, porém pode deixar de sê-la, visto
que, ainda que de forma rápida, em O aprendiz feiticeiro o termo ‘cabala’ aparece duas vezes. A primeira
em “O grão de areia (1945)”: “A princípio a morte de Jeeter custou-me, mas acabei por dar razão a
Caldwell. Já nessa altura era impossível arrancá-lo à obsessão e aceitei o que parecia escrito nalgum livro
de cabala aferrolhado por certo nos cofres de Augusta” (p.50). A segunda em “O iceberg (1966)”: “Podia
falar agora de pitagorismo, curvas esotéricas, cabala, mil coisas parecidas. Mas não” (p.171). Para além
disso, a prática do anagrama, como na cabala, está ligada a uma relação entre letra e número. Essa é uma
questão a ser desenvolvida: uma relação entre o nome da criptógrafa e principal leitora com o nome do
lugar para aonde vão os deserdados na tradição hebraica é curiosa.
59
“Não sei onde descobri o verso. Mas depois, ao acaso das leituras, fui-o reencontrando
aqui e ali com o mesmo sobressalto” (p.8). Nesse instante o autor parte para um
levantamento – de memória, pois afinal ele está dirigindo um carro – das diversas
ocorrências do verso. Com a liberdade de leitor, ele vai de Aquilino Ribeiro até
Marguerite Yourcenar, passando pelo Camões de “Alma minha gentil que te partiste”,
pois segundo o Jorge de Sena de “Peregrinatio ad loca infecta”, esse verso de Camões se
constituiria como variação do tal verso, primeiramente aqui lembrado através de
Adriano. Antes porém desse pequeno périplo, o narrador, ao justificar seu interesse
momentâneo pelo verso, deixa-nos ver como a ação da leitura, interna e lentamente,
repercute e reverbera em si. O que acaba nos mostrando como essa viagem é, mais do
que apenas desencadeada, movida pela apropriação do texto pelo leitor e pelas
conseqüentes relações criadas a partir dessa leitura. Temos, por isso, tanto a viagem do
narrador e Gelnaa em seu automóvel – “Carrego o pé no acelerador” (p.10) –, como a
viagem feita através dos termos: “Animula vagula bandula”:
Porque se trata dum mistério: a perturbação que estas palavras me
provocam desde que as li a primeira vez e a freqüência inesperada
com que as lembro ou digo involuntariamente, sobretudo naqueles
instantes em que me visita, o quê? (p.8)
O que retorna e o visita não será nada mais do que sua própria experiência
subjetiva de narrador. Ou seja, o que lhe ocorre e o que desencadeia nele a ação dessas
palavras quase má gicas a esta altura – espécie de mantra – é seu próprio modo de estar
no mundo. O que nele age e perturba é sua própria consciência das coisas, a consciência
de seu lugar e sua ação:
(...) sobretudo naqueles instantes em que me visita, o quê?, como heide eu chamar a este desespero manso, sentimento de pequenez e
desamparo, ternura insidiosa pelas coisas, que é talvez a máscara da
autopiedade, o gato escondido com o rabo de fora? (Idem)
Ao chegarmos aqui, podemos até dizer que “Animula blandula vagula” é a
própria movimentação e errância da repercussão do verso no narrador e, por extensão,
em nós; o contraste mesmo entre blandula e vagula simboliza a quase resignada
hesitação (“desespero manso” ou “ternura insidiosa”) com que percorre as referências e
se vê numa espécie de desconcerto. Aliás, essa palavra com implicações camonianas
nos ocorre, parece, em boa hora, até porque nesse mesmo trecho há menção a certo
60
“sentimento de pequenez” 19 . Não bastasse o fato de Camões estar subtendido em quase
toda boa poesia portuguesa do século XX, o próprio narrador já havia mencionado
“Alma minha gentil que te partiste” (via Jorge de Sena) como variação em português
para o verso do imperador romano Adriano, também protagonista do romance de
Yourcenar20 . Ou seja, há um caminho a se cumprir aqui. Chamamos atenção para o
importante papel e poder da repercussão da leitura em que m lê. Em seguida, temos o
próprio autor-narrador comportando-se como o leitor que é: seguindo referências,
perseguindo imagens ao sabor de lembranças 21 da leitura, deixando o “Animula vagula
blandula” reverberar nele. Com isso, ele tanto é contaminado pelo verso como este
também o contamina. E se transforma no próprio movimento sugerido pelo “vagula
blandula”, flutuar, errar pelas referências e significados e chegar até a mudança como
regra mesma das coisas. Por isso a pequenez, tão camoniana como a mudança 22 . O que
modernamente se traduz na “máscara de autopiedade” ou no “gato escondido com o
rabo de fora”, imagens de ausência. Isto é, desconcerto que é a condição mesma da
subjetividade lírica 23 . Nesse sentido, o verso latino, devido ao percurso do narrador de A
viagem, nunca como agora disse tanto à lírica portuguesa:
Numa dessas páginas maiores que põem no frêmito da vida o toque
do que é precário, passageiro, e simultaneamente consciência disso.
Pobre e pequena alma, luz duma vela consumindo a cera de que nasce
até se extinguir (p.8).
Vemos que a fonte de onde vem essa possibilidade de assimilações do texto pelo
leitor é a mesma de onde vem a fragilidade do sujeito, o tal “sentimento de pequenez e
desamparo”. É aqui onde nasce, como diz o trecho citado acima, não apenas o
“precário”, mas a “consciência” de sê- lo. Porque a pluralidade e errância de
significações proporcionam a mudança, o passageiro, enfim, o que em poesia moderna
se chama dispersão, “luz duma vela consumindo a cera de que nasce até se extinguir”. A
19
“Que não se arme e se indigne o Céu sereno / Contra um bicho da terra tão pequeno?” (Lus, I, 106)
Além de Camões, podemos lembrar também do Álvaro de Campos de “Ao volante do Chevrolet pela
estrada de Sintra”, cujo movimento é muito parecido com o de “A viagem”: “Na estrada de Sintra ao luar,
na tristeza, ante os campos e a noite, / Guiando o Chevrolet emprestado desconsoladamente, / Perco-me
na estrada futura, sumo -me na distância que alcanço, / e, num desejo terrível, súbito, violento
inconcebível, / Acelero... / Mas meu coração ficou no monte de pedras, de que me desviei ao vê-lo, / (...)
Na estrada de Sintra, cada vez menos perto de mim... (PESSOA, 1986, 306-307)
21
O narrador não consegue lembrar onde, na vasta obra de Aquilino, encontrou o verso: “Recordo-me
dele por exemplo numa página de Aquilino. E agora, localizá -lo na obra enorme? Folheei volumes e
volumes: nada. Contudo, está lá. (...)” (8)
22
Como ilustração, um célebre verso de Camões: “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”
(CAMÕES, 1980, p.244).
23
De Camões de novo um verso: “Errei todo o discurso de meus anos” (Idem, 341).
20
61
viagem, porém, avança. Deixa de lado o verso de Adriano e lança mão de outros que
insistem na memória do motorista no texto:
Mas o trabalho subterrâneo deste verso não é solitário em mim.
Outros versos, outras frases que me devoram, poucos de resto,
trabalham também de maneira obscura para vir de quando em quando
à superfície. Avisos, sinais de qualquer Morse nebuloso mas
importantíssimo .(p. 9).
Inserir em 1976 a palavra “trabalho” no título de seu livro apenas confirmou o
caminho que sua obra já vinha percorrendo mais claramente desde livros como Cantata
e Sobre o lado esquerdo, caminho em que a consciência do trabalho com a linguagem, a
atenção à materialidade da palavra e todo o rigor no seu tratamento seriam, a partir de
então, a tônica: “Esta coluna / de sílabas mais firmes, / esta chama / no vértice das dunas
/ fulgurando / apenas um momento, / este equilíbrio / tão perto da beleza, / este poema /
anterior / ao vento” (O LIVEIRA , 1992, p.204).
Assim, a palavra “trabalho” destacada anteriormente na citação de “A viagem
(1970)”, de certa forma, participa dessa espécie de conscientização do texto em direção
a sua própria materialidade. No entanto, por figurar ao lado do adjetivo “subterrâneo”,
esse trabalho, partindo dessa mesma autoconsciência já tão característica no autor,
atinge outro nível ainda mais cuidadoso. Trabalho subterrâneo aqui se liga, não só por
contigüidade, mas por analogia, ao movimento, já insistente em nessa viagem, sugerido
pelo verso de Adriano “Animula vagula blandula”. A insinuação é sutil: o trabalho é
subterrâneo talvez porque seja quase secreto ou mesmo interno. Aqui podemos ir tanto
na direção de uma metáfora mineral tão característica em Carlos de Oliveira 24 , como
podemos ir na direção de algo que aconteça sem que possamos ver. Na verdade, uma
direção não exclui a outra; o movimento de leitura pode ser simultâneo, porque
complementar, nos dois sentidos. Mas fiquemos, por ora, com a segunda direção do “às
escondidas”. Ou seja, o trabalho é subterrâneo, porque, embora algo aconteça – e o que
acontece aqui necessita de empenho, disciplina, esforço, espaço, pois afinal trata-se de
um trabalho –, acontece – por mais que se despenda energia – fora do campo habitual de
visão. O que queremos é que se crie uma contraposição entre um trabalho que necessita
ser visível e outro que não. E o trabalho, não ainda do autor, mas do leitor, é justamente
esse último em que as coisas acontecem de forma subterrânea, às escondidas. Surge
agora mais uma contraposição, como contrapostos estiveram antes vagula e blandula. O
24
“Vocábulos de sílica, aspereza, / chuva nas dunas, tojos, animais (...)” (OLIVEIRA, 1992, pg.227).
62
trabalho é secreto porque é único em cada leitor e por isso não está por extenso dado no
texto. Ou melhor, “o trabalho subterrâneo” é aquele em que o verso, sempre referencial
– no caso “Animula vagula blandula” –, aciona em quem o lê a construção do sentido, a
atualização da potência.
Somente por isso que o narrador de “A viagem (1970)”, aquele que está
dirigindo seu carro, pode ir a Yourcenar, Aquilino, Sena e Camões, sem perder a
viagem. Tal trabalho é o da própria reverberação do verso em quem o lê. Como se
realmente fosse um processo interno e lento em que o texto criasse ramificações
diversas. A imagem da reverberação parece apropriada, pois o narrador não se contenta
apenas em evocar o verso, mas ele o pronuncia fisicamente através da voz, mesmo
correndo o risco de acordar Gelnaa. Não satisfeito apenas em pronunciá- lo, torna-o
ainda mais táctil para nós quando faz com que o vejamos materializando-o na fumaça de
seu cigarro. Aliás é assim que se inicia o texto:
Digo as palavras em voz alta:
– Animula vagula blandula.
E as palavras, suspensas no fumo do cigarro, param um momento
a poucos centímetros da boca. Vejo o novelo denso ondear. De súbito
a velocidade, as janelas abertas do carro, pegam nele, desenredam-no
por cima do meu ombro direito (guio com a cabeça ligeiramente
voltada sobre a direita) e puxam-no para trás (...) (p.8).
O que o verso faz, como vimos agora ante os nossos olhos, foi desenrolar-se
num “novelo denso a ondear” à frente de quem o proferiu, o leitor-narrador. Numa
imagem de ondulação análoga ao trabalho subterrâneo de reverberação do verso, que
aliás é também a própria encenação e tradução de vagula 25 .
Ainda neste texto, temos a presença de mais dois outros textos, porque, como
vimos, “o trabalho subterrâneo deste verso não é solitário” no narrador. Se “Animula
vagula blandula” age principalmente através de referências literárias que vão de
Yourcenar a Camões – “ó companheira que eu não tenho nem quero ter”, verso de
Álvaro de Campos, não remeterá aqui propriamente a uma operação entre textos. O que
chama atenção do motorista agora é Gelnaa que está ali a seu lado, assim como
25
“Vagus, a, um (adj). errante, vagabundo; livre; inconstante; incerto” (BUSSARELO, 1991).
63
estavam, de certa forma e também, Yourcenar e Jorge de Sena 26 . Esse segundo verso
desencadeia nele sensações não muito distantes daquelas sugeridas pela experiência “do
que é precário”, a partir do verso de Adriano. “Olho para Gelnaa e não compreendo:
tenho-a e quero tê- la. Mas ao mesmo tempo compreendo: não a devia ter a ela; ou não
vale a pena tê- la; ou então dói- me a sua fragilidade, sombra dum arquétipo, eterno neste
momento” (p. 9). Chamemos atenção apenas para o desencadear de possibilidades que
são simultâneas, mas que, mesmo assim, operam a partir de um sistema binário,
querendo ultrapassá- lo ou jogar com os opostos. Compreender e não compreender; ter e
não ter; e logo tudo posto em xeque. Ou seja, possibilidades e mudanças análogas
àquelas que vimos no verso do imperador. Porém, se antes errávamos pelas referências,
metonímia aqui da mudança sempre das coisas, agora erramos pela própria imagem do
sujeito em relação a si, ao outro, Gelnaa, e em relação à passagem do tempo. Segue de
onde paramos:
Logo depois volto a não compreender: meu amor mortal, de carne e
osso, tenho-te para sempre, agora. Coisas que se equivalem, na
gramática relativa da vida. Não nos deram outra, Gelnaa. E mal acabo
de pensar isto compreendo de novo: nenhuma companheira é possível
e as solidões somadas pesam mais que uma só. Etc (p. 9).
O verso de Álvaro de Campos citado pelo leitor e narrador de “A viagem
(1970)” é o ponto donde se desencadeiam imagens que não necessariamente estavam
em Campos, melhor, estavam enquanto potencialidade semântica, i.e., o verso como
dispositivo 27 que aciona várias direções de leitura. Várias, porém, não quaisquer, é bom
frisar: o movimento de leitura é diretamente condicionado pelo verso, atualiza-se apenas
aquilo que a potência permite. Visto isso, podemos ver como há no narrador a
preocupação de experimentar, no próprio plano da narrativa, a ação, “trabalho
subterrâneo” do texto nele. E aqui chegamos ao ponto central, ponto já visto na leitura
que fizemos da leitura-reverberação que o narrador- motorista faz dos versos de Adriano.
26
Num autor como Carlos de Oliveira, assim como em muitos autores contemporâneos, as referências
literárias não se distinguem de outras referências como, principalmente, as do cotidiano, i.e., a
experiência de leitura é mais uma entre muitas da experiência cotidiana do sujeito.
27
Cotejemos: “Um dispositivo de silêncio / nos pontos cardiais / desta página / instaura a maravilha / por
alguns séculos” (JORGE , 2001, pg.164). A esses versos de Luiza Neto Jorge seguem-se alguns outros de
Carlos de Oliveira: “O céu calcário / duma colina oca, / donde morosas gotas / de água ou pedra / hão-decair / daqui a alguns milénios / e acordar / as tênues flores / nas corolas de cal / (...)” (OLIVEIRA, 1992,
pg.104). Parece que o dispositivo de silêncio de que Luiza fala pode ser figurado pelo céu calcário dessa
colina oca, paisagem tão próxima a Carlos de Oliveira. O que era generalizado no poema de Luiza, no de
Carlos de Oliveira é específico, localizado, mas não menos produtivo. Veremos mais sobre o significado
de silêncio nesta obra a partir aqui do capítulo sobre o poema “Estalactite”.
64
Não falamos aqui somente da simples capacidade que a poesia de Carlos de Oliveira
tem de trabalhar subterraneamente no leitor, mas falamos principalmente da necessidade
que o autor tem de encenar tal trabalho no narrador dos textos de O aprendiz de
feiticeiro. A encenação é tanto do próprio ato de leitura como já vimos antes – comprar
o livro numa feira, abri- lo, ver a gramatura da página, o tamanho dos caracteres, a
marca que o tempo imprimiu nele, seus outros donos – como, agora vemos, do efeito e
assimilação desses versos pelas e nas experiências do leitor.
Esse movimento persiste até o fim de “A viagem (1970)”. O narrador continua e
nos traz outro texto; agora, de Camus, o trecho: “a terna indiferença do mundo”. Todo
seu trabalho de leitura aqui é assimilado pela ação que ele está desempenhando agora:
dirigir. É como se o fato de ele estar dirigindo fosse indissociável da leitura desse trecho
de Camus. Reiterando: as ações do narrador são condicionadas e ao mesmo tempo
condicionam as palavras citadas. Até porque aqui só existe motorista porque existe
narrador. E só existe o narrador porque existe, no texto, a leitura – não qualquer leitura,
mas, repetimos, a encenação da leitura do verso de Adriano, do de Álvaro de Campos e
agora do trecho de Camus. O movimento inverso também é verdadeiro e até necessário:
só existe a leitura, específica, porque existe o narrador; e, da mesma forma, o narrador
em relação ao motorista que, afinal, é o elemento mais visível do texto. Vejamos então
como isso se desenvolve no texto:
De Camus: “a terna indiferença do mundo”. Entardece ao redor. O
carro, um ponto móvel no meridiano da estrada que divide a terra em
duas partes rigorosamente iguais, abre ele próprio o sulco da divisão,
o único sítio por onde podemos passar, e se parássemos, o universo
da esquerda e o universo da direita espraiavam-se no alcatrão ao
encontro um do outro, bloqueando o caminho, como dois mares de
fraga, húmus, água, árvores, o cataclismo vagaroso que mistura tudo
na mesma terna indiferença, porque a ternura é isso, misturar,
indiferenciar, e a indiferença (do mundo), como a própria palavra diz,
também (p.9).
O narrador é motivado a vencer essa “terna indiferença do mundo” – projeto que
ele sabe vão, mas que mesmo assim o move: para ele não há outra possibilidade. O
carro é seu instrumento para não deixar que os “dois mares de fraga” se unam e as
coisas se tornem indiferentes, como de fato são. O que o sujeito faz é enfrentar as
palavras de Camus, que agora são dele, do mundo. Essa é a ressonância possível dessas
palavras nele. O trabalho delas nele é o fato de o carro, através do “sulco da divisão”,
torná- lo, o mundo, diferente. É claro que essa pulsão utópica paga algum tributo à
65
estética neo-realista, entretanto o mais importante é que ele a ultrapassa em direção a
uma outra utopia, que em verdade a inclui, que é a da palavra, da poesia 28 . Por isso ele
dirige o carro, para riscar (e escrever) essa linha divisória que ele sabe provisória,
metonímia do cálculo e rigor e que aponta para uma fragilidade tão cara à poesia de
Carlos de Oliveira. Linha que, como já vimos, põe “no frêmito da vida o toque do que é
precário, passageiro, e simultaneamente consciência disso”, ao mesmo tempo revelação
do instável e da irreversibilidade disso. Agora, talvez, lembremos da citação, mesmo
que indireta, de Camões, figurado aqui via “Animula vagula blandula”. O fim do texto é
essa última tentativa, se bem que lucidamente falha, de romper “a terna indiferença do
mundo”:
Carrego no acelerador. (...) Cento e quarenta. As coisas afastam-se
para passarmos. O murmúrio do vento ajuda, o motor silencioso
ajuda, e a rapidez do carro transforma o céu num túnel ainda claro
mas estreito, numa ogiva de vidro, por onde é preciso romper à justa
senão parte -se toda esta arquitectura frágil. Cento e cinqüenta, cento e
sessenta. Então a voz de Gelnaa, tranqüila e um pouco irônica,
detém-me no primeiro degrau da vertigem (...) (p.10).
O narrador só “carrega no acelerador” porque se lembra das palavras de Camus.
Acelerar o carro é uma conseqüência direta da menção ao texto. E estrategicamente
quem o pára é Gelnaa. Não podemos esquecer que a citação de Camus é a terceira,
portanto é mais do que necessário colocarmos as outras duas em circulação e em contato
com esta, porque afinal foram escolhidas e ordenadas num mesmo texto. Vistas nesse
plano “Animula vagula blandula”, “ó companheira que eu não tenho nem quero ter” e
“a terna indiferença do mundo” começam a se relacionar e apontam para caminhos de
convergência. O verso de Adriano aponta para a própria errância do sujeito (pequena
alma), também camoniano 29 , que pode ser o próprio deslocar-se do carro, traduzido por
vagula, e que também, como vimos, deixa-se ver também no próprio movimento que é a
leitura. Já blandula, que contrasta com vagula, encontra, em Camus aqui, paralelo no
adjetivo “terno”. Até que vem Gelnaa – como sabemos, leitora e “companheira que eu
não tenho nem quero ter” – interrompe todo movimento, que, sabemos, é o do carro, o
28
O movimento é o mesmo da obra de Carlos de Oliveira: se seus primeiros livros nos falam de um
problema derivado das diferenças entre uma realidade desejada e outra possível, alcançável, porque
estabelecida no eixo do social; seus últimos livros nos falam também de um problema, mas de um
problema derivado sobretudo das diferenças entre uma realidade escrita e uma outra, impossível, porque
inexistente fora da escrita.
29
Não só devido ao caso isolado de “Alma minha gentil que te partiste” (CAMÕES, 1980, pg.268), mas
pelo tema mesmo do desconcerto, mudança e fragilidade subjetiva que perpassa toda a obra de Camões.
66
do sujeito e o da leitura, o movimento crítico. Embora de forma diferente, podemos ver
também tal percurso no texto “Na floresta (1966 e 1970)” em que vemos os seguidos
deslocamentos que o sujeito vai realizando ao perseguir, errando através da memória, a
imagem da floresta (também metáfora dos livros) na poesia portuguesa:
Em Torga, Sá-Carneiro e Pessoa, um elo comum, uma simples
palavra: perder (perdida, perdido, perdi), de qualquer modo ligada à
idéia de floresta. Menos em Sá-Carneiro, mais nos outros. Perder o
quê? Evidentemente, o tempo que passa e o que passa com ele. Que
se pode perder além disso? (p.135)
Interrompemos aqui a leitura de “A viagem (1970)”. O que se quer evidenciar é
que a leitura da poesia de Carlos de Oliveira, que ainda não foi lida, pode se tornar mais
produtiva – essa é a questão – qua ndo lemos e entendemos algumas linhas traçadas pelo
autor em seus textos de O Aprendiz de feiticeiro. Linhas em que afirma a capacidade
que os textos têm de exercer um trabalho subterrâneo no leitor. O percurso que traçamos
quis evidenciar justamente essa ação das palavras lidas (lembradas) em quem as lê; ação
que faz, do leitor, sujeito, já que sua atitude ao longo da narrativa é conseqüência direta
dessas mesmas palavras.
3.6. LEITURA E TEMPO EM “JANELA ACESA”
A estrela mais próxima, a oito anos-luz, é
Sírius (sem falar da Alfa do Centauro
invisível no hemisfério norte). Se explodir
agora, só daqui a oito anos deixarei de a ver.
C.O., “A fuga”
Neste capitulo de título “O mundo comum”, como pôde se perceber,
concentramo-nos na leitura e na imagem do leitor. Mais do que isso, mostramos como
tal imagem, seja no narrador seja através de Gelnaa, pode ser central em O aprendiz de
67
feiticeiro. O que faremos no próximo capítulo será mostrar como, especialmente na
poesia, também nos será muito útil encontrarmos a figura do leitor dentro da própria
proposta que é o poema. Sobre isso, Manuel Gusmão diz:
A convocação do leitor é aliás apuradamente realizada na poesia de
Carlos de Oliveira, muitas vezes só através das interrogações e outras
formas de distância que internamente distendem, interrompem a
tessitura do poema e, assim, exigem a participação do leitor que, ao ler,
terá de repetir a questão e, logo, questionar-se (GUSMÃO, 1981, p.57,
grifo nosso).
Antes porém veremos a partir de “Janela acesa (1965)” alguns dos recursos
proporcionados pela convocação do ato de recepção durante ainda o de produção, como
deixa entender Manuel Gusmão. A leitura é um momento distinto da produção. Logo se
durante essa último convoca-se a primeira, teremos uma convivência de tempos
distintos dentro do mesmo espaço, o texto passa a ser um tempo de simultaneidades
onde a sincronia faz com que suas seguidas presentificações possam ocupar o mesmo
lugar, povoar essa mesma paisagem. Por isso que insistimos até agora na menção nos
títulos, como vemos no índice do livro, às datas de produção inicial dos diversos textos,
datas que por si só já evidenciam o espaço temporal de vinte cinco anos. Não bastasse
isso, como sabemos, esses textos passaram por um excessivo processo de seguidas
leituras e que se materializam no que conhecemos pelo nome de reescrita. Para isso,
uma nota do livro que em algumas edições vem ao início, em outras ao fim, dependendo
de onde esteja o índice; ela diz o seguinte:
As datas mencionadas neste índice correspondem à redacção inicial dos
textos. O autor remodelou bastante alguns (sobretudo os mais antigos)
publicados em jornais e revistas. Aqui fica a sua versão definitiva, que
substitui, para todos os efeitos, a primeira (p.202).
O texto de Carlos de Oliveira pressupõe tanto movimento que a expressão
“versão definitiva” precisa ser encarada com algum cuidado. Depois de publicado a
primeira edição do livro em 1971 30 , a terceira edição, de 1979 31 , traz algumas
modificações. Aliás, esse mesma edição, a última em vida do escritor serviu como
modelo para as demais, incluindo essa que utilizamos. No entanto, a edição das Obras
de Carlos de Oliveira, de 1992, publicado por uma editora diferente 32 das edições
anteriores e também da edição posterior de 2004, traz algumas mudanças muito
30
31
Publicações Dom Quixote.
Sá da Costa Editora.
68
curiosas, mudanças que entretanto foram excluídas da última edição. Não sabemos dizer
se são meras gralhas – estranhamente muito coerentes – ou se são as últimas
modificações, posteriores à edição de 1979 e que em vida do escritor não conheceram
oportunidade de serem feitas. Vale citarmos três delas, tanto para mostrar como a
“versão definitiva” aqui é discutível, quanto para uma possível e futura resolução do
caso. Em todas as três há coerência e podem perfeitamente fazer parte do processo de
reescrita. A primeira está em “Na floresta (1966 e 1970)”, no trecho
Estupidez, inclemência, florestas que o amor ilumina por dentro, só o
amor, e onde está ele? Neste crepúsculo geral indefinindo rostos,
corpos, almas, só o amor é grande, só o amor cintila ainda na oca, cega,
esfera do acaso que se chama como? vida, morte ou apenas tempo,
tempo do desamor, da estupidez, da inclemência instituída. (p.138) 33 .
A edição de 1992 retira a resposta. Logo o trecho que vai de ‘vida’ até
‘instituída’ está ausente. O que faz sentido levando em conta a lógica da reescrita em
sua obra. O fato de ser a resposta de uma pergunta também pode ser significativo para
sua exclusão. Não seria uma porta de entrada para o leitor, como disse Manuel Gusmão
na citação acima que falava que a “convocação do leitor é aliás apuradamente realizada
na poesia de Carlos de Oliveira, muitas vezes só através das interrogações (...)”
(GUSMÃO, 1981, p.57). Outra diferença está presente no texto “Coisas desencadeadas
(1965)” onde lemos poetas somente na edição de 1992 lemos homens:
Se a poesia é como queria Maiakovski um encomenda social, o que a
sociedade pede aos poetas de hoje, mesmo que peça nebulosamente,
não anda longe disto: evitar que a tempestade das coisas desencadeadas
nos corrompa ou destrua (p.181) 34 .
A julgar pelo caráter profundamente social, inclusive depois de Cantata, da obra
de Carlos de Oliveira, a julgar por ter se preocupado mais com os homens que com os
poetas, a mudança de poetas para homens teria uma lógica dentro de sua obra.
Finalmente em “Micropaisagem (1969)”, ao falar sobre a transferência de algumas
características de paisagem de sua infância, a Gândara, para sua poesia vemos uma
mudança, onde lemos “decantada”, na edição de 1992, está “desencantada”: “A matéria
de alguns poemas da Micropaisagem, talvez mais decantada, mais indirecta, é a mesma”
(p.184) 35 . É natural que em 1969 o autor se referisse ao então recente Micropaisagem
32
Editorial Caminho.
Na edição de 1992, p..543.
34
Na edição de 1992, p.583.
35
Na edição de 1992, p.586.
33
69
como um livro decantado, pois afinal este é a confirmação da viragem de sua escrita
percebida mais claramente em 1960, com Cantata, e depois levada a outras
conseqüências em Entre duas memórias (1971), Pastoral (1976) e Finisterra. Paisagem
e povoamento (1978). Depois porém, como sugerem os posteriores poemas e
principalmente o último livro de prosa, podemos perceber o quanto há de desolação no
que diz respeito tanto a essa tentativa de escrever a partir da memória, quanto no que diz
respeito a própria questão da representação como um todo, sempre sujeita ao extravio,
sempre regida, apesar de todo o rigor, pelo arbitrário, pela errância, enfim
36
. Toda essa
anotação de variantes, ainda por serem resolvidas, tem por propósito de mostrar como
esses textos estão, num todo, sujeitos a temporalidades diversas. A reescrita é uma
dessas manifestações, há outras, é o que veremos agora em “Janela acesa (1964)” e
depois no próximo capítulo através da leitura do poema.
Robert Scholes em Protocolos de leitura diante possivelmente de um quadro de
La Tour, escreve: “Para ler um texto, teremos de acrescentar algo” (SCHOLES , 1991,
p.21). O quadro que vê (e que vem ilustrado no livro para que também possamos ver) é
de uma jovem possivelmente com sua mãe diante de uma vela lendo um livro. Entre
outras coisas, Scholes diz ser Maria, futura mãe de Jesus, a menina que lê o livro. Que
livro? De acordo com a época em que foi pintado, “tratava-se de um texto de instrução
bastante freqüente e apropriado” (Idem). E continua: “Na educação da virgem, a Bíblia
constitui um livro muito importante para Maria, pois o seu papel futuro está nele
prefigurado em linguagem profética, mesmo que ela esteja apenas a ler o antigo
testamento” (Idem). O trabalho de leitura de Scholes segue e inicia a fusão de tempos
distintos, o tempo aparentemente a que o quadro diz respeito, a época em que foi
pintado e finalmente o momento em que é lido: “não se trata de um texto historicamente
ideado; nele, Maria e sua mãe são vistas como contemporâneas do autor” (Idem). Essa,
a primeira junção de tempos: o tempo de Maria, criança, e o tempo de La Tour, pintor.
Agora vemos uma atualização do quadro em que o leitor ativa seu mecanismo, sua
história: “Pode muito bem dar-se o caso de esta Maria ler um texto que inclua tanto o
Antigo como o Novo Testamento” (Idem). Por mais que a leitura do autor possa exceder
alguns limites, ele reconhece ter tido uma formação cristã, seu ato de leitura torna o
quadro uma reunião de tempos distintos que ao conviverem uns com os outros
produzem sentidos:
36
Um apontamento de Paul Valéry: “O rigor só se alcança pelo arbitrário” (VALÉRY, 1994, p. 9).
70
Em resumo: talvez Maria esteja a ler a sua própria história, o seu
próprio livro. Situação singular ou impossível – dirá o leitor.
Impossível, sim, concordo, mas ao mesmo tempo provável. Na verdade
trata-se de uma alegoria da leitura. É o que fazemos e devemos fazer a
cada instante, quando lemos. Se quisermos ler de facto, temos de ler o
nosso próprio livro no texto que temos diante de nós; há que torná-lo
pessoal, trazê-lo à nossa própria vida e pensamento, ao nosso juízo e
acção pessoais (Idem, p.22).
Depois de feito o exercício, o crítico – que de algum modo conjuga a
recuperação dos tempos para os quais o quadro aponta com seu tempo: o tempo do
leitor que torna presente os índices dados – arrisca uma breve teorização do que seja o
ato de leitura e interpretação, trabalho que muitas vezes, por mais simples que possam
parecer os textos, exige mais de um posicionamento do leitor:
A leitura tem duas faces e orienta-se para duas direções distintas, uma
das quais visa a fonte e contexto original dos sinais que se decifram,
baseando-se a outra na situação textual da pessoa que procede à leitura.
Pelo facto de a leitura constituir sempre matéria de pelo menos, dois
tempos, dois locais e duas consciências, a interpretação mantém-se
infinitamente fascinante, difícil e essencial (Idem, p.23).
“Janela acesa (1964)” é sem dúvida um texto sobre a leitura. Tanto que se
repararmos o lugar que ocupa no livro veremos que é posterior a “À espera de leitores
(1959 e 1966)”, de que já falamos um pouco, e é anterior a “O que é o povo? (1970)”,
texto curioso em que lemos, via Alexandre Pinheiro Torres, a expressão com
maiúsculas “Leitor Distraído” (p.161), i.e., aquele leitor desinformado e passivo que
julga que o povo é “um tema exclusivo dos neo-realistas” e “também o único tema
deles” (Idem) 37 . Leitor esse que não interessa ao narrador. Em “Janela acesa” temos um
narrador extremamente consciente do seu trabalho, para usarmos um termo caro ao
autor. Usa com extrema lucidez sua memória que, por algum efeito narrativo, parecenos às vezes quase impessoal. Parece ao mesmo responsável tanto pela direção geral do
filme como pela direção de fotografia:
Trago a janela de muito longe, da casa de meu avô, e abro-a neste
parede cega virada ao poente. Junto-lhe a lembrança das janelas a
37
Em O aprendiz de feiticeiro visivelmente há uma relação significativa na arrumação dos textos, i.e., a
ordenação, que não é cronológica, e as relações de contigüidade no livro são produtoras de sentido. Além
dos mencionados, poderíamos relacionar imediatamente outros textos, como por exemplo: “Gás (1967)” e
“Na floresta (1966 e 1970)”; ou “Serenata (1965)”, “Chuva (1947)” e “Bela adormecida (1957)”. Esse
recurso, é certo, ajuda a dar mais unidade ao volume. Outra informação talvez nos ajude: O aprendiz de
feiticeiro foi publicado no mesmo ano que Entre duas memórias, o livro de poemas de Carlos de Oliveira,
dotado de maior unidade, livro em que a contigüidade dos poemas é muito importante. Talvez a
arrumação deste livro de poemas tenha contribuído para a arrumação do livro estudado aqui. Ou talvez
tenha acontecido o contrário.
71
faiscar no outro lado da rua. Consigo assim a mesma mancha de sol, as
mesmas nuvens coloridas de então.
A parte superior da janela é redonda, um semicírculo perfeito de vidros
amarelo-laranja, talvez menos denso que o laranja, mas isso depende
muito da luz exterior: intensidade, hora do dia, verão, inverno, etc. Na
parte de baixo, sensivelmente quadrada, vidros brancos vulgares (...)
(p.155).
O narrador-cenógrafo organiza sua descrição. A representação, no entanto, não
decorre, porque os objetos já estavam no lugar. O contrário: eles só estão aqui porque
serão representados. “Diante da janela ponho a cadeira” (Idem). Esses são justamente
objetos recordados que o autor coloca no texto. “Nela me sentei a escrever os primeiros
poemas, a folhear os primeiros livros proibidos. Partiu-se? Perdeu-se numa dessas
mudanças a que a vida obriga as pessoas sem casa própria e um pouco instáveis?”
(Idem). É como se o texto pudesse – e até aqui pode – tornar presente uma história, a do
narrador, através de sua habilidade e rigor de construção: “Na cadeira sento a mulher.
Ainda jovem, quando a conheci” (p.156). O que poderia ser uma fotografia agora
precisa ganhar movimento. E nisso passamos a saber qual é de fato a função da mulher
sentada na cadeira: “Escolhida a interprete, dispostos os elementos da cena, procedo
agora como se estivesse a filmar” (Idem). A mulher, que o narrador conheceu ainda
jovem e que ainda a conhece – “olhos mais claros que hoje (a vida escureceu- lhos
bastante)” (Idem) – é a intérprete. De quê? Por enquanto diríamos da cena. Mas ela faz
parte da mesma cena? Já que o cenário é a memória do narrador, a mulher sentada na
cadeira poderia ser a intérprete de suas memórias, memórias estas do qual ela também
faz parte. Se a memória é o que ajuda a constituir o que esse narrador é, essa mulher
sentada seria a intérprete de sua vida?
Começa assim seu retrato – o dela – em movimento: “A luz vem da janela. O
semicírculo laranja ilumina o rosto da mulher, apanha- lhe o cabelo que noutras
circunstâncias seria negro (...). Detenho a luz (o foco de estúdio) sobre o rosto quase
irreal, oiro?, fogo?, na janela antiga” (Idem). Vale perceber que o quase laranja do início
da narrativa (“amarelo- laranja, talvez menos denso que o laranja”), passada uma página,
já pode ser chamado sem hesitação de “laranja”. O domínio da descrição em movimento
é total. Vemos que o sujeito que compõe e filma controla, até agora, bem o seu texto,
embora ele já esteja sujeito a mudanças de perspectiva causada pelo travelling da
câmera: “Continuo a deslocar o foco no mesmo eixo vertical e provoco o eclipse lento
do rosto. A sombra apodera-se do que a luz laranja abandona (...)” (Idem). Agora,
talvez, começamos a perceber, embora já desconfiemos, de que texto a mulher sentada
72
na cadeira é intérprete. A descrição continua coerente, não sofre qualquer mudança de
velocidade. As mudanças de perspectiva e cor decorrente do movimento continuam a
ser muito controlada. Enfim textualmente o texto não muda de tom: “As mãos, poisadas
no regaço, seguram um livro fechado. Vejo a capa: duas esquadrias largas, dois tons de
castanho que o laranja da luz torna menos frios; o título e o nome do autor ambos em
caixa baixa, tipo e corpo iguais” (p.157). Já conhecemos, porque já vimos antes, este
pormenor na descrição de uma edição. Nesse preciosismo porém há um objetivo que vai
um pouco além de antes: “Reconheço o livro. É este. Como, se estou ainda a acabá- lo?
Não foi sequer passado a limpo quanto mais composto, impresso. A mulher não pode
ter um exemplar já pronto. E contudo tem” (Idem).
Os pormenores descritivos da capa reproduzem em detalhes a capa da primeira
edição do próprio O aprendiz de feiticeiro, Publicações Dom Quixote, editado em 1971.
A situação, se não é a mesma, é muito parecida com aquela que Scholes nos propôs
como leitura do quadro em que a Virgem Maria estivesse lendo o Novo Testamento,
livro de que, como sabemos, Maria faz parte. Neste caso, foi a fusão de tempos distintos
causado pela leitura de Scholes que proporcionou essa sugestão de mise en abîme. Nesta
“Janela acesa” – que aliás é a própria capa do livro – a intérprete – a mulher sentada na
cadeira, que em outros momentos do livro é chamada de Gelnaa, cripotógrafa e mulherfloresta – é leitora do livro – e aqui não há metáforas no que diz respeito ao livro: é O
aprendiz de feiticeiro – antes mesmo de ele ser editado. Somente o ato de recepção pode
causar esta convivência de tempos diferentes. E a mulher sentada na cadeira, a
intérprete, é a personificação do leitor neste livro que trata, entre outras coisas, da
leitura. Logo, a presença dela pressupõe para o narrador, o produtor do texto, um outro
tempo, o tempo da recepção que é diferente do tempo de produção.
Esse outro tempo talvez seja responsável pelo extravio da objetividade do texto,
apesar de todo o rigor e lucidez com que é construído. Ainda, Scholes: “Aquilo a que a
princípio dei o nome de movimentos para trás e para frente e depois de impulsos
centrípetos e centrífugo representa as forças diferenciais que accionam o processo de
leitura” (S CHOLES, 1991, p.24). O que o narrador deste texto encena é a inevitabilidade
deste impulso centrífugo (movimento para frente) no seu trabalho de construção a partir
“de muito longe” e através da memória, cujo movimento representa-se para trás
(impulso centrípeto). Poderíamos no entanto afirmar: Carlos de Oliveira está escrevendo
e não lendo. Essas forças atuam na leitura e não na escrita. Uma possível resposta seria:
Carlos de Oliveira, o narrador de O aprendiz de feiticeiro, ao escrever não deixa bem
73
claro seu posicionamento antes de tudo como leitor. Ou ainda: se quando escreve ele
está de algum modo recuperando o passado, essa memória falhada e lucidamente
escrita não seria uma forma de leitura desse passado, já que não consegue reproduzi- lo
tal e qual?
A mulher sentada na cadeira, como vimos, pode ser Gelnaa, que por conseguinte
pode ser Ângela de Oliveira também, tanto pela a referência ao fato de ela ter nascido
na Ilha da Madeira – “o cabelo solto num halo de bruma e brisa que faz pensar nos
amanheceres da sua ilha” (p.156) –, quanto pelo fato da janela do título também se
aproximar de um anagrama de seu nome. O que confunde e enriquece ainda mais os
protocolos de leitura em deslocamento nesse texto.
Ao fim, a obra de Carlos de Oliveira é a encenação de leitura do seu próprio
texto, pois nela há o tempo de produção, como em qualquer texto, mas também há a
encenação do tempo de sua recepção, como se assim ele conseguisse impedir o extravio
de seu trabalho. Aliás a metáfora do trabalho em sua obra tenta também conter essa
força centrífuga que potencializa seus textos, i.e., faz com que neles caibam algumas
direções por vezes contrárias. Tudo isso porque o sujeito é sobretudo um leitor que
sabe, como vimos ao longo de O aprendiz de feiticeiro, o poder que possui: “Digo as
palavras em voz alta” (p.7). Continuemos com a narrativa da mulher que segura o
livro,“este”:
Imobilizo outra vez o foco. Sobre as mãos e o livro. Mãos duma força
inesperada (a fragilidade das articulações, o comprimento esguio dos
dedos, não conseguem escondê-la). A tonalidade que as envolve revela lhes toda a incandescência interior. Estão paradas, não folheiam o livro,
apenas o seguram (p.157).
O narrador controla ainda o foco e outras coisas, mas não previu a presença do
livro nas mãos da mulher que ele sentou na cadeira. Provavelmente ela mantém o livro
fechado – lembremos, ela é a intérprete –, porque já o leu antes do narrador colocá- la
ali. Atenção também à “força inesperada” e “incandescência interior” aliada à
“fragilidade das articulações” que revelam o misto de dependência e poder que a figura
da leitora sugere. Sem o texto ela não representa nada; uma vez com ele, tem- no
literalmente – a imagem é simbólica – em mãos. Tamanha é a tensão de forças entre
produção e recepção encenada internamente que seu projeto de representação a partir da
memória não consegue se manter por mais tempo:
Então qualquer coisa cintila nesta imagem silenciosa. O verniz das
unhas?, da cartolina? Não chego a sabê-lo. A mulher levanta-se da
74
cadeira (ao retardador). As mãos e o livro sobem, somem-se na sombra.
E nisto a janela apaga-se. Por duas razões, suponho. O travelling
acabou e a tensão (a cores) da memória não pode manter-se por muito
tempo (Idem).
Reparemos na falta de controle do narrador em relação a sua intérprete. “Na
cadeira sento a mulher”. Sintaticamente ela comportava-se como objeto direto. Por isso
até a curiosidade da imagem. Agora, no entanto, a “mulher levanta-se da cadeira (ao
retardador)”. Ao tornar-se sujeito, impossibilita o projeto completo de representação do
texto. Nisso desaparecem mulher, livro e janela. E o narrador, que controlava, nada mais
pode que supor.
O fato de a capa da primeira edição do livro reproduzir essa “janela acesa”
possibilita dizermos que todo o volume está regido – para além já da presença, como
vimos, da leitura ao longo de todo o volume – por essa convivência dos tempos
produzida pela intérprete 38 . Podemos levar essa idéia mais adiante se lembrarmos que
todos os demais romances de até então do autor reescritos e relançados pelas
Publicações Dom Quixote a partir de 1969 já utilizavam como capa a mesma “janela
acesa”, de O aprendiz de feiticeiro que só apareceria em 1971, com combinações de
cores diferentes, no entanto. A julgar por isso todos esses livros estariam de certa forma
contaminados pela ilustração de suas capas, ilustração que depois da leitura do texto em
“Janela acesa” que, aliás traz data de redação inicial de 1964, ganha novos contornos.
Adiante, no próximo capítulo, veremos como esse instrumental adquirido com a
leitura deste livro pode nos ajudar a ler um poema de Micropaisagem, melhor, veremos
como a ação do leitor de alguma forma já está prevista internamente no poema. Assim
saberemos não só como se dá o povoamento (a leitura) da paisagem (o texto), mas
também qual pode ser o seu propósito.
38
Apesar de a última edição até aqui, de 2004, trazer outra capa, a original vem reproduzida ao fim de
“Janela acesa” através de uma nota de pé de página.
75
4. POVOAMENTO DA PAISAGEM
– “ESTALACTITE”
Sei apenas que chego, mais tarde
ou mais cedo.
C.O., “Corvos”
4.1. PREÂMBULO
Começamos na década de trinta, possivelmente na Espanha ou França. O
peruano César Vallejo, que irá morrer ainda em 1938, escreve o poema “He aquí que
hoy saludo”, publicado futuramente no já póstumo Poemas en prosa. Não bastasse a já
habitual linguagem acentuadamente metafórica e até hermética de sua poesia, ao fim
deste poema Vallejo escreve entre chaves uma espécie de apêndice que diz o seguinte:
“(Los lectores pueden poner el título que quieran en este poema)”: Os leitores podem
colocar o título que quiserem neste poema. Nosso trabalho não é sobre a poesia de
Vallejo, mas algo nos interessa e muito. Dizer que a poesia se faz mediante a
intervenção do leitor talvez especifique pouco nosso objeto, até porque todos os
poemas, ou pelo menos os melhores, exigem tal posicionamento do leitor. O que
interessa é chamar atenção para aqueles textos que não só jogam com essa necessidade,
mas a incorporam em sua forma, ou melhor, em sua formação. Em outras palavras: de
que o poema fala? Entre coisas, do ato de sua própria leitura.
76
4.2. O PORQUÊ DA LEITURA
E será por esse tópico que se dará a leitura da poesia, agora sim, de Carlos de
Oliveira. Observar como no poema – “Estalactite” (Micropaisagem, 1968) – a
tematização expressa da leitura constitui um dos fatores com os quais sua linguagem, a
do poema, forma um campo semântico e estabelece a referência. Ao lado dessa
tematização expressa da leitura, temos ainda nesse poema – uma espécie de poética do
autor – outros dois momentos, discerníveis em análise: a tematização da memória como
possibilidade de construção da referência e, finalmente, como conseqüência disso tudo,
a possib ilidade de, no poema, se desenhar uma paisagem através, sobretudo, de termos
que evocam certa materialidade específica, exemplo: água, orvalho, pedra, colina, cal,
flor, palavras que vão caracterizando e estabelecendo o cenário; Nelson de Matos já
falava de certas “imagens e vocábulos retirados ao reino mineral” (MATOS, 1971,
p.117). Já segundo Manuel Gusmão, toda a poesia Carlos de Oliveira, não sem algum
prejuízo, poderia ser dividida em duas fases. E precisamente o registro da paisagem
seria uma das diferenças entre essas fases. Para a primeira: “Os elementos que referem o
mundo natural representam dominantemente a natureza orgânica, animal e vegetal (...)”
(GUSMÃO, 1981, p.65). Para a segundo: “Tem se falado insistentemente de
mineralização do mundo na última fase da poesia de Carlos de Oliveira (...)” (Idem,
p.72).
Retomando: temos três pontos: leitura, memória e paisagem. Três pontos que em
verdade constituem um todo inseparável. O vocabulário deste poema não é tão diferente
do vocabulário ou de certas “zonas lexicais dominantes” (idem, p.23) presente em toda
obra de Carlos de Oliveira, incluindo os poemas anteriores a Cantata (1960), incluindo
os romances. Não é diferente, pois é através dele que se constitui o cenário, paisagem
que, como se pode dizer, persiste e dá unidade a toda sua obra. Já a memória é um
tópico também muito importante na leitura da obra de Carlos de Oliveira. Podemos
dizer que ela é um dos principais recursos. De novo, Nelson Matos: “É a tentação do
regresso, a procura do ponto inicial da terra lamacenta, o obscuro ponto da memória
onde as coisas permanecem as mesmas e idênticas” (MATOS, 1971, p.131). Sabemos no
entanto que esse ponto, como uma Idade de Ouro, não existe e esse é um projeto que já
se inicia fadado ao incompleto. O poema (ou a paisagem no poema) se organiza a partir
dessa coleta ou colheita feita na memória. É claro que o resultado disso não poderia ser
diferente: o que temos é sempre algo parcial e insuficiente. Assim, um poema feito
77
disso tende à dispersão. Embora, segundo uma disciplina e metodologia rigorosas, o
projeto acaba por não se realizar. A poesia de Carlos de Oliveira configura-se a partir
desse erro. Sobre isso escreve Rosa Maria Martelo: “De certa forma o rigor estrutural,
arquitectônico, de livros como Micropaisagem e Entre duas memórias (...) surge, então,
como estratégia de coesão perante a descontinuidade que, apesar disso, permanece
visível (...).” (MARTELO , 1998, p.300). É nessa falha – Rosa Maria Martelo a chama em
certa altura de “princípio de precariedade” (Idem, 302) – que se dá a poesia de Carlos de
Oliveira.
Esse errar se dá – além dessa tentativa conscientemente falha de retorno –
devido a uma inevitável projeção das palavras por meio do também inevitável ato de
leitura. Ato de leitura que faz com que o leitor ocupe o poema, ocupe o espaço
desenhado no poema. Tal projeção, além de acontecer por causa de seu potencial
metafórico, é tematizada no próprio poema, melhor, é encenada durante o avançar do
texto 1 . Mostrando assim o que havíamos visto já em O aprendiz de feiticeiro: a
importância do ato de leitura nesta obra. O leitor se apropria e trabalha as imagens.
Quais imagens? Entre outras, as próprias imagens do ato de leitura. Funciona como uma
espécie de narrativa em abismo, com um vertiginoso espelho virado para outro.
Pronto. Os três pontos: memória, leitura e paisagem. Os dois primeiros
funcionarão como vetores para chegarmos ao terceiro. A partir da leitura do poema
“Estalactite”, veremos como se dá o processo de referencialização na poesia de Carlos
de Oliveira. Tal processo tem como motor o ponto de tensão entre esses dois vetores
que se opõem: memória versus projeção (a leitura, como a vimos em O aprendiz). É na
tensão entre esse dois vetores – um apontando para trás e o outro para frente – que se
constrói a referência à paisagem no poema. Referência que privilegiará o aspecto, como
veremos, de brevidade, presente nela.
1
Osvaldo Manuel Silvestre já reconhece essa tendência para a projeção. Para ele, assim como também
para nós, o texto aponta igualmente para uma dispersão análoga àquela causada pelo retorno através da
memória: “(...) a hipótese da ocorrência futura, conquanto racional, é de muito difícil contrastação
empírica, razão pelo qual o poema não pode deixar de colocar a questão da sua virtualidade; e, seja como
for, o poema na sua evidência material – signos sobre uma página em branco – enfatiza o contraste entre a
sua matéria ‘palpável’ e a virtualidade de um micro-movimento a resolver-se num futuro tão pensável
quanto dificilmente habitável” (SILVESTRE , 1996, p.84-85).
78
4.3. PAISAGEM, LINGUAGEM
Percorrendo as imagens e sabendo que a repetição é uma recorrência no texto,
identificamos basicamente dois campos semânticos para caracterizar o ponto, o tópico
paisagem. Como já vimos, há uma insistência de palavras que caracterizam uma
realidade específica, a da paisagem: pedra, cal, colina, calcário, água, gotas, flores,
pétalas. Do outro lado, temos um vocabulário que, podemos dizer, caracterizam uma
realidade textual: poema, linguagem, caligrafia, letras, signo, desenho, verso, página,
papel. Ao perceber como se relacionam esse dois campos semânticos, é importante
vermos como integram no poema menos o mesmo lugar do que o mesmo movimento.
Exemplo da quinta estrofe: “suaves acidentes / da colina / silenciosa para / a cal / florir /
nesta caligrafia / de pétalas / e letras” (p.239)2 . Há a mudança de campo semântico, mas
não há mudança de ação, i.e., temos o fato de floração em caligrafia de pétalas e letras;
não há mudança de ação, porque, embora distintos, esses campos se identificam e
constituem uma unidade. Para cada campo semântico, dois itens. De um lado, “florir” e
“pétalas”. Do outro, “caligrafia” e “letras”. Contudo os itens estão intercalados,
entretecidos, confundidos: florir-caligrafia-pétalas-letras. Podemos, a partir disso,
construir uma analogia menos explícita que subtendida: a floração está para as pétalas
assim como a caligrafia está para as letras. Com esse exemplo, chamamos atenção
apenas para uma possível aproximação entre os campos semânticos da paisagem e da
linguagem: o poema como paisagem; e a paisagem como o poema. E será esse o cenário
e a definição possível de paisagem, o lugar formado pela tensão entre memória e leitura
e, ao mesmo tempo, o lugar onde se dará essa mesma tensão tão importante para o
poema, como podemos ver na décima estrofe: “A lenta / contracção / das pétalas, / a
tensa construção / de algo / mais denso (...)” (p.244)3 .
2
A partir daqui toda citação do Trabalho poético dirá respeito às Obras de Carlos de Oliveira (OLIVEIRA,
p. 1992).
3
O conceito de paisagem que se construirá ao longo de nosso trabalho virá, pois, da relação direta com o
objeto poema e dessa sua tensão interna entre memória e projeção. Para além disso, contamos também
com os textos de Jean-Marc Besse (2006) e Teresa Emídio (2006), ambos das ciências geográficas.
79
4.4. SUJEITO E OBJETO , OBJETO E SUJEITO
Vista essa aproximação, precisamos agora observar como se estabelecem os dois
vetores: para trás, o da memória; e para frente, o da leitura. No entanto, no poema –
inclusive formalmente – esse movimento é simultâneo, da mesma forma como são
homólogos paisagem e texto. O que teremos, pois, é a convivência dos dois tempos,
contraditoriamente – e essa é a maior qualidade do poema –, num só momento. Dois
tempos e apenas um instante. Da mesma forma como aconteceu em O aprendiz de
feiticeiro. O poema é instável, pois ele é todo esse ponto em que convivem memória e
leitura, retorno e, num só tempo, projeção.
I
O céu calcário
duma colina oca,
donde morosas gotas
de água ou pedra
hão-de-cair
daqui a alguns milênios
e acordar
as tênues flores
nas corolas de cal
tão próximas de mim
que julgo ouvir,
filtrado pelo túnel
do tempo, da colina,
o orvalho num jardim.
(p.235)
O céu calcário duma colina oca é o lugar, paisagem e poema, espaço oco, vazio
porque ainda será preenchido, povoado, ou porque não pode nem poderá sê- lo. Quanto
ao “calcário”, que no poema também vai dar em “cal” e “cálcio”, veremos ainda à frente
seus sentidos e importância. É neste lugar que o texto lentamente, através de “morosas
gotas”, se movimentará – não à toa pela queda (por meio do“ hão de cair”) – para frente,
“daqui a alguns milênios”, como numa recepção do texto. E no que se projetam ativam
outro dispositivo, literalmente acordando algo que dorme, objeto contraditório, espécie
de flor inversa ou flor do mal, como veremos depois: “as tênues flores / nas corolas de
cal”. O local em que a princípio estávamos projetou essas flores de cal para frente, ou
seja, nós, o sujeito 4 , estamos nesse lugar anterior – antes do objeto – até que ouvimos:
“as tênues flores / nas corolas de cal / tão próximas de mim / que julgo ouvir, /filtrado
pelo túnel do tempo”. Agora o ponto de enunciação foi deslocado para depois das flores,
que antes, podemos dizer, estavam no futuro, “hão-de-cair”, mas agora estão no
4
Como veremos, o poema permite que ocupemos o lugar da primeira pessoa do discurso.
80
passado, nós estamos – pois somos e não somos o eu do texto – num lugar posterior ao
objeto. Tanto, que os versos a seguir soam irremediavelmente direcionados para trás.
Ouçamos: “que julgo ouvir, / filtrado pelo túnel / do tempo, da colina, / o orvalho num
jardim.” Aliás, um tempo que, deslocando-se, desloca também outro eixo, o do espaço,
mostrando uma unidade na mudança: entre “O céu calcário” e “o orvalho num jardim”
erram “as tênues flores”. O que está em jogo, podemos dizer, entre outras coisas, é o
movimento do texto que permite à leitura que se aposse da primeira pessoa do poema,
cada vez que acontece. Assim, em “Estalactite” o ato de produção muitas vezes acaba
por se confundir com o de recepção. Ou melhor, o próprio ato de produção tenta
encenar ou prever - até calcular, como veremos – sua recepção, a atualização do textopotência. Com isso o sujeito não se fixa num só ponto, como por exemplo o do autor.
Aliás, este aqui é mais um leitor que dá direções ao texto, que entra por seus
significados e erra, como “Na floresta” de O aprendiz de feiticeiro, através de suas
imagens, enfim que colabora na construção/povoamento da grande paisagem ou
micropaisagem que é o poema 5 .
Não podemos seguir todas as estrofes do poema. Podemos no entanto localizar
algumas imagens como, na segunda estrofe, a da “lenta contracção / das pétalas” (p.236)
que chama atenção, juntamente com a morosidade das gotas mencionadas antes, para
agora o “gota a gota”, lento que se repetirá ao longo do poemas com algumas variantes,
exemplo “de verso em verso” (8° estrofe), “de flor para flor” (9° estrofe), “poro a poro
pela a mão que escreve” (23° estrofe). Esse tempo lento pode ser símbolo da precisão e
do cálculo, enfim consciência, com que o texto se estrutura, i.e., num movimento
sempre crítico de colocar a si mesmo como objeto. Outra possibilidade para essa
lentidão de seguir ponto a ponto – “gota a gota” – é mostrar a própria encenação de
dispersão do poema entre seus leitores. Como se aos poucos, ele fosse contaminando
quem o lesse, um a um, espalhando-se. E quem o lesse o contaminasse também. A
leitura lentamente povoando a paisagem do poema por meio dos sentidos que constrói a
partir de seus índices que, como se vê, entram “poro a poro / pela mão / que escreve”
(p.257). Rosa Maria Martelo, embora não siga exatamente essa direção, diz: “De certa
forma o corpo está disperso na paisagem textual (...)”. E depois: “esta disseminação
reintroduz o auto-retrato, corpóreo, terrestre e perecível na paisagem precária”
5
“Cantar / é empurrar o tempo ao encontro das cidades futuras / fique embora mais breve a nossa vida.”
Terra da Harmonia, p.130).
81
(MARTELO, 1998, p.301). Onde se escreve auto-retrato, aqui lemos sujeito do texto, que
na leitura somos também nós.
Porém, da mesma forma que isso integra o mecanismo de construção do poema,
isso também o impede de formá- lo como objeto final e concluído, pois entra em
contradição direta com aquela força de origem, bem característica em Carlos de
Oliveira, que está baseada, sobretudo, na memória. O que temos em mãos, portanto,
passa a ser – não a construção ideal, sonhada, “arquétipo / do vôo” (p.255) – mas um
objeto sempre inconcluso – e por isso estético – cujo princípio, como diz Rosa Maria
Martelo, criticamente é o da precariedade.
Mas voltemos à segunda estrofe e prestemos atenção: “Imaginar / o som do
orvalho, / a lenta contracção / das pétalas, / o peso da água / a tal distância” (p.236). O
verbo “imaginar” pode funcionar e funciona como projeção: “o som do orvalho, / a
lenta contracção / das pétalas, / o peso da água” depois do sujeito. Agora chega-nos uma
imagem muito curiosa, fundamental para caracterizar o tempo e, consecutivamente, a
referência em “Estalactite”: “registar / nessa memória / ao contrário / o ritmo da pedra /
dissolvida / quando poisa / gota a gota / nas flores antecipadas” (Idem). Vejam que do
verbo “imaginar”, que projetava, fomos para o verbo “registar”. Um vetor apontando
para frente, outro apontando para trás. No entanto, o processo de captação dessa
imagem se dá através de uma “memória / ao contrário”, outra tensão entre vetores. Será
ela que talvez torne simultâneos “imaginar” e “registar”. Porque, numa espécie de
síntese possível somente no espaço textual, ela é tanto o para frente (projeção; sujeito
antes do objeto; futuro; leitura) como o para trás (retorno; sujeito depois do objeto;
passado; memória). Uma memória feita mais daquilo que poderia ser (verossimilhança)
do que daquilo que é. Uma memória-futuro que, ao invés de lembrar, prevê, ou melhor,
uma memória que lembra o que ainda acontecerá 6 . Isso se torna possível devido ao
posicio namento no mínimo ambivalente do sujeito. Como vimos na primeira estrofe, ao
mesmo tempo em que o ponto de enunciação está antes do acontecimento (projeção),
ele está depois (retorno). Essa operação é simultânea porque privilegia um olhar
6
Giorgio Agambem, falando sobre a “que coisa é fiel o poeta”, vincula a possibilidade de uma memória
ao contrário, invertida, não a uma memória-futuro, como fizemos, mas – e isso faz todo sentido também –
ao esquecimento: “A fidelidade àquilo que não pode ser tematizado, mas também não simplesmente
silenciado, é uma traição de natureza sagrada na qual a memória, girando subitamente como redemoinho,
descore a frente de neve do esquecimento. Este gesto, este abraço invertido da memória e do
esquecimento, que conserva intacta, no seu centro, a identidade do que é imemorial e inesquecível, é a
vocação” (A GAMBEN, 1999, p.37-38). Seria interessante que ficássemos com ambos os posicionamentos,
uma memória ao contrário porque nega a si mesma tentando avançar, uma memória ao contrário porque
não consegue mais lembrar.
82
múltiplo para o objeto, por meio não só de ângulos, mas pelo menos de dois tempos
diferentes. Tal procedimento se aproxima em muito de uma perspectiva cubista. Aliás,
no livro posterior de Carlos de Oliveira, não à toa com o título Entre duas memórias,
livro publicado no mesmo ano de O aprendiz, temos o poema “Descrição da Guerra em
Guernica”, espécie de intervenção no quadro de Picasso, que também privilegia a
convivência de perspectivas: “Entra pela janela / o anjo camponês; / com a terceira luz
na mão; / minucioso, habituado / aos interiores de cereal” (p.330), “As outras duas luzes
/ são lisas, ofuscantes; / lembram a cal, o zinco branco / nas pedreiras” (p.331). É válido
lembrar também de um poema como “Estrelas” de Sobre o lado esquerdo (1968), que
fala por si mesmo através da figura do “inventor de jogos”, quando em contraposição ao
“astrólogo”, que prima pela imobilização, pede ao sujeito do poema que: “Incline a
cabeça para o lado, altere o ângulo de visão”. O resultado é a mudança e movimentação
de todo o cenário antes imóvel: “Sigo o conselho: e as estrelas rebentam num grande
fulgor, os revérberos embatem nos caixilhos que lembram a moldura de um desenho
infantil” (p.205).
Essa multiplicidade, fruto de uma tensão de forças que são tempos, dissolve “o
ritmo da pedra”, matéria da paisagem constituída também em tensão tanto por um
vocábulo, “ritmo”, que remete à linguagem; quanto por outro, “pedra”, que remete à
matéria natural de configuração do lugar. Dissolver “o ritmo da pedra”, ”gota a gota”,
lentidão necessária que, como vimos, dá ao texto a dispersão, disseminando a leitura, de
leitor em leitor, para que a paisagem – precária, porque sujeita a esse movimento – seja
povoada e finalmente tenhamos o objeto final, inconcluso, na figura dessas “flores
antecipadas”. Se antes aquelas flores de cal apenas eram de cal, porque foram vistas por
um ponto de enunciação posterior, por isso memória (e a memória consome); estas são
antecipadas porque foram vistas por um ponto de enunciação anterior, assim projeção.
Em verdade, “flores antecipadas” e flores de cal constituem o mesmo objeto visto em
tempos diferentes – embora simultâneos no poema – pelo sujeito textual, foco e ponto
de enunciação 7 . Silvina Rodrigues Lopes, ao ler “Estalactite”, vê também uma
simultaneidade e relativização de tempos, quando fala “na seqüência de um processo
moroso em que o princípio e o fim se sonham ou antecipam reciprocamente” (LOPES ,
1995, p.19).
7
Manuel Gusmão de certa forma caminha em direção parecida quando anota o quiasmo formado no
poema “Noite inquieta”: “Sou um pouco de dia anoitecendo / mas sou convosco a treva florescendo”
(GUSMÃO, 1981, p.31)
83
Como vimos, a ação está entre “registar” e “imaginar”. Portanto estamos diante
de uma referencialização do texto que não precisa ser representação (registar), nem
apresentação (imaginar). Seria algo de intermédio mais próximo aqui de um conceito de
mímesis aristotélica que caracteriza o objeto estético como uma atualização do real
potencial. Como vimos, objeto que, na recepção, passa a ser potência nas mãos do
espectador- leitor que o atualiza segundo suas possibilidades. Referimo-nos a um
processo de atualização que não cessa de acontecer, já que a cada leitura se renova:
contínuo processo que, no entanto, e por isso mesmo, não finaliza o objeto; mas
confirma, para além de uma fragilidade, sua instabilidade. Não se trata, porém, somente
de uma paisagem precária. Em Carlos de Oliveira, trata-se, sim, de um recorte preciso
de uma paisagem precária, pois toda operação de sintaxe e imagens vista até agora no
poema – trabalho duro que só um miglior fabbro poderia levar ao cabo – funciona
menos como mecanismo formal e rigoroso de nomeação do que como modulação
produtora de ambivalências insistentes. Gesto, entre registrar e imaginar que, somente
por ser preciso e exato, torna o texto um objeto sempre em construção, na medida em
que torna relativo o tempo e o lugar do sujeito no poema, o ponto de enunciação. Essa
indefinição se torna possível apenas a partir da clareza e rigor de sua enunciação 8 : “o
ritmo da pedra / dissolvida / quando poisa / gota a gota (...)”.
A seqüência do texto confirma isso quando – através da conjunção condicional,
já na terceira estrofe – parece jogar, agora de forma quase prosaica (embora o corte do
verso continue sendo preciso como era nas estrofes anteriores), com o acento metapoético do texto. Justificamos graficamente seus versos para evidenciar sua sintaxe
hipotática: “Se o poema / analisasse / a própria oscilação / interior, / cristalizasse / um
outro / movimento / mais subtil, / o da estrutura / em que se geram / milênios depois /
estas imaginárias / flores calcárias, / acharia / o seu micro-rigor” (p.237). Nas duas
estrofes anteriores, como vimos, o que o texto fez, entre outras coisas, foi deslocar o
ponto de vista em relação a um objeto em questão e que agora nomeamos: flor. Esta
terceira estrofe começa por levantar justamente essa hipótese; como se ela, no entanto,
não tivesse sido realizada. O deslocamento do ponto de vista pode encontrar tradução
nessa “oscilação interior”, movimento cristalizado, i.e., imobilizado na própria forma de
poema. O texto como apreensão do deslocamento sem, no entanto, sua interrupção;
mais uma vez a justaposição de contrários: mobilidade, imobilidade. Desta forma, o
8
Rigor advindo da precariedade, indefinição advinda da precisão, convívio de contrários que poderia
encontrar analogia num título de um autor tão caro a Carlos de Oliveira, Drummond: “Claro Enigma”.
84
poema trata tal gesto como hipótese passada e não como acontecimento passado. Se
pensarmos na simultaneidade de tempos, conforme aprendemos em O aprendiz e vimos
nas estrofes anteriores, essa hipótese pode conviver com a realização dela mesma no
espaço do poema. Embora a oscilação já tenha acontecido, a suposição da oscilação que
cronologicamente estaria antes do acontecimento, em “Estalactite”, aparece depois. Em
verdade, a ordem se torna relativa. Portanto, como antes, a diacronia deixa de ser
necessária fazendo com que o poema seja a concomitância de tempos distintos. Aliás –
e isso é importante – o processo de reescrita ao qual Carlos de Oliveira submeteu seus
textos – se visto aqui, junto disso – pode representar também essa movimentação do
tempo, pois seu Trabalho poético apresenta-se como produto de uma grande sincronia,
pois os livros mais antigos, aqui, são contemporâneos dos mais novos, da mesma forma
como aconteceu com os texto de O aprendiz de feiticeiro. É como se o autor
transportasse para o próprio estatuto material de sua obra a condição mesma que encena.
4.5. THE DANCER FROM THE DANCE
Esse “movimento / mais subtil”, a um tempo cristalizado e em deslocamento,
privilegia, mais que o objeto, sua disposição e relação com o espaço, i.e., “o da
estrutura”. Num gesto esclarecedoramente crítico, o texto, através de abstração, separa
não o objeto de seu movimento, mas sim o movimento do seu objeto. Possível somente
no espaço textual, tal operação tanto lembra o modelo científico da Física em que a
partir da verificação de um corpo em queda, a maçã, por exemplo, podemos examinar
qualquer outro corpo que possa realizar o mesmo movimento; como lembra, em
específico, um verso de W.B.Yeats em que propõe uma separação também radical. O
último de “Among school children”, do livro The tower (1928): “How can we know the
dancer from the dance?”. Conhecer quem dança a partir somente da dança, i.e., retirar a
dança da dançarina e ficar somente com o movimento puro e simples é análogo aqui a
destacar mais a oscilação do que aquilo que oscila 9 . Esta estrutura é aprendida para que
9
Na tradução de Paulo Vizioli: “Como apartar da dança a dançarina?” (YEATS, 1992, p.117)
85
o deslocamento se repita e se multiplique com qualquer que seja o sujeito a se deslocar.
Ponto de enunciação, sujeito do texto cujo movimento é estar, como vimos, antes e
depois do objeto, sujeito este que se manifesta durante o ato de leitura, ou melhor,
sujeito, como veremos, que é o próprio ato de leitura, o leitor.
Mas voltemos. É essa estrutura, movimento isolado de corpo, que possibilita no
poema a geração – como que por cultivo ou, como queremos, por povoamento –
“milênios depois / estas imaginárias / flores calcárias”. Esta estrofe trabalha como
princípio motor do poema. O deslocamento começa a se tornar mais intenso,
espalhando-se pelas instâncias do poema. Por isso seu tom seja, embora condicional,
assertivo. O “outro movimento”, aquele “mais subtil / o da estrutura”, é um movimento
que pode se dar apenas no texto. Ação produzida no espaço textual. Ação que privilegia
mais o deslocamento do que aquilo que se desloca. Não porque não importe o sujeito,
mas sim porque sua função, seu lugar, pode e deve ser desempenhada por diversos atos
de enunciação na medida em que, em cada leitura, o movimento insiste com sujeitos e,
portanto, objetos diferentes. É como se “Estalactite” fosse a metodologia a qual devesse
estar submetido o sujeito, ou melhor, os sujeitos. Método que, no entanto, não nos leva
de encontro a um objeto, mas sim, ao menos, a uma ambivalência, “flores calcárias”,
oposição que tende tanto a tornar relativos os pólos como a, também e por conta disso,
multiplicá- los. O resultado de toda essa operação é chegar a uma espécie de mínimo
denominador comum, “o seu micro-rigor”10 , estrutura que possibilita a partir de focos
distintos, o ato – ao mesmo tempo com diversos pontos de enunciação, isolados e em
conjunto – de construção da referência à paisagem no texto. Trabalho que tem como
protagonista a relação: espaço e objeto versus sujeito e leitura. Cada leitura, através da
mesma ação, uma nova direção. E cada leitor int egrando, ocupando, também em tempos
distintos, o cenário do poema. Ocupando, através de sua pequena ação: a parte –
micropaisagem – que lhe cabe. Ajudando a povoar assim a grande e imensa, porque
incessante, paisagem que é a do poema, a da linguagem. Paisagem desmedida que é o
convívio dessa reunião de inúmeras micropaisagens desenhadas a cada leitura 11 .
10
Silvina Rodrigues Lopes parece notar essa potencialidade que o poema tem para se expandir cada vez
mais: “a água dá origem a formas cuja diversidade a lei se desconhece” (LOPES, 1995, p. 19). A essa lei,
micro -rigor, podemos talvez ter algum acesso se percebermos e atentarmos para o posicionamento plural
do sujeito no poema.
11
Eduardo Prado Coelho em “Carlos de Oliveira: a atracção vocabular” a propósito de “O inquilino” de O
aprendiz de feiticeiro: “E, quando o autor nos fala das suas peças não-escritas, que apenas ‘lê’ aos
amigos, comove-se com essa forma discreta e subtil de deixar os textos espraiarem-se anònimamente na
imaginação dos que os escutam e os transmitem, retransmitem e inventam. Por outro lado, é este aspecto
86
Assim, de certa maneira, podemos entender o que vemos no início de um poema
como “Ave solar” (que no deslocamento gerado pela edição do Trabalho poético
ganhou o estatuto de livro): “Ave solar destruída num prisma / que dispersou o teu
contorno todo, / é um retrato múltiplo que cisma / na minha vida facetada em lodo”
(p.169). Somente através dessa destruição menos negativa que positiva que o poema,
lugar de paisagem, pode ser sobrevoado e povoado por essa múltipla imagem de
pássaro/sujeito (“minha vida”): “Nas imagens dispersas o futuro / é o rumor dos sonhos
em que poisas” (p.169). É nesse lugar de irradiante dispersão que se projetam – porque
“prisma” – direções e caminhos de ocupação e onde já não é possível a imagem de um
sujeito uno, o autor para alguns, pois “cada poema / no seu perfil / incerto / e
caligráfico, já sonha outra forma” (p.223). Num sentido parecido vai o texto de Silvina
Lopes Rodrigues, falando de Finisterra: “A experiência não é, por conseguinte, a de um
autor enquanto sujeito imperturbável que dirige a obra, mas a experiência que o divide e
multiplica, fazendo-o nascer de novo como seu filho” (LOPES , 1995, p.22-23, grifos
nossos).
4.6. CAMÕES E CABRAL
Feita a pausa que é a terceira estrofe, o texto abandona a condição e retorna à
ação do poema: trocar as perspectivas do sujeito em relação ao objeto. Apenas agora,
porém, percebemos que essa ação através do verbo “Localizar” no primeiro verso, como
também acontece na segunda estrofe com “registar” e “imaginar”, utiliza forma
infinitiva do verbo, que a princípio é aquela que, dentre todas, mais separa a ação do
tempo e da pessoa que a realiza. Ou seja, o infinitivo é a forma infinita do verbo, aquela
em que não sabemos o ponto de início nem de fim da ação. Assim, essa verificação do
infinitivo pode confirmar que não há um termo para – a princípio irreconciliáveis já que
que está na base insistente em Carlos de Oliveira de que uma obra existe no prolongamento pessoal que
seus leitores lhe dão (...)” (COELHO, 1972, p.143-144).
87
simultâneas – ações de registrar e imaginar. O infinitivo assim permite também que nos
aproximemos da pessoa do discurso. Na quarta estrofe, a essa operação dá-se um novo
nome e a mesma conjugação: localizar. Trata-se de localizar, determinar o local de algo
em específico: o objeto do poema. Encontrá- lo e ao mesmo tempo fixá-lo. Daí usarmos
tanto localizar com o sentido de achar algo perdido, como com o sentido de fixar algo
em movimento. “Estalactite” irá jogar com esses dois sentidos do verbo na medida em
que o localiza “na frágil espessura / do tempo” (p.238). Esse movimento nada mais faz
do que determinar o poema no âmbito, que já havíamos visto, do tempo, aliás, a
fragilidade aqui é inteiramente significativa. Trata-se de um tempo frágil, porque na
verdade o que o poema busca é a ocorrência de um outro tempo 12 , um tempo
espacializado, e porque é espacializado que pode ser contraditório, plural, sincrônico. É
só lembramos do mesmo objeto flagrado e construído por perspectivas distintas num só
instante, como já vimos. Mais do que o tempo, fala-se numa espessura do tempo,
densidade e volume: espécie de espaço dentro do tempo a localizar (encontrar e fixar).
Espessura, palavra muito recorrente em poesia. De Camões a João Cabral, pelo
menos. Se lembrarmos de nossa proposta de fazer convergirem dois vetores, uma para
trás, memória, e outro para frente, leitura; nada mais apropriado que encená- los agora
através da referência a outros textos. Até porque, quando mencionamos memória,
falamos não só na memória individual, mas principalmente em uma memória cultural. E
podemos ve r isso já nos primeiros livros de Carlos de Oliveira. Se em Turismo (1942,
refeito em 1976) notamos um pendor para essa memória que pode privilegiar o
individual (e é só atentarmos para a divisão do livro: “Infância”, “Amazônia” e
“Gândara”), em Mãe pobre (1945, 1950, 1976) podemos perceber uma grande
recorrência a uma memória coletiva- literária; sobre isso Manuel Gusmão escreve:
“Estes poemas representam na maior parte dos casos (...) uma re- utilização, uma reinvenção de temas, fórmulas e processos de uma tradição lírica portuguesa que vai do
cancioneiro popular à tradição erudita clássica e romântica” (GUSMÃO, 1981, p.28).
Essa memória literária ativa-se através da leitura, projeção de todos os textos.
De Camões, lemos a décima sexta estrofe de “Sôbolos rios”, que fixada, assim,
depois de “Estalactite” se torna uma espécie de resposta negativa ao “Localizar” de
Carlos de Oliveira, pois a “Frauta minha”, embora possa 13 , não consegue dar
12
“(...) um outro movimento / mais subtil / o da estrutura” (237).
“Frauta minha, que tangendo, / os montes fazíeis vir / Pera onde estáveis correndo, / e as águas que iam
descendo, / tornavam logo a subir, (...)” (CAMÕES, 1980, p.104).
13
88
mobilidade e simultaneidade ao tempo: “Não movereis a espessura, / Nem podereis já
trazer / Atrás vós a fonte pura, / Pois não pudeste mover / desconcertos da ventura”
(CAMÕES , 1980, p.105). Por seu turno, “Estalactite” – com sua capacidade de
deslocamento do ponto de enunciação tal como numa operação cubista – passa a se
comportar como interessante provocação e adendo à camoniana apreensão da
irreversibilidade do tempo, pois nele é possível tanto a projeção como o retorno. Do
segundo, João Cabral de Melo Neto, anotamos a espessura em seu longo poema O cão
sem plumas; espessura que privilegia não somente o lugar-comum rio-tempo como em
Camões, mas uma espécie de rio-cão-rio-homem (que também inclui o tempo): “Entre a
paisagem / o rio fluía / como uma espada de líquido espesso. / Como um cão / humilde e
espesso” (NETO, 2003. p.108). Tal como em Carlos de Oliveira, Cabral é meticuloso e
lento: “Como gota a gota / até o açúcar, / gota a gota / até as coroas de terra” (idem,
p.114). A espessura em O cão sem plumas, livro de 1950, pode confirmar em
“Estalactite” certa dimensão humana, sempre presente em Carlos de Oliveira: “O que
vive choca, / tem dentes, arestas, é espesso. / O que vive é espesso / como um cão, um
homem, / como aquele rio .” (idem, p.116). Aliás, esse é apenas um dos pontos que
Cabral e Carlos de Oliveira têm em comum. Ambos, sabemos, possuem uma aguda
preocupação com o rigor da linguagem e a possibilidade de intervenção da poesia em
seu meio social, operação que privilegiará sempre o poético. O interessante agora é
notar que a espessura em “Estalactite” de alguma forma também é a espessura de
“Sôbolos rios” e de O cão sem plumas. De Camões fica, mesmo que negativa no poema,
a possibilidade de relativização do tempo, na imagem de um rio ao contrário, possível
retorno metafórico a Sião. De Cabral importa menos a relação sujeito-tempo que a
relação sujeito-objeto ou sujeito-paisagem. Entre outras coisas, O cão sem plumas
encena a possibilidade de preenchimento, através da linguagem, de uma paisagem dura,
real, espessa por um sujeito, não à toa rio, duro como cão, espesso como a realidade.
Em Carlos de Oliveira, não apenas em “Estalactite”, esse movimento aqui já o
chamamos de povoamento da paisagem. Ação realizada pelo sujeito do poema que
também é o leitor.
Voltemos. “Localizar / na frágil espessura / do tempo”. Encontrar e fixar nesse
lugar privilegiado que é, aqui depois de Camões e Cabral, essa “frágil espessura do
tempo”, lugar onde o não poder mover-se camoniano (que vale pela possibilidade de
relativização do tempo) move-se como rio, “aquele rio [que] é espesso como o real mais
espesso” (N ETO, 2003, p.115). Agora se pode compreender melhor a seqüência dos
89
versos: “(...) frágil espessura / do tempo que a linguagem / pôs / em vibração” (p.238).
A linguagem põe – verbo destacado como um ponto na página – em vibração o tempo,
pois é ela a própria movimentação; ela é o sujeito e é o sentido histórico. Sujeito, pois é
o ponto de enunciação em deslocamento desde as estrofes acima. Sentido histórico,
porque remete necessariamente a toda poesia anterior 14 , ilustrado aqui através da
imagem da espessura, anotada em Camões e em João Cabral.
Não pensemos no entanto que a ativação de uma memória cultural ou de um
sentido histórico, para falarmos com Eliot, privilegia um vetor memória que aponta para
trás e portanto sem tensão. Mesmo sem convocarmos o vetor projeção, para de algum
jeito equilibrarmos as forças, essa consciência da tradição em Carlos de Oliveira é
crítica e, por isso, não imobiliza o passado, mas fornece a ele mobilidade e tensões
novas. Basta lembrarmos, só para ficarmos com uns, da presença de Camilo Pessanha,
através de colagens; de Shakeaspeare, por meio de traduções/transcriações de alguns
sonetos; e de Camões-Aragon, através do deslocamento de um soneto por idiomas.
Todos os autores, reunidos num livro de curioso título “Terra da harmonia” (1950),
ganham, quando convocados pela poesia de Carlos de Oliveira, movimentação e se
harmonizam talvez pelos deslocamentos de sentido realizado em todos. No caso de
Camões, o soneto original e o imitado são completamente diferentes. Anotemos o
primeiro terceto em que ao mesmo se tematiza e, num só tempo, se encena tais
deslocamentos; em Camões lemos: “Aquilo a que já quis é tão mudado, / Que quase é
outra cousa; porque os dias / Têm o primeiro gosta já danado” (p.145); agora a
tradução/imitação/deslocamento, a partir de Aragon: “Aquilo a que queria mudou tanto /
Que é outro amor; e meu prazer dum dia / Maldiz o de hoje, ao novo desencanto”
(p.147). Tanta mudança num livro chamado “Terra da Harmonia”.
14
“Nenhum poeta, nenhum artista tem sua significação completa sozinho. Seu significado e a apreciação
que deles fazemos constituem a apreciação de sua relação com os poetas e os artistas mortos. Não se pode
estimá-lo em si; é preciso situá-lo, para contraste e comparação, entre os mortos” (ELIOT , 1989, p.39).
90
4.7. PONTO MORTO
Somente agora o poema avisa o que pode ser localizado. Depois de mencionar
seu onde (“na frágil espessura / do tempo”) e seu como (“que a linguagem / pôs / em
vibração”) pode o verbo “Localizar” ter (encontrar, fixar e espacializar) seu
complemento: “o ponto morto / onde a velocidade / se fratura / e aí / determinar / com
exatidão / o foco do silêncio” (p.238). O que o poema vinha fazendo até agora durante o
deslocamento do sujeito em relação ao objeto era construir um ponto morto, que virá a
ser justamente a proliferação simultânea, como vimos, de pontos de enunciação, i.e., ao
mesmo tempo o sujeito – e só pode haver um no texto – está na linha do tempo antes e
depois do objeto: como temporalidades que, por causa do espaço do texto, convivem
paradoxalmente. Lembramos que “Estalactite”, seja pelo convite de seus verbos no
infinitivo, seja pela ocorrência genérica da primeira pessoa no poema, permite que cada
leitura ocupe o lugar da voz que se enuncia. Desta forma, encenando já o ato de
recepção na própria produção do texto. Assim, o ponto morto de “Estalactite” será a
ocorrência sincrônica de ao menos duas enunciações distintas, futuro – leitura – e
passado – memória – criando o objeto do presente, retorno e projeção, aquilo que, ao
mesmo tempo, se está por localizar e que já se localizou: a paisagem. E essa é uma
operação incessante, porque não se fixa. Por isso, “a velocidade” do movimento –
relação entre espaço percorrido e tempo gasto – “se fractura”, deixa de fazer sentido,
pelo menos o sentido anterior com que circulava. A “exatidão” proposta pelo texto
precisará calcular tal velocidade fraturada, a partir dessa simultaneidade e, portanto,
instabilidade: super-presença de tempos ou, o oposto, como que uma tentativa da
ausência dele. O verso “e aí” é tão pontual, porque curtíssimo, quanto o verso
simetricamente acima “pôs” (10º e 5º versos respectivamente), ambos nessa estrofe
parecem simbolizar visualmente por mimetismo a coexistência dos pontos na própria
disposição do poema na folha. Depois de encenadas suas forças (retorno e projeção) o
poema lança sua proposta, resultado de sua movimentação, ou melhor, da fixação de um
movimento que, embora apreendido, não cessa de movimentar-se, repetir-se,
transformar-se, espalhar-se. Todo o desenvolvimento do poema a partir de agora é
resultado dessa espécie de proposta: localizado o ponto morto, determinar – somente se
com exatidão e a partir de uma velocidade fraturada – o foco do silêncio.
91
Para compreendermos como pode se dar não a determinação desse foco
irradiador de silêncio, mas essa “velocidade fracturada”, que, como vimos, funciona
como metáfora da sincronia com que se move o texto – relativização de alguma forma
já anunciada em “Sôbolos rios” – recorramos ao Eliot de Four Quartets. No primeiro
deles, “Burnt Norton”, terceira parte, há a menção a um ponto imóvel, “the still point”,
que curiosamente também está relacionado à relativização tanto do tempo, passado e
futuro, como também daquilo que se move e daquilo que se fixa, tal como acontece no
poema de Carlo s de Oliveira:
At the still point of the turning world. Neither flesh nor fleshless;
Neither from nor towards; at the still point, there the dance is,
But neither arrest nor movement. And do not call it fixit,
Where past and future are gathered. Neither movement from nor towards,
Neither ascent nor decline. Except for the point, the still point,
There would be no dance, and there is only dance.
I can only say, there we have been: but I cannot say where.
And I cannot say, how long, for that is to place in time.
(ELIOT, 2004, p.336) 15
Embora donos de projetos distintos, o autor de The Waste Land e o autor de
Micropaisagem e Terra da Harmonia, parecem ter em comum, podemos dizer, uma
preocupação com a escrita de um tempo não-diacrônico. Tal tempo não é artifício para
enfrentamento da morte ou imortalização da figura autoral como se costuma atribuir à
literatura, mas é a afirmação mesma de um outro tempo, o tempo próprio do texto
literário, sincrônico, anônimo e errante. Já sabemos que a sincronia vem da
simultaneidade. Convivência de tempos e textos distintos no espaço textual do poema.
O anonimato vem justamente da possibilidade de multiplicação do ato de enunciação no
poema: “(...) essa forma discreta e subtil de deixar os textos espraiarem-se
anonimamente na imaginação dos que os escutam (...)” (COELHO, 1972, p.143). Em
“Estalactite” há, como vimos, pelo menos dois posicionamentos para o sujeito. Tal
relativização apenas confirma sua possibilidade de transformação, a necessidade que o
texto tem de não se prender somente a memória (retorno?
passado), como a
necessidade que ele tem de se expandir no ato de leitura através da figura do leitor
(projeção ? futuro): a leitura individual como ato e o texto como potência. Em Eliot
15
“No imóvel ponto do mundo que gira. Nem só carne nem sem carne. / Nem de nem para; no imóvel
ponto, onde a dança é que se move, / Mas nem pausa nem movimento. E não se chame a isso fixidez, /
Pois passado e futuro aí se enlaçam. Nem ida nem vinda, / Nem ascensão nem queda. Exceto por este
ponto, o imóvel ponto, / Não haveria dança, e tudo é apenas dança. / Só posso dizer que estivemos ali,
92
não há exatamente essa relação entre esses diferentes atos de enunciação, mas o oposto:
há a encenação da ausência desse ato, a encenação da ausência de movimento. Embora
diferentes entre si, em The Waste Land e em Four Quartets quem fala é a história, a
tradição, ou como diz Eliot, o “sentido histórico”16 . O trecho citado de Eliot é análogo,
em muito, à leitura de “Estalactite”. Diante da falta de movimento que nem por isso é
fixidez de Eliot, temos em Carlos de Oliveira um excesso de movimento que,
contraditoriamente, é a única possibilidade de fixação. Em ambos temos a convivência
de contrários. Em “Burnt Norton”, tais contrários apontam para uma aniquilação ou
esvaziamento de uma super-paisagem – afinal, é toda cultura que está em jogo –, uma
espécie de waste land de movimentos inertes. Já em “Estalactite” o jogo de contrários,
(fixação versus mobilidade, passado versus futuro, memória versus leitura, antes versus
depois), em analogia ao poema de Eliot, dá início a um processo de preenchimento de
algo menor, micropaisagens (afinal, os termos apontam para pequenos índices naturais
como água, gota, pedra, flor etc.), pequenos espaços que povoados de sentidos
confirmam toda a movimentação do texto. Em ambos os poemas há deslocamento e
fixação. Se em Eliot, a imobilização vem de um deslocar-se por uma vastidão vazia,
como que em inércia; em Carlos de Oliveira, a mobilização (essa palavra passa a ser
melhor que movimentação, pois leva em conta também a idéia de reunião e até de
projeto), a mobilização vem de um fixar-se de ao menos dois pontos distintos: a ação
desses pontos (sujeito) opera por deslocamentos, como vimos nas estrofes anteriores do
poema em questão.
mas não sei onde, / Nem quanto perdurou este momento, pois seria situá-lo no tempo.” Tradução de Ivan
Junqueira (ELIOT , 2004, p.337).
16
A memória cultural que a poesia de Carlos de Oliveira também solicita tem algo desse sentido histórico
de que fala Eliot: “(...) o sentido his tórico leva um homem a escrever não somente com a própria geração
a que pertence, mas com um sentimento de que toda a literatura européia desde Homero e, nela incluída,
toda a literatura de seu próprio país têm uma existência simultânea e uma ordem simultânea.” (ELIOT ,
1989, p.39)
93
4.8. ELIOT, YEATS E PESSOA
Lemos isso para entendermos o “ponto morto” de “Estalactite”. E fazemos isso
contrapondo-o ao “ponto imóvel” de “Burnt Norton”17 . Se voltarmos a Eliot, poderemos
ver que sua imobilidade é ilustrada pela imagem da dança que já estava presente como
vimos no poema de Yeats, e através de movimentação parecida (“como apartar a dança
da dançarina?”). Se procurarmos em Carlos de Oliveira imagem com mesma força e
função análoga, teríamos que recorrer à imagem que dá título ao poema: estalactite.
Nela temos também reunidos o movimento (“gotas” que “hão-de-cair”) e a fixação (a
pedra que se forma). Aliás, a pedra (fixação) existe apenas devido à gota d’água
(movimentação). Obedecendo a busca da mesma imagem da dança que foi de Eliot até
Yeats, faremos na busca da imagem da estalactite um percurso que vai de Carlos de
Oliveira até – neste instante – Fernando Pessoa. E assim o ponto morto vai se
transformando, por metonímia, na própria estalactite. Vejamos como o ortônimo encena
o ponto morto de “Estalactite” no quarto soneto de “Passos da cruz”. Apenas os dois
primeiros versos: “Ó tocadora de harpa, se eu beijasse / Teu gesto, sem beijar as tuas
mãos! (...)”. Depois, o terceto final: “Caverna de estalactites o teu gesto... / Não poder
eu prendê-lo, fazer mais / Que vê- lo e que perdê- lo!... E o sonho é o resto...” (P ESSOA ,
1986, p.58-59).
O poema de Pessoa, vemos, utiliza a imagem da estalactite para figurar a
possibilidade de materialização de um possível gesto separado de sua mão. Como já
observamos, ele em sua disposição natural fixa o fluxo de água sem interrompê-lo 18 , o
mesmo do poema de Carlos de Oliveira. Repassemos os itens em resumo agora. Essa
micropaisagem – segundo Pessoa: uma “Caverna de estalactites” 19 – corresponde ao
deslocamento feito entre gesto e mão 20 ou, segundo Yeats e Eliot, o deslocamento entre
dança e dançarina. Interessante que esse gesto-estalactite mova, através da imagem da
estalactite, a água e, através da gesto, a harpa. Água e harpa, que em Camões são rio e
17
Luís Costa Lima: “(...) ponto zero, aquele em que denotação e conotação se confundem (...)” (COSTA
LIMA, 1974, p.22)
18
Soa quase natural também lembrarmos de Pessanha: “Imagens que passais pelas retinas / Dos meus
olhos por que não vos fixais?” (PESSANHA, 1956, p.77). Versos que colaboram com a proposta camoniana
de fixação e inversão do movimento da espessura do rio-tempo em “Sôbolos rios” vista aqui.
19
A caverna de estalactite em Carlos de Oliveira é “O céu calcário / de uma colina oca” (235).
20
Tal cisão entre gesto e mão pode ser estendida a outros deslocamentos na poesia portuguesa, a saber:
“Entre mim mesmo e mim” de Bernadim Ribeiro (TORRES, 1977) e “Comigo me desavim” de Sá de
Miranda (M IRANDA, 1989, p.57) que, como sabemos, vão dar em “Não sou eu nem sou outro” (SÁ
CARNEIRO, 1995, p.82).
94
música: “Frauta minha, que tangendo, / Os montes fazeis vir /Pera onde estáveis
correndo, / E as águas, que iam descendo / Tornavam logo a subir (...)”. Eis toda a
mobilização operada quando “se fratura” “a velocidade” e se localiza “o ponto morto”
“que a linguagem”, a literatura, a leitura “pôs / em vibração”. Resta perguntar agora –
depois de tantos tempos, espaços e vozes mobilizadas – se é aqui, como lemos em
Carlos de Oliveira, o “aí” do poema onde se determina “com exatidão / o foco / do
silêncio”?
4.9. FOCO DO SILÊNCIO
É dentro desse “ponto morto” – espécie de reunião das contrariedades do texto:
memória e futuro, mobilidade e imobilidade – que produzirá a tal irradiação de silêncio
de que o poema fala. Vista assim, é claro que tal produção – até porque se trata de um
desencadeamento – está relacionando com a vivência de tempos distintos dentro do
mesmo tempo-espaço que é “Estalactite”. Ou seja, “o foco de silêncio” é produzido,
sobretudo, através da vivência de um tempo sincrônico experimentado pelo sujeito. E,
como sabemos, tal posicionamento do sujeito, ao menos ambíguo, é produzido por duas
forças, dois vetores. Um em que o sujeito se aproxima pela lembrança. Nesse caso
teríamos a possibilidade da encenação do ato de produção do texto, realizado agora a
partir da tentativa de um retorno, criação de uma memória. E, como vimos, outro em
que o sujeito se aproxima pela projeção. Nesse caso, teríamos a encenação do ato de
recepção do texto, realizado agora a partir da tentativa de prever sua leitura,
possibilidade de calcular os caminhos futuros que trilhará, já que está sempre em
deslocamento, transformação.
Tal tensão é produtora desse silêncio escrito, tanto porque o vetor da memória é
precário, como também porque o vetor da projeção é dispersivo. Ao mesmo tempo em
que se relacionam numa relação de complementaridade, relacionam-se numa relação de
95
contrariedade 21 . É esse afastar e aproximar-se que acaba irradiando sentidos silenciosos,
porque sujeitos à precariedade, à dispersão – quem sabe outra modalidade do
fingimento pessoano ou da errância camoniana, espécie de proprium da literatura
portuguesa. Nisso um retorno a O aprendiz de feiticeiro, em especial a um texto
intitulado, talvez muito ao gosto de Umberto Eco 22 , “Na floresta” será bem conveniente:
“Escreve-se sempre num ponto morto, entre duas velocidades, a que se extinguiu e a
que vai surgir. No ponto morto falta a velocidade real do motor, há apenas movimento
fingido que acabaria em breve se a nova velocidade faltasse” (OLIVEIRA , 2004, p.135).
Nesse sentido, a “velocidade fracturada” de há pouco é a tensão entre o que caminha
para a extinção – mas não a alcança – e aquilo pelo qual se espera – e que nos chega
apenas como expectativa. Ambos dotados da precariedade necessária, espécie de
consciência ficcional, “movimento fingido”, que mantém o poema, a literatura, no
registro da brevidade ou da permanência breve, povoamento por fim condenado ao
nomadismo. A esse trecho de “Na floresta” acrescentamos outro de O aprendiz de
feiticeiro, já conhecido por nós. Do texto homônimo do livro de poemas de 1968,
“Micropaisagem”, o trecho, entre outros, motivador de nosso trabalho: “O livro
[Micropaisagem], qualquer livro é uma resposta feita à sensibilidade, à inteligência do
leitor: são elas que em última análise o escrevem” (Idem, p.184). No que diz respeito a
isso, O aprendiz de feiticeiro, como já vimos, no capítulo anterior, é um manancial de
referências à leitura.
Assim, pode-se notar que o mecanismo de produção textual de “Estalactite” já
pressupõe em sua feitura o ato de recepção. Porém, no mesmo texto, seguindo pelo
mesmo trecho de O aprendiz a projeção via leitura, filia-se a irradiação de silêncio
prevista pelo e no poema: “Quanto mais depurada for a proposta (dentro de certo
limites, claro está), maior a sua margem de silêncio, maior a sua inesperada carga
explosiva. A proposta, a pequena bomba relógio, é entregue ao leitor. Se a explosão se
der ouve-se melhor no silêncio.” (idem, p.184). Assim, o silêncio é produzido para e na
leitura. E como quase tudo aqui opera por oposição é natural que o silêncio produza
uma explosão ou a explosão produza um silêncio.
21
“Mas o essencial na obra de Carlos de Oliveira consiste na percepção de que em todos estes conjuntos
existe uma lógica de atracção-repulsa que os domina. Em relação a eles, a escrita é uma tentativa para
encontrar uma homologia, um modelo” (COELHO, 1972, p.141).
22
“Mesmo quando não existem num bosque trilhas bem definidas, todos podemos traçar sua própria
trilha, decidindo ir para a esquerda ou para a direita de determinada árvore e, a cada árvore que encontrar,
optando por esta ou aquela direção. Num texto narrativo, o leitor é obrigado a optar o tempo todo” (ECO,
1994, p.12)
96
O certo é que agora o poema a partir desse foco, dessa proposta, que já
conhecíamos através das tensões vistas, deixa contaminar a sua paisagem por esse
rumor, por esse silêncio, porque antecede e sucede uma explosão, perturbador. Tanto
que agora a ação seguinte, uma projeção, se dá já nesta paisagem: “Espaço / para caírem
/ gotas de água / ou pedra / levadas / pelo seu peso” (p.239). Tal movimentação irá
produzir a apreensão daquele mesmo objeto, múltiplo das estrofes anteriores agora já
sob um fundo silencioso. E, embora tente, não consegue diminuir o grau de
imprevisibilidade de seu deslocamento, i.e., não consegue evitar o status acidental de
seu percurso, aquilo que não pode, embora se esforce, prever, calcular. Medir o
deslocamento que a recepção do próprio texto opera: uma projeção dispersiva. Vejamos
a estrofe completa: “Espaço / para caírem / gotas de água / ou pedra / levadas / pelo seu
peso, / suaves acidentes / da colina / silenciosa para / a cal / florir / nesta caligrafia / de
pétalas / e letras.” É por isso que a cal pode florir assim como a flor pode se tornar
calcária, como já vimos. Estamos diante do mesmo objeto, ou visto no passado,
recordado, ou visto no futuro, projetado. Sempre a partir daquela identidade que já
vimos entre texto e paisagem, erigir – porque fruto de trabalho, aqui, manual, portanto
humano – por esta “caligrafia / de pétalas / e letras.”
Roland Barthes reconhece no silêncio uma das possíveis forma de desejo pelo
Neutro 23 . Ele nos fala de duas hipóteses de manifestações: sileo e taceo. “Em suma,
silere remeteria de preferência a uma espécie de virgindade intemporal das coisas, antes
de nascerem ou depois de desaparecerem (...)” (BARTHES , 2004, p.49). Do outro lado,
temos o tacere: “silêncio da fala” (Idem, p.49), “silencio verbal” (idem, p.50) que está
ligado ao calar-se porque não se pode falar ou porque não se quer falar. Se falássemos a
partir de Barthes, o silêncio visto no poema “Estalactite” – manifestação natural, entre
outras, das “gotas de água ou de pedra”, movimento e ao mesmo tempo fixação – estaria
mais próxima de sileo, “silêncio de toda a natureza, dispersão do fato- homem na
natureza (...)” (Idem, p.65). Até porque no poema a manifestação que se quer como
natural é evidente. Mas todo trabalho como sabemos é cultural e se o incidirmos sobre a
natureza torná- la-emos assim paisagem, o que implicaria algum grau de, segundo
Barthes, taceo. Mas se colocássemos o trabalho de Carlos de Oliveira numa linha do
tempo, contrariando-o portanto, veríamos que aos poucos sua obra foi se transformando
23
“O desejo do neutro é desejo em primeiro lugar: suspensão das ordens (ephoké), leis, cominações,
arrogâncias, terrorismos, intimações, exigências, querer-agarrar; em seguida, por aprofundamento, recusa
97
de um silêncio taceo, calar, para um silêncio que caminha ou se constrói como sileo, a
ausência ou, seu contrário, o excesso. Talvez Carlos de Oliveira tenha aprendido,
através do silêncio forçado de um totalitarismo também silencioso, as regras e as
possibilidades que apenas o silêncio pode lhe fornecer. É como se sua obra incorporasse
a interdição da fala realizada pelo despotismo e a transformasse em modo de produção,
mecanismo poético de construção de sentidos. Silencioso é tudo aquilo que se desvia da
fala, do som, mas que por contraponto mesmo significa tanto quanto ou, em algumas
condições, até mais. Nesse sentido a reescrita de sua obra poderia ser uma possibilidade
de manifestação de silêncio. Além de, como vimos, ajudar a suspender um tempo
diacrônico, faz com que o texto opere não só pelo que nele há, mas também pelo que
nele falta. Apenas como exemplo, lembremos do romance Alcatéia (1944) 24 que já não
integra a obra de Carlos de Oliveira. Esta é o primeiro livro reescrito pelo autor, não
porque quisesse, mas porque a censura, taceo, o exigiu. Depois outros romances seriam
reescritos, não por uma proibição alheia à linguagem, mas pelo seu próprio mecanismo
de rigor poético que se encaminha para aquele silêncio insistente e semeador que deve
ser oferecido e produzido na leitura. Ponto morto, ponto imóvel, ponto zero,
neutralidade irradiadora de caminhos. Pois o silêncio, aquilo que “é produzido contra os
signos, fora dos signos, o que é produzido expressamente para não ser signo, é bem
depressa recuperado como signo (...)” (Idem, p.58).
do puro discurso de contestação: suspensão do narcisismo: não ter mais medo das imagens (imago):
dissolver sua própria imagem (...)” (BARTHES, 2003, p.30, grifos nossos)
24
Alcatéia conheceu duas edições. A primeira foi retirada do mercado ainda 1944. A segunda, não
propriamente com alterações mas com ausências, foi publicado em 1945 pela mesma Coimbra Editora.
98
4.10. ARQUÉTIPO DO VOO
As três estrofes que se seguem repetem e desenvolvem (como veremos ou
vimos, a repetição é a condição mesma para se obter a estrutura e portanto o
desenvolvimento do texto) este movimento, gesto silencioso, em que se relacionam
sujeito(s) e objeto(s). Como sabemos, o texto é o próprio objeto flagrado, ou antes, ou
depois de sua feitura: flor de cal, ao mesmo tempo, flor antecipada que se desloca
metaforicamente e se converte na imagem ambivalente, porque fixação e movimento, da
estalactite. A estrofe VI, VII e VIII, na esteira da V, encenam tal movimento. A relação
entre fixidez e mobilidade ganha nova imagem, a do vôo. Não é o vôo em si que
interessa, mas o deslocamento de sua imagem. Por isso lemos no poema “o arquétipo do
vôo”. Tal como vimos antes a partir da imagem em deslocamento de dança e dançarina
o arquétipo da dança, espécie de tradução do já lido trecho: “um outro movimento /
mais subtil / o da estrutura”.
Vejamos: “Algures / o poema sonha / o arquétipo / do vôo / inutilmente / porque
/ repete / apenas / o signo, o desenho / do outono / aéreo / onde se perde a ave / quando
vier / o instante de voar” (240). Tal operação no entanto apresenta-se como desejo e não
como plena realização. Porque ao conseguir se tornar análogo à paisagem, quer dizer –
reproduzir formalmente um movimento natural acaba por deformá-lo ou, melhor,
transformá- lo. O que aqui vemos, e o “Algures” é índice dessa diferença, é a tentativa
do texto repetir a paisagem. Tal operação parece não fazer coincidir um e outro
exatamente. Nesse sentido a poesia de Carlos de Oliveira seria profundamente realista
na medida em que deseja de alguma forma repetir, imitar não a natureza em sua
aparência a partir de uma estética naturalista (que parte de uma convenção mais ou
menos estabelecida e aparente do que seja real), mas imitar a estrutura mesma com que
se forma a paisagem. Apreender os seus mecanismos e desenvolvê- los criando um
poema em que o mundo se veja espelhado, não a partir de uma visão de mundo
partilhada pelo senso comum, mas a partir de seus mecanismos de formação, estrutura –
disposição e função de itens. Para isso uma passagem muito citada de “Almanaque
literário (194-1969)” é importantíssima:
a) o meu ponto de partida, como romancista e poeta, é a realidade
que me cerca; tenho de equacioná-la em função do passado, do presente,
99
do futuro; e, noutro plano, em função das suas características nacionais
ou locais;
b) o processo para transpor em termos literários está sujeito a um
condicionamento semelhante ao dela e até ao condicionamento dela (em
última análise, o processo faz parte da realidade);
c) é essencial porém não esquecer estas duas coisas: a realidade
cria em si mesma os germes da transformação; o processo consiste
sobretudo em captá-los e desenvolvê-los num sentido autenticamente
moderno (...)
(OLIVEIRA, 2004, p.65)
É como se o poema ao imitar a dança ou o vôo conseguisse apenas reter o
movimento, mas não seu autor. A obra, sendo um dado da realidade, tem “os germes da
transformação” que esta tem. Mas é justamente esse espaço problemático, silencioso,
que nos interessa, porque ora ele aparece como ambivalente, tal qual vimos na
apreensão do sujeito antes e depois do objeto; ora, tal qual presenciamos agora, como
movimento deslocado de seu autor, espaço em branco.
Os dois posicionamentos caminham numa mesma direção. Aquela que diz que o
poema, como um horizonte, é um espaço ordenado a ser ocupado pela leitura. Um
espaço que ora espera, quase como um convite, sua ocupação; e que ora faz conviverem
em si ocupações distintas, conflitantes. Nisso permitiria o tal povoamento de sua
paisagem, pois funcionaria como um horizonte. Nesse sentido não seria descabido
apontar em Carlos de Oliveira uma possibilidade de construção de mundo a partir da
mímesis, tanto no que diz respeito à aristotélica imitação da práxis humana, quanto no
que se refere à não menos aristotélica necessidade da relação entre espectador e obra. O
poema, mais do que reprodução ou produção de um mundo, é a atualização deste,
atualização esta, como sabemos, que só ele pode fazer. Nesse sentido, essa é a relação
mimética de poema e mundo 25 . Justamente por serem não coincidentes que o primeiro
integra o segundo. Sua repetição é parcial e produz variantes. Nisso poderíamos chamála de errante, porque parcialmente o perde: “o poema sonha / o arquétipo / do vôo /
inutilmente”. Mas é justamente por perdê- lo que o integra em seu horizo nte de
expectativa. Errante porque não fixa seus referentes, ou seja, no poema eles são
moventes. É dessa movimentação ou não coincidência exata que surge a possibilidade
25
Manuel Gusmão no que se refere a representação também prefere uma imagem entre a descontinuidade
e a continuidade, extensão e interrupção: “É por isso que se é justa a ‘imagem’ destes poemas ‘a caírem’
(e esta idéia do poema que na página cai iremos encontrá-las em livros futuros, por exemplo em Sobre o
lado esquerdo), também é justa a ‘imagem’ de que eles se erguem, na página. E talvez na combinação
destes dois movimentos nós encontraremos, então, a imagem mais rigorosa para os representar”
(GUSMÃO, 1981, p.45-46).
100
de agora o poema – já atualização do mundo – ser visto como potência em relação à
leitura, i.e., ele é atualizado através dela. Melhor, assim como o poema é uma
atualização do mundo, a leitura é uma atualização do poema. Daí a possibilidade de no
poema conviverem sentidos opostos, como acontece aqui entre os dois vetores. Quanto
mais vezes o poema é atualizado, mas a paisagem é povoada. Embora “Estalactite” seja
uma tentativa ou apenas um desejo de neutralização do tempo, seus sentidos podem se
dar apenas devido à sua exposição ao tempo, pois é ele – o mesmo tempo – que sujeita o
poema a leituras e caminhos distintos que de uma só vez se tocam e se afastam.
As estrofes VII e VIII aprofundam a movimentação do texto estabelecendo
novas oposições. Em relação à estrofe anterior – a imagem de um vôo, em que não há
pouso – essas duas voltarão à imagem da incessante estalactite, já objeto de uma
contradição interna. Seria interessante lembrar da relação que o poema pode estabelecer
com o famoso soneto de Sá de Miranda em que a imagem de pássaros que caem
simboliza o tempo. Aqui o primeiro quarteto do poeta quinhetista: “O sol é grande,
caem co'a calma as aves, / do tempo em tal sazão, que sói ser fria; / esta água que d'alto
cai acordar- m'- ia / do sono não, mas de cuidados graves.” (MIRANDA , 1989, p.162).
Curioso que em “Estalactite”, um poema também sobre o tempo, não haja, embora o
vôo, aves que possam cair 26 . A queda, passagem e suspensão do tempo, verificaremos
apenas na imagem do gotejar da estalactite. O inútil e eterno vôo, porque sem ave – no
entanto imagem da leveza absoluta e impossível –, estabelece oposição com o
incessante gotejar, a um tempo água e pedra, da estalactite. Se antes o poema era uma
sugestão, “nesta caligrafia / de pétalas / e letras” (239), agora ele se faz como presença
primeira surgindo pela estalactite: “O pulsar / das palavras, / atraídas / ao chão / desta
colina / por uma densidade / que palpita / entre / a cal / e a água, lembra / o das estrelas /
antes de caírem” (241). Não as palavras, mas o seu pulsar com todo seu peso, ou seja,
aquilo que nelas mais se aproxima da vida – palpitante coração – é o contraponto
daquele vôo idealizado, leve e aqui inútil. Lembremos que a queda das estrelas aqui
repete uma imagem que já foi inegavelmente positiva na obra de Carlos de Oliveira no
já mencionado poema “Estrelas”.
“E também nesta imagem reunida nós lemos a oscilação que com uma nova clareza simbólica, neste livro
[Cantata], nós sabemos ser oscilação interna do poema e oscilação entre a palavra e o mundo, entre o
peso e o vôo” (Idem).
26
Eduardo Prado Coelho sobre Ave Solar: “Mas voar é aproximarmo s-nos da queda, é estabelecermos as
condições de sua possibilidade” (COELHO, 1972, p.114).
101
4.11. POVOAMENTO DA PAISAGEM
Quanto mais se desenvolve, o texto vai fixando a relação paisagem-poema – ou
melhor, o poema que repete a natureza e produz a paisagem – entremeando imagens de
um com outro, confirmando o texto como lugar a se povoar. Assim a imagem da
estalactite persiste e nos relembra da dupla flor – projeção e lembrança – construída pela
relação ambivalente entre sujeito e objeto: “Caem / do céu calcário, / acordam flores /
milénios depois, rolam / de verso / em verso / fechadas / como gotas, / e ouve-se / ao
fim / da página / um murmúrio / orvalhado” (p.242). Vemos que o próprio movimento
de leitura é a formação da estalactite. Eis os versos: “como gotas”. O que agora o poema
quer é ressaltar a sua materialidade, realidade. O realismo possível é o do dizer, que em
verdade integra-se como parte da estrutura da natureza, realidade, como vimos na última
citação de O aprendiz: “o processo [de transposição literária] faz parte da realidade”
(OLIVEIRA , 2004, p.65). Quanto mais o sabemos poema, mais ele se vai convertendo na
estalactite e assim, portanto, formando a paisagem. Tal operação, como que
confirmando toda a movimentação e errância do texto, se dá através de um jogo entre
identificação (imitatio, no que reconstitui os índices naturais) e diferenciação que
aproxima e distancia o poema de ser atualização (representação versus apresentação).
No poema vemos isso justamente nessa nova oscilação entre a estrofe VI, a do
arquétipo do vôo, e as estrofes VII e VIII em que temos, como vimos, “o pulsar / das
palavras / atraídas / ao chão”, rolando “de verso / em verso / fechadas / como gotas”
(241). Não será estranho agora lembrarmos do soneto “Rudes e breves as palavras
pesam” de Cantata em que lemos no dístico final a mesma imagem de estalactite.
Mesma imagem, no entanto, com um posicionamento mais marcado, porque agora
preferir-se-á a leveza ao peso: “ó palavras de ferro, ainda sonho / dar-vos a leve tempera
do vento” (181). Aliás, esse soneto tem uma imagética em muito parecida com
“Estalactite”. Basta compararmos o “ainda sonho” com “o poema sonha”. Podemos
ainda ler no soneto “acender-te o granito das estrelas / e nestes versos repetir com elas /
o milagre das velhas pederneiras” e lembrarmos- nos tanto da “densidade / que palpita /
entre / a cal / e a água” que “lembra / o [pulsar] das estrelas / antes de caírem” (241),
como também do fato que em “Estalactite” o poema “de verso / em verso” “repete /
102
apenas / o signo, o desenho do outono aéreo” (p.240). Se em Cantata tais imagens
gostariam definitivamente de pender para o lado da leveza, agora em Micropaisagem a
oscilação, podemos dizer, é a tônica. O que só reforça como no passar dos anos tais
oposições e instabilidades – errância e de certa forma aquilo que no texto se silencia e
portanto significa – foram ganhando espessura. Passando por Entre dias memórias e
chegando no limite da experiência de tempo que é Finisterra – paisagem e povoamento.
Ao criar essas tensões – entre a posição ambivalente do sujeito, recordar e prever; entre
mobilidade e fixação da estalactite; entre imitação, repetição, e natureza; ou ainda entre
arquétipo de vôo, leveza, e a atração, peso, dos versos pelo chão – o poema vai
revelando e formando, a partir mesmo do rigor de ordenação daquilo que não pode ser
medido e imobilizado, um espaço extremamente áspero. Natureza repetida que
justamente por ser repetida, através de uma operação subjetiva – e aqui produção e
recepção de texto se confundem –, torna-se paisagem, lugar modificado, portanto,
atualizado, povoado. Visto isso, tal espaço dificilmente seria passivelmente ocupado.
Dado o deslocamento ininterrupto das imagens, tal povoamento é por natureza errante.
Nesse sentido essa paisagem, através dessa construção mimética, consegue formalmente
dá a ver à nossa experiência de leitores um lugar. Lugar esse análogo a uma Gândara em
que se sobressai sobretudo a dificuldade de povoá- la, devido às suas condições precárias
de produção e distribuição de riquezas, devido à sua natureza áspera em que temos de
fato a experiência social da falta de recursos. Já vimos antes em O aprendiz alguns
momentos em que diz isso claramente 27 . Chamamos atenção, portanto, para aquilo que
“Estalactite” consegue, não através da imitação do que se chama da realidade a partir de
índices que o senso comum partilha 28 , mas sim por meio da imitação da experiência do
sujeito na paisagem. O realismo produzido na poesia de Carlos de Oliveira se
encaminha para a materialidade do dizer. Por mais que se aproxime da coisa imitada a
condição de poema sempre estará lá, como que “nesta caligrafia de pétalas e de letras”.
Aliás, o que potencializa a coisa imitada – e portanto a torna matéria atualizável – é a
consciência de sabê- la não puramente como mediada pela linguagem do poema, mas
27
“Meu pai era médico de aldeia, uma aldeia pobríssima: Nossa Senhora de Febres (...). Cresci cercado
pela grande pobreza dos camponeses, por uma mortalidade infantil enorme, uma emigração espantosa.
Natural portanto que tudo isso me tenha tocado (melhor tatuado). (...) A matéria de alguns poemas da
“Micropaisagem”, talvez mais decantada [desencantada?], mais indirecta, é a mesma (OLIVEIRA, 2004,
p.183-184).
28
“Porque entre o real representado e a efetiva representação interferem as regras dos códigos com que
esta se formula. Toda representação cultural, i.e. humana, se faz mediante o uso de um código e, à medida
que o emprego deste se torna freqüente, o esquecemos como código e o encaramos como um
prolongamento da natureza.” (COSTA LIMA, 1974, p.34)
103
como, entre outras coisas, a própria linguagem do poema, que justamente por sua
conformação é análoga à paisagem naquilo que tem de mais difícil, breve, silencioso ou
quase. Apenas porque lemos, ouvimos “ao fim / da página / um murmúrio / orvalhado”
(p.242). Ler o poema é deslocar-se, movimento errante que nos revela o texto como
figuração, de algum modo, da falta. Estamos expostos – é o que nossa leitura produz – a
experiência da brevidade, da escassez. O mais próximo que podemos chegar do silêncio.
Tais deslocamentos incessantes devem-se sobretudo ao rigor ordenador de imagens,
perturbador do tempo e daquilo que o diz: “o trabalho sobre a linguagem sempre oferece
um resultado não previsto, i.e., sempre fere seu conteúdo” (COSTA LIMA, 1974, p.30). E
é por se desviar, ferir, através mesmo do recorte que dá à natureza, que “Estalactite”
acaba por proporcionar algo ao leitor análogo a vivência da paisagem gandarense. A
referência do poema é mais em relação a experiência de um índice da cultura do que
propriamente em relação ao índice mesmo da cultura, no caso a paisagem áspera de
Gândara. Visando não exatame nte a coisa, mas nossa relação com a coisa, ou seja,
atualizá- la, o poema acaba ganhando uma vida que o aproxima mais dessa realidade do
que se prestasse a fazer alguma descrição ou narração, utilizando sua representação
cultural mais partilhada. Por esse caminho, chegamos a mais uma entrada em que a
recepção do texto é central, mesmo quando ainda estamos a pensar no ato de produção
do poema. Já que ele incorpora a recepção e exige dela, como vimos, o que tem de mais
produtivo.
O que vemos agora nas estrofes que se seguem funciona como uma espécie de
movimento circular. Dadas as imagens e a maneira como elas se relacionam,
contrapondo-se, deslocando-se, “Estalactite” começa a repeti- las, não exatamente como
já haviam se mostrado, mas sim de forma permutável em que algo de uma estrofe
anterior se mistura a algo de outra estrofe anterior. É como se já conhecêssemos as
imagens, mas, de uma só vez, as estranhássemos. Parafraseando Borges, são as mesmas
e já outras. Na nona estrofe lemos: “Imaginar / o som do orvalho” (p.243) e nos
lembramos da segunda. E continuamos: “transmiti- lo / de flor para flor,”; o repetir de
antes se transforma em transmitir porque assimila o “de verso para verso” que agora
lemos “de flor para flor”.
Seguindo: “guiá-lo / através do espaço / gradualmente
espesso / onde se move / agora / [água? cal], / e captá- lo como / se nascesse / apenas /
por ser escrito.” Esse “espaço / gradualmente espesso” não nos é novidade. Vimos algo
em Camões e Cabral que confirmava esta espacialização desse tempo em que o sujeito
se desloca através de sua “frágíl espessura” (p.238). Mesmo a construção sintática se
104
repete: aqui lemos “onde se move” (p.243), antes líamos “onde a velocidade / se
fractura” (p.238). O que ajuda a caracterizar, embora plural, a unidade do movimento;
afinal se nos movemos, é através dessa velocidade fraturada. E onde antes víamos
“registar”, vemos “captar”. Captação/registro que se manifestou como murmúrio
orvalhado ao fim da página – um desenvolvimento do silêncio – e que agora passa do
oral para o escrito, visual: “captá- lo como se nascesse para ser escrito” (p.243). Daí que
possa o poema agora já sob um registro visual, utilizar um esquema gráfico que é
silencioso, porque instransponíve l para fala: ? . Representação, ou melhor, encenação
mesma desses deslocamentos silenciosos que configuram o texto, entre eles:
“[água? cal]”. Toda essa repetição, em verdade, emula a própria ação do poema em
relação à natureza. O fato de ele pretender imitar a natureza – imitatio –, acaba
desencadeando a repetição, dele mesmo. É como se ele ativasse um mecanismo e não
conseguisse interrompê- lo ou perdesse o controle sobre o mesmo. Porém tal errar só
acontece porque o poema encara como matriz tanto a natureza – tal qual fazemos no
cotidiano – como também o próprio poema, ou seja, poema e realidade ocupando um
mesmo registro, como vimos em O aprendiz de feiticeiro. Isso acaba revelando o que
ambos têm em comum: o fato de serem, sem hierarquia, construções discursivas. No
entanto, como tal imitação não é possível, pelo menos nesses termos, tal repetição
produz variantes inúmeras. Sendo conseqüência portanto de partes diversas do poema
até aqui, esta nona estrofe, no que repete, acrescenta outros termos à ordem do texto.
Por exemplo: ‘imaginar’ aqui ao invés de produzir é produto, ou, segundo o poema, é
‘como se’ fosse um produto, revelando a proximidade distante ou a distância próxima
necessária entre poema e realidade. Ou seja, captar (versus imaginar) não o orva lho,
mas seu som – a impressão que dele temos – e construí- lo, conduzi- lo, “guiá- lo” pelo
sujeito até e para a produção do texto. O poema não se quer como orvalho, mas como
nossa impressão auditiva do orvalho que deve variar de um para outro como qualquer
impressão varia. É por isso que é “como / se nascesse / apenas / por ser escrito.” O
poema, embora criticamente encene a tentativa de sê-lo, não é o som do orvalho. O
poema é, sim, a única possibilidade de escutarmos esse som. É o poema, a sua forma,
aquilo que dissemina tal experiência em nós. Assim, essa se espalha sendo transmitida e
alterada de “flor para flor”. É na “particularidade de cada gesto de leitura que o poema
permite uma resistência à indiferenciação” (LOPES , 1995, p. 71).
Como vimos, o texto é o lugar onde diversos deslocamentos convivem, entre
eles, a errância entre poema e paisagem em que, no mesmo tempo que são
105
convergentes, também apontam para uma divergência. E é tal divergência – que pode
ser exemplificada rapidamente agora tanto pela imitação da natureza quanto pela
repetição no poema de imagens e estruturas sintáticas – que produzirá a possibilidade de
variantes e, portanto ,de multiplicações de caminhos, melhor, que produzirá a encenação
no poema de sua própria recepção ou, como propomos, do povoamento da paisagem.
Esta tensão apenas integra um conjunto maior de deslocamentos, como aquele por que
começamos nossa leitura do poema, em que tínhamos dois vetores, um para trás e outro
para frente. Vetores que estão no poema em freqüente tensão. Tais vetores agora já
encontram representação gráfica como vimos na nona estrofe e como vemos agora na
décima primeira. E esses vetores são a materialização não verbal, portanto silenciosa, da
experiência de deslocamentos no poema: “O peso / da água / a tal distância / é quase /
imperceptível, / porém pesa, / paira, / poisa no papel / um passado / de pedra /
[cal? colina] / que queima / quando / cai” (p.245). Se antes tínhamos “água? cal”,
portanto uma projeção; agora temos “[cal? colina]”, num movimento de retorno.
Enquanto o primeiro está ligado à possibilidade no texto de leveza, porque de dispersão
e de preenchimento dessa paisagem pela leitura, mas que em si já mostra a sua
precariedade, porque vai da água (movimento e vida) até a cal (morte e espaço em
branco); o segundo revela- nos “um passado / de pedra”, vetor para trás, da memória que
tenta, embora impossível, a ordenação inequívoca, a fixação de um só ponto. Tarefa que
também acaba se revelando impossível porque vai da colina, lugar a ser ocupado, até a
cal, dispersão e morte. Ou seja, embora através de direções distintas, esses
deslocamentos chegam a uma imagem afim: a cal29 . Imagem com que o poema se
inicia: “O céu calcário / de uma colina oca”. Imitar a cal, ou melhor, produzir em que lê
o efeito que a cal produz em quem a experimenta: tanto algo ligado ao cálcio, dureza e
resistência, como algo ligado à dispersão e morte 30 . Abramos um breve parêntesis. Pois
em O aprendiz de feiticeiro, o autor escreve algo sobre a possibilidade desse efeito
duplo da palavra cálcio:
“Eu explico-te melhor a minha teoria. Osso, cálcio. A palavra cálcio
subdivide-se noutras duas: cal e cio. Pode não ser uma descoberta
importante mas aposto que não tinhas reparado nisso. O mineral e o
animal ao mesmo tempo. Quando o cio, o tutano, o animal, se
decompõe e desaparece, fica o mineral, a nossa durabilidade extrema,
29
A imagem da cal em “A dádiva suprema”, texto de O aprendiz de feiticeiro dedicado à morte de
Afonso Duarte: “Os muros do cemitério, dessa brancura morta que só a cal tem, alvejam lá do fundo.”
(OLIVEIRA, 2004, p. 14).
30
Eduardo Prado Coelho fala da Caligrafia como uma possível escrita da cal: “(...) o poema aparece como
cal(i)-grafia, grafia da cal (...)” (COELHO, 1972, p.121).
106
a nossa resistência ao tempo. Só ele faz pensar um pouco na
eternidade, vista do ângulo que te interessa.” (OLIVEIRA, 2004, p.73)
Essa leitura da palavra cálcio feita por um dos diversos narradores-personagens
de O aprendiz de feiticeiro vem encontrar nossa leitura de “Estalactite”. O que ele
ressalta é a possibilidade da convivência de duas naturezas distintas num só espaço, o
espaço que é a palavra cálcio: “O mineral e o animal ao mesmo tempo”. Naturezas
distintas, mas que têm profunda relação uma com a outra, já que “Quando o cio, o
tutano, o animal, se decompõe e desaparece, fica o mineral, a nossa durabilidade
extrema, a nossa resistência ao tempo.” E o que “Estalactite” encena em seu jogo de
contrários? Passado e futuro – lembrar ou prever. Fixação e mobilização: todos
fragilmente retidos na imagem da estalactite em que há gotas ora de pedra ora de água.
Esses deslocamentos operados por esses vetores em tensão são análogos ao jogo gráfico
que divide a palavra cálcio. O mineral é a projeção possível do animal, seu futuro;
assim como o animal é a lembrança do mineral, seu passado. Para lá da oposição que os
definem, como vemos, os dois funcionam numa linha temporal de contigüidade e,
portanto, de mútua dependência. O excesso ou falta de temporalidade de “Estalactite” se
quer muito histórica, não porque seja marcada, como o foi o neo-realismo, mas porque é
a reunião dessas temporalidades afins e diferentes. A “nossa resistência ao tempo”, de
que fala a voz de O aprendiz de feiticeiro, é a total vivência e imersão nesses tempos ou,
pelo menos, sua tentativa : processo de atualização no poema. O que fica do animal é,
portanto, o cálcio, os ossos, o mineral. A “eternidade, vista do ângulo que te interessa”,
que já passou aqui pelos rios camonianos, é o prolongamento da tua, para falar com o
poema, ou melhor, da nossa experiência do breve. A fixação da brevidade, que é o
poema, não é extinção da mesma através de um possível prolongamento seu – logo
diminuição de seu efeito –, mas a sua recorrente insistência, potencialização atualizada
na leitura. O que “Estalactite” fala, através de suas tensões, deslocamentos e silêncio, é
de nossa própria condição: é a nossa experiência da brevidade. Por isso a escrita de um
poeta como Carlos de Oliveira está muito atenta ao ato de leitura. Temos a mímesis não
por essa escrita ser espelho de uma superfície – assim seus efeitos seriam menores –,
mas por provocar em que m a olha, ouve ou toca sensação análoga à experiência da
mesma. Sendo assim o poema é tanto mímesis da paisagem – da Gândara inclusive –
como da vida, pois o que interessa a ele não são os índices em si, mas precisamente a
sua repercussão em nós. O sujeito na leitura, ao povoar a paisagem, está assim mais
tempo sujeito a essa experiência da brevidade, do efêmero, do fim e, portanto, do
107
silêncio. Assim, o poema cria uma espécie de campo de força entre termos como
‘deslocamento’, ‘errância’, ‘brevidade’, ‘falta’, ‘silêncio ’. Silvina Rodrigues Lopes em
seu texto falará justamente, indo em um sentido parecido, de um povoamento através da
errância. Com Finisterra, ela fala de certas “(...) cenas em que a fixação à terra, o
povoamento (junto ao mar) se confunde com a peregrinação (...)” (LOPES , 1992, p.80).
E ela chega a tal afirmação mais por meio de uma experiência formal de texto enquanto
texto, do que propriamente através do espelhamento de representações classificáveis da
realidade. Suas deambulações pelo e do texto se dão, a saber, “através da qual se propõe
um jogo de signos lingüísticos que pensando a sua relação ao mundo das afecções e das
acções se constitui em directa oposição à fixação do intérprete lógico final” (Idem,
p.77).
E é essa não- fixação – como num nomadismo (e aqui as dunas da paisagem
gandarenses encontrariam a sua equivalência) – ou a fixação de sua brevidade – no
objeto, afinal nomeadamente fruto de um trabalho, poema – que se traduz a relação
tensionada de aproximação e distanciamento, interrupção e continuidade, memória e
projeção ou, em equivalência, cal e cio. Tal errância, no entanto, significa mais como
presença do que ausência. Até porque depende da ação direta do homem na linguagem.
O que faz do lugar paisagem é seu povoamento através do trabalho do poema, da
leitura. Assim a poesia de Carlos de Oliveira, mais do que ser uma afirmação da
possibilidade da arte ultrapassar o tempo, como é mais habitual, ela é a afirmação do
texto como a própria experiência calcificada do fim, ou seja, daquilo que erra, é
precário, efêmero, enfim, breve. Povoar essa paisagem incessante é peregrinar pelas
palavras, cultivar aquilo que nelas pode haver de mais silencioso. E é essa possibilidade
de aprender com o que morre aquilo que essa obra tem de cognoscível. Essa é a última
ou a única possibilidade da literatura intervir: de alguma forma ela nos ensina a morrer,
ação esta que afinal é o resultado da projeção final de todas as coisas. Terminemos a
citação de O aprendiz de feiticeiro que fizemos em algum lugar acima:
Escreve -se sempre num ponto morto, entre duas velocidades, a que
se extinguiu e a que vai surgir. No ponto morto falta a velocidade real
do motor, há apenas movimento fingido que acabaria em breve se a
nova velocidade faltasse. Mas não falta. Quando se deixa de escrever
para respirar (exigi-o a nossa condição) lá está o tempo à espera e
recomeçamos a perdê-lo. Assim se passa da morte aparente (ou da
vida fingida que é a criação literária) à vida real que nos conduz pela
mão do tempo à morte também real (OLIVEIRA, 2004, p.135).
108
A leitura poderia continuar. Mas os passos até aqui dados são suficientes para a
encenação de nossa leitura. Para o levantamento das imagens e estabelecimento e
sentido das relações temporais formadas. O melhor que podemos fazer agora, mais do
que seguir pelas estrofes restantes, talvez seja lembrar nosso pequeno percurso; percurso
este que, embora não termine a leitura do poema, procura localizar e articular os itens
formadores de um mecanismo de referencialização – ou povoamento da paisagem– , um
mecanismo lucidamente fadado ao deslocamento, dispersão de perspectivas, ângulos. A
única exatidão possível e até necessária do poema – e nisso parece não haver dúvidas –
é aquela que atesta tanto a sua como a nossa precariedade frente ao tempo e a outras
formas de fim. Para concluir, é preciso agora voltar ao livro, por onde começamos e que
nos deu instrumental para a leitura do poema, e fechar alguns parêntesis abertos ainda:
retomar a O aprendiz de feiticeiro e encontrarmos uma espécie de conceituação para a
mímesis e ver como esta se relaciona intimamente com a experiência da brevidade, vista
aqui.
109
5. CONCLUSÃO
Pouco, muito pouco comparado às
florestas por onde errei e hei-de errar.
C.O., “Na floresta”
O capítulo O mundo comum percorreu alguns aspectos de O aprendiz de
feiticeiro para que a leitura do poema “Estalactite”, no capítulo subseqüente, pudesse se
constituir a partir da imagem que perseguimos: a do povoamento da paisagem. Vimos
ora num, ora no outro, como o poema tenta se identificar com um lugar. No livro de
Gelnaa – relembremos – Carlos de Oliveira faz isso através de passagens em que
expressamente fala dessa relação. Três em destaque, as duas primeiras estão no texto
também intitulado “Micropaisagem (1968)”:
Meu pai era médico de aldeia, uma aldeia pobríssima: Nossa senhora
das Febres. Lagoas pantanosas, desolação, calcário, areia. Cresci
cercado pela grande pobreza dos camponeses, por uma mortalidade
infantil enorme, uma emigração espantosa. Natural portanto que tudo
isso me tenha tocado (melhor, tatuado). O lado social e o outro, porque
há outro também, das minhas narrativas ou poemas publicados (quatro
romances juvenis e alguns livros de poesia) nasceu desse ambiente
quase lunar habitados por homens e visto, aqui para nós, com pouca
distanciação. A matéia de alguns poemas da “Micropaisagem”, talvez
mais decantada [desencantada?], mais indirecta, é a mesma (OLIVEIRA,
2004, p.184).
Ao fim desse texto, ainda outro trecho importante:
A secura, a aridez desta linguagem fabrico-a e fabrica-se em parte de
materiais vindos de longe: saibro, cal, árvores, musgo. E gente, numa
grande solidão de areia. A paisagem da infância que não é nenhum
paraíso perdido mas a pobreza, a nudez, a carência de quase tudo
(Idem, p.186).
Acima, a relação paisagem versus linguagem é patente. A terceira passagem que
confirma essa relação de quase identidade também não é nova e está no início do livro,
mais especificamente em “A dádiva suprema (1956 e 1958)”, texto publicado em
ocasião da morte de seu mestre, o poeta Afonso Duarte:
Escrever é lavrar, penso comigo, olhando esta Ereira onde se fecha hoje
o círculo que o seu cantor traçou com a própria voz. E lavrar, numa
terra de componeses e escritores abandonados, quer dizer sacrifício,
penitência, alma de ferro. Xistos, areais, cobertos de flores, de frutos, se
110
a chuva deixar, o sol quiser, o tempo não reduzir as sementes e o
coração a cinza. Tanta colheita perdida na literatura e eu que o diga
nesta linguagem de vocábulos pesados como enxadas, na voz lenta,
difícil, entrecortada de silêncios, que os cavadores e os mendigos me
ensinaram, lá para trás, no alvor da infância: um pouco de frio e neblina
coalhada, sons ásperos, animais feridos (Idem, p.16).
Os efeitos dessa identificação entre a linguagem do texto e a paisagem da
Gândara dá-se através da recriação por meio de imagens e sintaxes dessa “voz lenta,
difícil, entrecortada de silêncios”. Foi o que vimos na leitura de “Estalacite”. No entanto
essa imitação do lugar acaba por se tornar problemática justamente por essa lentidão e
silêncios que vão introduzindo no texto espaços em branco, onde o leitor precisa tomar
decisões para que prossiga o percurso de sua leitura. Tais decisões, resultado direto da
forma do poema, permitem que a leitura crie um caminho próprio, gerando, digamos,
variantes de sentido e aquilo a que chamamos de errância. Logo, chegamos a uma
conceituação de paisagem que tanto leva em conta essa demasiada identificação sua
com o texto, mas também a criação das mesmas variantes de que falamos. A
combinação desse movimento de aproximação e de afastamento chamamos de
povoamento da paisagem. Tal movimentação tem sua motivação sobretudo na mímesis
lida à luz dos conceitos de ato e potência, também retirados de Aristóteles. Como
vimos, não se trata de representação nem de apresentação, mas da atualização de algo
em potência. O texto é atualização do mundo, da mesma forma que a leitura é uma
atualização do texto. Essa é a relação mimética entre mundo e poema. A presença de
tempos diferentes nos textos de Carlos de Oliveira (proporcionada tanto pela reescrita –
aqui o exemplo foi de O aprendiz de feiticeiro –, quanto pela presença de tempos
distintos no poema – nossa argumentação tratou dos dois vetores de “Estalactite”) só
confirma esse pendor para a produção de sentidos variantes, ocupando um mesmo
espaço, que tem no povoamento sua metáfora.
Há em O aprendiz de feiticeiro, entretanto, uma imagem que pode representar a
mímesis tal qual a compreendemos aqui: a leitura que atualiza um texto, o leitor que
povoa a paisagem. Interessante que tal imagem figure no mesmo texto que
explicitamente fala sobre biografia, “O iceberg (1966)”. A biografia elidida de Afonso
Duarte acaba fazendo com que o autor de Finisterra chegue a uma imagem em que sua
obra encontra uma equivalência: as metamorfoses repetitivas. Segundo ele, essa
“metamorfose consiste no acto de repetir as formas, quer dizer, de criar formas novas
mas idênticas” (Idem, p.174). A partir disso não seria absurdo falar em imitação na obra
111
de Carlos de Oliveira, já que essa criaria “formas novas mas idênticas”. O importante é
saber que tal duplo produz variantes, podendo assim ser visto como materialização da
mímesis. “Os crepúsculos por exemplo não são perda da qualidade fundamental (que é
invariável) mas nuances da metamorfose repetitiva” (Idem, p.170). Melhor, acontecem
mudanças, mas nenhuma dessas mudanças nega a forma dada, pois variam apenas
naquilo que à atualização é possível variar em relação à potência. E quando faz isso
repete um movimento análogo ao próprio movimento da natureza. Até porque é, através
da atualização de potências, que também se trans forma a realidade. Trata-se, pois, de
“um repetido repetindo as formas na ressurreição cotidiana sem destruir nada em
definitivo (a evolução, o desaparecimento de certas espécies, são quotidianamente
imperceptíveis)” (Idem). Lembremos de um trecho em “Almanaque literário (19491969)” que agora parece fazer eco a isso:
a) o meu ponto de partida, como romancista e poeta, é a realidade que
me cerca (...).
b) o processo para a transpor em termos literários está sujeito a um
condicionamento semelhante ao dela e até ao condicionamento dela
(em última análise, o processo faz parte da realidade).
c) (...) a realidade cria em si mesma os germes da transformação; o
processo consiste sobretudo em captá-los e desenvolvê-los num sentido
autenticamente moderno (...) (Idem, p.65).
A idéia da “metamorfose repetitiva” é a mesma: criar em termos literários um
equivalente para os mecanismos de transformação da realidade. Por sua vez, essa
operação se dá sobretudo através da relação entre ato e potência, o mundo como
atualizações de potências. O povoamento da paisagem é portanto a convivência dessas
atualizações no espaço novo mas idêntico que é o poema.
E é justamente por esse caráter, muitas vezes contraditório, que a relação, o
convívio entre essas diferentes ocupações, que esse povoamento tende à errância, como
vimos no último capítulo: experiência que tende à brevidade. No que o poema consegue
emular aquela “voz lenta, difícil, entrecortada de silêncios” (Idem, p.16) acaba por
provocar em quem o povoa não uma emigração definitiva, mas a errância através de sua
paisagem áspera. Aspereza cujas partes mais visíveis são o silêncio e a brevidade:
“Desses elementos se sustenta bastante toda a escrita de que sou capaz, uma vez
explícitos, muitas outras apenas sugeridos na brevidade dos textos. E disse sem querer
uma palavra essencial para mim. Brevidade” (Idem, pg.186). A transposição da
paisagem para o texto é bem sucedida na medida em que o leitor, ao lê- lo, consegue
112
estar diante dessa experiência do fim: “Que literatura poderia nascer daqui que não
fosse marcada por esta opressiva brevidade, por este tom precário (...)” (Idem).
Giorgio Agamben, pensando com Aristóteles, escreve que o “prazer (...) é aquilo
cuja forma é completa em cada instante, perpetuamente em acto” (AGAMBEN, 1999,
p.63). A partir disso e levando em conta que a obra é uma atualização do mundo e por
sua vez a leitura é uma atualização da obra, a relação entre texto e leitor é sempre uma
relação de prazer, melhor, de completude. Completude que não vem de uma fixação,
mas sim, como sabemos, de um movimento incessante de ininterrupção de sentido. “A
dor da potência desvanece, de facto, no momento em que ela passa a acto” (Idem).
Sendo assim, a brevidade atualizada na obra torna-se não uma experiência negativa, mas
sim uma grande experiência cognitiva, como lembra Aristóteles, uma relação de prazer.
Com essa perspectiva, a obra de Carlos de Oliveira seria profundamente ética,
pois transforma através do texto uma região inóspita e infértil em uma das mais
fecundas e ricas paisagens da literatura portuguesa do século XX, tornando seu
povoamento um ato que não cessa de acontecer. “É neste ponto que julgo ter a arte um
papel de medicina humanística, de contraveneno insubstituível” (Idem, p.180). Assim,
longe de qualquer função diretiva da arte sobre a sociedade, a poesia de Carlos de
Oliveira através dessa mesma experiência de brevidade – que recria a aspereza do lugar
através ora de elipses ora de pontos mortos irradiadores de um silêncio significativo –
faz de seu trabalho como que um gesto de resistência ao automatismo dos sentidos
culturais, sociais e econômicos.
Se a poesia é como queria Maiakovski uma “encomenda social”, o que
a sociedade pede aos poetas [homens?] de hoje, mesmo que o peça
nebulosamente, não anda longe disto: evitar que a tempestade das
coisas desencadeadas nos corrompa ou destrua (Idem, p.181).
Resta agora levar esta proposta de povoamento, baseada na valorização do papel
do leitor, para outras paisagens-textos de Carlos de Oliveira como o longo poema Entre
duas memórias (de unidade ordenadora análoga em muito a de O aprendiz de
feiticeiro), ou ainda levar este povoamento para a aparente desertificação de sentido que
é Pastoral, seu último livro de poesia, até finalmente entrarmos na floresta de inúmeras
veredas que é Finisterra - Paisagem e povoamento, texto para onde convergem muitas
das questões vistas aqui.
113
Sabes, leitor, que estamos ambos na mesma página
E aproveito o facto de teres chegado agora
Para te explicar como vejo o crescer de uma magnólia.
A magnólia cresce na terra que pisas – podes pensar
Que te digo alguma coisa não necessária, mas podia ter-te dito, acredita,
Que a magnólia te cresce como um livro entre as mãos. Ou melhor,
Que a magnólia – e essa é a verdade – cresce sempre
Apesar de nós.
Esta raiz para a palavra que ela lançou no poema
Pode bem significar que no ramo que ficar desse lado
A flor que se abrir é já um pouco de ti. E a flor que te estendo,
Mesmo que a recuses
Nunca a poderei conhecer, nem jamais, por muito que a ame,
A colherei.
A magnólia estende contra a minha escrita a tua sombra
E eu toco na sombra da magnólia como se pegasse na tua mão
Daniel Faria,
Dos líquidos
114
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Orientador: Ida Maria S. F. Alves.
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Feiticeiro. I. Alves, Ida Maria S.F. II. Universidade Federal Fluminense.
Instituto de Letras. III. Título.
CDD 869.1
120
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Mundo comum e povoamento da paisagem