A CAPITÃ DA AREIA:
COMO A PERSONAGEM DORA DO ROMANCE CAPITÃES
DA AREIA, DE JORGE AMADO, É PERSONIFICADA NO
FILME HOMÔNIMO DE CECÍLIA AMADO
Luciana Hoffmann Nunes*
Professor responsável: Carlos Augusto Bonifácio Leite
RESUMO: Este artigo analisa comparativamente a personagem Dora do romance Capitães da Areia (1937),
de Jorge Amado, com a do filme homônimo de Cecília Amado (2011). No primeiro momento, o trabalho
traça um panorama histórico, político e cultural do Brasil nas primeiras décadas do século XX, destacando a
noção de mestiçagem de Gilberto Freyre e o papel do romancista nesse contexto. Nos segundo e terceiro,
disserta sobre os Capitães da Areia e a figura feminina de Dora literária. Em quarto, discute as teorias da
adaptação de Robert Stam e Gerald Mast, que relativizam a hierarquia da literatura sobre o cinema, bem
como a ideia de fidelidade à obra literária. Em quinta etapa, aborda a concepção da Dora fílmica, o uso de
cores e canções, a descontextualização e a condensação de capítulos do livro como fortalecimento da
essência de sua personalidade. Por fim, salienta as afinidades entre romancista e cineasta e evidencia a
concepção do filme Capitães da Areia como extensão, tradução, interpretação e, em alguns momentos,
fidelidade da descrição da personagem e de suas vivências.
PALAVRAS-CHAVE: DORA, LITERATURA, CINEMA.
ABSTRACT: This paper comparatively analyzes the character Dora of the novel Captains of the Sands
(1937), by Jorge Amado, with the same character of the film namesake by Cecília Amado (2011). At first, the
work draws a historical, political and cultural development of Brazil in the early decades of the twentieth
century, highlighting Gilberto Freyre’s notion of mestizaje and the novelist’s role in that context. At second
and third, it discourses about the Captains of the Sands and the female figure of literary Dora. Fourth, the
article discusses the adaptation theories of Robert Stam and Gerald Mast, that relativize the hierarchy of
literature over cinema, and the idea of loyalty to the literary work. At fifth, it details the concept of filmic
Dora, the usage of color and song, the decontextualization and the condensation of the book's chapters to
strengthen the essence of her personality. Lastly, it points out the similarities between novelist and film
director and demonstrates the conception of the film Captains of the Sands as an extension, translation,
interpretation and, in a few moments, loyalty to the description of the character and her experiences.
KEY-WORDS: DORA, LITERATURE, CINEMA.
“Eles viveram a aventura da liberdade.” (Jorge Amado)
1 O Brasil histórico, político e cultural nas primeiras décadas do século XX
Ainda engatinhando em termos de urbanização e modernização, o Brasil, no início
do século passado viveu momentos intensos de greves sindicalistas e de insatisfação
popular. Já na Primeira República (1889-1930),1 havia organização e mobilização de
* Jornalista graduada pela Universidade Estácio de Sá de Santa Catarina, pós-graduanda em Estudos de
Tradução pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e graduanda do curso de Letras da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Email: [email protected]
1
Nomenclatura utilizada por Boris Fausto no livro História do Brasil. Encontra-se com mais frequência a
denominação República Velha. trabalhadores. Segundo dissertação de Cristiano Cruz Alves, havia repressão “contra os
vagabundos, prostitutas, mendigos, capoeiristas, ou seja, todos aqueles que não
respeitavam os limites da sua condição de classe, étnica ou de gênero, e que tentassem
romper de alguma maneira com certos preceitos de uma ‘boa sociedade’” (2008, p. 24). Na
década de 20, os atos repressivos ampliaram-se a estrangeiros, anarquistas e comunistas.
Após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), a classe média passou a participar da cena
política brasileira, levantando a bandeira de um liberalismo autêntico, capaz de transformar
a República Oligárquica em República Liberal. Em contrapartida às ideias liberais, é
fundado o Partido Comunista Brasileiro (PCB), em 1922, que esteve na ilegalidade em boa
parte da sua existência. Os comunistas valorizavam o Estado para a formação de uma
sociedade socialista. Entre as suas reinvindicações estavam a reforma agrária e a luta
contra o imperialismo. Havia carência de direitos e organização para a classe trabalhadora
urbana, o que significou um prato cheio para a política trabalhista de Getúlio Vargas, nos
anos 30. No mesmo ano da fundação do PCB, ocorreu o primeiro Movimento Tenentista
no Forte de Copacabana. Segundo Boris Fausto, “antes de 30, o tenentismo foi um
movimento de rebeldia contra o governo da República; depois de 1930, os ‘tenentes’
entraram no governo e procuraram lhe dar um rumo que promovesse os seus objetivos”
(1999, p. 307).
A Revolução de 30, chefiada por Vargas, veio seguida da crise financeira mundial
de 1929 e a ascensão do Rio Grande do Sul no plano federal, devido ao acordo do então
governador, Getúlio Vargas, entre o Partido Republicano Rio-grandense e os libertadores.
Representou, inicialmente, a aliança entre a classe média, os tenentes e as oligarquias
rurais decadentes. Foi o fim da política “Café-com-Leite”, que previa a alternância no
poder dos Estados de São Paulo (produção de café) e Minas Gerais (produção de leite). O
país começa um incipiente processo de industrialização.
Diferente do otimismo anárquico modernista dos anos 20, que almejava
“descolonizar” a cultura brasileira e construir uma identidade nacional por meio da
antropofagia – o “canibalismo” da arte estrangeira –, “os romancistas de 30”, preocupados
com a transformação da realidade brasileira, descortinaram a “consciência do
subdesenvolvimento” (GONZAGA, 1997, p. 210). Para Alfredo Bosi, “o novo sistema
cultural posterior a 30 não resulta em cortar linhas que articulam a sua literatura com o
Modernismo. Significa apenas ver novas configurações históricas a exigirem novas
estruturas artísticas” (1984, p. 433). Bosi salienta ainda que essa geração literária ensinou
que “o peso da tradição não se abala com fórmulas mais ou menos anárquicas nem com
regressões literárias ao Inconsciente, mas pela vivência sofrida e lúcida das tensões que
compõem as estruturas materiais e morais do grupo em que se vive” (1984, p. 432). A
tentativa de mudança social esteva pautada, inicialmente, em um viés pessimista e,
posteriormente, esperançoso por uma revolução elitista (integralismo) ou operáriocamponesa (comunismo). Antônio Candido analisa que as décadas de 1920 e 1930
representaram “harmoniosa convivência e troca de serviços entre literatura e estudos
sociais” (2006, p. 142). Adiante o autor ressalta a influência do movimento modernista nos
romancistas de 30.
A destruição dos tabus formais, a libertação do idioma literário, a paixão pelo
dado folclórico, a busca do espírito popular, a irreverência como atitude: eis
algumas contribuições do Modernismo que permitiriam a expressão simultânea
da literatura interessada, do ensaio histórico-social, da poesia libertada. (ano, p.
142 e 143)
Nesse decênio, destacaram-se ensaios de cunho histórico-sociológico que
denotavam uma nova interpretação do país. Entre os ensaístas da época, atribui-se
notoriedade a Sérgio Buarque de Hollanda, Caio Prado Júnior e Gilberto Freyre. Este
último, “que parece hoje um sociólogo conservador, significou então uma força poderosa
de crítica social, com a desabusada liberdade das suas interpretações” (CANDIDO, 2006,
p. 142). Freyre analisou como negro, índio e colonizador se ajustavam e formavam uma
sociedade entre as condições tropicais e a economia latifundiária do Brasil. No livro CasaGrande & Senzala, salientou a mestiçagem como fator predominante do domínio
português, no que diz respeito à multiplicação da população para preencher a colônia, de
um lado, e à geração de uma raça adaptada ao clima, de outro. O autor escreveu que o
colonizador
não só conseguiu vencer as condições de clima e de solo desfavoráveis ao
estabelecimento de europeus nos trópicos, como suprir a extrema penúria de
gente branca para a tarefa colonizadora unindo-se com mulher de cor. Pelo
intercurso com mulher índia ou negra multiplicou-se o colonizador em vigorosa
e dúctil população mestiça, ainda mais adaptável do que ele puro ao clima
tropical. (2005, p. 74).
Para Vianna Moog (2006), que analisou o Brasil em sete regiões culturais, o
arquipélago cultural, o Nordeste é o ambiente das meditações de Freyre. Segundo o
escritor o que predomina no grupo cultural nordestino são
os contrastes golpeantes entre o sobrado e o mocambo, sobrevivência citadina do
contraste rural entre a casa-grande e a senzala, entre o rico e o pobre, entre o
branco e o preto, situados nos dois extremos de uma alucinante diversidade de
raças, tudo está a indicar que essa literatura não podia deixar de ser uma
literatura social. Social e de classe. Polimística e panfletária, condoreira e
revolucionária. De senhores de engenho e de proletários (...). De solidariedade
com os párias e oprimidos (...). E a um tempo aristocrática e popular, citadina e
sertaneja. (2006, p.28).
A ideia utópica de democracia social, proposta por Freyre, era fruto da ampliação
do “capital-homem” (2005, p.70), em decorrência dos atributos portugueses de mobilidade
e miscibilidade. Esta última característica relacionada à sensualidade é encontrada com
forte apelo nas obras de Jorge Amado, “fecundo contador de histórias regionais” (BOSI,
1996, p. 457). O próprio autor definiu-se como “apenas um baiano romântico e sensual”
(AMADO apud BOSI, 1996, p.457). É dentro desse contexto social, político e literário que
Amado, oriundo de uma fazenda no sul da Bahia, economicamente decadente, filia-se ao
PCB, em 1932. O autor, que havia se formado em Direito, no Rio de Janeiro, e trabalhado
como jornalista em uma editoria policial, distingue-se por escrever prosa de ficção
encaminhada para o “realismo bruto” (BOSI, 1996, p. 433). As suas primeiras obras são
uma tentativa de criação de um “romance proletário”, que aborda tanto a dificuldade de
camponeses e marginais que, conscientes das suas condições miseráveis, passam a agir
politicamente. Há o retrato da linha intransponível entre os desfavorecidos e a burguesia.
Capitães da Areia é escrito com esse viés.
2 Capitães da Areia, menores abandonados que viviam em um trapiche na zona
portuária de Salvador
Publicado em 1937, o livro Capitães da Areia procura ser um reflexo da miséria e
exclusão social do emergente Brasil do Estado Novo. Em confluência com a desigualdade
social brasileira, Jorge Amado escolheu os menores abandonados da cidade de Salvador,
no início da década de 1930, para narrar, dando maior visibilidade, o cotidiano desses
considerados “delinquentes” pelo Código de Menores de 19272.
Os Capitães da Areia, “vestidos de farrapos, sujos, semi-esfomeados, agressivos,
soltando palavrões e fumando pontas de cigarro, eram, em verdade, os donos da cidade, os
2
Instituído em 12 de outubro, previa que os menores de 14 anos declarados penalmente irresponsáveis eram
encaminhados a reformatórios e sujeitos a medidas reeducativas, através de rígida disciplina, sob vigilância
do Juiz. A atitude delinquente dessas crianças e adolescentes, segundo a leitura do Código da época, era
decorrente “da omissão e da transgressão da família em seus direitos básicos” (ALMEIDA,ANO, P.5).
que a conheciam totalmente, os que totalmente a amavam, os seus poetas” (AMADO,
1997, p.21). Pedro Bala, o líder, com “o cabelo loiro voando, a cicatriz vermelha no rosto,
era de uma agilidade espantosa” (AMADO, 1997, p. 21). Moradores de um trapiche
abandonado, na zona do areal, os meninos eram invisíveis aos olhos da sociedade enquanto
viviam de biscates, jogavam capoeira ou pediam esmolas aos frequentadores das feiras
livres e dos mercados. No entanto, ao roubarem alguém ou alguma casa, o corpo policial
era acionado, iniciando a luta para “reformá-los” em uma instituição de educação, onde os
meninos podiam respirar “paz e trabalho” e serem “tratados com o maior carinho”, como
escreveu o diretor do Reformatório de Menores da época, no Jornal da Tarde (AMADO,
1997, p. 9). Este mesmo jornal denominou os Capitães da Areia como
crianças ladronas (...), grupo de meninos assaltantes e ladrões que infestam a
nossa urbe (...), bando de rapina (...), crianças que, naturalmente devido ao
desprezo dado à sua educação por pais pouco servidos de sentimentos cristãos, se
entregaram no verdor dos anos a uma vida criminosa. (1997, p. 3).
Outras figuras marginais como mães-de-santo (Don’aninha), capoeiristas (Queridode-Deus), padres negros (José Pedro), putas (Dalva) e doqueiros ganham respaldo, ainda
que tangencialmente, na tentativa amadiana de criticar a sociedade excludente e
conservadora. A epidemia da bexiga (varíola), que assolava a época e é apresentada na
obra, atingia principalmente os habitantes da cidade baixa, zona portuária da capital
baiana, onde viviam esses menos favorecidos.
3 Dora, a capitã da areia de Jorge Amado
É em decorrência da bexiga que Dora fica órfã e desce para a cidade com o seu
irmão Zé Fuinha para procurar trabalho. Neta de italiano com uma mulata, a menina dos
seus 13 para 14 anos, era bonita, tinha “olhos grandes, cabelo muito loiro” (AMADO,
1997, p. 159), e os “seios já haviam começado a surgir sob o vestido” (AMADO, 1997, p.
157). A partir do contato com o Professor e o João Grande, meninos do bando de Bala, e
pelo insucesso na busca de um ganha-pão, ela se insere no grupo dos Capitães da Areia.
Sua chegada ao bando, porém, é tensa, pois desperta, inicialmente, a libido dos meninos,
que viam as mulheres somente como objeto de satisfação sexual. Há briga entre eles para
ter relações com Dora, mas tanto o Professor, já apaixonado pela menina, quanto João
Grande a defendem. Bala chega e diz que ela não pode ficar. Passam-se os dias, e a menina
começa a representar, no imaginário dos meninos, um elo maternal e familiar, de
aconchego e proteção. Quando todos estão reunidos, em uma noite chuvosa, para ouvir as
histórias que o Professor contava, Amado descreve esse sentimento: “olhavam o rosto sério
de Dora, rosto de quase uma mulherzinha que os fitava com carinho de mãe (...) a olharam
com amor. Como crianças olham a mãe muito amada” (1997, p. 171).
A partir do
momento em que decide vestir-se como um Capitão da Areia, a menina realiza um ritual
de passagem que assinala a sua inclusão definitiva no grupo e “a saída de sua condição de
menina-mulher para a de menino-adulto” (ALMEIDA, 2012 p. 7). Isso sem perder a
feminilidade, ainda que tenha aprendido a lutar capoeira, manusear a navalha e roubar.
Nesse sentido, ela torna-se irmã dos meninos.
Andava com eles pelas ruas, igual a um dos Capitães da Areia. Já não achava a
cidade inimiga. Agora a amava também, aprendia a andar nos becos, a pongar
nos bondes, nos automóveis em disparada. Era ágil como o mais ágil. (...) Dizia
o professor:
– Era valente como um homem... (AMADO, 1997, p. 178 e 179)
Para Pedro Bala, Dora significou o amor verdadeiro, a noiva e a esposa. Ela
contribuiu para o crescimento intelectual e amadurecimento pessoal do líder. A relação
com a nova integrante serviu para que ele compreendesse o afeto que existe na entrega
sincera e cúmplice ao outro, distante dos atos sexuais coléricos aos que era acostumado. “É
a partir dessa descoberta, que Pedro Bala começa a entender que, muito além da violência,
há outras formas de demonstrar suas insatisfações com a sociedade, ou de ajudar os seus
amigos e companheiros”, afirma Luiz de Melo Diniz (2009, p. 10).
Em uma briga com o grupo marginal inimigo, Dora e Pedro são pegos. Ele vai para
o reformatório; ela, para o orfanato, onde tentam incuti-lhe as boas maneiras de uma moça.
Quando Bala foge, ele vai buscá-la. Dora está na enfermaria com febre e, mesmo assim,
vai com os meninos. À noite, no trapiche, a mãe-de-santo Don’aninha lhe faz uma reza de
cura. Ela entrega-se a Pedro e amanhece sem vida. Particularmente, esse é um dos
momentos mais tocantes do livro. Amado escreve,
Ela parecia não sentir a dor da posse. Seu rosto acendido pela febre se enche de
alegria. Agora a paz é só da noite, com Dora está a alegria. Os corpos se
desunem. Dora murmura:
– É bom... Sou tua mulher.
Ele a beija. A paz voltou ao rosto dela. Fita Pedro Bala com amor.
– Agora vou dormir – diz.
Deita ao lado dela, segura sua mão ardente. Esposa.
A paz da noite envolve os esposos. O amor é sempre doce e bom, mesmo quando
a morte está próxima. Os corpos não se balançam mais no ritmo do amor. Mas
no coração dos dois meninos não há mais nenhum medo. Somente paz, a paz da
noite da Bahia. (1997, p. 210).
Após a morte de Dora, os Capitães da Areia se desmembram e cada qual segue
um rumo diferente. É importante notar que a paz da noite descrita pelo autor, é a mesma
paz que os meninos viam nos olhos da menina. E, assim, ela vira uma estrela imaculada.
Que importa tampouco que os astrônomos afirmem que foi um cometa que
passou pela Bahia naquela noite? O que Pedro Bala viu foi Dora feita estrela,
indo para o céu. Fora mais valente que todas as mulheres, mais valente que Rita
Palmeirão, que Maria Cabaçu. Tão valente que antes de morrer, mesmo sendo
uma menina, se dera ao seu amor Por isso virou uma estela no céu. Uma estrela
de longa cabeleira loira, uma estrela como nunca tivera nenhuma noite de paz da
Bahia. (AMADO, 1997, p. 214)
4 A adaptação cinematográfica como nova criação artística
Enquanto a literatura lança mão de palavras, o cinema embute sentimentos em
pequenos segundos. Vai além, contando a história por meio de luz, imagem e som. No
artigo Teoria e Prática da Adaptação: da Fidelidade à Intertextualidade, Robert Stam
parte do conceito de dialogismo (Bakhtin), de intertextualidade (Kristeva) e de
Hipertextualidade, (Genette) para transcender a premissa da fidelidade à obra literária na
adaptação cinematográfica. Ao abordar a ideia de “construção híbrida”, de Bakhtin, o
professor afirma que
a expressão artística sempre mistura as palavras do próprio artista com as
palavras de outrem. A adaptação, também, deste ponto de vista, pode ser vista
como uma orquestração de discursos, talentos e trajetos, uma construção
‘híbrida’, mesclando mídia e discursos. (2006, p.23)
Stam aponta a Hipertextualidade como princípio também relevante. Aquela
pertencente a uma das categorias proposta por Gèrard Genette em seu conceito
Transtextualidade,
refere-se à relação entre um texto, que Genette chama de ‘hipertexto’, com um
texto anterior ou ‘hipotexto’, que o primeiro transforma, modifica, elabora ou
estende. Adaptações cinematográficas, nesse sentido, são hipertextos derivados
de hipotextos pré-existentes que foram transformados por operações de seleção,
amplificação, concretização e efetivação. (2006, p. 33)
Com esse argumento, a autor elabora o pensamento de que a adaptação está inserida
em um processo infinito de “reciclagem, transformação e transmutação, sem nenhum ponto
claro de origem” (2006, p. 34). Além disso, aborda o contexto temporal, juntamente com
os discursos ideológicos e sociais relativos ao processo fílmico adaptativo.
Já que as adaptações fazem malabarismos entre múltiplas culturas e múltiplas
temporalidades, elas se tornam um tipo de barômetro das tendências discursivas
em voga no momento da produção. Cada criação de um romance para o cinema
desmascara facetas não apenas do romance e seu período e cultura de origem,
mas também do momento e da cultura da adaptação. (STAM, 2006, p. 48)
Gerald Mast salienta que um filme baseado em uma obra literária está mais
relacionado à noção de interpretação do texto original do que propriamente à adaptação.
Sob esse aspecto os artistas devem preocupar-se com a “plenitude e integridade das suas
interpretações artísticas, não com suas lealdades ao original” (1982, p. 280).3 Ao analisar a
relação entre forma e conteúdo, o autor coloca que
uma adaptação cinematográfica de um importante trabalho literário tem a
obrigação de ser fiel ao espírito (...) do texto original, ao mesmo tempo, ser um
trabalho persuasivo e unificado em suas próprias condições. (...) Se forma e
conteúdo estão inextricavelmente unidos nos mais importantes e densos
trabalhos da arte literária, como se pode preservar conteúdo idêntico em uma
nova forma? (1980, p. 280)4
Para Mast, a literatura está mais relacionada a prazeres estéticos de caráter
reflexivo, contemplativo e intelectual, enquanto o cinema aos de ordem mais passional,
sensorial e estimulante. Segundo ele,
A eliminação de palavras reduz ironias e sutilezas intelectuais, tonalidades e
detalhes psicológicos. Então, em qualquer versão fílmica de um texto literário, é
preciso tirar algo – palavras – e colocar algo diferente no lugar – sons e imagens.
(1982, p. 281)5
É a partir dessas duas linhas teóricas de adaptação que desenvolvo o argumento
comparativo entre a personagem a Dora de Jorge Amado e a personagem Dora de Cecília
Amado.
5 Dora, a capitã da areia de Cecília Amado e considerações finais
3
The wholeness and integrity of their artistic interpretations, not their loyalty to the original. [tradução
minha].
4
A film adaptation of an important literary work has an obligation to be faithful to the spirit (…) of the
original text and, at the same time, to be a cogent and unified work in its own terms. If form and content are
inextricably wedded in the greatest and densest works of literary art, how can one preserve the identical
content in a new form? [tradução minha].
5
The elimination of words reduces intellectual ironies e subtleties, psychological shading and detail. (…) So
too, any filmed versions of a literary work must take something out – words – and put something else in –
sights and sounds. [tradução minha]. Cecília Amado provavelmente tenha visto na não atriz Ana Graciela as feições e os
jeitos da Dora construída pelo o seu avô, Jorge Amado. A garota conseguiu traduzir a
essência da força da personagem na delicadeza e na doçura. Com sua aparição no filme, as
cenas na casa abandonada do trapiche começam a ter uma tonalidade dourada, o que
remete a ideia do calor do aconchego e do afeto. A música-tema de Dora, composta por
Carlinhos Brown enaltece essas qualidades tanto pela letra quanto pela suavidade com que
é cantada. A letra diz: “Dora, dourada, dos olhinhos tão bonitos, quem me dera dourar o
sol”. Assim, como Dora, Ana está no início da adolescência. É possível perceber o relevo
dos pequenos seios sob o vestido branco.
Figura 1 – A liberdade de Dora quando ela se une ao grupo dos Capitães da Areia Fonte:
Capitães da Areia.
Por mais que a Dora fílmica seja igualmente branca, não possui cabelos loiros, o
que pode desviar da proposta de Jorge se se analisar a perspectiva da mestiçagem, na
contrapartida de Freyre e sua visão de democracia racial. Assim como Pedro Bala
(interpretado por Jean Luis Amorim), a menina distinguia-se dos outros do bando
justamente pela cor do cabelo e pela pele clara. A descrição física dos dois líderes (pólo
feminino e pólo masculino) remete a possibilidade de trânsito entre a cidade alta (rica) e a
cidade baixa (pobre) sem despertar preocupação a ninguém, o que auxiliava os roubos. Os
dois personagens, dessa maneira, representam a ligação entre esses mundos, nos quais a
cor da pele e o tipo de cabelo excluíam ou incluíam uma pessoa em um grupo social.
Figura 2 – Dora fílmica, a menina de cabelos negros Fonte: Abraccine.
Dora ama Pedro e a coragem que este tem. No livro, esse sentimento é relatado no
final do capítulo em que ela é tida como mãe dos meninos.
Dora sorriu para ele, era o seu herói, uma figura que ela nunca tinha imaginado,
mas que um dia haveria de imaginar. Amava-o como a um filho sem carinho, um
irmão corajoso, um amado tão belo como não havia outro (AMADO, 1997, p.
176)
Para mostrar essa admiração, Cecília Amado muda a sequência da história,
trazendo o capítulo no qual a mãe-de-santo pede aos Capitães da Areia que recuperem a
estátua de Ogum apreendida pela polícia. No livro, esse momento é anterior ao surgimento
de Dora. No entanto, no filme, a menina está presente no pedido de Don’aninha. Essa cena
fortalece a conexão entre Pedro e Dora pelo olhar que ele lança a ela antes de se arriscar na
recuperação da imagem sacra. A idealização heroica por Pedro aparece, também, na
tomada em que o Professor (interpretado por Robério Lima) desenha o rosto de Dora, ao
mesmo tempo em que relata a vida do pai de Bala. “DORA: Então, Pedro é feito o pai, né,
Professor? PROFESOR: Ô, é filho, né!; DORA: Não, eu digo, assim, herói” (2011).6 E
lança o olhar ao longe com um sorriso.
Figura 3 – Dora cuida do ferimento do Professor, adquirido em sua defesa Fonte: Kalá.
Quando Dora veste-se de menino, há um jogo de cenas feito pela diretora entre
tomadas rápidas dos meninos jogando capoeira e os passos da menina na troca de roupa,
com o zoom da câmera em determinadas partes do corpo. A música-tema dá um tom de
roda de capoeira: “capitão chegou com uma faca na mão capitão, capitão vira satisfação
capitão jogou capoeira no chão... capitão do asfalto, capitão sem meia, capitão não nega
capitão de areia” (2011)7. “O menino-Dora” joga capoeira com Pedro e vai para a cidade
com os garotos para roubar, mantendo-se sempre feminina e meiga. Costura a camisa do
6
7
Diálogo retirado do filme a partir dos 54’11’’.
Música composta por Carlinhos Brown para o filme.
Gato e acarinha Sem-Pernas. Toda vez que Dora e Pedro se olham há o encontro do amor.
Pode-se dizer que Ana Graciela e Jean Luis possuem sintonia quando contracenam.
Figura 4 – Dora vestindo-se de Capitão da Areia Fonte: Veja TV.
Após apanhar do grupo inimigo, Pedro está sentado no trapiche olhando o horizonte
do mar. Dora chega e o consola. Ela o beija, e os dois correm para os escombros da casa
abandonada, trocando olhares. A música de Brown dá o tom de carinho e suavidade dos
enamorados.
Figura 5 – Dora consola Pedro após ele ter apanhado do grupo inimigo. Fonte: Cinemovies.
Quando os Capitães da Areia se vingam, são pegos pela polícia. Bala vai para o
reformatório; Dora, para o orfanato. Padre José Pedro a visita e avisa que os capitães irão
buscá-la. Quando a levam, ela já está com a febre muito alta. Don’aninha faz a reza, na
tentativa de curá-la. Zé Fuinha (interpretado por Felipe Duarte) se aproxima da irmã, ela
lhe olha.
Depois, Pedro Bala pega na mão dela, com lágrimas nos olhos. Aparece a cena da
felicidade e da liberdade dos dois juntos correndo pela beira da praia em um dia
ensolarado. As vozes em off dos amantes conversa: “PEDRO: o que você quer ser quando
crescer?; DORA: Eu quero ser mulher de Pedro Bala”8.
À noite, Pedro e Dora estão deitados, ela vira para ele e diz levando a mão dele em
direção ao seu peito. “DORA: Pedro, agora posso ser tua mulher. PEDRO: Para com isso,
Dora, tu tá quente, tem que descansar. DORA: Tem que esperar mais não, vem, meu
Pedro.”9
E os dois se amam. A canção Doce do mar, de Arnaldo de Antunes e Carlinhos
Brown, direciona o sentimento da cena. O músico canta: “Doce do mar, vento; contigo
mais dentro; antigo mais que tudo; mesmo que pense o doce pensar; doce do mar, o sal;
doce do mar, você; você do mar doce; ácido mais que tudo; mesmo que sonhe o doce
sonhar; doce do mar, o sal” (2002). 10
Amanhece e Bala vê a sua amada morta. Ele grita pelo nome de Dora. Surge uma
cena dos dois em paz em um barco, cabelos ao vento. Don’aninha joga uma pomba branca
para o céu. E Brown canta a última frase da canção “doce do mar ... o sal” (2002). Os
meninos, em silêncio no trapiche, observam o horizonte; no mar, uma pessoa solitária
navega em um barco à vela. O Professor conta a Zé Fuinha o destino de cada capitão da
areia. É ele quem diz que Dora virou uma estrela.
ZÉ FUINHA: A Dora não pode ser mais nada, não, né, Professor?
PROFESSOR: Mas Dora já é. Quando morre gente valente que nem ela, vira
estrela. Daquela bem grande que se movimenta de um lado pro outro, não tem
tempo nem nada. É só você olhar que você vê. (2011).11
FIGURA 6 – Pedro Bala e Professor sofrem a morte de Dora. Fonte: Veja TV.
8
Diálogo retirado do filme a partir dos 73’29’’. Diálogo retirado do filme a partir dos 83’37’’. 10
Doce do mar está no álbum Um som, de Arnaldo Antunes, lançado em 2002.
11
Diálogo retirado do filme a partir dos 89’17’’.
9
A partir desse estudo, é possível analisar que, ainda que a Dora de Cecília Amado
difira-se, em alguns traços físicos, da de Jorge Amado, a essência da feminilidade, da
sensibilidade e da doçura mantém-se. Mesmo órfã, jogada ao mundo da miséria, a menina
é valente, determinada e carinhosa. Foi justamente com o intuito de fidelidade ao essencial
do romance que a diretora escolheu não atores de ONGs da periferia baiana, o mesmo
universo dos Capitães da Areia, para atuarem no filme. A cineasta, nos extras do DVD do
filme, relata que
eu resolvi ser fiel ao espírito do livro, ao seu lirismo, quais os sentimentos que o
Jorge Amado queria contar, que ele te embarcasse no romantismo na aventura na
liberdade que conta essa história. Acreditei que, com a possibilidade que o
audiovisual tem de ampliar a poesia do livro e interpretado por jovens baianos do
universo dos capitães da areia, seria arrebatador. (2011).
Ao falar da composição da trilha para Dora, também nos extras do DVD, Carlinhos
Brown lembra que
não era difícil de fazer uma música que tenha um caminho todo harmônico, doce,
infantil e que cai para algo maternal. É uma criança, mas demonstra todo o poder
do matriarcado, dessa filha que cuida da mãe, que cuida do filho da mãe, que
cuida do filho dos outros. Dora representou a força da mulher brasileira que
nunca deixou de ser criança e nunca deixou de ser mãe. (2011).
Dentro do proposto e da minha análise, o filme de Cecília retrata, com organicidade
e verdade, o antagonismo entre abandono e liberdade, bem como as nuances da
feminilidade presentes na obra de Jorge Amado. Desde a câmera que aproxima o público
dos personagens até a composição da trilha, a essência da obra está inerente na extensão,
tradução, interpretação e, em alguns momentos, fidelidade ao olhar do avô pela visão da
neta.
REFERÊNCIAS
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NUNES, Luciana Hoffmann. A CAPITÃ DA AREIA