GEORGENOR DE SOUSA FRANCO FILHO
Coordenador
TEMAS ATUAIS
DE DIREITO
AUTORES
Alexandre Manuel Lopes Rodrigues
Antônio José Mattos Neto
José Henrique Mouta Araújo
Luzia do Socorro Silva dos Santos
Georgenor de Sousa Franco Filho
Marcelo Freire Sampaio Costa
Ivanilson Paulo Correa Rayol
Marcos Alberto Pereira Santos
José Claudio Monteiro de Brito Filho
Pastora do Socorro Teixeira Leal
GZ
EDITOR A
Rio de Janeiro
2013
1ª edição – 2013
© Copyright
Alexandre Manuel L. Rodrigues, Antônio José M. Neto, Georgenor de Sousa F. Filho,
Ivanilson Paulo C. Rayol, José Claudio M. B. Filho, José Henrique M. Araújo, Luzia do Socorro
S. Santos, Marcelo Freire S. Costa, Marcos Alberto P. Santos, Pastora do Socorro T. Leal
CIP – Brasil. Catalogação-na-fonte.
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
P495d
T278
2. ed.
Temas Atuais de Direito / Georgenor de Sousa Franco Filho, coordenador; autores: Alexandre
Manuel Lopes Rodrigues... [et al.] – 1ª ed. – Rio de Janeiro: LMJ Mundo Jurídico, 2013.
216 p. ; 25 cm.
ISBN 978-85-62027-21-5
1. Direito – Coletâneas. I. Franco Filho, Georgenor de Sousa, 1952 –. II. Rodrigues, Alexandre
Manuel Lopes.
13-00484
CDU: 34
ISBN 978-85-62490-49-1
O titular cuja obra seja fraudulentamente reproduzida, divulgada ou de qualquer forma utilizada poderá requerer a apreensão dos exemplares reproduzidos ou a suspensão da divulgação, sem prejuízo da
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As reclamações devem ser feitas até noventa dias a partir da compra e venda com nota fiscal (interpretação do art. 26 da Lei nº 8.078, de 11.09.1990).
Reservados os direitos de propriedade desta edição pela
EDITORA GZ
Travessa do Paço nº 23, sala 1.208 – Centro
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Impresso no Brasil
Printed in Brazil
APRESENTAÇÃO
Constitui-se esta obra da primeira coletânea que reúne estudos jurídicos dos professores do Programa
de Mestrado em Direito da Universidade da Amazônia (UNAMA). Os temas são variados, todos dentro
da área do Direito em geral, escritos dentro do domínio de conhecimento de cada um de seus autores.
Demonstram, sobretudo, a atualização do conhecimento dos juristas do Norte do Brasil em relação aos
temas jurídicos contemporâneos, em estudos elaborados com afinco e denodo.
A variedade temática dos quatorze estudos constantes desta obra, no entanto, não tira seu caráter
de importância e indispensabilidade do estudo do Direito em geral. São cuidados de assuntos importantes
para a efetivação dos direitos fundamentais em nosso país, desde abordagens das modificações no direito
adjetivo, como o exame de delicadas questões ambientais e de psicologia forense, ou de responsabilidade
civil, deslocalização, arbitragem e direito à saúde.
A Universidade da Amazônia – UNAMA, que é a primeira universidade privada do Norte do Brasil,
pretende, com esta obra, dar aos estudiosos brasileiros possibilidade de acesso à produção doutrinária de
seus professores de Direito. A educação para o desenvolvimento da Amazônia é a sua missão, para o que
tem se dedicado a ser centro de referência da vasta região.
Agradeço à Magnífica Reitora, Profª Ana Célia Bahia Silva, o incentivo para a publicação desta
obra, e à Pró-Reitora de Pesquisa, Pós-Graduação e Extensão, Profª Núbia Maria Vasconcelos Maciel,
incondicional no incentivo ao Mestrado em Direito, da mesma forma como consigno minha gratidão aos
professores colaboradores e, especialmente, ao Prof. José Claudio Monteiro de Brito Filho, sempre pronto
a ajudar a UNAMA a cumprir sua missão.
Belém, abril 2013.
GEORGENOR DE SOUSA FRANCO FILHO
Coordenador do Programa de Mestrado
em Direito da UNAMA
SOBRE OS AUTORES
ALEXANDRE MANUEL LOPES RODRIGUES – Promotor de Justiça do Estado do Pará, Mestre em
Direito Penal e Doutor em Direitos Humanos pela Universidade Federal do Pará, Professor de Direito
Penal e Processo Penal da Unama – Universidade da Amazônia, Professor de Direito Penal e Processo
Penal da FACI – Faculdade Ideal.
ANTÔNIO JOSÉ MATTOS NETO – Advogado. Doutor em Direito pela Universidade de São Paulo.
Especialista em Direito Privado pela Universidade Federal do Pará. Professor de Pós-Graduação na
Universidade Federal do Pará e na Universidade da Amazônia (UNAMA). Membro da Academia Paraense
de Letras. Membro Fundador da Academia Paraense de Letras Jurídicas. Procurador da Fazenda Nacional.
GEORGENOR DE SOUSA FRANCO FILHO – Desembargador do Trabalho de carreira do TRT da
8ª Região, Doutor em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo,
Professor de Direito Internacional e do Trabalho da Universidade da Amazônia, Presidente Honorário
da Academia Nacional de Direito do Trabalho, Membro da Academia Paraense de Letras, da Sociedade
Brasileira de Direito Internacional, da International Law Association e do Centro per la Cooperazione
Giuridica Internazionale.
IVANILSON PAULO CORREA RAYOL – Doutor em Direito, Professor da Universidade da Amazônia
– Unama, Membro do Ministério Público do Estado do Pará.
JOSE CLAUDIO MONTEIRO DE BRITO FILHO – Doutor em Direito das Relações Sociais
pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor Titular da Universidade da Amazônia.
Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Pará. [email protected].
JOSÉ HENRIQUE MOUTA ARAÚJO – Pós-doutor (Universidade de Lisboa), doutor e mestre em
direito (UFPA), professor da Universidade da Amazônia – UNAMA, do Centro Universitário do Estado
do Pará – CESUPA e da Faculdade Ideal – FACI, Procurador do Estado do Pará e advogado. www.henriquemouta.com.br.
LUZIA DO SOCORRO SILVA DOS SANTOS – Mestre e doutora em Direito das Relações Sociais pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Juíza de Direito do Poder Judiciário do Estado do Pará e
Professora da Universidade da Amazônia.
MARCELO FREIRE SAMPAIO COSTA – Doutor em Direito pela PUC/SP. Mestre em Direito pela
UFPA. Especialista em Direito Material e Processual do Trabalho pela UNAMA/PA. Professor-convidado
de Pós-Graduação em diversas instituições. Membro do Ministério Público do Trabalho.
VIII
temas atuais de direito
MARCOS ALBERTO PEREIRA SANTOS – Mestre em Direito pela Universidade da Amazônia e
Tabelião e Oficial do Cartório do Único ofício da Comarca de Pacajá – PA
PASTORA DO SOCORRO TEIXEIRA LEAL – Especialista em Direito Civil pela Universidade da
Amazônia, Mestra em Direito Público pela Universidade Federal do Pará (1998). Doutora em Direito das
Relações Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP (2001) e Pós-Doutora pela
Universidade Carlos III, de Madrid, Espanha (2006). Desembargadora do Trabalho do TRT da 8ª Região,
Professora da Universidade Federal do Pará/UFPa e da Universidade da Amazônia/UNAMA, nos cursos
de graduação e de pós-graduação em Direito.
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO...................................................................................................................V
SOBRE OS AUTORES............................................................................................................VII
1. O PSICOPATA FRENTE AO DIREITO PENAL
Alexandre Manuel Lopes Rodrigues . . .....................................................................................
1
2. A PROTEÇÃO JURÍDICA DO MEIO AMBIENTE CULTURAL AMAZÔNICO
Luzia do Socorro Silva dos Santos..........................................................................................17
3. DESLOCALIZAÇÃO INTERNACIONAL E INTERNA
Georgenor de Sousa Franco Filho..........................................................................................29
4. A RESPONSABILIDADE CIVIL COMO CATEGORIA DE CONCRETIZAÇÃO
DE DIREITOS FUNDAMENTAIS: UMA PERSPECTIVA JURISPRUDENCIAL
Pastora do Socorro Teixeira Leal...........................................................................................39
5. DIREITOS PATRIMONIAIS DISPONÍVEIS E INDISPONÍVEIS À LUZ DA LEI
DA ARBITRAGEM
Antonio José de Mattos Neto ................................................................................................49
6. DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE: PROPONDO UMA CONCEPÇÃO QUE
RECONHEÇA O INDIVÍDUO COMO SEU DESTINATÁRIO
José Claudio Monteiro de Brito Filho. . ...................................................................................63
7. ASPECTOS RELATIVOS À FASE INICIAL DO CUMPRIMENTO DA DECISÃO
DE QUANTIA NO PROJETO DO NCPC
José Henrique Mouta Araújo ................................................................................................. 75
8. TÓPICOS TEMÁTICOS EM DIREITOS FUNDAMENTAIS
Alexandre Manuel Lopes Rodrigues. . ......................................................................................83
9. A EFICÁCIA DOS DIREITOS SOCIAIS FUNDAMENTAIS
Ivanilson Paulo Corrêa Raiol.................................................................................................121
10. LINEAMENTOS DA TÉCNICA DA PONDERAÇÃO NO PROCESSO
DO TRABALHO
Marcelo Freire Sampaio Costa...............................................................................................137
11. A CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS LABORAIS À SAÚDE
E À SEGURANÇA DO TRABALHADOR PELA VIA DA ATRIBUIÇÃO DO ÔNUS
DINÂMICO DA PROVA PERICIAL AO EMPREGADOR
Pastora do Socorro Teixeira Leal........................................................................................... 151
X
temas atuais de direito
12. LEITURA SISTEMÁTICA, MENOR ONEROSIDADE E PENHORA DE PECÚNIA
EM EXECUÇÃO PROVISÓRIA
Marcelo Freire Sampaio Costa...............................................................................................161
13. FUNÇÃO SOCIOAMBIENTAL DA PROPRIEDADE PÚBLICA E A REGULARIZAÇÃO
FUNDIÁRIA NO ÂMBITO DA AMAZÔNIA LEGA
Luzia do Socorro Silva dos Santos / Marcos Alberto Pereira Santos.......................................173
14. A EFICÁCIA DIRETA E IMEDIATA DOS DIREITOS SOCIAIS FUNDAMENTAIS
ÀS RELAÇÕES PRIVADAS
Ivanilson Paulo Corrêa Raiol.................................................................................................191
2
temas atuais de direito
cionadas com a utilização dos meios em consonância com o fim a ser atingido (consequências da relação meio e fim). Assim, o agente põe em movimento, segundo o plano
estabelecido, o processo causal, com o fito de alcançar o objetivo proposto. Segundo
a concepção finalística, a vontade de realização apenas ocorre quando todas as etapas
acima estão cumpridas.
Para o Direito Penal somente comete crime quem pratica uma conduta (ação
ou omissão) típica, ilícita e culpável (Teoria Finalista da Ação). O primeiro elemento da definição refere-se ao fato típico, que é aquele previsto na legislação penal
como proibido (exemplo: “matar alguém” – Art. 121 do Código Penal). Na verdade, não basta, apenas, que o fato esteja previsto na lei penal, há, ainda, a necessidade de que o agente pratique uma conduta (ação ou omissão), que haja um resultado,
que este resultado esteja ligado à conduta do agente (relação de causalidade) e, por
fim deve existir a tipicidade (adequação da conduta ao tipo – modelo – previsto na
legislação penal).
O segundo elemento da definição de crime é a ilicitude, também chamada de antijuridicidade. Essa nada mais é do que a contrariedade do comportamento do agente ao
ordenamento jurídico e se faz por exclusão. Isto é, caso o agente não esteja protegido
por uma causa que exclua a ilicitude de seu comportamento ele responderá pelo fato
delituoso. Assim, se alguém dispara um tiro na cabeça de outra pessoa e a mata, prima
facie, tem-se um crime de homicídio (art. 121 do CP), mas se o autor agiu em legítima
defesa (causa de exclusão da ilicitude), não há crime. As causas que afastam a ilicitude
são: legitima defesa, estado de necessidade, estrito cumprimento do dever legal e exercício regular de direito.
Por fim, a culpabilidade é o terceiro elemento da definição de crime e deve ser entendida como o juízo de reprovação pessoal que recai sobre o agente de um fato típico e
antijurídico ou ilícito, por ter agido de forma contrária ao Direito, quando podia ter atuado
em conformidade com a vontade do ordenamento jurídico. O que se deve apurar é se o ser
humano de acordo com as circunstâncias concretas podia e devia agir de modo diverso,
direcionando a sua vontade conforme o direito, e não infringindo a norma penal, pois,
dessa forma, nasce a possibilidade de reprovação (censurabilidade) que recairá sobre o
autor do fato punível (por estar ligado a um fato típico e antijurídico), concluindo-se pela
existência ou não da culpabilidade.
Hans Welzel já afirmava que a culpabilidade é uma qualidade negativa da ação
do agente e não está localizada na cabeça das pessoas que julgam a ação.2 Não se deve
confundir “juízo de censura” com “censura” propriamente dita. Censurável é a conduta
do agente (característica negativa intrínseca à conduta do agente). Juízo de censura é
a avaliação que se faz da conduta do agente, que poderá ser tida como censurável ou
não. Essa é a avaliação que é realizada pelo aplicador da lei (assim, está localizada na
cabeça da sociedade, aqui representada pelo Estado-juiz). Logo, a censura está dentro
do conceito de crime também, assim como a tipicidade e a antijuridicidade, pois a ação
2
WELZEL, 1964, p. 81.
o psicopata frente ao direito penal ....
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alexandre manuel lopes rodrigues
3
é reprovável em si mesma, apenas o seu juízo é que se desloca, como ocorre também
nos juízos de antijuridicidade e tipicidade.3
Como se pode verificar, somente se pode reprovar o sujeito como culpável quando
ele tem a possibilidade de realizar algo voluntariamente (em relação ao sentido e ao valor da ação). A reprovação recai sobre a possibilidade de autodeterminação do agente,
no sentido de atender ao dever jurídico imposto pela norma (possibilidade de conhecer
o caráter ilícito do fato e de determinar-se segundo esse entendimento – elementos intelectuais e voluntários). Para o finalismo, o conceito de ação baseia-se no fato de que o
agente pode prever, dentro de certos limites, os possíveis desdobramentos de seu agir,
sendo capaz, assim, de atuar de forma diversa e moldar sua atividade na busca de alcançar os fins a que se destina. A culpabilidade é a reprovação da formação da vontade do
sujeito, mas o juízo de desvalor só pode ser positivo quando existe a possibilidade real e
fática (no caso concreto, no momento do fato que se está estudando, com todas as nuances e situações daquele determinado caso) de o autor atuar de outra maneira, na forma
prevista e esperada pela sociedade, na forma expressa pelo ordenamento jurídico.4
Para que uma conduta seja considerada reprovável, ou seja, para que exista a
culpabilidade, é necessário que o autor da ação tivesse podido agir de acordo com a
norma, de acordo com o direito. Assim, temos os seguintes elementos da culpabilidade:
a) imputabilidade, b) possibilidade de conhecimento da antijuridicidade do fato e c)
exigibilidade de conduta diversa.
Para que haja imputabilidade, é preciso estabelecer se o sujeito tem certo grau de
capacidade psíquica que lhe permita ter consciência e vontade dentro do que se denomina de autodeterminação, isto é, se ele tem a capacidade de entender, diante de suas
condições psíquicas, a antijuridicidade de sua conduta e de adequar essa conduta à sua
compreensão. Desse modo, essa é a condição pessoal de maturidade e sanidade mental
que confere ao agente a capacidade de entender o caráter ilícito do fato e de determinar-se segundo esse entendimento.
Não se deve olvidar que a capacidade de culpabilidade possui dois momentos
diferentes bem definidos: um cognoscitivo ou intelectual (capacidade de compreensão
do injusto) e outro volitivo (determinação da vontade). Somente os dois momentos
atuando em conjunto representam a capacidade de culpabilidade.
É indispensável, também, para o juízo de reprovação, que haja a possibilidade de
conhecimento da antijuridicidade do fato ou da ilicitude do fato: o sujeito deve conhecer,
mediante algum esforço de consciência, a antijuridicidade de sua conduta. Em outras
palavras, o agente deve conhecer ou ter a possibilidade de conhecer as circunstâncias
que são integrantes do tipo e da ilicitude (consciência da antijuridicidade).
Além da imputabilidade e da possibilidade de conhecimento da antijuridicidade,
para que a conduta seja reprovável, torna-se necessário, também, que, nas circunstâncias do fato, fosse possível exigir-se do sujeito um comportamento diverso daquele que
3
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 410.
4
JESCHECK, Hans-Heinrich. Tratado de Derecho Penal. 4ª ed. Granada: Comares, 1993, p. 560.
4
temas atuais de direito
tomou ao praticar o fato típico e antijurídico, pois há circunstâncias ou motivos pessoais que tornam inexigível a conduta diversa do agente. É a exigibilidade de conduta
diversa.
Uma das causas que excluem a culpabilidade é a inimputabilidade. Existe inimputabilidade quando houver pelo menos um dos seguintes elementos: a) doença mental (patologia mental de qualquer ordem – epilepsia, psicose, neurose, esquizofrenia,
paranoia, etc.). A dependência patológica de substâncias psicotrópicas (álcool, entorpecentes, estimulantes, etc.) também configura doença mental, sempre que retirar a
capacidade de entender ou querer. Enfermidades físicas que atingem o psiquismo também podem retirar esse entendimento (por ex.: febre decorrente de tifo, pneumonia,
etc.); b) desenvolvimento mental incompleto, devido à idade cronológica ou à falta de
convivência na sociedade (por ex.: menor de 18 anos, indígenas). Aqui a plena capacidade poderá ser atingida; c) desenvolvimento mental retardado: é o incompatível com
o estado de vida em que se encontra o agente, que está abaixo do desenvolvimento normal para aquela idade (oligofrênicos: débeis mentais, imbecis e idiotas). Nesse caso,
a plena capacidade jamais será atingida; d) embriaguez completa proveniente de caso
fortuito ou força maior (intoxicação aguda, por álcool ou qualquer substância de efeito
psicotrópico).5
Existe ainda a semi-imputabilidade, que é a perda de parte da capacidade de entendimento e autodeterminação em razão de perturbação de saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado. Consequência: não exclui a culpabilidade.
O agente será condenado, mas o juiz terá duas opções: a) reduzir a pena de um a dois
terços; b) substituir por medida de segurança.
Com relação à sanidade mental, o agente, para que seja declarado inimputável,
além de não ser mentalmente sadio ou não apresentar desenvolvimento mental completo, por motivo de doença ou de perturbação mental, deve manifestar, também, a
consequência desse distúrbio, qual seja a ausência de capacidade de discernir ou de
aquilatar seus próprios atos e de compará-los com a ordem normal (normativa) e de
autodeterminar-se (agir) no momento do fato.
2. O Psicopata
A psicopatia, como se sabe, não é considerada, tradicionalmente, uma doença
mental, mas é, sem dúvida, uma perturbação da capacidade mental, pois não é o normal
da população. A maioria dos homens, pelo menos é o que parece, não possui essa modalidade de perturbação. É notório, por outro lado, que o conceito penal de saúde ou de
perturbação mental não necessariamente deve coincidir com o conceito médico. Basta
notar que, na concepção do Direito Penal, pode-se dar para os conceitos uma abrangência até maior do que lhes daria a medicina tradicional. Aníbal Bruno leciona que, por
doença mental, devem-se entender as psicoses, mas aí devem ser incluídos os estados
5
MAURACH, Reinhart. Tratado de Derecho Penal. Barcelona: Ariel, 1962, p. 433.
o psicopata frente ao direito penal ....
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alexandre manuel lopes rodrigues
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de alienação mental por desintegração da personalidade ou por evolução deformada de
seus componentes, os distúrbios mentais nos quais o sujeito reage a problemas embaraçosos de seu mundo circunvizinho e as perturbações por processos toxicológicos ou
infecciosos.6
A doença mental abrange todas as demências, compreendendo ainda todas as psicoses, como psicose maníaco-depressiva, psicose epilética, psicose puerperal, esquizofrenia, psicose senil, psicose por traumatismo do crânio, e ainda o alcoolismo crônico
e a toxicomania grave.7
Ortodoxamente, a psicopatia, como dito, não é considerada como uma doença
mental, podendo ser considerada, em alguns casos, uma perturbação da saúde mental,
o que pode levar o perito a classificar o agente como semi-imputável. Entretanto, nem
todo psicopata pratica crimes, calcula-se que apenas 47% deles descambam para a pratica de delitos, mas existem os psicopatas que praticam crimes violentos e até repetitivos, sempre realizados com extrema frieza e sem denotar nenhum grau de remorso ou
arrependimento.
No início do século XIX, o médico francês Philippe Pinel (1745-1826), considerado o fundador da Psiquiatria, descreveu assim o seu entendimento sobre os psicopatas:
no fue poca sorpresa encontrar muchos maníacos que en ningún momento dieron
evidencias alguna de tener una lesión en su capacidad de comprensión, pero que estaban bajo el dominio de una furia instintiva y abstracta, como si fueran solo las facultades del afecto las que hubieran sido dañadas.8
Os psicopatas apresentam deficiência, não em sua capacidade de compreender,
mas apenas em suas emoções sociais. Seriam acometidos de uma “loucura sem delírio”
ou “loucura moral”.
Em 1835 o psiquiatra inglês J. C. Pritchard assim se manifestou sobre eles:
Hay una forma de perturbación mental en la que no parece que exista lesión alguna en el funcionamiento intelectual, y cuya patología se manifiesta principal o exclusivamente en el ámbito de los sentimientos, temperamento o hábitos. En casos de esta
naturaleza los principios morales o activos de la mente están extrañamente pervertidos
o depravados; el poder de autogobierno se halla perdido o muy deteriorado, y el individuo es incapaz, no de hablar o de razonar, sino de conducirse con decencia y propiedad
en los diferentes asuntos de la vida.9
Alguns profissionais utilizam o termo sociopatia para nomear esse problema, no
lugar de psicopatia. Essa denominação era muito empregada em torno de 1960 e 1970,
pois pretendia-se destacar a origem social da situação. A partir de 1968, a Sociedade
6
BRUNO, Aníbal. Direito Penal. São Paulo: Forense, 1978, p. 133.
7
PALOMBA, Guido Arturo, Tratado de psiquiatria forense civil e penal. São Paulo: Atheneu, 2003,
p. 29.
8
PRITCHARD, 1835 apud GARRIDO GENOVÉS, Vicente. Cara a cara con el psicópata. Barcelona:
Ariel, 2004, p. 16.
9
Ibid., p. 17.
6
temas atuais de direito
Americana de Psiquiatria adotou o conceito de “personalidade antissocial” para definir a psicopatia dentro dos transtornos de personalidade. Nas edições posteriores do
Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais (DSM, 1980, 1987 e
1994), tratado ao qual recorrem profissionais de todo o mundo, para diagnosticar transtornos psíquicos e comportamentais, o termo psicopatia foi substituído por “transtorno
de personalidade antissocial”.
Por outro lado, em 1903, o psiquiatra alemão Emil Kraepelin cunhou a expressão
“personalidade psicopática”, que até hoje é muito usada para descrever o problema.
2.1. Características do Psicopata
Os psicopatas são pessoas que não se importam com a vida ou a felicidade daqueles que são afetados por seus atos. Eles se opõem às normas morais básicas da sociedade, não possuindo a capacidade real de sentir afeto.
Os psicopatas podem camuflar-se de maneira perfeita. Existem os psicopatas que
não praticam fatos delituosos de grande monta, como homicídios, estupros, etc., mas
vivem nas sombras e nos lares, nas organizações públicas, nas escolas e igualmente
destroem a vida daqueles que, infelizmente, cruzam o seu caminho.
Eles simulam sentimentos que realmente não possuem, fazem crer que acreditam
nas leis e as cumprem, que gostam de seus amigos, que amam as suas esposas e filhos,
mas, na verdade, querem apenas dominar e subjugar o outro. A maior capacidade que
possui o psicopata é a de ocultar e simular propósitos e emoções que não possui. Pode
ser descrito como um camaleão humano. Ele sempre utiliza essas armas para dominar
e controlar o ambiente ao seu redor. Não sente as emoções humanas básicas, como
amor, compaixão, amizade e solidariedade, mas simula que as sente, com o objetivo de
controlar e dominar as pessoas.
Alguns psicopatas podem ser prejudiciais apenas para determinadas pessoas, em
determinados ambientes, mas em outras situações podem agir de forma aparentemente
normal. Por exemplo, em casa não manifestam problemas com a família ou com os
vizinhos ou agem de forma aparentemente normal no trabalho, cumprindo suas obrigações; mas, em situações que despertam o seu lado agressivo, revelam-se.10
Fica claro que esse tipo de indivíduo também pode ser o psicopata assassino,
o chamado “criminoso” antissocial ou delinquente, mas sua forma de agir continua
a mesma. Em casa pode ser um pai amável e um esposo carinhoso, mas, quando
sai à noite, pode transformar-se em um matador serial de prostitutas, por exemplo.
A violência não é uma condição necessária para o psicopata, mas existe uma parte
deles que se manifesta nessa forma, são os que precisam exercer sua necessidade de
domínio, mediante atos de crueldade e violência, como os violadores, os assassinos
em série, etc.
10
GARRIDO GENOVÉS, 2004, p. 20.
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2.2. Neuorociência e psicopatia
Qual o motivo de ser assim? Há uma carência muito grande na vida afetiva do
psicopata. As emoções que nós sentimos e que nos fazem sentir parte da espécie humana, como amor, carinho, piedade, não se desenvolveram nesse indivíduo. O resultado
é que, na hora de reflexionar e tomar uma decisão, ele não conta com a informação
emocional, agindo de forma equivocada e prejudicial.11
Renato M. E. Sabbatini, neurocientista, especialista em Informática Biomédica,
doutor pela Universidade de São Paulo e pós-doutorado no Instituto de Psiquiatria Max
Planck em Munique, na Alemanha, afirma que em torno de 25% dos das pessoas encarceradas em nosso País demonstram muitas características do que a psiquiatria chama
“sociopatia”, termo que ele considera melhor e mais preciso do que “psicopatia”. O
Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM), importante manual de
diagnóstico usado por psicólogos e psiquiatras – que sofreu a maior revisão em 1994
(DSM-IV) –, define um distúrbio mais geral, denominado, mais apropriadamente, “distúrbio da personalidade antissocial” (DPA) e lista suas principais características, que
podem ser facilmente reconhecidas em indivíduos afetados. A Organização Mundial
de Saúde (OMS) também definiu sociopatia em sua classificação de doenças CID-10,
usando a expressão “distúrbio da personalidade dissocial”.12
Diz Sabbatini que os sociopatas são incapazes de aprender com a punição e de
modificar seus comportamentos. Ressalta o estudioso que entre 1 e 4% da população
é sociopata em maior ou menor escala. De qualquer sorte, a maioria das pessoas com
DPA não é criminosa e é capaz de controlar-se dentro dos limites da tolerabilidade social. São consideradas somente como “socialmente perniciosas” ou têm personalidade
odiosa. Aponta o estudioso que somente 47% daqueles que eram caracterizados como
tendo DPA tinham uma história de processo criminal significativo.
Os sociopatas não têm o tipo mais comum de comportamento agressivo, que é a
violência acompanhada de descarga emocional (geralmente raiva ou medo); seu sistema nervoso simpático (dilatação das pupilas, aumento dos batimentos cardíacos e
respiração, descarga de adrenalina, etc) não é ativado. Seu tipo de violência é similar à
agressão predatória, que é acompanhada de excitação simpática mínima ou é caracterizada pela falta dela, pela falta de emoção (“a sangue-frio”).13
António e Hanna Damásio, neurologistas e pesquisadores da Universidade de
Iowa, investigaram nos últimos anos as bases neurológicas da psicopatia. Eles mostraram em 1990, por exemplo, que indivíduos que tinham sofrido danos do córtex frontal ventromedial (e que anteriormente tinham personalidades normais) desenvolveram
conduta social anormal, o que provocou consequências pessoais negativas. Entre outras
11
GARRIDO GENOVÉS, 2004, p. 28.
12
SABBATINI, Renato Marcos Endrizzi. O cérebro do psicopata. Cérebro & Mente: Revista
Eletrônica de Divulgação Científica em Neurociência, nº 7, set./nov. 1998. Disponível em: <http://
www.cerebromente.org.br/n07/doencas/index_p.html>. Acesso em: 11 ago. 2007.
13
SABBATINI, 1998.
8
temas atuais de direito
coisas, esses indivíduos tomaram decisões inadequadas e tiveram habilidades de planejamento prejudicadas, as quais são conhecidas por serem processadas pelo lobo frontal
do cérebro.14
Uma hipótese provável é que, quando não existe punição ou quando a pessoa é incapaz de ser condicionada pelo medo, devido a uma lesão no córtex órbito-frontal, por
exemplo, ou devido à baixa atividade neural nessa área, ela desenvolve uma personalidade antissocial. Pesquisas com animais têm mostrado que o córtex órbito-frontal direito está relacionado com o medo condicionado. Por exemplo, quando um rato é punido
com um choque elétrico cada vez que uma luz pisca em sua gaiola, ele sente medo, por
associar aquele estímulo à punição. Seres humanos normais aprendem muito cedo na
vida a evitar comportamentos antissociais, porque eles são punidos por isso e também
porque eles possuem circuitos cerebrais para associar o medo da punição (sentimento
da emoção) à supressão do comportamento. Esse parece ser um elemento-chave no
desenvolvimento da personalidade, que os sociopatas não possuem.15
Em outro experimento, os cientistas registraram respostas fisiológicas de agressores criminosos sociopatas quando viam imagens estressantes ou quando processavam
palavras com alto conteúdo emocional. Os parâmetros fisiológicos registrados são os
mesmos avaliados nos aparelhos “detectores de mentiras”: frequência cardíaca, reação
galvânica da pele e frequência respiratória.
A frequência cardíaca, isto é, o número de batidas por minuto, registradas na forma de curva em função do tempo, sofre um aumento, em indivíduos normais, quando
há estímulos que provocam medo ou stress.
A resistência elétrica da pele de certas regiões do corpo (por exemplo, a palma
da mão) é afetada por sudorese emocional. A reação galvânica da pele ocorre somente
quando a pessoa está nervosa; não é observada quando se está com calor, como no suor
normal. Por isso, dizemos que uma pessoa fica com as “mãos suadas” quando ela está
mentindo.
A frequência respiratória também é afetada pelo estímulo emocional, tornando-se
mais rápida e mais superficial.
Os psicopatas não mostram alteração nesses parâmetros quando são submetidos
ao stress ou a imagens desagradáveis. Essas alterações também não aparecem quando
os sujeitos são avisados antecipadamente por um flash de luz quando vão receber um
estímulo estressante. Isso explica por que os sociopatas mentem tão bem e por que eles
não são descobertos pelos equipamentos de detecção de mentiras.
O neurologista português António Damásio elaborou uma teoria que poderia
explicar por que pacientes com distúrbios provocados por lesões no cérebro frontal
ventromedial (e também os psicopatas) têm esses problemas emocionais. Chamou-a
“hipótese do marcador somático”, abaixo apresentada.
14
DAMÁSIO, Hanna et al. The return of Phineas Gage: clues about the brain from the skull of a famous patient. Science, v. 264, nº 5162, pp. 1102-1105, maio 1994.
15
SABBATINI, 1998.
o psicopata frente ao direito penal ....
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alexandre manuel lopes rodrigues
9
Indivíduos normais ativam os chamados “estados somáticos” (alterações na frequência cardíaca e respiração, dilatação das pupilas, sudorese, expressão facial, etc.) em
resposta à punição associada às situações sociais. Por exemplo, se uma criança quebra
alguma coisa valiosa e é punida severamente por seus pais, esses estados somáticos
instalam-se. Quando ocorrer uma situação similar, os marcadores somáticos serão ativados e a mesma emoção associada à punição será sentida. Para evitar isso, a criança
suprime o comportamento indesejado.
De acordo com o Dr. Damásio, pessoas com danos no lobo frontal são incapazes de ativar esses marcadores somáticos: “isto privaria o indivíduo de um dispositivo
automático para sinalizar consequências deletérias relativas a respostas que poderiam
trazer a recompensa imediata”.16 Isso explica também por que os sociopatas e pacientes
com danos no lobo pré-frontal dão poucas respostas autonômicas a palavras condicionadas socialmente e a imagens com conteúdo emocional, mas têm respostas normais a
estímulos incondicionados.
Analisando o comportamento sociopático e suas causas, Damásio sugeriu, em seu
best-seller, que a razão e a emoção não são coisas separadas e antagonistas em nosso
cérebro (como teria erroneamente pensado o filósofo francês René Descartes – daí o título do livro), mas uma é importante para a outra na construção da nossa personalidade
sadia. Indivíduos que são inteligentes e que são capazes de raciocinar bem se tornam
monstros quando não sentem a “emoção social”, que é a base da moral, do sentimento
do que está certo ou errado, etc.17
Por ser incapaz de experimentar sentimentos de sofrimento ou de alegria, o psicopata não aprende com suas experiências e não pode, assim, modificar e dirigir seus
atos como fazem as pessoas normais. Não possui os impulsos motivacionais que nos
impelem a alcançar metas distintas. Não consegue modificar suas condutas pois não
pode integrar os componentes afetivos que nos ligam aos assuntos pessoais e sociais.18
Cleckley afirmou que a ação é o que delata o psicopata, porque ele poderá até
fingir as emoções que um ser humano normal sente, mas, como, em verdade, não as
sente, na hora de tomar uma decisão e agir, seu racionamento, que seria a faculdade
que temos de interpretar a realidade e de selecionar um curso de ação, não possui um
componente importantíssimo, que é o significado emocional. Assim, o psicopata toma
decisões absurdas e danosas e, por isso, essas decisões o delatam.19
O que a Neuropsicologia demonstra hoje em dia é que a razão não prescinde dos
sentimentos para realizar sua função, isto é, para ser racional – em termos jurídicos
penais, para ser imputável. Os sentimentos dão cor e sentido real aos acontecimentos,
quando são vividos por um sujeito. Há sempre um centro de emoções que interpreta a
16
DAMÁSIO, Antônio Rosa. O erro de Descartes: emoção, razão e o cérebro humano. 2ª ed. São
Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 38.
17
Ibid., p. 39.
18
Ibid., p. 65.
19
GARRIDO GENOVÉS, 2004, p. 65.
10
temas atuais de direito
realidade. Essa interpretação não pode ser feita apenas com a memória, a capacidade
linguística ou a percepção. O agente deve ter uma base emocional, que foi formada e
está sendo formada, por meio de suas experiências diárias.20
A incapacidade para reunir razão e sentimento impede que a pessoa tenha a possibilidade de traçar um projeto de vida, pois se desinteressa das consequências de seus
atos, em relação a si mesma e aos demais. Mesmo quando pode compreender o que lhe
dizem, o psicopata não estabelece um vínculo entre o sentido do que ouviu e seu comportamento, pois, na verdade, o argumento não importa, não afeta, de forma alguma, a
sua pessoa e seu modo de agir.
2.3. Causas possíveis da psicopatia
Existem, dois fatores que podem ser apontados como causas fundamentais da psicopatia: uma alteração psicofisiológica e o conjunto de influências educativas e sociais
que a pessoa recebe durante a vida.
Para a Neurologia, os circuitos do cérebro de um psicopata são fisicamente diferentes dos de uma pessoa normal. Sabe-se, por outro lado, que boa parte das estruturas cerebrais forma-se na infância. De qualquer sorte, afirma Hilda Morana (médica
psiquiatra e Doutora pela USP. Especializada no tema da psicopatia), nascem tantos
psicopatas no Brasil quanto na Suécia, e estudos realizados com famílias equilibradas
mostram que há irmãos psicopatas entre todos os outros normais, o que aponta para o
fator biológico do distúrbio. Não obstante, o meio ambiente parece influenciar o tipo de
psicopatia que a pessoa pode desenvolver, isto é, o modo como o problema vai expressar-se. Assim, psicopatas que sofrem ou presenciam cenas de violência na infância têm
maiores chances de serem psicopatas violentos quando adultos. Diferentemente, os que
vêm de uma família equilibrada apresentam grande probabilidade de se transformarem
em psicopatas não violentos – os chamados adaptados (aqueles que metem, enganam
as pessoas, deixam filhos ao abandono, subtraem o dinheiro público ou de empresas,
sobem na escala social pisando nos outros, etc.).21
O indivíduo que sofre de psicopatia possui uma deficiência em seu lobo frontal
(mais especificamente nos córtices pré-frontais), provocada por um desequilíbrio hormonal, químico ou fisiológico do cérebro. Podem existir diferenças em termos de grau
de prejuízos, que influem no comportamento do psicopata e podem levá-lo a ser mais
agressivo ou mais adaptado ao meio social. Isso se deve a fatores socioculturais, a uma
personalidade ou tendência mórbida ou até mesmo à faixa etária.
Doentes com profundas anomalias em termos de comportamento social podem ter
excelente desempenho em testes de inteligência. Os testes de laboratório neuropsicológicos, na maioria das vezes, falham na medição de limitações emocionais. O paciente
20
Ibid., p. 62.
21
NARLOCH, Leandro. Seu amigo psicopata. Superinteressante, São Paulo, nº 228, p. 22, jul. 2006,
p. 50.
o psicopata frente ao direito penal ....
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alexandre manuel lopes rodrigues
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é aprovado com tranquilidade em testes como: escala de inteligência de Wechsler para
adultos, memória defasada de lista de palavras de Rey, exame de afasia multilinguística, percepção visual e construção para a discriminação facial e juízo de orientação de
Benton, cópia de figura complexa de Rey-Osterrieth, inventário multifásico de personalidade de Minnesota.22
Esses exames, como já foi dito, focam o estado de inteligência e os instrumentos
de racionalidade do paciente, mas negligenciam seu aspecto emocional.
Até 1993, Damásio estudou doze pacientes com lesões no córtex pré-frontal e, em
nenhum caso, deixou de encontrar uma associação entre deficiência na tomada de decisões e perda de emoções e sentimentos. A capacidade de razão e a experiência de emoções
estão reduzidas em conjunto, e suas limitações funcionam em um quadro neuropsicológico em que a atenção, a memória, a inteligência e a linguagem permanecem intactas.23
Damásio concluiu, em mais de treze anos de estudos e pesquisas nessa área, que
existe uma região do cérebro (córtices pré-frontais ventromedianos), cuja danificação
compromete sobremaneira tanto o raciocínio e a tomada de decisões, como as emoções
e os sentimentos, em especial no domínio pessoal e social. Pode-se dizer que a razão e
a emoção “cruzam-se” nos córtices pré-frontais ventromedianos.24
Por outro lado, as estruturas antigas do cérebro, que estão em funcionamento desde
o nascimento, como o tronco cerebral, o hipotálamo, e o prosencéfalo basal, possuem
a função de regular os processos vitais básicos do organismo, sem que seja necessário
recorrer à mente ou à razão. Sem elas, não seríamos capazes de respirar ou de regular
o ritmo cardíaco, de equilibrar o metabolismo ou de nos reproduzirmos. Mas existe
outro papel para esses órgãos e circuitos inatos que tem relação com a mente e com o
comportamento: eles interferem também no desenvolvimento e na atividade adulta das
estruturas modernas do cérebro. Durante o desenvolvimento do indivíduo, na infância
e na adolescência, e à medida que ele interage com o meio ambiente, essas influências
estimulam esses mesmos circuitos, pois isso tem a ver com a nossa sobrevivência e
com a regulação biológica.25
Assim, os registros das experiências adquiridas e das respostas que foram dadas
a elas, devem ser avaliados e modulados pelo conjunto fundamental de referências do
organismo, tendo em vista a constante adaptação do organismo ao meio ambiente atual,
em busca da sobrevivência. Esses mecanismos disseminam neurotransmissores (dopamina, norepinefrina, serotonina e acetilcolina) por várias regiões do córtex cerebral,
percebem se a influência do meio é boa ou má e passam a influenciar a forma como o
cérebro é modelado, para que ele possa apoiar a sobrevivência da forma mais eficaz
possível. Quando nascemos, já possuímos uma carga inata de mecanismos cerebrais
de regulação, que nos permitem sobreviver nos primeiros momentos ou anos de vida.
22
DAMÁSIO, 2006, p. 65.
23
bid., p. 79.
24
Ibid., p. 95.
25
Ibid., p. 138.
12
temas atuais de direito
Contudo, a sombra genética inata tem seu alcance, mas não é completa. Existe uma
estrutura que está a ser determinada, a partir da atividade individual e das circunstâncias do meio. Esses estímulos de retorno ou feedback reprogramam constantemente e
modelam nosso cérebro para que melhor se adapte à realidade e possa sobreviver de
forma mais eficaz.26
3. Emoção e sentimento
A emoção pode ser traduzida como um conjunto de mudanças no estado do corpo
que são induzidas numa infinidade de órgãos por meio das terminações das células
nervosas, o qual responde ao conteúdo dos pensamentos relativos a uma determinada
entidade ou acontecimento. É o resultado da combinação de um processo avaliatório
mental, com respostas dispositivas a esse processo, em sua maioria dirigidas ao corpo,
o que provoca um estado emocional do corpo, mas também tem reflexo no cérebro (gerado por núcleos neurotransmissores no tronco cerebral), causando alterações mentais
adicionais. Existem, ainda, os sentimentos, que são a percepção do conjunto de todas
as mudanças que constituem a resposta emocional, em outras palavras, a experiência
dessas mudanças.27
Os sentimentos permitem que mentalizemos o corpo e cuidemos dele, como acontece durante um estado emocional. Eles permitem que percebamos o que ocorre em
nossa volta e inserem-nos na situação real que estamos vivendo (tanto física como
emocionalmente). Permitem que tenhamos consciência do corpo e da emoção e saibamos o sentido que isso faz para o cérebro, se bom ou ruim. Assim, os sentimentos estão
em primeiro lugar em nosso desenvolvimento individual e permanecem assim durante
toda a nossa vida. Por virem em primeiro lugar, constituem um quadro de referência
para o que vem a seguir, sempre tendo uma palavra a dizer sobre o modo de funcionamento do cérebro e da cognição.28
A maior parte dos marcadores somáticos que utilizamos para a tomada de decisões
foi criada em nosso cérebro durante o longo processo de educação e de socialização,
cujas emoções marcaram-nos de forma positiva ou negativa. A constituição de marcadores adaptativos normais requer que tanto o cérebro como o meio cultural sejam
normais. Quando um dos dois é deficiente, o marcador absorve informações deturpadas
e passa a reproduzir em ações esse descontrole. É o caso dos psicopatas, eles repetem
seus atos ilícitos com clara desvantagem para eles e para os outros. Trata-se de um
estado patológico em que uma redução ou ausência de sentimentos faz-se acompanhar
de uma redução da racionalidade. É sem dúvida possível que a psicopatia tenha origem
em uma disfunção dentro do sistema geral, que foi afetado, a deterioração pode resultar
de mau funcionamento em redes de circuitos anômalas e de sinais químicos registrados
26
DAMÁSIO, 2006, p. 141.
27
Ibid., p. 169.
28
Ibid., p. 191.
o psicopata frente ao direito penal ....
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alexandre manuel lopes rodrigues
13
no início do desenvolvimento individual, que dificultam a percepção das emoções e dos
sentimentos. Daí uma ação também defeituosa.29
O sistema neural crítico para a aquisição da sinalização dos marcadores somáticos situa-se nos córtices pré-frontais, onde coexiste com o sistema das emoções
secundárias. A posição neuroanatômica desses córtices é ideal para essa finalidade,
porque os córtices pré-frontais recebem sinais de todas as regiões sensoriais onde
se formam as imagens que constituem nosso pensamento, incluindo os córtices somatos sensoriais (referentes aos estados do corpo). Quer os sinais sejam oriundos
de percepções do mundo exterior ou sobre pensamentos acerca desse mundo, quer
em acontecimentos do corpo, os córtices pré-frontais recebem esses sinais. Eles recebem sinais também de vários setores bioreguladores do cérebro, como núcleos
neurotransmissores, situados no tronco cerebral (como os que distribuem dopamina
e serotonina). Todos esses sistemas vão fazer parte do mecanismo do raciocínio e da
tomada de decisões.30
A ação dos impulsos biológicos, dos estados do corpo e das emoções constitui
uma base indispensável para a racionalidade. Os níveis inferiores do edifício neural da
razão são os mesmos que regulam o processamento das emoções e dos sentimentos,
juntamente com as funções globais do corpo, de modo que o organismo consiga sobreviver. Esses níveis inferiores mantêm relação direta com o corpo, integrando-se na cadeia de operações que permite os mais altos voos em termos da razão e da criatividade.
É muito aceitável que a racionalidade seja configurada e modulada por sinais do corpo
e por sentimentos que se transformam em emoções, mesmo quando executa distinções
sublimes e age em conformidade com elas.31
4. Conclusão
Nossa legislação penal entende que a ideia de responsabilidade, ou seja, de comprometer-se com a lei penal e assim responder perante ela, mediante a aplicação de
uma pena, apenas faz referência à insuficiência ou à alteração das faculdades psíquicas de caráter intelectual (entender o caráter ilícito do fato e determinar-se segundo
esse entendimento – compreensão e volição). Parece que não está compreendida na
dicção da lei a faculdade ética de valorar, ou se está, ficou relacionada em segundo
ou último plano.
Aparentemente, os sentimentos morais, que nascem das relações e da esfera afetiva, não podem, em momento algum, ser descartados, pois são os reguladores supremos
da conduta humana. Com efeito, a função de compreender não se reduz a uma simples
operação intelectual; deve-se, sobretudo, a uma função afetiva, aquela que é captada e
sentida, proveniente do mundo dos valores. Compreender é valorar. Somente é possível
29
DAMÁSIO, 2006, p. 210.
30
Ibid., p. 213.
31
Ibíd., p. 233.
14
temas atuais de direito
compreender aquilo que se sente, consequentemente, o não sentir é um indício da falta
de compreensão.32
O componente afetivo jamais deixa de fazer parte da manifestação de qualquer
ato humano e assume, na maioria dos casos, o comando do psicológico do indivíduo (o
afetivo é o efetivo). Assim, a razão intelectualizada apresenta-se, muitas vezes, como
coadjuvante das ações humanas. As necessidades, os instintos, os sentimentos, as paixões e as emoções não podem, definitivamente, ficar de fora da etiologia dos comportamentos delitivos e também devem estar sujeitos à valoração jurídica. Em outras
palavras, a responsabilidade não se pensa, sente-se.33
Reduzir o conceito de mente (faculdades) somente à órbita intelectual e volitiva
é o mesmo que amputar o fator mais importante da personalidade humana. O conceito
de mente pode ser traduzido como o conjunto de todas as faculdades psíquicas do homem, inatas ou adquiridas, desde a memória até a consciência, desde a inteligência até
a vontade, passando pelo raciocínio e pelo sentido moral.34
A personalidade do ser humano está intimamente ligada à ideia e ao conceito
psicológico do eu. O eu é a parte da psique humana em que o homem se identifica
e se reconhece em si mesmo, em que ele consegue objetivar sua própria existência
(sentimento de existir, sentimento profundo da vida). O homem, até onde se sabe, é o
único animal que possui essa capacidade. O eu representa a conexão das três esferas
psicológicas: a afetiva, a volitiva e a intelectual. Ele amarra uma complexa rede psicológica que interliga todos os elementos constitutivos do ser, configurando uma unidade
anatômica e funcional que pensa, sente e atua, como um todo.35
Na personalidade psicopática, e também em outras enfermidades mentais, as esferas intelectuais e volitivas estão preservadas, mas a afetividade está comprometida.
O ser humano só atua de forma imputável quando as três esferas estão funcionando a
contento. O eu também é o responsável por interligar o passado, o presente e o futuro,
de forma que o homem se reconhece historicamente, identificando-se ao longo de sua
trajetória vital. Para um psicopata, o tempo futuro é apenas cronológico; o psicopata
não planeja propriamente o futuro, nem se preocupa com o porvir. Tampouco aprende
com erros do passado, com sensações e sentimentos aprendidos que podem servir de
base para o comportamento acertado no presente e no futuro.
Alcança-se a compreensão da realidade por meio de três hierarquias gnoseológicas,
que constituem noções concêntricas, mas não idênticas: conhecer, entender e compreender.
Conhecer é um ato da natureza senso-perceptivo (relação direta com as coisas). É
perceber mediante os sentidos (isto é uma mesa, um livro, uma pessoa), mas fica claro
que se pode conhecer uma pessoa sem entendê-la, nem compreendê-la. O conhecer
refere-se aos estados de inconsciência.
32
CABELLO, Vicente Ponciano. Psiquiatria Forense en el derecho penal. Buenos Aires: Hammurabi,
2005, p. 121.
33
Ibíd., p. 121.
34
NUÑES, Ricardo. La culpabilidade penal en el Código Penal. Buenos Aires: Depalma, 1946, p. 52.
35
Ibíd., p. 323.
o psicopata frente ao direito penal ....
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alexandre manuel lopes rodrigues
15
Entender, por sua vez, dirige-se, na escala mental, ao plano do intelecto, é o racionamento formal. Entende-se o idioma, a equação matemática ou um fenômeno biológico, tudo o que se resolve em uma relação lógica. Em outras palavras, o entender é
neutro, quando se trata de valores.
Compreender vai mais além das operações perceptivas ou intelectuais, mas alcança o sentido de interesses e estimativas. É a função mais hierarquizada da psique
humana. É o ponto de vista valorativo, que emana da esfera afetiva, do mundo com
sentimentos e emoções, que inclui a região do cérebro em que surge a moral, o amor ao
próximo, a liberdade, a verdade, a beleza e a justiça.36 Essa é a função que o transtorno
de personalidade psicopática afeta.
Nesse passo, a capacidade de compreender a criminalidade do fato abarca a aptidão do sujeito para apreender o valor das coisas e das ações, como se elas adquirissem
vida na intimidade do ser. Não se pode captar a essência dos valores pela via racional.
Quando alguém não sente o valor estético de uma obra de arte ou o ético de uma conduta humana, não existe meio racional para que isso se dê.
Jaspers, citado por Cabello, afirmou: Allí donde comprendemos valoramos. La
valoración es constitutiva de toda comprensividade. Lo comprensible es valorable.
Verdadera comprensión es valoración, las dos se realizan al mismo tiempo.37
Soler prelecionava o seguinte:
Lo importante para la fórmula de la imputabilidad es la capacidad de comprender la criminalidad del acto o de dirigir las acciones. Claramente está dicho que se
requiere capacidad de valoración, lo cual no es otra cosa que estimación jurídica perfectamente semejante en tesis general a la estimación ética.38
Pode-se destacar, em resumo, que a personalidade psicopática é um tipo grave
de alteração de conduta, que se reflete em gravíssimos transtornos das esferas afetivas
e volitivas. Há, assim, uma dissonância entre soma e psique, que é desencadeada por
uma estrutura cerebral que está afetada em seu equilíbrio, o que contamina a sintonia
fina da personalidade no nível psicológico, atingindo a distinção entre o correto e o
incorreto, o bem e o mal e o sentimento e a atitude que deveriam corresponder a esses
sentimentos, o que propicia um descompasso entre as ideias, os sentimentos e as atitudes consecutivas.
Assim, este artigo chega a este ponto, que não pode ser considerado um fim. Tratase antes da abertura de uma nova possibilidade de estudo e de compreensão desse fenômeno tão controvertido que é a psicopatia e a sua repercussão no campo do Direito
Penal. Acredita-se que se tenha lançado uma luz sobre o problema, com possíveis bases
de sustentação doutrinárias, para que o futuro não seja tão incerto e a resposta penal
seja a melhor possível para o agente e para a sociedade.
36
CABELLO, 2005, p. 476.
37
Ibíd., p. 476.
38
SOLER, Sebastian. Derecho Penal argentino, 1997, p. 232, apud CABELLO, 2005, p. 477.
2
A PROTEÇÃO JURÍDICA DO MEIO
AMBIENTE CULTURAL AMAZÔNICO
Luzia do Socorro Silva dos Santos
SUMÁRIO: 1. Conteúdo essencial dos direitos culturais. 2. Definição da multiculturalidade ambiental brasileira e amazônica. 3. Instrumentos de tutela da multiculturalidade ambiental amazônica. 4. Diversidade cultural como bem da humanidade e condição para o desenvolvimento
humano sustentável. 5. Bibliografia.
1. CONTEÚDO ESSENCIAL DOS DIREITOS CULTURAIS
Sabe-se que o termo cultura tem muitas significações, destacando-se aqui o sentido subjetivo da formação individual da pessoa na busca de seu pleno desenvolvimento,
bem como o sentido coletivo empregado pela antropologia como modos de vida e modelos de conduta, criados, adquiridos e transmitidos para outras gerações no âmbito de
um determinado grupo social.1
Esses dois significados se entrelaçam, interagindo-se mutuamente, pois a cultura
no sentido antropológico influencia na formação individual, sendo esta fator da dinâmica cultural num desenvolver constante.
Compreende-se que o texto constitucional brasileiro adota ambos os sentidos, observáveis pela configuração do artigo 215,2 do qual se extrai o conteúdo essencial dos
direitos culturais que o bem jurídico cultura disponibiliza a seus titulares.
1
Ver Nicola Abbagnano, Dicionário de filosofia, pp. 225-228.
2
Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da
cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais. §1º
O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de
outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.
18
temas atuais de direito
Tal conteúdo é preenchido primeiramente pela liberdade, que garante ao indivíduo
buscar os meios que lhe aprouver para completa realização de sua personalidade, assim
como viver segundo os valores de sua cultura, moldando-se ao direito fundamental à
liberdade, classicamente inscrito nos sistemas constitucionais modernos, a exemplo
dos incisos IV, VI, VIII, IX, XIII e XIV da Constituição da República,3 consagrador da
abstenção do Poder Público na esfera privada, que encontra limite somente nos direitos
fundamentais de outrem.
A essência dos direitos culturais também possui o viés da prestação estatal, densificada pela democracia participativa, a exigir do Poder Público iniciativas e ações
destinadas a todos os grupos sociais, conduzindo políticas públicas de apoio e incentivo
à valorização e à propagação das manifestações culturais de todos os quadrantes, sendo
determinado normativamente, a partir do § 1º do artigo 215, CF, especial proteção à
cultura brasileira, identificada com o patrimônio cultural definido no artigo 216.4
A democracia cultural é fonte do terceiro conteúdo essencial dos direitos culturais, qual
seja, o pluralismo, propulsor da convivência e da comunicação entre realidades culturais distintas, que engendra a aceitação de modos e projetos de vida diferenciados no seio social.
2. DEFINIÇÃO DA MULTICULTURALIDADE AMBIENTAL
BRASILEIRA E AMAZÔNICA
Desse referencial sobre os direitos culturais extraído do texto da Constituição
brasileira de 1988, advém a significância do patrimônio cultural nacional, entendido
como uma das dimensões do multifacetado fenômeno jurídico ambiental, traduzido
pelo meio ambiente humano e ecologicamente equilibrado,5 identificando-se na exegese dos artigos 215, 216 e 225 a disciplina constitucional pertinente a tal dimensão,
denominada de meio ambiente cultural brasileiro.
Tem-se, então, que o entorno cultural pátrio é plural, caracterizados pela diversidade de culturas, constatando-se nesse domínio a pluralidade advinda das diversidades
culturais regionais, oriundas das inúmeras formas de adaptação da espécie humana ao
3
Liberdade de manifestação do pensamento, de crença religiosa, de convicção política e filosófica,
de expressão da atividade intelectual, artística, científica, de comunicação, do exercício de trabalho,
ofício ou profissão e de se informar.
4
Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos
diferentes grupos formadores da sociedade brasileira ..”
5
O artigo 225 da Constitucional Federal ao tratar do equilíbrio ambiental (Todos têm direito ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de
vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações) recepcionou o conceito legal de meio ambiente previsto no artigo 3º, I, da
Lei nº 6.938, de 31.8.1981 (meio ambiente é o conjunto de condições, leis, influências e interações
de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas), o
que revela a natureza sistêmica do bem e sua concepção ampliada, por envolver o ambiente construído pela pessoa humana nas suas relações sociais, econômicas e culturais como ser vivente da terra.
a proteção jurídica do meio ....
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luzia do socorro silva dos santos
19
meio ambiente natural brasileiro, marcado por seus distintos biomas, nos quais habitam
as chamadas populações tradicionais.6
Essa afirmação se pauta em estudos antropológicos, históricos e sociológicos da
nossa miscigenada nação, destacando-se os divulgados por Darcy Ribeiro,7 que diz
que, embora o povo brasileiro seja único, com cultura própria, essa é formada pela contribuição de vários grupos advindos de etnias também variadas, que ocuparam diversificadamente as regiões brasileiras, a partir das relações de convivência, aproveitamento
e adaptação aos ecossistemas naturais existentes.
Disso resultou a conformação de cultura típica de cada região do país, que expressam diferentes modos de ser brasileiro, pelo que o autor citado classifica as variantes
culturais regionais em Brasil caboclo, Brasil crioulo, Brasil sertanejo, Brasil caipira e
Brasis sulinos.
A autora, então, cunhou o termo multiculturalidade ambiental brasileira,8 definida como “uma das dimensões caracterizadoras e integrantes da pluralidade existente
no meio ambiente cultural, identificada pelas diversidades regionais, originárias dos
distintos fatores ecológicos, econômicos e imigratórios da ocupação humana no território nacional, que plasmaram diferentes modos de ser brasileiro”.
É certo que cada uma dessas variantes culturais possui suas peculiaridades sujeitas
a vicissitudes ao longo do tempo, considerando a contemporaneidade marcada por
um mundo globalizado interconectado em rede informacional de sons e imagens, no
qual o espaço é delimitado pelo tempo, entretanto, denota-se que as culturas regionais
sobrevivem manifestadas notadamente pelas populações tradicionais que, ao se
adaptarem as externalidades referidas, conseguiram manter a originalidade, revelando-se a glocalização.9
Pode-se afirmar a existência da variante cultural cabocla, tipicamente amazônica,
que deita suas raízes nas tribos indígenas viventes no ambiente da floresta tropical
que, ao serem aculturados pelos ocupantes brancos, notadamente os colonizadores portugueses, foram se miscigenando biológica e culturalmente, surgindo uma população
nova, que, embora distante da ascendência indígena tribal, apresentava-se como herdeira do modo de vida adaptativo à floresta tropical e úmida, sendo conhecedora de sua
biodiversidade, trafegando por seus rios com canoas e balsas, possuindo sua mitologia
de duendes e visagens, auferindo sua subsistência por meio de roçados de mandioca e
6
O Decreto Federal nº 6.040, de 7.2.2007, que trata da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais define essas populações como “ grupos culturalmente
diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social,
que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural,
social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e
transmitidos pela tradição.”
7
O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil, passim.
8
Tutela das diversidades culturais regionais à luz do sistema jurídico-ambiental, p. 139.
9
Glocalização é um neologismo que reúne as palavras globalização e localização, referindo-se ao
fenômeno das consequências locais do fator da globalização.
20
temas atuais de direito
milho, bem como da pesca, caça, coleta de frutos e tubérculos, enfim, viviam e sobreviviam em mundo de florestas e águas.
Na atualidade, em meio de outras populações históricas e dos contingentes migratórios mais recentes, compartilha-se da visão de João de Jesus Paes Loureiro,10 que
observa no caboclo a configuração peculiar da cultura amazônica, em que predomina
os elementos indígenas, misturados com caracteres europeus e negros, manifestando
suas tradições especialmente pela oralidade e mantendo modo de vida interativo com
a natureza.
Tal multiculturalidade amazônica, personificada pelos ribeirinhos, pescadores,
extratores, seringueiro e outros, é retratada pelas manifestações culturais, que são as
projeções, as exteriorizações, os símbolos, os códigos que representam os modos de
vida de um povo, tais como o idioma e as expressões lingüísticas, a culinária, os rituais,
as celebrações, as danças, o folclore, as religiões, as artes plásticas, a música, os meios
de trabalho, produção e consumo, as relações familiares e interpessoais, que são percebidas na experiência da vida concreta, real, de um grupo social.
Portanto, selecionando-se o contexto amazônico, a Constituição Federal de 1988,
além de reconhecer e proteger a cultura indígena (artigos 231 e 232) e a cultura afro-brasileira (artigos 215, § 1º, 216, § 5º, 68 ADCT), consagra a existência da cultura
cabocla, integrante do patrimônio ambiental cultural brasileiro descrito no artigo 216.
Como dito, a cultura cabocla é vivenciada pelos povos e comunidades tradicionais da
região, que merecem proteção como bem jurídico ambiental para que suas formas de vida
sejam conhecidas das gerações futuras, dando-se assim cumprimento ao comando constitucional. Por isso, importante a edição do Decreto nº 6.040, de 7.2.2007, que ao instituir a
Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais.
3. INSTRUMENTOS DE TUTELA DA MULTICULTURALIDADE
AMBIENTAL AMAZÔNICA
Passa-se a esta altura a demonstrar alguns instrumentos de tutela dessa peculiar
cultura amazônica.
Entende-se que a base, o alicerce, de tal instrumentalidade é o federalismo, modelo de Estado constitucionalmente adotado pelo Brasil desde 1891, sendo decisão
política importante para preservação das diversidades, inclusive cultural, diante de uma
unidade política, defendendo-se que quanto maior o grau de descentralização maior
é a possibilidade de preservar as expressões culturais locais e regionais em razão da
proximidade espacial das esferas de poder, o que facilita a especial proteção do Poder
Público, até mesmo pelo autorreconhecimento de pertença dos agentes públicos à cultura da localidade.
Considerando que o Brasil ainda adota práticas federativas centralizadoras, a
exemplo do controle exercido pela União de bens ambientais estratégicos para o desen-
10
Cultura amazônica:uma poética do imaginário, pp. 55-68.
a proteção jurídica do meio ....
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volvimento humano sustentável,11 bem como da missão do Superior Tribunal de Justiça
de uniformizar nacionalmente a legislação federal,12 observa-se, no âmbito da nossa
Federação, importantes meios de defesa e preservação da multiculturalidade ambiental
amazônica para as presentes e para as futuras gerações.
O primeiro é o manejo da competência material comum e legislativa concorrente
por parte dos entes federados, que no tocante à temática se encontra notadamente tratada nos artigos 23, I, III, IV, V, VI e X e 24, I, II, VII, VIII, IX e XI, 30, II, da Lei Maior,
também presente em outros dispositivos constitucionais, como é o caso do § 1º do artigo 216, que determina ao Poder Público, com a colaboração da comunidade, promover
e proteger o patrimônio cultural brasileiro.
Afirmado, então, o princípio da intervenção obrigatória estatal para tutela da multiculturalidade ambiental amazônica, sendo que, na forma de Estado Federal, todas as pessoas
políticas devem atuar – União, Estados-membros e Municípios – para se desincumbir dessa
obrigação, considerando-se comportamento inconstitucional a omissão correspondente.
Ademais, o direito de viver conforme sua cultura é direito fundamental, sendo o
respeito aos direitos da pessoa princípio sensível para o equilíbrio federativo brasileiro,
na esteira do que dispõe o artigo 34, VII, “b”, da Carta Magna.
Por assim ser, as entidades federativas não podem se afastar do dever de proteger
o meio ambiente cultural, fazendo uso da competência legislativa que lhe foi outorgada.
Pela competência legislativa concorrente não-cumulativa ou limitada à União
cabe o estabelecimento de normas gerais, atribuindo-se aos Estados-membros e ao
Distrito Federal suplementar essa normatividade generalista, de acordo com suas peculiaridades, e aos Municípios a suplementação da legislação federal e estadual, nos
assuntos de interesse local.
É a inferência que se extrai dos parágrafos 1º e 2º do artigo 24 c/c o inciso II do artigo 30, estando, dessa forma, demarcados os campos de ação legislativa dos integrantes do sistema federal, resolvendo-se pela inconstitucionalidade a atuação fora desses
limites, já que se estará diante do vício de invasão de competências, mácula essa que
ocorre também se qualquer dos entes adentrar no âmbito das matérias de competência
privativa de outro.
Por isso, sempre é bom registrar que não há hierarquia entre a normatividade federal, estadual e municipal, o que há é a limitação de competências.
O Legislador Constituinte originariamente também positiva no § 3º do referido
artigo 24 a espécie de competência concorrente legislativa cumulativa, ao facultar aos
Estados o exercício da competência legislativa plena se inexistir normas gerais federais.
A subseqüente edição das normas gerais pela União pode resultar exclusivamente
em suspensão da eficácia lei estadual se houver incompatibilidade. É o que prevê o §
4º do citado artigo 24, pelo que se infere que a revogação da lei geral federal implica a
retomada da eficácia da lei estadual até então suspensa.
11
Ver artigos 20, II, VIII, IX, 21, IX, XII, ‘b”, Constituição Federal.
12
Ver artigo 105, III, Constituição Federal.
22
temas atuais de direito
Afirma-se, então, que a matéria sobre a proteção do meio ambiente cultural é objeto de legislação em que todas as entidades federadas concorrem na medida dos limites
delineados constitucionalmente, sendo partícipes colaboradores do sistema normativo
nacional de proteção ambiental, cujas normas editadas têm de ser compatíveis entre
si, plasmando relações interativas e interdependentes para seu eficaz funcionamento
protecionista.
Para a efetivação dessa harmonia, conhecida é a adoção do sedimentado critério
da predominância do interesse para determinação da competência legislativa federal,
peculiar e local, a orientar que os temas predominantemente de interesse geral, nacional, estão na ordem jurídica da União, já os temas predominantemente regionais, peculiares ou específicos de cada Estado ou do Distrito Federal estão sob a competência
dessa ordem normativa, e, por sua vez, os temas de predominante interesse local ficam
sob a ordem jurídica do Município.
Por se entender que a degradação e a proteção da multiculturalidade ambiental amazônica, como parte integrante do meio ambiente global, afeta mais diretamente às comunidades do entorno da fonte, levando em consideração também que se propagam em
rede, defende-se que tal tutela é assunto primeiramente de predominante interesse local
que, devido à indivisibilidade do bem jurídico, pela qual sua efetividade, sua ameaça e
sua lesão atingem todos os titulares, interessa também aos outros níveis de competência.
Assim é que o poder central deve expedir normatividade geral de proteção do
meio ambiente cultural incidente sobre o território nacional, enquanto aos poderes periféricos fica assegurada a edição de normas mais restringentes de acordo com a necessidade de preservar o equilíbrio ambiental em todos os seus aspectos, combatendo
as causas de degradação identificadas nas áreas territoriais respectivas, estabelecendo
atuação concentrada de conformidade com suas especificidades, compatíveis com o
regime vertical de competências.
Defende-se ser essa a interpretação adequada atribuída aos parágrafos do artigo 24
em combinação com o artigo 225 e sua integração com outros dispositivos que conformam o meio ambiente sistêmico em seus diversos aspectos, aqui se destacando o meio
ambiente cultural.
Embora se reconheça a dificuldade da determinação do conceito de normas gerais,
há de se fazer um esforço hermenêutico para encaminhar a pacificação dos conflitos de
competência legislativa em matéria ambiental, cabendo novamente confirmar a proposta da adoção do princípio pro dignidade humana como vetor interpretativo compatível
com a axiologia da proteção ambiental fundada no antropocentrismo alargado, em que
o sistema de tutela ambiental é unificado juridicamente pelo elemento teleológico de
manutenção do equilíbrio capaz de manter a vida na face da terra e vida qualificada pela
dignidade humana.
A adoção desse princípio interpretativo implica que na resolução dos conflitos de
competência a respeito da generalidade e especificidade normativa, há de ser conforme a Constituição a normatividade federal, estadual ou municipal que assegure mais
completamente a existência humana digna, sendo que não há existência digna sem o
reconhecimento da cultura como bem essencial à sadia qualidade de vida.
a proteção jurídica do meio ....
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luzia do socorro silva dos santos
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A segunda instrumentalidade observada que pode socorrer a cultura peculiar da
Amazônia se identifica com os meios de proteção dos bens materiais e imateriais, mediados para proteção do patrimônio ambiental cultural brasileiro.
Logo, os bens materiais e imateriais portadores de valores referentes à identidade,
à ação e/ou à memória da cultura cabocla devem ser defendidos e preservados como patrimônio difuso, de toda a coletividade, para serem usufruídos pelos titulares presentes
na atualidade, bem como pelas gerações vindouras, significando um marco civilizatório, representado por seus símbolos.13
O § 1º do artigo 216 da Constituição Federal exemplifica alguns desses meios,
como o inventário, o registro, o tombamento e a desapropriação.
O inventário e o registro podem ser usados para acautelamento de bens móveis,
como livros, documentos e obras de arte, manejados por bibliotecas, arquivos, museus,
pinacotecas etc, como também podem ser empregados para identificação e proteção de
bens imateriais.
Aliás, o registro de bens culturais de natureza imaterial está sendo realizado pela
União mediante o Decreto nº 3.551, de 4.8.2000, adotando como critério para seleção
a continuidade histórica do bem e sua relevância nacional para a memória, a identidade
e a formação da sociedade brasileira.
Já o tombamento é um instrumento muito utilizado por todos os entes federados,
compreendendo-se que possui natureza jurídica de ato declaratório, consistindo no reconhecimento estatal de bens culturais materiais, móveis e imóveis, que exigem proteção oficial, podendo ser efetuado pela atividade legislativa, administrativa ou judiciária.
No âmbito federal, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(IPHAN) organiza esses bens observando as regras do Decreto-lei nº 25, de 30.11.1937,
fonte de algumas normas gerais que fixam diretrizes para observância pelos Estados,
Distrito Federal e Municípios, a exemplo dos requisitos mínimos para a preservação
dos bens culturais, destacando-se às limitações ao direito de propriedade quanto à faculdade de uso e disposição, a atingir inclusive a vizinhança do bem tombado, bem
como previsão de um sistema mínimo de sanção.
No que respeita à desapropriação, verifica-se servir para a transferência do bem de
significância cultural, seja móvel ou imóvel, do patrimônio privado para o patrimônio
público, sendo efetivada após o tombamento.
Outro instrumento de identificação para proteção de bem ambiental cultural é o
zoneamento, empregado geralmente para o reconhecimento do valor cultural de conjuntos urbanos de valor histórico, paisagístico ou artístico. Nesse sentido, é aclamado
pela Lei nº 10.257, de 10.7.2001, o Estatuto da Cidade, como instrumento da política
urbana, a ser executada pela municipalidade.
13
Exemplos de bens culturais do Estado do Pará: a festa do Sairé do município de Santarém; a dança
do Carimbó do município de Marapanim; a dança da Marujada e a festa de São Benedito do município de Bragança; o folguedo do Boi de Máscaras do município de São Caetano de Odivelas; a
celebração do Círio de Nossa Senhora de Nazaré na capital de Belém.
24
temas atuais de direito
No Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC), instituído pela Lei nº 9.985, de 18.7.2000, extrai-se duas categorias importantes para a
preservação da forma de vida cabocla e, portanto, do meio ambiente cultural amazônico, traduzidos na Reserva Extrativista (RESEX) e as Reservas de Desenvolvimento
Sustentável (RDS).
Segundo a disciplina legislativa, a Reserva Extrativista é uma área utilizada
por populações extrativistas tradicionais, cuja subsistência baseia-se no extrativismo e, complementarmente, na agricultura de subsistência e na criação de animais de pequeno porte, e tem como objetivos básicos proteger os meios de vida e
a cultura dessas populações, e assegurar o uso sustentável dos recursos naturais
da unidade.
Por sua vez, a Reserva de Desenvolvimento Sustentável é uma área natural que
abriga populações tradicionais, cuja existência baseia-se em sistemas sustentáveis de
explorações dos recursos naturais, desenvolvidos ao longo de gerações e adaptados às
condições ecológicas locais e que desempenham um papel fundamental na proteção da
natureza e na manutenção da diversidade biológica.
Assim é que as reservas mencionadas delimitam uma área cultural em que um
determinado modo de fazer, criar e viver de um grupo social é identificado para
fins de tutela, reconhecendo-se que a conservação da natureza, o aproveitamento
econômico de seus recursos e a preservação cultural são elementos constitutivos do
desenvolvimento sustentável, constando a reserva extrativista como instrumento da
Política Nacional do Meio Ambiente, nos termos do artigo 9º, VI, da Lei nº 6.938,
de 31.8.1981.
Vê-se, assim, que o modo de vida peculiar da região amazônica é reconhecido
normativamente como sustentável, parecendo um paradoxo a necessidade de sua proteção especial, pois num mundo de riscos e perigos, também provocado pelo sucesso do
desenvolvimento científico e tecnológico engendrado a partir da revolução industrial,
no qual não se ameaça a própria sobrevivência do planeta na forma como se conhece
hoje, tal modelo pode servir de referência de relação harmônica entre o ser humano e
o seu meio.
Sem prejuízo da existência de outros instrumentos de defesa da multiculturalidade ambiental amazônica,14 por fim, pretende-se realçar os meios manejados
jurisdicionalmente.
Traz-se à baila as condutas incriminadas pelo Direito Penal, que tutelam o bem
jurídico meio ambiente cultural, citando-se os tipos descritos nos artigos 62 a 65 da Lei
nº 9.605, de 12.2.1998.
No âmbito cível, importa consignar alguns meios processuais idôneos para a defesa dos bens culturais aqui retratados, pelo que sobrevém prontamente a ação cível
14
Nesse sentido, podem ser arroladas a vigilância, a fiscalização, a restauração, as avaliações ambientais, como é o caso do estudo de impacto ambiental etc.
a proteção jurídica do meio ....
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pública, mencionada constitucionalmente no artigo 129, III, e tratada na Lei nº 7.347,
de 24.7.1985.
Também há de ser lembrada a ação popular, que, como a ação civil pública, possui
assento constitucional, estando consagrada no artigo 5º, LXXIII, com disciplina infraconstitucional baseada na Lei nº 4.717, de 29.6.1965.
Prosseguindo-se no exame do texto da Lei Maior, vê-se ainda alguns outros instrumentos, tais como o mandado de injunção, previsto no inciso LXXI do artigo 5º, o
mandado de segurança individual e coletivo, previstos nos incisos LXIX e LXX, além
do controle de constitucionalidade dos atos normativos, de competência do Supremo
Tribunal Federal, bem como a ordem de punição para os atos de improbidade administrativa, estampada no § 4º do artigo 37 e disciplinada pela Lei nº 8.429, de 2.6.1992, pois
pode o ato ímprobo ofender o patrimônio cultural, que pertence, como sabido, ao patrimônio público, no sentido de bem de uso comum do povo difusamente considerado.
O que se quer deixar assente é que, ao lado da importância da existência de normas protetivas aptas à tutela da multiculturalidade ambiental amazônica, emerge de
relevância essencial a atuação do intérprete e do aplicador do Direito, a se exigir que
conheça e compreenda o contexto cultural amazônico para preservar esse aspecto do
pluralismo cultural.
Portanto, cabe também aos Estados e Municípios, mediante ação do Legislativo,
do Executivo e do Judiciário, fazerem uso desses instrumentos para tutela do patrimônio ambiental caboclo, necessária à efetivação da dignidade humana na região.
4. DIVERSIDADE CULTURAL COMO BEM DA HUMANIDADE E CONDIÇÃO
PARA O DESENVOLVIMENTO HUMANO SUSTENTÁVEL
Para além disso, somente respeitando as suas multiculturalidades tradicionais o
direito interno do país se ajustará aos compromissos assumidos no plano internacional
expostos na Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões
Culturais, editada pela Unesco, em 2005, ratificado pelo Brasil por meio do Decreto
Legislativo nº 485, de 20.12.2006 e promulgado mediante o Decreto nº 6.177, de
1.8.2007.
Tal documento internacional corrobora as assertivas aqui lançadas de que a
diversidade cultural15 é uma característica essencial da humanidade e, como tal,
constitui patrimônio comum de todos, reconhecendo os conhecimentos tradicionais
15
O artigo 4º da Convenção expressa a diversidade cultural como multiplicidade de formas pelas quais
as culturas dos grupos e sociedades encontram sua expressão. Tais expressões são transmitidas
entre e dentro dos grupos e sociedades. A diversidade cultural se manifesta não apenas nas variadas formas pelas quais se expressa, se enrique e se transmite o patrimônio cultural da humanidade
mediante a variedade das expressões culturais, mas também através dos diversos modos de criação,
produção, difusão, distribuição e fruição das expressões culturais, quaisquer que sejam os meios e
tecnologia empregados.
26
temas atuais de direito
como fontes de riqueza de uma civilização, tanto considerando os bens materiais
quanto imateriais.
A adoção pelo Brasil da referida Convenção implica na afirmação dos seus princípios diretores, que encontram fundamento na Constituição Federal. São eles: princípio do respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais; princípio da
soberania; princípio da igual dignidade e do respeito por todas as culturas; princípio
do acesso equitativo; princípio da abertura e do equilíbrio; princípio da complementaridade dos aspectos econômicos e culturais do desenvolvimento e o princípio do
desenvolvimento sustentável.
Chega-se ao fim desta explanação com o propósito de chamar a atenção para a
importância da cultura de cada um e de todos na concretização da sadia qualidade de
vida, almejada pelo desenvolvimento sustentável.
A diversidade cultural é condição para tal desenvolvimento, lembrando-se que
sua gênese remonta ao conceito de ecodesenvolvimento, empregado pioneiramente em
1973 por Maurice Strong, tendo a seguinte definição: “desenvolvimento que, em cada
ecorregião, consiste nas soluções específicas de seus problemas particulares, levando
em conta os dados ecológicos da mesma forma que os culturais, as necessidades imediatas, como também aquelas a longo prazo.16
Portanto, infere-se que hoje a nota conceitual de desenvolvimento sustentável,
lançada pela Organização das Nações Unidas em 1987, de que sustentável é o desenvolvimento que satisfaz as necessidades das gerações presentes sem comprometer
que as gerações futuras satisfaçam as suas necessidades, evoluiu para abrigar elementos conceituais que melhor se conformam na nomenclatura de desenvolvimento
humano sustentável.
Esses elementos conceituais estão na efetivação dos direitos fundamentais de liberdade, de igualdade e de fraternidade da pessoa humana conjugada com o crescimento econômico, do que decorre o respeito aos direitos culturais e de todas as suas
multiculturalidades.
5. BIBLIOGRAFIA
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes,
2000.
KRIEGER. Maria da Graça et al. (org.). Dicionário de direito ambiental: terminologia das leis do meio ambiente. Porto Alegre – Brasília: Universidade UFRGS/
Procuradoria Geral da República, 1998.
16
Maria da Graça et al (Org.), Dicionário de direito ambiental: terminologia das leis do meio ambiente,
p. 146.
a proteção jurídica do meio ....
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luzia do socorro silva dos santos
27
LOUREIRO, João de Jesus Paes. Cultura amazônica: uma poética do imaginário.
Belém: Cejup, 1995.
RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. Sâo Paulo:
Companhia das Letras, 1995.
SANTOS, Luzia do Socorro Silva dos. Tutela das diversidades culturais regionais à
luz do sistema jurídico-ambiental. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2005.
3
DESLOCALIZAÇÃO INTERNACIONAL E INTERNA
Georgenor de Sousa Franco Filho
SUMÁRIO: 1. A incidência internacional. 2. A deslocalização na União Europeia. 3. Possibilidade
de deslocalização interna. 4. A realidade inegável e um norte a seguir.
1. A INCIDÊNCIA INTERNACIONAL
Fossemos voltar no tempo, à pré-história, nas idades da pedra ou dos metais, e
encontraríamos o homem morando em cavernas e trocando de uma para outra conforme suas necessidades da época. Mudaram os tempos, a escrita serviu de marco para
assinalar as mudanças das idades.1 Em quaisquer dessas fases, um traço é comum: o
homem é naturalmente nômade, não no sentido estritamente gramatical, mas significando que costuma mudar de lugar (residência, trabalho) com alguma frequência.
Por isso mesmo, nas relações entre os Estados, é reconhecida a migração e o próprio
passaporte existe como forma de limitar essa entrada-saída de pessoas entre os diversos países.
Hodiernamente, pode-se falar não apenas na mobilidade de pessoas físicas, como
também na de pessoas jurídicas e é justamente nesse aspecto que sobressai a figura da
deslocalização, que é nova no Direito.
Chama-se deslocalização o fenômeno que ocorre quando uma empresa situada
em determinado país resolve transferir-se total ou parcialmente para outro, geralmente
buscando saída para barreiras comerciais e/ou para redução de custas (transportes mais
fáceis, salários menores, redução de carga tributária, concessão de subsídios, encargos
sociais mais reduzidos, etc.). É a deslocalizaçao internacional. Geralmente, são os países chamados emergentes os principais receptores dos deslocalizados.
Parece ser um tema novo, recém-saído do imaginário jurídico, mas não é assim.
Trata-se de assunto recorrente, noticiado pelo cinema mudo, no final do século XIX,
como pode ser facilmente verificado no sítio you tube, na internet.2
1
V., a respeito, o meu Novas tecnologias e uma parte do novo mundo do trabalho. In: Jornal Trabalhista Consulex, Brasília, v. 38, pp. 12-14, 2011. LTr. Suplemento Trabalhista, São Paulo, v. 069,
pp. 353-357, 2011; e Revista Sintese Trabalhista e Previdenciária, São Paulo, v. 23, pp. 55-61, 2011.
2
Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=QYNg34rfcrA.Acesso a 2.11.2012.
30
temas atuais de direito
São situações que tem ocorrido de diversas formas. A empresa Motorola, por
exemplo, que é norte-americana, fabrica boa parte de seus produtos na Malásia e os
reexporta para o resto do mundo. O desemprego aumenta nos países desenvolvidos,
porque a mão-de-obra dos países periféricos tem um custo muito menor o que ocasiona
a deslocalização das empresas.
Partidos políticos de esquerda, em Portugal, se movimentam para impedir que a
deslocalização crie mais danos ao operariado local. Informam, por exemplo, que:
a unidade portuguesa do grupo inglês de calçado C & J Clarks (588 trabalhadores) – considerada, aliás, a mais produtiva do grupo – em Castelo de Paiva, em processo de deslocalização para a Roménia, é somente o exemplo mais recente. O mesmo grupo actuou de
idêntico modo em 2001 com a unidade de Arouca (368 trabalhadores). Mas recordemos os
casos passados de deslocalização e reestruturação da Texas Instruments Samsung Electronic
(TISE) – 740 trabalhadores – na Maia; a Longa Vida – Nestlé, em Matosinhos; a ERU, em
Carcavelos; a Renault, de Setúbal e Cacia; a Grundig Auto-Rádios, em Braga (107 trabalhadores); a Indelma (600 trabalhadores), no Seixal; a Goela Fashion, em Santo Tirso (137
trabalhadores), a Schoeller (200 trabalhadores), em Vila Real; a ERES (500 trabalhadores),
no Fundão; a Bagir (283 trabalhadores), em Coimbra, a Melka (170 trabalhadores), em
Palmela; a Schuh Union (440 trabalhadores), na Maia; a ARA (300 trabalhadores), em Seia;
etc. Ou o caso em curso da Lear (Palmela) – empresa produtora de capas para bancos de
automóvel – abrangendo cerca de 1.500 trabalhadores ou a Alcoa (1.000 trabalhadores),
dedicada à produção de cablagens para a indústria automóvel.3
Por outro lado, com o crescimento do Ensino a Distância (EAD), o importante é o
acesso à internet, e não mais a proximidade da residência do aluno, as dificuldades com
seu deslocamento, o comparecimento do professor às salas de aula. Corolário, passam
a se deslocalizar docentes e discentes. E as próprias escolas investem em tecnologia e
não mais em grandes e monumentais edifícios.
Trata-se de um processo contínuo, que as empresas transnacionais (também chamadas de multinacionais) adotam para atender suas estratégias. Resultado da deslocalização é a relocalização, geralmente influenciada pela redução da intervenção dos
Estados nacionais na economia interna, promovendo, em consequência, redução de
direitos sociais.
Inegável, também, a influência do desenvolvimento tecnológico, que proporciona,
em boa parte, um aumento de transferência das atividades produtivas sempre objetivando uma redução de custos do trabalho. Atividades desenvolvidas nos setores têxteis, de
vestuário, mobiliário, calçados, bebidas e alimentos costumam ser as mais atingidas.
Nos países deslocalizados, ampliam-se as taxas de desemprego, e nos relocalizados, degradam-se as relações de trabalho, no modelo de produção flexível, rápido e de
baixo custo, aumentando a exploração da mão-de-obra humana, já que o único objeto
é o aumento do lucro.
3Cf. http://www.pcp.pt/projecto-de-lei-n%C2%BA-213ix-deslocaliza%C3%A7%C3%A3o-de-empresas. Acesso a 20.11.2012
deslocalização internacional ...
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georgenor de sousa franco filho
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2. A DESLOCALIZAÇÃO NA UNIÃO EUROPÉIA
Na União Europeia, várias normas comunitárias visando minimizar os danos
com a proteção do trabalho, de que são exemplo a Diretiva 98/59/CE, de 20.7.1998
relativa à aproximação das legislações dos Estados-membros respeitantes aos despedimentos coletivos, a Diretiva 2001/86/CE do Conselho de 8.10.2001,queregula o
envolvimento dos trabalhadores nas atividades das sociedades anónimas europeias
(Societas Europaea, a seguir designada por SE), a que se refere o Regulamento
(CE) nº 2157/2001, a Diretiva 2002/14/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de
11.3.2002 queestabelece um quadro geral relativo à informação e à consulta dos trabalhadores na Comunidade Europeia, o Regulamento (CE) nº 1260/1999 do Conselho
de 21.6.1999, que estabelece disposições gerais sobre os Fundos Estruturais,o Livro
Verdede 18.7.2007, visandopromover um quadro europeu para a responsabilidade social das empresas.
O Regulamento nº 1260/1999 prevê, dentre outras iniciativas comunitárias, a cooperação transnacional para a promoção de novas práticas de luta contra as discriminações e desigualdades de qualquer natureza relacionadas com o mercado do trabalho
(EQUAL) (art. 20, 1, d).
A Diretiva 98/59/CE impõe seja a autoridade pública notificada pelo empregador
que possua algum projeto visando a promover o despedimento coletivo (art. 3, 1), limitando a quantidade de empregados despedidos ao total do quadro de trabalhadores da
emrpesa, em uma escala progressiva (art. 1, 1,a).
No que refere à Diretiva 2001/86/CE, deve ser dado realcea esse envolvimento dos
trabalhadores, que objetiva a contar com a participação direta de seus representantes
nas decisões a serem tomadas no ambito de uma sociedade (art. 2, h).
A Diretiva 2002/14/CE é aplicávelàsempresas com mais de cinquenta empregados
ou aos estabelecimentos que possuam mais de vinte trabalhadores, deacordo com a opção do Estado-Membroda União Européia (art. 3, 1). Consignaessa diretiva o relevante
aspecto de que o trabalhador sempre deve estar informado dos destinos da empresa,
como se verifica no art. 4, 2:
2. A informação e a consulta incluem:
a) A informação sobre a evolução recente e a evolução provável das atividades da empresa
ou do estabelecimento e a sua situação econômica.
b) A informação e a consulta sobre a situação, a estrutura e a evolução provável do emprego
na empresa ou no estabelecimento e sobre as eventuais medidas de antecipação previstas,
nomeadamente em caso de ameaça para o emprego;
c) A informação e a consulta sobre as decisões susceptíveis de desencadear mudanças substanciais a nível da(sic)organização do trabalho ou dos contratos de trabalho, incluindo as
abrangidas pelas disposições comunitárias referidas no nº 1 do artigo 94.
4
Este dispositivo amplia ainda mais o direito à informação que detém o empregado. Texto disponível em: http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=CELEX:32002L0014:PT:HTML.
Acesso a 20.11.2012.
32
temas atuais de direito
Outro ponto relevante foi a adoção do Livro Verde de julho de 2001. Na Europa
unificada, o primeiro Livro Verde surgiu em maio de 1984, criando um mercadocomumpara a radiodifusão, especialmente por satélite e por cabo.
No Livro Verde de 2001, inúmeros pontos são abordados, inclusive da inclusão de
trabalhadores, assinalando: as práticas de recrutamento responsáveis, designadamente não-discriminatórias, poderão facilitar a contratação de pessoas provenientes de
minorias étnicas,trabalhadores mais idosos, mulheres, desempregados de longa duração e pessoas em situação de desvantagem no mercado de trabalho. Estas ações são
fundamentais para a consecução dos objetivos fixados pela Estratégia Europeia de
Emprego – a redução do desemprego, o aumento da taxa de emprego e a luta contra a
exclusão social.5
A fim de evitar o aumento da mobilidade de mão-de-obra, pela via da deslocalização, embora sem enfrentar diretamente esse tema, o Livro Verde de 2001 acentua,
adaptando as empresas às mudanças, que reestruturar uma empresa de forma socialmente responsável significa levar em consideração e equilibrar os interesses de todas as partes interessadas que são afetadas pelas mudanças e decisões. Na prática, a
forma como decorre o processo é,muitas vezes, tão importante como o fundo para o
sucesso da reestruturação,implicando, nomeadamente, a participação e a associação
de todos os elementos afetados através de uma informação e consultas abertas. Além
disso, a reestruturação deverá ser cuidadosamente preparada através da identificação
dos riscos mais significativos, de uma previsão de custos – diretos e indiretos -, a par de
estratégias e políticas alternativas e da ponderação de todas as formas que permitam
reduzir a necessidade de despedimentos.6
Anteriormente a essas manifestações, o Parlamento Europeu adotou a Resolução
sobre as deslocalizações e os investimentos estrangeiros diretos nos países terceiros,
de 1997.7 Os consideranda chamam a atenção para vários aspectos, devendo se destacar cinco:
1. a deslocalização é um fenômeno que estritamente econômico e não ideológico;
2. as relações entre investimentos estrangeiros diretos e deslocalizações são
complexas e podem levar a juízos e valor equivocados;
3. nem sempre o custo da mão-de-obra é essencial para levar às deslocalizações;
4. existem deslocalizações que não observam estritamente problemas econômicos, mas também objetivam obter subvenções, incentivos fiscais ou sociais que
influenciam a concorrência, que podem ter repercussões negativas em matéria de
emprego; e,
5
Disponível em: http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/site/pt/com/2001/com2001_0366pt01.pdf. .
Acesso a 21.11.2012.
6 Disponível em: http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/site/pt/com/2001/com2001_0366pt01.pdf.
Acesso a 21.11.2012.
7
Texto integral disponível em: http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=CELEX:519
97IP0392:PT:HTML. Acesso a 20.11.2012
deslocalização internacional ...
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georgenor de sousa franco filho
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5. na fase atual da globalização, as transnacionais devem também considerar a
necessidade de promover o desenvolvimento social no mundo.
Após, elenca suas propostas, que vão desde a inserção de cláusulas sociais e ambientais em acordos internacionais bi ou multilaterais e no âmbito da Organização
Mundial de Comércio até a elaboração de um código de conduta para as transnacionais
europeias, nos moldes de outros similares.8 Nessa proposta de código, devem ser destacados quatro pontos: 1) direito de organização sindical e de negociação coletiva; 2)
proibição do trabalho forçado; 3) proibição do trabalho infantil; 4) eliminação da discriminação no emprego e na profissão e igualdade de salários entre homens e mulheres.
Como se constata, a Europa mantém-se na dianteira da preocupação com a efetivação das garantias dos direitos humanos. No Direito original da União Europeia,
identifica-se essa preocupação, desde os primeiros tratados (Roma e Paris) chegando
aos mais recentes (Maastricht e Lisboa), e o direito derivado bem demonstra essa sensibilidade, que vai para quase quinze anos (caso da Diretiva98/59/CE).
3. POSSIBILIDADE DE DESLOCALIZAÇÃO INTERNA
Até aqui, alinhei algumas considerações sobre o fenômeno em nível internacional. Afinal, deslocalização no mesmo país pode parecer estranho, porquanto as regras
tutelares são as mesmas em quaisquer regiões. No Brasil, por exemplo, a legislação trabalhista é uma só. Horas extras são as mesmas sejam praticadas em São Paulo capital,
ou nas mais longínquas paragens da Amazônia, ou nos mais desertos locais do sertão
nordestino. As férias podem ser gozadas de forma semelhante, com o mesmo acréscimo
de 1/3 e o mesmo abono também de 1/3. E assim outros tantos direitos trabalhistas.
Existem, porém, certos aspectos contingenciais que podem ensejar a que se admita a deslocalização interna. A Constituição brasileira contempla o reconhecimento
dos acordos e convenções coletivas de trabalho (art. 7º, nº XXVI). Com efeito, pela via
da negociação coletiva, podemos ter direitos específicos em determinadas situações, e,
nessas circunstâncias, pode ser constatada a ocorrência da deslocalização, ainda que de
maneira bastante sutil, internamente.
Poderia se identificar a deslocalização com a adoção dos work centers, ou centros
de trabalho, com capacidade para 300 a 500 pessoas, situados em diferentes locais de
uma cidade ou de uma região metropolitana, permitindo com que existam vários setores da mesma empresa, de cerca de cinco mil empregados antes concentrados em um
único endereço, espalhados pela mesma localidade, ficando suas residências próximas
desses locais, com o que facilitam o deslocamento, economizando combustível e evitando poluição. No entanto, do ponto de vista dos efeitos sobre os contratos de trabalho,
8
A Resolução refere ao Código de Conduta que os Estados Unidos da América elaboraram para
as empresas multinacionais americanas, mas existe, igualmente, a prestigiada Declaração tripartite
de princípios sobre as empresas multinacionais e a política social, elaborada por Hans Güntere
publicada pela OIT, em 1.janeiro.1982. Disponível em: http://www.ilo.org/empent/Publications/
WCMS_125796/lang--es/index.htm. Acesso a 16.12.2012.
34
temas atuais de direito
não há, de início, algum efeito mais significativo. Existem, sim, reflexos positivos no
meio ambiente das cidades onde ocorre o surgimento desses centros. Por outro lado,
com a multiplicidade dos work centers, as regras livremente negociadas por ser diferentes e poderia ser possível uma deslocalização interna a fim manter esses centros em
locais onde existissem menos normas protetoras.
Pode ser encontrada, ademais, a ocorrência de deslocalização interna em situações que envolvam os grandes empreendimentos que ocorrem no Brasil e em muitos
países, quando grupos econômicos reúnem-se na modalidade consórcio, que são uma
espécie de contrato de sociedade, para realizar grandes obras de engenharia.
As empresas que constituem esses consórcios para realizar determinada obra recrutam e contratam trabalhadores, que são despedidos ao final dos trabalhos. Concluída
aquela, outra é iniciada em local diferente, formando-se novo consórcio construtor,
geralmente comas mesmas empresas do anterior.
Nesse momento, negociam coletivamente com os trabalhadores locais, e fixam-se
as condições específicas de trabalho. Em seguida, trabalhadores dispensados da primeira obra são levados pelas empresas formadoras do novo consórcio, também integrantes
do anterior, para trabalharem na nova obra.
Chegando, essas levas de trabalhadores se defrontam com as normas coletivas
negociadas com os locais, que, apesar de atenderem à realidade destes, são diferentes e
com menos direitos que às vigentes na outra obra.
A questão que se propõe é saber se as normas preexistentes subsistem também
para aplicação aos empregados que, tendo trabalhado para as mesmas empresas em
outro consórcio em obra similar, estão nessa nova obra e recebem uma norma que não
foi por eles negociada, embora abranja todos os empregados?
A resposta, numa primeira visão, seria positiva, no sentido de que aos novos empregados se aplica a norma coletiva em vigor. Porém, devemos considerar esse moderno fenômeno da deslocalização/relocalização, nesse caso de mobilidade interna de mão-de-obra.
A meu ver, numa hipótese como a descrita acima, estamos em um clássico caso de
rebus sic stantibus. As circunstâncias mudaram. Houve uma alteração fundamental que
inviabiliza a aplicação da norma pretérita.
O Código Civil em vigor, garantindo que a liberdade de contratar será exercida
em razão e nos limites da função social do contrato (art. 421), adota a teoria da imprevisão e prevê a atuação do Judiciário para corrigir efeitos que possam ser criados,
prejudicando uma das partes.
Nesse particular, duas regras do Código Civil, que podem ser aplicadas ao Direito
do Trabalho, por força do art. 8º, parágrafo único, da CLT. São os artigos 3179 e 478,10
que transferem ao juiz a competência para modificar os contratos.
9
Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da
prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de
modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.
10
Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se
tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos
deslocalização internacional ...
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georgenor de sousa franco filho
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Com efeito, esses dispositivos permitem a revisão de uma norma coletiva em vigor.
A primeira norma coletiva, negociada com trabalhadores moradores da localidade da
obra, não pode ser aplicada aos que vieram de outra região, de outra obra, embora realizada por uma sociedade diferente, da qual apenas algumas empresas são componentes da
nova. Devem ser feitas algumas avaliações conjunturais que, ao cabo, podem resultar na
impossibilidade de validar, aos novos empregados, as regras negociadas anteriormente.
Constatada que a obra realizada é similar a anterior, que os trabalhos efetuados
pelo grupo de obreiros é o mesmo de antes, que as condições de desenvolvimento das
atividades são também idênticas, que o numero de trabalhadores relocalizados é superior àquele de quando a norma coletiva foi negociada, será correto rever a norma, e
renegociá-la para atender à realidade presente das questões sociais. Se inexistir possibilidade de acordo, somente então é que deverá decidir a Justiça do Trabalho.
Não há, na CLT, fixação de prazo mínimo de vigência de norma coletiva para que
ocorra revisão. A regra existente é a § 3º do art. 614 consolidado, que determina: não
será permitido estipular duração de Convenção ou Acordo superior a 2 (dois) anos.
Por corolário, é possível rever qualquer norma coletiva autônoma a qualquer tempo,
desde que nunca inferior a dois anos.
Identificada a deslocalização interna, o negociado poderá ser revisado e, se a revisão não for viável pela via negocial, deve ser admitida a possibilidade de ser feita pela
Justiça do Trabalho, aplicando-se, por analogia, o disposto no art. 873 da CLT, verbis:
Art. 873. Decorrido mais de 1 (um) ano de sua vigência, caberá revisão das decisões que fixarem condições de trabalho, quando se tiverem modificado as circunstâncias que as ditaram, de
modo que tais condições se hajam tornado injustas ou inaplicáveis.
Assim, sendo constatada que a norma existente não mais pode ser aplicada, em
decorrência da deslocalização/relocaliação da maioria dos trabalhadores, que antes
eram beneficiados por regras mais favoráveis, e, nessa nova obra, receberam direitos
negociados anteriormente e inferiores àquela, quando a maioria dos empregados era da
própria localidade.
4. A REALIDADE INEGÁVEL E UM NORTE A SEGUIR
As considerações ligeiras que foram feitas acima demonstram, a meu ver, duas coisas. Primeiro, a deslocalização é um fenômeno que preocupa as relações de trabalho
e que está a merecer cuidadoso estudo para tentar encontrar pontos que visem a evitar
prejuízos para a classe trabalhadora. Segundo, embora existente em grande escala dentro
do processo de internacionalização da economia, é induvidoso que pode ser encontrado,
com características diferentes, internamente em muitos países, oque, reforça ainda mais a
necessidade de criação de regras que minimizem os prejuízos aos trabalhadores.
extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação
36
temas atuais de direito
Acredito que seria oportuno, antecipando-se à uma realidade próxima, que se elabore um código de conduta das empresas em caso de deslocalização interna, para aplicação no Brasil. Esse código comportamental deveria indicar pontos que precisam ser
preservados quando se constatar esse movimento migratória de trabalhadores.
Existem questões que permitem se identificar claramente a deslocalização interna,
e, consequentemente, a necessidade de preservação dos direitos adquiridos pelos trabalhadores em norma coletiva anterior vigente em outra local do mesmo país. Supondo
que o acordo coletivo celebrado entre uma construtora e seus trabalhadores, que não
são residentes das proximidades, fixe uma cláusula criando o direito de visitação à
família para os que não são da localidade, de cinco dias a cada três meses de trabalho.
Costuma-se chamar esse direito de baixada. Em outra obra distante daquela, a mesma
empresa negocia com trabalhadores locais o período de baixada de cinco dias a cada
seis meses de trabalho, considerando que os obreiros são residentes de local próximo.
No tempo de vigência da norma, os trabalhadores da primeira obra deslocalizaram-se, passando a trabalhar na nova obra, onde encontraram um período de baixada diferente. Ora, provado que estão em número superior aos negociadores primitivos, resulta
evidente a necessidade de revisão da norma para adequá-la à nova realidade social posta.
Exemplo claro de deslocalização interna poderia ser encontrado no Proc. TRT-SE
1-DCG-0000268-90.2012.5.08.0000,11 acerca de atividades nas obras de construção da
Usina Hidrelétrica de Belo Monte, em Altamira, no Pará.
Durante os debates na Seção Especializada I do TRT da 8ª Região, propus fosse
diligenciado a fim de verificar se ocorrera acréscimo de trabalhadores com a vinda de
obreiros que trabalhariam em obras similares nas UHEs de Jirau e de Santo Antônio,
no Estado de Rondônia, para caracterizar a necessidade de preservação dos direitos
que adquiriram naqueles empreendimentos. Por esse viés, poderia ser adequadamente
aplicada a teoria da imprevisão. As diligências efetuadas, no entanto, não trouxeram
elementos que, a meu ver, seriam necessários para caracterizar a rebus sic stantibus.
Os argumentos que foram expendidos no acórdão, apesar da intenção de possuírem
objetivo social relevante, como quando é ressaltado que a cláusula referente à baixada
deveria ser deferida em homenagem aos princípios constitucionais da dignidade da
pessoa humana e dos valores sociais do trabalho (artigo 1º, III, 6º e 7º da CR/88), e
que houve um expressivo aumento do número de trabalhadores na obra, não apresentam base efetivamente sustentável porque ultrapassam os limites do poder normativo
da Justiça do Trabalho, já tão atingido pelos que querem retirá-lo do mundo do direito.
Haveria, sob a minha ótica, necessidade de ficar comprovada a deslocalização
de trabalhadores das UHEs de Jirau e de Santo Antônio, em Rondônia, para a UHE de
Belo Monte, no Pará. O acórdão regional, inclusive, reporta-se em parte a esse ponto,
embora não utilize, uma só vez, o termo deslocalização.
As relações de empregados que foram juntadas ao processo de Belo Monte, indicavam apenas a origem de cada um, mas não demonstravam se teriam ou não vindo
das obras de Rondônia. Note-se que foram juntados vários acordos coletivos de traba-
11
Este processo foi julgado a 23.11.2012 (Rela.: Desembargadora Rosita de Nazaré Sidrim Nassar).
deslocalização internacional ...
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georgenor de sousa franco filho
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lho, negociados nas UHEs de Jirau e Santo Antônio (dos anos 2009/2010, 2010/2011,
2011/2012 e 2012/2013).12 Examinando-os, constata-se que as folgas de campo (baixadas), eram, inicialmente, de cinco dias a cada seis meses (de 2009 a 2011), e passaram
a ser de cinco dias a cada três meses (de 2011 a 2013).
Em Belo Monte, a norma vigente (2011/2012) fixava a baixada de cinco dias a
cada seis meses. A decisão majoritária do TRT da 8ª Região modificou esse período
para cinco dias a cada três meses, exatamente como nas normas mais recentes das
UHEs de Jirau e Santo Antônio.
Como não foi identificada a ocorrência da deslocalização, manifestei-me contrariamente às cláusulas propostas (aumento do valor da Cesta básica e modificação do
período de Visita à família/Folga de campo, que é a baixada), considerando que sequer
seria possível invocar, analogicamente, o art. 873 da CLT mencionado acima.
Relativamente a cláusula que cuidava de cesta básica/alimentação, as normas das
UHEs de Jirau e de Santo Antônio previam, de 2009 a 2010, R$-80,00/mês; de 2010
a 2011, R$-110,00/mês; e, de 2011 a 2012, R$-170,00/mês. De 2012 a 2013, o acordo
coletivo com uma empresa (Construções e Comércio Camargo Correa S/A) passou a
ser escalonado (cláusula 8ª).
Em Belo Monte, a norma coletiva que se encontrava vigente previa idêntica verba no valor de R$-95,00/mês, em acordo coletivo que vigorou entre 2011/2012. Era
pretendido que o valor passasse a R$-300,00/mês. Fundando-se em dados do DIEESE,
o reajuste foi deferido, mas o montante foi baseado nas normas vigentes nos acordos
aplicáveis às UHEs de Jirau e de Santo Antônio, em Rondônia, para o mesmo período.13
12
Nos autos do processo encontram-se os seguintes acordos coletivos de trabalho negociados pelo
Sindicato de trabalhadores:
PERIODO
PARTE
UHE
2009/2010
Construções e Comércio Camargo Corrêa S/A
Jirau
2009/2010
Consorcio Santo Antônio
Santo Antônio
2010/2011
Construções e Comércio Camargo Corrêa S/A
Jirau
2010/2011
Consorcio Santo Antônio
Santo Antônio
2011/2012
Construções e Comércio Camargo Corrêa S/A
Jirau
2011/2012
Consorcio Santo Antônio
Santo Antônio
2011/2012
Consórcio Construtor Belo Monte
Belo Monte
2012/2013
Construções e Comercio Camargo Corrêa S/A
Jirau
Fonte: Proc. TRT-SE 1-DCG-0000268-90.2012.5.08.0000
13
Consta da fundamentação do aresto: Considerando, porém, que nas Usinas Hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau o valor de R$270,00 (duzentos e setenta reais) refere-se ao Acordo Coletivo
2012/2013 e no presente caso se está a revisar o ACT 2011/2012, cujavgência foi fixada para o período compreendido entre 1º.11.2011 a 31.10.2012, devendo as categorias profissional e econômica
estar em via de negociarem o acordo coletivo para viger no período de 2012/2013, oportunidade em
que os valores ali fixados deverão ser revistos, por equidade, fixo o valor da cesta básica na quantia
de R$-210,00 (duzentos e dez reais). (Proc. TRT 8ª-SE 1-DCG-0000268-90.2012.5.08.0000)
38
temas atuais de direito
Aqui, igualmente, fica constatada a aplicação da teoria da deslocalização, embora os
fundamentos usados tenham sido diversos destes, razão pela qual, naquela hipótese,
porque não efetivamente demonstrado, fui, enquanto integrante daquele colegiado julgador, vencido.
Com se verifica, o fenômeno da deslocalização está presente também internamente. O exemplo da UHE de Belo Monte, que tomei como estudo de caso, demonstra isto
à exaustão. E desse caso, pelo menos duas conclusões podem ser tiradas. A primeira é
que desconhecemos no Brasil o fenômeno da deslocalização como modalidade interna
de possibilidade de rever direitos trabalhistas que garantam melhorias aos trabalhadores. O segundo é que inexiste qualquer garantia para preservar os direitos conquistados
em um local e que se possam garantir em caso de mudança de lugar de desenvolvimento de atividade.
Para acabar com esse grave problema, que certamente originou-se dos processos
de internacionalização da economia, da mobilidade das pessoas e do desenvolvimento
empresarial, é necessário adotar meios de regulamentação da deslocalização e da relocalização e incrementar a responsabilidade social das empresas. Na Europa, como assinalado acima, as medidas estão sendo tomadas. No Brasil, ainda não existe nada, pelo
que é recomendável realizar estudos minuciosos no sentido da elaboração pelo menos
de um código de conduta que indique parâmetros mínimos de respeito ao trabalhador.
4
A RESPONSABILIDADE CIVIL COMO CATEGORIA DE
CONCRETIZAÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS:
UMA PERSPECTIVA JURISPRUDENCIAL
Pastora do Socorro Teixeira Leal
Resumo: O presente estudo apresenta reflexões no sentido de demonstrar a relevância da
análise de decisões judiciais que tenham por pauta questões inerentes à reparação de danos
calcada na responsabilidade civil. O intento é o de ressaltar a importância de se problematizar se as referidas decisões judiciais são representativas de uma interpretação adequada
dos direitos fundamentais. Por interpretação adequada entende-se aqui uma compreensão
da responsabilidade civil enquanto elemento de concretização dos direitos fundamentais
nas relações privadas, elemento que, destarte, apresenta uma postura zetética diante de
tradicionais dogmas da teoria do direito, como a distinção Justiniana entre direito público
e direito privado. Para tanto, propõe-se a necessidade de uma releitura teórica do instituto
da responsabilidade civil. Releitura esta que necessariamente fica pautada em bases ético-valorativas da vinculação entre particulares nos termos das próprias normas de direito
fundamentais, e que, buscando dar densidade semântica e efetividade para o conceito de
responsabilidade, tem por plano de fundo uma concepção contratualista da ética da responsabilidade entre os civis.
PALAVRAS-CHAVE: direitos fundamentais; responsabilidade civil; concretização de direitos; interpretação judicial.
ABSTRACT: The article reflects on the importance of the analysis of court decisions that
have cases for damages in civil sphere. The intention is to highlight the importance of questioning whether those judgments are representative of a proper interpretation of fundamental
rights. The proper interpretation is to understand the civil liability as an instrument of realization of fundamental rights in private relations, in view of the manifestation of a vision estátia
dogmas of traditional legal theory, as Justinian the distinction between public law and private
law. Therefore, it is important a new theoretical vision of the institute civil liability. This discussion covers some techniques to ensure the use of fundamental rights in private relations.
Seeking semantic density and efficiency to the concept of responsibility the present work uses
a contractarian ethics on the concept of responsibility.
KEY-WORDS: fundamental rights; civil liability; realising the rights; judicial interpretation.
SUMÁRIO: Introdução; 1. Contextualização da Problemática; 2. Bases Teóricas e
Possibilidades de Concretização; 3. Bibliografia.
40
temas atuais de direito
INTRODUÇÃO
O presente estudo contém reflexões que fazem parte de investigações desenvolvidas em projeto de pesquisa.1 Parte de um pressuposto doutrinário dividido em cinco
idéias, quais sejam: 1) uma das características gerais mais relevantes das sociedades
contemporâneas, adquiridas com o movimento do constitucionalismo moderno, é o seu
idiossincrático relacionamento com a concepção da responsabilidade ética que deve
ser resguardada nas relações entre os particulares; 2) a Constituição de um Estado é o
elemento político mais representativo da concepção de justiça existente neste Estado;
3) dentro do texto constitucional há uma classe normativa que, de modo mais significativo que as demais, condensa estas escolhas fundamentais, os direitos fundamentais,
e, nesse ensejo, 4) para que os direitos fundamentais possam ser a marca de confiança
que sustentará os pactos de justiça presentes em cada sociedade, é necessário que estes
direitos fundamentais intercedam, precipuamente, nas relações travadas entre particulares, pois o conceito de justiça (política) não conhece a distinção entre o público e o
privado; e, por fim, 5) que há no ordenamento jurídico pátrio norma de direito positivo que condensa, de maneira emblemática, o debate aqui referido: o art. 927, e seu
Parágrafo Único, do Codex Reale.
Importa, assim, perquirir qual é a relação existente entre a constituição, os direitos
fundamentais a ela pertencentes, e concepção do que seja a responsabilidade civil apresentada pela constituição, tendo em vista a permanência e a eficácia do ideal de justiça
categorizado.
A proposta se justifica, pois hodiernamente urge que pensemos a responsabilidade
civil não apenas como uma categoria de vinculação de índole privada, mais sim como
sendo um robusto contributo jurídico para a manutenção de um pacto social de justiça, elemento que, conforme preceituado no disposto parágrafo único, do art. 927 do
Código Civil brasileiro, tem a relevante função de manter os ideais de justiça mesmo
em face da contingência.
Para tanto, contudo, é necessário que se compreenda a responsabilidade civil
como uma micrológica da teoria da justiça de uma determinada sociedade, e que, por
isso, como sendo verdadeiro mecanismo de tutela de direitos fundamentais naquela
sociedade, que no caso das sociedades funcionalmente diferenciadas, vem abarcada nas
cartas constitucionais das quais são dotadas.
Tal compreensão, seguindo o pressuposto teórico aqui explicitado, precisa tomar
concretude nas relações sociais, e, ante a função social que se outorga ao direito e às
questões jurídicas, a mais eficaz forma de dar concretização a uma concepção valorativa
do instituto da responsabilidade civil, nos moldes acima oferecidos, é mesmo através da
decisão imperativa e impositiva que advém do serviço jurisdicional, daí porque é elemento central o manejo do teor das decisões judiciais que enfrentam a problemática em tela.
1
Projeto de pesquisa desenvolvido na UNAMA intitulado “A responsabilidade civil como categoria
de concretização dos direitos fundamentais: uma perspectiva jurisprudencial”, sob a coordenação da
autora e a participação do professor e mestre Adelvan Oliverio Silva.
a responsabilidade civil como ...
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pastora do socrro teixeira leal
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1. CONTEXTUALIZAÇÃO DA PROBLEMÁTICA
Obra antológica, que marcou o início das rediscussões sobre o tema no século XX,
Jonh Rawls (2000) inicia com a assertiva, tão cabal quanto categórica, de que “a justiça
é a primeira virtude das instituições sociais, como a verdade o é dos sistemas de pensamento”, e posteriormente explicita que [...] o objeto primário da justiça é a estrutura
básica da sociedade, ou mais exatamente, a maneira pela qual as instituições sociais
mais importantes distribuem direitos e deveres fundamentais e determinam a divisão
de vantagens provenientes da cooperação social.
Nesse sentido, importa ao jurista, envolvido que é com os problemas práticos do
mundo da vida, buscar encontrar maneiras de cumprir com a ideia primária e concreta
de justiça, isto é, alcançar um determinado modelo de distribuição de direitos fundamentais e divisão de vantagens advindas da cooperação social.
A relação entre o direito civil e o direito constitucional – este sendo demarcação
da ordem máxima das escolhas fundamentais de uma determinada comunidade, e aquele da liberdade humana – neste sentido, e dentro de tais preocupações sobre uma teoria
da justiça, é paradigmática.
O Código Civil Brasileiro, alberga norma que, nesse particular, é absolutamente
representativa, como veremos, das duas questões centrais, quais sejam: 1) uma determinada compreensão da dimensão temporal do direito e dos direitos fundamentais,
em particular; e, 2) da incidência destes direitos fundamentais nas relações interprivadas, questionando-se, assim, a partir de uma percepção temporal do direito, a
clássica distinção entre um âmbito público e outro privado da vida, e por isso, do
estabelecimento de uma matriz institucional de “direito público” e outra de direito
“privado”.
Trata-se, do disposto no art. 927, em especial em seu Parágrafo Único, que aventa
a existência da obrigação de reparar o dano causado a outrem, independente de culpa,
sempre que a atividade desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua própria natureza, risco para os direitos de outrem.
Não é dificultoso concluir, da simples leitura do dispositivo acima referido, a preocupação do direito positivo com o risco, bem entendido este como uma ordem de referencias à contingência, elemento incontornável de uma sociedade aberta para o futuro.
O dever de indenizar preconizado pela norma civil, assim, é tão somente um
elemento mais restrito de uma sistemática, localizada no ordenamento jurídico, que
pretende proteger um pacto social fundamental da inexorável imprevisão do futuro,
pretensão esta que, repita-se, tem um de seus pontos fortes da na eficácia dos direitos
fundamentais, e, especificamente, em sua projeção nas relações privadas.
Importa, então, compreender de maneira mais pontual qual a importância dos direitos fundamentais e sua incidência global no mundo da vida privada e pública, para a
manutenção de um pacto social fundante, pacto este que ostenta, invariavelmente, uma
teoria de justiça, e como o tempo – passado, presente e futuro – interagem, através das
instituições sociais mais importantes, como o Poder Judiciário, nesta espécie de seguro
social que se torna a responsabilidade civil.
42
temas atuais de direito
2. BASES TEÓRICAS E POSSIBILIDADES DE CONCRETIZAÇÃO
Nessa linha de raciocínio, releva centrar o olhar em decisões judiciais brasileiras
em matéria de responsabilidade civil, a fim de identificar a existência efetiva, ou não,
de uma visão da responsabilidade civil considerada – dentro do aporte normativo estabelecido pela Constituição e pelo Código Civil brasileiro – como uma categoria que
assegurará o cumprimento de princípios preceitos de justiça escolhidos por uma determinada sociedade, tendo por pressuposto que o tempo, e a contingência a ele inerente,
tende a colocar em xeque aquele pacto inicial.
Um levantamento e inventário criterioso das decisões judiciais pátrias que abordem a temática multifacetária da responsabilidade civil, dentro da perspectiva generalista de uma análise hermenêutica dos principais topoi argumentativos de tais decisões
poderá fornecer elementos que possam demonstrar se em tais decisões há um tratamento da responsabilidade civil como instrumento de concretização dos direitos fundamentais e de uma concepção pública de justiça. Pressupondo-se afirmativas as questões
anteriores, será possível compreender se, dentro da perspectiva da responsabilidade
civil como elemento de justiça também as relações travadas entre particulares.
É hoje um consenso quase generalizado que o aspecto do Direito Constitucional
Geral maiormente estudado ao menos nos últimos cinquenta anos foi a Teoria dos
Direitos Humanos/Fundamentais .
Posteriormente à concretização dos mais virulentos acontecimentos séc. XX , a
construção político-constitucional dos Direitos Fundamentais adquire nítidos contornos de locus teleológico de toda a organização social, em seus mais diversos níveis ou
leituras ideológicas .
Nesta esteira, sem que furtada fosse do Estado sua posição de destinatário por
excelência das normas de direitos fundamentais, passou-se a reconhecer, de forma expressa, a incidência das mesmas em relações que, observadas a partir do ponto de vista
próprio da dogmática clássica dos ideais iluministas, quase sempre foram apontadas
como relações entre iguais, e, por isso, colocadas no plano da “horizontalidade”.
O fato é que atualmente, poucos são os que se dispõe a contestar, seja de forma
velada ou aberta, a efetiva existência do fenômeno do poder privado, bem como os
efeitos até mesmo colonizadores que dele podem ser advindos em detrimento da pessoa
humana, e, via reflexa, a necessidade da incidência do arcabouço de garantia dos direitos fundamentais nas relações privadas, isto, é naquelas disposições travadas em maior
ou menor amplitude entre dois titulares de esta classe de garantias.
Destarte, o debate sobre a amplitude da proteção oferecida pelos direitos fundamentais nas relações privadas, demonstra-se como corolário direto de uma determinada
concepção dogmático – valorativa dos próprios direitos fundamentais, e, antes disto,
daquela matriz normativa na qual eles figuram: a Constituição.
Assim, a compreensão da racionalidade inerente aos direitos fundamentais, que
lhe permitem transcender aquela construção primária de garantia em face do Estado
ou mesmo oferecida pelo Estado – para o estabelecimento de uma pauta mínima de
proteção, inviolável mesmo perante às mais complexas relações desencadeadas entre
a responsabilidade civil como ...
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pastora do socrro teixeira leal
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os particulares, oferece a conclusão de que os direitos fundamentais podem ser compreendidos como elementos de proteção de um verdadeiro pacto social, certificando uma
determinada escolha por um ideal de organização e de justiça.
Quer dizer, se a atribuição de significância e funcionalidade dos direitos fundamentais necessita de um diálogo com uma série de instâncias – verbi gratia, uma concepção política bem situada do papel destes mesmos direitos fundamentais na vida
em comum; da sua operacionalização concreta através de instituições organizadas na
forma de divisão e especialização do trabalho, como o Poder Judiciário e Executivo; e,
máxime, de uma sempre mais ou menos subjetiva concepção de ética e formação moral
daqueles que desempenham atribuições sociais estratégicas, como o juiz – não quer
isso dizer que os mesmos direitos fundamentais não apresentem – dada a sua posição
dentro da uma específica estrutura normativa de uma comunidade igualmente específica – características que lhe confiram, desde logo, e de modo essencialmente funcional,
importância e dignidade próprias na organização das sociedades contemporâneas, eminentemente complexas que são.
Nesse sentido, um primeiro passo para a compreensão destas características funcionais dos direitos fundamentais, é estabelecer que, estando esta classe de normas
enraizada dentro de uma ordem ou sistema constitucional, será ela necessariamente
herdeira das principais idiossincrasias desta própria matriz, e, por isso, caberia ao pesquisador buscar delimitar que tipo de constituição é esta que alberga isto que chamamos de direitos fundamentais, norma constitucional que, sem dúvidas, representa
caminho mais direto para a compreensão daqueles ideais de organização e de justiça de
uma determinada comunidade .
Como sabemos, a nossa própria construção do conceito de direitos fundamentais
e de sua fundamentalidade, decorre da localização desta espécie de norma nas cartas
constitucionais advindas, basicamente, do contexto revolucionário norte-americano e europeu, que consubstanciam a fonte histórica do chamado constitucionalismo moderno.
Assim, pode-se estabelecer que a racionalidade própria dos direitos fundamentais
está ancorada na racionalidade do constitucionalismo moderno, especificamente, em
uma de suas grandes características, qual seja, a estrutura temporal com a qual as sociedades contemporâneas são dotadas a partir do advento das modernas constituições,
isto é, a compreensão do tempo que lhe permite verdadeiramente uma abertura para a
contingência, para o futuro.
O que se estabelece, nesse sentido, é que sendo os direitos fundamentais o núcleo
normativo do constitucionalismo moderno, a inteligência desta sua estrutura temporal
– de resto não existente nos “constitucionalismos” de outrora – dialoga e é corolário
principal da própria funcionalidade deles, direitos fundamentais.
A estrutura deste elemento normativo que conhecemos por constituição – norma
jurídica – traz em seu bojo diversos mecanismos que representam de forma bastante
paradigmática a abertura para o futuro a que me referi ao longo texto.
Os direitos fundamentais, que são considerados por excelência, como os elementos definidores da “modernidade constitucional” deixam claro esta proposta de legitimação através e pelo futuro.
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temas atuais de direito
Neste ensejo, a função dos direitos fundamentais não se identifica com o seu conteúdo normativo, mas sim com a representação de um futuro, ainda desconhecido, ao
qual não são colocados mais limites naturais ou morais. A combinação da programação
decisória no plano organizacional e a simbolização do futuro mediante os “direitos
fundamentais” parecem, portanto, estar na base da construção da realidade temporal do
moderno sistema jurídico.
Segundo a percepção desta proposta, uma destas novidades, conforme já pontuado, está diretamente referida à compreensão da temporalidade apresentada por tais
sociedades.
Se, como pressupõe Elias (1994.), o tempo não é uma ideia que apareça a priori
no bojo de uma dada civilização, mas sim “uma instituição cujo caráter varia conforme
o estágio de desenvolvimento atingido pelas sociedades”, interessaria a um estudioso
do Direito, especificamente do direito constitucional e dos direitos fundamentais, indagar de que forma, e até que ponto, um sistema de normas jurídicas, notadamente de um
determinado grupo destas, as normas constitucionais, interagem enquanto demarcação
do presente, e, antes disso, se uma constituição, da forma como a compreendemos, tem
alguma função no estabelecimento do tempo social, na compreensão que dele se depreende, e mais, da relação entre presente e futuro, e, por isso, entre o homem, as diversas
sociedades, e o absoluto desconhecimento quanto ao amanhã.
Pensamos que uma das funções precípuas deste instituto marcadamente humano
que é o Direito, seria justamente fixar determinada forma de compreender e vivenciar a
experiência temporal, de modo que possibilitada fosse uma verdadeira distinção demarcadora do presente, bem compreendido este como a unidade da diferença entre o passado
– nunca definitivo e inequívoco, pois novas hipóteses explicativas podem mudar nossa
inteligibilidade a respeito do mesmo – e o futuro, para onde podemos fazer tão somente
projeções de elementos presentes na atualidade, utilizando as experiências passadas mediante um ato seletivo que ocorre sempre no presente, fazendo com que este torne-se eixo
de ligação entre aquilo que compreendemos como eventos de um determinado espaço
da experiência e um decorrente horizonte de expectativa, que, de forma mais ou menos
plausível e confiável, daquele presente específico pode ser subsumido.
Nesse diapasão, é necessário desde logo pontuar que a compreensão temporal
possibilitada à sociedade pelo constitucionalismo moderno, especialmente pela teoria
de direitos fundamentais enquanto norma jurídica positiva, comporta possibilidades de
firmamento de uma teoria de vinculação política que, nessas circunstancias, talvez não
tenha mesmo lugar na antiguidade, no medievo e no surgimento modernidade.
É somente na modernidade que podemos ter uma concepção de temporalização
que coloca o futuro como o tempo para onde tudo se direciona, e que deverá ser
percebido sempre no presente, isto é, no tempo que não existe em si mesmo, mas a
partir donde podemos alcançar a distinção entre o que é futuro e passado. O risco, que é
o fundamento da responsabilidade civil objetiva situa-se exatamente nessa perspectiva.
É preciso pontuar que a sociedade moderna, funcionalmente diferenciada, parte
de si mesma e vai até ela própria, como certifica o autorizado testemunho de De Giorgi
(1998) para o qual a sociedade é uma máquina histórica, que em todas as suas opera-
a responsabilidade civil como ...
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pastora do socrro teixeira leal
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ções, sempre parte de si mesma; isto é, da situação na qual tem colocado a si mesma
com suas operações. Para proceder deste modo, esta deve estar presente para ela mesma, esta deve auto-representar-se. A sociedade, portanto, produz auto-descrições que
sedimentam significados, quer dizer semânticas históricas, através das quais uma sociedade se diferencia. Esta se diferencia de todo o resto que não é sociedade e, ao mesmo
tempo, das sociedades que a tem precedido.
Com esta compreensão da estrutura da sociedade, é possível que se formalizem
vivências temporais voltadas especificamente para o futuro, de modo que o Eterno
Retorno deixará de ser um imperativo categórico da existência social, situação de risco
que pode ser melhor compreendida na robusta lição de Peter Pál Pelbart (2010) sobre a
grandiosa filosofia do tempo de Gilles Deleuze para o qual no plano do pensamento, o
eterno retorno parodia o imperativo kantiano: “o que tu quiseres, queira-o de tal modo
que também queiras o seu eterno retorno”. O querer é submetido a uma condição de
infinitização temporal. Apenas subsiste e retorna aquilo que se dispõe a retornar sempre. Aquilo que se quer apenas uma vez, uma última vez e nunca mais, não passa de um
meio-querer, um querer fraco. Este é eliminado. Nesse sentido é o tempo (o infinito do
eterno retorno) que pode fornecer a medida do querer. Querer verdadeiramente é querer
infinitamente, mas querer infinitamente é querer sempre, querer para todo o sempre,
querer que retorne infinitamente esse mesmo querer, querê-lo absolutamente. Somente
projetado ao todo do tempo pode o querer dar prova de que atinge o seu limite, isto é,
a sua potência máxima.
Na sociedade do futuro, isto é, daquela onde reina o porvir, não há espaço para
a semântica do Eterno Retorno, de modo que, segundo dirá Pelbart, o futuro, mesmo
quando se repete não pode repetir-se, é tempo do desconhecido e da pura contingência.
Mas é necessário que se repise: se estamos pugnando que uma das compreensões
mais expressivas do direito constitucional contemporâneo tem a ver com a sua estrutura
temporal, tal caracterização, perpassa, invariavelmente, pelas normas que, por excelência, representam a juridicidade constitucional, quais sejam, os direitos fundamentais.
Outrossim, se os direitos fundamentais, e aqui, nestes termos, o “direito fundamental de tutela da pessoa humana” deve corresponder ao dever de concretização dessa mesma tutela e um dos mecanismo aptos para essa finalidade é a responsabilidade
civil, que deve ser tido como um elemento de vinculação social, que não dispensa um
contundente exercício precipuamente naquelas relações privadas, que são as que por
excelência dirão sobre a eficácia ou não do pacto social fundamental.
O farto debate que se estabeleceu em torno do papel do código civil enquanto
locus de garantia incondicional da autonomia privada e as relativizações desta compreensão advindas da chamada constitucionalização do direito está na base da construção
teórica da vinculação dos particulares à proteção jurídica dos direitos fundamentais .
No centro da controvérsia sobre a vinculação dos particulares às diversas dimensões dos Direitos Fundamentais está posta a questão sobre: a) se os direitos fundamentais são política e juridicamente legitimados a limitar a autonomia privada; b) caso
positiva a resposta, se coloca o problema de saber em que medida o são; e, por fim c)
quais são as consequências e finalidades desta limitação tanto para a teoria dos direitos
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temas atuais de direito
fundamentais como para a autonomia privada, e, seguindo essa diretriz, como deve o
juiz lidar, em um caso concreto, com esta conjugação de fatores em face de a uma interpretação da constituição constitucionalmente adequada.
Com efeito, a autonomia privada, é um princípio constitucional de relevância inquestionável, bem como é a matriz básica, o núcleo e a razão fundadora do direito privado. Os limites impostos a este princípio são relevantes para qualquer ramo do Direito
e a exacerbação do seu exercício sempre deve ser motivo de preocupação jurídica.
Diversos seriam os argumentos teóricos capazes de fundamentar uma suposta
flexibilização entre as distinções mais rígidas entre direito público e direito privado,
aqui representativa do embate, pelo menos aparente, entre Constituição e Código Civil,
Contudo, nos limitaremos a apresentar as razões centrais do processo de reconstrução
do direito privado.
Inicialmente, podemos afirmar que as mais ferrenhas convicções iluministas sobre o direito privado em geral estavam não apenas vinculadas a uma suposta liberdade
(negativa) inerente ao ser humano, mas à necessidade imperativa de que esta liberdade
fosse exercida a qualquer custo, enquanto forma de libertação do ser humano.
Não é por outro motivo que Sebastian Ernesto Tedeschi (2001) pontua que a categoria de sujeito construída pela modernidade é uma categoria histórica, que constituiu
um sujeito de direito caracterizado por um indivíduo dotado de consciência e de vontade, autor de suas próprias ideias e responsável pelas ações que realiza (autonomia).
Justamente ancorados nesta crença na liberdade e na racionalidade naturais do
homem, bem como na necessidade de que fosse estabelecida um ordem mais clara na
estrutura jurídica até então fragmentada, os movimentos de codificação tomam força, movimentos estes que não têm como único predecessor, é bem de ver, o Código napoleônico,
sendo este, outrossim, o maior representante de um segundo impulso de codificação.
Portanto, na ideia mais intuitiva e que classicamente se atribui ao direito privado
– e mais especificamente, aqui, à liberdade de contratar – parte-se da suposição de que
o Código Civil, como refere UBILLOS (1997), é locus, por excelência da liberdade
privada, e, nesse sentido, que se erige a verdadeira carta constitucional dessa sociedade autossuficiente, sancionando os princípios da autonomia da vontade e da liberdade
contratual como eixos da regulação das relações jurídicas privadas.
Contudo, estes postulados que decorrem também de preceitos políticos liberais,
acabam sofrendo inegável questionamento com a derrocada do Estado liberal e a instauração do chamado Estado de bem-estar, de sorte que o Código, que, como lembra
SARMENTO (2008) , “[...] aspirava à completude, visando disciplinar todos os aspectos da vida humana [...]” agora deveria abrir lugar para legislações específicas, o que
acarretou, num primeiro momento, aquilo que se chamou de “era da descodificação” .
Com este primeiro sinal de crise, logo também passam a ser repensadas a própria noção de sujeito e de direitos personalíssimos, o que nada mais representa que
uma inequívoca (re)interpretação, agora mais maleável, da dicotomia público/privado.
Questiona-se não mais apenas o TER mas o SER nas relações privadas.
Como hoje sabemos, aquela artificial divisão entre direito público e direito privado, passa a não mais colher êxito frente aos inequívocos e contundentes questiona-
a responsabilidade civil como ...
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pastora do socrro teixeira leal
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mentos feitos em face da base da teoria política liberal, de modo que, para fazer uso da
certeira síntese de Tedeschi (2001) a distinção entre direito público e direito privado
se estreitou e, em muitas questões, hoje é difícil determinar em que campo estamos. A
distinção público-privado é formulada a partir da modernidade, na qual o público se
vinculou ao estatal e o privado com o espaço da família e da sociedade civil, especialmente no aspecto existencial de tutela da pessoa humana.
No limite, contudo, o que nos interessa salientar é que, como resumiu TEDESCHI,
o direito privado importa ao direito constitucional porque contem concreções dos direitos fundamentais. Sem as regras de direito privado, estes direitos enunciados não poderiam concretizar-se. Assim, um direito civil que protege a personalidade e a autonomia
privada forma parte das condições fundamentais da ordem constitucional.
Nesse sentido, certamente será pertinente a transcrição de assertiva lapidar de
Carmem Lúcia Silveira RAMOS (1998), que leciona:
[...] pode-se asseverar que os novos paradigmas, consagrados constitucionalmente, com
relação à apropriação de bens e relações contratuais, funcionalizando o exercício destas
atividades com um sentido social, antecedida pelo rol de direitos e garantias do cidadão,
princípios categóricos, instituídos no plano individual e coletivo, para trabalhar suas dimensões fundamentais, afetando o direito em geral e o direito privado em particular, correspondem, ao menos em parte, a um reflexo da concepção da vida da sociedade, com as inspirações
interdisciplinares que sofre.
Esta novel dignidade que se dá aos preceitos jusfundamentais, é sem dúvida um
elemento sem o qual não há a possibilidade de se falar na escolha, por uma determinada
sociedade, dos seus princípios básicos de justiça, isto é, na eficácia dos mesmos.
Por essa razão, e considerando a adequação do parágrafo único do art. 927 com
uma concepção de sociedade justa, e propondo ainda que o mesmo afigura-se como
verdadeiro garanter, daquelas escolhas sociais fundamentais ao longo do tempo, urge
que a responsabilidade civil seja pensada, seriamente, como um elemento específico de
uma determinada teoria da justiça.
3. BIBLIOGRAFIA
DE GIORGI, Rafaelle: Direito, democracia e risco: vínculos com o futuro. Porto
Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1998.
ELIAS, Norbert. O processo civilizador, 2v. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994.
PELBART, Peter Pál. O tempo não-reconhecido. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2010.
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: Introdução ao direito civil constitucional.
Rio de Janeiro: Renovar, 1997.
RAMOS, Carmen Lúcia Silveira. A constitucionalização do direito privado e a sociedade sem fronteiras. In: FACHIN, Edson (Coord.). Repensandos os fundamentos do
direito civil brasileiro contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 1988. pp. 3-17.
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temas atuais de direito
RAWLS, John. A theory of justice. Cambridge: Harvard University, 2000.
SARLET, Ingo Wolfgang (org.): Constituição, direitos fundamentais e direito privado.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.
SARLET, Ingo Wolfgang; MONTEIRO, António Pinto; Neuer, Jörg. Direitos fundamentais e direito privado: Uma perspectiva de direito comparado.Coimbra,
Almedina, 2007.
SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2008.
TEDESCHI, Sebastián Ernesto. El waterloo del código civil napoleónico: uma mirada
crítica a los fundamentos del derecho privado moderno para la construcción de sus
nuevos principios generales. In: COURTIS, Christian (compilador). Desde otra mirada: texto de teoria crítica del derecho. Buenos Aires: Eudeba, 2001, pp. 159-182.
UBILLOS, Juan Maria Bilbao. La eficácia de los derechos fundamentales frente a particulares: análisis de la jurisprudencia del tribunal constitucional. Madrid: Centro de
estudios constitucionales, 1997.
5
DIREITOS PATRIMONIAIS DISPONÍVEIS
E INDISPONÍVEIS À LUZ DA LEI DA ARBITRAGEM
Antonio José de Mattos Neto
SUMÁRIO: 1. Posição da questão. 2. Noção de direito subjetivo. 3. Direitos patrimoniais. 3.1.
Patrimônio. 4. Direitos Patrimoniais Disponíveis. 4.1. O Objeto da Lei de Arbitragem. 5. Direitos Excluídos da Lei de Arbitragem. 5.1. Direitos Personalíssimos. 5.2. Direitos de Família
e das Sucessões. 5.3. Bens Fora do Comércio. 5.4. Créditos da Fazenda Pública. 5.5. Direitos
Metaindividuais. 5.6. Matéria Antitruste. 5.7. Alguns tipos contratuais. 5.8. Questões de Procedimento de Jurisdição Voluntária. 5.9. Concurso de Credores. 5.10. Falência. 5.11. Coisa
julgada. 6. À guisa de conclusão. 7. Bibliografia
1. Posição da Questão
Os meios alternativos de composição de litígios vêm adquirindo prestígio e relevância na aldeia global jurídica contemporânea.
O ordenamento jurídico nacional oferece à sociedade brasileira uma opção de
justiça privada e autônoma. E isso traz uma nova feição para a cultura jurídica nacional.
A Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996, ao tratar da arbitragem, burilou uma
nova faceta no Direito brasileiro. Por esse viés, amoldou-se o Estado brasileiro às exigências da pós-modernidade. Harmoniosamente aos dias que correm, o Estado Leviatã
tutelar cede lugar ao Estado de respeito à iniciativa privada jurídica, onde o poder de
regrar o litígio é ofertado à comunidade para ser promovido pela própria iniciativa particular, sem roubar da oficialidade o monopolístico poder jurisdicional.
A arbitragem é mais um instrumento institucionalmente legítimo à disposição dos
jurisdicionados para dirimirem suas múltiplas controvérsias. Por esse viés, o poder
privado transforma-se em um novo centro de decisões.
O art. 1° da Lei nº 9.307/96 restringe, como não poderia deixar de ser, aos direitos
patrimoniais disponíveis a matéria a ser posta à arbitragem. Somente o que a doutrina
contemporânea conceitua por direito patrimonial disponível pode ser objeto de arbitragem, mediação ou negociação para composição dos interesses particulares.
A doutrina e a jurisprudência vão balizar os limites conceituais insertos dentro do
que venham a ser os direitos patrimoniais disponíveis.
A missão é estimulante e provocadora, à medida em que há carência de uma arregimentação doutrinária e/ou jurisprudencial em torno dessa conceituação.
Assim, nosso objetivo no presente trabalho é esboçar o perfil desse conceito.
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temas atuais de direito
2. Noção de direito subjetivo
Antes, devemos gizar que o direito patrimonial disponível a que a lei se refere pertence à categoria jurídica de direito subjetivo. Por isso, devemos iniciar nosso estudo
oferecendo a noção de direito subjetivo.
Para tanto, de todo o vasto estudo que a dogmática já elaborou, iremos centrar
na delimitação do conceito de direito subjetivo que nos é proposto por três correntes
amplamente discutidas.
Na visão de Ihering, entende-se por direito subjetivo o interesse juridicamente
protegido. Para Windscheid, é o poder ou domínio da vontade conferido pela ordem
jurídica. Ambos conceitos apresentam-se incompletos, porque enfocam um único elemento do direito subjetivo: Ihering aponta exclusivamente o fim, sem indicar os meios
para alcançá-lo; Windscheid, leva em conta os meios, desprezando o fim (GOMES,
1988, pp. 111/112).
Jellinek reuniu os dois elementos e definiu direito subjetivo como o interesse protegido mediante o reconhecimento do poder da vontade individual (GOMES, 1988, p.112).
Atualmente, os juristas não hesitam em emprestarem univocamente ao conceito de
direito subjetivo esses dois elementos integrados por Jellinek. Nesse sentido, podemos
dizer que direito subjetivo é o poder atribuído à vontade do sujeito e garantido pelo ordenamento jurídico, para satisfação de próprios interesses (Trabucchi, 1993, p. 45).
A pessoa tem garantido o poder de exercer o direito e fazê-lo valer contra quem o
ameace ou viole. Quer dizer, incluem-se os poderes para ter, fruir e dispor os direitos e
os de exigi-los contra quem os ameace ou atente por meio do direito de ação (Bittar,
1994, p. 53).
3. Direitos Patrimoniais
Ao lado de outras classificações, a dogmática divide os direitos subjetivos em
patrimoniais e extrapatrimoniais.
O critério refere se o direito é passível, ou não, de valoração pecuniária.
Os extrapatrimoniais compreendem o direito à vida, à liberdade, à integridade
física, ao nome, à honra, à intimidade, dentre outros. São direitos que protegem caracteristicamente interesses de natureza moral, não possibilitando ao titular extração de
utilidades econômicas, pelo menos, em princípio.
Os direitos extrapatrimoniais são ínsitos na essencialidade do homem e dizem
respeito à condição da pessoa humana de tal ordem, que Pietro Trimarchi (1991, p. 62)
os denomina simplificadamente de direitos da personalidade, envolvendo os chamados
direitos da personalidade e os de família. Trabucchi (1993, p. 49) os denomina apenas
de não patrimoniais.
O caráter de extrapatrimonialidade não exclui a possibilidade do titular do direito
auferir vantagem econômica, se houver lesão da qual resulte dano. Nesse caso, o dano
produz um direito patrimonial ao ofendido consubstanciado na indenização. A indenizabilidade do dano moral é matéria pacífica hodiernamente no direito brasileiro, cuja
cristalização se deu mormente a partir da Constituição Federal de 88.
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antonio josé de mattos neto
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Assim, um direito não patrimonial, como por exemplo, a honra do cidadão, que
não tem apreciação econômica, se maculada, vai gerar direito subjetivo à indenização.
Este, evidentemente, de cunho patrimonial.
Do mesmo modo, certas qualidades do indivíduo, como por exemplo, a força de
trabalho individual, a competência técnica na profissão, ambas não tem valor pecuniário, pelo menos imediatamente, mas sua lesão, por terceiro, gera um dano patrimonial
indenizável.
Por outra via, adverte Trabucchi (1993, p. 49) que das relações jurídicas desses direitos, podem haver consequências econômicas (patrimoniais), como direito à sucessão
e a alimentos, sem que por isso percam a sua natureza extrapatrimonial.
O prevalecente elemento moral distingue os extrapatrimoniais, dos direitos patrimoniais que tutelam diretamente interesse econômico, avaliado em dinheiro (1993, p. 49).
Os direitos patrimoniais compreendem os direitos reais, direitos autorais e os pessoais. Estes subdividem-se em direitos de crédito, ou obrigacionais, certos direitos de
família e os de sucessões.
Todos os direitos reais são patrimoniais. Entretanto, há direitos pessoais de natureza extrapatrimonial: os direitos puros de família.
Os direitos autorais, ou direitos intelectuais, são relativos à obra do engenho ou
invenção humanos, aos qual Orlando Gomes (1988, p. 119) frisa que se incluem em
categoria a parte, não podendo ser considerados nem direitos reais nem pessoais, constituindo, em verdade, um tertio genus.
Os direitos autorais agrupam os direitos produzidos pelo espírito humano: obra
literária, artística, científica, criação de software.
Há, ainda, uma classe de direitos sobre coisas incorpóreas, dotados de patrimonialidade, mas que não se enquadra nos direitos reais, constituindo um grupo a parte
e que são, dentre outros, o direito ao fundo de comércio, direito à clientela, direito ao
nome comercial.
A relevância da classificação dos direitos quanto à apreciação econômica reside
na condição de transmissibilidade dos direitos patrimoniais e intransmissibilidade dos
extrapatrimoniais.
A transmissão permite que o direito circule economicamente nas esferas jurídico-patrimoniais das pessoas. O direito transmissível serve ao comércio jurídico. Os direitos patrimoniais, reais e pessoais, são transmissíveis por excelência.
Alguns, em virtude de sua finalidade, são intransmissíveis, como os direitos reais
de uso e de habitação.
Embora os direitos extrapatrimoniais não se prestarem ao comércio jurídico,
por exceção, alguns direitos personalíssimo tem oferecido utilidade pecuniária ao
titular, como sói acontecer com o direito à imagem, direito à voz, em que o titular do direito recebe remuneração pela cessão de sua imagem ou voz para fins de
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Pelo que foi exposto, verifica-se que na classificação dos direitos em patrimoniais
e extrapatrimoniais subjaz o discrímen referendado no conceito que é emprestado ao
patrimônio. Por isso, convém firmar a noção de patrimônio.
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temas atuais de direito
3.1. Patrimônio
O termo patrimônio tem diversas acepções jurídicas.
Clássico é o conceito de patrimônio para Clóvis (Beviláqua, 1980, p. 167):
patrimônio é a projeção econômica da personalidade civil. A utilidade desse enfoque
reside na coesão entre o princípio da identidade e continuidade do patrimônio, segundo
o qual pode haver modificação quantitativa patrimonial para maior ou menor, ainda assim, o patrimônio conserva o conceito de unidade abstrata vinculada a mesma pessoa
titular (GOMES, 1988, p. 209).
Tal ponto de vista, entretanto, peca por confundir conceitos inconfundíveis: personalidade e patrimônio (GOMES, 1988, p. 209).
Tem-se o patrimônio global que significa o conjunto de relações jurídicas abraçando direitos e deveres avaliáveis em dinheiro de que uma pessoa é titular. Sendo conjunto de relações jurídicas, compreende coisas móveis e imóveis, corpóreas e incorpóreas,
créditos, obrigações e débitos, enfim todo o cipoal de relações jurídicas que, ativa e
passivamente, tenha apreciação econômica. É a atividade econômica da pessoa sob o
aspecto jurídico.
Modernamente, a doutrina tem emprestado conceito técnico ao patrimônio. Nesse
sentido, patrimônio é o “conjunto de bens coesos pela afetação a um fim econômico
determinado” (GOMES, 1988, p. 209).
Assim, cada pessoa tem um único patrimônio. Mas este pode ser geral, cuja unidade responde pelo adimplemento das obrigações de seu titular, e especial, no qual
o titular submete uma parte do patrimônio geral a um tratamento jurídico particular,
destinando massa patrimonial para um fim específico. O titular restringe bens em benefício de um fim específico. Exemplos de patrimônio especial são o acervo patrimonial
destinado a capitalizar uma sociedade, os bens dados em garantias reais, o imóvel clausulado como bem de família. Em todos esses casos há bens destacados do patrimônio e
vinculados a uma destinação.
Com base nesses enunciados, formulou-se o conceito técnico de afetação patrimonial: o titular destina especificamente massa patrimonial para um fim determinado,
afetando, portanto, aquele conjunto de bens. A massa de bens constitui patrimônio de
afetação, distinto e separado, formando o patrimônio especial.
Inversamente, o patrimônio pode ser objeto de relação jurídica com mais de uma
pessoa, como sói acontecer com a co-propriedade, com o regime da comunhão de bens.
Distingue-se, também, o patrimônio em bruto e líquido. Bruto ou ilíquido é o conjunto de direitos avaliáveis em dinheiro, pertencentes a uma pessoa, deduzidas as obrigações. Talvez, é nessa noção de patrimônio que reveste o maior interesse jurídico, pois
é ele que interessa para a função jurídica do patrimônio, a garantia geral dos credores.
Líquido, é o acervo de bens e créditos, abatidos os débitos assumidos pelo titular.
O patrimônio compreende o ativo e o passivo, ou seja, crédito e débito.
A noção de patrimônio envolve como visto um conteúdo de economicidade, seja
positivo ou negativo, de tal arte que até a contingência de o passivo ser maior que o
ativo, não descaracteriza a natureza patrimonial dessas relações jurídicas.
direitos patrimoniais disponíveis ...
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antonio josé de mattos neto
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4. Direitos Patrimoniais Disponíveis
A disponibilidade é qualidade que se insere na patrimonialidade do direito.
Entretanto, nem todo direito patrimonial é direito disponível. Como frisado, patrimonial quer dizer apreciável pecuniariamente, mas nem tudo que representa utilidade
econômica é disponível (Beviláqua, 1980,171). Exemplo é o bem imóvel (patrimonial) clausulado com a inalienabilidade (indisponível).
É que o patrimônio líquido é representado pelo acervo pecuniário (ativo) abatendose os débitos que o oneram (passivo). E a disponibilidade é resultante da natureza
essencial de pecuniaridade dos direitos patrimoniais (Kroetz, 1997, p. 96.).
Contudo, não se diga que todo direito patrimonial é disponível. Daí, então, o que
é disponibilidade?
Direito disponível é o alienável, transmissível, renunciável, transacionável. A disponibilidade significa que o titular do direito pode aliená-lo; transmití-lo inter vivos
ou causa mortis; pode, também, renunciar ao direito; bem como, pode, ainda, o titular
transigir seu direito.
A alienação importa em mudança de sujeito ativo, pois há a transmissão do direito
inter vivos. E nesse caso coincide os poderes de alienação/transmissão com os de disposição. Não obstante, nem sempre disposição vem significar transmissão. Por exemplo,
quando o titular do direito dele abdica (abandona), há a disposição do mesmo, mas não
sua transmissão, pois o direito sai do patrimônio do titular, mas não é transmitido para
nenhuma outra esfera jurídico patrimonial (Miranda, 2000, p. 367).
Atenta Pontes de Miranda que não se deve confundir duas classes distintas: negócio jurídico e atos reais de disposição, pois os primeiros são direito obrigacional e os
de disposição são atos reais. Por isso é que um indivíduo pode vender o mesmo bem
para diversas pessoas (praticar vários negócios jurídicos), mas só transfere a coisa a um
deles, que é o eficaz (Miranda, 2000, p. 367).
Em regra, o direito transmissível é suscetível à constrição, sendo arrestável, seqüestrável, penhorável, hipotecável, pois há paralelismo jurídico entre os princípios da
transferibilidade e da constringibilidade (Miranda, 2000, p. 378).
A transmissão do direito obedece ao princípio da conservação dos direitos transmitidos cujo conteúdo expressa significativos dogmas jurídicos consagrados desde os
romanos, tais como: ninguém pode transmitir a outros mais direitos dos que tem (
Nemo plus juris ad alium transferre potest quam ipse habet ); ninguém dá o que não
tem ( Nemo dat quod non habet ) (Miranda, 2000, p.371).
O adquirente tem os mesmos direitos que o transmitente e nada mais que os direitos a que este fazia jus. Se o transmitente cede direito que não faz parte de sua
esfera jurídico-patrimonial, necessariamente ao adquirente faltará tal direito. E as sucessivas transmissões a non domino perpetuam a ausência desse direito aos sucessivos
adquirentes.
Em razão do princípio essencial de Direito individualista e liberal que abraça o
sistema jurídico romanista ocidental, dentre os quais o brasileiro, reconhece-se a livre
transmissibilidade, alienabilidade e cessibilidade dos direitos.
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temas atuais de direito
Contudo, o titular do direito pode estar sujeito a limitações de dispor e a restrições de dispor. Como exemplo de limitações é o caso do menor de dezesseis anos; e de
restrições é o dono de prédio com a cláusula de inalienabilidade.
As regras jurídicas concernentes a atos de disposição pelo não-titular do direito,
acima ditadas, aplicam-se aos atos de disposição praticados pelo titular do direito se
seu poder de dispor é limitado, se a limitação tem por fim a tutela de outrem, ou se o
ato de disposição é ratificável (como no caso da ratificação do ato praticado por menor
de dezesseis anos).
Após tais considerações vejamos a matéria aplicada à lei de arbitragem.
4.1. O Objeto da Lei de Arbitragem
São os direitos patrimoniais disponíveis o objeto litigioso no juízo arbitral.
Veja-se que o legislador circunscreveu o direito a ser posto em juízo privado não
apenas pela sua patrimonialidade, mas concentrou ainda mais o universo, limitando aos
disponíveis.
Salta aos olhos que o legislador teve preocupação de restringir a direitos negociáveis. Melhor dizendo, que podem ser objeto de negócio jurídico, posto que a arbitragem, ou convenção arbitral, é um contrato privado: é negócio jurídico e, como tal,
constitui-se em declarações de vontade endereçadas ao alcance de efeitos previstos no
ordenamento jurídico. Os resultados negociais são desejados e queridos pelas partes
convenentes.
As partes, de comum acordo, ditam cláusula visando certo fim, com fundamento
na lei, e, assim, criando direito subjetivo e gerando, por outra via, obrigações. Uma dessas está a de cumprir o que foi entabulado, não podendo voltar atrás o que foi decidido
pelo árbitro, designado por ato livre de vontade das partes.
O poder de auto-regulação dos interesses que está contido na enunciação da lei
denuncia que a arbitragem atua no âmbito da autonomia privada. Mas esta tem de ser
conformada ao sistema jurídico, respeitando a lei, a ordem pública.
O juízo arbitral é negócio jurídico processual (Furtado, Bulos, 1997, p. 27).
Nesse âmbito de atuação, a arbitragem serve para dirimir conflitos de interesses
envolvendo direitos obrigacionais, de índole privada, os direitos intelectuais (artísticos,
autorais), direitos industriais, direitos reais, como posse, propriedade, vizinhança, usufruto, etc, contanto que, uns e outros, sejam disponíveis.
Sua área de atuação, por excelência, reside nos negócios mercantis e internacionais, alcançando todos os direitos disponíveis dessas naturezas.
O comércio internacional representado pela compra e venda de mercadorias, produtos agrícolas, matéria-prima, transferência de tecnologia, investimentos, tem prestigiado o juízo arbitral, mormente nos dias de hoje com a globalização e a formação de
grandes blocos econômicos supranacionais,
Devido a lex mercatória ser o conjunto de regras desvinculadas de qualquer fonte
ou ordenamento jurídico nacional, divorciado de um sistema legal impositivo, sua utilização facilita, com vantagens, a solução de controvérsias dessa natureza.
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Serve, também, o juízo arbitral, para solucionar lide de natureza trabalhista.
Nesse caso, há de se distinguir quando envolve conflito trabalhista de relação individual e coletiva. Quanto ao primeiro há de ser discutido o aspecto da disponibilidade
ou indisponibilidade do direito do trabalhador. É certo que os direitos trabalhistas são
indisponíveis, na medida em que o empregado não pode renunciá-los. Por outro lado,
a autocomposição é muito utilizada, aparecendo à transação como meio viável para
solucionar os conflitos.
Milita a presunção juris tantum de vício de vontade do empregado no contrato
individual de trabalho clausulado com a arbitragem para dirimir os conflitos que porventura venham a surgir naquele contrato. Não é dizer que seja ilegal tal fórmula de
solução de conflito individual, mas somente deve ser aceita excepcionalmente.
E apenas o juiz do trabalho é quem tem legitimidade constitucional para aquilatar
a excepcionalidade. Os fatores que devem ser analisados individual e particularmente,
caso a caso, para identificar a manifestação viciada de vontade, são as condições pessoais do empregado, tais como seu nível cultural, o grau de escolaridade, a atividade
profissional exercida, a idade, a experiência no ramo, etc.
Quanto aos litígios trabalhistas de natureza coletiva, não pairam maiores dúvidas
quanto à admissibilidade da arbitragem como mecanismo de solução conflitual.1.= A
Constituição Federal em seu art. 114 e §§ contempla tal hipótese de composição, pois
as partes litigantes, sponte sua, podem louvar-se de árbitros.
Devemos aludir que a crescente flexibilização das normas trabalhistas ensejam
que esta forma de composição de litígio seja cada vez mais utilizada. E no Direito
brasileiro, inexistindo lei específica de aplicação da arbitragem em sede de conflitos
trabalhistas, deve ser aplicada a Lei nº 9.307/96, que é lei geral de arbitragem, lembrando que o § 2º do art. 2º da lei assegura respeito à ordem pública, além de observar
o princípio da norma mais benéfica, a regra do favor laboris, cujos cânones balizam a
interpretação da matéria ao decidir um caso concreto.
A justiça privada pela arbitragem é também possível nos quadros do Código de
Defesa do Consumidor. A lei do consumidor, em seu art. 51, VII, considera nula de
pleno direito a cláusula contratual relativa a fornecimento de produto ou serviço que
determine a utilização compulsória de arbitragem.
Veja-se que nulifica a lei a utilização compulsória da arbitragem. A dicção legal é
clara e indene de dúvidas: a compulsoriedade é que vicia a estipulação. Isto significa dizer
que se as partes contratantes – fornecedor e consumidor – por livre e espontânea vontade
pretenderem ver a controvérsia dirimida pela arbitragem, nada há de ilegal ou abusivo.
Em quaisquer das situações jurídicas de Abrangência legal da convenção arbitral,
sempre as partes devem obedecer às normas de ordem pública que, por serem cogente,
não admitem que a vontade individual as derrogue.2
1
Georgenor de Sousa Franco Filho classifica de heterocompositivo ( e não autocompositivo) tal
fórmula de dirimir conflito.( Franco Filho, 1997, p. 9)
2
Sobre as matérias de ordem pública como objeto de arbitragem ver Kroetz, 1997, pp. 99/102
56
temas atuais de direito
De modo genérico, para traçarmos uma linha de critério, podemos dizer que a
lei da arbitragem exclui as relações que não se submetem à regulação dos interesses
privados.
A natureza patrimonial e disponível do direito que atende a lei deixa fora de sua
aplicação os chamados direitos indisponíveis, que é objeto de análise a seguir feita.
5. Direitos Excluídos da Lei de Arbitragem
Não são objeto do juízo arbitral não apenas os direitos extrapatrimoniais, mas
também os patrimoniais indisponíveis.
Como a dicção legal expressa que podem ser objeto de arbitragem apenas os direitos patrimoniais disponíveis, por exclusão lógica não estão neste rol tanto os direitos
extrapatrimoniais como os patrimoniais indisponíveis
Tentaremos arregimentá-los sucintamente.
5.1. Direitos Personalíssimos
Sob tal denominação, compreendem-se os direitos considerados essenciais à condição humana.
Estes direitos, de fato, não se prestam à avaliação pecuniária, sendo, pois extrapatrimoniais, além de intransmissíveis, pois inerentes à natureza própria de homem, como
o direito à vida, à liberdade, integridade física, integridade intelectual, não podem ser
transferidos a outrem.
Embora extrapatrimoniais e intransmissíveis, os direitos da personalidade, conforme já exposto alhures, quando são ofendidos ilicitamente geram direito à indenização por dano extrapatrimonial, este inegavelmente sendo patrimonial e transmissível.
Entretanto, e aqui deve ser observada a questão com acuidade, tal direito à indenização não pode ser objeto de solução arbitral (justiça privada), porquanto a lide vai exigir que o Estado-juiz prolate sentença condenatória em desfavor do ofensor, cujo poder
é de competência exclusiva da jurisdição estatal. Atente-se, ainda, que o juiz togado
vai se valer do arbitramento para ditar o quantum indenizatório, mas a solução obrigatoriamente há de ser determinada pelo caráter da oficialidade jurisdicional do Estado.
Ressalte-se, ainda, que alguns dos direitos personalíssimos podem ser objetos de
negócio jurídico. É que a imagem, a voz, o nome, o pseudônimo, as criações intelectuais podem ser negociadas no comércio jurídico. Nessas específicas situações, extrai-se
dos direitos um filamento de disponíbilidade, sem, contudo, perder sua intransmissibilidade, pois intransmissíveis perpetuamente o são.
5.2. Direitos de Família e das Sucessões
São as relações jurídicas de união entre homem e mulher, pai ou mãe, ou companheiros, e filhos, ou de parentesco; outra parte, chamada direito protetivo, concerne à
tutela e à curatela.
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Nos direitos de família integram as questões de estado, de capacidade, pátrio-poder (poder-dever funcional dos pais), casamento, separação, divórcio, questões de
filiação, alimentos, enfim tudo de relação jurídica que envolva laços de família.
Os direitos de família, assumindo tais contornos inatos à condição pessoal de
relacionamento humano, fogem, evidentemente, do caráter tanto patrimonial quanto
disponível que exige a lei de arbitragem para atuar.
O direito sucessório, por evidente motivo de ordem pública, dentro das relações
de Direito Civil, também não pode ser objeto de convenção arbitral. Essas normas são
de ordem pública e aderem à natureza do direito cujo poder exclusivo para solucionar é
o da jurisdição do juiz togado, posto que o inventário e a partilham tem procedimentos
judiciais (art. 1. 770, Código Civil).
5.3. Bens Fora do Comércio
Incluem-se nessa categoria os bens que não são objeto de negócio jurídico e, por
isso, estão fora da circulação econômica de riquezas. São bens que não têm valor de
troca no mercado.
No dizer de Clóvis (1980, p. 208) “coisas que estão fora do comércio são aquelas
sobre as quais os particulares não podem exercer direito exclusivo ou que não podem
alienar”; estão fora do comércio jurídico por sua própria natureza ou por disposição de
lei. São bens inalienáveis e inapropriáveis pelo homem.
Quanto à primeira classe de bens fora do comércio – os que não podem ser objeto
de apropriação dos particulares – compreendem neste rol os bens de uso ilimitado,
inexaurível como o ar, a luz, o vento, a água do mar. Estão fora do comércio por sua
própria natureza. São coisas comuns a todos: res communes omnium, e existem em
quantidade superior às necessidades humanas.
Entretanto, há bens desse gênero que são raros e propiciam utilidades econômicas,
como as águas térmicas, as areias monazíticas; em outras circunstâncias o homem engenhosamente industrializa rareando o bem, como o ar comprimido, o gás em botijão,
o oxigênio engarrafado, tornando-se objeto de direito, passando a ter valor econômico.
Ou seja, passam a ter valor de troca e se tornam apropriáveis alienáveis.
Já os bens, extra commercium por mandamento legal são os declarados inalienáveis por disposição de lei.
Nesses casos, diz-se inalienabilidade real, objetiva, para diferençar da inalienabilidade subjetiva ou pessoal que é a situação em que o bem transitoriamente se torna inalienável para determinada pessoa, porque o indivíduo está em posição que juridicamente
não pode negociar o bem, como, por exemplo, o tutor em relação aos bens do pupilo.
Há coisas que não integram o patrimônio de pessoas, mas podem integrar. São as
res nullius e as res derelictae.
Res nullius são os bens não pertencentes a patrimônio algum, como os animais
bravios, os peixes no mar. Podem vir a pertencer a alguém.
Res derelictae são as coisas abandonadas, as que o dono renunciou voluntariamente
à propriedade e não se confundem com as perdidas, pois estas continuam a ter dono.
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temas atuais de direito
Por disposição de lei estão fora do comércio jurídico os bens públicos, assim os
triplamente classificados no artigo 66 do Código Civil. Caracterizam-se por serem inalienáveis, impenhoráveis e imprescritíveis. Os bens de uso comum do povo e os de uso especial são incontestavelmente inalienáveis, mas a condição de inalienabilidade dos bens
dominiais pode ser levantada por lei, subordinando à disposições legais específicas.
A inalienabilidade pode ser também imposta pela vontade humana, em razão de
atribuir a lei este efeito à declaração do agente que assim clausula o bem, temporária ou
vitaliciamente, por ato inter vivos (doação, bem de família) ou causa mortis (testamento). A inalienabilidade voluntária ocorre somente nos casos e na forma que a lei prevê,
condicionando a vontade do indivíduo às situações previstas legalmente.
A inalienabilidade voluntária por instituição de bem de família é prevista no
Código Civil e ocorre quando o agente tem vários imóveis e institui bem de família
sobre um deles e sua inalienabilidade só se extingue quando ao ato de alienação consentirem os interessados e/ou representantes legais (Código Civil, art. 72).
Continua a ter validade jurídica a instituição de bem de família prevista no direito
codificado, a despeito da edição da Lei nº 8.009/90, de cunho social, que veio afastar de
execução por dívidas o imóvel que guarnece a residência familiar. A impenhorabilidade
do imóvel residencial familiar nos termos da lei especial não transforma dito bem familiar em indisponível. O único imóvel que abriga a família é impenhorável nas hipóteses
previstas na Lei nº 8.009/90, mas pode ser alienado livremente. A restrição, portanto,
circunscreve-se apenas à impenhorabilidade.
A inalienabilidade significa indisponibilidade, porquanto não pode o proprietário
praticar atos voluntários de disposição, assim entendidos a venda, a doação, a permuta,
a dação em pagamento. A cláusula de inalienabilidade opera efeitos de imprescritibilidade, incomunicabilidade e impenhorabilidade sobre o bem.
São também indisponíveis, porque fora da circulação econômico-jurídica, os bens
dotais (Código Civil, arts. 293 e 295), os de menores (Código Civil, art.386), as terras
habitadas pelos silvícolas (Lei nº 6.001/73, arts. 26 a 31), dentre outras hipóteses de
indisponibilidade previstas em lei específica.
5.4. Créditos da Fazenda Pública
As pessoas jurídicas de direito público podem se valer da arbitragem como meio
de solucionar seus conflitos, desde que a relação jurídica tenha natureza contratual
privada, pois neste caso a lei admite transação. Nessas condições, o Estado funciona
como Estado-empresário, no mundo dos negócios internacionais de natureza comercial.
Exemplo desses negócios são contratos de empréstimo em moeda e de financiamento
de importações, seja na qualidade de devedor, seja na qualidade de fiador da operação,
firmado entre o Brasil e instituições estrangeiras, particulares ou governamentais, ou
internacionais (Ex. BIRD, FMI).
Nada obsta, portanto, que União, Estados, Municípios ou Autarquias integrem
uma relação arbitral, por inexistir qualquer impedimento constitucional, ressalvando-se, apenas, que o objeto da lide há de ser suscetível de transação e confissão.
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Se é possível os entes públicos serem partes contratantes no juízo arbitral para ver
solucionada lide contratual de índole privada, no entanto os direitos creditórios tributários, fiscais, e, em geral, todas aquelas de interesses à Fazenda Pública estão excluídos
do raio de ação da lei de arbitragem.
Inegavelmente, a relação jurídica tributária tem caráter patrimonial (obrigacional)
por referir a crédito/débito, mas a soberania estatal dita seu poder de império fazendo
com que o crédito dessa relação se torne indisponível.
5.5. Direitos Metaindividuais
Os direitos metaindividuais, assim reconhecidos os direitos difusos e coletivos,
apresentam caráter de indisponibilidade.
O Código de Defesa do Consumidor enuncia que difusos são os direitos “transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas
por circunstâncias de fato” (art.81, § único, I); já interesses coletivos, são “os transindividuais de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas
ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base” (art. 81, § único,
II). A transindividualidade conduz à indivisibilidade, caracterizando esses direitos.
Em virtude desse tipo de relação jurídica material, tais direitos são indisponíveis
e, consequentemente, insuscetível de convenção arbitral.
Já os direitos individuais homogêneos, em sendo divisíveis (porque individuais),
quando patrimoniais, em princípio são disponíveis, e se prestam à arbitragem.
5.6. Matéria Antitruste
Toda matéria que diz respeito à lei antitruste, Lei nº 8.884, de 11.06.94, em que
pese tratar de relação jurídica de direito patrimonial disponível, não pode ser objeto de
juízo arbitral.
O assunto é de ordem pública por regular a economia de mercado e os abusos do
poder econômico, tais como dumping, concorrência desleal, monopólio, oligopólio,
por regular o mercado na economia da população. Em face desse caráter, a matéria é
insuscetível de justiça privada.
5.7. Alguns tipos contratuais
A convenção arbitral é retrato do incremento da autonomia da vontade no mundo contemporâneo. O Estado contemporâneo tem intervindo menos na liberdade
contratual.
Não obstante, em alguns negócios jurídicos, o Estado intervém para minorar os
efeitos da desigualdade entre as partes contratantes. Todos os casos em que há a intervenção estatal o motivo exigente é a ordem pública.
Assim, nos contratos agrários (arrendamento, parceria e outros) regulados pela
Lei 4.505/64 e Decreto-lei, 59.566/66 há normas que expressamente ditam ser alguns
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temas atuais de direito
direitos irrenunciáveis, impostergáveis (ex. prazo contratual mínimo de três anos), pelo
que, esses assuntos, não são objeto do juízo arbitral.
Do mesmo modo, à autonomia privada resta pouco a ser negociado nas normas
que versam sobre locação residencial no Brasil. Os casos de retomada do imóvel residencial é matéria regulada pela Lei nº 8.245/91 e não admitem o juízo arbitral.
Também quanto aos contratos de representação comercial, a Lei nº 8.420/94 estabelece direitos inegociáveis ao representado, tal como, por exemplo, o montante mínimo na rescisão contratual que não pode ser inferior a 1/12 avos do total de distribuição
auferida pelo representante durante o tempo que exerceu a representação.
Nesses casos, os árbitros têm liberdade para solucionar somente ponto não considerado por lei como intransigíveis, inegociáveis.
5.8. Questões de Procedimento de Jurisdição Voluntária
Estão igualmente fora do alcance da Lei nº 9.307/96 todos os casos que se submetem ao procedimento especial de jurisdição voluntária elencados no CPC, tendo em
vista os interesses de ordem pública inseridos nestas questões.
5.9. Concurso de Credores
Na insolvência do devedor civil, o concurso de credores, contemplado no Código
Civil, artigos 1.554 a 1570, embora versem sobre direitos patrimoniais disponíveis, por
imposição de lei, compete exclusivamente ao juiz de direito processar e julgar o feito
de insolvência (Código de Processo Civil, art. 92, I).
5.10. Falência
Em caso de falência, o juízo universal imposto no art. 7º do Decreto-lei 7.661/45,
também confere ao juiz togado a competência exclusiva e absoluta de processar e julgar
o processo falimentar contra o devedor comerciante insolvente.
5.11. Coisa Julgada
As questões já apreciadas definitivamente pela jurisdição estatal, que assumem a
natureza de coisa julgada, não podem ser objeto de nova apreciação em sede de juízo
privado.
6. A guisa de conclusão
O espírito da Lei nº 9.307/96 é indene de dúvida, promover a paz social, por meio
da composição alternativa de litígio, desafogando o Poder Judiciário.
Tal forma de solução de controvérsia está consentânea com os princípios e modelo
atual de Estado, em que o cidadão é o centro dos interesses da sociedade e, conseguin-
direitos patrimoniais disponíveis ...
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temente, seu voluntarismo passa a ser elemento político dentro de políticas públicas de
soluções de conflitos.
A autonomia de vontade está limitada pelo sistema jurídico, quer dizer, pelas leis,
ordem pública, costume, princípios gerais de direito. Nesse diapasão, somente os direitos patrimoniais disponíveis preenchem o conteúdo do objeto passível de justiça
arbitral. A lei, sábia, limitou aos direitos de interesses privados a composição pelo juízo
da arbitragem.
E tal modelo de pacificação social está avançando na prática da sociedade brasileira. Paulatinamente, o cidadão está depositando credibilidade na arbitragem, de
tal sorte que os segmentos institucionais brasileiros estão criando instâncias, órgãos,
comissões arbitrais e pondo à disposição da população como fórmula alternativa para
compor a lide.
A progressiva educação do povo brasileiro ao juízo arbitral é mecanismo que tende a promover o desenvolvimento sócio-econômico da nação.
7. BIBLIOGRAFIA
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Celebrados pelo Brasil com Entidades Estrangeiras ou Internacionais. In: Revista de
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62
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Miranda, Pontes de. Tratado de Direito Privado. Tomo V. Atual. Vilson Rodrigues
Alves. Campinas, Bookseller, 2000.
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Trimarchi, Pietro. Istituzioni di Diritto Privato. 9ª ed. Milano, Giuffrè, 1991.
6
DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE:
PROPONDO UMA CONCEPÇÃO QUE RECONHEÇA
O INDIVÍDUO COMO SEU DESTINATÁRIO
José Claudio Monteiro de Brito Filho
SUMÁRIO: 1. Contextualizando a discussão. 2. O direito fundamental à saúde como um direito dos
indivíduos, a partir de uma concepção teórica que reconhece sua jusfundamentalidade. 2.1. O
direito fundamental à saúde como um direito dos indivíduos. 2.2. O liberalismo de princípios
de Rawls como concepção teórica suficiente para sustentar o direito fundamental dos indivíduos à saúde. 3. Considerações finais.
1. Contextualizando a discussão
O direito do ser humano à saúde é tema que tem ocupado minhas reflexões já há
algum tempo, especialmente pela natureza de alguns argumentos que são apresentados
para negar à pessoa o direito de viver – melhor seria dizer, sobreviver – em condições
que lhe garanta exercitar suas potencialidades, dando curso às ações necessárias para o
cumprimento de seu plano de vida.
De fato, inúmeras razões têm sido apresentadas para justificar essa negativa, desde
o argumento de que é preciso compatibilizar as necessidades das pessoas à capacidade
do Estado de prestar os serviços necessários, até chegar à alegação de que o direito à
saúde é um direito social, não devendo ser entendido como configurando um direito
subjetivo de índole individual.
Nesse sentido, por exemplo, Scaff que, tratando dos recursos para o financiamento dos direitos sociais, primeiro argumento acima indicado, afirma:
Ocorre que os recursos são escassos e as necessidades infinitas. Como o sistema financeiro é
um sistema de vasos comunicantes, para se gastar de um lado precisa-se retirar dinheiro de
outro. Assim, seguramente, mais verbas para o ensino fundamental pode implicar em menos
verbas para o ensino superior; e a mesma disputa financeira pode ocorrer no custeio da saúde
pública. Nestes casos, a discricionariedade do legislador está presente. (destaque do autor).1
1
SCAFF, Fernando Facury. A efetivação dos direitos sociais no Brasil: garantias constitucionais de
financiamento e judicialização. In SCAFF, Fernando Facury, ROMBOLI, Roberto, e REVENGA,
Miguel (Coord.). A eficácia dos direitos sociais. São Paulo: Quartier Latin, 2010. p. 29.
64
temas atuais de direito
Outro que caminha no mesmo sentido é Amaral, para quem:
Administrar, em termos de saúde, é gerir recursos limitados para atender necessidades ilimitadas. As necessidades são ilimitadas porque a existência humana é limitada, assim, a luta pela
saúde é, em última instância, a luta contra o inexorável.2
Voltando a Scaff, agora em relação ao último argumento, leciona o autor:
É nítido que este preceito determina um direito à saúde através de “políticas sociais e econômicas”, porém a interpretação que vem sendo dada a este preceito é a de que este é um direito
individual, que pode ser gozado diretamente por cada indivíduo, e não através da implementação de uma política pública. Aprisiona-se o interesse social e concede-se realce ao direito
individual. (destaques todos do autor).3
No mesmo sentido, mas salientando uma ação que “transcenda” as demandas individuais, é o pensamento de Maués, que defende que pode o Judiciário atuar, desde
que não respalde, por exemplo, “tratamentos não previstos oficialmente”, cabendo-lhe
colaborar “com a distribuição mais equitativa dos bens relacionados à saúde”. Para
esse autor, fica claro, o papel do Judiciário nas questões envolvendo o direito à saúde
deveria estar voltado para que a discussão a respeito se dê, prioritariamente, no que
chama de “campo por excelência” para as decisões em matéria de saúde, que é o “das
leis orçamentárias”.4
Outro que se posiciona de forma semelhante é o já citado Amaral, que postula no
sentido de que o Judiciário deve decidir para além da adjudicação em favor do autor
envolvido diretamente no feito, impondo obrigações, “dentro de prazos e balizas postas
[...] como técnica de solução”.5
Respeitando a honestidade intelectual dos que defendem essas posições, penso
que elas partem de premissas que não são as mais adequadas, embora aparentemente
sejam corretas, chegando, como era de se esperar, a conclusões que não são as que favorecem o sujeito protegido no caso dessas normas, que é o ser humano.
2
AMARAL, Gustavo. Saúde direito de todos, saúde direito de cada um: reflexões para a transição da
práxis judiciária. In NOBRE, Milton Augusto de Brito e SILVA, Ricardo Augusto Dias da (Coord.).
O CNJ e os desafios da efetivação do direito à saúde. Belo Horizonte: Fórum, p. 92.
3
SCAFF, Fernando Facury. A efetivação dos direitos sociais no Brasil: garantias constitucionais de
financiamento e judicialização. In SCAFF, Fernando Facury, ROMBOLI, Roberto, e REVENGA,
Miguel (Coord.). A eficácia dos direitos sociais. São Paulo: Quartier Latin, 2010, p. 30.
4
MAUÉS, Antonio Moreira. Problemas da judicialização do direito à saúde no Brasil. In SCAFF,
Fernando Facury, ROMBOLI, Roberto, e REVENGA, Miguel (Coord.). A eficácia dos direitos sociais. São Paulo: Quartier Latin, 2010, pp. 270-271.
5
AMARAL, Gustavo. Saúde direito de todos, saúde direito de cada um: reflexões para a transição da práxis judiciária. In NOBRE, Milton Augusto de Brito e SILVA, Ricardo Augusto Dias
da (Coord.). O CNJ e os desafios da efetivação do direito à saúde. Belo Horizonte: Fórum,
pp. 111-112.
direito fundamental à saúde :..
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josé claudio monteiro de brito filho
65
A esse respeito, e de forma genérica, ou seja, para os direitos sociais como um
todo, já havia, em 2008, publicado texto denominado Direitos fundamentais sociais:
realização e atuação do Poder Judiciário, nele concluindo o seguinte:
... de pouco adianta consolidar a idéia de que há direitos mínimos garantidos a todos os seres
humanos se ficarmos, sempre, postergando sua realização.
Argumentos contrários, com aparência de legalidade e até de bom-senso, sempre existirão.
O que todos precisamos decidir é se vamos ceder a esses argumentos, fazendo da vontade da
coletividade e da Constituição letras mortas, ou se vamos afastar esses argumentos contrários
e materializar, de fato, o bem-comum.
De minha parte, penso que tempo é de praticar todos os atos necessários para que os direitos
sejam concedidos, sem exceções, e sem condicionantes. Já é hora de todos termos o mínimo.6
Nesse texto, escrito quatro anos atrás, defendi, como pode ser depreendido da
transcrição acima, a plena realização dos direitos sociais, a partir da ideia de serem
estes direitos componentes do mínimo necessário para o respeito à dignidade do ser
humano,7 não fazendo sentido reconhecer a fundamentalidade de direitos se eles não
serão respeitados no patamar adequado.
Agora, focando especificamente no direito à saúde, pretendo discutir, de forma
mais restrita, a questão da realização dos direitos sociais em dois aspectos: 1) a realização do direito que, de fato, consiga suprir as necessidades do real destinatário; 2) a
concepção teórica que melhor justifique a realização do direito.
A respeito dessa discussão em espaço mais restrito, devo, por uma questão de
honestidade, dizer que não é só a importância do tema que me motiva. Tanto quanto
isso, o fato de ter passado, três anos atrás, pela experiência de necessitar, por período
razoável de tempo, cuidados médicos intensivos e complexos, além de ter convivido
com muitas pessoas nas mesmas condições, fez-me ver o acerto das posições que eu,
até então, defendia como expectador, e não como participante.8
6
Revista do TRT da 8ª Região – Suplemento Especial Comemorativo, Belém, v. 41, nº 81, pp. 77-87,
Jul./Dez./2008, p. 87.
7
Para ver a relação direta entre a dignidade da pessoa humana ver capítulo que escrevi, denominado
Direitos humanos: algumas questões recorrentes: em busca de uma classificação jurídica, constante
de livro coordenado por João Carlos de Carvalho Rocha e outros (Direitos humanos: desafios humanitários contemporâneos: 10 anos do Estatuto dos Refugiados [Lei nº 9474 de 22 de julho de 1997].
Belo horizonte: Del Rey, 2008), e que se encontra, nessa obra, pp. 29-43.
8
Um exemplo, apenas, para ver, desde logo, a realidade do que defenderei mais adiante, no sentido
de que, ao final, limitar o Estado a prestação de seus serviços de saúde em geral, é prejudicar os
mais necessitados: no período em que permaneci internado no INCOR/SP, em 2010, um hospital que
presta serviços de excelência, mas que é público, conheci diversas pessoas que – usando aqui as palavras ditas por elas mesmas –, mal ganhavam para sobreviver, e que tinham cardiopatia semelhante
à minha, considerada grave. Sabendo o custo dos medicamentos e da fisioterapia indispensáveis
no período posterior à internação, de custo alto para mim, mesmo membro do Ministério Público e
professor, e de desembolso, do ponto de vista financeiro, provavelmente impossível para elas, fico
pensando como hoje sobrevivem, se é que ainda sobrevivem.
66
temas atuais de direito
Tratando-se de um breve ensaio, registro que, é possível que as questões não possam ser tratadas de forma completa. Contento-me, todavia, em ao menos enunciar as
questões principais para esse debate.
2. O direito fundamental à saúde como um direito dos indivíduos, a partir de uma concepção teórica que reconhece
sua jusfundamentalidade
Os dois objetivos acima indicados estão, não somente pelo tema comum, interligados. É que é natural, em uma concepção de Direitos Humanos e de Direitos
Fundamentais, que a pessoa humana seja considerada também em uma perspectiva
individual, sob pena de ser esquecida a razão de ser do reconhecimento de um mínimo
de direitos ao ser humano, que é proporcionar a cada pessoa o indispensável para que
ela possa viver com dignidade.
E há, penso, uma concepção teórica que permite acolher essa ideia de forma natural, e que se vem convencionando chamar de liberalismo de princípios.
O tratamento que darei ao tema, entretanto, impõe, por uma questão somente lógica, o tratamento em separado, e na sequência que me parece ser a mais adequada.
2.1. O direito fundamental à saúde como um direito dos indivíduos
Penso que, aqui, a primeira questão a ser tratada diz respeito ao fato de o direito à
saúde ser indicado, no texto constitucional brasileiro, como um direito social.
É certo que o artigo 6º, da Constituição da República prescreve, dentre os direitos
sociais, a saúde, o que relaciona, de imediato, este direito a toda a coletividade, sendo,
pelo que se depreende a partir do artigo 196, ainda do texto constitucional, esta a ótica
preferencial, pela ênfase que é emprestada às políticas sociais e econômicas para a
prevenção dos riscos da doença e para sua promoção, proteção e recuperação.
Isso significa que é dever, especialmente, do Estado, adotar as medidas necessárias para a preservação da saúde de todos os integrantes da coletividade.
Ocorre que, é no mínimo incorreto entender o direito à saúde somente sob essa
ótica. É que, do ponto de vista das pessoas, a saúde é, claramente, uma questão que
envolve cada um dos indivíduos, não sendo possível raciocinar apenas pelo prisma
coletivo.
Pensar diferente é imaginar que o ser humano, em relação ao direito à saúde, é
somente uma parte de um todo, e que basta uma política geral para que o direito seja
preservado, como se os problemas de saúde não se manifestassem de maneira individualizada em cada pessoa; como se as particularidades dos indivíduos não os levassem
a ter ou não determinados agravos à sua perfeita condição física e mental; como se as
necessidades de todos fossem sempre as mesmas. É óbvio que não é assim.
Por esse motivo, não obstante deva o Estado planejar e executar serviços que
promovam, protejam e recuperem a saúde das pessoas, concretamente cada pessoa estabelecerá com esse bem da vida uma relação de caráter individual.
direito fundamental à saúde :..
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josé claudio monteiro de brito filho
67
As políticas gerais, então, não desobrigam o Estado de se relacionar, nas medidas
das necessidades das pessoas, com cada um dos indivíduos, a partir de demandas concretas para a preservação de sua saúde.
Assim é que, ao lado do interesse de toda a coletividade de ter o Estado realizando
todas as ações necessárias para a preservação da saúde de todos, há o interesse de cada
indivíduo de ter a sua própria saúde garantida, por meio das ações convenientes para o
seu caso concreto.
Nesse sentido é o que afirma Sarlet:
... o que satisfaz o mínimo existencial guarda relação com necessidades físicas e psíquicas
que, embora comuns às pessoas em geral, não podem levar a uma padronização excludente,
pois o que o direito à saúde assegura – mesmo no campo dos assim designados direitos derivados a prestações (!!!), não é necessariamente o direito ao tratamento limitado a determinado
medicamento ou procedimento previamente eleito por essa mesma política, mas sim, o direito
ao tratamento para a doença ...9
É por isso que o direito à saúde constitui, sim, um direito subjetivo de cada
indivíduo de exigir do Estado as medidas específicas para a preservação de sua saúde,
e não somente aquelas que o Estado pretender prestar.10
A respeito do assunto, Bandeira de Mello, tratando genericamente do direito subjetivo do administrado em relação ao Poder Público, afirma que este existe quando:
a) a ruptura da legalidade cause ao administrado um agravo pessoal do qual estaria livre se
fosse mantida íntegra a ordem jurídica ou
b) lhe seja subtraída uma vantagem a que acederia ou que pretenderia aceder nos termos da lei
e que pessoalmente desfrutaria ou faria jus a disputá-la se não houvesse ruptura da legalidade,
nada importando que a ilegalidade argüida alcance a um ou a um conjunto de indivíduos
conjuntamente afetados, por se encontrarem na mesma situação objetiva e abstrata. (destaque do autor).11
E mais adiante, o mesmo autor registra que, se não houvesse a possibilidade de se
fazer a correção, pela via judicial, das violações aos direitos das pessoas, os princípios
da legalidade e da isonomia de pouco valeriam.12
9
SARLET, Ingo Wolfgang. A titularidade simultaneamente individual e transindividual dos direitos
sociais analisada à luz do exemplo do direito à proteção e promoção da saúde. In NOBRE, Milton
Augusto de Brito e SILVA, Ricardo Augusto Dias da (Coord.). O CNJ e os desafios da efetivação do
direito à saúde. Belo Horizonte: Fórum, 2011, p. 141.
10
Defender que caiba ao Estado determinar onde e como vai atuar, no caso dos direitos fundamentais
sociais – previstos na Constituição da República, e com a indicação de que é do ente público, em
seus diversos níveis, a obrigação primeira de proporcioná-los –, é desvirtuar, senão aniquilar, a ideia
de que, nestes casos, o Estado tem de ser visto como um prestador de serviços, e que não tem sua
existência justificada senão para prestar serviços públicos essenciais à comunidade.
11
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Eficácia das normas constitucionais e direitos sociais.
1ed, 3ª tiragem. São Paulo; Malheiros Editores, 2011. pp. 43-44.
12
Ibidem, p. 46.
68
temas atuais de direito
Já Sarlet, tratando especificamente do direito fundamental à saúde, embora afirme
a preferência pela tutela coletiva, do ponto de vista dos objetivos que podem ser alcançados, deixa claro que há uma titularidade – “no que diz com a condição de sujeito de
direitos subjetivos” – ao mesmo tempo individual e transindividual.13
De outro lado, sem fazer distinções, mas propondo uma busca mais intensa da
tutela jurisdicional, tanto no plano individual como no coletivo, está Piovesan (2010,
p. 69), que entende que,
É necessário [...] avançar em estratégias de litigância no âmbito nacional, que otimizem a
justiciabilidade e a exigibilidade dos direitos econômicos e sociais, como verdadeiros direitos
públicos subjetivos, por meio do empowerment da sociedade civil e de seu ativo e criativo
protagonismo.14
No plano jurisprudencial, observa-se uma tendência dos tribunais, a começar do
Supremo Tribunal Federal (STF), de reconhecer o direito de as pessoas pleitearem, individualmente, em juízo, as prestações que entendem devidas pelo Estado em matéria
de direito à saúde, tendência que, penso, deve ser ampliada cada vez mais.15
Cumpre registrar que, reconhecer o direito individual de pleitear o direito fundamental à saúde contra o Estado em juízo, não é, ao contrário do que por vezes é afirmado, uma visão elitizante do direito à saúde, no sentido de que, assim entender favorece
os com mais recursos, e que podem mais facilmente demandar em juízo. Pelo contrário,
favorece os que têm menos e, portanto, não podem suportar, ao menos no total, o custo
da preservação ou da restauração de sua saúde.
A propósito, é preciso observar que, nada há de incorreto em discutir, judicialmente, questões na esfera individual; afinal é, ao fim e ao cabo, o indivíduo que será
beneficiado ou prejudicado com as medidas do governo. Além do mais, as ações coletivas nem sempre serão hábeis para prevenir ou reparar todas as lesões, pois, podem
investir contra situações gerais, mas, dificilmente serão suficientes para reparar todas
as lesões causadas a cada um dos indivíduos, e, muito menos serão hábeis em casos
de urgência.16
13
SARLET, Ingo Wolfgang. A titularidade simultaneamente individual e transindividual dos direitos
sociais analisada à luz do exemplo do direito à proteção e promoção da saúde. In NOBRE, Milton
Augusto de Brito e SILVA, Ricardo Augusto Dias da (Coord.). O CNJ e os desafios da efetivação do
direito à saúde. Belo Horizonte: Fórum, 2011. pp. 143-144.
14
PIOVESAN, Flávia. Justiciabilidade dos direitos sociais e econômicos: desafios e perspectivas. In
CANOTILHO, J. J. Gomes, CORREIA, Marcus Orione Gonçalves, e CORREIA, Érica Paula Barcha (Coord.). Direitos fundamentais sociais. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 69.
15
Para uma análise a respeito das decisões judiciais a respeito, especialmente do STF, ver Mendes
(MENDES, Gilmar Ferreira, e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 6
ed. São Paulo: Saraiva, 2011. PP. 709-712) e Piovesan (obra citada, pp. 58-62).
16
Isso reconhece, por exemplo, Scaff, quando, embora diga que não é papel do Poder Judiciário substituir o Legislativo, afirma que, “É certo que muitas medidas de caráter urgente devem ser proferidas
visando salvar vidas ou resolver situações emergenciais” (obra citada, p. 29).
direito fundamental à saúde :..
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Essa é uma das formas, embora não a única, de dizer não à discricionariedade
estatal. Afinal, as politicas públicas decorrem de mandamentos previstos no ordenamento, não são criações, sem base alguma, dos governantes. As ações estatais devem
obedecer à lógica da prestação dos direitos fundamentais de forma plena, e não à lógica
mesquinha dos governos, mais preocupados com seus projetos de poder. Um exemplo:
é habitual o fornecimento – seletivo – de medicamentos para algumas enfermidades
graves, enquanto que para outras, também graves, não. Ora, permitir a discricionariedade é aceitar que o governo tem o direito de dizer que doença vai tratar, e quem deve
viver, o que é, sob qualquer ótica, inaceitável.
2.2. O liberalismo de princípios de Rawls como concepção teórica
suficiente para sustentar o direito fundamental dos indivíduos à saúde
Cabe agora indicar a concepção teórica que, combinada com o modelo de reconhecimento e proteção dos direitos fundamentais que é adotado no Brasil, justifica o
direito dos indivíduos à saúde.
Penso que essa concepção é o liberalismo de princípios, que Vita também denomina de liberalismo kantiano17 e, Gargarella, de liberalismo igualitário.18
Antes disso, é preciso explicar qual a importância de discutir uma concepção teórica específica para justificar a defesa do direito individual à saúde, como sustentado
no item anterior.
É que as posições contrárias ou favoráveis ao direito individual à saúde não
são apresentadas sem uma concepção teórica específica, não obstante nem sempre
isso seja indicado de forma expressa. Identificá-las permite entender porque algo que
parece óbvio: o dever do Estado de oferecer o básico aos indivíduos, que no caso aqui
discutido é a saúde plena, pode ser singelamente negado por diversos autores, como
se fosse algo normal.
Começando com as posições mais radicais contra o direito individual à saúde,
penso que é possível perceber uma insatisfação contra o direito em si, ou seja, contra a
obrigação do Estado de proporcionar saúde a todos.
É como se, em não sendo possível desobrigar o Estado do “ônus” de proporcionar
saúde, tentassem os que entendem que assim deveria ocorrer limitar ao máximo o
direito dos indivíduos, circunscrevendo a obrigação estatal a um espaço controlado
pelo próprio Estado, onde é possível limitar o direito, ao ponto de torná-lo bem menor
do que o que é imposto pelo texto constitucional, e muito abaixo do que é necessário
para os seres humanos.
17
VITA, Álvaro de. Justiça liberal: argumentos liberais contra o neoliberalismo. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1993. p. 22.
18
GARGARELLA, Roberto. As teorias da justiça depois de Rawls: um breve manual de filosofia
política. Tradução de Alonso Reis Freire. São Paulo: WMF Martins fontes, 2008. p. XIX.
70
temas atuais de direito
Esse entendimento se enquadra no que Piovesan, tratando de algumas decisões judiciais contra o direito individual à saúde, chama de ótica liberal clássica,19 concepção
que, hoje em dia, é chamada de libertarismo.
Para o libertarismo, o Estado tem um papel bem restrito, não lhe cabendo proporcionar às pessoas direitos sociais. A concepção libertária fica clara nas palavras de um
de seus expoentes, Nozick, que afirma:
[a]s principais conclusões que retiramos acerca do estado são as de que um estado mínimo,
limitado às funções estritas da protecção contra a violência, roubo, fraude, execução de contratos, e por aí em diante, justifica-se; e que o estado mínimo, além de correcto, é inspirador.
Duas implicações dignas de nota são a de que o estado não pode usar os seus instrumentos
coercitivos com o objetivo de obrigar alguns cidadãos a ajudar outros, ou de proibir determinadas actividades às pessoas para o próprio bem ou protecção delas.20
Mas essa não é a única concepção que pode ser percebida. Há claramente os adeptos do utilitarismo que, ao defenderem um atendimento limitado, que até pode ser suficiente, embora de forma precária, para uma boa parte da população, julgam que os
casos que discreparem dessa atenção mínima são somente uma exceção. Essa é uma
visão que, ao contrário do que dizem alguns de seus defensores, só é compatível, em
caso de uma necessidade maior em matéria de saúde, com as possibilidades de uma minoria, que supre um atendimento mínimo e insuficiente investindo seus próprios recursos. É uma visão elitista, então, por criar uma diferenciação baseada na capacidade do
indivíduo de empregar sua própria renda para suprir uma deficiência na atuação estatal.
A respeito do utilitarismo, só para relembrar, ensina Vita que:
[O] utilitarismo é uma teoria ética teleológica, isto é, uma teoria que define o que é correto
ou justo fazer em função de uma concepção da boa vida humana. Essa concepção, no caso do
utilitarismo, é vazia de conteúdo próprio, já que resulta da agregação de preferências e desejos
de facto dos agentes, sem que a motivação ou a validade dessas preferências e desejos sejam
colocadas em questão.21
Já Will Kymlika indica que, na forma mais singela, o utilitarismo “afirma que o
ato ou procedimento moralmente correto é aquele que produz a maior felicidade para
os membros da sociedade”.22 Mais adiante, o mesmo autor afirma que, no utilitarismo,
19
PIOVESAN, Flávia. Justiciabilidade dos direitos sociais e econômicos: desafios e perspectivas. In
CANOTILHO, J. J. Gomes, CORREIA, Marcus Orione Gonçalves, e CORREIA, Érica Paula Barcha (Coord.). Direitos fundamentais sociais. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 60.
20
NOZICK, Robert. Anarquia, estado e utopia. Tradução de Vitor Guerreiro. Lisboa – Portugal: Edições 70, 2009. p. 21.
21
VITA, Álvaro de. Justiça liberal: argumentos liberais contra o neoliberalismo. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1993. p. 13.
22
KYMLIKA, Will. Filosofia política contemporânea: uma introdução. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 11.
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as preferências dos indivíduos não são satisfeitas quando contrárias ao que “maximiza
a utilidade de maneira geral”.23
Essas duas passagens, mais a anterior, de Álvaro de Vita, deixam claras algumas
questões próprias do utilitarismo: a predominância do bem sobre o justo, sendo o resultado o que indica o ato como moralmente correto, bem como o fato de que, no utilitarismo, as preferências dos integrantes dos grupos minoritários são ignoradas, desde que
se maximize a utilidade e se contemple a maior parte dos indivíduos.
É o que acontece, por exemplo, quando um governo afirma, normalmente de
forma triunfante, que a medida que vai adotar possibilitará, por exemplo, que 90% das
crianças tenham educação básica. Aparentemente tem-se aqui uma boa medida, pois
a maioria das crianças será alfabetizada. O problema é que, na verdade, o que se está
a dizer é que, por causa da medida adotada para cumprir uma obrigação essencial do
Estado, 10% de todas as crianças serão excluídas do direito de ter educação formal,
normalmente as mais necessitadas.
Já John Rawls rejeita o utilitarismo por diversos argumentos, podendo ser citado
o fato de o utilitarismo – ao contrário da justiça como equidade, que afirma que os princípios de justiça são objeto de um consenso original – estender “à sociedade o princípio
da escolha feita por um único ser humano”. Para Rawls, não há sentido em haver a
regulação de uma associação de pessoas, em uma sociedade plural e em que as pessoas
têm interesses distintos, a partir da “extensão do princípio de escolha para um único
indivíduo”.24 Rawls, a propósito, na mesma obra, um pouco antes, chega a afirmar que
o “utilitarismo não leva a sério a diferença entre as pessoas”.25
O problema, no Brasil, a respeito da utilização do utilitarismo, é que essa utilização
é agravada pela sua apropriação por aqueles que ainda acreditam, de forma literal, nas
velhas ideologias de “esquerda”, pois estes, tenho observado, pensam que a justiça distributiva deve ser pensada não como um modelo em que o Estado é obrigado a proporcionar
o mínimo a cada indivíduo, e que vai depender, é claro das necessidades mínimas de cada
indivíduo em relação a alguns direitos, mas sim em um mínimo imutável.
Para eles, acredito, bem comum é proporcionar o mesmo, da mesma forma, a todos, em um nivelamento por baixo que não faz sentido. Tratando-se de um bem como
a saúde, em que as necessidades são individualizadas, esse pensamento deveria ser
considerado uma bobagem, não fosse o componente trágico dessa cruel opção, que é
negar o direito à saúde a cada um dos indivíduos.
Para encerrar o item, e reveladas, ao menos como vejo, as motivações teóricas
para posicionamentos tão conservadores na questão debatida, vou usar o pouco espaço
que ainda resta para, ao menos indicar qual o modelo teórico que pode justificar um
tratamento mais qualitativamente igualitário para todos em matéria de direito á saúde.
23
Ibidem, p. 25.
24
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. 2ª ed. Tradução de Almiro Pisetta e Lenita Maria Rímoli
Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 31.
25
Ibidem, p. 30.
72
temas atuais de direito
Esse modelo, claro que atualizado e compatibilizado com as normas brasileiras a
respeito desse direito (à saúde), é o modelo de justiça distributiva construído a partir
das concepções de John Rawls na obra Uma teoria da justiça, já indicada em nota, e
chamado de justiça como equidade.
Sintetizando a ideia de justiça distributiva, atualmente, essa concepção se esteia
no reconhecimento, como afirma Fleischacker, de que “alguma distribuição de bens é
devida a todos os seres humanos, em virtude apenas de serem humanos”.26
Sob esse prisma, o autor indica as premissas necessárias para o moderno conceito
de justiça distributiva, e que são:
1. Cada indivíduo, e não somente sociedades ou a espécie humana como um todo, tem um
bem que merece respeito, e aos indivíduos são devidos certos direitos e proteções com vistas
à busca daquele bem;
2. Alguma parcela de bens materiais faz parte do que é devido a cada indivíduo, parte dos
direitos e proteções que todos merecem;
3. O fato de que cada indivíduo mereça isso pode ser justificado racionalmente, em termos
puramente seculares;
4. A distribuição dessa parcela de bens é praticável: tentar conscientemente realizar essa tarefa
não é um projeto absurdo nem é algo que, como ocorreria caso se tentasse tornar a amizade
algo compulsório, solaparia o próprio objetivo que se tenta alcançar; e
5. Compete ao Estado, e não somente a indivíduos ou organizações privadas, garantir que tal
distribuição seja realizada.27
Ela é feita por Fleischacker, obviamente, sob uma perspectiva liberal igualitária,
ou de princípios, como principalmente venho denominando, pois toma por base que
a distribuição deve ser feita a todos os indivíduos, nessa condição, sendo que se pode
sintetizar as premissas acima em duas partes: cada indivíduo é merecedor de direitos
básicos, sendo que uma certa parcela de bens materiais está compreendida nesses direitos; garantir que ocorrerá a distribuição desses bens – entendida a distribuição como
algo factível – compete principalmente ao Estado.
E em relação ao direito fundamental à saúde, onde a ideia pode ser encontrada, na
teoria de Rawls?
Genericamente, em duas ideias, caras ao autor. Primeiro, de que cada indivíduo
deve ser levado em consideração, respeitadas as suas diferenças, o que já foi visto logo
acima, quando mostrei o pensamento desse autor em relação ao utilitarismo.
Segundo, pelo que se pode ser depreendido em um dos princípios de justiça enunciados por Rawls, e que é chamado de princípio da diferença.28 Nele, Rawls defende
o que tenho chamado de desigualdade controlada, e que pode ser explicado, de forma
singela, assim: 1) ninguém pode ter tudo, mesmo que isso seja amealhado licitamente,
26
FLEISCHACKER, Samuel. Uma breve história da justiça distributiva. São Paulo: Martins Fontes,
2006. P. 12.
27
Idem.
28
Obra citada.
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73
pelo que, ao menos pela tributação, uma parte deverá reverter à sociedade; 2) ninguém pode ficar sem alguma coisa, cabendo aos indivíduos um mínimo que deve ser
garantido.29
Em relação à saúde, o que é o mínimo? Claro que não pode ser um “mínimo de
saúde”, sinônimo de uma vida precária. Só pode ser a saúde plena, no limite do que for
possível, considerando o conhecimento disponível.
A única forma de fazer isso é admitindo que o direito à saúde também é um direito
fundamental individual, e se aceitando que o Estado, no caso em discussão o Estado
Brasileiro, é obrigado a proporcionar a cada indivíduo o que for necessário para que
esse direito seja satisfeito.
3. Considerações finais
Como fecho das questões enfrentadas, permito-me fazer algumas considerações, e
que refletem o que penso, embora, reconheça, neste item, em parte, haja um abandono
da visão científica que procurei imprimir ao texto.
É que, em boa medida, isso traduz a minha perplexidade em ver criarem corpo
teorias que negam aos indivíduos aquilo que lhes é básico, mínimo, fundamental.
Devo começar dizendo que, quando há restrições na prestação dos serviços de
saúde pelo Estado, o que este faz é: decidir quem atenderá, e quem não atenderá; decidir para quem fornecerá medicamentos, e para quem não fornecerá; decidir quem tem
direito de participar da vida em sociedade, e quem não terá; mais que isso, decidir, às
vezes, quem vive e quem morre.
Isso, sempre, prejudicará os menos favorecidos. Acolher concepções restritivas,
para quem advoga soluções radicais e que culminam com a negativa do direito à saúde,
penso, é só uma visão elitista, reacionária, digna, na melhor das hipóteses, dos herdeiros do libertarismo, e, na pior delas, de pensadores como Malthus ou Herbert Spencer.30
Para os que ainda postulam restrições, embora em menor grau, lembro que, só há
respeito ao direito fundamental à saúde se os serviços forem prestados de forma plena, e
isso só acontece se a pessoa tiver preservado o seu direito à vida, e uma vida com saúde.
Para isso, a solução é dizer não à desigualdade, rejeitando-se teorias conservadoras e que só privilegiam quem já tem, subordinando o papel do Estado aos interes-
29
Há dois autores que podem aperfeiçoar essa discussão: Ronald Dworkin (A virtude soberana: a
teoria e a prática da igualdade. Tradução de Jussara Simões. São Paulo: Martins Fontes, 2005) e
Amartya Sen (Desigualdade reexaminada. Tradução de Ricardo Doninelli Mendes. Rio de Janeiro: Record, 2001). Essa discussão, todavia, por ser longa, não cabe nesse texto, devendo ficar para
outra oportunidade.
30
Para compreender um pouco a respeito das ideias desses dois autores sugiro ler: Thomas Robert
Malthus (Princípios de economia política e considerações sobre sua aplicação prática; Ensaio
sobre a população. São Paulo: Abril Cultural, 1983. Coleção Os economistas); Stanley L. Brue
(História do pensamento econômico. São Paulo: Thomson Learning, 2006); e Fleischacker
(obra citada).
74
temas atuais de direito
ses dos governantes, e contra a sociedade, especialmente os menos favorecidos, sendo
exemplos as teorias da reserva do possível; dos custos dos direitos; da prevalência da
lei orçamentária; entre outras.
E os abusos – para que não se diga que não falei disso —, que, infelizmente, em
certos casos são cometidos, e que acabam servindo de mote para justificar a retirado do
mínimo das pessoas? Que sejam coibidos, mas sempre sendo tratados como exceções,
pois a regra de toda e qualquer comunidade deve ser a de ter respeito por cada um de
seus integrantes.
7
ASPECTOS RELATIVOS À FASE INICIAL
DO CUMPRIMENTO DA DECISÃO DE
QUANTIA NO PROJETO DO NCPC
José Henrique Mouta Araújo
RESUMO: O texto pretende enfrentar aspectos ligados ao início da fase de cumprimento
de sentença de quantia, com observações e críticas relativas ao projeto do novo Código de
Processo Civil.
Palavras-chave: Cumprimento – título – fase – intimação – multa – prazo – protesto.
Abstract: The text aims to address issues related to the early stage of compliance with judgment
sum with remarks and criticisms regarding the design of the new Code of Civil Procedure.
Key words: Compliance – Title – phase – intimation – fine – term – protest.
SUMÁRIO: 1. Introdução e delimitação do tema; 2. Manutenção do sistema de cumprimento –
satisfação sem necessidade de nova ação; 3. Cumprimento de sentença ou de decisão? e as
interlocutórias de mérito? 4. Necessidade de provocação e de intimação – confirmação de um
entendimento anterior; 5. modificações e aprimoramentos gerais da fase inicial.
1. INTRODUÇÃO E DELIMITAÇÃO DO TEMA
Como é sabido, está sendo discutido no Congresso Nacional o projeto do Novo
Código de Processo Civil. Este projeto (que passa a ser chamado neste ensaio de
NCPC) procura superar os pontos de estrangulamento do sistema e abreviar o tempo de
duração dos processos em tramitação no Judiciário nacional.
Essa preocupação quanto ao tempo do processo e ao rápido acesso à justiça aponta
para o aprimoramento do sistema de cumprimento de sentença, que já existe no CPC
atual e foi objeto das alterações ocorridas nos anos de 2005 e 2006.
Contudo, após estas reformas, a doutrina e jurisprudência pátria passaram a travar
discussões quanto a necessidade ou não de intimação do executado para o início da
fase de cumprimento, ao órgão jurisdicional competente, ao próprio conceito de cumprimento, a forma e prazo para a efetivação da multa de 10% em decorrência do não
pagamento voluntário da obrigação contida no título, etc.
Essas controvérsias, que acabaram repercutindo na prática forense, por vezes acabaram por atravancar a prestação jurisdicional e foram tratadas de forma específica
pelas diversas Comissões de Juristas que estão trabalhando no NCPC, como será demonstrado neste breve ensaio.
76
temas atuais de direito
Um esclarecimento deve ser dado: o que se pretende enfrentar é a fase inicial do
cumprimento da decisão impositiva de quantia. Não se quer, neste momento, analisar
as modificações em relação à fase de devesa do devedor (impugnação, embargos,
objeção de pré-executividade), ao sistema executivo autônomo (títulos executivos
extrajudiciais ou especiais – como a execução contra a fazenda pública) e nem o
cumprimento das decisões que contenham tutelas específicas (fazer, não fazer e entrega de coisa).
Vamos aos argumentos.
2. MANUTENÇÃO DO SISTEMA DE CUMPRIMENTO – SATISFAÇÃO
SEM NECESSIDADE DE NOVA AÇÃO
Inicialmente, vale citar que o NCPC procura aprimorar o sistema de cumprimento
de sentença impositiva de quantia, como fase procedimental, com previsão específica
no Livro I (Do processo de conhecimento e do cumprimento de sentença), Titulo II
(arts 528 e seguintes – versão da Câmara).
O sistema processual está, em verdade, caminhando em etapas de reformas, iniciadas ainda no Século passado e que procuram superar óbices ligados ao tempo de
duração dos processos, especialmente no que respeita à forma de satisfação das obrigações judiciais.
Assim, o cumprimento das decisões judiciais impositivas de quantia passou a ser
feito de maneira sincrética, com duas fases distintas (uma de declaração da existência
do direito e outra de satisfação da ordem contida no decisum). A Lei nº 11.232/05 trouxe importante alteração no sistema executivo pecuniário, com a previsão da execução
como fase (redação dada ao art. 475, I do CPC atual), além de estimular o sincretismo
processual com a redimensão do conceito de sentença de mérito como o pronunciamento que interliga as fases de conhecimento e de cumprimento do julgado (art. 162,
§1º c/c 269 do CPC atual).
Neste contexto, falar em autonomia do processo de execução (e, portanto, autonomia da ação executiva) é enfrentar tema complexo e que requer profunda atenção. Com
efeito, tem-se debatido, diante das reformas ocorridas nos últimos anos, a necessidade
de estimular processos judiciais sincréticos, onde atos de conhecimento e de execução
(efetivação) possam ser vislumbrados numa mesma base procedimental, mediante única provocação da tutela jurisdicional.
Realmente, a quebra da autonomia da execução advinda de título judicial foi um
dos principais (quiçá o principal) aspectos enfrentados pela Lei nº 11.232/05, e que
foi aprimorado no projeto do NCPC. O projeto, portanto, deixa claro, em sua parte
especial, que haverá um Livro I (Do processo de conhecimento e do cumprimento de
sentença), iniciando-se no art. 300, ratificando a existência de duas fases sincréticas
– conhecimento e satisfação da obrigação contida na decisão judicial, passando o cumprimento de sentença a ser tratado de forma específica nos arts. 528 e seguintes (versão
da Câmara).
aspectos relativos à fase inicial ..
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josé henrique mouta araújo
77
3. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA OU DE DECISÃO?
E AS INTERLOCUTÓRIAS DE MÉRITO?
Neste momento, torna-se necessário analisar a redação pretendida para o Título II
– Cumprimento de Sentença, bem como para o Livro I – Do Processo de Conhecimento
e do Cumprimento de Sentença.
A pergunta que se deve fazer, seguida posteriormente de uma critica à redação
pretendida no NCPC, é a seguinte: é apenas a sentença que gera cumprimento sincrético? A resposta é negativa.
Em vários artigos do próprio Título II, o CPC projetado menciona cumprimento
de sentença, a saber: art. 528 (caput e §§1º, 2º, 4º), 529, 530, etc. Contudo, em outras
passagens, o texto indica que o cumprimento é de decisão (seja sentença, acórdão ou
mesmo interlocutória).
O art. 530, I do projeto, por exemplo, ao consagrar os títulos executivos judiciais,
indica decisões proferidas no processo civil. Que decisões são estas? Não apenas as
sentenças, incluindo as interlocutórias impositivas de condutas a serem cumpridas e os
casos de pedidos incontroversos julgados antecipadamente.
O mesmo ocorre na redação prevista para o art. 532 do NCPC (versão da Câmara)
que, ao prever a possibilidade da decisão judicial transitada em julgado possibilitar o
protesto, não indica necessariamente que se trata de uma sentença.
O intérprete deve fazer análise em conjunto do sistema de cumprimento das decisões judiciais, para chegar à conclusão de que, apesar de ser consagrada a expressão
cumprimento de sentença, não é este apenas o pronunciamento judicial que pode gerar
a nova fase procedimental.
Nas tutelas antecipadas específicas de obrigação de fazer, não fazer ou entrega
de coisa, por exemplo, estar-se-á diante de interlocutórias que, também gerarão a utilização das técnicas de cumprimento sincrético. Aliás, na redação pretendida para o
art. 534 do NCPC (versão da Câmara), também há o indicativo de que as disposições
relativas ao cumprimento de sentença são aplicáveis, no que couber, às decisões (interlocutórias) que concederem tutela antecipada.
Vale destacar uma premissa: o mais importante para um pronunciamento judicial é a verificação de seu conteúdo; se terá ou não o grau cognitivo suficiente para
imunizar-se pela coisa julgada e se poderá ou não gerar o cumprimento (satisfação) do
seu conteúdo, de forma provisória ou definitiva.
Há, no sistema processual atual, várias situações jurídicas em que a decisão,
apesar de não encerrar o processo ou uma de suas fases (não sendo, portanto,
sentença, nos termos do art. 184, §1º, do Projeto do NCPC – versão da Câmara),
possui cognição suficiente para a formação da coisa julgada e possibilidade de
gerar o cumprimento sincrético (definitivo ou provisório). Na tutela antecipada da
parte incontroversa da demanda (art. 273, §6º, do atual CPC e 364, I do projeto do
NCPC – versão da Câmara), por exemplo, está-se diante de resolução parcial de
mérito (decisão interlocutória definitiva), capaz de gerar o cumprimento sincrético
definitivo.
78
temas atuais de direito
Esta hipótese, aliás, provoca três reflexões importantes: a) a possibilidade de resolução parcial de mérito (verdadeiro julgamento antecipado parcial do mérito) gerar
imutabilidade (coisa julgada material); b) a previsão de coisa julgada em momentos
diferenciados numa mesma relação jurídica processual; c) a consagração do sistema de
cumprimento de decisão interlocutória e não apenas de sentença.
Em outras passagens do Projeto do NCPC há indicação da possibilidade de interlocutória resolver o mérito (art. 1037, II – versão Câmara), rescisória sendo admitida
em face de decisões de mérito e não apenas sentença de mérito (art. 987 – Versão
Câmara), e resoluções parciais de mérito (art. 364- Versão Câmara).
De mais a mais, o projeto do NCPC consagra as hipóteses em que será cabível o
agravo por instrumento, dentre as quais os casos das resoluções parciais de mérito (art.
1037, II) e de indeferimento da reconvenção (art. 1037, XII).
Enfim, a meu ver parece adequada a ressalva de que o projeto deveria, logo nos
Títulos I e II, consagrar a expressão cumprimento de decisão e não de sentença, deixando claro que o que importa é a ordem contida na decisão e não necessariamente sua
natureza jurídica
Aliás, em outras passagens, no próprio Livro II, há o indicativo da possibilidade de cumprimento de decisão interlocutória definitiva e não apenas de sentença. Na
redação proposta para o art. 538 do NCPC (versão da Câmara), há a possibilidade do
cumprimento definitivo de parcela incontroversa que, a rigor, advém de resolução parcial de mérito (art. 1037, II do Projeto), cuja natureza jurídica, como já mencionado, é
de decisão interlocutória transitada em julgado.
E não é só.
Além destes existem outros dispositivos no projeto do NCPC (versão da Câmara)
que consagram a possibilidade de várias decisões de mérito capazes de formar coisa
julgada material e, como consequência, a possibilidade de cumprimento de várias decisões (e não apenas sentença) oriundas de um mesmo processo, a saber:
– Art. 184, 1º – consagra a sentença como ato final do processo ou de uma de suas fases;
– Art. 184, §2º – prevê a possibilidade de pronunciamento judicial de natureza decisória que
não se enquadre no conceito de sentença;
– Art. 364, §2º – indica que a decisão que resolver parcialmente o mérito estará sujeita ao
recurso de agravo;
– Arts. 517 e 518 – ao apresentarem o conceito de coisa julgada material, indicam que esta
ocorre nos casos de decisão de mérito (e não sentença de mérito, como consta o atual CPC –
art. 467);
– Art. 530, I – indica que são títulos judiciais as decisões proferidas no processo civil que
reconheçam obrigação de pagar quantia, fazer, não fazer ou entrega de coisa (ao contrário
do atual CPC que, no art. 475-N, I, consagra apenas a sentença como a formadora de título
executivo judicial);
– Art. 530, IX – menciona decisão interlocutória estrangeira como título executivo;
– Art. 548 – cumprimento de decisão sobre parcela incontroversa (e não cumprimento de
sentença);
– Art. 987 – ao consagrar o cabimento de ação rescisória, ao contrário do atual art. 485 do
CPC atual (que indica apenas sentença de mérito), prevê expressamente a hipótese de qualquer decisão de mérito transitada em julgado.
aspectos relativos à fase inicial ..
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josé henrique mouta araújo
79
Após todas essas observações, especialmente no que respeita a alteração contida
no Projeto do termo sentença (contido no CPC atual – arts. 485 e 475-N) para decisão,
nos casos de rescisória (art. 987 do NCPC) e títulos executivos judiciais (art. 530, I,
do NCPC), entendo que a crítica deve ser ratificada: deveria o NCPC mencionar a expressão cumprimento da decisão e não da sentença, espancando qualquer margem de
dúvida sobre a interpretação a ser dada pelo operador do direito em relação à natureza
jurídica da ordem judicial a ser cumprida e a possibilidade de vários cumprimentos
sincréticos oriundos de um mesmo processo.
4. NECESSIDADE DE PROVOCAÇÃO E DE INTIMAÇÃO – CONFIRMAÇÃO
DE UM ENTENDIMENTO ANTERIOR
Dois aspectos polêmicos e que geraram controvérsia interpretativa nos últimos
anos foram enfrentados pelo Projeto, a saber: a) momento de início da fase de cumprimento; b) prazo para a efetivação da multa de 10% decorrente do não pagamento
voluntário.
Estes assuntos já foram objeto de reflexões anteriores, onde me manifestei que o
prazo para pagamento não é automático e que há a necessidade intimação do demandado para inicio de sua fluência.
Contudo, tais aspectos estão longe de uniformização interpretativa. Existem, no
sistema atual, no mínimo três posicionamentos doutrinários sobre esses temas: a) aquele que defende que o prazo de 15 dias é automático e inicia-se após a coisa julgada,
independente de nova intimação; b) o que advogada a necessidade de intimação pela
simples publicação no Diário Oficial (físico ou eletrônico), dirigida ao advogado do
executado; c) o que assevera ser necessária a intimação pessoal do devedor.
Neste tema, vale citar que o STJ, no julgamento do REsp 954.859/RS, 3ª Turma,
Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, DJ de 27.08.2007, entendeu que “transitada em
julgado a sentença condenatória, não é necessário que a parte vencida, pessoalmente
ou por seu advogado, seja intimada para cumpri-la. Cabe ao vencido cumprir espontaneamente a obrigação, em quinze dias, sob pena de ver sua dívida automaticamente
acrescida de 10%”.
Posteriormente, o Tribunal Superior manteve a interpretação de que o prazo seria
automático, cabendo ao réu efetuar o pagamento voluntário contado da ocorrência do
trânsito em julgado da decisão.
Contudo, alguns julgados da 4ª Turma do Tribunal manifestaram-se com certa
divergência, como o seguinte:
Agravo regimental. Processo civil. Execução. Cumprimento de sentença. Art. 475-J do CPC.
Multa. 1. A fase de cumprimento de sentença não se efetiva de forma automática, ou seja,
logo após o trânsito em julgado da decisão. De acordo com o art. 475-J combinado com os
arts. 475-B e 614, II, todos do do CPC, cabe ao credor o exercício de atos para o regular
cumprimento da decisão condenatória, especialmente requerer ao juízo que dê ciência ao
devedor sobre o montante apurado, consoante memória de cálculo discriminada e atualizada. 2. Observado pelo credor o procedimento relativo ao cumprimento do julgado na forma
80
temas atuais de direito
do art. 475-J do CPC e ciente o advogado da parte devedora acerca da fase executiva, o
descumprimento da condenação a que lhe fora imposta implica na imposição de multa de
10% sobre o montante devido. 3. Agravo regimental provido para aplicar a multa prevista no
art. 475-J do CPC” (AgRg no AG 1.058.769/RS, Rel. Min. João Otávio de Noronha, DJe de
30.11.2009 – grifo nosso).
Percebe-se, portanto, que no próprio STJ havia divergência de posicionamento
acerca do início da fluência do prazo para cumprimento espontâneo da decisão e sobre
a necessidade ou não de atuação do exequente.
O Projeto do NCPC (versão da Câmara) pretende, pelo menos em tese, colocar a
última pá de cal sobre esses temas, com as seguintes previsões legais:
a) Art. 538, §1º – irá dispor que o cumprimento de sentença, provisório ou definitivo, será
feito a requerimento do exequente (por meio de petição com documentação comprobatória do
crédito atualizado – arts. 537 e 539 do NCPC);
b) §2º: irá prever a necessidade de intimação do devedor pelo Diário de Justiça, na pessoa
de seu advogado ou por carta com Aviso de Recebimento, quando não tiver advogado ou for
representado pela Defensoria Pública;
c) Art. 538 e §1º indicará que a multa de 10% pelo descumprimento será imputada acaso não
haja o pagamento nos quinze dias, contados da intimação;
d) E o §2º estabelecerá a multa de 10% também para os casos de cumprimento provisório (art.
535, §2º).
Pelo que se percebe, o NCPC tem a intenção de encerrar as polêmicas envolvendo
a fixação da multa e o papel do exequente na fase inicial do cumprimento da decisão
de quantia, além de consagrar seu cabimento também nos casos de execução provisória
(outro aspecto que gerou polêmica interpretativa nos últimos anos).
Uma vez aprovado e sancionado o NCPC, o cumprimento não será automático como
parte dos estudiosos do direito passou a defender após a Lei nº 11.232/05 e sim dependerá de provocação do exequente, e a multa será imputada (no cumprimento provisório
e definitivo) apenas após o descumprimento do prazo de 15 dias, contados da intimação
para o pagamento, na forma estabelecida no §2º, do art. 538 (versão da Câmara). Basta
aguardarmos a forma que serão interpretados os dispositivos legais projetados.
5. MODIFICAÇÕES E APRIMORAMENTOS GERAIS DA FASE INICIAL
Além dos aspectos até aqui apresentados, o NCPC visa aprimorar aspectos importantes relativos ao conceito de título executivo, competência, protesto do título, etc.
O CPC em vigor, visando estimular o sincretismo processual entre as fases de
conhecimento e cumprimento, alterou o conceito de título executivo, constante no art.
475-N. Pela leitura atual, o inciso I consagra que é título executivo a sentença que reconhece obrigação de fazer, não fazer, coisa ou pagamento de quantia, além dos demais
incisos que consagram sentença penal, arbitral, homologatória de conciliação, etc.
Contudo, analisando o art. 530 do NCPC (versão da Câmara) e seus incisos, é fácil
perceber alguns aprimoramentos na redação, que são agora resumidos:
aspectos relativos à fase inicial ..
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josé henrique mouta araújo
81
– No caput do dispositivo, além da sentença condenatória, são títulos executivos os documentos previstos em seus incisos. Percebe-se que esta expressão volta ao diploma legal, após
sua retirada pela Lei nº 11.232/05. Ratifica-se, nesse contexto, a crítica feita anteriormente no
sentido de que não deveria ser apenas a sentença e sim qualquer decisão impositiva de conduta
o que, aliás, está claro no inciso I do mesmo dispositivo;
– Aliás, o inciso I projetado, corrigindo a expressão contida no atual art. 475-N, I do CPC,
passa a consagrar decisões que reconheçam a exigibilidade da obrigação de pagamento, de
fazer, não fazer e coisa. Interessante essa alteração em relação à redação atual, tendo em vista
que estabelece claramente que o título não é apenas a decisão que reconhece a existência de
obrigação, mas sim aquela que prevê a imediata exigibilidade da obrigação, inclusive pelo
fato de que essa exigibilidade é requisito obrigatório para o título executivo e pode ser objeto
de irresignação pelo executado em sua impugnação (art. 540, III e § 6º do NCPC – versão da
Câmara). Não se deve confundir existência com exigibilidade. Por derradeiro, esta proposta
legislativa deixa claro, como já mencionado anteriormente, que será título executivo qualquer
decisão que reconheça a exigibilidade de obrigação e não apenas sentença;
– Houve o acréscimo do inciso V – créditos dos serventuários, peritos, intérpretes, etc. Na
verdade, o projeto pretende fazer uma correção em relação ao sistema processual atual, que
prevê esses títulos como executivos extrajudiciais (art. 585, VI, do CPC). Tratam-se, a bem
da verdade, de títulos judiciais e que podem provocar um sistema de satisfação da obrigação
mais célere se comparado à execução autônoma de título extrajudicial, pelo que entendo que
andou bem o projeto;
– No inciso IX prevê que é título judicial a decisão interlocutória estrangeira, o que também
caminha no mesmo sentido das observações anteriores quanto a possibilidade de existência de
títulos executivos distintos de sentença;
O mesmo aprimoramento legislativo ocorre em relação à competência para o
cumprimento de decisão de quantia.
No atual CPC o assunto é tratado nos arts. 475-P c.c 575. O NCPC (art. 531 – versão da Câmara) pretende aprimorar a competência para o cumprimento, especialmente
nos casos em que estiver em análise o juízo que constituiu o título ou aquele competente para a satisfação da sentença arbitral, penal condenatória e estrangeira.
Destarte, o CPC projetado passará a consagrar a opção em relação à competência também para os casos das obrigações de fazer e não fazer, que poderão ser objeto de cumprimento tanto no juízo que constitui a obrigação (também o cível competente para a decisão
penal condenatória, arbitral e estrangeira) quanto naquele em que ela deva ser executada.
A única observação que entendo necessária diz respeito à falta de menção à sentença que reconhece obrigação de entrega de coisa, que poderia também estar sujeita
a esta opção, por exemplo, entre o juízo que configurou a obrigação e aquele em que a
coisa está localizada.
Por fim, há uma importante modificação quanto a possibilidade do credor na fase
inicial do cumprimento de sentença, protestar o título. Pelo sistema processual projetado, após o prazo de pagamento voluntário previsto no art. 538 do NCPC (versão da
Câmara), poderá o autor promover o protesto do título executivo, nos termos e com as
consequências previstas em lei (art. 532 do NCPC – versão da Câmara). Trata-se de
mais uma previsão louvável do projeto, levando em conta os objetivos e a consequência
deste ato constritivo, cujo procedimento estará consagrado no dispositivo em comento.
Em relação à fase inicial do cumprimento, vejo estes como os principais aspectos
constantes no Projeto do NCPC.
8
TÓPICOS TEMÁTICOS EM DIREITOS FUNDAMENTAIS
Alexandre Manuel Lopes Rodrigues
SUMÁRIO: 1. Direitos humanos e direitos fundamentais. 2. Direitos e garantias fundamentais. 3. Evolução Histórica. 3.1. Antiguidade e Idade Média. 3.2. Idade Moderna (Locke, Rousseau, Montesquieu e Kant). 3.3. Era contemporânea. 4. Dimensões dos direitos fundamentais. 4.1. Direitos
individuais. 4.2. Direitos sociais e econômicos. 4.3. Direitos de solidariedade. 4.4. Quarta dimensão. 5. Direitos fundamentais e Constituição. 5.1. Direitos formal e materialmente fundamentais.
5.2. Princípio da dignidade da pessoa humana. 6. Perspectivas objetiva e subjetiva dos direitos
fundamentais. 7. Limitações e restrições aos direitos fundamentais. 7.1. A reserva do possível.
7.2. Dignidade da pessoa humana como limitação jusfundamental. 8. Direitos humanos: liberdade
individual vs. liberdade social. 9. Direitos sociais e sua efetividade.10. Bibliografia.
Este artigo tem por objetivo apresentar de forma bem simples ao leitor alguns tópicos ou temas de interesse geral, em relação aos assuntos Direitos Fundamentais e/ou
Direitos Humanos. Procurou-se esclarecer definições que dentro do estudo dos Direitos
Fundamentais podem ser controversos ou revestirem-se de pouca clareza. De qualquer
sorte, são conceitos básicos que vão servir para qualquer leitor que esteja iniciando seus
estudos no tema dos Direitos Fundamentais.
1. Direitos humanos e direitos fundamentais
Existe uma ampla gama de autores que buscam conceituar as expressões direitos humanos e direitos fundamentais, além de outras denominações. Faz-se necessário realizar
um breve apanhado dessas definições, para situar o leitor e embasar o desenrolar do estudo.
J. J. Gomes Canotilho utiliza as expressões direitos fundamentais formalmente
constitucionais e direitos fundamentais materialmente constitucionais. Com relação aos
primeiros, diz o autor que eles se referem aos direitos consagrados e reconhecidos pela
Constituição, visto que são enunciados e protegidos por normas de valor constitucional
formal. Os segundos seriam a categoria de outros direitos fundamentais constantes das
leis e regras aplicáveis de direito internacional, pois as normas que os reconhecem e
protegem não possuem a forma constitucional.1
1
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 6ª ed. Coimbra: Almedina, 1996, p. 528.
84
temas atuais de direito
Norberto Bobbio, por sua vez, estabelece distinção entre direitos humanos (direitos do homem, enquanto direitos exclusivamente naturais) e direitos fundamentais
(direitos positivados). Com relação a essa distinção, afirma o autor que, enquanto os
direitos do homem eram tidos, unicamente, como direitos naturais, a única defesa que
se tinha como possível, contra a sua violação pelo Estado, era o direito, igualmente
natural, de resistência.2
Na visão de Guerra Filho, a expressão “direitos fundamentais” está ligada a uma
concepção que representa as manifestações positivas do direito, com aptidão para a
produção de efeitos no plano jurídico, ao passo que direitos humanos seriam pautas
ético-políticas, repousadas em uma dimensão suprapositiva, deonticamente diversas
daquela em que se consagram as normas jurídicas.3
José Cláudio Monteiro de Brito Filho leciona que os direitos fundamentais devem
ser entendidos como aqueles que são reconhecidos pelo Estado, em sua ordem interna,
e que são tidos como necessários à dignidade da pessoa humana. Revela o autor que,
embora tanto a expressão direitos humanos, quanto a expressão direitos fundamentais
tenham suas definições ligadas à necessidade de seu reconhecimento como modo de
garantir a dignidade da pessoa humana, nem sempre coincidem. Explica que, no âmbito
interno dos Estados, é comum o fato de nem todos os direitos internacionalmente vigentes serem reconhecidos, sendo comum ainda que alguns direitos só sejam reconhecidos em determinados Estados, e não na órbita internacional. Cita como exemplos os
casos do acréscimo de um terço na remuneração de férias do trabalhador brasileiro, que
faz parte dos direitos fundamentais dos trabalhadores em nosso País (art. 7.º, XVII, da
Constituição Federal (CF) de 1988), bem como a instituição do décimo terceiro salário
(art. 7.º, VIII), que existem apenas como institutos dessa categoria no Brasil.4
Para Ingo Wolfgang Sarlet, existem três expressões distintas: direitos do homem,
direitos humanos e direitos fundamentais. A primeira faria referência aos direitos naturais, ainda não positivados; a segunda diria respeito aos direitos já positivados na
esfera do direito internacional; por fim, a terceira representaria os direitos reconhecidos
e protegidos pelo direito constitucional interno de cada País. Na visão desse autor, o
elemento primordial para diferenciar os direitos humanos dos direitos fundamentais
consiste no fato de a expressão “direitos fundamentais” constituir o conjunto de direitos
e liberdades institucionalmente reconhecidos e garantidos pelo direito positivo de um
País específico, configurando, assim, direitos delimitados espacial e temporalmente,
tendo, portanto, o caráter de fundamentador do sistema jurídico do Estado de Direito.5
2
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 31.
3
GUERRA FILHO, Willis Santiago (Org.). Dos direitos humanos aos direitos fundamentais. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 12.
4
BRITO FILHO, José Cláudio Monteiro. Trabalho decente. São Paulo: LTr, 2004, p. 35.
5
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 32.
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alexandre manuel lopes rodrigues
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2. Direitos e garantias fundamentais
Qual seria a diferença entre as expressões direitos fundamentais e garantias fundamentais? Pode-se dizer, prima facie, que os direitos são prerrogativas de todos os
cidadãos, enquanto as garantias seriam os meios utilizáveis para fazer valer aqueles
direitos. Desse modo, os direitos teriam uma natureza material, enquanto as garantias
teriam um caráter instrumental – possibilidade que pertence ao cidadão de exigir dos
poderes públicos que protejam os seus direitos, bem como a corporificação dos meios
processuais adequados a essa proteção.6
Os direitos podem ser entendidos como todos os bens ou interesses ligados a esses
bens, que são importantes para a vida do homem – aqueles que satisfazem as necessidades que o ser humano possui, para poder desenvolver, em plenitude, a sua vida e
alcançar seus objetivos com dignidade. As garantias, por sua vez, destinam-se apenas a
assegurar a fruição desses bens ou interesses. Em outras palavras, os primeiros devem
ser entendidos como atributos de ordem política e jurídica dos quais a pessoa é titular.
Já as garantias devem ser entendidas como normas positivas que asseguram e protegem
o respectivo direito.7
Como exemplos podem-se citar: com relação ao direito à vida, a garantia que
implica a proibição da pena de morte; com relação ao direito à liberdade, as garantias
de proibição da pena de prisão perpétua, a irretroatividade da lei penal, in pejus, e o
instrumento do habeas corpus.
3. Evolução histórica
Passa-se a demonstrar a evolução que os conceitos e institutos de direitos humanos sofreram no decorrer do tempo.
3.1. Antiguidade e Idade Média
É fato notório que o surgimento dos direitos fundamentais deveu-se principalmente
à tentativa de limitar o poder do Estado sobre os direitos individuais dos cidadãos.
O primeiro momento em que se torna visível essa característica é, provavelmente,
o surgimento do Código de Hamurabi, na Babilônia. Essa codificação trazia o
esboço de um primeiro catálogo de direitos fundamentais, pois listava uma gama de
comportamentos humanos e gizava, em contrapartida, a sanção ou punição a que a
pessoa estaria sujeita, limitando assim a discricionariedade estatal.8
6
CANOTILHO, 1996, p. 520.
7
BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Direitos e garantias fundamentais. Revista da Faculdade de
Direito da UFMG, Belo Horizonte, v. 33, nº 33, 1991, p. 295.
8
ADEODATO, João Maurício. O problema da legitimidade no rastro do pensamento de Hannah
Arendt. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989, p. 9.
86
temas atuais de direito
Nesse primeiro momento, a presença da religiosidade é muito sentida, pois os
reis ou mandatários máximos de um povo eram, regra geral, considerados como os
próprios deuses encarnados. Assim, tornava-se difícil estabelecer limites para seus poderes. Alguns povos do Oriente Médio, como os hebreus, possuíam um entendimento
mais avançado sobre esse tema, visto que professavam uma religião monoteísta, na
qual os governantes não eram divinizados, mas eram considerados como simples representantes de Deus. Isso facilitava a defesa de interesses dos súditos, pois, sendo o
soberano apenas humano, dele também se poderia exigir que respeitasse as leis que
eram impostas a todos, sobretudo os “Dez Mandamentos”.
A Grécia Antiga foi o berço de grandes avanços no campo dos direitos fundamentais. Embora esses direitos tenham sido concebidos exclusivamente para os cidadãos
gregos, o que deixava de lado as mulheres, os estrangeiros e os escravos, podem-se destacar a participação política dos cidadãos, a crença na existência de um direito natural
superior às leis escritas pelo homem (Sófocles), a liberdade como direito do cidadão
(Platão), a igualdade como princípio básico da democracia, com exclusão de privilégios políticos, a curta duração das funções públicas e a resolução em assembleia geral
de cidadãos das questões públicas mais importantes.9
A Idade Média pode ser considerada o marco principiológico da democracia moderna, tendo por base os direitos fundamentais, pois foi nesse período, mais precisamente em
1215, que o rei João Sem Terra fez publicar a Magna Charta Libertatum. Esse documento, apesar de garantir direitos apenas aos senhores feudais, normatizou as limitações do
poder do soberano, fixando parâmetros para o poder de tributar, estabelecendo um sentido
de proporcionalidade entre o ilícito e a pena, criando o devido processo legal, o livre
acesso à Justiça e tornando efetivos a liberdade de locomoção e o direito à propriedade.
3.2. Idade Moderna (Locke, Rousseau, Montesquieu e Kant)
Como grande reação ao modelo de Estado Absolutista, o Iluminismo vem lançar
as bases de um Estado Liberal, no qual os poderes absolutos do Estado pudessem ser
moderados e contrapostos aos direitos individuais dos cidadãos, surgindo aí a alavanca
que impulsionou a ideia de garantia e respeito dos direitos fundamentais.
O Estado Liberal desponta inicialmente na Inglaterra e tem como baluarte John
Locke. Ele foi o principal defensor de um modelo de separação de poderes, com o
objetivo de restringir quaisquer exorbitâncias por parte das pessoas a quem se havia
conferido autoridade, depositando o poder de governo em mãos diferentes e dividindo,
assim, o poder entre o monarca e a representação popular.10
O pensamento de Locke influenciou a Revolução Gloriosa na Inglaterra, pondo
fim ao Estado Absoluto e fazendo nascer o Estado Liberal de Direito (monarquia parla-
9ARISTÓTELES. A política. Tradução de R. L. Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 125.
10
LOCKE, John. Dois tratados sobre o Governo. Tradução de J. Fischer. São Paulo: Martins Fontes,
1998, p. 514.
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alexandre manuel lopes rodrigues
87
mentarista). Essa revolução, fruto do confronto entre rei e parlamento, culmina com a
publicação do Bill of Rights (1689). A partir desse ponto, os poderes públicos passam a
ter um respeito maior pelos direitos individuais, pois ficou plasmado nesse documento
o princípio da legalidade e a proibição de castigos e penas cruéis e degradantes.
Montesquieu é conhecido como o principal mentor do princípio da separação de poderes. Ao inverso de Locke, Montesquieu nutria profunda desconfiança
em relação ao poder estatal, pois acreditava que ele possuía uma natureza interior
negativa. Para esse teórico, a liberdade política só estaria presente nos governos
moderados, nos quais não haveria o abuso do poder. O abuso só pode ser contido
se o poder estatal estiver fracionado entre órgãos diferentes. Esse pensamento deu
origem, como se sabe, à teoria da tripartição dos poderes, que é adotada, até hoje,
em vários países.11 Essa teoria contribuiu para a formação do Estado Liberal de
Direito, implementando as garantias do direito à vida, à liberdade e à propriedade
e o respeito aos direitos fundamentais.
A teoria de Rousseau tem por base o princípio da igualdade, segundo o qual o
homem seria livre por natureza. Para esse filósofo, a família seria a única sociedade
natural válida. O Estado seria um plágio deformado da sociedade familiar, no qual
o soberano seria o pai e os súditos, os filhos. Entretanto, na sociedade estatal, o pai
teria, não amor por seus filhos, mas desejo de ordenar e reprimir. A única forma de
controlar esse desejo do soberano seria submetê-lo à vontade geral, que tem por objetivo o bem comum.
Na ideia rousseauniana, o homem seria naturalmente detentor de certos direitos
individuais que poderia transferir ao Estado para que este fomentasse o bem comum.
A vontade geral substituiria a vontade do governante. Entretanto, há direitos que não
podem ser transferidos, pois nem mesmo o ser humano, individualmente, deles pode
dispor, como seria o caso do direito à vida.12
Kant, por sua vez, por intermédio de seu imperativo categórico (“Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal”), reforçou a ideia de uma dignidade da pessoa humana que tivesse a característica
da transcendência. Há em seu pensamento a ideia da cidadania mundial, na qual todos
os homens, independentemente de raça, sexo, cor, religião etc., deveriam ser tratados
com a mesma dignidade, pelo simples fato de serem humanos. Mesmo que um estrangeiro estivesse em outro país, impunha-se que ele fosse tratado como se nacional fosse
(hospitalidade universal).13
11MONTESQUIEU. O espírito das leis. Tradução de C. Murachco. São Paulo: Martins Fontes, 1996,
p. 167.
12
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social e outros escritos. Tradução de R. R. Silva. São Paulo:
Cultrix, 1995, p. 30.
13
KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução de P. Quintela. Lisboa:
Edições 70, 1995, p. 59.
88
temas atuais de direito
3.3. Era contemporânea
É notório que, no primeiro momento em que se deram os movimento liberais
do século XVIII, a proteção que se buscava para os direitos fundamentais era apenas
aquela que visava aos direitos individuais, em detrimento dos direitos sociais. Isso era
compreensível, pois o Estado absolutista possuía a característica de invadir a esfera de
disponibilidade dos direitos individuais dos cidadãos, já que exigia sempre mais para
si e quase nada proporcionava em troca. Ao Estado só cabia garantir a livre iniciativa
e a liberdade de concorrência, não intentando nenhuma ação no sentido de garantir
o bem-estar social. Os pensadores da época perceberam que não era eficaz, apenas,
lutar pela garantia dos direitos individuais, mas era necessário que se fosse mais além,
partindo-se em busca de um Estado que agisse no âmbito social, buscando satisfazer os
interesses coletivos da população, como saúde, educação e lazer.14
Calcadas nessa concepção e, sobretudo, nas ideias do filósofo alemão Karl Marx,
fincaram-se as bases que fariam surgir, no início do século XX, os Estados Sociais. Na
antiga União Soviética, em 1918, foi proclamada a Declaração dos Direitos do Povo
Trabalhador e Explorado, que consagrava os princípios da igualdade, a abolição da
divisão classista da sociedade, a prestação de apoio material aos operários e as demais
medidas que se encarregariam de consubstanciar o socialismo. A Constituição alemã
da República de Weimar de 1919 foi o grande exemplo de garantia dos direitos sociais,
pois enunciou a proteção à maternidade, à saúde, ao desenvolvimento da família, a
educação pública gratuita, a seguridade e previdência social, etc.
Não obstante, houve grande retrocesso no que tange à defesa e à garantia dos
direitos humanos quando, em 1939, teve início a segunda grande guerra mundial, que
só findaria em 1945. Nesse período, todo tipo de barbárie contra os direitos fundamentais individuais e sociais foi perpetrado, o que suscitou a necessidade de transformar
os direitos fundamentais, que já haviam sido declarados, em direitos fundamentais de
âmbito internacional e de inseri-los na esfera constitucional de cada Estado. Com esse
objetivo, em 1948, foi proclamada a Declaração Universal dos Direitos do Homem,
verdadeira Carta instituidora dos direitos fundamentais em âmbito internacional, que
pressionou os Estados a respeitar e a inserir em seus ordenamentos jurídicos internos as
garantias dos direitos fundamentais individuais, sociais, coletivos e difusos.
4. Dimensões dos direitos fundamentais
As mudanças históricas que marcaram o estudo e o entendimento dos direitos fundamentais trazem consigo a ideia de gerações ou dimensões. As declarações de direitos
inglesas, norte-americanas e francesas tiveram fundamental importância na transmutação dos direitos humanos em direitos fundamentais, pois, anteriormente, aqueles direitos jaziam apenas como valores filosóficos e históricos. É importante notar, entretanto,
14
BARACHO, 1991, p. 278.
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que as declarações inglesa e norte-americana foram dirigidas a camadas bem distintas
da sociedade: a inglesa (Magna Charta Libertatum, de 1215) foi dirigida a uma elite
pensante e de poder político e aquisitivo bem delimitado; já a norte-americana foi redigida para o proveito e a comodidade de um povo que acabara de ser libertado politicamente e que ansiava por garantir seus direitos de liberdade e trabalho, contra os ônus
impostos pela Coroa Inglesa. Diferentemente, a Declaração dos Direitos do Homem
e do Cidadão (1789), francesa, veio a lume com um caráter universal bem definido,
dirigindo-se ao gênero humano, de forma bem abstrata.15
De uma forma futurista, o lema revolucionário francês acabou por demonstrar a
sequência histórica da institucionalização dos direitos fundamentais. Com efeito, em
seu jargão – “liberdade, igualdade e fraternidade” –, pode-se ler “direitos fundamentais
de primeira, segunda e terceira gerações ou dimensões”.
O uso da expressão “gerações” tem recebido inúmeras críticas de estudiosos do
mundo todo, pois traria a ideia de que, no momento em que a história dos direitos
fundamentais tivesse avançado no tempo e assim passado da primeira geração para a
última, as gerações antecedentes seriam substituídas pelas gerações vindouras, deixando-se, assim, de se assegurar ou proteger os direitos fundamentais contidos em cada
uma delas. Por mais que esse raciocínio possa, aparentemente, ficar apenas no campo
ideológico, existem exemplos práticos que comprovam a teoria. Um deles é a situação
ocorrida na antiga União Soviética, na qual, no afã de garantir os direitos sociais de
segunda geração, findou-se por mutilar os direitos individuais de primeira geração, com
uma brutal restrição ao direito de liberdade e de propriedade dos cidadãos.
O mais correto seria acomodar esses direitos em dimensões, pois elas não se excluem, nem se substituem umas pelas outras. As dimensões coexistem harmonicamente,
como se fossem nuances ou variações de um mesmo tema. Há inclusive quem afirme,
com razão, que os direitos de uma geração anterior passam a ser pressuposto para que
se interpretem e se apliquem de forma equânime os direitos das gerações subsequentes.
Por exemplo, o direito de propriedade (direito individual – primeira dimensão) só pode
ser exercido levando-se em conta a função social da propriedade (segunda dimensão) e
também a sua indispensável função ambiental (terceira dimensão).16
4.1. Direitos individuais
A pedra de toque dos direitos fundamentais individuais é a limitação do poder estatal em relação ao indivíduo. Esse pensamento surgiu, como já foi visto, a partir dos movimentos liberais inglês, norte-americano e francês, que deram origem ao Estado Liberal.
Os direitos fundamentais individuais são os de liberdade: direito à vida, à liberdade, à propriedade e à igualdade formal. Naquele momento, a liberdade material ainda
não era cogitada, pois esse conceito só surgiria com os direitos de segunda dimensão.
15
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 7ª ed. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 516.
16
GUERRA FILHO, 1997, p. 13.
90
temas atuais de direito
Estão incluídos, ainda, nos direitos de primeira dimensão, aqueles que possibilitam o
exercício das liberdades de expressão (imprensa, pensamento, reunião e associação) e
os direitos de participação política (votar e ser votado), isto é, os direitos civis e políticos, que representam uma resistência às forças do Estado.17
É importante notar que, mesmo no Estado Democrático de Direito, os direitos
de primeira dimensão fazem-se necessários, pois, ainda assim, o Estado pode cometer
injustiças e exercer um domínio desmedido sobre as pessoas, que precisa ser mitigado.
Além disso, as liberdades fundamentais não devem buscar apenas a proteção do cidadão
contra o Estado, visto que não é apenas ele que ameaça os direitos individuais. Há,
também, outros tipos de perigos, como os interesses particulares e os grupos organizados que defendem determinados objetivos, como os econômicos, os sociais, culturais e
religiosos (poderes não estatais).18
4.2. Direitos sociais e econômicos
O modelo de Estado que vigorava à época dos direitos de primeira dimensão era
um Estado preponderantemente negativo, ou seja, aquele que assegurava os direitos
civis e políticos, mas não buscava realizar ações positivas, não caminhava, portanto, na
direção dos direitos econômicos e sociais. Quando garantiu a livre iniciativa e as liberdades políticas, o Estado apenas assegurou que um grupo muito privilegiado de pessoas
pudesse usufruir dessas liberdades, no caso, a classe burguesa que, após o advento do
constitucionalismo liberal, passou a ser a classe dominante, em lugar da nobreza.
A igualdade que existia nesse período era uma igualdade meramente formal (todos
são iguais perante a lei), mas os cidadãos estavam em uma situação de desigualdade
real, sobretudo econômica. Consequentemente, mesmo que o Estado se abstivesse de
interferir nas esferas de interesses particulares, a igualdade não seria alcançada, pois,
para igualar os desiguais, o Estado necessitaria tomar medidas positivas.19
Com a Revolução Industrial, o cidadão operário passa a ter de vender sua força de
trabalho a preço vil, pois não apresentava capital próprio para exercer a livre iniciativa
que lhe assegurava o Estado Liberal. Como o Estado era abstencionista, prevalecia,
na maioria das vezes, a força do dono do capital, que era economicamente mais forte
e subjugava a classe operária. Buscando sanear essas desigualdades, surge o Estado
Social, com uma proposta de realizar os direitos fundamentais econômicos e sociais de
segunda dimensão.
O Estado Social visa assegurar a todos o exercício das liberdades materiais concretas, como o direito ao trabalho, à educação, à saúde, à assistência e previdência
social. Para implementar esses direitos, o Estado deve aplicar parte de seus recursos
17
BONAVIDES, 1997, p. 517.
18
NEUMANN, Franz. Estado democrático e Estado autoritário. Tradução de L. Corção. Rio de Janeiro: Zahar, 1969, p. 224.
19
BONAVIDES, 1997, p. 61.
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econômicos e sociais na consecução desses fins. É a responsabilidade ativa do Estado
que deve fazer com que ele adote as políticas públicas necessárias para atingir seus
objetivos. Não obstante, fica claro que o Estado só pode pôr em prática essas políticas
se possuir recursos em seu orçamento. Mesmo constando do texto constitucional, tais
direitos sociais não possuem, na sua grande maioria, autoexecutoriedade, dependendo
sempre da ação do Estado.20
A característica acima citada faz com que os direitos de segunda dimensão apresentem uma força normativa muito débil, pois a maioria das cartas políticas tratou-os
como normas de caráter programático, que representam um compromisso do Estado
com a possível concreção dos programas socioeconômicos propostos. Na busca de alterar essa posição, as constituições contemporâneas têm considerado os direitos sociais
e econômicos como preceitos dotados de aplicabilidade imediata. Esse esforço, no entanto, não é suficiente para a concretude de tais direitos, pois muitas barreiras impedem
que ocorra a eficácia em sua aplicação. Em apertada síntese, pode-se citar: o legislador
elabora leis que visam dirimir mais especificamente conflitos interindividuais do que
transindividuais; o judiciário está mais preparado, de modo geral, para entregar a prestação jurisdicional em demandas do tipo sujeito/sujeito; não há políticas públicas (e até
mesmo vontade política) destinadas a tornar efetivos os direitos de segunda dimensão;
as normas constitucionais que agasalham institutos jurídicos voltados para a concreção
dos direitos sociais e econômicos são interpretadas de forma muito restritiva ou retrógrada (por exemplo, o mandado de injunção).21
Em que pesem esses argumentos, há um fator positivo muito importante na constitucionalização dos direitos de segunda dimensão: sua inclusão representa um fator
político-ideológico de alta relevância, na medida em que impede que o poder estatal
desenvolva políticas públicas contrárias aos postulados neles contidos, sendo, portanto,
uma proibição de retrocesso.22
Por outro lado, é importante destacar também que há a necessidade de certo intervencionismo estatal, na dose certa, para que não se permita que os direitos individuais
sejam desrespeitados por outras forças que não as do Estado. Não se pode esquecer que
os direitos sociais e econômicos são também direitos dos indivíduos, o que demanda
muitas vezes a atuação estatal para defender esses direitos, sob pena de se deixar o direito individual correspondente a descoberto. Exemplo prático dessa questão é o tema
que se traz à baila no presente trabalho. Quando se defende um tratamento penal que
aplica a medida de segurança ao agente que pratica o ilícito típico, como o psicopata,
em detrimento de sua liberdade, está-se buscando garantir o direito social de segurança pública, mas, ao mesmo tempo, também se protege o direito individual do próprio
agente, visto que essa medida é a mais indicada para o tratamento e a recuperação de
20
CANOTILHO, 1996, p. 543.
21
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 39.
22
NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: Acadêmica, 1994, p. 86.
92
temas atuais de direito
sua patologia, restringindo o mínimo possível o direito à dignidade da pessoa humana,
que lhe é devido.
4.3. Direitos de solidariedade
A ideia de direitos fundamentais de terceira dimensão, chamados direitos de solidariedade ou fraternidade, surgiu com a compreensão de que os direitos fundamentais não
estariam cingidos somente aos indivíduos ou a grupos de indivíduos, mas, em certo aspecto,
pertenceriam a todo o gênero humano, tendo caráter de universalidade. São exemplos desses direitos: direito à paz, ao meio ambiente equilibrado e saudável, ao patrimônio genético,
ao desenvolvimento, à qualidade de vida, á autodeterminação dos povos23. Esses direitos
apresentam a característica de se referirem a uma universalidade de pessoas indefinidas,
não sendo possível identificar objetivamente quem são os seus titulares. Apenas de forma
abstrata, é possível identificá-los como de propriedade do gênero humano.
Dessa forma, essa categoria de direitos é vítima de uma série de restrições doutrinárias, no que se refere à sua implementação. Argumenta-se que eles não configuram
direitos subjetivos, ou seja, não representariam instrumentos jurídicos eficientes para
que pudessem ser exigíveis. Diz-se que seriam apenas normas programáticas, apenas
declarações de intenções, que não vinculariam os poderes estatais, pois não apresentariam regulamentação legislativa que os dotaria de eficácia, não sendo possível, assim,
demandar uma ação em juízo para garanti-los.24
Por outro prisma, é sabido que, hodiernamente, a mais abalizada doutrina tem rechaçado a ideia de normas eminentemente programáticas. A doutrina atual afirma que
normas programáticas, no sentido de normas que apenas servem como programas de realização ou meras exortações morais e apelos aos poderes constituídos, não mais existem.
Isso pelo fato de que, no momento em que elas passam a integrar o ordenamento constitucional de um país, vinculam o legislador, o Executivo e o Judiciário, de forma permanente, no sentido de que esses órgãos busquem realizá-las. E mais: vinculam o legislador,
o Executivo e o Judiciário também com relação aos limites materiais negativos, ou seja,
é possível arguir a inconstitucionalidade de uma norma que siga em direção contrária ao
que já foi estabelecido em termos de direitos de terceira dimensão.25
Corroborando esse entendimento, nunca é demais relembrar que a nossa Carta
Política, bem como a de outros Estados, já prevê meios eficazes para defender determinados direitos de solidariedade, como o direito a um meio ambiente equilibrado. É só
citar como exemplos a ação popular e a ação civil pública, que possibilitam a defesa em
juízo desses direitos, mesmo sendo pulverizados de forma difusa e coletiva.
23
LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 132.
24
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Direitos subjetivos, direitos humanos e jurisprudência dos interesses (relacionados com o pensamento tardio de Rudolf Von Ihering. In: ADEODATO, João Maurício Leitão (Org.). Ihering e o direito no Brasil. Recife: Universitária, 1996, p. 253.
25
CANOTILHO, 1996, p. 184.
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alexandre manuel lopes rodrigues
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4.4. Quarta dimensão
Há autores que defendem a existência de uma quarta dimensão dos direitos fundamentais. Essa dimensão surge de uma ideia de globalização de direitos. Esses direitos trariam o traço do humanismo e da solidariedade e traduzir-se-iam nos direitos de
quarta dimensão: a informação, a democracia e o pluralismo (máxima universalidade
de uma sociedade aberta). A democracia seria a direta e defenderia os povos de toda
e qualquer forma de opressão. A informação limpa e não distorcida, por sua vez, garantiria a democracia, inclusive em âmbito internacional, e o pluralismo defenderia
as sociedades globalizadas de todo e qualquer monopólio de poder.26 Não obstante a
maestria na defesa dessa nova dimensão de direitos, tem-se a impressão de que eles
são, na verdade, os mesmo direitos de terceira dimensão, só que travestidos com outra
roupagem, o que não diminui o interesse em vê-los concretizados e protegidos, mesmo
que isso somente venha a ser alcançado num futuro um pouco distante e seja seguido de
grande esforço e elevação espiritual ou moral (ou racional) da sociedade universalizada.
5. Direitos fundamentais e Constituição
Rezava o artigo 16 da Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão,
de 26 de agosto de 1789: “toda sociedade na qual a garantia dos direitos não é assegurada, nem a separação dos poderes, determinada, não possui Constituição”. Esse pensamento traduz o que seria a base e o núcleo material das primeiras constituições escritas,
de cunho liberal-burguês, isto é, o princípio jurídico da limitação do poder estatal, por
intermédio da garantia de alguns direitos fundamentais e do princípio da separação dos
poderes.27 Por essa citação, logo se constata a nítida influência que os direitos fundamentais exercem sobre as noções de Constituição e Estado de Direito. Tanto a ideia de
criar uma constituição, quanto a de instituir uma gama de direitos fundamentais possuíam o mesmo objetivo, que era o de limitar o poder estatal.
É possível dizer então que a Constituição, na medida em que necessita de uma
atuação juridicamente programada e controlada dos diversos órgãos estatais, representa
uma condição de existência das liberdades fundamentais, de forma que os direitos
fundamentais apenas poderão ter eficácia no ambiente de um Estado constitucional.
Seguindo o raciocínio inverso, os direitos fundamentais são a verdadeira condição sine
qua non para a formação do Estado constitucional democrático, pois é neles que se
encontra a limitação para a atuação do próprio Estado.
Os direitos fundamentais, entretanto, não servem apenas como limitadores do poder
estatal e como garantidores de determinadas formas e procedimentos para a organização
do poder e das competências dos órgãos estatais; devem também indicar caminhos ou
metas para a atividade estatal, pautados por valores, direitos e liberdades fundamentais,
trazendo a lume uma verdadeira legitimidade da ordem constitucional do Estado.
26
BONAVIDES, 1997, p. 524.
27
SARLET, 2004, p. 67.
94
temas atuais de direito
Assim, os direitos fundamentais legitimam o poder estatal, na medida em que o
poder justifica-se pela observância da realização dos direitos fundamentais, sendo a
ideia de justiça inerente a tais direitos.28
Na verdade, os direitos fundamentais condicionam a validade material das normas
produzidas pelo poder estatal e, ao mesmo tempo, indicam os fins ou objetivos que
norteiam o Estado constitucional de direito.
J. J. Gomes Canotilho ensina que, a partir da positivação dos princípios de direitos
fundamentais, na condição da expressão de valores e necessidades consensualmente
reconhecidos pela sociedade, a Constituição e o próprio Poder Constituinte passam a
configurar uma verdadeira reserva de justiça que, por sua vez, servirá como parâmetro
de legitimidade formal e material da ordem jurídica estatal. Assim, o fundamento de
validade da Constituição, ou seja, a sua legitimidade é diretamente proporcional à dignidade do seu reconhecimento como ordem justa e à convicção, por parte da sociedade,
de sua bondade intrínseca.29
Os princípios de direitos fundamentais, juntamente com o princípio da soberania
popular, servem como base normativa do Estado Democrático de Direito, indo, portanto, além de uma função embrionária de defesa das liberdades individuais. Fazem parte,
na verdade, de um sistema axiológico que se traduz em fundamento material de todo o
ordenamento jurídico.30
O próprio conceito de democracia também está ligado intimamente ao de direitos
fundamentais, na medida em que tais direitos podem ser considerados como pressupostos, garantias e instrumentos do princípio democrático da autodeterminação dos povos,
por meio da autonomia de cada indivíduo, quando se reconhece o direito de igualdade,
de liberdade e de participação na formação da vontade e do processo político de cada
Estado (exercício de direitos políticos). Além disso, os direitos fundamentais também
exercem uma função de garantia das minorias contra desvios do poder praticados por
força da maioria.
5.1. Direitos formal e materialmente fundamentais
Os direitos fundamentais, em seu aspecto formal, estão inscritos no Texto
Constitucional, o que significa dizer, também, que essa categoria de direitos está postada no ápice da pirâmide do ordenamento jurídico. Enquanto normas constitucionais, esses direitos estão submetidos aos limites formais (procedimento agravado) e materiais
(cláusulas pétreas) da reforma constitucional. Por fim, trata-se de normas aplicáveis
diretamente e que vinculam, imediatamente, os órgãos públicos e as entidades privadas
(art. 5.º, § 1.º, da CF).31
28
Ibid., p. 69.
29
CANOTILHO, 1996, p. 115.
30
SARLET, 2004, p. 70.
31
SARLET, 2004, p. 87.
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alexandre manuel lopes rodrigues
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A fundamentalidade material, por seu turno, decorre do fato de os direitos fundamentais serem elementos constitutivos da própria constituição material, pois expressam posições fundamentais sobre a estrutura básica do Estado e da sociedade. Não
obstante, é por meio do Direito Constitucional positivado (art. 5.º, § 2.º, da CF) que se
torna possível a abertura da Constituição, para que se possam inserir em seu contexto
formal outros direitos que não constam do Texto Constitucional, mas apresentam a
característica de fundamentalidade material.
Pode-se dizer assim que apenas a análise do conteúdo da norma de direito fundamental possibilita auferir se ela é dotada de fundamentalidade material, isto é, se possui
ou não elementos fundamentais sobre a estrutura do Estado e da sociedade e a posição
do ser humano nesses organismos. Não é demais lembrar que a nossa Carta Política
admite expressamente a existência de outros direitos fundamentais que não estão listados no catálogo do Título II, sem contar aqueles que não fazem sequer parte do próprio
Texto Constitucional.
Com relação à questão da universalidade dos direitos fundamentais, é importante ressaltar que, em seu aspecto formal, nem todos os direitos que constam do Texto
Constitucional de um Estado estarão, necessariamente, representados ou presentes na
Carta Magna de outro Estado, mesmo que eles tenham configurações políticas semelhantes. Mesmo com relação aos direitos fundamentais materiais, sabe-se que deve
haver a contextualização dos direitos na realidade sociocultural do País, uma vez que
mesmo direitos consagrados, como a vida, a liberdade, a igualdade e a dignidade, podem ser passíveis de uma valoração distinta e condicionada à realidade de cada sociedade e cultura.32
Alexy formula uma definição de direitos fundamentais que abarca tanto as características formais quanto as materiais:
“[...] todas aquelas posições jurídicas concernentes às pessoas, que, do ponto de vista do
Direito Constitucional positivo, forem, por seu conteúdo e importância (fundamentalidade
material), integradas ao Texto Constitucional e, portanto, retiradas da esfera de disponibilidade dos Poderes Constituídos (fundamentalidade formal), bem como as que, por seu conteúdo e
significado, possam lhes ser equiparadas, agregando-se à Constituição material, tendo ou não,
assento na Constituição formal”.33
É importante lembrar que a norma contida no artigo 5º, § 2º, da CF permite
entender que existem direitos que, por seu conteúdo e substância, fazem parte do corpo
fundamental da Constituição, mesmo estando fora do catálogo de direitos fundamentais.
São, portanto, direitos materialmente fundamentais.
O Supremo Tribunal Federal (STF), em decisão proferida na ADIN nº 939-7, de
18 de março de 1994, cujo relator foi o ministro Sydney Sanches, reconheceu que o
princípio da anterioridade, em matéria tributária, previsto no artigo 150, III, “b”, da CF,
32
Ibid., p. 89.
33
ALEXY, 2002, p. 407.
96
temas atuais de direito
é um direito fundamental do contribuinte, que não consta expressamente do catálogo.
Assim, manifestou-se pela possibilidade da abertura material da listagem dos direitos
fundamentais da Constituição.34
Nota-se que é o senso jurídico coletivo ou a ordem de valores dominante e consensualmente aceita pela maioria da sociedade que pode determinar quais são os valores
que devem possuir o status de norma materialmente fundamental. É preciso também
levar em conta as circunstâncias sociais, políticas, econômicas e culturais.35 Nesse aspecto, não é demais afirmar que o direito à segurança é um direito materialmente fundamental, passível de ser contraposto ao direito à liberdade. Em nosso País, a crise na
segurança pública, os altos índices de criminalidade e a sensação de insegurança que
impera na sociedade brasileira são elementos que, sem dúvida, apontam nessa direção.
O cidadão que demonstra periculosidade e que põe em risco a integridade física de outros cidadãos não pode ficar ao abrigo da legislação, que aplica uma sanção inadequada
ao seu caso, fragilizando a segurança pública, bem como infringindo o próprio direito
individual referente à dignidade desse indivíduo.
Questiona-se se a abertura material do catálogo dos direitos fundamentais abrangeria, também, os direitos de segunda dimensão ou direitos ditos sociais, como é o
caso do direito à segurança. Ingo Sarlet responde positivamente a essa questão, afirmando que o artigo 5º, § 2º, da CF refere-se a “direitos e garantias expressos nesta
Constituição”, portanto, sem qualquer limitação em relação à posição do direito no
texto constitucional. Os direitos sociais estão dispostos no título relativo aos direitos
fundamentais, apesar de estarem regrados em outro capítulo. O artigo 6º da CF, que
trata dos direitos sociais básicos, utiliza a expressão “na forma desta Constituição”,
tornando-se claro que existe a possibilidade de se inserir, no catálogo dos direitos sociais, outros direitos que estejam dispersos no texto constitucional.36
É importante notar também que as normas contidas nos artigos 1º a 4.º da CF
apontam que a nossa República está representada como um autêntico Estado Social
e Democrático de Direito, pois existe em seu texto um catálogo expresso de direitos
fundamentais sociais, como visto nos artigos 6º a 11 e em princípios insculpidos
nos artigos 170 e 193, além de normas dispersas. Assim, a existência de direitos
fundamentais sociais protegidos em nossa Carta Magna é decorrência da natureza de
um Estado Social. Portanto, é cabal a existência de direitos sociais materialmente fundamentais, como a segurança social, que, mesmo relacionados de forma implícita, ou
localizados fora da Constituição, devem ser plenamente protegidos, pois a sua não efe-
34
Resumo: existe, sim, direito adquirido contra emenda constitucional, pelo limite material constante
do artigo 60, IV, da CF/88 referente à cláusula pétrea – direitos e garantias individuais c/c artigo 5º,
XXXVI (a lei não prejudicará o direito adquirido, entendido esse em seu sentido amplo), tendo o
STF entendido que os direitos individuais são limites (limites formais, materiais e circunstanciais) à
emenda e não se restringem aos do artigo 5º, podendo neles estarem inclusos outros, como os direitos tributários (ver também ADIN nº 829-DF, Rel. Min. Moreira Alves).
35
SARLET, 2004, p. 92.
36
SARLET, 2004, p. 95.
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alexandre manuel lopes rodrigues
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tivação representa uma limitação muito grande para o exercício das liberdades individuais, sobretudo o direito de ir e vir do cidadão. Esses direitos integram o rol do Título
II da Constituição Federal e apresentam a mesma dignidade fundamental material e
formal que os direitos individuais, pois encontram seu sustentáculo no princípio democrático consagrado no artigo 1.º, caput e incisos I, II e V, da Constituição de 1988.37
5.2. Princípio da dignidade da pessoa humana
O princípio da dignidade da pessoa humana é indicado por grande parte da doutrina nacional e estrangeira como um princípio que apontaria a materialidade do direito
fundamental. Em outras palavras, se o direito fundamental estiver em consonância com
o princípio da dignidade da pessoa humana, ele será considerado, com um alto grau de
certeza, um direito materialmente fundamental.38
Esse princípio, insculpido no artigo 1º, inciso III, da Constituição da República,
constitui um verdadeiro valor unificador de todos os direitos fundamentais implícitos,
decorrentes ou previstos em tratados internacionais, o que demonstra a sua nítida relação com o artigo 5º, § 2º, da Carta Magna.
A ideia da dignidade do ser humano nasceu no pensamento cristão. No Antigo
Testamento, há a manifestação de que o homem foi criado à imagem e semelhança de
Deus. Logo, o homem é dotado de um valor intrínseco superior ou divino, não podendo e não devendo ser tratado, em momento algum, como animal ou como coisa. Essa
alegação de que o ser humano estaria em posição superior aos animais e coisas leva
à conclusão de que todos os seres humanos são iguais entre si, não havendo maior ou
menor dignidade.
A dignidade encerra, além da noção de igualdade, outra, que seria a de liberdade,
ou seja, o homem como ser livre e senhor de seus atos e de seu destino, dotado, portanto, de livre arbítrio. A ideia de dignidade parte do pressuposto da autonomia ética do
ser humano, nem o próprio indivíduo poderia tratar a si mesmo como simples objeto
ou coisa.39
Assim, é importante notar que a dignidade é um valor fundamental para a ordem
jurídica. O homem, pelo simples fato de ser homem, é titular de direitos que necessitam
ser reconhecidos e respeitados pelos outros seres humanos e pelo próprio Estado. A dignidade, por ser inerente ao ser humano, é irrenunciável e inalienável, não podendo ser
criada ou retirada, independentemente da condição do ser humano, ainda que ele seja
desprovido de posses materiais, espirituais ou, até mesmo, psíquicas. É o que preconiza o artigo 1º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, que dispõe:
“todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de
razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito e fraternidade”.
37
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. 2ª ed. Coimbra: Coimbra, 1993, v. 4, p. 155.
38
SARLET, 2002, p. 92.
39
Id., 2004, p. 112.
98
temas atuais de direito
Não se deve olvidar que, para grande parte da doutrina, o núcleo do conceito
de dignidade é a possibilidade de autonomia e de autodeterminação do ser humano.
Entretanto, é importante lembrar que essa autonomia é considerada de forma potencial
ou abstrata, de forma que mesmo uma pessoa que sofra das faculdades mentais ou esteja
absolutamente incapacitada apresenta a mesma dignidade que qualquer outra pessoa sã.
Por esse mesmo motivo, o consentimento do ofendido ou até mesmo a agressão a um
corpo já sem vida também pode ser capaz de atingir a dignidade da pessoa humana.40
Há, por outro lado, uma posição segundo a qual a dignidade não deve ser tomada
exclusivamente como um atributo inerente ao ser humano. À dignidade também deve
ser atribuído um sentido cultural, ou seja, o produto do trabalho de várias gerações e
da própria humanidade como um todo, havendo, assim, uma interação entre o sentido
natural e cultural da dignidade. Por isso, a dignidade assume um papel de limite e de
meta para a atuação do Estado, dada a necessidade de proteção individual e coletiva da
dignidade, mas os poderes estatais devem também se programar para criar condições
que propiciem o máximo exercício da dignidade.41 Verifica-se, assim, que a própria
dignidade individual necessita, para existir plenamente, do concurso da implementação
da dignidade coletiva ou da comunidade, pois é muito difícil que sozinho o indivíduo
consiga efetivar a sua própria dignidade (no sentido de necessidades existenciais básicas). Logo, o Estado ou a comunidade devem sempre participar para integrar o sentido
de dignidade individual.
Não se deve tampouco esquecer que a dignidade também possui um caráter ou
dimensão intersubjetiva. Com efeito, a dignidade individual ou da pessoa humana individualmente considerada traduz-se ou propala-se por meio de uma obrigação geral
de respeito do indivíduo aos demais sujeitos da coletividade e à coletividade como um
todo. Isso se expressa por intermédio de uma rede ou de uma teia de direitos e deveres
correlativos, que circulam em todos os sentidos e direções, ao mesmo tempo.42
Não é de se negar que a dignidade da pessoa humana expressa-se, sobretudo, por
uma proteção ou respeito à integridade física do indivíduo (proibição de penas desumanas, tortura, pena de morte, etc.), mas não se pode olvidar também que essa mesma
dignidade manifesta-se por meio da garantia de condições justas de vida para o indivíduo e sua família no grupo social. Isso implica dizer que há a necessidade de defender
e garantir boas condições para que se efetivem os direitos sociais (leia-se: direito ao
trabalho digno, direito à seguridade social, direito à segurança pública).
Há, entretanto, evidentemente, a possibilidade de se estabelecerem limites ou restrições à liberdade pessoal. O aparato estatal e o desenvolvimento social representam
uma constante ameaça ao direito individual. Não obstante, é possível que se tolerem
determinadas ingerências na esfera de direitos do indivíduo, mas sempre com a observância dos ditames legais e com base no princípio da proporcionalidade.
40
SARLET, 2004, p. 115.
41
Ibid., p. 116.
42
LOUREIRO, João Carlos Gonçalves. O direito à identidade genética do ser humano. Lisboa: Portugal-Brasil, 2000, p. 282.
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alexandre manuel lopes rodrigues
99
6. Perspectivas objetiva e subjetiva dos direitos
fundamentais
Os direitos fundamentais não se expressam apenas em sua perspectiva subjetiva,
ou seja, aquela que protege o indivíduo em relação aos atos do Poder Estatal. Além
desse horizonte, existe a dimensão jurídico-objetiva desses direitos, que espraia sua eficácia para todo o ordenamento jurídico e fornece diretrizes para a atuação dos diversos
órgãos do Poder Público.
Mesmo os valores que indicam os direitos subjetivos de defesa dos cidadãos estão
imbuídos de um caráter coletivo (objetivos fundamentais da comunidade), pois devem
ter sua eficácia avaliada não apenas sob o ângulo individual (indivíduo vs Estado), mas
também sob o aspecto do social (comunidade em sua totalidade, que inclui o individual), pois trata-se de valores e fins que a própria comunidade e o Estado devem respeitar
e esforçar-se para concretizar.43
Nesse passo, é possível afirmar que a perspectiva objetiva dos direitos fundamentais informa que o exercício dos direitos subjetivos individuais está atrelado ao seu
reconhecimento pela comunidade na qual se encontra embutido (responsabilidade comunitária dos indivíduos). Em outras palavras, os valores fundamentais da comunidade
respaldam o efetivo exercício dos direitos subjetivos individuais. Por isso, afirma-se
que a perspectiva objetiva dos direitos fundamentais não apenas torna legítimas as restrições aos direitos subjetivos individuais em relação ao interesse coletivo prevalente,
como também colabora para a limitação do conteúdo e do alcance dos direitos fundamentais, sempre ressalvando o núcleo duro e essencial desses direitos.44
Com esse entendimento, é possível constatar, por exemplo, que o próprio valor
inserido no direito individual de liberdade do delinquente, que, diga-se de passagem, é
um valor muito caro para a comunidade, permite que essa mesma comunidade possa,
por meio do Estado, limitar o seu uso irrestrito por parte do infrator da lei penal, quando esse cidadão, por seus atos predatórios, põe em risco esse mesmo bem (liberdade),
agora tomado em seu aspecto social.
Outro aspecto relevante da perspectiva objetiva dos direitos fundamentais diz respeito à eficácia dirigente que esses direitos (inclusive os precipuamente subjetivos)
desenvolvem em relação aos órgãos do Poder Estatal. Nesse sentido, esses direitos
encerram uma verdadeira ordem de fazer dirigida ao Estado, para que ele se incumba
de realizar ou garantir efetivamente os direitos fundamentais. Mas não podemos esquecer que existe, também, a ideia de que os direitos fundamentais podem irradiar seus
efeitos para além da esfera estatal, atingindo certamente as relações de cunho privado.
São, pois, direitos oponíveis não apenas aos poderes públicos, mas também aos demais
integrantes da comunidade, em seu aspecto horizontal, espraiando mandamentos no
sentido de que os demais integrantes da sociedade respeitem os direitos fundamentais
de cada um e de todos ao mesmo tempo.
43
ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa. Coimbra:
Almedina, 1987, p. 144.
44
Ibid., p. 145.
100
temas atuais de direito
É ainda pela perspectiva objetiva que se deve incumbir ao Estado o dever de zelar,
inclusive preventivamente, pela proteção dos direitos fundamentais dos indivíduos, não
apenas contra os arbítrios do Poder Público, mas também contra as agressões oriundas
de outros membros da comunidade. Isso implica dizer que o Estado deve adotar
medidas positivas, com o intuito de garantir o exercício dos direitos fundamentais.
Essas medidas podem resultar de decisões legislativas na esfera penal, por exemplo,
ou levar à criação de organizações ou instituições estatais que possam efetivar a
garantia daqueles direitos. Nosso Estado possui um dever geral de proteção do cidadão,
decorrente, de forma expressa, do artigo 5.º, caput, da Constituição Federal (direito à
segurança). Assim, está o Estado obrigado a concretizar esse direito por meio de normas que possam dispor, por exemplo, sobre o procedimento administrativo ou judicial
que deva ser dispensado a um determinado cidadão que infringe a lei penal de forma
grave, ou por meio da criação de órgãos ou instituições próprias que possam cuidar do
infrator, respeitando sempre os seus direitos fundamentais.
7. Limitações e restrições aos direitos fundamentais
Os direitos tratados até aqui, não obstante serem fundamentais, não apresentam
caráter absoluto, isto é, podem ser passíveis de sofrer restrições, desde que validamente
estabelecidas e observados determinados critérios.
Canotilho informa que a busca do entendimento dos limites dos direitos fundamentais passa pela identificação do âmbito estrutural do enunciado da norma em que
está contido o direito, no intuito de que se individualizem quais as situações de fato
protegidas e qual a extensão da proteção, que seriam os limites de conteúdo e os limites
jurídicos, respectivamente.45
No próximo momento, deve-se perquirir se existe uma restrição estabelecida por
normas constitucionais, de forma direta (restrição expressa), ou se a interpretação sistemática autoriza essa restrição (limites imanentes). Pode ocorrer, também, que a própria
Constituição estabeleça para o legislador infraconstitucional a autorização para realizar
a restrição (reserva de lei). Com esse discurso, é possível distinguir o que se entende
por limites e restrições. Os primeiros são atribuídos aos limites imanentes, ao passo
que as restrições são as delimitações da norma constitucional dadas por ação de norma ordinária ou constitucional contemporânea. Canotilho fala, ainda, em limites constitucionais imediatos, que seriam aqueles constitucionalmente positivados (em nossa
Constituição, serve como exemplo o artigo 5.º, XVI – liberdade de reunião –, que sofre
limites nas expressões “pacificamente” e “sem armas”).46
A questão relativa aos limites dos direitos fundamentais está diretamente ligada à
questão das teorias externa e interna que procuram explicar o conteúdo desses direitos.
45
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e teoria da Constituição. Coimbra:
Almedina, 1998, p. 1142.
46
Ibid., p. 1143.
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alexandre manuel lopes rodrigues
101
A teoria interna pressupõe a não limitação dos direitos fundamentais. Considera
existir o direito, desde sempre, com um específico conteúdo. Assim, uma atitude jurídica que ultrapasse o limite desse conteúdo não pode ser válida, pois não está amparada
por uma proteção de direito fundamental. Para tal teoria, os limites não seriam elementos externos ao conteúdo dos direitos fundamentais, pois ela não admite que a legislação desenvolvida com fundamento nas reservas represente limites ao conteúdo dos
direitos, mas apenas mecanismos de interpretação e revelação de seus limites máximos.
Além de tal horizonte, não é possível cogitar uma proteção da norma jusfundamental,
pois, nesse ponto, já não existe direito fundamental. Por outro lado, na parte interna do
âmbito de proteção da norma, qualquer intervenção legislativa corresponde à violação
do direito fundamental. Nesse passo, só é dado ao legislador infraconstitucional, no
espaço dos direitos fundamentais, conformar seu conteúdo de forma a afastá-lo dos
outros bens e valores constitucionais de igual ou superior hierarquia ou violar esses
direitos, toda vez que se imiscuir no interior de sua imanência.47
Na visão de Alexy,48 ao adotar-se a teoria interna, deve-se imaginar como realidade que existe apenas o direito com um determinado conteúdo. Não há a necessidade de
se questionar acerca de seus limites, pois eles dizem respeito, não à existência dos direitos, mas apenas ao seu conteúdo. Por esse prisma, os direitos fundamentais definidos
como sem reserva legal não possuem outras limitações a não ser aquelas decorrentes de
seu próprio conteúdo, que será decifrado por meio da análise do âmbito da norma e de
seu programa normativo. Assim, o conteúdo do direito é conhecido de uma vez só, por
meio de um único ato dogmático de interpretação que incide no âmbito normativo, no
qual repousam os limites imanentes. Os limites imanentes são, nessa concepção, parte
integrante do conteúdo dos direitos fundamentais, e não apenas limites.49
Para os direitos com expressa reserva legal, existem os limites, visto que o legislador possui autorização para efetuar uma cisão adicional no conteúdo previamente estabelecido por meio da interpretação da previsão constitucional, pois aqueles instituídos
sem reservas não podem ser limitados, a não ser pela própria Constituição.
Para a teoria interna, dessa forma, os direitos fundamentais são considerados como
absolutos e ilimitados, não existindo restrições que os afetem, visto que as restrições
importariam em diminuição de seu conteúdo. Os limites aceitos são apenas aqueles imanentes, pois, pela análise do conteúdo da norma de direito fundamental, é que se vai fazer
a sua interpretação. Quando existe uma norma infraconstitucional que exclui ou limita a
hipótese de proteção da norma jusfundamental, ela deve ser considerada apenas como esclarecedora de algo que já estava contido na intimidade da norma (limitação imanente).50
47
NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela
Constituição. Coimbra: Coimbra, 2003, p. 314.
48
ALEXY, 2002, p. 307.
49
Ibid., p. 59.
50
MEDINA GUERRERO, Manuel. La vinculación negativa del legislador a los derechos fundamentales. Madri: McGraw-Hill, 1996, p. 59.
102
temas atuais de direito
Os limites imanentes são considerados aqueles que, desde seu nascedouro, estão
contidos no interior da norma de direito fundamental. Logo, não podem ser provenientes, em hipótese alguma, do exterior. Quando nasce, a norma jusfundamental já possui
em seu interior as fronteiras jurídicas e materiais de sua atuação (limites do conteúdo da
proteção constitucional inserido no âmbito de proteção da norma de direito fundamental). Como exemplo, é possível citar a hipótese contida nos artigos 6.º, 196 e seguintes
da Constituição Federal de 1988, que afirmam que o direito à saúde é um direito constitucional fundamental. Considere-se a hipótese de uma pessoa gestante fazer questão
de dar à luz em um determinado hospital e de ser tratada por um médico específico
de sua preferência, quando o Estado possibilita-lhe o acesso a um hospital público de
qualidade e com profissionais reconhecidamente competentes. Pergunta-se: teria essa
pessoa, com amparo na norma de direito jusfundamental à saúde, o direito de escolher
onde e por quem vai ser atendida? A resposta, com base na teoria dos limites imanentes, seria, obviamente, negativa, pois nem todos os modos de exercício do direito estão
abrangidos na previsão normativa. O direito à saúde e à vida permanecem intocados,
mas a pretensão da parturiente não está incluída nos limites de conteúdo da norma de
direito fundamental.51
Um dos limites imanentes mais importantes apontado pela doutrina52 diz respeito
ao conteúdo do artigo XXIX, nº 2, da Declaração Universal dos Direitos do Homem.53
Esse dispositivo prega que um limite só deve ser admitido como tal, quando se destine
a promover o reconhecimento e o respeito dos direitos e liberdades dos outros e a satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar social.
A Constituição da República Portuguesa dispõe expressamente, em seu artigo 16º,
nº 2, que a interpretação dos preceitos constitucionais e infraconstitucionais relativos
a direitos fundamentais somente deve ser realizada em consonância com a Declaração
Universal dos Direitos do Homem. Nossa Constituição não prevê tal dispositivo, entretanto, temos o § 3º do artigo 5º (Emenda Constitucional nº 45/2004), que propala o
reconhecimento pela ordem jurídica interna dos direitos fundamentais introduzidos por
tratados internacionais, dos quais nosso País seja parte, que assim ganharão força de
emenda constitucional.
É fato que a Declaração Universal não é um tratado; entretanto, traduz-se em um
verdadeiro código e em uma verdadeira plataforma comum de ação, que possui força
jurídica vinculante, no dizer de Piovesan,54 por estar embasada na compreensão de que
51
FREITAS, Luiz Fernando Calil de. Direitos fundamentais: limites e restrições. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 83.
52
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. São Paulo: Max
Limonad, 1996, p. 115.
53
“No exercício de seus direitos e liberdades, toda pessoa estará sujeita apenas às limitações determinadas pela lei, exclusivamente com o fim de assegurar o devido reconhecimento e respeito dos
direitos e liberdades de outrem, e de satisfazer às justas exigências da moral, da ordem pública e do
bem-estar de uma sociedade democrática”.
54
PIOVESAN, 1996, p.155.
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alexandre manuel lopes rodrigues
103
dispõe de normas de direito costumeiro internacional ou princípios gerais de direito
internacional. A mesma autora,55 para reforçar seu entendimento, afirma que a legitimidade e a força da Declaração decorrem do fato de que várias constituições incorporam seus mandamentos. Há, também, inúmeras resoluções da Organização das Nações
Unidas que recomendam a observância dos fundamentos contidos na Declaração; em
nosso caso, existem também muitas decisões de Tribunais de Justiça nacionais que se
referem à Declaração Universal como fonte de direito.
Admitindo-se o artigo XXIX, nº 2, como limite imanente e aplicável ao nosso sistema jurídico, é possível verificar que o cidadão, no uso de seus direitos de liberdade, deve
observar, como limite, o respeito aos direitos e liberdades de outrem e deve também estar
guiado pela satisfação às exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar social.
A ordem pública pode ser considerada a situação de tranquilidade e normalidade
social que o Estado deve assegurar às instituições e a todos os jurisdicionados. São as
condições necessárias ao regular funcionamento das instituições e ao pleno exercício
dos direitos. A ordem pública deve buscar sempre a concretização do equilíbrio entre liberdade e autoridade.56 Está ligada aos bens considerados de segurança pública,
como o direito à vida, à segurança propriamente dita, à saúde, à liberdade (pública), ao
patrimônio e à honra, sempre protegidos pelo direito positivo e ainda por normas de
natureza social, cultural e moral (concepções éticas e sociais dominantes), visando a
prevenção ou a eliminação de perigos que afetem a ordem e a segurança da sociedade,
observando, em todo o caso, os limites dos princípios da legalidade e da proporcionalidade, sem violar o núcleo essencial do direito fundamental limitado.57
Ainda no que tange às restrições, existe o que se convencionou chamar teoria externa, que se funda na distinção entre o conteúdo dos direitos fundamentais e os limites
decorrentes do exterior. Essa teoria preocupa-se com o limite da legitimidade dos limites e das restrições passíveis de serem impostos aos direitos fundamentais. Tem como
interesse a proteção e a defesa da liberdade e da propriedade contra as ingerências
provenientes do Poder Estatal (Teoria Liberal dos Direitos Fundamentais).58 A liberdade é um bem considerado anterior e preponderante em relação ao Estado, havendo um
nítido espaço de separação entre eles. Assim, a anterioridade da liberdade do indivíduo
pode ser considerada como ilimitada, enquanto a possibilidade de o Estado proceder à
intervenção nessa liberdade passa a ser limitada. Todos os limites, desse modo, passam
a ter um efeito exterior, pois o conteúdo intrínseco é, prima facie, ilimitado. A limitação
externa passa a ocorrer a partir da existência da lei, entendida como norma jurídica que
afeta os direitos à liberdade e à propriedade.
O raciocínio faz-se da seguinte maneira: perquire-se se uma determinada situação
está incluída no âmbito de proteção da norma jusfundamental; em seguida, deve-se
55
Ibid., p. 162.
56
MIRANDA, 1993, p. 303.
57
NOVAIS, 2003, p. 476.
58
Ibid., p. 292.
104
temas atuais de direito
examinar se existe limitação estabelecida em lei e se tal limite está constitucionalmente
autorizado. Assim, chega-se ao entendimento de que a limitação ou restrição é legítima
ou viola o conteúdo do direito fundamental.
A crítica que se faz a essa teoria é a seguinte: se a possibilidade de limitação e de
restrição aos direitos jusfundamentais depende da existência de reserva legal, quando
não existir essa norma, ter-se-ia de admitir que não há limitação, ou seja, que existem
direitos fundamentais absolutos.
Robert Alexy propõe uma outra forma de considerar a questão dos limites e restrições aos direitos fundamentais. Para esse autor, os limites e as restrições não são
anteparos impostos pelos poderes constituídos, embasados em autorização constitucional (teoria externa), nem a concretização de limites imanentes contidos nas normas de
direitos fundamentais (teoria interna). Mas é a natureza das normas de direitos fundamentais, tidas como princípios, que estabelece o fundamento que permitirá estabelecer
a prevalência de um direito, prima facie, sobre outro.59
Alexy tomou por base o trabalho de Dworkin,60 no qual o autor faz a diferenciação
entre regras e princípios. As primeiras seriam levadas em conta no modelo de interpretação “tudo ou nada” (regra válida ou inválida). Quanto aos princípios, a dimensão é
o peso, sendo possível a variação na sua aplicabilidade, em função da importância que
o princípio adquire em um caso concreto. Deverá atuar, então, um juízo de proporcionalidade para que se dê a solução do caso, surgindo, assim, as regras adscritas, que são
aquelas resultantes da ponderação.
Para Alexy, existe uma diferença marcante entre o direito fundamental prima facie
e o direito fundamental definitivo, que é aquele que já resulta da ponderação. O direito
prima facie pressupõe a possibilidade de realizar toda e qualquer conduta que esteja
embutida no âmbito de proteção da norma, só encontrando limitação no momento em
que se realiza a ponderação, tendo em vista os demais direitos fundamentais e os bens
constitucionalmente protegidos, no caso concreto.
7.1. A reserva do possível
Qualquer que seja a teoria adotada, não é possível olvidar que, em termos de limites
e restrições de direitos fundamentais, a teoria da reserva do possível sempre vai atuar
como um freio a mais nesse âmbito. Essa teoria diz respeito, mais diretamente, aos direitos às prestações positivas ou prestações em sentido estrito. Mesmo que se admita que os
direitos sociais não são meros direitos a prestações programáticas, mas possuem vinculatividade normativa, ou seja, tem o Poder Público o dever de legislar e de atuar em conformidade com as diretrizes definidas por tais direitos, sob pena de omissão inconstitucional.
É sabido que o Poder Público deve perseverar no sentido de materializar medidas
concretas e determinadas que possam viabilizar a existência dos direitos sociais. Tais
59
ALEXY, 1997, p. 70.
60
DWORKIN, Ronald. Los derechos en serio. Barcelona: Ariel, 1999, p. 132.
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alexandre manuel lopes rodrigues
105
medidas não são deixadas ao livre arbítrio do legislador; entretanto, ele possui livre
conformação quanto às soluções legislativas, ao modo de estruturação e ao ritmo da
concretização dessas medidas.
De qualquer modo, a realização de direitos a prestações positivas sempre demanda
dispêndio de recursos econômicos, como nos casos dos direitos à saúde, à educação, à
segurança, etc. A reserva do possível é um limitador fático para a implementação desses
direitos, em razão de sua natureza econômica. A definição dos recursos e a sua destinação são tarefas afetas ao legislador e ao administrador; entretanto, é possível repousar
sobre o julgador o exame da adequação de tais decisões às previsões constitucionais.61
O direito social à saúde, por exemplo, direito subjetivo que pode ser exigido perante o Estado-juiz, pode ser limitado em função da escassez de recursos. Caso haja a
necessidade de decidir se se deve garantir o direito à saúde de uma pessoa que necessita
tomar remédios caros e não disponíveis no país, ou manter recursos disponíveis para
atender e tratar uma grande quantidade de pessoas atendidas pelo Sistema Único de
Saúde (SUS), o Judiciário pode ser chamado a intervir. Nesse caso, com base no princípio da reserva do possível, devem-se evitar as decisões desproporcionais e não razoáveis, pugnando-se para que o Estado cumpra o seu dever constitucional, sem adentrar
no mérito da escolha que caberia ao Estado-administração. Há decisões no sentido
de que sejam estabelecidas prioridades no atendimento do direito à saúde, quando se
verifica que existe carência de recursos orçamentários para atender a todos os pedidos
concernentes ao direito à vida.62
Entretanto, não se pode deixar de notar que mesmo os direitos fundamentais de
caráter social, que demandam a realização de prestações positivas, possuem um conteúdo nuclear, também chamado “núcleo duro”, que é detentor de uma força jurídica
especial, por estar ligado diretamente ao conceito de dignidade da pessoa humana.
Assim, deve-se atuar de forma moderada quanto à aplicação do princípio da reserva
do possível como limitador dos direitos fundamentais, ainda mais diante de prestações
que demandam urgência e cujo indeferimento judicial pode acarretar o perecimento do
direito à vida, à saúde, à integridade física ou mesmo da dignidade humana.
7.2. Dignidade da pessoa humana como limitação jusfundamental
O princípio da dignidade da pessoa humana também atua como fator de limitação e restrição de direitos fundamentais. Esse princípio tem uma capacidade de
se espraiar no seio da comunidade e de impor limites às relações entre o Estado e
o particular, entre particulares e até mesmo da pessoa contra si mesma, visto que a
dignidade possui uma característica de indisponibilidade, por ser parte do núcleo
essencial dos direitos fundamentais.63
61
AMARAL, Gustavo. Teoria dos direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 113.
62
TJRS. Agravo de Instrumento nº 70010918449, Rel. Maria Berenice Dias, 23 mar. 2005.
63
SARLET, 2002, p. 113.
106
temas atuais de direito
A dignidade da pessoa humana tanto pode existir como limite imanente – ou seja,
aquele que existe desde sempre e está presente no âmago da norma jusfundamental –,
quanto pode estar presente como autorizadora de restrições atribuídas ao legislador
ordinário. De qualquer sorte, esse limite apresenta a qualidade de ser muito genérico
ou abstrato, o que dificulta a sua concretização, ainda mais quando se verifica que se
devem observar e respeitar as ideias e concepções de outras culturas, que podem ter
uma percepção diferente do que seja dignidade e do limite necessário para que ela seja
atingida ou não.
Veja-se o caso do direito de não ser torturado. Esse direito é tido por muitos como
uma possível exceção aos limites e restrições dos direitos fundamentais. Dito de outro
modo, seria um direito que valeria em qualquer situação e que não admitiria jamais
limites, nem em casos excepcionais.64 No caso do Brasil, a Lei nº 9.455/97 define a tortura como crime, e o artigo 5º, LVI, da CF estabelece que as provas obtidas por meios
ilícitos não podem ser utilizadas no processo penal. Isso, para alguns autores, tornaria
absoluto o direito a não ser torturado em nosso País, somente sendo possível estabelecer o que vem a ser um comportamento torturante (limite de conteúdo – restrição
concreta e não abstrata).65
Por outro lado, a dignidade humana está configurada como princípio fundamental da República Federativa do Brasil (art. 1º, inciso II, da CF), constituindo parte do
núcleo essencial de nossa Magna Carta, em seu aspecto tanto formal quanto material.
Assim, os direitos fundamentais encontrariam seu fundamento na dignidade da pessoa
humana, pois o Estado existiria em função da pessoa humana; logo o que justifica e
dá finalidade e legitimidade ao poder estatal é a garantia do princípio da dignidade da
pessoa humana.
Não obstante, existem países que admitem o emprego da tortura, em determinados
casos de segurança nacional, como é o caso dos EUA, de Israel e da Irlanda (terrorista
que, preso, pode revelar a localização de objetos explosivos, capazes de causar danos a
muitas pessoas), nos quais o direito a não ser torturado cede frente ao direito à vida, à
integridade física, à segurança e à ordem pública.
É possível ainda falar nos limites dos limites com relação à aposição de limites e
restrições aos direitos fundamentais. Assim, a ação limitadora somente poderia fazer-se
sentir na medida do estritamente necessário à concretização e à preservação dos direitos
jusfundamentais. Seriam os limites dos limites, portanto, requisitos constitucionalmente
estabelecidos que seriam exigíveis de todas as limitações e restrições e que devem
obrigatoriamente ser respeitados, sob pena de serem essas limitações e restrições
consideradas inconstitucionais.
Em nosso país, não existem esses limites constitucionais previamente e explicitamente estabelecidos, como ocorre em outros países (Portugal, Espanha, Alemanha,
etc.). Logo, deve-se buscar socorro no princípio do Estado Democrático de Direito,
64
BOBBIO, 1992, p. 21.
65
FREITAS, 2007, p. 180.
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alexandre manuel lopes rodrigues
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pois esse é um Estado de Direitos Fundamentais, como diz Canotilho,66 no qual estão preservadas, ao mesmo tempo, as liberdades individuais e sociais (liberdade e igualdade). O
Estado está comprometido em modificar a realidade social por via da intervenção democrática e da otimização dos direitos fundamentais, com ênfase na proteção do princípio da
dignidade humana. No Estado Democrático de Direito, é possível observar duas vertentes
principais da virtude jurídica, que expressam os limites dos limites em termos de direitos
fundamentais: a primeira seria a lei, como manifestação dos interesses e programas dos
grupos políticos majoritários; a segunda seria individualizada pelos direitos invioláveis
atribuídos pela Constituição ao cidadão, independentemente de lei.67
O artigo 5º, inciso II, da nossa CF estabelece a reserva legal. A lei é assim limitadora das atividades que opõem limites e restrições aos direitos fundamentais. Mesmo
quando a Constituição explicitamente ou implicitamente autoriza uma restrição, ela só
se pode dar em virtude de lei; mesmo assim, as restrições devem ser interpretadas, sempre, de forma restritiva. Isso ocorre pelo fato de que, no Estado Democrático de Direito,
ao legislador é dado o poder de limitar a fome de poder do Executivo, protegendo-se
assim os direitos fundamentais. Hoje, com o aumento da atividade do Estado, que não
só se limita a não intervir no âmbito de mobilidade do indivíduo, mas também é chamado a atuar de forma ativa para a realização dos direitos sociais, torna-se mais premente
a interpretação de forma restrita das cláusulas restritivas, que somente devem aceitar
tolhimento quando destinadas à otimização dos direitos fundamentais, sempre que postos em perigo tais direitos, ou outros bens, inclusive os sociais, como a segurança, em
decorrência de conflitos e colisões.68
Não obstante, o legislador pode estabelecer restrições aos direitos fundamentais,
bem como preencher seu conteúdo e clarear seus limites, agindo sempre com ponderação, em decorrência de autorização constitucional explícita ou implícita, de forma a
equalizar a existência e o convívio dos direitos jusfundamentais entre si e para os outros
bens protegidos na forma da Constituição. De qualquer sorte, o instrumento de que se
vale o legislador deve ser a lei em sentido formal e material, devendo ela ter as seguintes
características: ser clara, geral e abstrata, voltada para a produção de efeitos no futuro; ser
razoável; não ofender o princípio da proporcionalidade; preservar o núcleo essencial do
direito jusfundamental restringido; não afetar a dignidade da pessoa humana.69
A restrição legal aos direitos fundamentais apenas deve ser tida como válida, ou
seja, constitucional, quando for produto de uma norma clara, determinada, geral e abstrata. Isso se infere, no caso do Brasil, do modelo de Estado Democrático de Direito no
qual ele se constitui.
Quando a norma infraconstitucional refoge dos preceitos suprarreferidos, ocorre
clara violação do princípio da segurança jurídica que, no dizer de José Afonso da Silva,
66
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Fundamentos da Constituição. Coimbra: Coimbra, 1991, p. 83.
67
FREITAS, 2007, p. 187.
68
FREITAS, 2007, p. 188.
69
Ibid., p. 189.
108
temas atuais de direito
é “o conjunto de condições que tornam possível às pessoas o conhecimento antecipado
e reflexivo das consequências diretas de seus atos e de seus fatos à luz da liberdade
reconhecida”.70
Quando se examina o problema à luz da teoria externa, verifica-se que as restrições aos direitos fundamentais apenas são constitucionalmente adequadas quando a
expressa autorização constitucional assim determinar (reserva legal). Daí deriva, obviamente, o controle que a teoria externa propicia das intervenções desvantajosas aos
direitos fundamentais, pois elas somente serão válidas se autorizadas e na exata medida
da autorização. Assim, quando a lei que deve ser elaborada e que deriva da autorização
constitucional não se apresenta de forma clara e determinada, pode ser apontada como
inviável e inconstitucional, uma vez que a intervenção restritiva tornou-se prejudicada.
8. Direitos humanos: liberdade individual
vs. liberdade social
Os direitos do homem representam uma classe variável de direitos, como a história
dos últimos séculos tem demonstrado. A grande gama de direitos do homem modificou-se
e ainda está em mutação, acompanhando as mudanças das condições históricas e as crescentes necessidades e interesses da comunidade humana, impulsionados por constantes
avanços sociais, econômicos, tecnológicos e científicos. Direitos declarados absolutos
nos estertores do século XVIII (propriedade e liberdade, por exemplo) foram submetidos
a radicais limitações nas declarações contemporâneas. Direitos que as declarações do
século XVIII jamais pensaram em mencionar, como os direitos sociais – dentre os quais
se destacam o da segurança pública (em virtude da crescente onda de violência que assola
diversos países), o do meio ambiente sadio, o da segurança dos meios de comunicação
e de transmissão de dados, o da biossegurança (questão relacionada à manipulação dos
genes humanos ou clonagem) –, devem agora ser tratados com a maior atenção possível,
não sendo difícil prever que, em um futuro próximo, essas pretensões e mesmo outras que
no momento nem sequer podemos imaginar passem a compor o texto de novas declarações de direitos do homem. Tais fatos comprovam que não existem direitos fundamentais
por natureza, pois os direitos são historicamente relativos.71
A classe dos direitos do homem é também heterogênea, uma vez que as declarações apresentam direitos muito diversificados e até incompatíveis entre si. Bem escassos são os direitos considerados fundamentais que não entram em conflito com outros
direitos também considerados fundamentais e que, portanto, não impõem uma opção
em determinada situação. Assim, segundo Bobbio, o reconhecimento do direito de
não ser escravizado implica a eliminação do direito de possuir escravos. Nesse caso,
acrescenta o autor, a escolha parece fácil, mas, na maioria das situações, a escolha é
70
SILVA, José Afonso da Silva. Curso de direito constitucional positivo. 17ª ed. São Paulo: Malheiros,
2000, p. 433.
71
BOBBIO, 1992, p. 20.
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alexandre manuel lopes rodrigues
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duvidosa e necessita ser motivada. Por exemplo: quando se propugna pela abolição
da censura prévia dos espetáculos cinematográficos, tem-se de escolher entre o direito
de expressão do produtor do filme e o direito do público de não ser escandalizado ou
chocado com as cenas ou ideias expostas na película. Para Bobbio, a escolha resolve-se com a introdução de limites na extensão de um dos dois direitos, de forma que seja
em parte resguardado também o outro. Relativamente aos espetáculos, cita o referido
autor, a limitação deve ficar afeta ao respeito aos bons costumes. Assim, direitos fundamentais também podem sofrer restrições quando contrapostos a outros direitos não
menos fundamentais.72
Assim também devem ser tratados os conflitos entre os direitos individuais tradicionais (liberdades) e os direitos sociais (poderes). Os primeiros exigem da parte dos
outros (aí incluídos os órgãos públicos) obrigações puramente negativas, que implicam
abstenções de determinados comportamentos. Já os segundos só podem ser realizados
se for imposto a outros (incluídos os órgãos públicos) um certo número de obrigações
positivas. Logo, verifica-se que a realização total de uns impede a realização integral
dos outros. Quanto mais se agigantam os poderes dos indivíduos, mais diminuem as
liberdades dos mesmos indivíduos.
Bobbio defende a ideia de que dois direitos fundamentais e antagônicos não podem ter um fundamento absoluto comum, isto é, um fundamento que torne um direito e
seu oposto, ambos, inquestionáveis ou intocáveis. Para ele, a ilusão do fundamento absoluto foi um obstáculo à introdução de novos direitos. Um exemplo seria o empecilho
posto ao avanço da legislação social pela teoria jusnaturalista do fundamento absoluto
da propriedade. Ainda: a oposição quase secular contra a introdução dos direitos sociais
foi feita em nome do fundamento absoluto dos direitos de liberdade. Assim, na visão
do autor em tela, o fundamento absoluto é não apenas uma ilusão, mas também um
argumento para defender posições conservadoras. Tal posicionamento, regra geral, não
é aceito hodiernamente, uma vez que se entende que o fundamento absoluto combatido
por Bobbio é, sem dúvida, a dignidade da pessoa humana, que está insculpida em mandamento constitucional (art. 1º, III, da CF de 1988).73
Ainda segundo Bobbio, há três modos de fundamentar os valores: deduzi-los de um
dado objetivo constante, como, por exemplo, a natureza humana; considerá-los como
verdades que podem ser depreendidas de si mesmas; por fim, descobrir que, num dado
momento histórico, eles são geralmente aceitos, o que expressaria a prova do consenso.
Contra o primeiro argumento, tem-se que a natureza humana é um dado inconstante e mutável, e isso é comprovado por meio da história do jusnaturalismo, que evidencia que a natureza humana foi interpretada dos mais diferentes modos: do direito
do mais forte (Spinoza) ao direito à liberdade (Kant). Já o apelo à evidência tem a
deficiência de se estruturar além de qualquer prova de caráter racional. Por certo, no
momento em que se submetem valores tidos como evidentes à verificação histórica,
72
BOBBIO, 1992, p. 20.
73
Ibid., p. 22.
110
temas atuais de direito
fica patente que o que foi declarado como evidente por uns em um dado momento, não
mais será assim considerado por outros em outro momento. Bobbio cita alguns exemplos. A Declaração de 1789 declarava que a propriedade era “sagrada e inviolável”;
hoje, ao contrário, toda referência ao direito de propriedade como direito do homem
desapareceu nos documentos mais recentes das Nações Unidas. Durante muito tempo,
a tortura foi aceita e defendida como procedimento judiciário normal; hodiernamente,
existem, em quase todas as nações desenvolvidas do mundo, leis que consideram a
tortura como crime – no Brasil, ela é até mesmo considerada um ilícito equiparado aos
crimes tidos como hediondos.
O terceiro modo de justificar os valores é demonstrar que eles são apoiados no
consenso. Trata-se de um argumento histórico e, portanto, não absoluto, mas, segundo
Bobbio, é o único que pode ser factualmente comprovado. A Declaração Universal dos
Direitos do Homem pode ser considerada como a maior prova histórica do consensus
omnium gentium sobre um determinado sistema de valores. A partir de sua aprovação,
tal documento foi acolhido como inspiração e orientação no processo de crescimento
de toda a comunidade internacional no sentido de delinear uma comunidade não só de
Estados, mas também de indivíduos livres e iguais.74
John Locke, grande representante do jusnaturalismo, afirmava que, por natureza,
os homens são livres e iguais. A mesma ideia foi sintetizada no corolário da Declaração
Universal dos Direitos do Homem que cunhou a seguinte expressão: “Todos os homens
nascem livres e iguais em dignidade e direitos”. De acordo com esse pensamento, o
verdadeiro estado do homem não é o civil, é antes o natural. Não obstante os termos da
Declaração, na realidade os homens não nascem livres nem iguais. São livres e iguais
apenas em relação a um nascimento ou a uma natureza ideal, isto é, aquela que tinham
em mente os jusnaturalistas. As tão propaladas liberdade e igualdade do homem não
são um dado factível; são antes um ideal a ser alcançado; são, não uma existência, mas
um valor; são, não um ser, mas um dever ser.75
A partir da Declaração de 1948, a afirmação dos direitos do homem passa a ter um
caráter universal e positivo, visto que os destinatários dos princípios nela contidos são,
não mais os cidadãos desse ou daquele Estado, mas toda a Humanidade. Além disso, a
Declaração desencadeia um processo em cujo final os direitos do homem deverão ser,
não mais apenas proclamados ou apenas idealmente reconhecidos, mas eficazmente
reconhecidos e protegidos, isto é, positivados.
Não obstante, é de suma importância evidenciar que a Declaração representa apenas o primeiro passo de uma longa e profícua caminhada, pois, apesar de denotar um
sistema doutrinário, não chega a ser um sistema de normas jurídicas. Em seu próprio
texto, afirma-se que ela tem por objetivo buscar “um ideal comum a ser alcançado por
todos os povos e por todas as nações”; afirma-se ainda que “é indispensável que os
direitos do homem sejam protegidos por normas jurídicas, caso se queira evitar que o
74
BOBBIO, 1992, p. 27.
75
BOBBIO, 1992, p. 29.
tópicos temáticos em direitos ...
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alexandre manuel lopes rodrigues
111
homem seja obrigado a recorrer, como última instância, à rebelião contra a tirania e a
opressão”.76
No tempo em que os direitos do homem eram considerados exclusivamente como
direitos naturais, a única defesa possível contra a sua violação pelo Estado era outro
direito igualmente natural – o de resistência. Posteriormente, nas constituições que
reconheceram a proteção jurídica desses direitos, o direito de resistência transmutou-se
no direito positivo de promover uma ação judicial contra os próprios órgãos do Estado.
Dessa forma, aos cidadãos integrantes de um Estado que não reconheça determinados
direitos naturais, só resta recorrer ao direito natural de resistência.77
De tudo o que foi dito, pode-se inferir, na esteira de Bobbio, que os direitos humanos não são um produto da Natureza; são antes fruto da evolução da civilização humana,
visto que, sendo direitos históricos, eles são mutáveis, suscetíveis de transformações e
ampliações. Os mais embrionários jusnaturalistas (Hobbes, por exemplo) reconheciam a
existência de apenas um direito: o direito à vida. Posteriormente, compreendeu-se que os
direitos do homem evoluíram, sendo certo que ultrapassaram três fases distintas. No primeiro momento, afirmaram-se os direitos de liberdade (aqueles que limitam o poder do
Estado). Esse direito de primeira geração foi pensado tomando-se por base as necessidades do homem médio (burguês ou comerciante) do século XVIII, que tinha por objetivo
defender-se do crescente domínio e poderio estatal, representado pelo Estado Absolutista.
Num segundo momento, ganharam efeito os direitos políticos, os quais concebem a liberdade não só negativamente, como impedimento da ação estatal, mas também positivamente, o que motivou, como consequência, a participação cada vez mais ampla dos
membros de uma comunidade no poder político. Por último, foram sacramentados os
direitos sociais, que expressam o amadurecimento de novas exigências ou novos valores,
como bem estar (qualidade de vida), igualdade, defesa social contra a insegurança provocada pela violência urbana e rural, usufruto de um meio ambiente limpo e sadio, poder –
ou não – utilizar recursos medicinais oriundos da manipulação genética de células tronco
com o objetivo de curar doenças ou minorar suas consequências, usufruir da segurança da
transmissão de dados, voz e imagens via rede mundial de computadores (Internet), etc.78
Percebe-se cristalinamente que o desenvolvimento da técnica, a evolução econômica e social, a ampliação dos conhecimentos e a intensificação dos meios de comunicação, bem como o avanço da violência urbana e da criminalidade, impulsionado pela
desigualdade social e pela proliferação de maciços conglomerados urbanos, marcados
pela carência de recursos materiais e muitas vezes morais, fazem nascer novas necessidades e novos valores que passam a criar a demanda por novos status de liberdade e de
poder. Como exemplos, podem-se citar a necessidade de não ser enganado ou perturbado por uma propaganda maciça e deformadora, que se contrapõe ao direito de expressar
as próprias opiniões e ao direito à verdade das informações.
76
Ibid., p. 31.
77
Ibid., p. 32.
78
BOBBIO, 1992, p. 33.
112
temas atuais de direito
Regra geral, quando dois direitos igualmente fundamentais estão em conflito,
não se pode proteger incondicionalmente um deles sem tornar o outro inoperante.
Importante se faz lembrar o já citado exemplo do direito à liberdade de expressão em
contrapartida ao direito de não ser enganado, escandalizado, injuriado, pelos programas ou atos que são veiculados ou expostos ao público. Nesses casos, deve-se falar de
direitos fundamentais não absolutos, no sentido de que sua tutela encontra um limite
insuperável na tutela de um direito igualmente fundamental, mas concorrente. Sempre
será uma questão de opinião estabelecer qual o ponto em que um termina e o outro começa. A delimitação do âmbito de um direito fundamental do homem é extremamente
variável e não pode ser estabelecida de uma vez por todas.79
Quando se consideram como direitos do homem, além dos direitos de liberdade,
também os direitos sociais, entende-se imediatamente que esses direitos pertencem a
uma categoria heterogênea de direitos. Isso porque a categoria em seu conjunto passou
a conter direitos entre si incompatíveis, ou seja, direitos cuja proteção não pode ser concedida sem que seja restringida ou suspensa a restrição de outros. É possível imaginar
uma sociedade ao mesmo tempo livre e justa, na qual são global e simultaneamente
realizados os direitos de liberdade e os direitos sociais, mas isso é extremamente improvável. As sociedades são mais livres na medida em que menos justas e mais justas
na medida em que menos livres. Vale esclarecer que se denominam “liberdades” os
direitos que são garantidos quando o Estado não intervém e “poderes” os direitos que
exigem uma intervenção estatal para sua efetivação.80
Por outro lado, não se pode esquecer que uma coisa é falar dos direitos do homem
(direitos sempre novos e cada vez mais extensos) e justificá-los com argumentos convincentes; outra coisa é garantir-lhes uma proteção efetiva, pois, à medida que as pretensões aumentam, a satisfação delas torna-se cada vez mais difícil. Os direitos sociais
são mais difíceis de proteger do que os direitos de liberdade.81
De qualquer sorte, os direitos do homem são também um fenômeno social, o que
lhes confere um caráter de mutabilidade e faz com que se multipliquem à medida que a
sociedade muda e também evolui. Essa multiplicação deu-se de três formas distintas: a)
aumentou a quantidade de bens considerados merecedores de tutela; b) foi estendida a
titularidade de alguns direitos típicos do homem a sujeitos diversos; c) o próprio homem
passou a não mais ser considerado como ente genérico ou homem em abstrato, mas visto
na concreticidade de suas diversas maneiras de ser – criança, velho, doente, etc.
A primeira mudança ocorreu com a passagem dos direitos de liberdade (das chamadas liberdades negativas de religião, de opinião, de imprensa, etc.) para os direitos
políticos e sociais, que requerem uma intervenção direta do Estado. A segunda mudança deu-se com a passagem da consideração do indivíduo humano, uti singulis, primeiro
sujeito a quem se atribuíram direitos naturais (a pessoa), para sujeitos diferentes do
79
BOBBIO, 1992, p. 42.
80
BOBBIO, 1992, p. 43.
81
Ibid., p. 63.
tópicos temáticos em direitos ...
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alexandre manuel lopes rodrigues
113
indivíduo, como a família, as minorias étnicas e religiosas, toda a Humanidade em
seu conjunto, a natureza, a sociedade fazendo frente à violência (direito à segurança
pública). A terceira mudança resultou da passagem do homem genérico para o específico, com base em seu diferenciado status social (sexo, idade, condições físicas, etc.).
Basta examinar as cartas de direitos que se sucederam no âmbito internacional para
se observar esse fenômeno: Convenção sobre os Direitos Políticos da Mulher (1959),
Declaração da Criança (1959), Declaração dos Direitos do Deficiente Mental (1971),
Deficientes Físicos (1982), etc.82
É dispensável acrescentar que o reconhecimento dos direitos sociais suscita,
além do problema da proliferação dos direitos do homem, outro problema bem mais
difícil, que se traduz pela efetiva proteção desses direitos, o que requer uma intervenção
ativa do Estado (intervenção essa que não é requerida para a proteção dos direitos de
liberdade). Intervir ativamente implica uma alta organização dos serviços públicos,
nascendo daí uma nova forma de Estado (o Estado Social). Enquanto os direitos de
liberdade nascem contra o superpoder do Estado, no sentido de limitar tal poder, os
direitos sociais exigem, para sua realização prática, ou seja, para sua efetiva proteção,
precisamente o contrário, isto é, a ampliação dos poderes do Estado. O exercício do
poder pode ser considerado benéfico ou maléfico, segundo o contexto histórico. Não
traduz a realidade a afirmação de que o aumento da liberdade é sempre um bem ou o
aumento do poder é sempre um mal.83
Não há como negar que a doutrina dos direitos do homem nasceu da filosofia
jusnaturalista, a qual, no intuito de justificar a existência de direitos pertencentes ao homem, independentemente do Estado, partiu da ideia de um estado de natureza, no qual
os direitos do homem são poucos e essenciais, como o direito à vida e à sobrevivência,
que inclui também o direito à propriedade, e o direito à liberdade. Para Kant, o homem
natural tem um único direito, o direito de liberdade, entendida a liberdade como “independência em face de todo constrangimento imposto pela vontade de outro”, já que
todos os demais direitos, incluindo o direito à igualdade, estão nele compreendidos.84
Com base nesse conjunto de ideias, verificamos que a hipótese do estado de natureza, enquanto estado pré-estatal e, para alguns, até mesmo pré-social, era uma tentativa de justificar racionalmente certas demandas que proliferavam de forma vertiginosa.
Num primeiro momento, durante as guerras de religião, surgiu a necessidade da liberdade de consciência contra toda forma de imposição de uma crença. Essa imposição
era normalmente seguida de uma sanção, não só espiritual e moral, como também física (tortura e execuções praticadas em nome da religião pela Santa Inquisição, por
exemplo). Em um segundo momento, na época que vai da Revolução Inglesa à NorteAmericana e à Francesa, houve a demanda de liberdades civis contra toda forma de
despotismo. Nessa fase, o estado de natureza é considerado uma construção doutriná-
82
Ibid., p. 69.
83
BOBBIO, 1992, p. 72.
84
Ibid., p. 74.
114
temas atuais de direito
ria, cujo objetivo era justificar e tornar eficazes os direitos inerentes à própria natureza do homem, declarando-os invioláveis em relação aos detentores do poder público,
inalienáveis por atos de seus próprios titulares e, finalmente, imprescritíveis por mais
longa que fosse a duração de sua violação. O berço no qual floresceram as necessidades
e exigências desses direitos era constituído pelas lutas e pelos movimentos, que devem
ser buscados, não mais na hipótese do estado de natureza, mas na realidade social da
época, que expressava os anseios e carências resultantes das contradições e mudanças
de um dado momento histórico.
Mostra-se patente que as necessidades e exigências evoluem e ultrapassam
a hipótese do racional para alcançar a análise da sociedade real e de sua história.
Hodiernamente percebe-se que as exigências que buscam conferir maior proteção a
indivíduos e grupos (exigências que vão bem além da liberdade) aumentaram enormemente e continuam a aumentar. Nesse aspecto, para justificá-las, a hipótese abstrata
de um estado de natureza simples, primitivo, no qual o homem sobrevive com poucas
necessidades essenciais, não teria mais nenhuma força de persuasão e, portanto, nenhuma utilidade teórica ou prática. O fato de que a lista dos direitos que necessitam de
proteção esteja em constante ampliação não só demonstra que o ponto de partida do
hipotético estado de natureza perdeu toda a plausibilidade, mas também deveria ter o
condão de tornar-nos conscientes de que o mundo das relações sociais do qual essas
exigências derivam é muito mais complexo e de que, para a vida e para a sobrevivência
dos homens, nessa nova sociedade, não bastam os chamados direitos fundamentais,
como o direito à vida, à liberdade e à propriedade.85
Novamente Bobbio cita um exemplo que bem ilustra a situação descrita: não existe atualmente nenhuma carta de direitos que não reconheça o direito à instrução; em
um primeiro momento, tratava-se do direito à instrução elementar, depois da instrução
secundária e pouco a pouco da universitária. Não obstante ser o direito à instrução,
hoje em dia, amplamente reconhecido, não era ao menos referido nas mais conhecidas
declarações que se baseavam no estado de natureza. A verdade é que esse direito não
foi posto no estado de natureza porque não emergira na sociedade da época na qual
nasceram as doutrinas jusnaturalistas. Naquele momento, as exigências fundamentais
traduziam-se principalmente em exigências de liberdade, para fazer face às obrigações impostas pela Igreja e pelo Estado. Somente uma sociedade bem mais evoluída
econômica e socialmente pode sentir a necessidade de proteger outros bens, como a
instrução, para buscar o exemplo de Bobbio, ou da segurança pública, para abordar o
tema do presente estudo.
As antigas exigências tinham por finalidade impor limites aos poderes opressivos.
Sendo assim, a hipótese de um estado pré-estatal, ou de um estado liberto de poderes
supraindividuais, como os das igrejas e dos governos políticos, correspondia perfeitamente à finalidade de justificar a redução, ao mínimo possível, do espaço ocupado por
tais poderes e de ampliar os espaços de liberdade dos indivíduos. De forma contrária,
85
BOBBIO, 1992, p. 75.
tópicos temáticos em direitos ...
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alexandre manuel lopes rodrigues
115
a hipótese do homem como animal político, que remonta a Aristóteles, permitiu justificar
durante séculos o Estado paternalista, no qual o indivíduo não possui por natureza nenhum dos direitos de liberdade, direitos dos quais, como uma criança, não estaria em condições de usufruir, não só para o bem comum, mas nem mesmo para seu próprio bem.86
Enquanto a relação entre mudança social e nascimento dos direitos de liberdade
foi menos evidente, era possível afirmar que a exigência de liberdades civis era fundada
na existência de direitos naturais, pertencentes ao homem enquanto tal. Não obstante,
a relação entre o nascimento e o crescimento dos direitos sociais, por um lado, e a
transformação da sociedade, por outro, é inteiramente evidente. É possível evidenciar
tal fenômeno, quando se verifica que as exigências de direitos sociais tornaram-se tanto mais numerosas quanto mais rápida e profunda foi a transformação da sociedade.
Bobbio cita um exemplo: a exigência de uma maior proteção aos idosos jamais poderia ter-se consolidado se não houvesse ocorrido um incremento na longevidade da
população, o que demonstra um efeito direto das modificações ocorridas nas relações
sociais e resultantes dos progressos da medicina. Da mesma sorte, temos as exigências
de maior proteção da natureza, da segurança nos meios de comunicação via Internet, da
manipulação de material genético, que traz à baila a possibilidade de clonagem animal
e até mesmo humana, com a consequente ampliação da esfera dos direitos e liberdades
públicas; além desses pontos, consideramos muito significativo o direito da população
à segurança, dada a crescente onda de violência.
A proteção de toda essa gama de direitos era inconcebível quando esses mesmos
direitos ainda não haviam nascido, ou não eram possíveis de serem implementados por
questões de evolução social, econômica, populacional e técnica. Isso significa dizer que
a conexão entre mudança social e mudança na teoria e na prática dos direitos fundamentais sempre existiu. O nascimento dos direitos sociais apenas tornou essa conexão
mais evidente, tão evidente que atualmente não pode mais ser negligenciada. Numa
sociedade em que somente os proprietários gozavam de cidadania ativa, era óbvio que
o direito de propriedade fosse elevado à categoria de direito fundamental; também é
óbvio que, na sociedade existente em países da primeira revolução industrial, quando
entraram em cena os movimentos operários, o direito ao trabalho tenha sido incontinenti elevado à categoria de direito fundamental. A inclusão dos direitos citados na
categoria de direitos fundamentais tem suas raízes na natureza das relações de poder
características das sociedades que haviam gerado tais reivindicações e, por conseguinte, na natureza específica, historicamente determinada, daquelas sociedades.87
9. Direitos sociais e sua efetividade
É inegável que os direitos sociais são parte integrante dos direitos fundamentais
– direitos individuais, políticos, econômicos e sociais –, os quais constituem, como
86
BOBBIO, 1992, p. 76.
87
BOBBIO, 1992, p. 77.
116
temas atuais de direito
aqueles, direitos essenciais, básicos e elementares, levados em consideração em determinada época, desenvolvidos a partir da consciência social e moral de um determinado
povo em certo momento histórico. Configuram-se, pois, como um conjunto de valores
que, considerados como fundamentais dentro de cada ordenamento jurídico, concretizam e desenvolvem a ideia de justiça.
Embora os direitos sociais façam parte do conteúdo mínimo de direitos assegurados ao indivíduo para que possa atingir uma existência digna, fazendo jus ao status
de ser humano, sua eficácia imediata ainda não é ponto pacífico entre doutrinadores,
juristas e aplicadores do Direito, não só em nosso País, como também em Estados alienígenas. Por eficácia jurídica, deve-se compreender a aptidão formal de uma norma
jurídica para incidir sobre a vida material, regendo relações concretas.
O que costumeiramente é alegado, quando se pretende descaracterizar a condição de aplicabilidade imediata dos direitos sociais, é que suas normas não teriam o
caráter de autoaplicabilidade, como os chamados direitos individuais. Pelo contrário,
os direitos sociais teriam um nítido caráter de normas programáticas, que sempre necessitariam de uma atuação política, econômica e social do governo, o que denota que
elas necessitam de uma regulamentação estatal, por meio de regras que lhes delimitem
melhor o objeto, o campo de incidência e a forma procedimental, concedendo-lhes
assim plena eficácia.88
A classificação das normas constitucionais quanto à sua eficácia apresenta grande
variação. Há autores que as definem como normas de eficácia absoluta, normas com
eficácia plena, normas com eficácia restringível e normas com eficácia complementável. Outros, como José Afonso da Silva, entendem que, embora a Constituição declare expressamente que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais
têm aplicação imediata, isso não resolve todas as questões, uma vez que a própria
Constituição indica que algumas normas definidoras de direitos sociais dependem da
regulamentação por uma legislação posterior, para ganhar aplicabilidade. José Afonso
da Silva afirma que existem normas constitucionais programáticas, que se subdividem
em normas constitucionais de eficácia plena, normas constitucionais de eficácia contida e normas constitucionais de eficácia limitada, compreendidas por normas constitucionais de princípio institutivo e normas constitucionais de princípio programático.
Esclarece o autor também que as normas que consubstanciam os direitos fundamentais
políticos e individuais são de eficácia contida e de aplicabilidade imediata, ao passo
que as definidoras dos direitos econômicos e sociais tendem a sê-lo também, mas algumas apresentam eficácia limitada, princípios programáticos e aplicabilidade indireta.89
Não obstante, podemos levantar a hipótese de que a Constituição, como expressão de um pacto político fundamental que emerge da sociedade, tem legitimidade para
regular a estrutura nuclear das relações essenciais existentes naquela sociedade. Dessa
88
SILVEIRA, Cláudia Maria Toledo. Auto-aplicabilidade dos direitos sociais. Disponível em: <http://
www.jusnavigandi.com.br>. Acesso em: 16 jul. 2008./.
89
SILVA, 1996, p. 96.
tópicos temáticos em direitos ...
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alexandre manuel lopes rodrigues
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forma, a ideia de negação de imediata aptidão para atingir e reger situações e relações
fático-jurídicas concretas – negação de eficácia – não é compatível com o conceito de
Carta Política de um País. A Constituição, considerada como diploma máximo de uma
realidade sociopolítica é, antes de tudo, válida, eficaz e aplicável, incidindo imediatamente sobre situações fático-jurídicas concretas. Não podemos negar, entretanto, que
determinados preceitos constitucionais apresentam um grau variável na intensidade de
sua eficácia imediata, o que, em alguns casos, acaba por determinar a negação de autoaplicabilidade de certas normas.
Nesse passo, podemos reconhecer a existência de três tipos principais dessas normas: normas de eficácia plena, de aplicação imediata e integral, que não dependem de
legislação posterior para o alcance de sua cabal operatividade; normas de eficácia contida, de aplicabilidade imediata, embora sua eficácia seja restringível por diploma infraconstitucional, conforme autorizado pela própria Constituição (não sendo editada a
legislação complementar regulamentadora e restritiva, a norma firmar-se-ia em vigor);
normas de eficácia limitada, que dependem da emissão de uma normatividade futura
(regulamentação cabível ao legislador ordinário) para alcançar plena eficácia que, não
obstante seja imediata, é significativamente limitada.
Para alguns autores, os direitos sociais estariam inseridos nesse último tipo de
normas que, apesar de não serem totalmente destituídas de eficácia jurídica, já que têm
aptidão para obstar a edição de normas infraconstitucionais de sentido antitético ou incompatível ao incorporado ao preceito constitucional, têm caráter programático, visto
que propõem um verdadeiro “programa constitucional” a ser desenvolvido mediante
legislação integrativa da vontade constitucional.
Robert Alexy apresenta uma classificação que enfatiza a existência de direitos
sociais com caráter “definitivo” – isto é, aqueles dotados de efeito vinculante ou autoaplicáveis e direitos oriundos de obrigações estatais –, que dariam nascimento a princípios, os quais, por sua vez, não gerariam nenhum dever definitivo por parte do Estado,
tornando-se enunciados meramente programáticos. A diferença fundamental existente
entre o primeiro e o segundo tipo de direitos sociais reside no fato de que os primeiros
têm de ser estabelecidos por meio de ponderações; isso não se aplica ao caso dos deveres não vinculantes. Para o não cumprimento de um princípio (direitos sociais com caráter de definitividade), têm de existir, do ponto de vista do direito, razões plausíveis e
bastante fortes. Isso não ocorre no caso de não cumprimento de um dever juridicamente
não vinculante. Um dever ordenado por um princípio pode, se não existe nenhuma razão aceitável para seu não cumprimento, conduzir a um dever definitivo; um dever não
vinculante não apresenta esse efeito.90
Segundo Alexy, o Poder Judiciário, por meio da Corte Suprema de Controle
Constitucional, não pode exercer controle sobre o cumprimento dos princípios constitucionais; pode apenas controlar aquelas normas geradoras de dever definitivo. Mesmo
assim, tais princípios somente seriam executáveis por intermédio de prévia pondera-
90
ALEXY, 1993, p. 98.
118
temas atuais de direito
ção, o que faz com que certo princípio específico, por exemplo, à luz dos princípios
opostos, seja ou não satisfeito.
A colisão de princípios pode ser resolvida realizando-se a ponderação entre os
bens jurídicos em jogo, estabelecendo-se uma relação de pesos, com base na máxima
da proporcionalidade. Essa máxima é formada, por sua vez, de três máximas parciais:
a adequação (a resposta jurídica que se quer dar é adequada ao problema que se enfrenta?), a necessidade (postulado do meio mais benigno. Meio que agredirá o Direito
Fundamental em conflito de forma mínima, dentro do possível) e a proporcionalidade
em sentido estrito (postulado de ponderação em sentido estrito – qual direito deverá
efetivamente prevalecer).
10. BIBLIOGRAFIA
ADEODATO, João Maurício. O problema da legitimidade no rastro do pensamento de
Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989.
ALEXY, Robert. Teoría de la argumentación jurídica: la teoría del discurso racional
como teoría de la fundamentación jurídica. Traducción de Manuel Atienza e Isabel
Espejo. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 1989.
______. Teoría de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Políticos y
Constitucionales, 1993.
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A EFICÁCIA DOS DIREITOS SOCIAIS FUNDAMENTAIS
Ivanilson Paulo Corrêa Raiol
RESUMO: Este artigo discute a delicada questão dos direitos fundamentais, com destaque aos direitos sociais. Procura apresentar caminhos para eficácia dos direitos sociais
fundamentais.
Palavras-chave: direitos fundamentais; direitos sociais.
ABSTRACT: This article discusses the delicate question of the fundamental rights, mainly
the social rights. Looking for ways to present the effectiveness of fundamental social rights.
Key-words: human rights; social rights.
SUMÁRIO: 1. Considerações iniciais. 1.1. Direitos fundamentais e direitos humanos. 1.2. Direitos
fundamentas individuais e sociais. 2. A eficácia dos direitos sociais.
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Uma das mais inquietantes questões que cercam as regras e princípios constitucionais diz respeito à necessidade da realização prática dessas normas. Imputar à
Constituição escrita a posição secundária de simples “folha de papel”1 não parece responder às carências que os dispositivos normativos integrantes de um ordenamento
jurídico apresentam no longo e angustiante caminho em busca de sua materialização,
de sua passagem de categorias abstratas para realidades concretas da vida; enfim, de
sua efetividade.
1
LASSALLE, em conferência de 1863 para operários e intelectuais da Prússia, falando acerca
da essência da Constituição, assim se pronunciou: “Tenho demonstrado a relação que guardam
entre si as duas constituições de um país: essa constituição real e efetiva, integralizada pelos
fatores reais de poder que regem a sociedade, e essa outra constituição escrita, à qual, para
distingui-la da primeira, vamos denominar folha de papel.” LASSALLE, Ferdinand. A essência
da constituição, p. 23.
122
temas atuais de direito
A realização do direito, portanto, é que diminuirá o vazio existente entre realidade
fática e normatividade,2 contribuindo-se decisivamente para a racionalidade na aplicação do direito.
Nessa linha, apresentam-se os direitos fundamentais com um significado relevante para a diminuição do vazio, mencionado acima, por intermédio da sua eficácia
irradiante que reconhece a força dos valores inseridos nas normas jusfundamentais,
capazes de penetração por todo o ordenamento jurídico e obrigando os que lidam com
o direito a um esforço interpretativo que condicione as regras e princípios a uma gravitação em torno daqueles direitos. Como lembra Daniel Sarmento, “através dela” (da
eficácia irradiante dos direitos fundamentais), “os direitos fundamentais deixam de ser
concebidos como meros limites para o ordenamento, e se convertem no norte do direito
positivo, no seu verdadeiro eixo gravitacional”.3
Portanto, a efetividade do Direito impõe que se procure um delineamento dos
direitos fundamentais. Precisar o conteúdo, alcance e limites desses direitos representa
um grande passo para superação dos problemas colocados à sua concretização, aproximando o direito da realidade social subjacente e fornecendo ao intérprete padrões
seguros para aplicação de preceitos constitucionais.
Nessa esteira, os direitos sociais fundamentais merecem especial consideração
para, levando-se em conta a necessidade de concretização da norma constitucional, esclarecer-se da possibilidade de sua aplicação efetiva, pelo menos com respeito àqueles
que já se encontram inseridos no catálogo de direitos reconhecidos pela Constituição.
1.1. Direitos fundamentais e direitos humanos
Um primeiro problema a enfrentar diz respeito à própria concepção de direitos sociais. O que são direitos sociais? Na verdade, são eles direitos fundamentais? E, afinal,
o que são direitos fundamentais?
Começando pela última das indagações, impõe-se saber, inicialmente, o significado da expressão “direitos fundamentais”.
Não existe unanimidade doutrinária no emprego das expressões direitos humanos e direitos fundamentais. Há autores que distinguem uma de outra, afirmando que
2
HESSE chamou a atenção para a busca desse equilíbrio entre o ser (realidade) e o dever ser (normatividade), afirmando da necessidade de aproximação desses dois aspectos: “Hay, pues, que buscar el
camino entre el sacrifício de lo normativo ante la simple facticidad de uma parte y la normatividad
ajena a la realidad y carente de contenido, de outra” – “Deve-se, pois, perseguir o caminho entre o sacrifício do normativo diante da simples facticidade, de uma parte, e a normatividade alheia à realidade
e carente de conteúdo, de outra”. In: HESSE, Konrad. Escritos de derecho constitucional. Trad. Pedro
Cruz Villalon. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1992, p. 61. Tradução livre do autor.
3
SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2004, p. 156. O mesmo autor menciona que os que atuam com o direito devem proceder à revisitação das normas infraconstitucionais, reinterpretando os dispositivos existentes à luz da Constituição
e especialmente dos direitos fundamentais. É o fenômeno da filtragem constitucional.
a eficácia dos direitos sociais fundamentais
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ivanilson paulo corrêa raiol
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direitos fundamentais seriam aqueles direitos positivados ou reconhecidos pela ordem
constitucional de determinado Estado.4 Porém, para outros, a utilização é indistinta,
vez que, na essência, não permaneceria a diferença entre direitos humanos e direitos
fundamentais.5
Qualquer tentativa de estabelecer diferença entre as duas expressões apresenta-se
desprovida de real importância. Há autores que justificam a opção por direitos fundamentais, alegando que se trata de conceito mais preciso, definido, restrito e que, por ser
utilizado em referência aos direitos constitucionais positivados no ordenamento interno
de Estados, daria uma maior conformação espacial e temporal àqueles direitos. Nesse
sentido, a expressão direitos humanos seria vaga, de contexto universal, relacionada aos
acordos internacionais e que estaria condicionada a ações estatais para sua efetividade.
Na realidade, é inadmissível falar de direitos fundamentais, sem esclarecer que
eles representam os mesmos direitos humanos cuja designação se procura evitar. Foram
os doutrinadores alemães que elaboraram a distinção entre direitos humanos e direitos
fundamentais, buscando sustentar o caráter de obrigatoriedade daqueles “direitos do
homem” que fossem reconhecidos expressamente pelas autoridades incumbidas da elaboração das normas.6 Porém, deixando à parte esse aspecto nitidamente positivista, não
há como sustentar convincentemente uma diferença entre as duas expressões.
Tem razão Comparato, aliás, quando afirma que o fundamento dos direitos humanos encontra-se na consciência ética coletiva.7 Somente um natural desenrolar do
processo histórico pode fornecer os indicativos seguros para uma compreensão dos
direitos humanos fundamentais.8
Desse modo, não se pode utilizar como critério distintivo entre direitos humanos e
direitos fundamentais o registro ou não da norma em um determinado texto oriundo da
ação do Estado, quer nacional ou internacionalmente, pois, se admitida essa hipótese,
4
Nessa linha, Ingo Sarlet, Paulo Bonavides e Jorge Miranda apud THEODORO, Marcelo Antonio.
Direitos fundamentais e sua concretização. Curitiba: Juruá, 2003, p. 28. Também, Fábio Konder
Comparato, embora demonstre a fragilidade dessa distinção, revela que os direitos fundamentais
“são os direitos humanos reconhecidos como tais pelas autoridades às quais se atribui o poder político de editar normas, tanto no interior dos Estados quanto no plano internacional”. In: A afirmação
histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 57.
5
Assim, FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 14. É interessante notar que o autor, adotando a terminologia direitos humanos fundamentais, afirma que direitos fundamentais são uma abreviação da referida designação. Celso Lafer,
ora menciona direitos fundamentais do homem, ora direitos humanos, reservando àquela a qualidade
de “expressão jurídica do valor da pessoa humana”. In: A reconstrução dos direitos humanos. São
Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 118.
6
COMPARATO, Fábio Konder. Ibidem, p. 57.
7
A consciência ética coletiva seria “a convicção, longa e largamente estabelecida na comunidade,
de que a dignidade da condição humana exige o respeito a certos bens ou valores em qualquer
circunstância, ainda que não reconhecidos no ordenamento estatal, ou em documentos normativos
internacionais”. Ibidem, p. 59.
8
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Ibidem, p. 14.
124
temas atuais de direito
os direitos fundamentais só existiriam a partir da atuação da vontade estatal, criando-se,
com esse entendimento, o grave risco de admitir-se que o mesmo Estado que “cria” os
direitos fundamentais tem, também, o poder de extingui-los. Seria, em última instância,
a nacionalização ou estatização dos direitos humanos.
Portanto, respeitadas as opiniões contrárias, é possível admitir que as expressões
direitos humanos, direitos fundamentais, direitos fundamentais do homem ou direitos
humanos fundamentais podem ser empregadas sem distinção de conteúdo ou valor.
1.2. Direitos fundamentais individuais e sociais
Na busca pela origem dos direitos humanos, pode-se ir muito longe. Vê-se, por
exemplo, que quando Caim matou a Abel seu irmão, o próprio Deus teria estabelecido um
limite à vingança de qualquer pessoa em relação ao fratricida, determinando que ninguém
poderia tocar na vida de Caim.9 Identificar-se-ia, nessa ordem divina, a proteção de vários
direitos fundamentais, o direito à vida, à integridade física, a um julgamento justo, todos
convergentes à preservação da dignidade da pessoa humana, ainda que autora da mais
reprochável conduta. Como se vê, fica extremamente complicado o estabelecimento de
marcos doutrinários para a indicação do nascimento dos direitos fundamentais.10
Por opção metodológica, entretanto, adota-se o século XVIII como ponto de partida para uma análise histórica desses direitos, mais precisamente na Declaração de
Independência dos Estados Unidos (1776) e a Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão (1789).
A Declaração de Independência dos Estados Unidos foi antecedida por alguns dias
pela Declaração dos Direitos da Virgínia (editada em 12 de junho de 1776 e tornada
pública em 16 de junho do mesmo ano) que, segundo Fábio Comparato, constitui, na
História, o registro de nascimento dos direitos humanos.11 Seja como for, redigida por
Thomas Jefferson, a Declaração de Independência representa um marco importante na
consolidação de direitos, como o da autodeterminação dos povos, o de que todos os
homens são iguais e possuidores de certos direitos inalienáveis (vida, liberdade e busca
da felicidade), entre outros. Para se ter uma ideia da grandiosidade desse documento,
Jefferson condenara no projeto da Declaração de Independência (cujas raízes mergulham na Declaração de Virgínia) até mesmo os horrores da escravidão negra.
Dessa maneira, a Declaração de Independência apresenta-se duplamente importante. Por um lado, expressa em documento o reconhecimento de “direitos inaliená-
9
GÊNESIS. Português. In: Bíblia de estudo de Genebra. Tradução João Ferreira de Almeida. Barueri,
SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 1999, p. 16. O texto declara: “O SENHOR, porém, lhe disse: Assim,
qualquer que matar a Caim será vingado sete vezes. E pôs o SENHOR um sinal em Caim, para que
o não ferisse de morte quem quer que o encontrasse” . Gn 4, 15. (sic).
10
Há estudiosos que procuram desenvolver um relato em busca da origem e desenvolvimento dos direitos humanos, desde os remotos tempos bíblicos. Nesse sentido, LAFER, Celso. Idem, pp. 118ss;
COMPARATO, Fábio Konder. Idem, p. 1-67.
11
Ibidem, p. 49.
a eficácia dos direitos sociais fundamentais
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ivanilson paulo corrêa raiol
125
veis” em favor de todos os homens (direitos fundamentais) e, por outro lado, projeta-se
espacialmente para outro continente, influenciando os revolucionários franceses com
seus ideais de exaltação dos direitos individuais.
Porém, ainda que se reconheça o valor do documento americano, não se pode
deixar de anotar que, por seu caráter destacadamente nacionalista (não era uma preocupação imperativa com os direitos de “todos os homens”, mas uma reafirmação de
antigos direitos do cidadão inglês, diante dos abusos e usurpações do governo da GrãBretanha), não se espraiou pelo mundo.12 Diferentemente, a Declaração dos Direitos
do Homem e do Cidadão apresenta uma característica universal, uma generosidade
transmitida por suas fórmulas que alcançou uma multidão de povos de diferentes línguas, tendo, portanto, um destaque incomparável na disseminação das concepções fundamentais de direitos que obrigavam a um reconhecimento geral.
O documento francês tem, por conseguinte, o mérito de uma preocupação universal com os direitos fundamentais, já que, conforme declinado no preâmbulo da
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, a ignorância, a negligência ou o
desprezo dos direitos humanos são as causas exclusivas dos infortúnios públicos e das
corrupções do governo.13 Evidente que não se pretende realizar um estudo aprofundado
do texto da Declaração de 1789 (ainda que seja algo interessante); contudo, é suficiente
observar que a Carta enuncia uma primeira geração histórica de direitos fundamentais
relacionados ao Homem e suas liberdades (o indivíduo com prerrogativas reconhecidas
e tuteladas pelo ordenamento do Estado), estabelecendo-se, destarte, a demarcação
entre Estado e não-Estado.14 Merece menção, ainda, o fato de que a Declaração proclama a vinculação da existência de um Estado constitucional à condição da garantia dos
direitos e da separação dos poderes.15
Por essa perspectiva, positivado foi aquilo que Manoel Gonçalves Ferreira Filho
identifica como o núcleo dos direitos fundamentais,16 ou seja, as liberdades públicas
(direitos individuais). Ou seja, a primeira geração histórica de direitos fundamentais.
Constituída a fase histórica de afirmação dos “direitos-liberdades”, novas inquietações eclodiram na sociedade, oriundas do progresso técnico e da corrida desenfre-
12
Em carta de 4 de maio de 1787, Thomas Jefferson escreve a John Jay acerca de uma epístola recebida de um brasileiro que demonstrara interesse em seguir os Estados Unidos no “exemplo de libertação”, desejando o apoio americano na possibilidade do Brasil “quebrar os grilhões” de Portugal.
Após descrever detalhadamente as condições geográficas, militares, econômicas e culturais do Brasil, na referida Carta, Jefferson revela o caráter nacionalista da revolução americana, dizendo “que
não estamos em circunstâncias de comprometer a nação em uma guerra; que desejamos especialmente cultivar a amizade de Portugal, com o qual fizemos um trato vantajoso”. In: O Federalista.
Tradução Ricardo Rodrigues Gama. Campinas: Russell, 2003, pp. 11-14.
13
PAINE, Thomas. Direitos do homem. Tradução Edson Bini. Bauru, SP: Edipro, 2005, pp. 95-96.
14
LAFER, Celso. Ibidem, p. 126.
15“Toda comunidade na qual uma separação dos poderes e uma garantia dos direitos não estejam
estabelecidas, quer uma Constituição”. In: PAINE, Thomas. Idem, p. 98.
16
Op. cit. p. 28.
126
temas atuais de direito
ada pela conquista e consolidação de mercados. As liberdades já não se mostravam
suficientes à garantia da dignidade da pessoa, surgindo, então, as doutrinas socialistas
como resposta às terríveis condições de miséria a que foram lançadas as classes trabalhadoras. Revolução Industrial, Movimentos Sociais (ludismo, cartismo, Comuna de
Paris), novas doutrinas sociais (positivismo, socialismo, anarquismo), enfim, o mundo
estava mudando e exigia uma nova configuração ou, pelo menos, outra interpretação
dos direitos humanos fundamentais.
Os direitos sociais começam, então, a ser reconhecidos em vários documentos.
Primeiro, por meio da Constituição Mexicana de 1917; depois, a Constituição de
Weimar de 1919. Estabelecidos os limites contra o abuso do poder estatal em face
do indivíduo, observou-se que a liberdade fora extremada em prejuízo da igualdade
(reduzida a um conceito formal), criando-se na sociedade um abismo intransponível
entre os que detinham a propriedade (ou a liberdade de comércio) e os que foram relegados à exploração da sua força de trabalho. Como assinalaram Marx e Engels, no
Manifesto Comunista do ano de 1848, a burguesia (única classe a usufruir da liberdade) fez da dignidade pessoal um simples valor de troca e, no lugar das numerosas
e indestrutíveis liberdades conquistadas, estabeleceu uma única e implacável liberdade: a liberdade de comércio.17 Esse quadro impôs o reconhecimento de novos direitos, os direitos individuais exercidos coletivamente, chamados direitos de crédito
do indivíduo em relação à coletividade: liberdade de associação, direito ao trabalho,
à educação, à saúde, enfim, um feixe espesso de direitos fundamentais que passou a
complementar os direitos de primeira geração, procurando concretizar a dignidade
da pessoa humana.
A Constituição mexicana trazia em seu bojo, devido à influencia do anarquismo,
proposições de proteção às relações de trabalho, instituindo a jornada máxima de oito
horas (art.123, I), a responsabilidade patronal por acidentes do trabalho (art. 123, XIV);
o direito de associação de classe (art. 123, XVI), o direito de greve com fechamento dos
estabelecimentos (art. 123, XVII), o direito de moradia (art, 123, XXX), dentre outras
tantas disposições que fundaram as bases de um Estado Social de Direito.
Por sua vez, a Constituição de Weimar de 1919, embora posterior à Constituição
mexicana, devido originar-se de um país europeu e possuir, sem dúvida, uma estrutura
mais refinada do que a mexicana, influenciou decisivamente muitos países ocidentais,
ressentidos das agruras da 2ª Guerra Mundial, com todas as consequências sociais negativas que esse conflito ajudou a aprofundar: miséria, fome, desamparo. A população
mundial estava perdida sem saber a quem recorrer, pois o liberalismo, com sua doutrina
redutora do Estado, mostrara-se insensível aos direitos econômicos e sociais capazes de
conferir dignidade ao ser humano. Ressurgiu, por conseguinte, a discussão acerca do
retorno do Estado, por intermédio da redefinição e reorganização da sua função, para
ocupar um espaço ativo na promoção de ações governamentais que interviessem no
17
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Cartas filosóficas e o manifesto comunista de 1848. São Paulo:
Editora Moraes, 1987, p. 105.
a eficácia dos direitos sociais fundamentais
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mercado, produzindo investimentos públicos e distribuição de bens. Por essa razão, a
primeira parte da Constituição de 1919 ocupa-se do Estado.
Para completar a sua bem elaborada estrutura, a segunda parte da Constituição
de Weimar é dedicada aos “direitos e deveres fundamentais dos alemães”. Destacamse, nesse catálogo, os direitos sociais: educação obrigatória (art. 145), igualdade entre
marido e mulher (art. 119), preocupação com a infância e adolescência (art. 121 e 122),
liberdade econômica, mas nos limites da manutenção da existência, conforme à dignidade humana (art. 151). Enfim, por tudo que dispôs, o documento alemão representa,
ao lado da Constituição Mexicana de 1917, um divisor de águas entre um Estado liberal
clássico e um Estado social.
A partir de então, não se podia mais negar, no plano jurídico positivo, a existência
de outros direitos que fossem além da liberdade individual. Reconheciam-se, agora,
formalmente, direitos fundamentais que exigiam, ao contrário de uma abstenção do
Estado, uma ação concreta desse mesmo Estado na realização de prestações sociais
consideradas fundamentais.
Todavia, novas necessidades humanas impunham novéis desafios. Os horrores
de duas grandes guerras foram o grito que despertou o valor da solidariedade humana;
os homens tornavam-se conscientes de que não bastavam tutelar liberdades e direitos
sociais, uma vez que a experiência revelara novas dimensões dos direitos fundamentais
referentes a todas as gentes. Essa terceira geração de direitos, amplos, abrangentes, passa a ser reconhecida no plano internacional. Com a criação dos organismos internacionais e os documentos que passaram a publicar, iniciou-se um caminho sem volta para a
internacionalização dos direitos humanos.18 As Convenções Internacionais celebradas
pela Organização das Nações Unidas (ONU), Organização Internacional do Trabalho
(OIT) e outras entidades de direito internacional produziram vários documentos enunciando esses novos direitos dos povos e da humanidade.
Manoel Gonçalves Ferreira Filho19 informa que são quatro os principais direitos
dessa terceira geração: o direito à paz (relacionado à convivência amistosa entre os
Estados), o direito ao desenvolvimento,20 o direito ao meio ambiente21 e o direito ao
patrimônio comum da humanidade.22
18
COMPARATO menciona duas fases de internacionalização dos direitos humanos. A primeira, da 2ª
metade do século XIX, iniciando com a Convenção de Genebra de 1864, até a 2ª Guerra Mundial. A
segunda, a partir de 1945, término da Grande Guerra. Idem, pp. 54-57.
19
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais, op. cit., p. 58.
20
A Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento da ONU, de 1986, no seu artigo 1º diz que o
direito ao desenvolvimento é um direito humano inalienável.
21
O primeiro dos direitos de 3ª geração a definir sua estrutura. A Declaração de Estocolmo, 1972, proclamou que o homem tem o direito fundamental ao gozo de condições de vida adequadas num meio
ambiente sustentável.
22
A Convenção sobre o Direito do Mar, de 1982, estabeleceu que “os fundos marinhos e oceânicos e
o seu subsolo para além dos limites da jurisdição nacional, bem como os respectivos recursos, são
patrimônio comum da humanidade”. – Preâmbulo da Convenção.
128
temas atuais de direito
Como se verifica, os direitos fundamentais alcançaram dimensões gigantescas. Da
simples luta por um núcleo individual que garantisse um espaço inviolável de liberdades e, ao mesmo tempo, protegido pelo Estado, passou-se à proteção de grupos humanos (consumidores, família, nação, povo) que se apresentam como titulares difusos ou
coletivos desses diretos de terceira geração, direitos de solidariedade.
Para rematar, é interessante notar que há autores que sustentam a existência de
outras gerações de direitos fundamentais. Assim, Bobbio fala da integridade do patrimônio genético,23 Bonavides defende os direitos à democracia, à informação e ao
pluralismo.24
Sobram críticas quanto a essa excessiva compartimentalização (mesmo histórica)
dos direitos fundamentais, afirmando-se do grave risco que se corre na busca pela identificação de “outras gerações” de direitos, quando ainda nem mesmo foram efetivados
antigos direitos humanos, deixando no vazio um considerável elenco das garantias fundamentais existentes. Nesse sentido, Manoel Gonçalves Ferreira Filho adverte que é
preciso, todavia, ter consciência de que a multiplicação de direitos’fundamentais’ vulgariza e desvaloriza a idéia.25 Contudo, mesmo reconhecendo a justa preocupação do
professor Ferreira Filho, convém observar que o fato da não concretização de direitos
fundamentais não deve ser atribuído à identificação de novos direitos humanos. Pelo
contrário, uma vez que não se criam direitos fundamentais, mas tão-somente declara-se
a sua existência, deve-se, sim, ampliar cada vez mais o rol desses direitos, obrigando-se, por meio dos instrumentos legislativos e judiciários, o respeito e a efetividade dos
direitos humanos fundamentais, tornando-os uma realidade histórica e jurídica, e não
um simples ornamento constitucional.
Diante dessas considerações, crê-se que já se pode estabelecer o alcance da expressão “direitos fundamentais”. Sem definir, por todos os inconvenientes que qualquer
definição carrega, os direitos fundamentais são aqueles direitos do homem, reconhecidos ou não pelo Estado, frutos de um movimento histórico inacabável e de práticas
interpessoais e sociais constantes e que se assentam em variadas exigências, como, por
exemplo, a dignidade da pessoa humana.
Muitas conclusões podem ser extraídas do conceito que se propôs. Por dificuldades naturais, são esclarecidas apenas algumas. O princípio que se adota é kantiano, pois
se compreende que só as pessoas, como seres racionais dotados de vontade, existem,
por sua própria natureza, como um fim em si mesmas. Desse modo, os direitos fundamentais, como direitos da pessoa, são universais, antecedendo, desse modo, a qualquer
ordenamento do Estado. Esse fato, porém, não retira o reconhecimento da individualidade; pelo contrário, reforça a condição de ser insubstituível do homem e de toda a
sua espécie. Aliás, essa característica de universalidade dos direitos fundamentais foi
23
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Op. cit., p. 6.
24
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 6a ed., São Paulo: Malheiros, 1994, apud
THEODORO, Marcelo Antonio. Direitos fundamentais e sua concretização, ibidem, p. 30.
25
Ibidem, p. 67.
a eficácia dos direitos sociais fundamentais
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129
afirmada na Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada pela Assembleia
Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948.26
Outra conclusão é que os direitos fundamentais são resultado do movimento da
História. Realmente, não se concebe que possa qualquer outra força (inclusive estatal)
“criar” os direitos humanos fundamentais. É a “consciência ética coletiva”, já mencionada, que se expande, impondo o respeito a bens e valores reconhecidos pela comunidade como inalienáveis e irrenunciáveis, devido à afetação, na sua ausência, da dignidade
da condição do homem como pessoa que existe por si mesma, autonomamente.
Finalmente, embora se reconheça que a positivação dos direitos humanos imprima
segurança e programaticidade aos valores que expressa, não se pode admitir, sem divergir, que os direitos fundamentais são apenas aqueles reconhecidos pela ordem estatal.
Fábio Comparato apresenta razões seguras para rejeitar esse posicionamento positivista. Uma seria que nada impediria a inserção de falsos direitos humanos em textos
oficiais, quando, na verdade, tais “direitos fundamentais” não passariam de regramento
de privilégios de uma minoria dominante. Outra razão estaria na contestação à crítica
positivista de que, fora do Estado, não há direito, pois os direitos fundamentais possuem a característica justamente de valerem contra o Estado. Vale dizer, o Estado, num
ilogicismo flagrante, estabeleceria direitos contra o seu próprio poder, caso se aceitasse
tal ideia positivista. Por derradeira razão, se o Estado cria os direitos humanos, nada
impediria que esse Estado suprimisse ou, muitas vezes o que pode ser até pior, alterasse
o conteúdo desses direitos, tornando-os ineficazes ou irreconhecíveis.27
Como reforço, traz-se à baila o argumento de que a Constituição Federal de
1988, no seu artigo 60, § 4º, IV, veda qualquer deliberação sobre proposta de emenda
que realize a “abolição” dos direitos e garantias individuais. Mas, só para demonstrar
o risco de sustentar-se a ideia de inexistir direito fundamental fora do ordenamento
estatal, veja-se que o legislador usou o termo abolir, e não alterar que, como dito
acima, pode apresentar-se até mais nocivo do que abolir. Assim, a prevalecer a tese
de existirem direitos humanos somente sob a força criadora do Estado, correr-se-ia o
perigo de admitir-se modificação ou alteração na configuração de direitos reconhecidos constitucionalmente, esvaziando-os ou deformando-os e ocasionando, na prática,
uma reversão desses direitos com incalculáveis perdas à comunidade formada sob
a égide dos direitos humanos. Também, uma interpretação acanhada do dispositivo
mencionado, conduziria à desastrosa conclusão de que o constituinte não estabelecera limites à emenda concernente à abolição de direitos sociais. O que seria um
absurdo que poucos defenderiam.
Estabelecida essa compreensão dos direitos fundamentais, urge, agora, enfrentar
a segunda indagação formulada acima no início, respondendo, ao mesmo tempo, à pergunta: o que são direitos sociais?
26
Art. I: “Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e
consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade”.
27
Ibidem, pp. 58-59.
130
temas atuais de direito
À questão se os direitos sociais podem ser reputados como direitos fundamentais,
responde-se afirmativamente.
Segundo Alexy,28 os direitos sociais fundamentais são direitos a prestações em sentido estrito, ou seja, direitos do indivíduo frente ao Estado; direitos a prestações estatais.29
Alexy identifica, dentro das classes dos direitos sociais fundamentais, os direitos sociais
explicitamente estabelecidos e os direitos sociais interpretativamente atribuídos. Os primeiros, à evidência, seriam os direitos sociais fundamentais expressos em texto constitucional, ao passo que os segundos se constituiriam de normas que se encontram inseridas
às disposições de direito fundamental, por uma atribuição interpretativa.
Por sua vez, Bidart Campos afirma que os direitos sociais são inspirados no conceito de “liberdade para”, buscando satisfazer àquelas necessidades humanas que se
encontram fora do alcance dos recursos individuais de todos. Os direitos sociais deixariam de lado o individualismo liberal (marcado pelo conceito de “liberdade de”),
inclinando-se, dessa forma, à solidariedade social e ao desenvolvimento material,
econômico, social, cultural, político da comunidade.30 Os direitos sociais prendem-se,
portanto, à concepção do Estado social de direito, relacionando-se à ideia não mais de
um Poder Público distante da vida de seus membros (abstencionista), mas próximo e
atuante a eles, tendo em vista, sobretudo, a realização da dignidade do ser humano.
No que concerne à titularidade desses direitos, uma dificuldade frequentemente
apresentada pelos que negam atribuir aos direitos sociais a condição de direitos fundamentais repousa no fato de não poderem referidos direitos ser exigidos em juízo
(pretensão). Rebate-se essa crítica com o argumento de que, na realidade, não se deve
fazer confusão entre direito subjetivo e pretensão, pois o primeiro refere-se justamente ao aspecto central da titularidade, ao reconhecimento de que um bem ou interesse
encontra-se ligado a uma pessoa, pertence a ela. Enquanto que a segunda, a pretensão,
diz respeito ao poder jurídico conferido pelo ordenamento para que alguém possa assegurar o respeito àquele direito subjetivo. Daí, Fábio Comparato afirmar que o núcleo
28“Cuando se habla de derechos sociales fundamentales, por ejemplo, del derecho a la previsión, ao
trabajo, la vivienda y la educación, se hace primariamente referencia a derechos a prestaciones en
sentido estricto”. ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Op. cit., pp. 482-483.
29
Quando se fala em prestação estatal é bom que se tenha em mente que Jellinek desenvolveu a Teoria
dos Quatro Status (posição do cidadão como resultado de sua qualidade de membro do Estado): Status
passivo (campo das sujeições do indivíduo ao Estado, o dever, as obrigações); status negativo (esfera
de liberdade, o cidadão como ser livre); status positivo (poder do indivíduo de exigir prestações do
Estado, um fazer ou não-fazer) status ativo (direitos de participação, competência para participar do
Estado). In: FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Estudos de filosofia do direito. São Paulo: Atlas,
2003, pp. 109-111. No mesmo sentido, THEODORO, Marcelo Antonio. Op. cit., pp. 31-32.
30“Esta segunda generación de derechos, más difíciles que los civiles para adquirir vigencia sociológica, porque normalmente requieren prestaciones positivas (de dar o de hacer) por parte de los
sujetos pasivos, se inspira en el concepto de libertad positiva o libertad ‘para’, conjuga la igualdad
con la libertad (...) presta atención a la solidaridad social, propende al desarrollo (...)”. BIDART
CAMPOS, Germán J. Teoría general de los derechos humanos. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 1989, pp. 196-197.
a eficácia dos direitos sociais fundamentais
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131
essencial dos direitos subjetivos não está na garantia de sua realização forçada com
o concurso dos órgãos do Estado – Judiciário, a Força Pública –, mas sim na devida
atribuição a cada qual dos bens da vida que lhe pertencem.31 Logo, a insuficiência ou
até mesmo a completa ausência de instrumentos jurídicos garantidores à realização
dos direitos subjetivos não deve representar um freio à aceitação dos direitos sociais
como direitos fundamentais, mas, antes, deve revestir-se de estímulo aos poderes
públicos, em todas as esferas, para que promovam ações exigidas à efetividade desses direitos. No que compete ao Judiciário, as ações podem ir desde uma sistemática
interpretação que concretize, em situações específicas, as normas definidoras dos
direitos sociais, até chegar-se a um controle amplo das políticas governamentais,
indispensáveis à caracterização de um sistema eficaz de garantias que favoreça a
realização da justiça social.32
A título de exemplo, veja-se o direito à moradia. Consagrado como direito social
fundamental, por meio da emenda constitucional nº 26, de 14 de fevereiro de 2000, não
havia reconhecimento, na Lei Fundamental, dessa categoria jurídica, até antes da alteração do texto da Constituição. Agora, será que tal direito fundamental somente passou
a existir após a edição da Emenda? É evidente que não. Para se ter uma noção de como
os direitos fundamentais preexistem à positivação constitucional de um Estado, basta
verificar que desde 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU) consagrava o direito à habitação, no art. XXV. Portanto, nada impedia o reconhecimento
doutrinário e judicial do direito social humano à moradia, antes mesmo de ser incorporado no elenco do art. 6º da Constituição brasileira. E mais. Por possuírem a natureza
de direitos fundamentais, os direitos sociais apresentam-se como poderes de exigir do
Estado uma prestação concreta. Para alcançar essa efetividade (“prestação concreta”),
contudo, é mister que os direitos sociais fundamentais estejam com seu conteúdo definido, seus limites e destinatários especificados, a fim de que possa o Estado cumprir
a obrigação que lhe é imposta. Não é suficiente o reconhecimento de um determinado direito fundamental, impõe-se, sobretudo, o esforço de torná-lo concreto, efetivo,
realizá-lo na comunidade de pessoas.
2. A EFICÁCIA DOS DIREITOS SOCIAIS
A Constituição Federal de 1988 impõe, no art. 5º, § 1º, a regra da aplicabilidade
imediata das normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais. Logo, em princípio, todo e qualquer direito fundamental goza de uma presunção de eficácia direta e
imediata. Porém, a realidade constitucional tem revelado a falsidade dessa premissa, na
31
COMPARATO, Fábio Konder. Op. cit. p. 336.
32
Nesse sentido, RAIOL, Ivanilson Paulo Corrêa. O controle de constitucionalidade das políticas públicas. Boletim Informativo do Centro de Apoio Operacional Constitucional do Ministério Público
do Pará, Belém, v. 1, nº 1, pp. 25-49, ago. 2005.
132
temas atuais de direito
medida em que, diante de certas normas constantes do texto da Constituição, assiste-se
a uma frustração de não-executoriedade normativa.
Por essa razão, Manoel Gonçalves Ferreira Filho, advoga a posição de que nem
toda norma de direito fundamental tem aplicação imediata, pois só seriam auto-executáveis quando fossem completas, ou seja, quando a condição de seu mandamento não
possui lacuna, e quando esse mandamento é claro e determinado. Do contrário ela é
não-executável pela natureza das coisas.33
Com todo o respeito e admiração que merece o professor Ferreira Filho, não se
pode concordar que a Constituição imponha, sem excepcionar, uma regra de aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais para, em seguida, reconhecer-se a não-executividade de certas normas referentes aos mesmos direitos!
Parece mais palatável, diante disso, o entendimento do constitucionalista José
Afonso da Silva quando dividiu em três grupos as normas constitucionais, quanto à sua
eficácia: normas constitucionais de eficácia plena, normas constitucionais de eficácia
contida e normas constitucionais de eficácia limitada.34 Impondo-se, assim, que toda
norma constitucional é sempre executável, variando apenas os seus efeitos.
As normas constitucionais de eficácia plena produzem seus efeitos desde sua entrada em vigor, enquanto as de eficácia contida, embora produzindo seus efeitos desde
a entrada em vigor, têm alguns desses efeitos limitados pelo legislador, diante de determinadas circunstâncias, ao passo que as normas de eficácia limitada são aquelas que,
mesmo estando em vigor, não produzem todos os efeitos essenciais, necessitando de
integração por parte do Executivo, do Legislativo e do Judiciário.
Assim, quando inseridos na categoria de normas constitucionais de eficácia limitada ou reduzida, os direitos fundamentais podem receber a força vinculante por intermédio da interpretação do texto constitucional promovida pelos órgãos jurisdicionais,
caso os demais poderes deixem de cumprir ou realizar os preceitos normativos que
padeçam de indeterminação ou lacuna.
Trazendo a discussão para o campo dos direitos sociais fundamentais, urge reconhecer que não vigoram maiores dificuldades no reconhecimento de que, sendo
opostos contra o Estado, a eficácia dos direitos sociais se daria na relação cidadão
e Estado, limitando e vinculando a prestações positivas ou negativas os Poderes
Públicos. Nesse sentido, a Constituição reconhece, por exemplo, a saúde como “dever do Estado” (art. 196), a educação, também (art. 205), e o lazer da mesma forma
(art. 217). Portanto, desde os primeiros documentos de positivação dos direitos sociais fundamentais, já expostos anteriormente, houve uma preocupação em destacar
que a concretização dos direitos sociais demandava uma ação estatal em três sentidos: atendendo diretamente às exigências de satisfação desses direitos; facilitando
33
Ibidem, p. 102.
34
SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 3ª ed. São Paulo: Malheiros,
1998, p. 83.
a eficácia dos direitos sociais fundamentais
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133
as ações dos próprios titulares dos direitos na busca pelo atendimento dos direitos
fundamentais e protegendo ativamente os direitos fundamentais de qualquer violação
ou ameaça de terceiros.
Nessa mesma linha, Bolzan de Morais entende que a eficácia dos direitos humanos, em especial os sociais e os de solidariedade, deve ser realizada tanto na perspectiva do Estado quanto na da sociedade. A concretização pelo Estado levaria em
conta não apenas o reconhecimento legislativo, mas a “atuação promotora” dos direitos
fundamentais; é necessário, desse modo, que se rompam as amarras do formalismo
normativo que apresenta os direitos humanos como meros ornamentos, convenientes
à legitimação da ordem estatal, para assegurar-se uma efetiva implementação dos conteúdos desses direitos. Ainda, levar-se-ia em consideração a atuação jurisdicional ampliada, no sentido de prática jurídica comprometida, de maneira a comprometer todos
os que atuam com o direito a uma atitude positiva na concretização dos conteúdos dos
direitos fundamentais.
Por sua vez, a concretização pela sociedade seria aquela relacionada às estratégias utilizadas pelos atores sociais para fruição dos direitos humanos, o que se
realizaria em duas vias: por intermédio de pretensões dirigidas à autoridade pública
estatal em que se projetariam legítimas pressões sobre os Poderes Públicos para a
prática dos conteúdos dos direitos fundamentais; e por meio de um processo de autonomização social, quando aqueles mesmos atores sociais apropriar-se-iam coletivamente das incumbências indispensáveis ao gozo dos conteúdos dos direitos humanos.
Ou seja, a aquisição de consciência coletiva à superação dos obstáculos à vivência
dos direitos fundamentais.35
Em suma, uma prática nesses moldes corresponde à aproximação das ideias
de Konrad Hesse, quando propõe uma análise conjugada entre norma e realidade.
De um lado, entender que a eficácia normativa depende das condições históricas
(naturais, técnicas, econômicas e sociais) existentes na realidade, mas, por outro
lado, compreender que a própria Constituição possui uma pretensão de eficácia autônoma, procurando imprimir (normatividade ou força normativa da Constituição)
ordem e conformação à realidade. Vale dizer, realidade e norma constitucional
influenciam-se mutuamente numa relação de interdependência, sem, contudo,
confundirem-se.36
Portanto, buscar na Constituição a sua força normativa significa despertar as forças que foram consagradas pelas condições históricas no texto constitucional, tornando-o sempre atual e adaptado à realidade imperante. Contudo, para alcançar-se essa
situação ideal de força vinculante (força ativa) da Constituição, impõe-se a presença
35
MORAIS, José Luis Bolzan de. As crises do Estado e da constituição e a transformação espacial
dos direitos humanos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, pp. 74-78.
36
HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Tradução Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1991, pp. 13-22.
134
temas atuais de direito
na consciência geral (e aqui está a convergência com a proposta exposta acima por
Bolzan de Morais, em suas duas perspectivas de realização dos direitos humanos) tanto
da vontade de poder quanto da vontade de Constituição.37
BIBLIOGRAFIA
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MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Cartas filosóficas e o manifesto comunista de 1848.
São Paulo: Editora Moraes, 1987.
MORAIS, José Luis Bolzan de. As crises do Estado e da Constituição e a transformação espacial dos direitos humanos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002.
37
HESSE ensina que a vontade de Constituição origina-se de três vertentes diferentes: a compreensão da
necessidade e valor de uma ordem normativa inquebrantável, protetora do Estado; a percepção de que
essa ordem normativa encontra-se em permanente processo de legitimação e, finalmente, a consciência
de que a ordem normativa só é eficaz com o concurso da vontade humana. Idem, pp. 19-20.
a eficácia dos direitos sociais fundamentais
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135
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SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2004.
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Malheiros, 1998.
THEODORO, Marcelo Antonio. Direitos fundamentais e sua concretização. Curitiba:
Juruá, 2003.
10
LINEAMENTOS DA TÉCNICA DA PONDERAÇÃO
NO PROCESSO DO TRABALHO
Marcelo Freire Sampaio Costa
RESUMO: O presente trabalho objetiva estudar a técnica da ponderação no processo do
trabalho, considerando a pouca evolução científica desse ramo jurídico nesse tema, bem como
o cotidiano desafio jurisdicional de serem enfrentadas demandas cada vez mais complexas,
chamados casos difíceis (hard cases) ou duvidosos. Além de enfrentar a posição da jurisdição
quanto ao tema, principalmente pelo Tribunal Superior do Trabalho, busca apresentar pressupostos, conceitos, fases de construção dessa técnica, além de parâmetros gerais e um chamado
de “específico” e “prefencial”, qual seja, a prevalência da dinidade da pessoa humana.
Palavras-chave: ponderação; processo do trabalho; parâmetros; dignidade humana.
ABSTRACT: The present study aims to study the technique of balancing in the labor process,
considering the lack of scientific legal branch as well as the daily challenge of being faced
demands increasingly complex, called hard cases (hard cases) or doubtful. Besides enjoying
the position of the brasilian courts on the subject, mainly by the Superior Labor Court, seeks
to present assumptions, concepts, construction phases of this technique, in addition to general
parameters and one called “specific” and “prefencial”, ie, the prevalence of human dignity.
Keywords: balancing; process; parameters; prevalence; human dignity
SUMÁRIO: 1. Justificativa; 2. Aspectos introdutórios; 3. Pressupostos da ponderação; 4. Conceito da ponderação; 5. Critérios materiais e fases da ponderação; 5.1. Parâmetros gerais à
ponderação; 5.2. Parâmetro específico e preferencial à ponderação no processo do trabalho.
Prevalência da dignidade do hipossuficiente; 6. Conclusão.
1. JUSTIFICATIVA
O presente estudo tem por objetivo discutir aspectos da técnica da ponderação no processo do trabalho, usada como mecanismo de suporte à solução de casos
concretos.1
1
Como destaca José João Abrantes, o juízo de ponderação somente há de ser feito “em concreto”. In
Contrato de trabalho e direitos fundamentais. Portugal: Coimbra editora. 2005. p. 199.
138
temas atuais de direito
Inobstante a evolução desse assunto nos ramos jurídicos científicos, notadamente
no constitucional,2 na doutrina3 e tribunais laborais regionais pátrios, inclusive no âmbito
do Tribunal Superior do Trabalho, ainda há muito a ser feito, daí a justificativa do presente.
Óbvio que a vastidão desse assunto não suportaria os limites aqui impostos, daí ter
se escolhido usar a expressão “lineamentos” para destacar que serão apreciados apenas
alguns aspectos desse apaixonante tema.
Como destacado, a realidade dos tribunais pátrios, inclusive dos laborais, mostra
cotidianamente o desafio de serem enfrentadas demandas cada vez mais complexas, os
chamados casos difíceis (hard cases) ou duvidosos4, exigindo trabalho mais árduo e
intrincado do operador do direito, pois envolve usualmente conflitos princiológicos5 de
idêntica hierarquia contrapostos, sendo a aplicação dessa técnica de fundamental importância ao desenlace dessas demandas, principalmente à construção de argumentação
jurídica racional apta a conduzir o trabalho do intérprete.
2. ASPECTOS INTRODUTÓRIOS
Deve-se partir pelas premissas da força deontológica ou normativa dos princípios,
isto é, trata-se de modalidade de norma também dotada de coercitividade suficiente
para solução de conflito jurisdicionalizado, bem como da correção da chamada distinção qualitativa6 entre normas-regras e normas-princípios.
Tal distinção significa que os princípios, inobstante serem também dotados de
força normativa, possuem dimensão de peso ausente nas conhecidas normas-regras.
Isto faz com que, usualmente, na resolução dos chamados casos difíceis (hard cases)
ou duvidosos envolvendo conflitos entre princípios, há de se utilizar o juízo de ponderação, técnica distinta da chamada subsunção7 – premissa fática menor sobre premissa
normativa maior, igual a solução mecânica-subsuntiva de os conflitos.
2
3
4
5
6
7
Para maior aprofundamento, vide, dentre outros trabalhos, os seguintes: BARCELLOS, Ana Paula
de. Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005; BRANCO,
Paulo Gustavo Gonet. Juízo de ponderação na jurisdição constitucional. São Paulo: Saraiva. 2009;
PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação constitucional e direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Renovar. 2006.
Sobre esse assunto já tivemos a oportunidade de publicar COSTA, Marcelo Freire Sampaio Costa.
Eficácia dos direitos fundamentais entre particulares: juízo de ponderação no processo do trabalho.
São Paulo: LTr, 2010.
Nesse mesmo sentido, cf. ALEXY, Robert. Conceito de validade do direito (tradução Gercélia Batista de Oliveira Mendes). São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009. p. 89.
Neste sentido vide ensinamento de Robert Alexy: “Um critério para averiguar se o juiz apoia-se
em princípios é saber se ele procede a uma ponderação. Aplica-se o seguinte teorema: quando uma
pessoa procede a uma ponderação, ela se apóia necessariamente em princípios”. Op. cit., p. 87.
Cf. com mais vagar sobre esse assunto DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo:
Martins Fontes. 2007; ALEXY, Robert. Op. cit.
Juarez Freitas, em obra de consulta obrigatória, salienta que o intérprete não é mero “descobridor
ou revelador de significados” preexistente, mas atua na condição de “conformador prescritivo” e
partícipe estruturador” do objeto interpretado. In A interpretação sistemática do direito. 4ª ed. São
lineamentos da técnica da ponderação ...
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Nesse eito, a técnica da ponderação vem sendo desenvolvida nesse caldeirão de
pensamento em que é necessário o desenrolar de um raciocínio mais enredado, diferente do dito mecanismo de subsunção clássico8, quando não se mostrar possível a redução de um conflito normativo em apenas uma premissa maior, pelo fato de haverem
diversas premissas maiores (princípios e regras) igualmente válidas e vigentes, porém
colidentes. A finalidade dessa técnica será alcançar solução justificada de um conflito
jurisdicional usualmente menos óbvio, homenagendo-se, devidamente, a fundamentação reclamada pelo art. 93, IX, da Carta Maior de 1988 .
Não se pode olvidar, também, como já salientado, que esse cenário de ponderação
de interesses exige da jurisdição um papel de maior protagonismo9 (não significando a
mesma coisa que ativismo ou decisionismo judicial10), pois não se está tratando da mera
aplicação subsuntiva (ou mero encaixe) dos fatos a lei, daí a necessidade de serem criados
balizamentos de racionalidade capazes de justificarem e legitimarem a decisão exarada.
3. PRESSUPOSTOS DA PONDERAÇÃO
Apontam-se quatro pressupostos11 à ocorrência da técnica da ponderação: i) pluralidade de direitos, igualmente válidos; ii) impossibilidade de o exercício simultâneo
e completo desses direitos; iii) enunciados normativos,12 usualmente da modalidade
principiológica, abstratamente válidos e a priori colidentes; iv) necessidade de solução
de casos difíceis ou duvidosos.
Paulo: Malheiros, 2004. p. 66. Também Ronald Dworkin, trabalha, com maestria, as deficiências de
o modelo de interpretação mecânica do direito e a necessidade da compreensão das afirmações jurídicas como “opiniões interpretativas”, combinando elementos que se voltam “tanto para o passado
quanto para o futuro”, ao longo de quase cinco centenas de páginas. In O império do direito. São
Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 272.
8
Nesse mesmo sentido, BARROSO, Luís Roberto e BARCELLOS, Ana Paula de. O começo da história. A nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. In BARROSO, Luís Roberto (org.). A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e
relações privadas. 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar. 2008. p. 345.
9
“No hay ninguna duda de que em la aplicación de los princípios, el juez assume um papel más protagonistao creativo que en la mera subsunción de normas o reglas, función que consigue dotarse de
más intensos contenidos cuando se defiende que, em determinadas circunstancias, cualquier norma
sea aplicada bajo la técnica de los princípios”. In ORMAETXEA, Edurne Terradillos. Principio de
proporcionalidad , constitucíon y derecho laboral. Valencia: Tirant lo blanch. 2004. p. 48.
10
Sobre esse assunto, vide interessante e instigante crítica em STRECK, Lenio Streck. O que é isto.
Decido conforme minha consciência?. 3ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2012.
11
Argumento inspirado em SEQUEIRA, Elza Vaz. Dos pressupostos da colisão de direitos no direito
civil. Lisboa: Universidade Católica, 2004. pp. 15-17.
12
Enunciado normativo ou texto é o sinal linguístico. A norma é a revelação, pelo intérprete, do texto
linguístico. Cf., com maior profundidade, GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 2ª ed. São Paulo: Malheiros. 2003.
140
temas atuais de direito
A presença simultânea de uma pluralidade de direitos, inicialmente consubstanciado por normas válidas e a priori colidentes, pressupõe a necessidade de serem buscados mecanismos de limitações recíprocas, visando a alcançar “os limites a que estão
sujeitos os exercícios desses respectivos direitos”.13
A ponderação, portanto, pressupõe a existência de enunciados normativos abstratamente válidos e colidentes, motivo pelo qual resulta uma operação que inicialmente
identifica e depois se restringe o conteúdo, na medida do caso concreto, de um ou alguns desses preceitos normativos.
4. CONCEITO DE PONDERAÇÃO
O verbo ponderar, fora do discurso jurídico, significa: “1. Examinar com atenção e minúcia; pesar. 2. Ter em consideração. 3. Meditar. 4. Dizer em defesa de
uma opinião”.14
Portanto, toda decisão racional envolve algum tipo de exercício de ponderação. Avalia-se a vantagem ou desvantagem em se adotar um determinado comportamento em desfavor de outro. Tal exercício acompanha o ser humano, nas mais
diversas situações, ao longo de toda sua existência. Como no dito popular: “a vida
é feita de escolhas...”.
No discurso jurídico pode-se tentar conceituar o exercício da ponderação
como a técnica de solução de conflitos normativos que envolve usualmente casos
difíceis ou duvidosos, conflito este insuperável pelas formas hermenêuticas tradicionais, isto é, pela estrutura geral da simplificada e mecânica técnica da subsunção15 (premissa maior, texto legal, a incidir sobre a premissa menor, repositório
fático da contenda).
Nesses chamados casos difíceis ou duvidosos convivem, buscando aplicação,
enunciados normativos igualmente válidos (normas-regras e normas-princípios), de
hierarquia idêntica ou distinta, motivo pelo qual o mecanismo clássico da subsunção
mostra-se insuficiente para firmar uma posição capaz de aquilatar os elementos nor-
13
SEQUEIRA, Elza Vaz. Op. cit., p. 15.
14
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Minidicionário da língua portuguesa. 6ª ed. Curitiba:
Posigraf, 2004. p. 641.
15
Carlos Roberto Husek define ponderação como um “instrumento para aplicação dos princípios (uma
técnica de decisão judicial). Ponderar significa uma difícil e complexa atividade mental de sentimentos em torno do que é razoável, visando a alcançar com essa razoabilidade o objetivo que se propôs
a norma”. Idéias para uma interpretação do Art. 114 da Constituição Federal. In COUTINHO, Grijalbo e FAVA, Marcos Neves (orgs.). Justiça do trabalho: competência ampliada. São Paulo: LTr,
2005. p. 51. Conceito similar também é constatado em Ana Paula de Barcellos. Vejamos: “De forma
muito geral, a ponderação pode ser descrita como uma técnica de decisão própria para casos difíceis,
em relação aos quais o raciocínio tradicional da subsunção não é adequado”. In Alguns parâmetros
normativos para a ponderação constitucional. BARROSO, Luís Roberto (org.). A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. 3ª ed. Rio de Janeiro:
Renovar. 2008. p. 55.
lineamentos da técnica da ponderação ...
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mativos em choque. A lógica da subsunção tentaria “isolar uma única norma para o
caso”,16 o que neste cenário seria inadequado.
Nesses conflitos há razões opostas que, individualmente tomadas, constituiriam
bons argumentos para uma determinada deliberação, e só não levam de imediato a uma
decisão definitiva porque também existem outras boas razões conduzindo para um outro caminho distinto daquele inicialmente pensado.
Muito importante registrar que o mecanismo da ponderação não pode mais ser
considerado apenas método privativo de princípios17 – apesar de mais recorrente nessas
hipóteses, mas verdadeira técnica de decisão jurídica autônoma,18 aplicada também em
ambientes diversos daqueles relacionados aos conflitos principiológicos,19 tais como a
ocorrência de colisão entre hipóteses normativas de moldura mais objetiva, admitindo-se a solução desse conflito por intermédio da atribuição de um peso maior a determinada regra colidente com outra, inclusive sem que esta de menor peso, à semelhança dos
conflitos principiológicos, perca sua validade.20 Apenas preponderará no caso concreto.
Aliás, foi exatamente o que pareceu reconhecer emérito positivista, Herbert Hart, em
capítulo de livro, que foi chamado por ele de “pós-escrito”, elaborado para refutar críticas
dirigidas contra ele principalmente por Ronald Dworkin, em trecho a seguir transcrito:
Não vejo motivos para aceitar seja esse violento contraste entre os princípios e as normas jurídicas, seja a opinião segundo a qual, se uma norma válida for aplicável a determinado caso,
ela deverá, ao contrário de um princípio, determinar invariavelmente o desenlace da causa.
Não há razão alguma pelo qual um sistema jurídico não possa reconhecer que uma norma
válida define um resultado nos casos aos quais se aplica, exceto quando outra norma, julgada
mais importante, for também aplicável ao mesmo caso. Assim, uma norma, vencida num determinado caso ao conflitar com outra mais importante, pode, como um princípio, sobreviver
e continuar vigente, de modo que determine o desenlace em outros casos onde for considerada
mais importante que outra norma concorrente.21
16
BARCELLOS, Ana Paula de. Op. cit., p. 55.
17
Cf. trabalho anterior, COSTA, Marcelo Freire Sampaio Costa. Eficácia dos direitos fundamentais
nas relações entre particulares: juízo de ponderação no processo do trabalho, cit.
18
Veja trecho de Humberto Ávila: “Com efeito, a ponderação não é método privativo de aplicação
dos princípios. A ponderação ou balanceamento (weighing and balancing, Abwägung), enquanto
sopesamento de razões e contra-razões que culmina com a decisão de interpretação, também pode
estar presente no caso de dispositivos hipoteticamente formulados, cuja aplicação é preliminarmente
havida como automática (no caso de regras)...”. In: ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da
definição à aplicação dos princípios jurídicos. 11ª ed. São Paulo: Malheiros Ed., 2010. p. 44. Nesse
sentido, também, BARCELLOS, Ana Paula de. Alguns parâmetros normativos para a ponderação
constitucional, cit., p. 56.
19
Essa posição vinculadora da ponderação unicamente aos conflitos principiológicos sobeja no Tribunal Superior do Trabalho. Dentre dezenas de precedentes, temos o Proc. TST-RR-5500-35.2007.5.08.0008. 7. Turma. Rel. Min. Kátia Magalhães Arruda. DEJT. 10/12/2010 e Proc.
TST-RR-24700-97.2005.5.09.0322. 8. Turma. Rel. Min. Dora Maria da Costa. DEJT. 24/112010.
20
Posição sustentada por ÁVILA Humberto. Op. cit., p. 44.
21
HART, Herbert L. A. O conceito de direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009. pp. 337-338.
142
temas atuais de direito
Para esse tema, ressalte-se a importância de se consolidar a ponderação por intermédio da construção de critérios materiais,22 evitando-se estruturar tal técnica apenas e
tão somente por meio dos postulados,23 de infindáveis e tortuosos caminhos, da razoabilidade e proporcionalidade,24 pois assim pouco se caminhará para evitar arbitrariedades e decisionismos.
Assim, mesmo sendo um caso difícil ou duvidoso em que o raciocínio da mera
subsunção não consiga suprir a exigência de fundamentação das decisões jurisdicionais
(art. 93, IX, da CF/88), será necessária a busca de ótima argumentação para alcançar a
resposta mais bem justificada25 ou “hermeneuticamente adequada”26 pelo julgador, por
intermédio da aplicação de critérios racionais,27 autorizadores da conclusão alcançada,28
dada “sempre e somente na situação concreta”.29 E a técnica da ponderação, com os
critérios justificadores que serão apresentados, mostra-se uma importante ferramenta à
busca desse resultado.
A jurisprudência do TST não vem seguindo esse rumo, pois recorre à técnica ponderativa sem a devida construção dos citados critérios justificadores, e acaba por abrir
caminho para decisionismos.30
22
Exatamente como pretendem fazer, dentre outros: BARCELLOS, Ana Paula de. Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional, cit.; STEINMETZ. Wilson Antônio. Colisão de direitos fundamentais e o princípio da proporcionalidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2001.
23
“Os postulados funcionam diferentemente dos princípios e das regras. A uma, porque não se situam
no mesmo nível: os princípios e as regras são objeto de aplicação; os postulados são normas que
orientam a aplicação de outras. A duas, porque não possuem os mesmos destinatários: os princípios
e as regras são primariamente dirigidos ao Poder Público e aos contribuintes; os postulados são
frontalmente dirigidos ao intérprete e ao aplicador do direito. A três, porque não se relacionam da
mesma forma com outras normas: os princípios e as regras, até porque se situam no mesmo nível
do objeto, implicam-se reciprocamente, quer do modo preliminarmente complementar (princípios),
quer do modo preliminarmente decisivo (regras); os postulados, justamente porque se situam num
metanível, orientam a aplicação dos princípios e das regras sem conflituosidade necessária com
outras normas.” ÁVILA, Humberto. Op. cit., p. 124.
24
Nesse mesmo sentido ÁVILA, Humberto. Op. cit., p. 86.
25
AARNIO, Aulis. Sobre la justificación de las decisiones jurídicas:las tesis de la única respuesta
correcta y el principio regulativo del razonamiento jurídico. Madrid: Doxa, 1990, nº 8, p. 437.
26
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. Rio de
Janeiro: Lumen Juris. 2006, p. 183.
27
Nesse mesmo sentido, PADILHA, Norma Sueli. Colisão de direitos metaindividuais e a decisão
judicial. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 2006. p. 90.
28
Ao contrário de Ronald Dworkin que acredita na possibilidade da existência de uma única resposta
correta à solução de os chamados casos difíceis, acompanha-se pensamento de Robert Alexy acerca
da necessidade de se buscar tal resposta correta, “independentemente da existência a priori dela”.
In: ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais, cit., p. 599.
29
STRECK, Lenio Luiz. Op. cit., p. 210.
30
Cf. exemplo: “Considerando-se o ora decidido, cujo entendimento tem respaldo também na Constituição Federal, não há que se falar em violação dos artigos constitucionais explicitados pelo recor-
lineamentos da técnica da ponderação ...
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marcelo freire sampaio costa
143
5. CRITÉRIOS MATERIAIS E FASES DA PONDERAÇÃO
Consoante destacado anteriormente, pouco relevância terá para a solução de conflitos considerados difíceis a mera vinculação superficial e sem justificação da ponderação, como vem fazendo a jurisprudência, aos chamados princípios ou postulados31
da proporcionalidade e razoabilidade, porque a idéia geral de ponderação, despida de
critério formal, será “muita mais ampla”32 que os próprios postulados citados.
Humberto Ávila constrói muito bem a ponderação estruturada em fases, nos seguintes termos:
“A primeira delas é a preparação da ponderação (...). Nessa fase devem ser analisados todos
os elementos e argumentos, o mais exaustivamente possível. (...)
A segunda etapa é a da realização da ponderação (...), em que se vai fundamentar a relação
estabelecida entre os elementos objetos de sopesamento. No caso da ponderação de princípios, essa deve indicar a relação de primazia entre um e outro.
A terceira etapa é a reconstrução da ponderação (...), mediante a formulação de regras de
relação, inclusive a primazia entre os elementos objetos do sopesamento, com a pretensão de
validade para além do caso.”33
Ana Paula de Barcellos concebe a aplicação da ponderação também como um
processo composto em três etapas sucessivas.34 Veja-se resumo formulado pela autora
sobre as duas primeiras etapas, verbis:
“Na primeira delas, caberá ao intérprete identificar todos os enunciados normativos que aparentemente se encontram em conflito ou tensão e agrupá-los em função da solução normativa
que sugerem para o caso concreto. A segunda etapa ocupa-se de apurar os aspectos de fatos
relevantes e sua repercussão sobre as diferentes soluções indicadas pelos grupos formados na
etapa anterior”.35
A terceira etapa, após a identificação de elementos normativos e fáticos que compõe a moldura da lide, refere-se à fase da decisão. Neste momento são examinados
conjuntamente as hipóteses normativas conflitantes e o natural encaixe fático nessas
molduras legais, além de serem apurados os “pesos que devem ser atribuídos aos diver-
rente, porquanto na antinomia entre normas constitucionais adota-se o princípio da proporcionalidade, ou seja, na ponderação de interesses entre os direitos fundamentais envolvidos, dá-se maior
preponderância para um deles, sem que o outro seja excluído”. Tribunal Superior do Trabalho. 6ª
Turma. Proc. TST AIRR 42/2006. Rel. Ministro Maurício Godinho Delgado. DJ. 04.09.2009.
31
Cf. ÁVILA, Humberto. Op. cit., pp. 79-82.
32
ÁVILA, Humberto. Op. cit., p. 87.
33
ÁVILA, Humberto. Op. cit., pp. 87-88.
34
BARCELLOS, Ana Paula de. Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional, cit., pp. 91-146.
35
BARCELLOS, Ana Paula de. Op. cit., p. 92.
144
temas atuais de direito
sos elementos em disputa”.36 Após a atribuição desses pesos, chega-se ao momento de
definir a possibilidade de serem conciliados os diferentes elementos normativos conflitantes e qual dele(s) deverá preponderar, e, via de consequência, qual será “a norma
que dará solução ao caso”.37
As duas posições doutrinárias citadas constroem fases necessárias à construção da
técnica da ponderação. Estas podem ser resumidas da seguinte maneira:
1. preparação à ponderação: neste momento inicial são destacados os elementos normativos
e fáticos que compõe a moldura de o conflito posto;
2. construção da ponderação: nesta etapa são apurados os aspectos fáticos relevantes e sua
repercussão sobre as diversas e possíveis soluções indicadas, de acordo com cada encaixe
possível das hipóteses normativas aos fatos descobertos na fase anterior;
3. decisão: neste momento serão selecionados os pesos a serem atribuídos a cada uma das soluções normativas possíveis, conferindo preponderância de uma hipótese normativa ou grupo
delas sobre outra(s) com aquela(s) colidente.
Essas fases apontadas são certamente úteis à condução e composição de raciocínio
apto a ordenar a ponderação necessária à solução de um dado caso concreto, contudo,
conveniente também a construção de verdadeiros parâmetros gerais e específicos,38 aptos a servirem de norte justificador ao desfecho dos conflitos processuais.
5.1. Parâmetros gerais à ponderação
Apontam-se dois parâmetros jurídicos gerais39 a incidirem em todo e qualquer
exercício de ponderação: a) pretensão de racionalidade40 do discurso jurídico; b) concordância prática das hipóteses normativas em tensão.
O primeiro refere-se à necessidade do desenvolvimento de argumentação jurídica
possuir racionalidade41 e legitimidade capaz de ser compreendida imediatamente pelos
partícipes do litígio em questão, e, também, mediatamente pelo entorno social.
O irrefragável reconhecimento da importância da técnica ponderativa não significa a formação de “um campo livre para convicções morais e subjetivas dos aplicadores do direito”,42 pois há de se buscar, por intermédio da edificação de balizamentos
determinados, como se vem pretendendo fazer ao longo do presente, a “objetivação
36
BARCELLOS, Ana Paula de. Op. cit., p. 123.
37
BARCELLOS, Ana Paula de. Op. cit., p. 124.
38
Nesse sentido vide BARCELLOS, Ana Paula de. Op. cit., p. 125.
39
Os parâmetros foram inspirados em BARCELLOS, Ana Paula de. Op. cit., pp. 125-146.
40
BARCELLOS, Ana Paula de prefere chamar de “pretensão de universalidade”. Op. cit., p. 125.
41
“O juiz deve atuar sem arbitrariedade; sua decisão deve ser fundamentada em uma argumentação
racional”. In ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica (tradução Zilda Hutchinson Schild
Silva), cit., p. 53.
42
ALEXY, Robert. Op. cit., p. 40.
lineamentos da técnica da ponderação ...
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marcelo freire sampaio costa
145
dessas valorações”,43 com o fito de justificar e legitimar a argumentação construída, até
porque, como já firmado anteriormente, é preceito constitucional a necessidade de as
decisões jurisdicionais serem devidamente fundamentadas (art. 93, IX).
O segundo diz acerca da concordância prática das hipóteses normativas e fáticas
em tensão, ou seja, a harmonização recíproca dessas categorias “de modo que nenhum
deles tenha sua incidência totalmente excluída na hipótese”.44
A concordância prática, utilizando-se dos elementos clássicos e modernos da hermenêutica jurídica, levará o intérprete à escolha da solução que produza o melhor equilíbrio possível, impondo a menor quantidade de restrição à maior parte dos elementos
normativos e fáticos em discussão.
Sobre a chamada concordância prática no processo do trabalho, não se pode deixar de transcrever trecho elucidativo de doutrina lusitana, senão veja-se:
“Tendo em vista a correcta delimitação dos direitos em conflito, de forma a assegurar a concordância prática entre todos eles, a ordem jurídica apenas admite limitações aos direitos
fundamentais do trabalhador desde que se mostrem justificadas por critérios de proporcionalidade, numa tripla dimensão de estrita necessidade (de salvaguarda da correcta execução do
contrato), de adequação (entre o objectivo a alcançar com a limitação e o nível desta) e de
proibição do excesso (devendo a restrição ser a menor possível, em função da finalidade a ser
alcançada com a sua imposição”.45
O próximo passo será a construção de parâmetro específico a incidir nos conflitos
laborais.
5.2. Parâmetro específico e preferencial à ponderação no processo do
trabalho. Prevalência da dignidade do hipossuficiente
A finalidade de os parâmetros gerais citados anteriormente e do específico que
será apontado ao longo desta é bem singela: funcionam como instrumentos capazes de
controlar as ilimitadas possibilidades de exercício da ponderação, bem como conferem
elementos de verificação da racionalidade do discurso jurídico.
Cabe uma explicação acerca da nomenclatura utilizada. Diz-se “parâmetro preferencial” porque não são construídos elementos rígidos e imutáveis à solução dessas demandas que fogem da obviedade, além de a possibilidade desse marco interpretativo
poder ser afastado pelo intérprete desde que demonstre reforçada motivação46 para tanto.
Diz-se “parâmetro específico” porque tal baliza servirá unicamente à solução dos
conflitos jurisdicionais havidos em sítio processual laboral. Já a nomenclatura “preferencial” justifica-se porque não são construídos elementos rígidos e imutáveis à solução
43Idem.
44
BARCELLOS, Ana Paula de. Op. cit., p. 133.
45
ABRANTES, José João. Op. cit., p. 198.
46
BARCELLOS, Ana Paula de. Op. cit., p. 1162.
146
temas atuais de direito
dessas demandas que fogem da obviedade, além de a possibilidade desse marco poder
ser afastado pelo intérprete, desde que demonstre reforçada motivação47 para tanto.
Em suma, a utilização da técnica ponderativa exige a consideração do seguinte
parâmetro preferencial e específico: prevalência da dignidade do hipossuficiente, usualmente o trabalhador.
Óbvio que não se gastará mais tinta para tratar da ambiência histórica propiciadora
do surgimento do direito do trabalho para se ressaltar aspecto que exsurge indelével,
qual seja, a finalidade protetiva do hipossuficiente nessa seara. O processo também
não pode fugir dessa sina, até porque serve como instrumento à consecução do direito
material do trabalho.
Contudo, com o fulcro de evitar possíveis incompreensões acerca do presente
discurso, vale salientar que, por razões lógicas, não se está a defender um resultado,
para qualquer demanda laboral, sempre favorável ao hipossuficiente, apenas pretende-se destacar parâmetro preferencial para auxiliar na construção da argumentação do
intérprete nas demandas difíceis ou duvidosas, em que a utilização do recurso da ponderação mostra-se inevitável.
Aliás, o Tribunal Superior do Trabalho vem há muito tempo acolhendo posição
similar, mesmo não havendo desenvolvido a idéia ora defendida de parâmetro preferencial e específico de proteção ao hipossuficiente. Basta ver a última parte do julgado
abaixo, verbis:
“Todavia, quando há aparente conflito de princípios constitucionais, como sugere o Recorrente,
a doutrina recomenda que seja utilizado o princípio da proporcionalidade, feito a partir de uma
ponderação de interesses, considerando que não há hierarquia entre os princípios constitucionais. Com base nessa ponderação de interesses, onde, de um lado, tem-se o princípio da
moralidade administrativa e, do outro, os princípio da dignidade da pessoa humana (CF, art.
1.º, III), o do valor social do trabalho (CF, art. 1.º, IV) e da igualdade substancial (CF, art. 5.º,
-caput-), o TRT bem andou ao deferir as diferenças salariais com base no princípio da isonomia, pois extraiu a máxima efetividade das normas constitucionais em jogo, especialmente
levando em consideração que o trabalhador deve ser considerado a parte mais fraca na relação
que permeia entre o capital e o trabalho, assumindo a condição de hipossuficiente na relação
trabalhista, tanto que há inúmeros preceitos de ordem pública que o protegem em relação ao
empregador.”48
Nesse eito, quando houver embates normativos de princípios e regras, válidos,
hierarquicamente iguais ou diferentes, há de prevalecer, salvo situações excepcionais,
na solução desses conflitos, o princípio da proteção da dignidade do hipossuficiente.
Ressalte-se, mais uma vez, que a construção desse parâmetro preferencial não
leva automaticamente (seria uma estultice defender tal posição) à procedência da demanda veiculadora de interesses do trabalhador, mas apenas significa a necessidade
47
BARCELLOS, Ana Paula de. Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional, cit., p. 1162.
48
Tribunal Superior do Trabalho. 4ª Turma. Proc. TST AIRR 2/2005. Rela. Ministra Maria de Assis
Calsing. DJ. 26.10.2007.
lineamentos da técnica da ponderação ...
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marcelo freire sampaio costa
147
de o intérprete, ante a difícil contenda posta, construir sua fundamentação levando em
consideração tal baliza.
Tal posição é um reflexo direto da importância do princípio da dignidade da
pessoa humana (art, 1º, III, da Constituição de 1988), “verdadeiro super princípio
constitucional”,49 “estruturante, constitutivo e indicativo das ideias diretivas básicas
de toda a ordem constitucional”,50 como expressão de um movimento de superação do
eixo de prevalência do valor patrimonial,51 típico da visão individualista-liberal, para a
consagração da primazia dos valores existenciais à tutela da pessoa humana.52 Trata-se
de norma-princípio, com inescusável eficácia deôntica.53 Na batalha, inclusive jurisdicional, entre o patrimônio e a dignidade do ser humano, vence esta última – sempre.54
Além da dignidade, tem-se o princípio constitucional do “valor social do trabalho (art.
1º, IV) e as regras de proteção aos trabalhadores entabulados nos arts. 7º até 11 da Carta
Maior, aptos à construção de um escudo protetivo dessa classe, porque também refletem o
citado movimento de superação do eixo patrimonial pela tutela da pessoa humana.
Portanto, nas “batalhas” laborais em que haja embate entre os interesses econômicos dos grupos patronais em detrimento daqueles da classe laboral (patrimônio versus
dignidade da pessoa humana), deverão prevalecer aqueles protetores da dignidade dos
hipossuficientes.
Essa posição vem sendo, em algumas ocasiões, sufragada pelo Tribunal Superior
do Trabalho.Há interessante precedente, decorrente de ação civil pública manejada pelo
Ministério Público do Trabalho, em que se discutia a possibilidade de uma indústria de
cigarro utilizar empregados para medição da qualidade desse produto – os chamados
provadores de cigarro. Nesse feito restou demonstrado real conflito entre o princípio
constitucional da livre iniciativa empresarial e a necessidade de proteção à saúde, vida
e consequente dignidade do trabalhador, utilizado como mero instrumento, como se
49
PIOVESAN, Flávia; VIEIRA, Renato Stanziola. A força normativa dos princípios constitucionais
fundamentais: a dignidade da pessoa humana. In: PIOVESAN, Flávia (Org.). Temas de direitos
humanos. 2ª ed. São Paulo: Max Limonad, 2003. p. 393.
50
FACHIN, Edson. Estatuto do patrimônio mínimo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 179.
51
“A pessoa, e não o patrimônio, é o centro do sistema jurídico, de modo que se possibilite a mais
ampla tutela da pessoa, em uma perspectiva solidarista que se afasta do individualismo que condena
o homem à abstração”. Id. Ibid., p. 48.
52
TEPEDINO, Gustavo. Direitos humanos e relações privadas: temas de direito civil. Rio de Janeiro:
Renovar, 1999. p. 04.
53
Há posição doutrinal, com a qual não se pode compactuar, classificando o princípio da dignidade
da pessoa humana como de “mínima densidade normativa”. Cf. MARTINS FILHO, Ives Gandra
da Silva. Os pilares do direito do trabalho – princípios e sua densidade normativa. Revista LTr, São
Paulo, ano 76, nº 07, jul. 2012.
54
“Vê-se caminho para a superação da visão liberal individualista, centrada no patrimônio. O ordenamento jurídico tem como suprema missão a tutela da pessoa, possibilitando a convivência dos
homens, uma pacífica vida comunitária regida por normas obrigatórias”. In: FACHIN, Edson. Op.
cit, p. 46.
148
temas atuais de direito
fosse máquina, para aferir, em detrimento da sua própria saúde, a qualidade daquele
produto. Acabou por prevalecer a proteção da incolumidade física daquela coletividade
de trabalhadores e tal função foi proibida.55
Esse precedente citado, e tantos outros que poderiam ser lembrados, reflete a posição
ora defendida: havendo conflito entre interesses meramente patrimoniais e os valores ínsitos
à proteção da dignidade, nas suas vertentes individual e coletiva,56 prevalecerá esta última.
Ressalte-se, mais uma vez e para finalizar, que a construção desse parâmetro preferencial não leva automaticamente à procedência dos pedidos veiculados pela parte hipossuficiente, mas apenas significa a necessidade de o intérprete, ante a difícil contenda
posta, construir sua fundamentação levando em consideração tal baliza preferencial.
6. CONCLUSÃO
Pode-se apresentar a conclusão, de forma simplificada, por intermédio dos seguintes itens:
a. Há demandas cada vez mais frequentes na seara laboral que exigem a construção
de argumentação jurídica racional apta a conduzir o trabalho do intérprete, daí a
importância do desenvolvimento da técnica da ponderação;
b. Conceitua-se o exercício da ponderação como o mecanismo de solução de
conflitos normativos, verdadeira técnica de decisão jurídica autônoma, envolvendo
usualmente casos difíceis ou duvidosos de contendas de princípios, conflitos estes insuperáveis pela mecânica clássica da subsunção;
c. A importância de se consolidar a ponderação por intermédio da construção de
critérios materiais de justificação. São apontados dois parâmetros jurídicos gerais: i)
pretensão de racionalidade do discurso jurídico; ii) concordância prática das hipóteses
normativas em tensão. E um específico e preferencial: prevalência da dignidade do
hipossuficiente.
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Doxa, 1990, nº 8.
ABRANTES, José João. Contrato de trabalho e direitos fundamentais. Portugal:
Coimbra editora. 2005.
55
“Por derradeiro, a decisão regional deve ser mantida, no sentido de obstar a utilização de empregados para a medição da qualidade dos cigarros produzidos, porquanto irremediavelmente lesiva a aludida atividade laboral”. Tribunal Superior do Trabalho. 7. Turma. Proc. TST-RR-120300-89.2003.5.01.0015. Rel. Ministro Pedro Paulo Teixeira Manus. DEJT. 03.12.2010.
56
Acerca da projeção coletiva da dignidade da pessoa humana vide nosso Dano moral (extrapatrimonial) coletivo, cit.
lineamentos da técnica da ponderação ...
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marcelo freire sampaio costa
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11
A CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
LABORAIS À SAÚDE E À SEGURANÇA DO TRABALHADOR
PELA VIA DA ATRIBUIÇÃO DO ÔNUS DINÂMICO DA
PROVA PERICIAL AO EMPREGADOR
Pastora do Socorro Teixeira Leal
RESUMO: Trata da viabilização da concretização dos direitos fundamentais à saúde e à
segurança do trabalhador pela aplicação do ônus dinâmico da produção da prova pericial
ao empregador nas ações de responsabilidade civil. Considera que proteção à saúde e à segurança no trabalho pressupõe e está diretamente relacionada à garantia do meio ambiente
sadio e seguro, dever do empregador, catalogado em normas legais regulamentadoras, que se
projeta no ônus de provar em Juízo o respectivo cumprimento das normas legais pertinentes.
Contrasta a precariedade da previsão legal trabalhista atinente à produção da prova pericial
com a legislação previdenciária que presume o nexo causal e com as garantias constitucionais
de proteção à saúde e à segurança no trabalho. Discorre sobre a alteração legislativa ( Projeto
de Lei 3407/1996), em tramitação no Congresso Nacional, que desloca para o empregador o
ônus da produção da prova pericial.
PALAVRAS-CHAVES: direitos fundamentais; direito fundamental à saúde; direito fundamental à segurança; ônus dinâmico da prova; risco da atividade; responsabilidade civil; concretização de direitos; interpretação judicial.
ABSTRACT: This is the feasibility of the implementation of fundamental rights to health and
worker safety by implementing the dynamic burden of production of expert evidence the employer . Considers that protect health and safety at work presupposes and is directly related to
ensuring safe and healthy environment, the duty of the employer, cataloged in regulatory laws,
which projects the burden of proving in court their compliance with relevant legal . Contrasts
the precarious legal provision labour, regards the production of expert evidence to the pension
legislation that assumes a causal relationship and the constitutional guarantees of protection
of health and safety at work. Discusses the legislative amendment (bill nº 3407/1996), pending in Congress, which shifts to the employer the burden of producing expert evidence
KEYWORDS: fundamental rights, fundamental right to health; fundamental right to security;
dynamic burden of proof; risk activity; liability; realization of rights, judicial interpretation.
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temas atuais de direito
Como viabilizar a concretização de direitos fundamentais? Que mecanismos jurídicos podem ser utilizados para essa finalidade? Esses questionamentos ficam ainda
mais complexos e difíceis de responder quando estamos diante de direitos humanos
laborais ou direitos fundamentais trabalhistas.
A saúde e a segurança são bens jurídicos objeto de direitos fundamentais e, como
tal, estão elencados na Constituição Federal: “Art. 6º São direitos sociais a educação,
a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta
Constituição.”
O dispositivo antes destacado encontra seu fundamento no princípio da dignidade
da pessoa humana, consagrado no inciso III, do art. 1º , da Carta Magna, que para consolidar sua garantia estabeleceu no art. 5º, § 1º que “as normas definidoras dos direitos
e garantias fundamentais têm aplicação imediata.”
A preocupação com a tutela da saúde e da segurança no trabalho é ratificada no
plano constitucional: “Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além
de outros que visem à melhoria de sua condição social:.... XXII. redução dos riscos
inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança.
Garantir direitos pressupõe identificar e fazer valer os deveres a eles correlatos.
Quem seria então o responsável pela higidez e segurança no trabalho?
Uma interpretação sistemática do ordenamento jurídico brasileiro revela que o
responsável é o empregador ou aquele que toma ou se beneficia do serviço prestado.
É oportuno que não se confunda responsabilidade e culpabilidade. O risco de
uma atividade faz com que por ele responda aquele que a explora, embora em algumas
circunstâncias não seja culpado, a exemplo do que ocorre com produtos que, por
defeito de fabricação, venham a causar danos ao consumidor, mesmo tendo sido
fabricados com a observância das regras técnicas. O risco não pode ser 100% previsto
ou prevenido, tampouco a ciência e a tecnologia podem dar respostas precisas, mas
a responsabilidade pode até ser presumida ou estabelecida objetivamente pelo mero
exercício da atividade de risco.
O art. 2º, da CLT, quando define o empregador como aquele que “assume os riscos
de sua atividade econômica” foi muito além de sua época, pois em 1943, início de sua
vigência, não se poderia imaginar a magnitude dos números de acidentes do trabalho
e doenças ocupacionais que as estatísticas hoje revelam, decorrentes de variáveis que
decorrem do modelo de sociedade complexa e de massa e do incremento vertiginoso da
tecnologia, que geram maior desgaste ambiental, físico, mental e emocional.
A proteção à saúde e à segurança no trabalho pressupõe e está diretamente relacionada à garantia do meio ambiente sadio e seguro, o que exige medidas de prevenção e
até mesmo de precaução. Nesse ponto, a Constituição avançou consoante se vislumbra
nos seguintes dispositivos:
“Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.
a concretização dos direitos fundamentais ...
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pastora do socorro teixeira leal
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§ 1º. Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:
IV. exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de
significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará
publicidade;
V. controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias
que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente;
§ 3º. As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores,
pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.
O avanço no plano constitucional contrasta com a petrificação no plano trabalhista. Estamos nos referindo à manutenção de normas de monetização do risco, como os
adicionais de insalubridade e de periculosidade, quando o desejável é a sua prevenção
ou redução. Apesar dessa crítica, nota-se que as normas que regulamentam as atividades insalubres e perigosas apresentam regras que impõem aos empregadores a utilização de mecanismos de prevenção, mais adiante apontados de forma exemplificativa.
Nosso ordenamento jurídico é pródigo em normas que nos autorizam a concluir que é do empregador o dever de manter a saúde e a segurança no trabalho e
de responder por gravames a esses bens jurídicos. Todavia, dentro dos limites deste
artigo, numa síntese apertada, alguns exemplos ilustrativos podem ser enumerados,
conforme Normas Regulamentadoras contidas nos anexos da Portaria MTB 3.214, de
08 de junho de 1978, que “aprova as Normas Regulamentadoras – NR – do Capítulo
V, Título II, da Consolidação das Leis do Trabalho, relativas a Segurança e Medicina
do Trabalho:
a) A NR5, estabelece que a Comissão Interna de Prevenção de Acidentes- CIPA
– “ tem como objetivo a prevenção de acidentes e doenças decorrentes do trabalho, de
modo a tornar compatível permanentemente o trabalho com a preservação da vida e
a promoção da saúde do trabalhador” e determina que “ devem constituir CIPA, por
estabelecimento, e mantê-la em regular funcionamento as empresas privadas, públicas,
sociedades de economia mista, órgãos da administração direta e indireta, instituições
beneficentes, associações recreativas, cooperativas, bem como outras instituições que
admitam trabalhadores como empregados”.
b) A NR6, que trata do dever de fornecimento de Equipamento de Proteção
Individual determina em seu item 6.3 que a empresa é obrigada a fornecer aos empregados, gratuitamente, EPI adequado ao risco, em perfeito estado de conservação e de
funcionamento;
c) Destaca-se da NR 7 alguns itens:
7.1.1, que estabelece a obrigatoriedade de elaboração e implementação, por parte
de todos os empregadores e instituições que admitam trabalhadores como empregados,
do Programa de Controle Médico de Saúde Ocupacional – PCMSO, com o objetivo de
promoção e preservação da saúde do conjunto dos seus trabalhadores;
7.1.3, que caberá à empresa contratante de mão-de-obra prestadora de serviços informar a empresa contratada dos riscos existentes e auxiliar na elaboração e implementação do PCMSO nos locais de trabalho onde os serviços estão sendo prestados;
154
temas atuais de direito
7.2.3, que o PCMSO deverá ter caráter de prevenção, rastreamento e diagnóstico precoce dos agravos à saúde relacionados ao trabalho, inclusive de natureza subclínica, além da constatação da existência de casos de doenças profissionais ou danos
irreversíveis à saúde dos trabalhadores;
7.3.1, que compete ao empregador: a) garantir a elaboração e efetiva implementação do PCMSO, bem como zelar pela sua eficácia; e, b) custear sem ônus para o
empregado todos os procedimentos relacionados ao PCMSO;
d) A NR 9 estabelece:
9.1.1. a obrigatoriedade da elaboração e implementação, por parte de todos os empregadores e instituições que admitam trabalhadores como empregados, do Programa
de Prevenção de Riscos Ambientais – PPRA, visando à preservação da saúde e da integridade dos trabalhadores, através da antecipação, reconhecimento, avaliação e consequente controle da ocorrência de riscos ambientais existentes ou que venham a
existir no ambiente de trabalho, tendo em consideração a proteção do meio ambiente e dos recursos naturais;
9.1.2. que as ações do PPRA devem ser desenvolvidas no âmbito de cada estabelecimento da empresa, sob a responsabilidade do empregador, com a participação dos
trabalhadores, sendo sua abrangência e profundidade dependentes das características
dos riscos e das necessidades de controle;
e) É necessário o preenchimento de formulário (PPP) pelas empresas que exercem atividades que exponham seus empregados a agentes nocivos químicos, físicos,
biológicos ou associação de agentes prejudiciais à saúde ou à integridade física, de
acordo com Norma Regulamentadora nº 9 da Portaria nº 3.214/78 do MTE;
f) De acordo com art. 58 e seus §§, da Lei nº 8.213, de 24/07/91, com alterações introduzidas pela Lei nº 9.528, de 10/12/97, DOU de 11/12/97, as empresas
estão obrigadas a manter laudo técnico de condições ambientais do trabalho
(LTCAT), elaborado por médico do trabalho ou engenheiro de segurança e medicina
do trabalho, que servirá para comprovação da efetiva exposição do segurado aos
agentes nocivos para fins de aposentadoria especial. No laudo técnico referido deverá
constar informações sobre a existência de tecnologia de proteção coletiva que diminua a intensidade do agente agressivo a limites de tolerância e recomendação sobre
a sua adoção pelo estabelecimento respectivo. A empresa que não mantiver laudo
técnico atualizado com referência aos agentes nocivos existentes no ambiente de
trabalho de seus trabalhadores ou que emitir documento de comprovação de efetiva
exposição em desacordo com o respectivo laudo estará sujeita à penalidade prevista
no art. 133, da referida lei.
Se houver violação, pelo empregador, de qualquer dos procedimentos antes enumerados ele estará passível de autuação pelo órgão fiscalizador. A competência para
anular referido tipo de penalidade é da Justiça do Trabalho, na forma do inciso VII, do
art.114, da Constituição Federal: “Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e
julgar:...VII. as ações relativas às penalidades administrativas impostas aos empregadores pelos órgãos de fiscalização das relações de trabalho;”. Essa atribuição reforça
a conclusão de que ao judiciário trabalhista incumbe não somente o poder de anular as
a concretização dos direitos fundamentais ...
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pastora do socorro teixeira leal
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penalidades, mas também, no caso concreto, de exigir das empresas que comprovem o
cumprimento dos deveres de garantir meio ambiente de trabalho sadio e seguro.
Definir direitos e estabelecer deveres correlatos pressupõe mecanismos para a sua
efetivação, sendo o mais abrangente deles a garantia de acesso à Justiça, como prevê
o inciso XXXV, do art.5º, da Constituição Federal: “ a lei não excluirá da apreciação
do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;” que deve ocorrer na forma do inciso
LXXVIII, do mesmo artigo: “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua
tramitação”. Isto quer dizer que é necessário todo um instrumental processual capaz de
garantir, de forma efetiva, os direitos tutelados.
Os meios de prova são o arsenal de que se deve utilizar o interessado para demonstrar seu direito. Ocorre que muitas das vezes esses meios não estão ao alcance da
parte. É o caso, por exemplo, do trabalhador que busca o judiciário para fazer valer seus
direitos à saúde e à segurança no trabalho, seja pela via da prevenção – o que é raro -,
seja pela via da reparação.
Quanto à distribuição do ônus da prova podemos identificar duas posturas que denominamos de: tradicional ou rígida ( teoria da distribuição do ônus estático da prova)
e a efetivadora ou flexível (teoria da distribuição do ônus dinâmico da prova).
A tradicional ou clássica resiste a qualquer possibilidade do que se costumou denominar de “inversão do ônus” e limita-se à estrita dicção do, do inciso I, do art.333, do CPC: “
O ônus da prova incumbe: I – ao autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito.”
A denominada teoria da distribuição do ônus dinâmico da prova (CARPES, 2010),
que rotulamos de efetivadora, se predispõe a reconhecer que o ônus da prova incumbe
àquele que tem o dever de viabilizar a concretização do direito e que, portanto, é quem
tem mais fácil acesso aos meios de prova para sua demonstração em Juízo.
Em matéria de insalubridade e de periculosidade o art.195, da CLT, representa a
corrente tradicional, pois impõe ao juiz determinar a realização de perícia e ao empregado arcar com seus custos, quando todo o restante da legislação pertinente remete ao
dever do empregador de implementar mecanismos de tutela como aqueles já mencionados (EPIs, PPRA,PCMSO,PPP,LTCAT), dentre outros.
Sabe-se que um grande número de processos que tramitam na Justiça do Trabalho
e que tem por objeto pleitos de reparação por danos à saúde têm sua tramitação emperrada devido às inúmeras dificuldades na realização de perícias na hipótese de assistência judiciária gratuita, tais como: recusa sistemática de entidades públicas em realizar
perícias alegando falta ou insuficiência de pessoal qualificado; as empresas alegam que
o custeio compete ao empregado que postula, pois é dele o ônus da prova; os empregados, em sua grande maioria, não têm recursos para arcar com as despesas periciais;
o custeio de perícias pela União (Resolução CSJT nº35/2007) apresenta expressivas
restrições e onera o orçamento dos TRTs; existem localidades de difícil acesso, nas
quais sequer há profissionais habilitados; dificuldade de encontrar peritos que aceitem
receber os valores tabelados.
Se o empregador está obrigado a implementar os mecanismos de prevenção já
enumerados, a visão efetivadora usa da interpretação sistemática para concluir que o
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temas atuais de direito
ônus da prova pericial compete ao empregador e a presumir a ocorrência do fato que
se pretendia demonstrar pela a perícia, levando-se em conta os demais elementos dos
autos em seu conjunto, pois se a descrição da atividade do trabalhador não se inclui
naquelas previstas como de risco, não há como presumi-lo.
Os parâmetros que servem de suporte para a visão tradicional e para a efetivadora
decorrem do paradigma no qual cada uma delas se assenta.
Nossas crenças é que determinam nossa forma de agir. Se acreditamos que as
pessoas e coisas são como são e que nada pode ser feito para alterá-las, nada muda. Por
outro lado, se acreditarmos que o esforço comum pode realizar mudanças este já é um
grande passo.
Quem lê este artigo deve estar se perguntando: O que tem a ver crenças ou visões
de mundo com a distribuição do ônus da prova e com a concretização dos direitos humanos? Tudo.
O modelo de ciência que utilizamos para descrever e alterar a realidade pode responder a questão.
Abaixo o quadro apresentado por Maria José Esteves de VASCONCELLOS
(2002), que sintetiza a problemática do paradigma da cientificidade, que se projeta na
forma de pensar e de aplicar o sistema jurídico.
Modelos de Ciência
Modelo Tradicional
objetividade
imutabilidade
simplicidade
linearidade
Modelo Novo-Paradigmático ou Complexo
intersubjetividade
instabilidade
complexidade
circularidade
O modelo tradicional não tem servido para dar respostas aos problemas complexos da sociedade de massa e globalizada. Nem mesmo no campo das ciências exatas
o paradigma clássico se manteve. Os físicos tiveram que aceitar a dualidade das ondas
luminosas, também conhecida como dualidade onda-partícula ou dualidade matéria-energia, dependendo das condições de observação da luz. É conhecido também na
Física o chamado “princípio da incerteza”, segundo o qual a palavra dualidade deve
ser substituída pela ideia de complementariedade, pois ondas e partículas são como
duas imagens que se complementam mutuamente. Assim, a “probabilidade” agora se
interpreta de forma diferente daquela da física clássica, pois depende das condições nas
quais o fenômeno ocorre.
Nos estendemos um pouco mais na exemplificação com o intuito de demonstrar
que a ciência precisou rever seu paradigma, sua forma de pensar e de agir.
Nem é necessário destacar que a forma tradicional de manejar o ônus da prova tem
por baliza o modelo de ciência tradicional da imutabilidade a toda prova (ônus estático), ou seja, a de que “provar compete a quem alega”; que a pretexto da objetividade
a concretização dos direitos fundamentais ...
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pastora do socorro teixeira leal
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ignora qualquer circunstância ou condição do caso concreto, tudo em nome da assepsia
do intérprete, como se sua concepção de mundo em nada interferisse. Segundo essa
visão, a distribuição do ônus da prova funciona como uma receita, sempre ocorre da
mesma maneira, ou seja, é linear.
Aplica-se à visão efetivadora ou dinâmica da distribuição do onus probandi as
características do modelo de ciência novo-paradigmático, porquanto ajusta-se às variáveis do caso, à equidade, porque a realidade não é imutável, mas instável, um mesmo agente de risco pode gerar consequências as mais variadas. A questão também é
complexa. Assim, se o dever de implementar mecanismos de prevenção e de proteção
à saúde e à segurança no trabalho é do empregador, a ele incumbe tê-lo feito antes
de demandado em Juízo. A título de exemplo temos o PCMSO cujos exames devem
ser feitos na admissão, durante o contrato de trabalho e por ocasião da dispensa. Tais
exames têm o condão demonstrar em que condições de saúde o trabalhador ingressou
na empresa, se adoeceu ou se teve agravamento no seu quadro clínico por conta da
atividade laboral e em que condições foi dispensado. Por outro lado, o PPRA pode demonstrar quais as condições de risco no trabalho. Sendo assim, a produção de referidos
documentos técnicos em Juízo é apenas uma consequência do dever de produzi-los fora
dele. Desta feita, caso o tomador dos serviços não os tenha providenciado em tempo
oportuno é porque descumprira deveres básicos pertinentes à salubridade e à higidez
do ambiente de trabalho.
Contudo, ainda existe uma enorme resistência da comunidade jurídica em ajustar-se ao novo paradigma, pois a própria formação jurídica, em sua grande maioria, ainda
está calcada no modelo de ciência tradicional. Essa resistência aliada à deficiência do
aparato fiscalizador do Estado integram um conjunto de obstáculos à concretização dos
direitos fundamentais laborais.
Manter-se resistente é mais simples e algumas das vezes até mais cômodo, pois
ninguém gosta de dar-se ao trabalho de ler “NRs”(normas regulamentadoras), repletas
de detalhes técnicos, quando basta apenas que o trabalhador não possa custear a perícia
ou que não se encontrem peritos predispostos a receber valores tarifados para que o
pleito seja julgado improcedente por falta de provas.
A introdução expressa da presunção do nexo causal entre a atividade da empresa e
o agravo à saúde (Lei 11.430/2006), como se pode verificar pela redação do art. 21-A:
“Presume-se caracterizada incapacidade acidentária quando estabelecido o nexo técnico epidemiológico entre o trabalho e o agravo, decorrente da relação entre a atividade da empresa e a entidade mórbida motivadora da incapacidade, em conformidade
com o que dispuser o regulamento.”, representa significável avanço da lei previdenciária em face da trabalhista, cuja rigidez na distribuição do ônus da prova, principalmente
em matéria de saúde e de segurança do trabalho, tem levado à dramática situação de
toda um a legião de vitimados pelo trabalho que, justamente por dificuldades de prova,
não têm acesso integral à Justiça e, como consequência, não conseguem responsabilizar seus empregadores pelos danos suportados.
O Decreto nº 6.042/07 oficializa a necessidade de implantação, pela Previdência,
de dois instrumentos legais que são: o Nexo Técnico Epidemiológico (NTPE) e o
158
temas atuais de direito
Fator Acidentário Previdenciário (FAP). Esses novos instrumentos têm o intuito de
permitir a flexibilização das alíquotas de contribuição das empresas ao seguro acidente
de trabalho (SAT).
Dentre os antecedentes dessa normatividade encontra-se a Resolução nº.1236, do
Conselho Nacional de Previdência Social (CNPS), publicada em 10 de maio de 2004,
que trouxe novo procedimento, de especial importância para as doenças ocupacionais,
nas quais há grande resistência à emissão do CAT. Essa nova sistemática também passou a constar da Lei nº 8213/91, com a redação dada pela Medida Provisória nº 316/06,
posteriormente convertida na Lei nº 11.430, de 26 de dezembro de 2006, que acrescentou o art. 21-A ao Plano de Benefícios. Nessas situações, como o benefício será
considerado acidentário de ofício, não haverá multa pela ausência de comunicação de
acidente do trabalho (CAT) por parte do empregador (art. 22, § 5º, da Lei nº 8213/91,
com redação dada pela Lei nº. 11430/06). No Regulamento da Previdência Social, o assunto é tratado a partir do art. 337, com redação dada pelo Decreto nº 6.042/07, que dá
nova formatação ao Anexo II do RPS, o qual estabelece Nexo Técnico Epidemiológico
entre a atividade da empresa e a entidade mórbida motivadora da incapacidade. Essa
presunção que dá acesso a benefício acidentário é válida a partir de abril de 2007 (art.
5º, I, do Decreto nº 6.042/07).
A resistência de muitos empregadores em emitir a CAT, a desproporcionalidade
no custeio acidentário entre empresas onde a ocorrência de acidentes era diferenciada,
a dificuldade de controle, a oneração do custeio público, dentre outras, foram algumas
das causas da alteração da legislação mencionada que, como se pode verificar, teve
suporte em problemas de natureza econômica. Todavia, ainda que decorrente de fatores
econômicos, são sensíveis os reflexos de sobredita normatividade na tutela dos direitos
fundamentais à saúde e à segurança no trabalho.
A presunção de nexo causal, quando a patologia (CID) corresponder no enquadramento legal à atividade econômica (CNAE) do local de trabalho, provoca um deslocamento de eixo na maneira tradicional de conceber a responsabilidade civil, prescindindo
da investigação da culpa, bastando que fique demonstrado o nexo causal entre a atividade da empresa e o dano ao trabalhador.
No mesmo sentido é a dicção do parágrafo único, do art. 927, do Código Civil:
“Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano
implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.”
Projeto de Lei em tramitação (PL nº 3427/2008) significa tentativa de inserção
desse novo paradigma na legislação trabalhista, quando reforça o reconhecimento da
obrigação de o empregador propiciar meio ambiente de trabalho sadio e seguro, bem
como de adotar medidas preventivas para eliminar ou neutralizar os agentes nocivos e
as causas de acidentes ou de doenças ocupacionais.
Mencionado Projeto de Lei: Acrescenta à CLT o art. 818-A, altera os arts. 195 e
790-A e revoga os §§ 1º, 2º e 3º do art. 195 e os §§ 4º e 6º do art. 852-A, para dispor
sobre ônus da prova nas reclamações sobre insalubridade e periculosidade e estabelecer critérios para a remuneração do perito em caso de assistência judiciária gratuita.
a concretização dos direitos fundamentais ...
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O Projeto de Lei em referência representa reforço aos argumentos já expendidos
no sentido de que sendo do empregador o dever legal de propiciar ao trabalhador
meio ambiente sadio e seguro também lhe incumbe a respectiva produção da prova.
Vejamos:
Art.818-A. Constitui ônus da empresa demonstrar que propicia a seus trabalhadores meio
ambiente sadio e seguro ou que adotou, oportuna e adequadamente, as medidas preventivas
de modo a eliminar ou neutralizar os agentes insalubres, penosos ou perigosos, bem como as
causas de acidentes ou doenças ocupacionais.
§ 1º. O reclamado deverá apresentar com a defesa, documentação relativa aos programas e
instrumentos preventivos de segurança e saúde no trabalho a que está obrigada a cumprir.
§ 2º. Se o reclamado não cumprir o disposto no §1º, o Juiz poderá determinar a realização de
prova pericial as suas expensas.
§ 3º. Será dispensável a realização de perícia sempre que o Juiz entender que as provas dos
autos são suficientes para respaldar tecnicamente a decisão.
§ 4º. Determinada a realização da prova técnica, o Juiz nomeará perito, facultando às partes,
no prazo de cinco dias, a formulação de quesitos pertinentes e a indicação de assistentes técnicos, os quais apresentarão seus pareceres no prazo fixado para o perito.
§ 5º. As partes que não indicarem assistentes técnicos poderão apresentar impugnação fundamentada ao laudo, no prazo comum de cinco dias, após o que fixado para a entrega do laudo
oficial.
§ 6º. O perito do Juízo e os assistentes técnicos deverão estar habilitados na forma do art.195.
A proposta de alteração legal acima destacada representa significável avanço e ajusta a legislação trabalhista ao modelo de efetividade, mas também denuncia que a formação jurídica
calcada no modelo tradicional exige que a literalidade da lei traduza a regra aplicável, embora
as demais regras e os princípios do ordenamento jurídico, como já explicitado, convirjam para
a mesma conclusão.
BIBLIOGRAFIA
ALEXY, Robert. Teoria de Los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios
Constitucionales, 1997.
CARPES, Arthur Thompsen. Ônus dinâmico da prova. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2010.
COMPARATO, Fábio Konder. O papel do juiz na efetivação dos direitos humanos.
Aula proferida na Escola Paulista de Magistratura em 22 de janeiro de 2001.
Disponível:http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/31990-37511-1PB.pdf. Acesso em: 01/11/2012
COMPARATO, Fábio Konder. O papel do juiz na efetivação dos direitos humanos.
Aula proferida na Escola Paulista de Magistratura em 22 de janeiro de 2001.
Disponível: http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/31990-37511-1PB.pdf
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temas atuais de direito
UBILLOS, Juan María Bilbao. La eficacia de los derechos fundamentales frente a particulares: análisis de la jurisprudencia del tribunal constitucional. Madrid: Centro de
Estudios Políticos y Constitucionales, 1997.
VASCONCELLOS, Maria José Esteves de. Pensamento sistêmico: o novo paradigma
da ciência. Campinas, SP : Papirus, 2002.
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LEITURA SISTEMÁTICA, MENOR ONEROSIDADE E
PENHORA DE PECÚNIA EM EXECUÇÃO PROVISÓRIA
Marcelo Freire Sampaio Costa
RESUMO: O presente trabalho objetiva estudar os verdadeiros limites do princípio da menor onerosidade ao devedor, disposto no art. 620 do Código de Processo Civil, no processo
do trabalho, levando em consideração as peculiaridades (faticidade) dos casos concretos e
o impacto que a leitura sistemática e a consequente avaliação vertical (técnica conforme a
Constituição) e horizontal ocasionará sobre tal investigação, principalmente à posição jurisprudencial consolidada acerca desse tema, notadamente a necessária revisão do disposto no
inciso III do art. 417 do TST.
Palavras-chave: leitura sistemática; art. 620 do CPC; faticidade; revisão da
jurisprudência
ABSTRACT: The present work aims to study the true limits of the principle of minimum
onerosity on the debtor, the provisions of art. 620 of the Code of Civil Procedure, the work
process, taking into consideration the facticity of concrete cases and the impact that reading
systematic review and subsequent vertical (technique according to the Constitution) and horizontal will cause on such research, especially the position of jurisprudence concerning this
subject, notably the necessary review the provisions of part III of art. 417 of the TST.
Keywords: systematic reading, art. 620 the CPC; facticity; review of jurisprudence
SUMÁRIO: 1. Justificativa e objetivo; 2. Da importância da compreensão adequada à leitura sistemática; 3. Da releitura da menor onerosidade ao executado a ser aplicada ao processo do
trabalho; 4. Conclusão. Proposta de cancelamento ou nova redação ao item III da Súmula 417
do Tribunal Superior do Trabalho; 5. Bibliografia.
1. JUSTIFICATIVA E OBJETIVO
Recentemente o ministro presidente do Tribunal Superior do Trabalho, João
Oreste Dalazen, afirmou, acertadamente, conforme restou publicado no sítio virtual
daquele tribunal em painel chamado “Notícias do TST”,1 a necessidade de serem dis-
1
Disponível em : <http://www.tst.gov.br/>. Acesso em: 10 set. 2012.
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temas atuais de direito
cutidas e amadurecidas pela jurisprudência a aplicação das regras objetos de reformas
legislativas do Código de Processo Civil, relativas à execução definitiva e provisória,
ao processo do trabalho, ante a inquestionável superação da legislação laboral.
Tal assunto está efetivamente na ordem do dia dos tribunais laborais pátrios, carecendo, realmente, como deixou esposado na referida notícia, de “um posicionamento mais categórico, num sentido ou noutro, do TST”, conforme manifestação de Sua
Excelência, o presidente daquela Corte. Óbvio que tal firmeza jurisprudencial, caso
alcançada por esse tribunal laboral maior, terá a capacidade de espraiamento e, por
consequência, abrandar dissensões regionais tão frequentes sobre esse assunto.
O objetivo do presente não será discutir propriamente a incidência do modelo de
execução provisória do art. 475-O do CPC no processo laboral, até porque tal assunto
já foi explorado amplamente pelo autor do presente em obra voltada especificamente
para esse assunto,2 nem muito menos avançar no aprofundamento do caminho trilhado
pela ação mencionada na citada notícia, mas apenas tentar desenvolver novo rumo ao
princípio da menor onerosidade ao devedor disposto no Código de Processo Civil, em
uma ambiência de leitura sistemática no processo laboral, visando a consolidação de
uma posição jurisprudencial entendida como mais equânime à questão.
Acredita-se, para finalizar esse passo inicial, que o papel da doutrina não pode
colocar-se como mera “caudatária das decisões tribunalícias”,3 mas buscar a crítica respeitosa visando a colaboração com o aperfeiçoamento de os precedentes jurisdicionais.
É a modesta pretensão do presente.
Para isso, inicia-se tratando da leitura sistemática.
2. DA IMPORTÂNCIA DA COMPREENSÃO ADEQUADA
À LEITURA SISTEMÁTICA
Os limites impostos ao presente não acolheriam o desenvolvimento do intrincado
conceito de sistema jurídico ou extrajurídico.4 O objetivo é bem mais modesto. Apenas
revelar a importância da técnica da leitura sistemática (aquela mesma estudada ainda
no início do curso de graduação em direito) “como tarefa básica do jurista, pois para
compreender juridicamente um problema, deve-se buscar normas de diversos ramos do
direito”,5 em uma verdadeira “visão holística”6 dessa ciência, portanto, interdisciplinar.
2
Cf. COSTA, Marcelo Freire Sampaio. Execução Provisória no processo do trabalho. São Paulo:
LTr, 2009.
3
STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – decido conforme minha consciência? 3ª ed. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2012. p. 81.
4
Sobre esse assunto vide, dentre tantos, CANARIS, Claus Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002.
5
DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. São Paulo: Saraiva,
2004. p. 204.
6
“A visão holística, integrada e sincrética dos clássicos ramos, disciplinas, institutos e instrumentos
jurídicos é a tendência dos últimos tempos, o que implica um nível maior de complexidade na
leitura sistemática , menor onerosidade ...
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marcelo freire sampaio costa
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A consequência mais evidenciada dessa premissa é o reconhecimento da superação da concepção de autossuficiência do texto celetista. Esta ideia merece menção
como mero registro histórico. O desenvolvimento do presente partirá desse aspecto.
Nessa ambiência, parte-se de premissa cuja bitola exige a superação da concepção
positivista de modelo jurídico, reconhecida como hermeticamente cerrada aos reclamos sociais,7 vocacionada à “mais absoluta neutralidade em face do conteúdo político
e ético das normas jurídicas”,8 construída por intermédio de ramos jurídicos autossuficientes e desatrelados dos demais, além de caracterizada por paradigmas prontos,
descolados da realidade, decorrentes de raciocínios apriorísticos, para o reconhecido
de uma concepção de sistema jurídico em que estão impregnadas as ideias de “conexão
multímoda”9 das normas, incompletude, abertura,10 instabilidade,11 “provisoriedade do
conhecimento científico”,12 e, principalmente, a variabilidade temporal da interpretação jurídica, com o consequente reconhecimento do processo interpretativo como um
mecanismo também criativo, e não meramente “reprodutivo”,13 este resultado de uma
operação mecânica de aplicação da lei aos fatos (subsunção).
compreensão, diagnóstico e solução dos conflitos individuais ou coletivos, nas relações e interações
múltiplas propiciadas pela sociedade contemporânea”. YOSHIDA, Consuelo Yatsuda Moromizato.
Tutela dos interesses difusos e coletivos. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2006. p. 185.
7
Veja-se íntegra do parágrafo de Juarez Freitas em que tal ideia é apresentada: “Pelo visto, resulta
que não se deve pressupor um mundo jurídico acabado fora do pensamento, tampouco pretende
constituir ou formular um conceito de sistema fechado à base de definições alheias ao mundo dos
valores materiais e históricos. O Direito Positivo é aberto, vale dizer, a ideia de um suposto conjunto
autossuficiente (sem variabilidade evolutiva) de normas não apresenta a menor plausibilidade, seja
no plano teórico, seja no plano empírico”. FREITAS, Juarez. A interpretação sistemática do direito.
5ª ed. São Paulo: Malheiros Ed., 2010. p. 33.
8
DINIZ, Maria Helena. op. cit., p. 117.
9
“As normas jurídicas, tal como foi continuamente referido, não estão desligadas umas das outras,
mas estão numa conexão multímoda umas das outras”. LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do
direito. 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997. p. 621.
10
Neste mesmo sentido FREITAS, Juarez. op. cit., p. 51.
11
Cf. VASCONCELOS, Maria José Esteves de. Pensamento sistemático: o novo paradigma da ciência. 9ª ed. Campinas: Papirus, 2002. pp. 152 e ss.
12
CANARIS, Claus Wilhelm. op. cit., p. 106.
13
O desenvolvimento dessa questão, como ela merece, desviaria a pretensão e os objetivos do presente, motivo pelo qual se transcreve trecho de doutrina que resume a posição aqui sustentada: “O
processo interpretativo/hermenêutico tem (deveria ter) um caráter produtivo, e não meramente reprodutivo. Essa produção de sentido não pode, pois, ser guardada sob um hermético segredo, como
se sua holding fosse uma abadia do medievo. Isto porque o que rege o processo de interpretação dos
textos legais são as suas condições de produção, as quais, devidamente difusas e oculta(da)s, aparecem – no âmbito do discurso jurídico-dogmático permeado pelo respectivo campo jurídico – como
se fossem provenientes de um ‘lugar virtual’, ou de um ‘lugar fundamental’. STRECK, Lenio Luiz.
Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 7ª ed. Porto
Alegre: Livr. do Advogado, 2007. p. 93.
164
temas atuais de direito
Também se tem como premissa, com inspiração em Canaris, que o papel conceitual de sistema é o de “traduzir e realizar a adequação valorativa e a unidade da
ordem jurídica”,14 visando à superação das antinomias ínsitas a um modelo estrutural
normativo por intermédio da compreensão da importância da integração axiológica das
normas-princípios, normas-regras e valores,15 a ser vivificado pelo labor interpretativo16 do sujeito.
O conceito de sistema jurídico de Juarez Freitas encaixa perfeitamente com a ideia
a ser desenvolvida posteriormente. É o seguinte, literalmente:
...entende-se apropriado conceituar o sistema jurídico como uma rede axiológica e hierarquizada topicamente de princípios fundamentais, de normas estritas (ou regras) e de valores jurídicos cuja função é a de, evitando ou superando antinomias em sentido lato, dar
cumprimento aos objetivos justificadores do Estado Democrático, assim como se encontram
consubstanciados, expressa ou implicitamente, na Constituição.17
Depois das linhas já construídos, pode-se destacar, didaticamente, pelo menos três
aspectos fundamentais à compreensão da posição a ser defendida ao longo do presente.
Vejamos:
i) As partes de um sistema jurídico devem guardar conexões entre si, constituindo
um “conjunto harmônico e interdependente”.18 Qualquer “exegese comete, direta ou
indiretamente uma aplicação de princípios, regras e valores componentes da totalidade
do direito”.19 Conforme impactante ensinamento de Eros Roberto Grau, o direito “não
pode ser interpretado em tiras, aos pedaços”;20
ii) A superação da leitura positivista insulada, desatrelada do mundo concreto21 e
dos demais ramos da ciência jurídica do texto celetista;
14
CANARIS, Claus Wilhelm. op. cit., p. 23.
15
A distinção entre essas modalidades normativas deve ser buscada em ÁVILA, Humberto. Segurança
jurídica: entre a permanência, mudança e realização no Direito Tributário. São Paulo: Malheiros
Ed., 2011. p. 113.
16
“A interpretação sistemática envolve, existencial e consciencialmente, o sujeito que interpreta e ‘lê’
o sistema. Não lhe permite ser apenas um descobridor ou revelador de significados. Quer que atue
como espécie de conformador prescritivo e partícipe responsável e estruturador do objeto.” FREITAS, Juarez. op. cit., p. 69.
17
FREITAS, Juarez. op. cit., p. 56.
18
DINIZ, Maria Helena. op. cit., p. 430.
19
FREITAS, Juarez. op. cit., p. 73.
20
GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 2ª ed. São Paulo: Malheiros Ed., 2003. p. 122.
21
Veja-se trecho doutrinal em foi extraída tal ideia: “Em outras palavras, o positivismo atinge seu desiderato – repito, nas suas mais diversas manifestações – quando consegue descolar a enunciação da
lei do mundo concreto, ou seja, quando transforma a lei em uma razão autônoma (mesmo quando,
nas posturas realistas, considera as decisões como o modo privilegiado de manifestação do direito)”.
STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – decido conforme minha consciência?, cit., p. 63.
leitura sistemática , menor onerosidade ...
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iii) Raciocínios apriorísticos ignoradores dessas infinidades de variáveis decorrentes das peculiaridades dos casos concretos (a tal faticidade) devem ser afastados, sob
pena de se empobrecer demasidadamente a atividade do intérprete. Qualquer desses
raciocínios apriorísticos no direito é equivocado, pois a quadra de desenvolvimento
dessa ciência não admite mais meras “reduções lógico-formais”22, como se essa ciência
decorresse de lógica cartesiana.
A técnica sistemática pretende alcançar maior diálogo entre os ramos da ciência jurídica, por intermédio de uma avaliação vertical (esta por meio da técnica da
interpretação conforme a Constituição) e horizontal de ponderação de dispositivos
infraconstitucionais hierarquicamente idênticos, porque a resolução de um dado caso
concreto reclama a exegese da totalidade de princípios, regras e valores componentes
desse ordenamento jurídico; o direito, como salientado anteriormente, “não pode ser
interpretado em tiras, aos pedaços”.23
Nessa visada, deverá o intérprete, ao buscar a resolução de dada contenda, debruçar-se sobre a totalidade do direito, hierarquizando topicamente (sobre o caso concreto)
as modalidades normativas citadas anteriormente, em busca da melhor ou de ótima
argumentação para alcançar a resposta mais bem justificada24 ou “hermeneuticamente
adequada”,25 por intermédio da aplicação de critérios racionais26 justificadores da conclusão alcançada,27 principalmente considerando a abertura, incompletude e mobilidade desse sistema.
Destarte, além de o confronto do caso concreto com textos infraconstitucionais a serem lidos em conformidade com a Carta Maior (aqui nominada leitura vertical), a técnica
sistemática propõe tal cotejo a ser realizado também com os diversos ramos da ordem
jurídica infraconstitucional (aqui chamada leitura horizontal). Há a somatória dessas técnicas. O movimento interpretativo, consequentemente, para ser completo e corretamente
considerado sistemático, deverá ser concomitantemente vertical e horizontal.
22
Vale transcrever íntegra de trecho doutrinal que corrobora tal afirmação: “O raciocínio apriorístico
está findando. O direito é complexo na sua aplicação, afastando reduções lógico-formais”. ZANETI
JÚNIOR, Hermes. Processo constitucional: o modelo constitucional do processo civil brasileiro.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 182.
23
GRAU, Eros Roberto. op. cit., p. 122.
24
AARNIO, Aulis. Sobre la justificación de las decisiones jurídicas:las tesis de la única respuesta
correcta y el principio regulativo del razonamiento jurídico. Madrid: Doxa, 1990, nº 8, p. 437.
25
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção
do direito, cit., p. 183.
26
Nesse mesmo sentido, PADILHA, Norma Sueli. Colisão de direitos metaindividuais e a decisão
judicial. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 2006. p. 90.
27
Ao contrário de Ronald Dworkin que acredita na possibilidade da existência de uma única resposta
correta à solução de os chamados casos difíceis, acompanha-se pensamento de Robert Alexy acerca
da necessidade de se buscar tal resposta correta, “independentemente da existência a priori dela”.
In: ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad.: Virgílio Afonso da Silva. São Paulo:
Malheiros Ed., 2008. p. 599.
166
temas atuais de direito
As premissas da leitura sistemática (abertura, incompletude, instabilidade, mobilidade e construção interpretativa) conferem substancial suporte teórico ao intérprete
para a realização dessa operação mais ampla, visando a “um diálogo maior”28 entre os
ramos da ciência jurídica, aqui especialmente da processualística. No caso em destaque, o diálogo pretendido acontece primordialmente entre o processo civil e o laboral.
Portanto, interpretar sistematicamente significará a realização de um raciocínio
jurídico ponderativo29 mais sensível e complexo, tendo em conta a amplitudade dos
diversos preceitos legais, sem desconsiderar as vissicitudes apresentadas pela realidade
dos fatos, a hierarquização axiológica e escalonada dos princípios, regras e valores,
componentes da totalidade do ordenamento jurídico.
Não cabe mais na complexidade das relações sociais e na rotina jurisdicional pátria
a redução do equacionamento de conflitos a meras fórmulas prontas, acabadas e acríticas.
Como se pretende desenvolver no próximo item, longe de se mostrar correta a
aplicação acrítica, para toda e qualquer situação posta, como se fosse receita de bolo de
caixa, do princípio da menor onerosidade ao devedor.
Finaliza-se singelamente esta parte lembrando, como suporte em Juarez Freitas,
que a interpretação jurídica ou é sistemática, “ou não é interpretação”.30
3. DA RELEITURA DA MENOR ONEROSIDADE AO EXECUTADO A SER
APLICADA AO PROCESSO DO TRABALHO
A finalidade desse tópico é apreciar especificamente31 o princípio do meio executivo menos oneroso ao devedor, regulado pelo processo civil, no processo do trabalho,
conforme previsto no art. 620 do CPC. Tal é amplamente acolhido pela doutrina e jurisprudência laboral,32 inclusive cristalizado em súmula que reconhece a impossibilidade
28
Nessa mesma linha caminha Mauro Schiavi: “Além disso, atualmente, a moderna doutrina vem
defendendo um diálogo maior entre o Processo do Trabalho e o Processo Civil, a fim de buscar, por
meio de interpretação sistemática e teleológica, os benefícios obtidos na legislação processual civil
e aplicá-los ao Processo do Trabalho. Não pode o Juiz do Trabalho fechar os olhos para normas de
Direito Processual Civil mais efetivas que a CLT, e se omitir sob o argumento de que a legislação
processual do trabalho não é omissa, pois estão em jogo interesses muito maiores que a aplicação da
legislação processual trabalhista e sim a importância do Direito Processual do Trabalho, com sendo
instrumento célere, efetivo, confiável que garanta, acima de tudo, a efetividade da legislação processual trabalhista e a dignidade da pessoa humana”. SCHIAVI, Mauro. Manual de direito processual
do trabalho. 4ª ed. São Paulo: LTr, 2011. p. 100, grifo nosso.
29
A ideia da ponderação no processo do trabalho já foi aprofundada em outra obra de nossa lavra. Cf.
COSTA, Marcelo Freire Sampaio. Eficácia dos direitos fundamentais entre particulares: juízo de
ponderação no processo do trabalho. São Paulo: LTr, 2010.
30
FREITAS, Juarez. op. cit., p. 76.
31
Sobre o estudo dos outros princípios incidentes na execução laboral, vide, dentre tantos, SCHIAVI,
Mauro. Execução no processo do trabalho. São Paulo: LTr, 2008. pp. 24-35.
32
Dentre tantos precedentes, cf. Tribunal Superior do Trabalho. 2. Turma. Processo AIRR
151.70.2010.5.08.0000. Data de Julgamento: 04.05.2011. Rel. Ministro: Renato de Lacerda Paiva.
Data de Publicação DEJT 13.05.2011.
leitura sistemática , menor onerosidade ...
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167
de penhora de pecúnia em sede de execução provisória, conforme será apresentado
mais à frente.
Diz o citado dispositivo legal (art. 620 do CPC) que a execução, quando puder ser
promovida por mais de um meio, deverá ser realizada pelo caminho “menos gravoso
para o devedor”.33 Aliás, registre-se que o projeto do novo Código de Processo Civil,
tramitando no Congresso Nacional, possui disciplina idêntica (art. 729). 34
A jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho, como já salientado, vem
conferindo excessiva preponderância à menor onerosidade ao devedor em execução
provisional. E essa posição está cristalizada pelo Tribunal Superior do Trabalho por
intermédio da Súmula 417, III, com a seguinte redação:
III. Em se tratando de execução provisória, fere direito líquido e certo do impetrante a determinação de penhora em dinheiro, quando nomeados outros bens à penhora, pois o executado tem direito a que a execução se processe da forma que lhe seja
menos gravosa, nos termos do art. 620 do CPC.
Aliás, magistrados reunidos na Jornada de Execução Trabalhista havida em
Cuiabá, em novembro de 2010, rechaçaram o conteúdo da posição sumulada em apreço ao aprovarem a Orientação nº 21, cujo teor admite a possibilidade de penhora em
dinheiro em sede executiva provisional.35 Ratifica-se tal orientação, consoante argumentos que serão a seguir desenvolvidos.
Como visto em momento anterior, a técnica da leitura sistemática pretende ser uma
operação, para a resolução de um dado caso concreto, apta a demandar exegese ponderativa e escalonada (horizontal e vertical) da totalidade de os princípios, regras e valores
componentes de um sistema jurídico, hierarquizando-se topicamente o peso de cada uma
dessas modalidades normativas em busca da melhor interpretação, ante as nuanças do
caso concreto. Será o problema posto, a faticidade, com suas peculiaridades, que vai conduzir o desenlace buscado, levando-se em consideração a interpretação-aplicação desse
conjunto normativo. O item III da Súmula 417 impõe uma regra apriorística e genérica,
bem ao gosto da linha do positivismo jurídico. Não tem relação qualquer com a concepção de interpretação sistemática; passa longe dela.
Quando se menciona a questão da importância da faticidade, ou mais claramente,
as peculiaridades de cada caso objeto de apreciação jurisdicional, busca-se destacar algumas variáveis que deveriam ser dimensionadas de tal maneira que pudessem afastar
a incidência acrítica da citada posição sumular. Por exemplo, o fato de o executado ser
uma sólida instituição financeira, ou um grupo empresarial com dimensões ultrana-
33
A íntegra desse dispositivo diz que: “Quando por vários meios o credor puder promover a execução,
o juiz mandará que se faça pelo modo menos gravoso para o devedor”.
34
Quando por vários meios o credor puder promover a execução, o juiz mandará que se faça pelo
modo menos gravoso para o devedor.
35
A íntegra da redação é a seguinte: “EXECUÇÃO PROVISÓRIA. PENHORA EM DINHEIRO.
POSSIBILIDADE. É válida a penhora em dinheiro na execução provisória, inclusive por meio do
Bacen Jud. A Súmula nº 417, III, do Tribunal Superior do Trabalho (TST), está superada pelo art.
475-O do Código de Processo Civil (CPC)”.
168
temas atuais de direito
cionais, em invés de uma pequena sociedade individual, ou comprovada situação de
necessidade do credor, deveria ser capaz de afastar a regra geral da impossibilidade de
penhora de pecúnia em execução provisória, principalmente se for visualizada a tentativa de o executado protelar além do razoável o tempo de duração processual.
A impossibilidade de constrição de pecúnia não pode estar atrelada apenas e tão
somente ao critério da provisoriedade da via executiva, desconsiderando-se, repita-se,
as incontáveis peculiaridades apresentadas por cada caso singular objeto de apreciação,
a tal faticidade mais de uma vez mencionada.
Aliás, já se percebe na jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho precedentes esparsos capazes de progressivamente minar a força da posição sumular em
destaque. Por exemplo:
O princípio da menor onerosidade, consagrado no art. 620 do CPC não tem, em
regra, força para comprometer a ideia mestra, de que a execução se realiza no interesse
do credor (art. 612 do CPC). Ademais, o principio da menor onerosidade está atrelado
à possibilidade de execução por vários meios, o que não é o caso.36
Além do mais, a citada leitura sistemática do precedente sumular ora criticado,
considerando as características descritas dessa técnica, deveria não apenas aplicar insuladamente o teor do art. 620 do CPC, mas conjugar também a inteligência do disposto no art. 655 do CPC,37 o princípio da utilidade do resultado da execução para o
exequente, conforme previsto nos parágrafos 2º e 3º do art. 659 do CPC38, bem como
a ideia da primazia da satisfação, pela técnica executiva, do interesse do credor, consoante plasmado no art. 612 do CPC,39-40 além de o princípio da máxima utilidade da
execução, “construído a partir do disposto nos arts. 577, 579, 599, 600 e 601”,41 normas
36
Tribunal Superior do Trabalho. 3ª Turma. Processo TST-AIRR-15850-15.2010.5.04.0000. Relator
Min. Alberto Luiz Bresciani de Fontan Pereira. Data de Julgamento 20/10/2010. Há outros precedentes seguindo a mesma linha. Cf. Tribunal Superior do Trabalho. 2ª Turma. Processo AIRR
36300-40.1992.5.02.0040. Relator Renato Min. Lacerda de Paiva. Data de Julgamento 28/09/2012;
Tribunal Superior do Trabalho. 1ª Turma. Proc. AIRR 6736-46.2010.5.15.0000. Relator Min. Lelio
Bentes Corrêa. Data de Julgamento 24.08.2012.
37
“Art. 655. A penhora observará, preferencialmente, a seguinte ordem: I- dinheiro, em espécie ou
depósito ou aplicação em instituição financeira”
38“2o Não se levará a efeito a penhora, quando evidente que o produto da execução dos bens encontrados
será totalmente absorvido pelo pagamento das custas da execução;§ 3o No caso do parágrafo anterior
e bem assim quando não encontrar quaisquer bens penhoráveis, o oficial descreverá na certidão os
que guarnecem a residência ou o estabelecimento do devedor”.
39
Art. 612. Ressalvado caso de insolvência do devedor, em que tem lugar o concurso universal (art.
751, III), realiza-se a execução no interesse do credor, que adquire, pela penhora, o direito de preferência sobre os bens penhorados.
40
Para Julio César Bebber, o princípio do art. 612 do CPC sempre prevalecerá no processo do trabalho.
In: BEBBER, Julio César. Processo do trabalho: adaptação à contemporaneidade. São Paulo: LTr,
2011. p. 175.
41
BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil: tutela jurisdicional
executiva. 3ª ed. São Paulo: Saraiva. 2010. v. 3, p. 56.
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marcelo freire sampaio costa
169
essas que lidas em conjunto buscam a satisfação plena do credor em detrimento de os
possíveis atos procrastinatórios do executado ou de qualquer terceiro aptos a frustrar tal
finalidade, além da força a ser atribuída aos princípios constitucionais da efetividade da
atividade jurisdicional e duração razoável do processo.
A propósito, solução similar a defendida no presente encontra-se estampada no
art.878-D (“Havendo mais de uma forma de cumprimento da sentença ou de execução
do título extrajudicial, o juiz adotará sempre a que atenda a especificidade da tutela, a
duração razoável do processo e ao interesse do credor”) de projeto de lei de reforma da
execução trabalhista, fomentado no âmbito do Tribunal Superior do Trabalho, e já em
trâmite no Congresso Nacional.42
O standard sumular fixado pelo Tribunal Superior do Trabalho afasta a técnica
ponderativa desses preceitos, bem como, repita-se, as características peculiares de cada
situação julgada que poderiam conferir norte resolutivo apto a afastar a prevalência
usual da suposta não prejudicialidade do devedor, como sói acontecer na rotina decisória desse tribunal, pois entabulou verdadeira regra imutável de impossibilidade de
execução provisória incidir sobre dinheiro quando houver outros bens possíveis de
nomeação à penhora, em razão da inteligência isolada do art. 620 do CPC. Como dito
antes, qualquer raciocínio apriorístico no direito é equivocado, porque o direito é complexo, não admite meras reduções formais.
Portanto, o fato de os possíveis bens nomeados à penhora não possuírem razoável valor de mercado ou serem passíveis de rápida degradação pelo simples transcurso
do tempo, a reiterada conduta maliciosa do devedor em procrastinar indevidamente a
duração do processo, como acontece rotineiramente na jurisdição, o porte econômico
desse devedor (de um modestíssimo empreendedor até um gigante econômico de
atuação global), o grau da “necessidade” do credor, os distintos momentos procedimentais em que podem ser deflagradas as execuções provisórias (pode ser tanto em
sede de recurso ordinário como em agravo de instrumento para destrancar recurso
extraordinário), e tantas outras variáveis que poderiam ser aqui exemplificadas, não
teriam o condão de modificar a aplicação mecânica dessa posição sedimentada pelo
Tribunal Superior do Trabalho; daí porque a técnica sistemática ora defendida não
está sendo considerada. Se essa técnica fosse efetivamente realizada, as variáveis
citadas poderiam ter a aptidão para, em certas situações, afastarem o maior peso sempre aplicado na execução provisória sobre o art. 620 do CPC em detrimento de todos
os diversos outros dispositivos legais mencionados, constitucionais e infraconstitucionais, apontados em direção contrária.43
42
Projeto de Lei nº 606/2011.
43
Em sentido próximo vide GÓES, Gisele Santos Fernandes. A base ética da execução por subrrogação no processo civil brasileiro: os princípios da idoneidade do meio e da menor onerosidade. In:
SHIMURA, Sérgio; NEVES, Daniel Assumpção (Orgs.). Execução no processo civil: novidades e
tendências. São Paulo: Método, 2005.
170
temas atuais de direito
Veja-se que não se está a defender para toda e qualquer situação jurisdicional posta a
“total inaplicabilidade”44-45 do princípio insculpido no art. 620 do CPC, apenas, repita-se,
a necessidade de se interpretar verdadeiramente de maneira sistemática todos os preceptivos legais citados, de sorte que haja a possibilidade, dependendo da(s) peculiaridade(s)
apresentada(s) pelo caso concreto, na seara executiva definitiva ou provisória, da superação deste por outro(s) mandamento(s) legal(is) com esse contraposto(s).
O norte insculpido no art. 620 do CPC deveria servir como barreira de proteção
de possíveis excessos realizados em favor de o exequente, e não como verdadeiro marco intransponível de “limitação política impeditiva da execução”,46 como infelizmente
tem acontecido em sede de execução provisória no processo laboral.
Corroborando os argumentos ora esposados, irresistível a transcrição de trecho de doutrina sobre essa interpretação isolada do art. 620 do CPC na seara laboral, senão vejamos:
Menos gravoso não significa benefício do devedor em prejuízo ao credor. Não. Significa que,
se houver duas possibilidades de cumprimento da obrigação que satisfaça da mesma forma o
credor, escolher-se-á aquela mais benéfica ao devedor. Se existirem duas formas de cumprimento, mas uma delas prejudica o credor, escolher-se-á aquela que beneficia o credor.47
Também irresistível transcrever trecho de acórdão do Tribunal Superior do
Trabalho que corrobora integralmente os principais argumentos esposados no presente,
especialmente no tocante à avaliação do art. 620 do CPC em conformidade com a técnica de interpretação sistemática. Vejamos:
Convém lembrar que nenhum dispositivo legal deve ser interpretado senão em consonância
com todo o ordenamento que integra. Na hipótese dos autos, o Juízo de origem ao acolher e
limitar a penhora em R$ 3.000,00 sobre a renda da empresa, até perfazer o montante do crédito exequendo, nada mais fez do que conciliar o direito do empregado em receber o que lhe
era devido com o princípio da menor onerosidade da execução inserto no art. 620 do CPC, de
forma a assegurar a continuidade das atividades da entidade sindical...48
Não é demais registrar a concepção originária de o processo civil ratificar a suposta paridade (igualdade formal) de forças entre as partes litigantes, enquanto no processo
do trabalho o credor é ordinariamente hipossuficiente e usualmente desempregado, sem
possibilidade de prover o sustento de sua família. Portanto, palmar a necessidade de
44
Como já foi feita em trabalho anterior. Vide COSTA, Marcelo Freire Sampaio. Execução provisória
no processo do trabalho, cit., p. 83.
45
Nesse sentido temos, dentre outros, MENEZES, Claudio Armando Couce de. Teoria geral do processo e a execução trabalhista. São Paulo: LTr, 2003. p. 171.
46
BEBBER, Julio César. op. cit., p. 176.
47
OLIVEIRA, Francisco Antonio de. Execução na Justiça do Trabalho: doutrina, jurisprudência, súmulas e orientações jurisprudenciais. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1988. p. 93.
48
Tribunal Superior do Trabalho. 6ª Turma. Processo AIRR 119700-12.2006.5.04.0005. Relator Min.
Augusto César Leite de Carvalho. Data de Publicação DEJT 19.12.2011.
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171
serem observadas tais variáveis, o que certamente alteraria o rumo dessa jurisprudência
consolidada em enfoque, pelo menos em determinadas situações.
Para finalizar, a aplicação da citada interpretação sistemática teria o condão de
lograr verdadeira execução equilibrada, capaz de equacionar a efetividade da jurisdição
com a ampla defesa do devedor, ou, em outros termos, do balanceamento dos princípios
do resultado e da menor gravidade da execução.49
4. CONCLUSÃO. PROPOSTA DE CANCELAMENTO OU NOVA REDAÇÃO
AO ITEM III DA SÚMULA 417 DO TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO
Recentemente o Tribunal Superior do Trabalho, em louvável iniciativa, por intermédio
do que foi chamado “2ª Semana do TST”, ocorrida ao longo do mês de setembro, acabou
por cancelar e também alterar a redação de diversos escólios jurisprudenciais consolidados.
O item III da Súmula 417 que afasta integralmente a hipótese de possibilidade
de penhora em dinheiro em sede de execução provisória, quando houver nomeação de
outros bens à penhora, entra em conflito com a construção doutrinal apresentada, pois,
conforme razões demonstradas ao longo do presente, o princípio disposto no art. 620
do Código de Processo Civil não pode ser compreendido de tal maneira que afaste, por
completo, a possibilidade de penhora pecuniária em sede de execução provisória.
Como se pretendeu demonstrar ao longo desse texto, a jurisdição não pode olvidar das peculiaridades descortinadas em casos concretos, sob pena de empobrecer
grandemente a atividade jurisdicional, ofender-se a técnica da leitura sistemática aqui
delineada, e, principalmente, serem ordinarizadas as decisões ineficazes e injustas, daí
porque fica a sugestão de cancelamento do item III da Súmula 417 do Tribunal Superior
do Trabalho ou alteração dessa redação, de sorte que se permita a possibilidade de ser
admitida, em vista das peculiaridades do caso concreto (exemplo: incontestável capacidade econômica do devedor, comprovada situação de necessidade do credor ou até
avançado estágio de tramitação processual da demanda), a concreção de penhora de
pecúnia em sede de execução provisória.
5. BIBLIOGRAFIA
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad.: Virgílio Afonso da Silva. São
Paulo: Malheiros Ed., 2008.
ÁVILA, Humberto. Segurança jurídica: entre a permanência, mudança e realização no
Direito Tributário. São Paulo: Malheiros Ed., 2011.
BEBBER, Julio César. Processo do trabalho: adaptação à contemporaneidade. São
Paulo: LTr, 2011.
BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil: tutela
jurisdicional executiva, cit., v. 3.
49
BUENO, Cassio Scarpinella. op. cit., p. 57.
172
temas atuais de direito
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13
FUNÇÃO SOCIOAMBIENTAL DA PROPRIEDADE PÚBLICA
E A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA NO ÂMBITO DA
AMAZÔNIA LEGAL
Luzia do Socorro Silva dos Santos / Marcos Alberto Pereira Santos
Resumo: O presente artigo examina alguns aspectos da Lei nº 11.952/2009, que trata da
regularização fundiária no âmbito da Amazônia Legal, a fim investigar se instrumentaliza o
cumprimento da função socioambiental da propriedade pública, partindo da inferência de que
o Poder Público deve submissão a esse regime de solidariedade como todos os seus cidadãos.
Palavras Chaves: Regularização Fundiária – Amazônia Legal – Função Social da
Propriedade – Função Social da Propriedade Pública – Lei nº 11.952, de 2009.
SUMÁRIO: 1. O contexto da edição da Lei nº 11.952/2009 em face da função social e ambiental
da propriedade. 2. Regularização Fundiária na Amazônia Legal – Lei nº 11.952/20. 3. Função
Social e Ambiental da Propriedade Pública. 4. Função Socioambiental da Propriedade e a Lei
de Regularização Fundiária da Amazônia Legal. 5. Notas Conclusivas. 6. Bibliografia.
1. O contexto da edição da Lei nº 11.952/2009 em face da
função social e ambiental da propriedade
O problema fundiário do Brasil é conhecido e exige resolução, principalmente
na região Amazônica a necessidade de ação se mostra mais premente, pois segundo
levantamento do governo federal, a região tem menos de 4% de seu território regularizado.1 O número é ainda mais preocupante considerando que a região representa 61%
do território brasileiro.
Essa temática de ausência de regularização remete à incerteza quanto ao direito de
propriedade, implicando em desdobramentos significativos, dentre os quais podemos
citar: (I) insegurança jurídica quanto à propriedade, afugentando investimento estatal
e também do capital privado, que teme aportar recursos na região por não ter garantia
de retorno ante à falta de segurança; (II) invasões de terras, pois não se sabe ao certo
quem é o dono; (III) grilagem; (IV) desmatamento e degradação ambiental; (V) trabalho análogo ao de escravo.
1 Plano Amazônia Sustentável. PAS(2008). Ministério da Integração Nacional, p. 03.
174
temas atuais de direito
Atentas para esse cenário, as Políticas Públicas2 do Estado focaram para necessidade de solucionarem as informalidades, e, nesse esforço, que segundo Vicente de
Abreu Amadei, “cunhou-se a expressão regularização fundiária como categoria maior
ou gênero, que, por sua ampla abrangência, abarca todas as etapas, modos e instrumentos de regularização das informalidades imobiliárias”.3
Especificamente, para tratar da regularização fundiária das ocupações incidentes
em terras situadas em áreas da União, no âmbito da Amazônia Legal, foi editada a Lei
nº 11.952, de 2009.
O Estado, embora possuísse o domínio na quase totalidade da região, percebeu
que as ocupações incidentes em suas áreas eram irreversíveis e que mais sensato seria
regularizá-las. E assim o fez com a edição da lei acima citada, no entanto, antevemos
que exige a satisfação de alguns requisitos, identificados principalmente com a observância da função socioambiental da propriedade.
Em um primeiro momento, surge a ideia da função social da propriedade, erigindo-se como princípio com positivação no direito constitucional moderno, o qual restringe os atributos da propriedade, para que ela não seja usada e gozada egoistamente,
mas, em uma dimensão coletiva, solidarística. Assim, se por um lado é garantido o
direito à propriedade, por outro, ele é condicionado ao atendimento de um dever, de
dele se valer somente com escopo social.
A função social foi expressamente prevista na Constituição Federal de 1988.
Primeiro, no art. 5º, XXIII, no rol dos direitos e garantias fundamentais, revestindo-a
de irretratabilidade, dureza eterna, que jamais poderá ser modificada, ante o fato de ser
pétrea cláusula (art. 60, §4º, IV).
A função social também foi contemplada como princípio de ordem econômica
(art. 170, III), que nas palavras de José Afonso da Silva, tem como objetivo ser instrumento destinado à realização da existência digna de todos e da justiça social. 4
A Constituição vigente foi bem mais além do que as anteriores, visto que não só
previu expressamente a exigência ao atendimento à função social, como também consagra no seu texto o bem jurídico ambiental que, ao nosso sentir, integra o conteúdo da
função social da propriedade e, por isso, empregamos a expressão “função socioambiental da propriedade”.
Essa inferência se extrai a partir da interpretação do tratamento dado ao meio ambiente no sistema jurídico brasileiro.
2
Políticas públicas aqui entendida conforme Cristiane Derani, para quem “é um conjunto de ações
coordenadas pelos entes estatais, em grande parte por eles realizadas, destinadas a alterar as relações
sociais existentes. Como prática estatal, surge e se cristaliza por norma jurídica”. Política Pública e
norma jurídica. In: BUCCI, Maria Paula Dallari (Org). Políticas Públicas e reflexões sobre o conceito jurídico. p. 135).
3
Regularização de Terras da União, p. 306.
4
Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 790.
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Compreendemos que a Constituição Federal de 1988 recepcionou a definição legal de meio ambiente prevista no artigo 3º da Lei nº 6.938/1981, concebendo-o como
“o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e
biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”.
Esse bem jurídico foi proclamado no artigo 225 do texto constitucional como direito de todos, de natureza jurídica difusa, por ser transindividual, com impossibilidade
fática e jurídica de ser apropriado por alguem com exclusividade, por se tratar de bem
imaterial, o equilíbrio ecológico, assim reconhecido:
Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum de todos
e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever
de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
Identificamos, assim, importante característica do bem jurídico ambiental que lhe
vincula com o direito à vida, qual seja, ser um bem essencial à sadia qualidade de vida,
conteúdo indispensável para sua escorreita interpretação de direito fundamental de solidariedade, pertencente à categoria dos direitos humanos.
A Constituição vincula a dinâmica do meio ambiente equilibrado como essencial
à vida saudável. Por consistir em termo jurídico indefinido, ao intérprete cabe a tarefa
de densificar a nomenclatura normativa.
Sempre oportunas as palavras de Celso Antonio Pacheco Fiorillo,5 que diz que
os valores positivados abrangidos no enunciado sadia qualidade de vida são aqueles
que tutelam a vida humana, a exemplo do patrimônio genético, da fauna, da flora,
dos recursos minerais, como também aqueles decorrentes da dignidade humana,
fundamento maior a ser observado normativamente.
Esse bem jurídico ambiental, essencial à sadia qualidade de vida, é observado
desde a Lei nº 6.938, de 31.8.1981, em uma concepção ampliada, abarcando o ambiente
construído pelo ser humano nas suas relações sociais, econômicas e culturais como ser
vivente da terra, pelo que se constata ser unidade multifacetária a partir das relações
estabelecidas entre seus elementos.
Assim é que essas relações permitem observarmos dimensões destacadas dessa
realidade jurídica, entre as quais destacamos: o meio ambiente natural, meio ambiente
cultural, meio ambiente urbano, meio ambiente rural.
O meio ambiente natural corresponde ao meio ambiente físico, constituído pelos
elementos bióticos e abióticos que possibilitam o surgimento, a manutenção e a transformação do espaço no qual se desenvolvem todas as formas de vida, encontrando claro
reconhecimento no artigo 225 citado.
O meio ambiente cultural representa o mundo humano, imaginado, criado, construído, desenvolvido, mantido, modificado, transformado, enfim, vivido pelo espírito
do homem e da mulher, seres componentes da biosfera.
5
Fundamentos constitucionais do direito ambiental brasileiro. In: Direito ambiental e cidadania,
pp. 46-48.
176
temas atuais de direito
A normatividade de regência dessa dimensão se situa nos artigos 215 e 216 c/c
o artigo 225 da Constituição Federal, que se irradia por todo o sistema de tutela dos
direitos culturais inerentes ao bem jurídico da cultura, quer na significação de formação pessoal, quer no sentido antropológico de modos de vida criados, adquiridos e
transmitidos de uma geração para outras por determinado agrupamento humano, materializados mediante símbolos, que abrigam valores aceitos pelo grupo social. Quer
dizer, o direito ambiental brasileiro protege a cultura brasileira identificada com o seu
patrimônio cultural, na forma concebida no artigo 216 do texto magno.
Do meio ambiente cultural, pode-se distinguir outra dimensão do fenômeno ambiental, o meio ambiente urbano, integrado pelos artigos 182 em combinação com o artigo 225, ambos da Lei Maior, representando os espaços habitáveis pela pessoa humana,
ou seja, os espaços de vida e convivência familiar, profissional, recreativa, religiosa etc.
O artigo 182 referido diz que a política de desenvolvimento urbano tem por objetivo organizar o desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar
de todos os habitantes.
As funções sociais da cidade, sintetizadas pelo direito urbanístico na promoção de
moradia e condições adequadas de trabalho, higiene, recreação e de circulação humana,
são alargadas pelo direito ambiental, que incorpora para o âmbito dos espaços ocupados pelo ser humano a efetivação de todos os direitos fundamentais.
Esse espaços ocupados pelas pessoas estão diretamente vinculados com a função social da propriedade contida no artigo 5º, XXIII, como direito fundamental, erigido em princípio da ordem econômica preconizado no artigo 170, III, ambos da Constituição Federal.
Assim é que a legislação civil reconhece a imbricação da função social da propriedade com as dimensões do meio ambiente em comento, como se vê pelo § 1º do
artigo 1.228 do Código Civil, que professa que o exercício do direito de propriedade
deve guardar consonância com as finalidades econômicas e sociais, de modo que sejam
preservados, conforme disciplina legal específica, a flora, a fauna, as belezas naturais,
o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico-artístico-cultural, bem como prescreve
que seja evitada a poluição do ar e das águas.
Citamos, por derradeiro, o meio ambiente rural se reporta aos artigos 184 a 190
combinado com o artigo 225, vinculado à ordem jurídico-econômica rural, que abrange
o manejo dos recursos ambientais na produção de bens agrícolas de acordo com a função social da propriedade rural, que tem como um dos instrumentos a reforma agrária,
satisfazendo-se assim o equilíbrio humano e ecológico desse aspecto do meio ambiente, essencial a sadia qualidade de vida.
Para o artigo 186 a função social da propriedade rural é cumprida quando simultaneamente atende, segundo critérios e graus fixados legalmente, os requisitos do aproveitamento racional e adequado do imóvel rural, da utilização adequada dos recursos
naturais disponíveis e da preservação do meio ambiente natural, bem como a observância das disposições que regulam as relações de trabalho, proporcionando o bem estar
de proprietários e trabalhadores.
Para a ordem jurídica esses são os pressupostos básicos para o alcance da sadia
qualidade de vida no ambiente rural.
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Partindo dessas considerações, defendemos que a função socioambiental da
propriedade também se aplica aos bens públicos e, diante disso, pretendemos debater se a regularização fundiária almejada pela Lei nº 11.952/2009, instrumentaliza ou revela o princípio da função socioambiental da propriedade pública, já que
mantém relação direta com o patrimônio pertencente à União, pessoa jurídica de
direito público, cujas terras podem ser objeto de transferência, mediante alienação
ou concessão de direito real de uso aos beneficiários que a possuem, caso atenda
seus requisitos.
2. Regularização Fundiária na Amazônia Legal –
Lei nº 11.952/2009
Segundo reflexão do próprio Governo Federal, divulgada no Plano da Amazônia
Sustentável – PAS de 2008, a ocupação na região foi desastrosa, pois houve apossamento de terras de forma irregular e sem a garantia dos direitos de propriedade, que
gerou insegurança jurídica e favoreceu a grilagem, além da degradação ambiental em
razão do desmatamento da Floresta Amazônica. Em algumas localidades a ocupação
ocorreu, apesar da inexistência de infraestrutura e transporte, vários assentamentos foram implantados sob a ideologia de se povoar as fronteiras para não serem invadidas.
Ainda hoje, o acesso aos serviços de água, saneamento e eletrificação são ainda muito
precários, embora haja abundância de recursos naturais.
Cabe notar que a expansão das ocupações irregulares se desenvolveu à margem da
lei nas regiões mais carentes e afastadas, contando em muitos casos com o apoio, ainda
que velado, de lideranças políticas e outros segmentos da sociedade.
Por conta da debilidade em seu processo colonizatório, pode-se dizer que o Brasil
tem uma dívida histórica com a região. Nas palavras de Alex Fiúza de Mello a “federação, no Brasil, em toda história republicana, tem sido uma ficção; e a região Norte, na
geografia política do país, um insignificante detalhe”.6
A Lei nº 11.952, de 2009, pretende diminuir esse débito. O Estado, então possuidor do domínio das áreas ocupadas se mostra convencido de que sua conduta não
poderia ser outra que mediar as tensões sociais através da regularização fundiária, atentando para seu dever jurídico de adotar medidas para preservar e recuperar a qualidade
ambiental essencial à vida saudável de todos, conforme preceitua o §1º do artigo 225
da Constituição Federal.
A referida Lei foi direcionada apenas para Região Amazônica, assim compreendendo os Estados os Estados do Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Rondônia,
Roraima, Tocantins, Pará e do Maranhão na sua porção a oeste do Meridiano 44º e que
não menciona o Estado do Goiás.7
6
Mello, Alex Fiúza de. Para Construir uma Universidade na Amazônia. Realidade e Utopia. p. 44.
7
O art. 1º da Lei 11.952, de 2009, remete a definição da Amazônia Legal para a Lei Complementar
nº 124, de 2007, que exclui o Estado do Goiás.
178
temas atuais de direito
O seu principal objeto é regularizar as ocupações existentes, quer dizer, o ponto
fulcral que diferencia a regularização fundiária dos demais institutos agrários é o fator
ocupação, pois pretende regularizar apenas o que está irregular, que no caso são áreas
urbanas ou rurais indevidamente ocupadas, pertencentes tanto a particulares como ao
Poder Público.
Para o seu mister, a Lei elegeu a alienação gratuita ou onerosa, isto é, a doação,
venda direta ou mediante licitação das áreas, como também o instituto da concessão de
direito real de uso, onerosa ou gratuita, por tempo certo ou indeterminado.
Ao estabelecer os requisitos a serem preenchidos dos beneficiários teve especial
preocupação com o fator temporal, ou seja, de não promover novas ocupações, mas em
beneficiar somente aqueles que comprovadamente já estivessem na área em razoável
decurso do tempo.8
A Lei estabeleceu o teto máximo do tamanho da área a ser regularizado em até 15
(quinze) módulos fiscais e não superiores a 1.500ha (mil e quinhentos hectares), para
evitar a consagração dos latifúndios.
Todavia, foi com a exigência das condições resolutivas que a Lei demonstrou
sua imprescindibilidade no processo fundiário, pois se bem entendidas e cumpridas,
chegar-se-á a conclusão que o Poder Público trata com seriedade o problema e não quis
vilipendiar a floresta, mas preservá-la, ao passo que se cercou de medidas para regularizar só os pequenos proprietários.
A condição resolutiva é elemento acidental do negócio jurídico, que atua no plano
da eficácia do fenômeno respectivo. Tem previsão no Código Civil: “Art. 127: Se for
resolutiva a condição, enquanto esta se não realizar, vigorará o negócio jurídico, podendo exercer-se desde a conclusão deste o direito por ele estabelecido”.
Pela definição infere-se que enquanto a condição resolutiva não se implementar, o
negócio vigorará perfeitamente, podendo se exercer os direitos imanentes do negócio.
Visualizando na prática a condição resolutiva na regularização fundiária, temos
que os títulos ou termos outorgados pertencerão ao beneficiário, que poderá exercer os
direitos de propriedade dele decorrentes. Entretanto, caso descumpra alguma das exigências impostas, a concretizar as condições resolutivas, o negócio se resolverá, restará
desfeito, tornando sem efeito o título ou termo anteriormente outorgado.
O beneficiário, portanto, receberá a área regularizada (não importando se gratuita
ou onerosamente) e ficará obrigado a não praticar nenhuma das condições resolutivas,
que se implementadas, resolverá o negócio, cessando os efeitos da alienação ou cessão.
As condições resolutivas previstas na Lei de Regularização, dada à sua importância, além de já estarem expressas na norma, presumindo-se, assim, que todos têm
conhecimento, também devem constar no título que será levado ao registro público,
que possui efeito erga omnins.
8
No caso dos ocupantes rurais, de acordo com o art. 5º, IV, para fazer jus à regularização deverá comprovar o exercício da ocupação e exploração direta, mansa e pacífica, por si ou seus antecessores,
anterior a 1º de dezembro de 2004.
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Por isso o artigo 15 da Lei, nos casos de regularização rural, exige que o título
de domínio ou termo de concessão de direito real de uso deverão conter, entre outras,
cláusulas sob condição resolutiva, pelo prazo de 10 (dez) anos:
Art. 15. O título de domínio ou, no caso previsto no § 4o do art. 6o, o termo de concessão de
direito real de uso deverão conter, entre outras, cláusulas sob condição resolutiva pelo prazo
de 10 (dez) anos, que determinem:
I – o aproveitamento racional e adequado da área;
II – a averbação da reserva legal, incluída a possibilidade de compensação na forma de legislação ambiental;
III – a identificação das áreas de preservação permanente e, quando couber, o compromisso
para sua recuperação na forma da legislação vigente;
IV – a observância das disposições que regulam as relações de trabalho; e
V – as condições e forma de pagamento.
De observar que com exceção do inciso V, que trata das condições e forma de pagamento, todas as condições resolutivas em verdade se assemelham aos requisitos exigidos de toda propriedade rural para que ela cumpra sua função social, nos termos do
artigo 186 da Constituição Federal, consistente no aproveitamento racional e adequado,
bem como na utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do
meio ambiente, bem como observância das disposições que regulam as relações de
trabalho e exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.
Dessa forma, os beneficiários da regularização são obrigados a comprovar o cumprimento da função socioambiental da sua propriedade, sob pena de haver reversão das
áreas em favor da União.
3. Função Social e Ambiental da Propriedade Pública
Hodiernamente não há mais espaço ao antigo absolutismo do direito de propriedade (jus utenti et abutendi), cujos atributos deveriam ser exercidos indistintamente, sem
nenhuma outra preocupação a não ser com o seu exercício individual.
Daniella Santos Dias observa que a propriedade, enquanto instituto jurídico e direito subjetivo individual, por muito tempo corporificou os interesses isolados dos proprietários, que exerciam o jus domini sem considerar os interesses e objetivos sociais,
fruto da influência do Direito Romano em que o direito de propriedade se constituía em
um atributo individual da personalidade.9
Esse individualismo e absolutismo foram contrapostos por orientações progressistas que elevou a propriedade ao campo dos interesses comuns e ditos sociais.
De acordo com Carlos Alberto Dabus Maluf, hoje, a ninguém é dado ignorar, que
a propriedade perdeu já as suas mais fortes características antigas, e que, ante o desenvolvimento das novas correntes do pensamento político e social, inspiradas nas ideias
solidarísticas da época, vai sendo paulatinamente substituída a sua concepção clássica
9
Desenvolvimento Urbano: Princípios Constitucionais, p. 7
180
temas atuais de direito
por uma concepção dinâmica, mais humana e de maior e mais denso conteúdo social.10
Fernando Alves Correia caracteriza:
A função ou vinculação social significa que o proprietário deve dar uma utilização socialmente justa ao objeto do direito de propriedade. Ela tem subjacente a recusa de um ordenamento
da propriedade no qual o interesse individual tenha uma precedência em face do interesse
geral.11
Nas palavras de Sílvio Luiz Ferreira da Rocha, a função social da propriedade pode
ser concebida “como um poder-dever ou um dever-poder do proprietário de exercer o seu
direito de propriedade sobre o bem em conformidade com o fim ou interesse coletivo”.12
Não resta dúvida que hoje a ideia de conformação da propriedade privada ao
interesse público é simpática, inclusive sendo exaustivamente consagrada em nossa
Constituição Federal em vários dispositivos (art. 5º, XXIII, art. 170, III, art. 182, § 2º
e art. 186).
Também o é, fartamente prevista em vários diplomas infraconstitucionais, notadamente no Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257, de 2001) e no Código Civil.
Questão não tão bem quista é tese de que função social também acometeria a
propriedade pública.
Para Maria Sylvia Zanella Di Pietro, a Constituição brasileira adota expressamente o princípio da função social da propriedade privada, mas também agasalha, embora
com menos clareza, o princípio da função social da propriedade pública, que vem sendo
inserido de forma implícita em alguns dispositivos constitucionais que tratam da política urbana.13
Anderson Schreiber e Gustavo Tepedino também se posicionam pelo acometimento da função social da propriedade aos bens públicos:
Neste sentido, conclui-se que também a chamada propriedade pública tem uma função social.
A referência corriqueira à “função social da propriedade privada” explica-se pelo fato de que
é, neste âmbito, que a funcionalização opera de forma mais revolucionária, afastando a tradicional noção da propriedade privada como espaço de liberdade individual e tendencialmente
absoluta do titular do domínio. A propriedade pública, ao contrário, já se dirige, em tese, ao
atendimento dos interesses de todas as pessoas e, por isso mesmo, referir-se à sua função
social costuma parecer dispensável, uma repetição inútil daquilo que já lhe é reconhecido
como essencial. A verdade, todavia, é que a propriedade pública é, por definição, voltada não
ao interesse social, mas ao interesse público, e o reconhecimento de sua função social impõe
uma verificação de conformidade entre estes dois interesses, cuja importância não pode passar
despercebida ao intérprete.14
10
Limitações do Direito de Propriedade, p. 72
11
Fernando Alves Correia. O Plano Urbanístico e o Princípio da Igualdade, p. 314.
12
Função Social da Propriedade Pública, p. 71
13
Função Social da Propriedade Pública. Revista Eletrônica de Direito de Estado, p. 2.
14
A Garantia da Propriedade no Direito Brasileiro, Revista da Faculdade de Direito de Campos, p. 112.
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Cristina Fortini corrobora este entendimento:
A Constituição da República não isenta os bens públicos do dever de cumprir função social.
Portanto, qualquer interpretação que se distancie do propósito da norma constitucional não
encontra guarida. Não bastasse a clareza do texto constitucional, seria insustentável conceber que apenas os bens privados devam se dedicar ao interesse social, desonerando-se
os bens públicos de tal mister. Aos bens públicos, com maior razão de ser, impõe-se o dever
inexorável de atender à função social.15
Fazendo coro com autores citados, é forçoso concordar com vinculação tanto
da propriedade privada quanto pública à função social da propriedade, posto que o
Constituinte não promoveu qualquer restrição a sua incidência.
Nesse sentido é a inteligência do artigo 182 da Constituição Federal, principalmente o seu parágrafo § 2º que, de maneira inequívoca, condiciona o adimplemento da
função social ao cumprimento das ordenanças do plano direto.
Observamos que tal norma é destinada a todos, indistintamente, tanto proprietários privados como ao Poder Público. Aqueles ficam obrigados porque devem cumprir
o estatuído na legislação urbanística. O Poder Público, por sua vez, está obrigado, notadamente levando em conta que a municipalidade tem a obrigação legal de legislar,
ditando as diretrizes urbanas a ser seguida, bem como porque os bens do Poder Público
em todas espécies devem se submeter ao regramento urbanístico proposto.
Por isso, Silvio Luís Ferreira da Rocha também se posicionou favorável à função social da propriedade pública, pois “os bens públicos estão submetidos ao cumprimento de uma função social, pois servem de instrumento para a realização, pela
Administração Pública, dos fins que está obrigada”.16
Asseverou ainda:
Para nós, a finalidade cogente informadora do domínio público não resulta na imunização dos
efeitos emanados do princípio da função social da propriedade, previsto no texto constitucional. Acreditamos que a função social da propriedade é princípio constitucional que incide
sobre toda e qualquer relação jurídica de domínio, pública ou privada, não obstante reconheçamos ter havido um desenvolvimento maior dos efeitos do princípio da função social no
âmbito do instituto da propriedade privada, justamente em razão do fato de o domínio público,
desde a sua existência, e agora, com maior intensidade, estar de um modo ou de outro, voltado sempre ao cumprimento de fins sociais, pois, como visto, marcado pelo fim de permitir à
coletividade o gozo de certas utilidades.17
Então a função social não seria uma redundância, mas mais um instrumento a
favor da Administração para consecução do fim público desejado.
15
A função social dos bens públicos e o mito da imprescritibilidade, p. 117.
16
Função Social da Propriedade Pública, p. 125.
17
Ob. cit., p. 127
182
temas atuais de direito
Em uma comparação mais que forçada, a função social da propriedade dos bens
públicos, seria para administração, o mesmo que as ações afirmativas a exemplo da Lei
de Cotas, seria para o princípio da igualdade. Quem é favorável ao discrímen consegue
entender que, mormente à igualdade formal prevista na Constituição, o Legislador deve
promover a igualdade material, com medidas pontuais, compensatórias e inclusivas
dos grupos alijados. Assim as ações afirmativas não seria “chover no molhado”, mas a
quitação do débito social.
No caso da função social da propriedade pública a ideia é a mesma. Que o
Poder Público deve perseguir a finalidade pública ninguém contesta. Mas, seriam
incoerentes medidas que o auxiliasse nesse intento? A resposta por óbvio é negativa, pois em nome do interesse coletivo qualquer medida nesse sentido deve ser
recepcionada.
Assim, a função social da propriedade pública, como é instrumento que se destina
ao atendimento do fim público, é legítima.
Por evidente que esse princípio não pode ser aplicado, aleatoriamente, precisa ser
ponderado e contextualizado. O que se defende é sua existência, de modo a inspirar os
aplicadores do direito.
Ademais, o estágio atual de nosso ordenamento jurídico reflete de forma inexorável que o Estado não somente é senhor de direitos, mas também é detentor de
obrigações, dentre elas submeter seu patrimônio às mesmas diretrizes do que a dos
seus cidadãos.
Essa questão se reporta diretamente aos direitos de solidariedade, assim chamados os direitos humanos de terceira geração, levando-se em consideração a historicidade de seu reconhecimento, como nos dá exemplo o direito ambiental, um dos
integrantes da unidade de proteção da dignidade humana, em que o Poder Público
assume tanto polaridade ativa quanto à passiva, em se tratando da defesa desses interesses comuns a todos.
Assim é que o Poder Público está obrigado como sujeito de direito a cumprir
os novos ditames exigidos para utilização dos bens sob sua égide, desempenhando
em primeiro lugar a missão de agir de conformidade com a função socioambiental da propriedade determinada também pela proteção do equilíbrio ecológico, na
dicção dos artigos 5º, XXII e XXIII, 170, VI, 186, II, 225 da Constituição Federal.
4. Função Socioambiental da Propriedade e a Lei de
Regularização Fundiária da Amazônia Legal
A Lei de Regularização que dispõe sobre a regularização fundiária das ocupações
incidentes em terras situadas em áreas da União, no âmbito da Amazônia Legal, conforme inserto na exposição de motivos, visa regularizar 67 milhões de hectares (13,42%
da área total da região) e assim implantar uma política de regularização fundiária, reduzindo os conflitos e permitindo segurança jurídica, inserção produtiva e acesso às
políticas públicas para aqueles que hoje a ocupam.
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No caso específico da Amazônia Legal, que o próprio o Estado foi o mentor, promotor e financiador do débito social,18 do qual decorreu um vácuo de sentido na história
da Amazônia, cuja ocupação pode ser sintetizada em exploração e esquecimento, e bem
definida na expressão cunhada por Alex Fiúza Mello, como a periferia da periferia:
Se o Brasil é esse país dividido por apartheides sociais e econômicos de toda ordem, ainda
não superados, a Amazônia, a seu turno, é a periferia de toda essa periferia, a última região
que se tornou brasileira no Império, um anexo da República, um “espaço exótico” ao olhar
estrangeiro do Centro-Sul, a última fronteira dos bandeirantes, condenada, pelo estado nacional e pela sociedade brasileira, a cumprir a função de simples almoxarifado do país, tomada
ora como terra-de-ninguém, ora como vazio demográfico, “inferno verde”, “eldorado” ou
santuário intocável, ignorada nas suas riquezas e potencialidades, expropriada dos fatores de
sua autodeterminação, Brasil tardio, pária do pacto federativo.19
O resultado foi um quadro de incoerência. De um lado, a entidade estatal, que tem
a finalidade no bem comum, tendo capacidade de direito para adquirir bens para desempenhar suas atividades em busca de realizar sua finalidade, tendo domínio quase que
integralmente sobre a região. D outro lado, o povo, que mormente seja o legitimador do
Estado, deparou-se sendo vilipendiando por ele, já que muitos cidadãos, não obstante
tendo a posse de terras nessas região esquecida, eram vistos como esbulhadores.
Assim, a Lei de Regularização é a representação dos papéis por quem de fato deveriam ser os atores. E para nós, afigura-se com clareza, a sua conformação ao espectro
da função socioambiental da propriedade pública.
É fácil constatar que não seria razoável o Estado permanecer como proprietário
das áreas ocupadas, pelo simples prazer de sê-lo, quando na verdade o quadro social
mostra de maneira inequívoca, que as ocupações são irreversíveis.
A propriedade dessas áreas em nome do Estado, ao invés de estar projetada para o
bem-estar público, acarretou efeitos em sentido contrário, à medida que esse domínio
estatal não promoveu à segurança jurídica, ao inverso, é um dos catalisadores do caos
social na região.
Assim, logram-se mais resultados com regularização do que com o anterior estado
de inércia. Com a Lei, podemos ter, a um só tempo, a promoção da Política Agrária e
da Política Urbana e, o que é melhor, o Estado saindo do campo da retórica e fixando
medidas pontuais ao rechaçar o desordenamento das ocupações.
Com isso, amolda-se à função socioambiental da propriedade pública, à medida
que a regularização se presta a melhorar o uso do bem sob a égide do Poder Público.
Temos, portanto, que a função da propriedade pública garantiu que os interesses
do bem comum fossem mais bem atendidos com a Lei de Regularização ao condicionar
as áreas regularizadas à função socioambiental da propriedade.
18
Quando por exemplo, durante o Regime Militar, incentivou e financiou a ocupação integracionista:
“integrar para não entregar”.
19
Mello, Alex Fiúza de. Para Construir uma Universidade na Amazônia. Realidade e Utopia, pp. 42-43.
184
temas atuais de direito
Assim, a regularização fundiária pública inspirou o Estado a melhor destinar bem
de seu domínio (áreas objetos da regularização, que apesar de serem destinados ao fim
público, não estavam afetadas a nenhum interesse específico), isto é, a funcionalizá-los,
para colher resultados mais favoráveis à coletividade, para tanto, exigiu o cumprimento
da função socioambiental da propriedade privada, também em prol do social.
O Estado não está regularizando os bens sem nenhuma contrapartida, exige a sua
conformação à função socioambiental da propriedade.
No caso dos imóveis rurais, por exemplo, o Texto Constitucional no seu artigo
186 estabelece os seguintes requisitos: I – aproveitamento racional e adequado; II –
utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;
III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV – exploração
que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.
Como já dito em linhas anteriores, a regularização só será levada a efeito se o beneficiário cumprir condições resolutivas, que na verdade, com exceção das condições
de pagamento, são os mesmos requisitos estabelecidos constitucionalmente.
Pelo que se conclui que a observância das condições resolutivas também significa
o cumprimento da função socioambiental da propriedade e o descumprimento desta
implica em implementação daquelas.
Dessa feita, a função socioambiental da propriedade é o princípio, meio e fim
da regularização: princípio, porque é o que motiva o Estado a promovê-la, é sua inspiração e fundamento; meio, porque condiciona a regularização à exigência de seu
cumprimento; c) e fim, porque humaniza e socializa o bem regularizado, que se por
um lado deixou de pertencer ao Estado (coletividade) para ingressar no patrimônio do
particular, por outro lado, continua a servir à coletividade, em razão da ruptura com o
paradigma liberal de absolutismo e individualidade da propriedade.
A propriedade se gozada nesse prisma de funcionalidade, é muito mais exuberante e interessante à coletividade do que como mais um bem de acervo, que embora
rotulada de bem do público não desenvolve o mister a que se presta.
Na regularização fundiária urbana, a função socioambiental da propriedade pública mostra ainda contornos mais nítidos, em que o Estado, em observância ao art. 182
da Constituição Federal, “deve ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da
cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes”.
Assim, conforme inteligência do artigo 182, § 2º, da Constituição, a propriedade
urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.
O plano diretor é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana, aprovado pela Câmara Municipal, é obrigatório para cidades com mais
de vinte mil habitantes (art. 182, §1º da CF). Os municípios menores deverão regular
ordenamento territorial mediante suas Leis Orgânicas.
De acordo com Jacinto Arruda Câmara, o plano diretor presta-se a dar contornos
de precisão ao conceito fluído de função social da propriedade urbana, pois esta a cumpre quando atende às exigências fundamentais expressas no plano diretor; desempenha
importante papel institucional, por ser considerado instrumento básico da política de
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desenvolvimento e expansão urbana, apresentando-se como condição necessária para
o implemento de diversos instrumentos de construção de uma política urbana como
direito de perempção, outorga onerosa do direito de construir, operações urbanas consorciadas e transferência do direito de construir.20
Nessa esteira, a Lei de Regularização em seu art. 22, também se mostra alinhada
com o princípio da função aqui referenciada, ao exigir o ordenamento territorial urbano
como requisito para receber área objeto de regularização:
Art. 22. Constitui requisito para que o Município seja beneficiário da doação ou da concessão de direito real de uso previstas no art. 21 desta Lei ordenamento territorial urbano que
abranja a área a ser regularizada, observados os elementos exigidos no inciso VII do art. 2º
desta Lei.
§ 1º Os elementos do ordenamento territorial das áreas urbanas, de expansão urbana ou de
urbanização específica constarão no plano diretor, em lei municipal específica para a área ou
áreas objeto de regularização ou em outra lei municipal.
§ 2º Em áreas com ocupações para fins urbanos já consolidadas, nos termos do regulamento,
a transferência da União para o Município poderá ser feita independentemente da existência
da lei municipal referida no § 1o deste artigo.
§ 3º Para transferência de áreas de expansão urbana, os municípios deverão apresentar
justificativa que demonstre a necessidade da área solicitada, considerando a capacidade de
atendimento dos serviços públicos em função do crescimento populacional previsto, o déficit
habitacional, a aptidão física para a urbanização e outros aspectos definidos em regulamento.
Os municípios, na qualidade de beneficiários da Lei, receberão através de alienação gratuita (doação) ou através concessão de direito real de uso também gratuita,
as áreas, sob a condição de que sejam realizados pelas administrações locais os atos
necessários à regularização das áreas ocupadas em favor dos beneficiários urbanos.
(§§1º e 2º do art. 21).
São passíveis de regularização as ocupações incidentes situadas em áreas urbanas,
de expansão urbana ou de urbanização específica. (art. 21).
Constitui requisito para que o Município seja beneficiário o ordenamento territorial
urbano, cujos elementos deverão constar no plano diretor, em lei municipal específica
para a área ou áreas objeto de regularização ou em outra lei municipal. (art. 21, §1º).
O ordenamento territorial urbano deverá conter no mínimo, soluções para os seguintes elementos: a) delimitação de zonas especiais de interesse social em quantidade
compatível com a demanda de habitação de interesse social do Município; b) diretrizes
e parâmetros urbanísticos de parcelamento, uso e ocupação do solo urbano; c) diretrizes
para infraestrutura e equipamentos urbanos e comunitários; d) diretrizes para proteção
do meio ambiente e do patrimônio cultural. (art. 2º, VII).
Contudo, a própria Lei excepciona as exigências acima, em áreas com ocupações
para fins urbanos já consolidadas (art. 21, §2º). E não poderia ser diferente, pois a rea-
20
Jacinto Arruda Câmara. Plano Diretor, pp. 310-311. apud Sílvio Luiz Ferreira da Rocha. Função
Social da Propriedade Pública, p. 87.
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temas atuais de direito
lidade fática não permitiria o implemento do ordenamento territorial, pois a ocupação
se deu de forma desordenada.
O Decreto nº 7.341/2010, que regulamentou a Lei nº 11.952/2009 no tocante às
áreas urbanas, define em seu art. 2º ocupações para fins urbanos já consolidadas, como
aquelas que apresentam os seguintes elementos: a) sistema viário implantado com vias
de circulação pavimentadas ou não, que configuram a área urbana por meio de quadras e
lotes; b) uso predominantemente urbano, caracterizado pela existência de instalações e
edificações residenciais, comerciais, voltadas à prestação de serviços, industriais, institucionais ou mistas, bem como demais equipamentos públicos urbanos e comunitários.
No caso de áreas de expansão urbana,21 os municípios deverão apresentar justificativa que demonstre a necessidade da área solicitada, considerando a capacidade de
atendimento dos serviços públicos em função do crescimento populacional previsto, o
déficit habitacional, a aptidão física para a urbanização e outros aspectos definidos no
Decreto nº 7.341, de 22.10.2010. (art. 21, §3º).
Enfim, todas as disposições convergem para o artigo 182 da Constituição Federal,
que “deve ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o
bem-estar de seus habitantes”.
Ressalte-se que esse imperativo constitucional tem como principal destinatário o
próprio Estado.
De igual forma, o Estatuto da Cidade replicou o objetivo “funcionalista” no art. 2º
caput e no inciso I, assim:
Art. 2º A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais:
I – garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à
moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços
públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações.
As diretrizes asseguradas no Estatuto foram cravadas no artigo 2º e tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade
urbana. Estão destinadas não somente aos proprietários particulares, mas também ao
Poder Público, pois do contrário seriam inócuas.
Para Daniella Santos Dias, a função social da propriedade, enquanto princípio de
aplicabilidade imediata, teve assegurada melhor efetividade do conteúdo axiológico
com a edição do Estatuto da Cidade, em que houve melhor precisão, ao determinar,
por meio da edição de regras legais, as hipóteses fáticas de sua aplicação, servindo de
condicionadores jurídicos legítimos, impositivos e vinculativos à realização do desen-
21
Nos termos do inciso II, do art. 2º do Decreto nº 7.341/2010, área de expansão urbana, são áreas
sem ocupação para fins urbanos já consolidados, destinadas ao crescimento ordenado das cidades,
vilas e demais núcleos urbanos, contíguas ou não à área urbana consolidada, previstas, delimitadas e
regulamentadas em plano diretor ou lei municipal específica de ordenamento territorial urbano, em
consonância com a Lei nº 10.257 de 10 de julho de 2001.
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volvimento urbano, seja em âmbito regional, seja em âmbito estadual, seja em âmbito
local.22
No olhar de Maria Sylvia Zanella Di Pietro não há porque excluir o Estado, da
incidência das normas constitucionais que asseguram a função social da propriedade pública, quer para o submeter, na área urbana, às limitações impostas pelo Plano
Diretor da Cidade, quer para os enquadrar, na zona rural , aos planos de reforma agrária.23 Ainda observa:
No que diz respeito aos instrumentos da política urbana previstos no Estatuto da Cidade,
não há dúvida de que grande parte deles se aplica aos bens dominicais e, às vezes, mesmo aos bens de uso comum do povo e aos bens de uso especial. Não se pode esquecer que
esse Estatuto tem fundamento constitucional. Assim, embora a competência para adoção das
medidas de política urbana seja do Município, ela pode alcançar inclusive bens públicos
estaduais e federais, desde que inseridos na área definida pelo plano diretor. Trata-se de competência municipal que decorre diretamente da Constituição (art. 182 e que pode ser exercida
desde que em consonância com as “diretrizes gerais fixadas em lei”. Desse modo, se algum
bem público, de qualquer ente governamental, estiver situado na área definida pelo plano
diretor, ele está sujeito às “exigências fundamentais de ordenação da cidade”, indispensáveis
para o cumprimento da função social da propriedade urbana, nos termos do §2º do mesmo
dispositivo constitucional.
Dessa feita, escorreita à exigência do artigo 22 da Lei de Regularização, em condicionar a regularização no caso dos municípios, ao cumprimento do ordenamento urbano.
Essa exigência tem o mesmo efeito pedagógico, que tem as condições resolutivas
na regularização rural. O que difere, é que as condições impostas ao município não são
resilitórias, se descumpridas não ensejam no cancelamento da regularização, inclusive
por expressa disposição do parágrafo único do art. 31, que literalmente prevê a impossibilidade de reversão do imóvel ao patrimônio da União em caso de descumprimento
das disposições pelo Município.
Contudo, o descumprimento das obrigações por parte do Município, além de implicar em improbidade por quem lhe der causa, também autoriza aos legitimados a
ingressarem em juízo para seu cumprimento ou reparação.
Portanto, mesmo a regularização em favor dos Municípios não está dissociada da
função social, que lhe inspira e exige de todos, incluindo o Poder Público, o comprometimento com as ordenanças urbanas, muito embora, no caso de não observância do
princípio, possa haver dificuldade de responsabilização.
De toda sorte, com o reconhecimento da função socioambiental da propriedade,
ter-se-á pelo menos o norte, posto que este princípio está calcado nos fundamentos do
Estado Democrático de Direito e principalmente na dignidade da pessoa humana, este
último, razão de existir do direito moderno.
22
Desenvolvimento Urbano: Princípios Constitucionais, p. 145.
23
Função Social da Propriedade Pública, p. 11.
188
temas atuais de direito
5. Notas Conclusivas
O Brasil é um país que tem um passivo imobiliário muito grande pendente de
regularização, principalmente na região Amazônia, onde em decorrência do processo
de ocupação do território há necessidade de corrigir distorções históricas, uma vez que
a colonização se deu de forma irregular e sem a garantia dos direitos de propriedade, o
que gerou insegurança jurídica e favoreceu a grilagem, além do desmatamento.
Para mitigar essa situação, foi editada a Lei nº 11.952, de 25.06.2009, dispondo
sobre a regularização fundiária das ocupações incidentes em terras situadas em áreas da
União, no âmbito da Amazônia Legal.
Como o referido diploma tem por objeto a regularização de propriedades que estão sob o domínio do Poder Público, demonstrou-se que essas áreas também revelam
o princípio da função socioambiental, em verdade, defende-se a tese de que a função
socioambiental da propriedade também acomete os bens públicos, até porque estes
servem de instrumento para a realização, pela Administração Pública, dos fins que está
obrigada. A função social e ambiental da propriedade pública não é um pleonasmo, mas
a otimização do interesse coletivo.
Assim, confrontando a concepção atual do direito de propriedade, inserindo-se aí
o exercício desse direito pelo Poder Público, com a finalidade da lei de regularização
fundiária, chega-se a conclusão de que com ela haverá mais ganhos sociais, coletivos
e difusos, à medida que foi pensada para condicionar as áreas regularizadas também à
função socioambiental da propriedade.
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14
A EFICÁCIA DIRETA E IMEDIATA DOS DIREITOS SOCIAIS
FUNDAMENTAIS ÀS RELAÇÕES PRIVADAS
Ivanilson Paulo Corrêa Raiol
RESUMO: Este artigo discute sobre a eficácia dos direitos fundamentais sociais nas relações privadas, apresentado parâmetros para a aplicação desses direitos no âmbito do direito
privado.
Palavras-Chave: direitos fundamentais sociais; relações privadas.
ABSTRACT: This article discusses about the effectiveness of fundamental social rights in
private relations, with parameters for the application of these rights in the context of private
law.
Key-Words: fundamental social rights; private relations.
SUMÁRIO: 1. As teorias de direitos fundamentais. 2. A eficácia horizontal dos direitos sociais fundamentais. 3. Balizas para a incidência dos direitos sociais fundamentais nas relações privadas
1. As teorias de direitos fundamentais
A interpretação dos direitos fundamentais, de modo a torná-los diretamente aplicáveis, efetivos, pressupõe a formulação de teorias de direitos fundamentais que exercem
acentuada influência na atividade interpretativa desses direitos, determinando, inclusive, algumas consequências na definição dos conteúdos das disposições concernentes
aos direitos humanos. Assim, é de grande importância identificar, nas interpretações
realizadas sobre o sentido, alcance e conteúdo das normas de direito fundamental, qual
a teoria que está sendo utilizada no caso.
Böckenförde apresenta, então, algumas das principais teorias de direitos fundamentais: a teoria liberal, a teoria institucional, a teoria axiológica, a teoria democrático-funcional e a teoria do Estado social.1
1
BÖCKENFÖRDE, Ernst-Wolfgang. Escritos sobre derechos fundamentales. Trad. Juan Luis Pagés
y Ignacio Menéndez. Baden-Baden: Nomos Verlagsgesellschaft, 1993, pp. 47-66.
192
temas atuais de direito
A teoria liberal entende que os direitos fundamentais são direitos de liberdade
do individuo frente ao Estado. Desse modo, busca acima de tudo, impor limites às
intervenções estatais na esfera privada. A eficácia dos direitos fundamentais, para essa
teoria, restringe-se às ações do Estado, pois haveria tão-somente uma vinculação vertical dos direitos fundamentais, entendidos como limitações para os Poderes Públicos,
estando fora de seu âmbito, portanto, as relações entre particulares.
A teoria institucional dos direitos fundamentais, por sua vez, concebe esses direitos como princípios objetivos de ordenação dos “âmbitos vitais” por eles tutelados.
Dessa maneira, os direitos fundamentais guiam as regulações normativas objetivamente configuradas, de tal sorte que o intérprete, considerando as circunstâncias vitais que
foram institucionalizadas pela ideia ordenadora dos direitos fundamentais, buscaria
tanto a determinação da extensão quanto à limitação desses referidos direitos expressos em referidas regulações. A eficácia dos direitos fundamentais estaria, à evidência,
condicionada à força interpretativa de proteção dos direitos fundamentais, capaz de
compreender as regulações normativas como forma de realização de determinado direito fundamental já institucionalizado, indo, portanto, a uma tutela mais ampla do que
aquela promovida pela teoria liberal (de tônica limitadora e antiinterventora).
A seu turno, a teoria axiológica apresenta os direitos fundamentais como fatores
constitutivos do processo de integração de determinada comunidade, firmando seus
valores essenciais. Dessa forma, os direitos fundamentais instaurariam uma ordem ou
sistema de valores que, em última análise, já se encontraria inserida no seio estatal.
Quanto à eficácia, a aplicação dos direitos no interior dessa ordem valorativa se sustentaria no estabelecimento de preferências e hierarquias de valores, invocando-se uma
ponderação entre eles diante das colisões que ocorressem. Na opinião de Böckenförde,
essa prática mantém apenas uma aparência de racionalidade encobrindo a fundamentação real. Não passaria de um “decisionismo judicial”.2
A teoria democrático-funcional assenta-se na legitimação dos direitos fundamentais, a partir da ideia dos objetivos e da função público-política. Os direitos fundamentais só teriam sentido quando inseridos no processo de produção democrática do
Estado e de formação da vontade política.3 Portanto, em oposição ao individualismo
liberal de reserva do espaço livre da intervenção estatal, apresenta-se a concepção de
uma intensa participação do cidadão nos assuntos públicos, sendo os direitos fundamentais os facilitadores desse processo político. No que tange à concretização, os direitos fundamentais firmariam a sua característica instrumental de “meio para facilitar e
assegurar” o processo político democrático. Embora, em tese, a eficácia se mostre mais
ampla, nada impedindo a extensão dos direitos fundamentais até mesmo às relações
privadas, na realidade, relativiza-se o caráter voluntário dos direitos humanos, limitando sobremaneira seu exercício, na medida em que são reduzidos a uma verdadeira
prestação de serviço público, a um dever.
2
Idem, p. 60.
3
Ibidem, p. 60.
a eficácia direta e imediata dos direitos ...
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193
Finalmente, a teoria do Estado social, partindo da constatação de que a teoria
liberal dos direitos fundamentais com sua proposta de liberdade jurídica criou um verdadeiro “espaço vazio”, uma vez que as delimitações negativas impostas ao Estado
não garantiram a liberdade real, entende os direitos fundamentais como instrumentos de facilitação das pretensões de prestação social perante o Estado. De um lado, o
Estado estaria obrigado pelos direitos fundamentais a realizar os esforços necessários à
transformação da liberdade jurídica em realidade constitucional (Estado-garante) e, por
outro lado, estimular-se-ia a participação ativa dos membros da coletividade nos mecanismos de efetividade dos direitos fundamentais. A eficácia demonstra-se problemática, para esta teoria, pois exigiria para a concretização dos direitos fundamentais uma
reserva enorme de recursos financeiros e que, na prática, devido à escassez natural dos
meios econômicos, limitaria a garantia desses referidos direitos. Também, como consequência da realidade financeira, o Estado estaria obrigado a estabelecer prioridades
na realização efetiva dos direitos fundamentais, reduzindo-os diante da concorrência e
eventuais conflitos dos direitos humanos fundamentais, a uma “questão de interpretação”, contribuindo, destarte, para a crescente judicialização das disputas políticas.
Nessa exposição sintética, observa-se que as diferentes teorias expressam diversas
concepções de Estado, com seus respectivos ordenamentos jurídicos, demonstrando a
base das relações individuo-sociedade-Estado. Daí que, a opção por determinada teoria
e sua consequente aplicação, imporá um modelo de interpretação dos direitos fundamentais que levará ou à afirmação ou à mutação constitucional.
2. A eficácia horizontal dos direitos sociais fundamentais
A questão consiste em saber se os direitos sociais fundamentais dirigem-se tão-somente aos Poderes Públicos ou será que as relações particulares, incluídas as entidades
privadas, encontram-se vinculadas por esses direitos? Se se entender que apenas o Estado
está limitado pelos direitos fundamentais, consagrando-se a liberdade individual como
monumento sagrado do liberalismo, estar-se-ia negando a eficácia dos direitos sociais
fundamentais na esfera privada e tudo ficaria reduzido a uma dimensão subjetiva entre o
titular do direito e o seu destinatário estatal incumbido da prestação. Suprimidos, pois, os
sujeitos dessa relação indivíduo-Estado, não restaria mais nada a tutelar.
Por essa razão é que se defende a eficácia direta e imediata dos direitos sociais fundamentais, também, nas relações privadas. Evidente que uma postura desse tipo pode
suscitar controvérsias e a principal delas diz respeito à negação da eficácia imediata dos
direitos sociais fundamentais às relações privadas, por contrariar o principio da autonomia individual. Ou seja, não pareceria correto submeter o individuo e o Estado ao mesmo regime de vinculação aos direitos fundamentais, pois isso conduziria à supressão
gradual da liberdade dos cidadãos, restringindo, com tal postura, o campo da autonomia
individual a um espaço insustentável no interior dos Estados constitucionais.
Bem, no que concerne à autonomia privada, é importante que se traga a lume que
tal conceito encontra-se jungido à noção que se tenha de liberdade. Não haveria espaço,
aqui, para traçarem-se os contornos diferentes que foram dados a esse tema, mesmo
194
temas atuais de direito
quando se agrupem pensadores que guardam entre si pelo menos um traço comum no
edifício teórico-político que erigiram, isto é, a reflexão sobre a época europeia criada
pela Revolução Francesa e sobre a sociedade criada, primeiro na Inglaterra e depois
em toda a Europa ocidental, pela primeira Revolução Industrial.4 Desse modo, opta-se
por examinar o tema da liberdade à luz de dois grandes nomes da filosofia e da política:
Tocqueville e Stuart Mill. Com isso, deixa-se de lado, evidentemente, outras possibilidades de análise da autonomia individual, como, por exemplo, aquela realizada por
Immanuel kant que entendia a fundamentalidade do conceito de liberdade para compreensão da autonomia da vontade dos seres vivos, levando os homens a se sujeitarem
a obedecer às suas próprias leis de abrangência universais, o que colocaria a autonomia
como o fundamento da dignidade da pessoa humana.5 Ou, então, aquela elaborada por
Benjamin Constant quando, redefinindo a liberdade individual, colocando-a além da
sociedade, afirmara que onde começa a independência e a existência individual termina a jurisdição da sociedade, defendendo a vinculação entre representação política
e propriedade, vaticinando que somente a propriedade assegura o ócio necessário à
capacitação do homem para o exercício dos direitos políticos.6 Ressalte-se que não é
essa liberdade apresentada por Benjamin Constant que melhor representa a autonomia
individual, pois, na realidade, é limitadora da participação democrática, não autonomizando, mas estigmatizando o individuo pelo não-ter.
Passa-se, destarte, a analisar o conceito de liberdade em Tocqueville e Stuart Mill.
Tocqueville é um daqueles teóricos difíceis de classificar, dadas as enormes contrariedades que seguiram a sua vida e seu pensamento. Ainda que nascido de família
aristocrática, isso não lhe trouxe privilégio nenhum, uma vez que seus pais foram aprisionados como consequência da Revolução francesa, sendo, inclusive, seu avô materno, o marqûes de Rosambo, morto na guilhotina. Evidentemente, Tocqueville (com
nascimento em Paris, em 29 de janeiro de 1805) sofrera na infância todos os efeitos nocivos das recordações desses momentos terríveis que atravessara, mas, com espantosa
capacidade de superação, integrou-se às conformações da nova sociedade democrática
que se desenhava em solo francês. Assim é que, em 1827, ingressa na magistratura
como juiz-auditor no tribunal em Versalhes. Já no ano de 1831, mais precisamente no
dia 10 de maio desse ano, Alexis de Tocqueville desembarca em Nova York, juntamente
com seu amigo Gustave de Beaumont, a fim de estudar in loco o sistema penitenciário
dos Estados Unidos. Esse era o pano de fundo de que necessitava o grande intelectual
para desenvolver uma pesquisa voltada às inquietações políticas de seu tempo: Como
os Estados Unidos formaram uma sociedade política nova e conseguiram, com êxito,
resolver os problemas de liberdade e igualdade? Qual a força que regia a socieda-
4
WEFFORT, Francisco C. Os clássicos da política 2. 10ª ed. São Paulo: Ática, 2003, pp. 7-8.
5
KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos. Trad. Leopoldo
Holzbach. São Paulo: Martin Claret, 2003, pp. 51-79.
6
CONSTANT DE REBECQUE. Henri Benjamin. Princípios políticos constitucionais. Trad. Maria
do Céu Carvalho. Rio de Janeiro: Liber Juris, 1989, pp. 64 e 118.
a eficácia direta e imediata dos direitos ...
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ivanilson paulo corrêa raiol
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de americana rumo ao progresso e que, faltando às sociedades europeias, relegava-as aos debates acerca daqueles velhos problemas franceses de liberdade e igualdade?
Tocqueville busca, desse modo, desenvolver o tema tão apaixonante de seu século, a
Democracia, não sendo sem razão, portanto, que o titulo de sua obra só poderia aparecer como “A Democracia na América”. Antes, portanto, de fazer-se uma leitura de
alguns aspectos do pensamento desse escritor, convém ter sempre em mente o fato de
que se está diante de um gigante, de um observador perspicaz, de um gênio da política e
que qualquer conclusão sobre sua obra poderá ser modificada por outras interpretações.
No prefácio de “A emancipação dos escravos”, Fani Goldfarb Figueira observa que
não é fácil classificar seu pensamento [de Tocqueville], tão rico e tão mutável quanto
os fatos históricos que se dedica a estudar.7 Realmente, Tocqueville é homem que não
teme confessar que escreve com paixão, pois nem seria permitido a um francês não ser
apaixonado quando fala de seu país e pensa no seu tempo,8 mas, por outro lado, em
uma de suas Cartas (22.3.1837), diz que julgava a antiga aristocracia sem paixão!
Por tudo isso, torna-se importante conhecer as posições de Tocqueville acerca
de tema até hoje presente em qualquer obra de política respeitável: a Democracia. A
essência da liberdade será identificada a partir da noção correta que se tenha sobre o
significado desse tema para o pensador francês.
A Democracia ou regime democrático para Tocqueville significava igualdade de
condições. Dessa maneira, quando se discorre sobre Democracia em sua obra, inevitavelmente a igualdade, a liberdade e o individualismo serão temas de passagem obrigatória, tal o entrelaçamento dessas questões na análise do regime democrático.
Para Tocqueville, a Democracia deve estar apoiada numa base sólida, capaz de
proporcionar aos homens uma felicidade superior, garantindo-se a cada um dos indivíduos que compõem o corpo da nação o maior bem-estar, resguardando-o da miséria.
Essa fundamentação democrática estaria na moral, ou seja, como diz Antonio Paim,
moral social de tipo consensual,9 onde a coletividade pudesse fixar consensualmente as
regras básicas da convivência social. Assim, a Democracia reside no principio da igualdade com redução da esfera da liberdade. Tal igualdade rompia com os padrões aristocráticos dos privilégios de nascimento, na medida em que, tanto pela fortuna quanto
pela inteligência, os homens faziam ressaltar o elemento democrático em detrimento de
influências de família, de grupo ou até mesmo de indivíduos.
Tocqueville entendia que não era possível um espaço de liberdade plena com reduzida atuação estatal, caso não existisse uma disciplina moral capaz de promover a
virtude cívica. Essa virtude (ou moral social) não poderia ser imposta pelo Estado, pois
seriam os diversos segmentos sociais que ensinariam e propagariam no seio da família,
escola, religião os postulados e bases de um sistema democrático forte e com preocupações desenvolvidas na sociedade.
7
TOCQUEVILLE, Alexis de. A emancipação dos escravos. Campinas (SP): Papirus, 1994, p. 10.
8
TOCQUEVILLE, Alexis. De. O antigo regime e a revolução. 2ª ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1982, p. 45.
9
In: TOCQUEVILLE, Alexis. A democracia na América. 3ª ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1987, p. iv.
196
temas atuais de direito
Portanto, o verdadeiro sinal de um Estado democrático não estaria na identificação
de seu maior ou menor grau de liberdade. Antes, seria na igualdade que residiria o traço
distintivo da democracia, opondo-se às sociedades aristocráticas de cunho acentuadamente hierárquico em favor das sociedades democráticas de fundamento igualitário.
Contudo, a igualdade levada ao extremo poderia conduzir a “venenos”, uma vez que a
redução das diferenças leva a sucessivas e constantes diminuições da individualidade,
fazendo com que os homens mais e mais busquem apaixonadamente uma uniformidade, de tal sorte que qualquer dessemelhança pareça como espanto na sociedade igualitária. Advertia Tocqueville, então, nesse sentido, que os males que a extrema igualdade
produzir só se manifestam pouco a pouco; insinuam-se gradualmente no corpo social;
apenas de longe em longe nos é dado vê-los e, no momento em que se tornam mais violentos, o hábito já fez com que não o sintamos.10 Um desses males da igualdade, cabe
mencionar, é a tirania da maioria, o risco constante e ameaçador da liberdade diante
do rolo compressor da verdade da maioria. A igualdade levaria os homens a uma perda
da fé uns nos outros, visto que são semelhantes, levando-os acreditarem no “juízo do
público”, num poder absoluto, numa soberania do povo.
Como se vê, para Tocqueville, a sociedade democrática não pode renunciar à
igualdade de condições. Porém, a ampliação dessa igualdade conduz a distorções no
sistema que merecem ser contornados. O remédio ou contraveneno do despotismo paternal centralizador estaria na liberdade política. Essa liberdade se desenvolveria no
espaço das instituições democráticas livres. Ou seja, o comprometimento do cidadão
que, rompendo com as amarras do individualismo, dirige a sua ação ao bem comum;
não é uma ideia ligada ao princípio da soberania popular, é, antes, uma participação ativa do individuo nos negócios públicos, por meio de instituições democráticas. Ora, se a
Democracia como igualdade é geradora do individualismo, na concepção tocquevilleana, e que leva os homens a uma ausência de virtudes cívicas, somente por intermédio
da liberdade institucionalizada poderia fundamentar-se uma verdadeira ordem social,
tonificada pelos benéficos efeitos da religião.11
Desse modo, é na tentativa de unir os pontos extremos da liberdade e da igualdade
que Tocqueville pensará num governo e em suas instituições políticas, estas sustentadas por dois pilares vigorosos: as instituições comunais (autogoverno local) e as associações livres. As instituições comunais (ou provinciais, municipais) representariam
o espaço das liberdades locais, verdadeiras descentralizações administrativas onde
residiria a força do povo livre, nelas estaria a essência do “espírito da liberdade”. A
descentralização administrativa conduziria os homens ao auxílio mútuo, afastando os
sentimentos individualistas, levando a cada homem a oportunidade de ver no outro a
necessária ajuda de enfrentamento das dificuldades cotidianas, pois são nas comuns
(províncias) que as pessoas desenvolvem seus interesses particulares, de tal sorte que
dificilmente alguém será levado a preocupar-se pelo destino do Estado, responsável
10
Idem, pp. 384-385.
11
Ibidem, p. 389.
a eficácia direta e imediata dos direitos ...
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ivanilson paulo corrêa raiol
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pelos grandes negócios da nação, se não estiver ligado a uma base política sólida de
interesse particular.
Contudo, é importante ressaltar que o autor não dispensa a representação nacional.
Ele acredita que o individualismo só encontraria freio se, ao lado da nação representada,
existissem representações locais espraiadas pelo território, capazes de possibilitar aos
cidadãos a ação em conjunto e a dependência recíproca. Eis aí, talvez, a primeira baliza
da democracia social.
Todavia, garantir aos cidadãos esse fundamental espaço político não seria suficiente para imunizar-se a democracia dos venenos da igualdade extremada. Assim,
Tocqueville, na condição de observador atento à realidade americana que investigava,
encontrou aquele segundo pilar vigoroso, acima mencionado, que seria a condição do
processo civilizatório do homem, indispensável ao progresso do conjunto das produções humanas, as associações livres. Logo, não se conceberia uma democracia, sem
que houvesse associação na vida civil que a impulsionasse e sustentasse. Tocqueville
dava enorme importância às associações americanas que se formaram na vida civil
(associações não políticas).
Portanto, a Democracia é igualdade de condições, mas que, inevitavelmente, produz males que afetam, sobretudo, a liberdade das pessoas. Dentre esses “venenos democráticos”, a apatia social ou perda do interesse com a coisa pública, incentivadora do
individualismo, como também a imposição absoluta da vontade despótica da maioria,
apresentam-se como questões a serem enfrentadas no regime democrático. Tocqueville
não se furta a propor uma resposta a esses problemas, principalmente por acreditar
na democracia, e identifica na existência de um governo representativo nacional que,
ampliando as liberdades locais, permita uma gestão pública localizada, descentralizada,
de modo a alimentar no espírito do cidadão o sentimento de uma vida em sociedade.
Também, paralelamente, o desenvolvimento de uma cultura associativa (arte e ciênciamãe) que leve a desenvolver a solidariedade na superação dos entraves naturais da
civilização, na medida exata do crescimento da igualdade de condições, é que constitui
o caminho ideal na busca dos povos por um governo democrático.
Conclui-se, desse modo, que, para o liberal Tocqueville, a autonomia da vontade
encontrava-se subordinada a princípios democráticos relacionados à solidariedade social consensual. Assim, não se pode falar em autonomia plena, pois os interesses fundamentais do cidadão, no interior de uma desenvolvida cultura cívica, sobrepor-se-iam
ao individualismo. Liberdade, portanto, deve ser proclamada com igualdade, de tal
sorte que todos os homens posam desenvolver suas potencialidades com a diminuição
sensível da miséria, gerando um bem-estar capaz de proporcionar uma vida digna aos
membros da nação.
Cabem, agora, algumas considerações sobre o pensamento de outro liberal contemporâneo de Tocqueville: John Stuart Mill (1806-1873). A vida de Mill já mereceria,
por si só, um estudo aprofundado e empolgante, por todos os fatos que a cercam. Mas,
neste artigo, o olhar é voltado a algumas das formulações que distinguem esse teórico
inglês dos antigos liberais clássicos que o antecederam, procurando, como referenciado anteriormente, a visão de Stuart Mill acerca da autonomia individual. Nessa linha,
198
temas atuais de direito
aqueles mesmos temas desenvolvidos por Tocqueville, como democracia, igualdade,
liberdade e individualismo voltam a limitar o foco de análise.
Para Stuart Mill, a forma ideal de governo seria a popular, aquela que acarreta o
maior número de consequências benéficas, imediatas ou futuras.12 Logo, o pensador
inglês defendia o regime democrático, mas como forma de imprimir maior responsabilidade aos cidadãos, aproximando suas ideias dos movimentos que eclodiram na
Europa no século XIX. Assim, Stuart Mill caminha de um liberalismo político clássico
que clama pela redução do Estado em beneficio das liberdades individuais, para um
novo liberalismo do tipo democrático e que procura incorporar a participação popular
nos negócios do Estado, de maneira que o próprio Mill vislumbrara, em pequenas comunidades, a possibilidade de um Estado com feições tipicamente populares.13
Nesse contexto, Mill verá no governo representativo, atrelado ao grau de desenvolvimento geral de um povo, o tipo ideal de governo. Entretanto, insistirá sempre na
existência de um “poder do controle final” das atividades desse governo; esse poder estaria inserido na Constituição, pois existe em toda Constituição um poder mais forte – um
poder que sairia vitorioso se os compromissos, graças aos quais a Constituição funciona
normalmente, fossem e as forças viessem a se medir.14 Porém, essa força da Constituição
só impõe obediência a todos, em virtude da preponderância das normas constitucionais ao
poder que já predomina na realidade. Esse poder é o poder popular. Interessante que Mill
escrevera isso em 1861, na obra “Considerações sobre o governo representativo”, mas,
em 1863, Ferdinand Lassalle, numa conferência para intelectuais e operários da antiga
Prússia, afirmara, também, que a essência de uma Constituição é a soma dos fatores reais
do poder que regem uma nação.15 Evidentemente que, guardadas as devidas proporções
dos dois grandes pensadores, um liberal e ocupante de elevado cargo na Companhia das
Índias Ocidentais, outro socialista e militante político-sindical, fica claro que Mill já percebera a existência de poderes reais que subjazem ao arcabouço constitucional, de tal
sorte que, se as autoridades políticas, não dessem ao elemento popular na Constituição a
supremacia substancial sobre todos os ramos do governo, correspondente ao seu poder
real sobre o país, a Constituição não teria a estabilidade que a caracteriza.16
Nesse contexto, o governo representativo, tecido a detalhes por Mill, demonstra
todo o valor que esse liberal dava à democracia. Era o povo, em última análise, que
deveria preencher esse espaço das instituições democráticas e da forma de governo, na
medida em que essas são criações humanas que dependem da escolha, sendo guias do
povo nessa opção: o grau de cultura desse povo, o seu nível de julgamento e a sagacidade prática.
12
MILL, John Stuart. Considerações sobre o governo representativo. Brasília: Editora Universidade
de Brasília, 1981, p. 31.
13
Idem, p. 38.
14
Ibidem, p. 48.
15
LASSALLE, Ferdinand. A essência da Constituição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 17.
16
MILL, John Stuart, ibidem, p. 48.
a eficácia direta e imediata dos direitos ...
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ivanilson paulo corrêa raiol
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Partindo, então, dessa sua concepção de democracia como governo do povo em
que todas as partes deveriam ser representadas, não desproporcionalmente, mas sim
proporcionalmente,17 Stuart Mill defende o voto universal, para permitir que a minoria
tenha também direito de influenciar na representação; era essa, na verdade, uma maneira de assegurar a ascendência da maioria, de decisões ou medidas em acordo com a
porção maior da nação.
O pensador inglês avança na sua argumentação democrática, quando, ainda, quiçá
por influência de seu grande amor, Harriet Taylor, sustenta a extensão do voto às mulheres. O sufrágio teria que ser universal (embora escalonado), não podendo ficar, por
isso, as mulheres de fora dessa participação cívica: Todos os seres humanos têm o mesmo interesse em ter um bom governo... A humanidade já há muito tempo abandonou os
únicos princípios que podem apoiar a conclusão de que as mulheres não devem votar.18
Permanece Mill, portanto, fiel àquilo que nomeara de “democracia verdadeira”,
onde haveria igualdade, “o governo de todos por todos” e em que todos seriam representados. Porém, na realidade, observa-se que Stuart Mill não era demasiado democrata
a ponto de incluir na participação do sufrágio pessoas que não soubessem ler, escrever
nem efetuar as operações básicas da aritmética. Ou seja, para Mill, analfabeto não vota!
Daí que deveria a sociedade, na opinião dele, antes mesmo de cumprir a obrigação do
voto universal, promover a educação universal.
Feitas as observações acima, já se pode examinar, em Mill, a liberdade e o individualismo. A liberdade representou uma das questões centrais do pensamento de Mill,
tanto é assim que chegou a escrever uma obra toda sobre isso, On Liberty (1859), em
que reconhece a diversidade como forma de alcançar a verdade. Liberdade, em primeiro
lugar, de consciência, de pensamento, de sentimento e de opinião; depois, liberdade de
gostos e de ocupações, ou seja, ser o homem dono do seu destino, de fazer o que deseja;
finalmente, liberdade de associação, a liberdade “da combinação entre indivíduos”.19
Assim, o bem-estar, tanto do individuo quanto da coletividade, é critério para aferição de um bom governo. Caberia ao governo democrático possibilitar as condições
necessárias ao desenvolvimento das potencialidades individuais. É nessa perspectiva,
por exemplo, que Mill pugna pela diversidade de opinião, um espaço onde a individualidade pudesse desenvolver-se sem as pressões de padrões sociais; liberdade de opinião,
liberdade para a privacidade e independência, livres do “despotismo do costume”, de
tal maneira que uma pessoa pode, sem incorrer em censura, gostar ou não de remar, de
fumar, da música ou de exercícios atléticos, do jogo de xadrez, de cartas ou do estudo.20
Stuart Mill é um liberal. Porém, um liberal que se distancia de certo modo da visão lockeana do liberalismo político, pois percebe-se em seus escritos uma tentativa de
romper com os padrões fixos desse liberalismo de antigos conceitos, avançando em di-
17
Idem, p. 72.
18
Ibidem, p. 97.
19
MILL, John Stuart. Da liberdade. São Paulo: Ibrasa, 1963, p. 16.
20
Idem, p. 77.
200
temas atuais de direito
reção a um modelo diversificado de políticas sociais que aproximam as tradições liberais das correntes sociais que iniciavam as suas reivindicações na Europa, cujo grande
marco histórico, aliás, fora assinalado em 1848, na França, quando ainda vivia Mill, e
que repercutiriam para a sedimentação das formulações do futuro Estado do Bem-Estar
Social. Mill é o liberal que vê na educação realizada pelo Estado um mero artificio
destinado a modelar os indivíduos exatamente pelo mesmo padrão; e como esse padrão é o que agrada ao poder dominante no governo.21 Se abstraído fosse o nome de
Stuart Mill, qualquer leitor desavisado pensaria que o fragmento acima transcrito seria
da lavra de Fourier, Marx ou Engels. Mas, não. É pensamento de um liberal, um liberal
tardio e que pode perfeitamente representar um elo de transição entre um liberalismo
clássico e uma concepção política renovada que amplia os níveis de participação popular nos negócios públicos e que compreende como condição de sobrevivência do
próprio liberalismo a adoção de medidas socializantes capazes de arejarem as clausuras
da política liberal.
Desse modo, a autonomia privada, num liberal como Stuart Mill, apresenta-se
reduzida, limitada na força, diante da necessidade de ampliação do espaço democrático
como mecanismo de sustentação do próprio liberalismo. Daí que, as restrições que se
façam na autonomia, ao contrário de esvaziamento gradual da liberdade ou aniquilamento da vontade individual, proporcionaria um crescente aumento no sentimento de
solidariedade, contribuindo decisivamente para a redução das desigualdades sociais,
facilitando a afirmação da dignidade da pessoa como ser humano.
Não se compreende, portanto, em que a extensão da eficácia dos direitos fundamentais sociais às relações particulares possa agredir a autonomia individual. Na
verdade, se se entende que o homem só é livre quando cumpre as leis racionais universalmente criadas e sob as quais tem a autonomia de agir, não se enxerga nenhuma
afetação na esfera da liberdade individual pela concretização horizontal dos direitos
sociais fundamentais. Ora, se a dignidade da pessoa humana é esse valor absoluto, em
oposição ao valor relativo das coisas, tornando cada ser humano uma pessoa única, portadora dessa singular dignidade, o homem só encontrará a realização e felicidade com
o reconhecimento afirmativo de seus direitos, de tal sorte que a sua autonomia privada
constitua a autonomia solidária de todos os homens. Não se pode ser feliz, mantendo-se
na opressão um outro ser moral!
Feitas as considerações precedentes, concorda-se, então, com a afirmação de
Daniel Sarmento, quando diz que a autonomia privada representa um dos componentes
primordiais da liberdade,22 pois a concepção que se defende, aqui, é a autonomia individual como a essência da própria liberdade, sujeita esta às leis morais universais. São
essas leis universais, portanto, que, na qualidade de balizadoras da dignidade da pessoa
humana, devem ser observadas na concretização dos direitos sociais. Evidente que na
21
Ibidem, 119.
22
SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2004, p. 188.
a eficácia direta e imediata dos direitos ...
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ivanilson paulo corrêa raiol
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contraposição entre a autonomia privada (ligada aos direitos individuais) e autonomia
pública (relacionada à democracia), deve-se buscar o referencial decisório na dignidade
da pessoa humana, quer restringindo a primeira em beneficio da segunda quer limitando a segunda em nome da primeira, na medida em que nenhuma delas, isoladamente,
possui o valor absoluto da dignidade da pessoa humana.
Chega-se, desse modo, à conclusão de que os direitos fundamentais são portadores de eficácia direta e imediata nas relações privadas, não parecendo razoável rejeitar
essa tese sob a alegação de proteção da autonomia privada. Toda vez que a invocação
dessa autonomia colocar em risco a dignidade da pessoa humana como um fim em
si mesma, numa tentativa de instrumentalização do ser humano para a obtenção das
coisas, o particular deve submeter-se ou ser submetido pelo Poder Público ao direito
social fundamental oponível. Isso converge, em certa medida, com o que propõe Jorge
Miranda a respeito da necessidade de busca por convergências entre os direitos fundamentais e a autonomia individual (apesar do professor português não se posicionar
expressamente a favor da extensão dos direitos sociais às relações privadas). 23
A postura assumida de reconhecimento da eficácia direta e imediata dos direitos
fundamentais (aqui incluídos os sociais) às relações privadas não desconhece a existência de posicionamentos teóricos em sentido contrário. Veja-se, por exemplo, que
Canaris rejeita a teoria da eficácia direta em relação a terceiros, argumentando que:
Se, porém, generalizarmos este entendimento, ele conduz a consequências dogmáticas insustentáveis, pois então amplas partes do direito privado, e, em especial, do direito dos contratos
e da responsabilidade civil, seriam guindadas ao patamar do direito constitucional e privadas
da sua autonomia. Além disso, incorre-se em grandes dificuldades de ordem prática, já que a
maioria dos efeitos jurídicos a que, se consequentemente prosseguida, tal concepção forçosamente chegaria – tal como a nulidade de contratos que restringem direitos fundamentais
– teria de ser afastada logo por interpretação, pela sua evidente insustentabilidade. Foi, pois,
com razão que a teoria da eficácia imediata acabou por se não impor...24
Discorda-se dos argumentos e da posição do professor Canaris, pois, aceitando
seus argumentos, isso representaria a aceitação de que os direitos fundamentais dirigem-se apenas contra o Estado, ficando de fora de seu âmbito de abrangência os sujeitos
de direito privado. Na realidade, a eficácia imediata não conduz à perda da autonomia
do direito privado, mas, antes, impõe uma releitura do direito privado, conformando-o
à Constituição. A autonomia privada encontra-se, conforme discutido anteriormente,
submetida a limitações que favoreçam a igualdade material dos cidadãos. Nada melhor, portanto, do que reconhecer que as maiores limitações impostas ao direito privado
23
O autor lusitano, citado por Daniel Sarmento, propôs a adoção de soluções tópicas, que busquem
a concordância prática entre os direitos fundamentais e a autonomia individual, mas que não permitam o sacrifício do núcleo essencial destes direitos, nem mesmo no caso de auto-restrições. In:
SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas, op. cit., p. 253.
24
CANARIS, Claus-Wilhelm. Direitos fundamentais e direito privado. Trad. Ingo Wolfgang Sarlet e
Paulo Mota Pinto. 1ª ed. reimp. Coimbra: Almedina, 2006, pp. 53-54.
202
temas atuais de direito
relacionam-se aos direitos fundamentais. No que diz respeito às “grandes dificuldades
de ordem prática”, não se vê problema algum em que sejam afastados os efeitos jurídicos de relações privadas alicerçadas em violações de direitos fundamentais, mesmo
porque a mesma “prática” demonstra que isso somente ocorre, regra geral, mediante
um pronunciamento judicial. Essa questão, na verdade, poderia muito bem ser contornada pela ponderação dos direitos e interesses presentes nos casos concretos, sem que
tal fato represente qualquer perda de autonomia individual.
Assim, no que concerne aos direitos sociais fundamentais, por serem direitos humanos inalienáveis , irrenunciáveis, universais e com vistas à preservação da dignidade
do homem, deve, de igual maneira, ser estendida a concretização direta e imediata às
relações particulares. Vale lembrar que a dignidade aqui mencionada é condição inerente, intrínseca da pessoa humana, não podendo ninguém concedê-la ao ser racional,
pois o ser humano já a possui aprioristicamente como condição absoluta de sua existência, constituindo elemento que qualifica o ser humano como tal e dele não pode
ser destacado, de tal sorte que não se pode cogitar na possibilidade de determinada
pessoa ser titular de uma pretensão a que lhe seja concedida a dignidade.25
Mas, ainda que reconhecida a possibilidade de incidência dos direitos sociais fundamentais às relações entre particulares, faz-se necessário enfrentar, por derradeiro, a
questão de definir sob quais critérios se daria tal eficácia horizontal dos direitos sociais
fundamentais. A seguir, apresenta-se uma tentativa de delimitação da eficácia direta
desses direitos às relações privadas, evidentemente, sujeita a críticas e reparos, devido,
sobretudo, encontrar-se o tema mergulhado em enormes controvérsias, quer na literatura nacional quer na estrangeira.
3. Balizas para a incidência dos direitos sociais
fundamentais nas relações privadas
Mesmo quando se parte de uma Constituição escrita, persistem grandes dificuldades na concretização das normas de direito fundamental. Canotilho chega a elaborar
algumas regras básicas de aplicação das normas constitucionais, partindo da consideração da norma como elemento primário da interpretação, passando pelo sentido semântico do texto constitucional até chegar à atribuição de um significado aos enunciados
linguísticos, chamando a atenção para o fato de que o âmbito de liberdade do intérprete
(espaço de interpretação) encontra-se limitado pelo texto da norma.26
Uadi Lammêgo expôs, sinteticamente, as chamadas “regras de Black” para a interpretação constitucional. Um conjunto de proposições que serviriam de guias ao intérprete na árdua tarefa de compreensão e apreensão do conteúdo das normas inseridas
25
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição
Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 41.
26
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 6ª ed. Coimbra: Almedina, 1993,
pp. 216-222.
a eficácia direta e imediata dos direitos ...
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ivanilson paulo corrêa raiol
203
na Lei Fundamental.27 Por sua vez, Santi Romano descreveu algumas regras técnicas
que integrariam o método jurídico de análise constitucional, partindo dos elementos
mais evidentes expressos nas ordenações positivas até a formulação dos institutos que,
agrupando-se por seus traços comuns, constituiriam “familias” que, finalmente, reunidas formariam um sistema.28
Luís Barroso, a seu turno, demonstra a ocorrência de uma nova interpretação
constitucional que estaria assentada na ideia da diversidade de sentido do texto constitucional e que operaria com a possibilidade de diferentes interpretações da norma,
condicionadas pela realidade subjacente. A esse trabalho concorreriam os princípios,
os elementos concretos do caso e os fins a realizarem-se.29
Não se pretende promover um levantamento dos diferentes modelos de interpretação constitucional. Mas, uma vez que se aceitou o desafio da fixação de parâmetros
para a concretização dos direitos sociais fundamentais nas relações privadas, é inevitável a advertência acerca da complexidade dessa tarefa, mesmo quando se encontre o
estudioso debruçado sobre os direitos já positivados.
Nesse contexto, levando em conta o que Bidart Campos ressalta a respeito dos
direitos sociais, dizendo que são mais difíceis que os civis para adquirir vigência sociológica, porque normalmente requerem prestações positivas,30 a primeira baliza à
efetividade desses direitos fundamentais sociais deve restar condicionada à reserva do
possível, ou seja, assim como o Poder Público só pode realizar os direitos fundamentais
prestacionais se existirem meios materiais para tanto (disponibilidade orçamentária),
também, o particular só poderá ser submetido à eficácia dos direitos sociais fundamentais quando houver possibilidade material para isso, de tal sorte que a concretização de
determinado direito humano fundamental não importe em total inviabilização de outros
direitos, igualmente fundamentais à realização da dignidade da pessoa humana.
A segunda baliza à eficácia dos direitos sociais nas relações de âmbito privado
é praticamente decorrente da primeira e resulta do fato de que não se pode atribuir
tão somente à reserva do possível a possibilidade de aplicação dos direitos sociais
fundamentais. A razão é duplamente lógica. Primeiro é porque os direitos humanos
fundamentais sociais, nessa condição, estariam relegados a uma segunda categoria politico-econômica, pois competiria, em última análise, ao Legislativo “escolher” qual o
direito fundamental social que seria contemplado com a prestação da reserva orçamentária, reduzindo os direitos humanos, destarte, a uma questão de mera opção política.
27
BULOS, Uadi Lammêgo. Manual de interpretação constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997,
pp. 58-90. O leitor encontrará nessa obra um excelente resumo da concepção de Black a respeito das
regras de interpretação do texto constitucional.
28
ROMANO, Santi. Princípios de direito constitucional geral. Trad. Maria Helena Diniz. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1977, pp. 24-28.
29
BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas. 7ª ed. Rio de
Janeiro: Renovar, 2003, pp. 286-310.
30
BIDART CAMPOS, Germán J. Teoria general de los derechos humanos. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 1989, pp. 196-197.
204
temas atuais de direito
Segundo é que, na prática, jamais os particulares ficariam submetidos à eficácia dos
direitos sociais fundamentais, pois sempre se poderia invocar estrategicamente o argumento de que, sendo o Estado o principal obrigado ao cumprimento da norma jusfundamental, poderá a qualquer tempo, em decorrência de conveniência e oportunidade,
incluir no orçamento a prestação positiva de direito fundamental social, elidindo-se,
dessa forma, a exigência em relação à esfera privada.
Logo, apresenta-se premente a necessidade desta segunda baliza: o mínimo existencial. Vale dizer, como não podem os direitos fundamentais ficar entregues aos ventos
do jogo politico orçamentário ou vinculados a estratégias particulares procrastinatórias,
deve-se impor direitos fundamentais sociais mínimos que garantam o núcleo essencial
da dignidade da pessoa humana. Ou seja, é preciso que se considerem nesse aspecto os
critérios de proibição de excesso e de proibição de insuficiência no alcance dos direitos
fundamentais no direito privado.
Nesse espaço entre a reserva do possível e o mínimo existencial, representado em
grande parte pelos direitos fundamentais sociais mínimos e suficientes à realização da
pessoa humana, deve transitar a eficácia horizontal dos direitos sociais fundamentais,
por meio de uma ampla atividade política (Legislativo e Executivo) e judicial. A primeira estabelecendo as diretrizes orçamentárias a serem executadas em direção ao conteúdo dos direitos sociais, ao passo que, a segunda (judicial), preservando a supremacia
da Constituição e atentando para a dimensão objetiva dos direitos humanos, valendo-se
ainda daquela “nova interpretação constitucional”, concretizando, nos casos particulares, as normas de direito social fundamental de acordo com a realidade subjacente.
Para rematar, pode ser citado como um bom exemplo desse caminho de aplicação
dos direitos fundamentais sociais às relações privadas, o julgamento de dissídio coletivo onde ficou evidente a atenuação do poder empresarial diante das dispensas coletivas,
o que, sem dúvida, impôs uma obrigação ao particular (empresário) de caráter social,
econômica, familiar e comunitária. Isto é, os direitos sociais fundamentais (direito ao
trabalho e ao emprego) acabaram prevalecendo sobre a autonomia individual do poder do empresário nas dispensas massivas, conforme pode ser verificado na decisão
TST-RODC 309/2009-000-15-00.4. Rel. Min. Maurício Godinho Delgado. Sessão de
10.8.2009 (DEJT de 4.9.2009).
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