anais do colóquio de alunos de pós-graduação em letras
BEZERRA, Carlos Eduardo; SANTINI, Gilmar T.; SILVA, Jacicarla S.; SILVA, Telma M. (Orgs.)
I colóquio de alunos da
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12, 13 e 14 jun. 2007
p.14-28
ISSN: 2176- 6347
MACHADO DE ASSIS, CONTISTA DO JORNAL DAS FAMÍLIAS
Jaison Luís CRESTANI1 (Unesp – Univ Estadual Paulista/Assis)
RESUMO: Este trabalho pretende estudar a relação do contista Machado de Assis com as
condições de enunciação literária no contexto do Jornal das Famílias (1863-1878), periódico
dedicado “aos interesses domésticos das famílias brasileiras”, que investia na exigência de
narrativas sentimentais e moralizantes. Para tanto, examinaremos os procedimentos
temático-formais desenvolvidos pela ficção machadiana no sentido de subverter os
condicionamentos da imprensa e de executar inovações nos mecanismos usuais de
produção e de recepção da literatura em jornal. Os contos analisados investem na
problematização dos valores românticos, desconstruindo as mistificações e excessos
idealistas e virando ao avesso as formulações moralizantes requeridas pelo periódico.
ABSTRACT: This work intends to study the relation of Machado de Assis with the literary
enunciation conditions in Jornal das Famílias (1863-1878), newspaper devoted to “domestic
interests of the Brazilian families” that demanded sentimental and moral narratives. Thus, we
will examine the thematic and formal procedures developed by Machado de Assis’ fiction in
the intent to subvert the conditions established by newspaper press and to execute
innovations in usual mechanisms of production and reception of literature in newspaper. The
short stories invests in the problematization of romantic values, unmaking mystifications and
idealist excesses and reversing moralistic formulations requested by newspaper press.
I. Introdução
A produção ficcional em prosa de Machado de Assis costuma ser dividida pelos
parâmetros da crítica literária tradicional em duas fases distintas: a primeira fase, ou fase da
aprendizagem, e a segunda fase, ou fase da maturidade. A obra Memórias Póstumas de
Brás Cubas (1881) é apontada como o marco divisor dessas duas etapas. Quanto aos
contos, a coletânea Papéis Avulsos (1882), é comumente indicada como o marco inicial da
produção de contos de real mérito.
Partindo dessa perspectiva, a fortuna crítica tem sido bastante severa com os
primeiros contos de Machado de Assis, classificando-os como meras histórias românticas,
de pura fantasia, sem nenhum fundamento na realidade e pouco sugestivas esteticamente.
Esse desdobramento da prosa machadiana em duas fases inteiramente distintas acabou por
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Doutorando. Orientador: Dr. Alvaro Santos Simões Junior. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected]
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relegar as suas primeiras produções ao esquecimento, sem que, para tanto, tenha-se feito
uma avaliação consistente dessas composições iniciais.
Com base nesse contexto, este trabalho tem em vista a realização de uma revisão
crítica dos primeiros contos de Machado de Assis sob a luz das condições que marcaram o
contexto de sua publicação original. De acordo com o que ocorria com quase todo contista,
os seus contos também foram, em sua grande maioria, publicados inicialmente em jornais
literários e revistas de moda e literatura. Dentre estes, merece destaque o Jornal das
Famílias (1863-1878), dirigido por B. L. Garnier. Nesse jornal de tendência conservadora
foram publicados praticamente todos os contos da juventude de Machado de Assis.
Com intuito de reavaliar a colaboração do contista Machado de Assis no periódico
citado, tomamos como ponto de partida de nosso estudo as considerações de John
Gledson, Alfredo Bosi e Raimundo Magalhães Júnior a respeito do assunto. Expondo suas
dificuldades de antologista, Gledson afirma que, caso se tratasse meramente de uma
questão de qualidade literária relativa, dentre os mais de 80 contos da dita primeira fase,
nenhum ou quase nenhum deveria aparecer na sua coletânea. Na sua opinião, isso se deve
em grande parte às exigências do Jornal das Famílias, o que resultou em contos mais
longos que a média, publicados em fascículos (GLEDSON, 1998, p. 21).
Ajustando-se a tais declarações, Bosi, no início do seu ensaio A máscara e a fenda,
menciona que, em geral, quem faz uma antologia prefere excluir a maioria das histórias da
primeira fase de Machado. Embora as considere menos sugestivas esteticamente, o autor
comenta que o analista não pode omitir o fato de que “Machado foi também um escritor
afeito às práticas de estilo das revistas familiares do tempo, principalmente nas décadas de
1860 e 70. O jovem contista exercia-se na convenção estilística das leitoras de folhetins...”
(BOSI, 2000, p. 75).
Nessa mesma linha de pensamento, Raimundo Magalhães Jr. comenta que, apesar
de todas as cautelas de que usava como colaborador de um jornal para senhoras e moças,
nem por isso Machado de Assis passou incólume ante os censores que, de férula em
punho, se propunham a defender a moralidade pública e a pureza dos costumes. E
acrescenta: “É evidente que, se assim não fosse, o folhetinista amável, cheio de cuidados
com suas leitoras, perderia o emprego, ou o ‘Jornal das Famílias’ seria banido dos severos
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lares brasileiros, como publicação revolucionária e nociva” (MAGALHÃES JR., 1956a, p.
08).
Desse modo, avaliando o contexto original em que Machado de Assis produziu os
seus primeiros contos, podemos notar, com base nas considerações dos críticos citados,
que as condições e critérios impostos pelo periódico em questão podem implicar
transformações e variações que vão desde aspectos aparentemente triviais, como a
extensão das histórias, feitas até certo ponto sob medida, até critérios ideológicos, temáticos
e de qualidade literária, possibilitando-nos também o conhecimento de importantes
informações a respeito do público ao qual Machado se dirigia.
Além disso, convém ressaltar que o interesse desse exame está não só no
levantamento das influências que essas condições de produção exerceram sobre a
configuração dessas narrativas, mas também na averiguação a respeito da possível
existência, nesses contos, de forças corrosivas que tenham transgredido os padrões
estabelecidos pelo periódico, executando inovações tanto nesses modelos quanto nos
próprios mecanismos usuais de leitura da ficção em jornal. Dessa maneira, cabe avaliar até
que ponto é compatível a relação entre o escritor e os modos de produção determinados
pela imprensa periódica ou se, por outro lado, o escritor e a sua obra subvertem essas
determinações, adotando uma postura revolucionária e inovadora.
Com base nesse contexto, apresentaremos, na primeira parte deste trabalho, um
breve levantamento das condições de produção literária em conexão com a imprensa
periódica do século XIX, direcionando a atenção mais especificamente para as
características e tendências dominantes do Jornal das Famílias, editado por Baptiste Louis
Garnier no período de 1863 a 1878. No tópico seguinte, passaremos a observar o modo
como Machado de Assis, no processo elaboração ficcional de suas narrativas, lidou com os
fatores de produção e as tendências dominantes da ficção em jornal. Para tanto,
selecionamos os contos “Casada e viúva” (1864) e “Uma excursão milagrosa” (1866).
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II. Das condições de produção literária na imprensa periódica do século XIX: o perfil
do Jornal das Famílias
A discussão sobre as condições de produção literária nos remete, imediatamente, ao
fato de que cada texto de imprensa passa por diferentes restrições estilístico-temáticas
impostas pela direção do periódico ou pela própria seção em que se inscreve, decorrendo
daí algumas decisões quanto a sua forma de estruturação. Esse tipo de atividade artística é
geralmente permeado por fatores de mercado que, conforme a indicação de Alcides Ribeiro
(1996), condicionam a formação de um padrão de criação ficcional com o qual o escritor
defronta-se obrigatoriamente. A padronização imposta por esses fatores externos atua como
delimitador da autonomia do escritor e prejudicando o seu trabalho de aperfeiçoamento do
estilo e da linguagem artística.
Para se conhecer a fundo os objetivos de uma folha jornalística, nada melhor do que
analisar as cartas-programas e os editoriais dirigidos aos seus assinantes. Nesses editoriais,
constitui procedimento habitual um projetar-se promissivo para atos futuros de escrita,
através do qual podemos apreender e discutir a imagem que a imprensa procura dar de si
mesma e do seu público-alvo. É o lugar, por excelência, da afirmação de propósitos, do
delinear de projetos e da construção de um determinado horizonte de expectativa no leitor.
Da carta-programa, destinada “Aos nossos leitores”, que abre a publicação do novo
periódico, merece destaque o seguinte trecho: “Mais do que nunca dobraremos os nossos
zelos na escolha dos artigos que havemos de publicar, preferindo sempre os que mais
importarem ao país, à economia doméstica, à instrução moral e recreativa, à higiene, numa
palavra, ao recreio e utilidade das famílias” (Jornal das Famílias, jan. 1863, p.2-3). Desde já,
transparece uma preocupação com a “instrução moral” – elemento marcante de suas
publicações.
O teor das suas publicações literárias transparece mais nitidamente no editorial que
a Redação dirige aos leitores no segundo ano de publicação do periódico. Dentre os
comentários, destaca-se o excerto em que se faz um agradecimento aos literatos:
Agradecemos também aos hábeis e amenos literatos que se não
esqueceram de enfeitar as nossas páginas com aquelas lindas produções
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caídas de suas penas em horas de mágica inspiração, com aquelas flores
que tão perfumadas e formosas ofereceram às nossas leitoras.
Esperamos que nos continuem tão graciosas ofertas. Flores como são,
antes sejam elas colhidas por mãos de neve de outras flores, a serem por aí
desfolhadas pela ventania do esquecimento (Jornal das Famílias, jan. 1864,
p. 1-2).
Na composição dessa nota de agradecimento, transparece claramente a utilização
de recursos retóricos próprios do discurso romântico-idealista. Além disso, o modo como
são referidas as produções dos colaboradores remete diretamente às convenções da
narrativa romântico-sentimental: uma literatura amena, produto de “mágica inspiração”,
destinada a “enfeitar” e a emocionar as leitoras. Depreende-se daí que essas produções
carecem de seriedade, reflexão e rigor literário, servindo mais propriamente como objetos de
distração e passatempo das leitoras. Essa opinião também é defendida por Alexandra
Santos Pinheiro (2002) que, em seu estudo sobre os dois periódicos de Garnier, conclui
que, no aspecto literário, o Jornal das Famílias deixava entrever ainda a forte presença da
escola romântica: o amor idealizado, a instrução moral, a fuga da realidade, a reabilitação
das personagens geralmente por meio da morte.
Uma definição similar da matéria literária do Jornal das Famílias é traçada por
Frédéric Mauro (1991), que parafraseia as considerações de Lúcia Miguel Pereira (1955, p.
133-5):
Era necessária ‘uma leitura tranqüila, de pura fantasia, sem nenhum
fundamento na realidade; histórias que acontecessem em um mundo
convencional em que os despeitos amorosos eram os únicos sofrimentos,
onde tudo girava em torno de olhos bonitos, suspiros e confidências
trocadas entre damas elegantes’. Era o triunfo constante do bem sobre o
mal, e do amor, contanto que não fosse por interesse. A mulher inconstante
e o caçador de dotes eram sempre punidos, e os apaixonados fiéis e
sinceros sempre viam a realização de seu amor, sob a forma do casamento
(MAURO, 1991, p. 227).
De outra perspectiva, Sílvia Maria Azevedo (1990) distingue Machado de Assis dos
outros colaboradores: “enquanto os demais colaboradores […] simplesmente perpetuavam a
escola romântica e seus clichês, Machado tinha consciência da crise do Romantismo, o
grande tema que perpassou toda a sua produção ficcional desse período” (AZEVEDO, 1990,
p. 210).
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Em fevereiro de 1869, a Redação tornará, uma vez mais, a enfatizar o teor moral e
recreativo de suas publicações:
Graciosos romances têm sido publicados em nossas colunas nos seis anos
de existência que já contamos, e parece-nos que nem uma só vez a
delicada susceptibilidade de VV. EEx. tem sido ofendida.
Anedotas espirituosas e morais têm por certo causado a VV. EEx. o prazer
que as pessoas de finíssima educação experimentam nesse gênero de
amena literatura, e mais de uma vez conseguiram dissipar as névoas da
melancolia que se haviam acumulado nas belas frontes das nossas leitoras
(Jornal das Famílias, fev. 1869, p. 2-3).
Nesse trecho, é evidente a presença da ideologia burguesa que, tendo em vista a
integridade do lar e da família, defendia a necessidade de se ministrar uma “finíssima
educação” às mulheres. Conseqüentemente, essa concepção afetava de modo considerável
a literatura, a qual deveria zelar pelos valores tão caros à burguesia no que diz respeito à
conduta feminina. Daí a moralidade e o fundo didático das histórias, a preservação dos bons
costumes e a visão maniqueísta em que o bem sai vitorioso e o mal é condenado e punido.
A partir das considerações levantadas até então, já se torna possível delinear o perfil
do periódico em questão: uma publicação preocupada com a instrução moral, destinada a
atender às expectativas de um público majoritariamente feminino, oferecendo-lhe – entre
ensinamentos religiosos, receitas culinárias, figurinos de moda, moldes, bordados, desenhos
e assuntos de utilidade e recreio – uma literatura amena, essencialmente romântica,
determinada a instruir e a emocionar as leitoras, ocupando-lhes o tempo e dissipando-lhes o
tédio e “as névoas da melancolia”.
Expostas as características e tendências dominantes do periódico, passaremos, na
seqüência, a analisar o modo como o jovem contista Machado de Assis lidou com esses
condicionamentos da imprensa periódica nos seus primeiros contos.
III. A problematização dos valores românticos
Um dos principais mitos do idealismo romântico é o do casamento – expediente
marcante dos desfechos de grande parte da produção literária pertencente à escola
romântica. Como um periódico dedicado “aos interesses domésticos das famílias brasileiras”
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e afinado com as tendências da literatura romântica, é natural que as publicações do Jornal
das Famílias perpetuassem o casamento como um caminho ideal para a concretização
plena da felicidade dos amantes.
Na abordagem desse tema, Machado de Assis vai explicitar, em certas narrativas, o
seu próprio posicionamento em relação à estética romântica. A ficção machadiana publicada
no Jornal das Famílias não visa exatamente a negação das tendências vigentes e a
proposição de novas temáticas. Em vez disso, investe-se na continuidade das formulações
românticas, não no sentido de perpetuar suas convenções, mas na tentativa de ir além dele.
Para Antonio Candido, essa opção por levar em conta a produção dos predecessores seria
uma das razões fundamentais da sua grandeza:
Machado de Assis […] se embebeu meticulosamente da obra dos
predecessores. A sua linha evolutiva mostra o escritor altamente
consciente, que compreendeu o que havia de certo, de definitivo, na
orientação de Macedo para a descrição de costumes, no realismo sadio e
colorido de Manuel Antônio, na vocação analítica de José de Alencar. Ele
pressupõe a existência dos predecessores, e esta é uma das razões da sua
grandeza: numa literatura em que, a cada geração, os melhores recomeçam
da capo e só os medíocres continuam o passado, ele aplicou o seu gênio
em assimilar, aprofundar, fecundar o legado positivo das experiências
anteriores. Este é o segredo da sua independência em relação aos
contemporâneos europeus, do seu alheamento às modas literárias de
Portugal e França. Esta, a razão de não terem muitos críticos sabido onde
classificá-lo (CANDIDO, 1975, v. 2, p. 117-118).
Assim, a celebração do casamento, que comumente encerra as narrativas
românticas, será transferida, em certas ocasiões, para o início das narrativas machadianas
e, a partir daí, são desconstruídos as mistificações e os excessos de idealismo da estética
romântica. Em outros casos, a abordagem do casamento é enriquecida pela sua inserção na
problemática dos interesses pessoais e materiais.
Vejamos, por exemplo, o conto “Casada e viúva” (Machado de Assis. Jornal das
Famílias, nov. 1864), que se inicia com uma descrição enfática do idílio amoroso do casal
José de Meneses e Eulália:
Era impossível amar-se mais do que se amavam aqueles dois. Nem me
atrevo a descrevê-lo. Imagine-se a fusão de quatro paixões amorosas das
que a fábula e a história nos dão conta e ter-se-á a medida do amor de José
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de Meneses por Eulália e de Eulália por José de Meneses (Jornal das
Famílias, nov. 1864, p. 313).
A ambientação da narrativa também se harmoniza com a efusão afetiva dos recémcasados. Um mês após o casamento, mudaram-se para uma chácara na Tijuca a fim de
desfrutar, na solidão, a felicidade que os deixava ébrios. “As mulheres tinham inveja à
mulher feliz, e os homens riam dos sentimentos, um tanto piegas, do apaixonado marido”
(Jornal das Famílias, nov. 1864, p. 313), mas, em protesto, o casal amava-se ainda mais.
Algum tempo depois, uma filha apareceu para completar a “felicidade suprema” do casal.
Assim como ocorre no desfecho das narrativas românticas, em que o casamento é
celebrado como uma promessa de felicidade plena e perpétua, tudo parecia perfeito na vida
dos protagonistas do conto machadiano: “nenhuma nuvem sombreava o céu azul da
existência do casal Meneses”. No entanto, o narrador reconsidera a situação e reformula a
sua afirmação: “Minto; de vez em quando, uma vez por semana apenas, e isto só depois de
cinco meses de casados, Eulália derramava algumas lágrimas de impaciência por se
demorar mais do que costumava o amante José de Meneses” (Jornal das Famílias, nov.
1864, p. 313). Deste ponto da narrativa em diante, o idílio amoroso do casal é posto sob
suspeita e as mistificações em torno do casamento começam a ser desconstruídas.
As “nuvens” tornaram-se mais freqüentes no “céu” do casal a partir do momento em
que receberam a visita de um outro casal de amigos, Cristiana e Nogueira. Vindos de Minas,
pretendiam instalar-se na corte e, para tanto, contavam permanecer em casa de Meneses
até que pudessem arranjar uma casa conveniente. Eram velhos amigos, mas havia uma
notável diferença entre os dois casais: o que Cristiana sentia por Nogueira não passava de
uma “estima respeitosa”, conforme esclarece o narrador: “Se eu dissesse amor, mentia, e eu
tenho por timbre contar as coisas como as coisas são” (Jornal das Famílias, nov. 1864, p.
315).
A intimidade logo envolveu os dois casais. Contudo, não demorou para que o
“exemplar José Meneses”, “o rei dos maridos”, tirasse a sua máscara e começasse a investir
sobre Cristiana, que fora sua namorada no passado. Pressionando-a com a ameaça de
expô-la a um escândalo por meio da revelação das cartas que guardava consigo, Meneses
tentava forçá-la a entregar-se aos seus desejos.
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Neste ponto, o narrador considera exageradas as proporções que Cristiana dava ao
caso, afinal de contas, o ato de Meneses era um “ato comum, praticado todos os dias, no
meio da tolerância geral e até do aplauso de muitos. Certamente que isso não lhe dá
virtude, mas tira-lhe o mérito da originalidade” (Jornal das Famílias, nov. 1864, p. 321).
Mesmo depois da transferência do casal visitante para uma casa própria, Meneses
continuou a assediar Cristiana e, desta vez, usou como estratégia a confissão da sua
indiferença em relação a sua esposa: “dei a Eulália o meu nome e minha proteção; não lhe
dei nem o meu coração nem o meu amor” (Jornal das Famílias, nov. 1864, p. 323). Todavia,
essa confissão foi ouvida por Eulália, que se dirigira até a casa de Cristiana para buscar o
consolo da amiga, porque acabara de descobrir, no gabinete do marido, duas cartas de
outras duas amantes de Meneses. Foi um golpe tríplice: num só dia a mulher descobriu três
casos de traição do marido.
A situação mais dramática da história, porém, ainda estava por vir. Eulália mostrou, a
princípio, grandes desejos de separar-se do marido; mas Cristiana alertou-a sobre as
dificuldades e conseqüências de uma separação: “entre as razões de decoro que
apresentou para que Eulália não tornasse pública a história das suas desgraças domésticas,
alegou a existência de uma filha do casal, que cumpria educar e proteger” (Jornal das
Famílias, nov. 1864, p. 325). Eulália não teve outra saída senão resignar-se ao suplício,
permanecendo, conforme a indicação do título, “casada e viúva” a um só tempo: “A pobre
mãe, viúva da pior viuvez desta vida, que é aquela que anula o casamento conservando o
cônjuge, só vivia para sua filha” (Idem, p. 325).
Diante do exposto, podemos perceber a intenção de Machado de Assis de dar
continuidade às proposições temáticas do Romantismo, problematizando as suas
formulações e conferindo uma dimensão mais realista à questão do casamento.
Manifestando certa isenção aos propósitos edificantes e moralizantes do Jornal das
Famílias, o narrador afirma que a sua intenção consiste simplesmente em esboçar quadros
e caracteres, numa acepção bastante próxima daquela que seria proposta oito anos depois
na “Advertência” do romance Ressurreição (1872): “Eu não pretendo senão esboçar
quadros ou caracteres, conforme me ocorrem ou vou encontrando. É isto e nada mais”
(Idem, p. 325).
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Em vez de histórias edificantes, tem-se em vista a crítica e o questionamento das
regras sociais. Procurando criar um efeito de realidade, o narrador machadiano faz uma
representação da situação real da mulher brasileira, vivendo numa sociedade patriarcal e
conservadora. Está em debate as limitações da condição feminina nesse contexto, em que o
destino da mulher, como que “inscrito na natureza”, estava previamente traçado: casar e ter
filhos. Apresentando o casamento em situação de crise, a narrativa polemiza a continuidade
de relações matrimoniais insatisfatórias que, em função das regras sociais e da manutenção
das aparências, não eram desfeitas. Cumpria à mulher casada educar os filhos e não
permitir, em hipótese alguma, que as aparências de um casamento feliz fossem abaladas.
Essa crítica torna-se ainda mais contundente quando o narrador machadiano denuncia
essas práticas adúlteras e calculistas como um “ato comum, praticado todos os dias, no
meio da tolerância geral e até do aplauso de muitos”.
Apresentando o adultério, o cálculo e o cinismo como práticas deliberadas, embora
dissimuladas, da sociedade brasileira de meados do século XIX, o conto em questão
denuncia a falência do casamento e, dentro dele, a insatisfação da mulher, dando mostras
do desacordo entre essência e aparência, entre idealismo romântico e realidade prática.
Desse modo, as cenas finais da narrativa impelem o leitor a uma releitura dos
episódios iniciais da história, no sentido de considerar a ironia do narrador na descrição do
idílio amoroso do casal. Esse procedimento e as constantes emendas executadas no
decurso da narrativa, (“Minto”; “Se eu dissesse amor, mentia” etc.), atuam no sentido de
conscientizar o leitor da necessidade de desconfiar da sinceridade e do sentido literal das
afirmações do narrador. As suas considerações iniciais a respeito do idílio amoroso do casal
alimentam as expectativas do leitor propenso ao envolvimento emocional com a trama
romanesca; esta, no entanto, será desconstruída no decurso da narrativa, ocasionando a
frustração das expectativas formuladas. Portanto, assumindo o cinismo que envolve a ação
das personagens, a relação que o narrador estabelece com o leitor é marcada pela ironia e
pela impostura.
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IV. A moralidade às avessas
No prefácio de Contos sem data, Raimundo Magalhães Júnior observa as
transformações pelas quais passou a peça “As forcas caudinas” até alcançar a forma final
do conto “Linha reta e linha curva” publicado na coletânea Contos fluminenses. Na
passagem do Jornal das Famílias para o livro, Machado de Assis “suprimiu […] a parte final,
em que dava explicações sobre o que estava explicado e fazia a ‘moralidade’, indispensável
às histórias daquela publicação” (MAGALHÃES JR., 1956c, p. 9, grifos nossos).
Se a moralidade era “indispensável” para atender as exigências da publicação do
texto no Jornal das Famílias, resta saber, no entanto, se as narrativas machadianas
atendem efetivamente aos critérios morais e aos padrões ideológicos impostos pela direção
do periódico, ou se Machado de Assis teria assumido, por outro lado, uma postura
subversiva em relação a esse aspecto.
No prefácio de Contos recolhidos, Raimundo Magalhães Júnior observa também as
transformações sofridas pelo conto “Uma excursão milagrosa” (A. Jornal das Famílias, abr. e
maio 1866) para atender as exigências do Jornal das Famílias. Uma versão inicial dessa
narrativa teria sido publicada sob o título “O país das quimeras” (O futuro, 1º. nov. 1862),
acompanhado da indicação: “conto fantástico”. Dentre as alterações executadas, Magalhães
Jr. destaca a passagem da narração em terceira pessoa para primeira do singular, na voz
da personagem Tito, o que seria mais verossímil para um relato fantástico. Além disso, o
escritor “colocou-lhe também uma introdução ou ‘nariz de cera’ e um epílogo, ou
moralidade” (MAGALHÃES JR., 1956b, p. 9). Na seqüência, Magalhães Jr. comenta:
“Destinando o autor ‘Uma excursão milagrosa’ ao ‘Jornal das Famílias’ tais acréscimos se
fizeram necessários, sem dúvida, à divisão do trabalho em dois folhetins” (Idem, p. 9). Dos
comentários do autor depreende-se, uma vez mais, que a moralidade era “indispensável” à
publicação do texto no Jornal das Famílias. Vejamos, portanto, como se configura a
narrativa e o seu desfecho supostamente moralizante.
Nesse conto, o motivo do duplo percorre toda a esfera narrativa. Na abertura do
relato quem está com a palavra é aparentemente o próprio autor: “Tenho uma viagem
milagrosa para contar aos leitores, ou antes uma narração para transmitir, porque o próprio
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viajante é quem narra as suas aventuras e as suas impressões” (Jornal das Famílias, abr.
1866, p. 108). As considerações iniciais desse suposto autor ocupam toda a parte da
narrativa publicada naquele mês; só na parte final, é dada a palavra ao protagonista e
narrador das aventuras fantásticas: “Aqui deixa de falar o autor para falar o protagonista.
Não quero tirar o encanto natural que há de ter a narrativa do poeta reproduzindo as suas
próprias impressões” (Jornal das Famílias, maio 1866, p. 139). No desfecho do conto, o
suposto autor retoma a palavra para apresentar a referida “moralidade”: “Tal é a narrativa de
Tito. Esta pasmosa viagem serviu-lhe de muito […]” (Jornal das Famílias, maio 1866, p.
148). Essa imbricação entre as instâncias narrativas tende a causar certo “estranhamento”,
que dificulta a percepção imediata e a satisfação das expectativas habituais, solicitando uma
renovação das formas de leitura.
O duplo também marca presença na caracterização do protagonista: “Como as
medalhas, e como todas as coisas deste mundo de compensações, Tito tem um reverso. [...]
Podendo ser, do colo para cima, modelo à pintura, Tito é uma lastimosa pessoa no que toca
ao resto. Pés prodigiosamente tortos, pernas zaimbras” (Jornal das Famílias, abr. 1866, p.
110). Essa caracterização dúplice não se restringe apenas ao aspecto físico: “No moral Tito
apresenta o mesmo aspecto duplo do físico. Não tem vícios, mas tem fraquezas de caráter”
(Idem, p. 110).
A duplicidade da personagem revela-se também no seu ofício de poeta. Nesse caso,
o narrador afirma que suas fraquezas de caráter eram “filhas mesmo das suas virtudes”. Em
face de “necessidades urgentes” e da falta de recursos, Tito não teve outra saída senão
comercializar as suas produções literárias, perdendo, assim, o direito de paternidade sobre
elas. Passado algum tempo, Tito “começou a defraudar o freguês das odes, subtraindo-lhe
algumas estrofes inflamadas”, em função de um “infortúnio amoroso”. Rejeitado pela amada,
o primeiro projeto que lhe veio à mente foi simplesmente o de “deixar este mundo”. Por
achá-lo “sanguinolento e definitivo”, abandonou esse propósito e limitou-se a fazer uma
viagem, sem saber se “por mar ou por terra”.
A viagem realizada pelo poeta também adquire uma feição dúplice, conforme
transparece nas considerações iniciais do narrador-autor: “Se a chamo milagrosa é porque
as circunstâncias em que foi feita são tão singulares, que a todos há de parecer que não
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podia ser senão um milagre”. A despeito desse aspecto extraordinário, o narrador-autor
afirma que “não se pode deixar de reconhecer que o fundo é o mais natural e possível deste
mundo” (Jornal das Famílias, abr. 1866, p. 108).
Na seqüência, o narrador-autor também faz alusão a diversas memórias de viagens,
misturando relatos reais (“viagens do capitão Cook”), com histórias ficcionais (“viagens de
Gulliver”) e extraordinárias (“narrativas de Edgar Poe” e “contos de ‘Mil e uma noites’”).
Disseminando o motivo do duplo por toda a esfera da narrativa, é presumível que a viagem
“milagrosa” e “natural” realizada pelo poeta Tito tenha encontrado no seu percurso
elementos e situações dúplices, constituindo um misto de fantasia e realidade.
A viagem do poeta não é realizada “nem por mar, nem por terra” (o que seria mais
próprio de uma viagem real), mas pelo ar, evidenciando ser amparada pela imaginação.
Assim, “uma sílfide, uma criatura celestial, vaporosa, fantástica, trajando vestes alvas, nem
bem de pano, nem bem névoas, uma coisa entre as duas espécies...”, invadiu o aposento
do poeta. Depois de algumas palavras trocadas, os olhos do poeta “viram abrirem-se das
espáduas da visão duas longas e brancas asas que ela começou a agitar e das quais caía
uma poeira de ouro” (Idem, p. 141). O teto rasgou e os dois subiram; os planetas passavam
como se fossem “corcéis desenfreados”, até que chegaram ao “país das Quimeras”.
Adentrando nesse país fantástico, o poeta começou a perceber que “os objetos
tomavam o aspecto da realidade” (Idem, p. 141). Desse modo, essa suposta “fuga da
realidade” executada pelo poeta parece ter uma conotação irônica, já que essa viagem
fantástica reproduz as estruturas próprias do mundo real, como se não houvesse meios de
fugir da realidade. Conforme a síntese traçada por Sílvia Azevedo, esse país fantástico
constitui uma versão às avessas do mundo real:
Na verdade, esse país fantástico, sob vários aspectos, é uma cópia de um
outro, tido como real. Em particular, as convenções, as mesquinharias
(representadas pelo Gênio das Bagatelas, o soberano do lugar), as
etiquetas, a moda, a vaidade (da qual faz apologia um filósofo de lá), as
hierarquias. Enfim, um país, esse das Quimeras, em que a fantasia é
tomada pela realidade, uma outra versão do mundo às avessas (AZEVEDO,
2006, p. 5).
As entidades e convenções representadas nessa viagem fantástica também
assumem uma feição dúplice: a “massa cerebral” (racional) é associada com “massa
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quimérica” (fantasia); “diplomatas” são confundidos com “espantalhos”; o filósofo, com seu
falar “pausado”, “embebido na música das próprias palavras” e com seu “gesto estudado”,
assemelha-se à figura de um retórico ou orador de sobremesa; a “vaidade” também é vista
como a consciência da “elevação moral” (Cf. Jornal das Famílias, maio 1866, p. 144-146).
Terminada a sua excursão ao “país das Quimeras”, o saldo obtido também tem um
caráter dúplice. Se, por um lado, o poeta “adquiriu um olhar de lince, capaz de descobrir, à
primeira vista, se um homem tem na cabeça miolos ou massa quimérica”, por outro lado,
“mais infeliz e mais pobre ficou depois disto” (Idem, p. 148).
Daí vem a moralidade às avessas com o conselho final dado pelo narrador:
“Aprendam os outros no espelho deste. Vejam o que lhes aparecer à mão, mas procurem
dizer o menos que possam as suas descobertas e as suas opiniões” (Idem, p. 148). Concluise, portanto, que o caminho mais viável é ser graciosamente hipócrita, já que expressar a
verdade só traz desvantagens e frustrações. Passando por uma real desilusão amorosa, o
poeta recorre ao expediente romântico da “fuga da realidade”, incorrendo em nova
desilusão, já que os sonhos reproduzem avessamente as estruturas do mundo real. Enfim,
conclui-se que não há meios de fugir a essa realidade marcada pela hipocrisia.
V. Considerações finais
Com este trabalho, foi-nos possível examinar a postura subversiva do jovem contista
Machado de Assis em relação à exigência de narrativas sentimentais e moralizantes
requerida solicitar pelo Jornal das Famílias. Contornando os condicionamentos da imprensa
periódica as narrativas machadianas reaproveitam de modo crítico e problematizante os
temas e motivos da estética romântica, desconstruindo as mistificações e os excessos das
manifestações idealistas do Romantismo e virando ao avesso as formulações moralizantes
reinvindicadas pelo periódico.
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VI. Referências bibliográficas
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contos e histórias em livro. (Tese de Doutorado). São Paulo: USP, 1990.
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RIBEIRO, José Alcides. Imprensa e ficção no século XIX: Edgar Allan Poe e A narrativa de
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