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As artes de governar o Brasil
no período pombalino
IZABELA GONÇALVES VIEIRA *
O presente trabalho busca analisar a administração da América Portuguesa no período pombalino,
visando perceber quais eram os objetivos que guiavam os esforços lusos na América. Através da
análise comparativa das trajetórias e das ações governativas dos mais importantes agentes régios
que estiveram à frente das possessões ultramarinas portuguesas na América, buscar-se-á destacar
rupturas e continuidades dos “modos de governar”. As correspondências ativa e passiva da Coroa
lusa e seus principais agentes funcionaram como importantes corpus documental deste esforço
investigativo, cuja análise permitiu ressaltar os aspectos militares como um dos mais importantes
focos a serem priorizados pela Coroa lusa no território americano.
Palavras-chave: Período Pombalino, América Portuguesa, administração, cartas.
The arts of rule Brazil in pombalino period
This study aims to analyze the management of Portuguese America in Pombal period, seeking
to understand what were the objectives that guided the lusos efforts in America. Through
comparative analysis of the trajectories and governing actions of the most important royal
officers who were at the helm of the Portuguese overseas possessions in America, will be
sought to highlight continuities and ruptures of the “modes of governing.” Active and passive
correspondence of the Portuguese Crown and its major colonial agents acted as important
documentary corpus of this investigative effort, whose analysis allowed emphasize the military
aspects as one of the most important foci to be prioritized by the Lusitanian crown on American
territory.
Keywords: Pombalino Period – Portuguese America – administration – letters.
* Mestra em História pela Universidade Federal Fluminense com a dissertação: A sombra e a penumbra: o Vicereinado do Conde da Cunha e as relações entre centro e periferia no Império Português (1763-1767), sob a orientação
do Prof. Dr. Guilherme Paulo Castagnoli Pereira das Neves.
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E
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Nesta recíproca união de poder consiste essencialmente a maior
força de um Estado, e, na falta dela, toda a fraqueza dele1.
ntre os anos de 1750 e 1777 a Coroa lusa passou a traçar diretrizes para os mais altos
oficiais régios que serviram no Estado do Brasil e o Vice Rei Antônio Álvares da Cunha
foi um dos principais alvos deste esforço. Os “modos de governar” destes importantes
braços da Coroa na América foram marcados por rupturas e continuidades,
principalmente no que concerne as ações voltadas ao centro-sul da América Portuguesa, durante
o terceiro quartel do século XVIII.
Para a melhor compreensão os objetivos perseguidos pela administração pombalina em
relação à sua principal possessão ultramarina se faz necessário estabelecer conexões entre as
ações dos oficiais régios que estiveram à frente da América Portuguesa neste período. Homens
como o governador Gomes Freire de Andrada, que não foi Vice-rei, mas governador do Rio de
Janeiro, entre 1733 e 1763, tendo seu poder ampliado para outras regiões ao longo destas três
décadas que precederam a transferência da capital; o 6º Conde dos Arcos, Vice-rei do Brasil entre
1754 e 1760; o 1º Marquês de Lavradio, que ocupou o cargo máximo do Estado do Brasil durante
menos de um ano, em 1760; o Conde da Cunha, primeiro Vice-rei no Rio de Janeiro, que aqui ficou
entre 1763 e 1767; e o 2º Marquês de Lavradio, Vice-rei do Brasil entre 1769 e 1779.
Uma hipótese de trabalho norteia e fornece os critérios da comparação entre homens: as
principais medidas de Pombal em relação à América Portuguesa atendiam ao objetivo principal,
ainda que não exclusivo, de delimitar, defender e preservar as fronteiras com a América Espanhola,
fortalecendo as defesas militares limítrofes do Estado do Brasil e de sua sede, o Rio de Janeiro,
contra possíveis agressões externas. Por isso, serão contrastadas em especial as instruções régias
delegadas a tais oficiais em relação à ocupação e fortificação dos territórios limítrofes entre
as possessões lusas e espanholas na América. Serão comparadas, ainda, as medidas voltadas à
organização das tropas lusas no Centro-Sul da América Portuguesa, bem como aquelas destinadas
ao incremento das defesas e tropas do Rio de Janeiro, a partir de 17632.
Um dos mais importantes corpus documental deste esforço investigativo são as
correspondência ativa e passiva de tais oficiais, produzida durante o período em que estiveram
em postos-chave da governação lusa na América. Este tipo de fonte primária adquire relevância
destacada para o estudo da atuação dos oficiais régios na América Portuguesa durante o período
pombalino pois, como afirma Lourival Machado, “mesmo a ampla planificação de Pombal não se
exprimira em estatutos legais básicos e gerais, tanto que devemos pesquisá-la preferentemente
em cartas, instruções e relatórios”3.
As cartas que serão aqui utilizadas como fontes privilegiadas têm, portanto, o valor analítico
de um regimento, contendo as instruções do Conde de Oeiras aos seus subordinados, que
costumavam ser enviadas logo após a nomeação. E, como explica Marcos Carneiro de Mendonça:
1 ‘Instrução Militar’ passada para uso do Governador e Capitão-General da Capitania de São Paulo, Martim Lopes
Lobo de Saldanha, em 24 de janeiro de 1775, citada por: Marcos Carneiro de Mendonça. ‘O pensamento da
metrópole portuguesa em relação ao Brasil’ In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), v. 257.
Rio de Janeiro: out-dez, 1963. p. 54.
2 As fronteiras entre a América Portuguesa e a Espanhola acima do Mato Grosso eram as menos conflagradas,
embora também desprotegidas, além de estarem, durante o período de governação do Conde dos Arcos, sob a
jurisdição do Estado do Maranhão, fugindo ao escopo deste trabalho.
3 Lourival Gomes Machado. ‘Política e administração sob os últimos Vice-reis’ In: Sérgio Buarque de Holanda
(dir.). A época colonial: administração, economia e sociedade. 12ª Ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008. p. 421.
(História Geral da Civilização Brasileira; t. 1, v. 2).
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o que na administração de Pombal chamavam de instruções,
antes eram Regimentos [...]. As chamadas Instruções, tanto
vinham de Lisboa, como eram aqui passadas de governante
para governante; sendo que as de Lisboa eram também
denominadas ‘Cartas Instrutivas’. [...] Os Regimentos e
Instruções vindos de Lisboa com os governantes que nos
mandaram, e as Instruções e Relatórios – aqui organizados
pelos governantes que se iam para o uso e orientação
dos que aqui chegavam, constitui a espinha mestra ou, se
quiserem, a linha mestra do pensamento da metrópole, em
relação ao Brasil, quer tomada sob o ponto-de-vista geral,
quer sob seus mais variados aspectos, como os políticos, os
administrativos, os militares, os econômicos, os judiciários, e
ainda os eclesiásticos ou das Religiões4.
Cabe ressaltar ainda que, ao analisar estes documentos, buscou-se atentar aos
procedimentos retóricos que engendram, encarando os discursos como atos de fala que buscavam
fundamentar ações políticas, construir estratégias e legitimar posturas. Como forma recorrente
de persuasão, tais documentos foram tratados como parte de um “arsenal erudito da cultura
política”, importante na tessitura e formação do Estado5.
Portanto, devemos analisar as cartas no contexto em que foram produzidas, buscando
perceber a que esquemas de raciocínio estavam ligadas, investigando os contextos nos quais
estavam inseridas, impondo-lhes limitações e possibilidades6. No que tange particularmente
a tais correspondências de caráter oficial, trata-se de identificar aquilo que, nelas, obedece à
própria lógica nobiliárquica do serviço no ultramar. Como ressalta Alden, os administradores
lusos “estavam sempre ansiosos para persuadir a Coroa de sua própria devoção ao cargo e para
se proteger contra possíveis acusações de má conduta” – o que, por vezes, passava por apontar
os erros de outros oficiais régios, como era, aliás, incentivado pela própria Coroa como forma de
controlar melhor seus próprios oficiais no ultramar, servindo como árbitro dos conflitos entre
eles7.
As trajetórias
No mundo de Antigo Regime da América portuguesa, Vice-reis e governadores entravam
em cena com uma grande responsabilidade de serem os representantes mais diretos da vontade
régia no ultramar português, e tinham como parte principal das suas atribuições a manutenção
da justiça régia. Eram estes oficiais periféricos representantes do poder real em regiões dotadas,
muitas vezes, de grande autonomia, uma vez que a grande distância destas províncias não permitia
ao rei que as governasse pessoalmente.8 Desta forma, este outro eu do rei devia estar unido a ele
4 Marcos Carneiro de Mendonça. ‘O pensamento da metrópole portuguesa... Op. cit., p. 43-44.
5 Para a análise dos discursos na Época Moderna, ver Alcir Pécora. ‘Introdução’ In: Antônio Vieira. Sermões. São
Paulo: Hedra, 2000, v. 1, p. 11-25; João Adolfo Hansen. ‘A murmuração do corpo místico’ In: A sátira e o engenho:
Gregório de Matos e a Bahia do Século XVII. São Paulo: Companhia das Letras: Secretaria de Cultura, 1989. p. 71142; Diogo Ramada Curto. O discurso político em Portugal (1600-1650). Lisboa: Projecto Universidade Aberta, 1988.
p. 143-241.
6 Ainda sobre análise de discurso, ver: John G. A. Pocock. Linguagens do ideário político. Trad. Fábio Fernandez. São
Paulo: Edusp, 2003; Quentin Skinner. Liberdade antes do liberalismo. São Paulo: Unesp, 1998.
7 Tradução livre de: Dauril Alden. Royal government in colonial Brazil: with special reference to the administration
of the marquis of Lavradio, viceroy, 1769-1779. Berkeley/Los Angeles: University of California Press, 1968. p. 471
e nota 101.
8 Joel Serrão. Dicionário de Portugal. Lisboa: Iniciativa, 1985. v. 4,
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por fortes laços de fidelidade, recebendo em troca benefícios, gratidão e mercês9. Contudo, estes
mesmos laços de fidelidade e amor, que deviam fortalecê-los em sua governação, eram a todo
tempo questionados e monitorados pelos demais poderes concorrentes a eles.
Governadores e Vice-reis eram então elementos fundamentais na tessitura de uma complexa
rede política que servia como engrenagem para a administração das extensas possessões lusas. A
presença destes agentes governativos na América Portuguesa, suas ações e práticas, e o contexto
no qual estão inseridos, evidenciam quais eram os principais interesses e expectativas da Coroa
lusa no período pombalino.
Assim sendo, a configuração das trajetórias administrativas e o contexto que envolveu
o recrutamento dos oficiais régios – suas origens sociais, condição e critérios de escolha – são
fatores que colaboram para esclarecer a governação lusa a partir da segunda metade do século
XVIII.
O período pombalino foi marcado por um maior empenho e preocupação com as qualidades
dos homens que estariam à frente da administração régia, entre eles os Vice-reis, nas várias
regiões do Império. Contudo, as reformas pombalinas não alteraram muito o padrão tradicional
de recrutamento dos Vice-reis do ultramar10.
De forma geral, o nome escolhido era selecionado por sua experiência militar e qualificada
nobreza e fidalguia. Desde o final do século XVII, a política de nomeação desses oficiais régios,
no entanto, passou a contar ainda com um progressivo aumento da importância da experiência
acumulada nos serviços do ultramar11.
Não obstante, a origem desses homens continuou sendo um importante requisito para a
escolha de Vice-reis e governadores, uma vez que “as reformas pombalinas não transformaram
o padrão tradicional do exercício do poder no Império”12. Mesmo depois do século XVII, eles
continuavam a ser oriundos da primeira nobreza de Portugal, apesar de as nomeações passarem
a ser mais comuns entre os filhos segundos. E, a partir da primeira metade do XVIII, torna-se mais
evidente uma grande ligação entre o título condal e o Vice-reinado13.
No intuito investigativo de perceber mudanças e continuidades nas ações administrativas,
principalmente de cunho militar, dos homens que estiveram à frente da governação da América
Portuguesa durante o período pombalino, é de grande valia compreender quais eram as intenções
da Coroa lusa na América Portuguesa no período anterior ao Vice-reinado de Antônio Álvares da
Cunha.
Dois oficiais régios foram incumbidos da importante e honrosa tarefa de ocupar o cargo
máximo do Estado do Brasil na primeira fase do governo pombalino: D. Marcos José de Noronha
e Brito, o Conde dos Arcos, que exerceu seu governo de 1754 a 1760; e seu substituto, D. Antônio
de Almeida Soares e Portugal, o 1º Marquês de Lavradio, empossado em 9 de janeiro de 1760, que
exerceu o cargo por apenas seis meses, devido ao seu falecimento em 4 de julho.
9 Ver Pedro Cardim. ‘Amor e Amizade na cultura política dos séculos XVI e XVII’ In: Lusitânia Sacra. Revista do
Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa. Tomo 11, 2ª série, Lisboa, 1999.
10 Mafalda Soares da Cunha & Nuno Gonçalo F. Monteiro. ‘Governadores e capitães-mores do império atlântico
português nos séculos XVII e XVIII’ In: Mafalda Soares da Cunha; Nuno Gonçalo Monteiro & Pedro Cardim (orgs.).
Optima pars: elites ibero-americanas do Antigo Regime. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2005. p. 213.
11 Sobre os critérios de recrutamento de Vice-reis e governadores-gerais, ver: Nuno Gonçalo F. Monteiro.
‘Trajetórias sociais e governo das conquistas: notas preliminares sobre os Vice-reis e governadores-gerais do Brasil
e da Índia nos séculos XVII e XVIII’ In: João Fragoso; Maria de Fátima Gouvêa & Maria Fernanda Bicalho (orgs.). O
Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica imperial portuguesa, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2001; e Mafalda Soares da Cunha & Nuno Gonçalo Monteiro. Op. cit.
12 Nuno Gonçalo F. Monteiro. D. José na sombra de Pombal. Lisboa: Círculo dos Leitores, 2006. p. 180.
13 Mafalda Soares da Cunha & Nuno Gonçalo F. Monteiro. Op. cit., p. 215.
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D. Marcos José de Noronha e Brito (1712-1768), o 6º Conde dos Arcos, era filho do primeiro
matrimônio do 5º Conde dos Arcos, e tio da primeira mulher de Pombal. D. Marcos José de
Noronha e Brito iniciou sua carreira militar em 1726, servindo como soldado num regimento de
cavalaria da Corte, sendo promovido em maio de 1734 a alferes e em agosto de 1735 a tenente,
no regimento comandado pelo Marquês das Minas, tornando-se anos mais tarde capitão. Contudo,
sua carreira administrativa começa a tomar fôlego ao ser nomeado governador e capitão-general
de Pernambuco em 12 de novembro de 1745, passando três anos mais tarde a governar Goiás
(4 de Setembro de 1748). Assim, ao ser nomeado o 7º Vice-rei e capitão-general do Brasil em
24 de junho de 1754, já havia acumulado experiências administrativas e militares em postos
importantes, permanecendo no cargo até 176014.
D. Antônio de Almeida Soares Portugal de Alarcão Eça e Melo (1701-1760), o 1º Marquês
de Lavradio, era filho do 3º Conde de Avintes. Teve o título de Conde de Lavradio concedido por
D. João V em 17 de janeiro de 1725, sendo mais tarde engrandecido com a elevação a Marquês,
em 18 de outubro de 1753, por D. José I. Senhor da vila do Lavradio, recebera a comenda de S.
Pedro de Castelões na Ordem de Cristo (em atenção aos serviços de seu tio, o Cardeal D. Tomás
de Almeida). Ao suceder seu pai na Casa dos Avintes, além do senhorio daquela vila recebera as
comendas da Santa Maria de Lamas e S. Martinho Lordosa na Ordem de Cristo. Sua trajetória
militar também era marcante, tendo sido capitão de infantaria e coronel do regimento de Elvas.
Assim como Antônio Álvares da Cunha, passou pelo governo de Angola (1748-1753), sendo
nomeado governador e capitão-general antes de se tornar Vice-rei do Brasil. Ocupou, ainda, os
postos de coronel de infantaria na Corte e governador de Elvas, quando foi promovido a sargentomor de batalha em 175715.
Com uma vasta trajetória dentro do Império, o Marquês de Lavradio foi enviado para
substituir o Conde dos Arcos, tomando posse em 9 de janeiro de 1760, incumbido da importante
tarefa de desterrar os jesuítas. Contudo, foi acometido de grave enfermidade, vindo a falecer seis
meses depois. Devido ao curto período à frente da governação na América Portuguesa, não são
atribuídas a ele grandes obras.
D. Antônio de Almeida Soares e Portugal foi o último Vice-rei instalado na Bahia. A América
Portuguesa só recebeu outro Vice-rei em 1763, já com a sede transferida para o Rio de Janeiro.
Antes do governo do Conde da Cunha, no entanto, outro oficial régio também merece destaque
devido a sua importante atuação na América Portuguesa. Trata-se de Gomes Freire de Andrada,
que apesar de não ser um Vice-rei deixou profundas marcas nos modos de governar desta parcela
do Império luso.
Gomes Freire de Andrada (1685-1763) nasceu em Portugal; era filho de Bernardino Freire,
destacado governador de S. Tomé, Peniche, Estremoz, Costa da Mina e Alentejo. Homem letrado,
teve que interromper seus estudos na Universidade de Coimbra quando Portugal se envolveu na
Guerra de Sucessão Espanhola, engajando-se no serviço militar como Sargento-mor de cavalaria
do regimento de Alcântara, no qual serviu durante vinte e três anos (1710-1733). Com esta
importante experiência militar, além das letras, o futuro Conde de Bobadela foi nomeado pelo
rei D. João V Governador do Rio de Janeiro (26 de julho de 1733), assumindo o cargo em 10 de
agosto de 1733.16
14 Sobre o 6º Conde dos Arcos, ver: Afonso Eduardo Martins Zúquete (dir. e coord.). Nobreza de Portugal e do
Brasil. Lisboa: Ed. Zairol, 2000. v. 2, p. 290; Pedro Calmon. História do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio Ed, 1959.
v. 3, p. 1045.
15 Sobre o 1º Marquês de Lavradio, ver: Afonso Eduardo Martins Zúquete (dir. e coord.). Op. cit., p. 678-679. Pedro
Calmon. Op. cit., p. 1046.
16 Roberto Macedo. ‘Gomes Freire, o Principal Comissário’ In: Anais do Simpósio Comemorativo do Bicentenário da
Restauração do Rio Grande (1776-1976). v. 1. Rio de Janeiro, 1979. p. 95. Sobre a nomeação de Gomes Freire de
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Em anos posteriores, D. João V o beneficiou consecutivamente com os governos de Minas
Gerais, em 10 de janeiro de 1735; de São Paulo, em 25 de outubro de 1737; e de todo o Sul e
Centro-Oeste, em 7 de maio de 1748. Assim, Gomes Freire permaneceu como o oficial régio
mais poderoso do Centro-Sul da América Portuguesa por quase trinta anos17. Este fato por si só
chama atenção: foram quase três decênios de um governo que abrangia uma vasta jurisdição,
correspondente aos territórios atuais do Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Santa Catarina, Rio
Grande do Sul, Minas Gerais, Mato Grosso, além da Colônia de Sacramento.
Logo após a morte de Gomes Freire de Andrada, foi enviado para a recém transferida capital
no Rio de Janeiro o Vice-rei Antônio Álvares da Cunha. Sua trajetória pouco se diferenciava
daquela de seus antecessores. Recebera o nome do avô D. Pedro Álvares da Cunha, 18º senhor de
Tábua, e sucedeu a seu pai nos senhorios de Tábua, Cunha e Ouguela. Graças aos seus serviços no
ultramar e ao seu casamento com a filha da Condessa de Val dos Reis, tornou-se o primeiro em sua
família a ser agraciado com o título de Conde por D. José I em 15 de março de 176018.
Sua trajetória foi marcada pela ocupação de cargos como: trinchante-mor da Casa Real,
comendador de Almendra e Idanha-a-Nova, Deputado na Junta dos Três Estados, Mestre-CampoGeneral, Conselheiro de Guerra, Chefe de Artilharia em 1762, sem contar o fato de ter passado
durante o período de vinte e dois anos pelos governos de Mazagão, Angola (1753-1758), ministro
de Portugal na Corte de Paris (1759, cargo que não chegou a exercer) e, por fim, Vice-rei do Brasil.
Em período posterior ao Vice-reinado de Antônio Álvares da Cunha, o Vice-rei do Estado do
Brasil que governou por mais tempo no período pombalino foi D. Luís de Almeida Portugal Soares
Alarcão Eça e Melo Silva e Mascarenhas (1769-1779), o 2º marquês do Lavradio. Sua administração
à testa da governação portuguesa na América é tão importante que já se chegou a tratá-la como
“comparável somente à de Bobadela, a quem possivelmente igualou tanto no espírito de iniciativa
quanto no descortínio das questões públicas”19.
Assim como seus antecessores, o marquês de Lavradio possuía uma vasta carreira militar
dentro do Império ultramarino. Havia sido armado cavaleiro em 1746, assentando praça no
Regimento de Infantaria de Elvas. No ano de 1749 seguiu para Madri e, mais tarde, para Paris,
onde teria estudado as artes militares e noções de fortificação. Doze anos mais tarde, em 1761, D.
Luís de Almeida ascendeu ao posto de coronel-comandante do Regimento de Cascais20.
Em meio à Guerra dos Sete Anos, liderou tropas na Campanha Peninsular de 1762. Sua eficaz
participação lhe rendeu um dos postos mais altos da hierarquia militar, o de Brigadeiro. Homem
de origem nobre, o 2º marquês do Lavradio casou-se, em 1752, com D. Mariana Teresa Rita de
Távora, filha do 5º Conde de São Vicente, aparentado dos marqueses de Távora, acusados da
Andrada para governador do Rio de Janeiro, ver: Arquivo Nacional do Rio de Janeiro (ANRJ). Secretaria do Estado
do Brasil, BR AN, Rio 86 - Códice 84, vol. 2. Correspondências dos Governadores do Rio de Janeiro com diversas
autoridades. Carta de 24 de Julho de 1733.
17 Arthur Cezar Ferreira Reis. ‘Gomes Freire – Governante do Rio de Janeiro’ In: Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, v. 259. Rio de Janeiro, abril-junho de 1963. p. 155-169.
18 Para maiores informações sobre a vida e trajetória de Antônio Álvares da Cunha, o Conde da Cunha, ver as
obras: Afonso Eduardo Martins Zúquete (dir.). Nobreza de Portugal: bibliografia, biografia, cronologia, filatelia,
genealogia, história, nobiliarquia, numismática. Lisboa: Edições Zairol, 2000. Vol. 2, p. 549; Joaquim Manuel de
Macedo. Suplemento do Ano Biográfico. Rio de Janeiro: Typografia Perceverança, 1880. Vol. 1, p. 40-45.
19 Lourival Machado. Op. cit., p. 409. A governação do marquês do Lavradio é também o objeto precípuo, por
exemplo, da obra clássica de Dauril Alden. Op. cit.
20 Para maiores informações sobre a vida e a trajetória de D. Luís de Almeida Portugal Soares Alarcão Eça e
Melo Silva e Mascarenhas (1769-1779), o 2º marquês do Lavradio, ver: Afonso Eduardo Martins Zúquete (dir.).
Nobreza de Portugal e do Brasil. Lisboa: Rio de Janeiro: Editorial Enciclopédia, 1989. Vol. 3, p. 291-2; José d’Almeida
Correia de Sá. Vice-reinado de D. Luiz d’Almeida Portugal, 2º Marquês do Lavradio, 3º Vice-rei do Brasil. São Paulo:
Ed. Nacional, 1942.
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tentativa de regicídio de D. José I em 175821.
Lavradio foi o quadragésimo quinto governador e capitão-general da Bahia de Todos os
Santos. Nomeado em 25 de setembro de 1767, ocupou o cargo em 1768, tornando-se, no ano
seguinte, Vice-rei do Estado do Brasil, cargo que ocupou até 177922. Assim, a “origem familiar e
a experiência militar encaixavam o marquês do Lavradio no modelo do administrador colonial”23.
O percurso percorrido por estes oficiais régios nos permite perceber a manutenção de um
forte caráter militar, que se via aliado a uma memória administrativa, consubstanciada por uma
ampla trajetória em altos cargos da burocracia nos domínios ultramarinos do Império português,
traços marcantes para a seleção dos homens que serviam à Coroa lusa na sua mais importante
possessão do século XVIII.
Assim, como se pode constatar, o recrutamento e a trajetória destes oficiais régios obedecem
a uma lógica própria de Antigo Regime, matizada pelas necessidades específicas da Coroa naquele
momento particular. Eram homens recrutados levando em consideração sua experiência militar e
o desempenho de outras funções do governo, além de suas origens. Os oficiais que estiveram à
frente do governo do Estado do Brasil no terceiro quartel do setecentos eram todos, portanto,
membros de famílias nobres, atendendo a critérios de seleção nos quais a experiência acumulada
e a origem nobre se faziam fundamentais.
Os modos de governar na América Portuguesa
No mesmo momento em que se tornava patente, para a Coroa lusa, no século XVIII, a
importância cada vez mais destacada da América Portuguesa (e do Atlântico Sul) na constituição
e conformação do Império, as possessões lusas no Novo Mundo se tornavam alvo de constantes
ameaças de invasão, em especial o Estado do Brasil. A frágil situação de defesa da gigantesca
área que correspondia à da América Portuguesa era um grande obstáculo às pretensões da
Coroa de manter sua integridade territorial diante de um quadro complexo e tenso de relações
internacionais, no qual Espanha, França e até mesmo a sempre aliada Inglaterra eram vistas como
ameaças constantes24. Assim, a fragilidade das defesas da América Portuguesa já vinha sendo
motivo de preocupação antes mesmo do período pombalino, tornando as reformas militares uma
das maiores incumbências dos oficiais régios que lá estavam.
Em 1733, desembarca no Rio de Janeiro Gomes Freire de Andrada, iniciando uma estadia que
durou trinta anos e alcançou grande repercussão. Ao assumir o cargo, o governador se deparou
com situações bem específicas: o auge da mineração e os conflitos no Prata tinham desviado o
eixo de interesses da administração lusa para o Oeste e para o Sul da província.
No Sul do Estado do Brasil, o problema se mostrava mais latente, uma vez que os espanhóis
apresentavam um grande obstáculo às pretensões expansionistas da Coroa portuguesa. Ao
mesmo tempo, nas Minas, o cenário também não era dos melhores; havia um constante clima de
insatisfação política, além dos descaminhos do ouro, que se mostravam um grande desafio ao
21 Fabiano Vilaça dos Santos. ‘Mediações entre a fidalguia portuguesa e o Marquês de Pombal: o exemplo da Casa
de Lavradio’ In: Revista Brasileira de História, v. 24, n. 48, São Paulo, 2004. p. 301-329.
22 Ver: Auto de Posse do Marquês de Lavradio, 4 de novembro de 1779, em Marcos Carneiro de Mendonça, O
Marquês de Pombal e o Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1960. p. 177; ver também, Dauril Alden. Op.
cit., p. 6.
23 Fabiano Vilaça dos Santos. Op. cit., p. 6.
24 Ver: Nuno Gonçalo F. Monteiro. D. José na sombra de Pombal. Op. cit., p. 152-161; Synesio Sampaio Goes Filho.
Navegantes, bandeirantes, diplomatas: um ensaio sobre a formação das fronteiras do Brasil. São Paulo: Martins
Fontes, 1999; e Kenneth Maxwell. Marquês de Pombal: o paradoxo do iluminismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.
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controle administrativo – o que não era absolutamente uma novidade.
As tensões nas fronteiras entre os territórios das Coroas lusa e espanhola levaram o novo
Governador, logo em seus primeiros anos de governo, a sugerir uma estratégia político-militar de
unificação bélica, visando uma melhor organização da defesa desde a costa do Rio de Janeiro até
a Colônia de Sacramento, manifestando a necessidade de uma centralização do comando militar25.
As habilidades diplomáticas de Gomes Freire o aproximaram das delicadas questões de
limites que movimentaram o cenário americano durante o século XVIII:
Com a proeminência de Sebastião José de Carvalho e Melo
na direção dos negócios e dos domínios ultramarinos, em
especial face à permanente necessidade de operacionalizar
as resoluções do tratado de Madri (1750), reconhecido pelos
seus méritos de bom estrategista e administrador, Gomes
Freire deslocou-se para a região platina26.
Em 23 de agosto de 1751, já na conjuntura pombalina, Gomes Freire de Andrada foi
nomeado o Principal Comissário para as negociações que sucederam ao Tratado de Madrid, sobre a
demarcação dos limites com as possessões espanholas no Sul do Brasil. Esta questão permaneceu
prioritária durante o período da administração de Gomes Freire no Rio de Janeiro, que coincidiu
com a administração do Conde de Oeiras no reino.
Em 21 de setembro de 1751,27 por exemplo, Sebastião José de Carvalho e Melo enviou
para Gomes Freire instruções sobre a execução do Tratado de Limites de 1750. A “primeira carta
secretíssima” informava das negociações que haviam sido feitas pelas duas Coroas e buscava
orientar o comissário em como proceder, alertando para o fato de serem os comissários espanhóis
pouco confiáveis, fato que devia despertar a maior cautela nas demarcações. O primeiro ponto
exposto na carta dizia respeito à entrega da Colônia do Sacramento, que devia ser acompanhada
com muito cuidado, pois havia um “Plano” [sic] dos espanhóis a esse respeito, evidenciado desde as
negociações do Tratado. Tratava-se, segundo o futuro marquês de Pombal, de introduzirem-se os
espanhóis na Colônia, sob ordens da Coroa portuguesa, que teria em troca as ordens espanholas
para a entrega das “aldeias da margem oriental do Uruguai”. Depois da ocupação de Sacramento,
o governo espanhol, “capciosamente”, nas palavras do ministro português, deixaria a Coroa lusa
“às presas com os Tapes sobre a entrega e a pacífica conservação das aldeias”.
E, quanto à Colônia do Sacramento, “depois que os espanhóis a ocupassem”, seria “para dela
não sair mais”. Neste caso, a entrega da Colônia teria sido em vão e unilateral, pois caso os tapes
das aldeias resistissem e os portugueses reclamassem, em nome disso, a anulação da troca devido
à impossibilidade de receber sua parte na permuta, os espanhóis “responderiam facilmente, que
era fato alheio; que El Rei Católico tinha satisfeito pela sua parte com as ordens da entrega, sendo
25 Como ficará evidente adiante, esta sugestão foi posteriormente incorporada como política permanente da
Coroa Portuguesa, sendo repetidamente reafirmada pelas “Instruções” pombalina aos vários Vice-reis da América
Portuguesa.
26 Caio Boschi. ‘Administração e administradores no Brasil pombalino: os governadores da capitania de Minas
Gerais’. In: Tempo. Vol. 7, n. 13. Rio de Janeiro, 2002. p. 77-110.
27 ANRJ. Correspondência da Corte com o Vice-reinado, Códice 67, vol. 1, fundo D9. Primeira carta secretíssima de
Sebastião José de Carvalho e Melo, para Gomes Freire de Andrada, para servir de suplemento às instruções que lhe
foram enviadas sobre a forma de execução do Tratado Preliminar de Limites, assinado em Madrid a 13 de janeiro de
1750. Sebastião José de Carvalho e Melo a Gomes Freire, 21/09/1751. Há versão transcrita e publicada da carta em:
Marcos Carneiro de Mendonça. ‘O pensamento da metrópole portuguesa... Op. cit., p. 179-189.
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As artes de governar o Brasil no período pombalino
106
tudo que havia prometido”. Assim, ficaria a cargo dos comissários portugueses desalojarem os
índios, o que seria o mesmo que entregar uma praça sem receber o equivalente.
O segundo ponto tratado na “carta secretíssima” expunha o fato de ficarem as províncias
do Brasil muito expostas a espanhóis que “pudessem internar por elas no futuro”, uma vez
que cabia à Espanha, a partir do Tratado, o “privativo domínio do Rio da Prata e da navegação
dele”, ao mesmo tempo em que se estipulou que a Coroa lusa não podia fazer fortificações “em
nenhuma das fronteiras de Sua Majestade”, enquanto a Espanha haveria de ter “as fortalezas de
Montevidéu e da Colônia de Sacramento para se cobrir e segurar”. Por isso, esperava segurar a
prorrogação do termo das mútuas entregas, para que houvesse tempo para negociar e para que
se pudessem instruir os comissários.
Pombal alertava Gomes Freire no sentido de como proceder com os comissários espanhóis:
quão indispensável se faz toda a circunspeção e toda a cautela
no modo de tratar com o comissário principal espanhol com
a circunspeção que persuada a que dele confia muito ao
mesmo tempo em que nada se pode fiar da sinceridade das
suas instruções.
Segue dizendo que o comissário devia documentar todos os seus passos em cartas ou
ofícios e conferir com o comissário espanhol para que a Coroa lusa ficasse isenta de qualquer
acusação de atrapalhar a execução do tratado de limites. Desta forma, Gomes Freire devia
acompanhar bem de perto a execução do acordado em Madri, percebendo e informando à Coroa
qualquer impossibilidade de evacuação das aldeias da margem oriental do Uruguai, ou quaisquer
impedimentos que inviabilizassem sua conservação.
Todos os esforços deviam estar focados para
não largar da sua mão a praça da Colônia sem uma inteira
segurança, não só de se entregarem as aldeias na margem
oriental do Uruguai, mas de se entregarem de sorte que
a essa Coroa fique conservado o domínio e posse delas
incontestáveis e que da mesma sorte segue a demarcação das
fronteiras que por aquela parte foi estipulada a S. Majestade
sem que nisso haja malícia ou engano.
Sendo preciso que “haja caminhos seguros e praticáveis para que as ditas aldeias fiquem
comunicáveis” com os outros lugares da costa do Brasil, pois de outra forma “não interessa um
território que não se possa ir cultivar nem proteger em caso de ataque”.
Outro pedido feito a Gomes Freire foi o de tentar “desconectar a sinistra ideia com que
o ministério espanhol estabeleceu a proibição de se fortificarem e povoarem as fronteiras”,
devido à necessidade de manter nelas habitantes e comércio para poder conservá-las. A partir de
então, Pombal defende a necessidade da povoação para garantir a segurança de tão importante
possessão ultramarina:
E como a força e a riqueza de todos os países consiste
principalmente no número e multiplicação da gente que o
habita: como este número e multiplicação da gente se faz
mais indispensável agora na raia do Brasil para a sua defesa
em razão do muito que têm propagado os espanhóis nas
fronteiras deste vasto continente, onde não podemos ter
ARTIGO - JUNHO DE 2014
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IZABELA GONÇALVES VIEIRA
segurança sem povoarmos à mesma proporção as nossas
províncias desertas que confinam com as suas povoadas [...]
Para pôr em prática tal povoamento, Pombal esclarece ser necessário um esforço conjunto,
no qual “reinícolas e americanos” fossem incentivados a ocupar as áreas limítrofes, sendo
encorajada e incentivada também a ocupação pelos Tapes. Que este últimos fossem encorajados
para “viverem nos domínios de Portugal antes do que nos de Espanha”. Cabia ainda a essa política
de povoamento acabar com as diferenças entre portugueses e Tapes, incentivando inclusive os
casamentos mistos. Outra importante cautela devia ser tomada quanto à escolha das “pessoas
do governo” das novas povoações: era necessário que fossem homens de “religião, justiça e
independência”, que estabelecessem a paz pública entre os habitantes, evitando a distinção e
ridicularizarão dos Tapes.
Em uma segunda “carta secretíssima” escrita pelo futuro Marquês de Pombal a Gomes
Freire, em de 21 de setembro de 1751, portanto com a mesma data da primeira, são destacados
dois “perigos” que deviam ser observados com grande cautela e prudência pelo seu principal
comissário28.
O primeiro se referia ao fato de a direção das tropas de sua Majestade, responsáveis pela
demarcação dos limites, não serem chefiadas por estrangeiros, que “não têm outro estímulo que
não seja o do lucro do soldo”, o que significava um grande perigo devido à ameaça de “suborno”,
que podia lesar a Coroa.
O segundo “perigo” se referia ao fato de os mesmos estrangeiros “voltarem para a Europa
instruídos” da localização e da informação da pouca fortificação dos sertões. Uma vez que tais
informações privilegiadas, conseguidas pelos estrangeiros durante o esforço de demarcação das
fronteiras, podiam contribuir para acender ainda “mais a cobiça das diversas potências”, por se
tratarem de informações “oculares e estas dos lugares onde se podem estabelecer as mesmas
potências”.
Segundo o futuro Conde de Oeiras, as informações levadas pelos estrangeiros deixavam
os sertões expostos a uma invasão, destacando que “teve o Brasil em segurança por mais de
dois séculos, por ter sido impenetrável pelos estrangeiros”, o que ocorrera “não pela força”, mas
pelo “segredo”. Para validar seu argumento, Conde de Oeiras explicita que desde o momento
que o interior da América Espanhola foi conhecido “se estabeleceram nela franceses, ingleses e
holandeses”.
Destarte, Pombal ressalta que para evitarem-se tais perigos era preciso que Gomes Freire
estivesse à frente do esforço de demarcação dos limites, atentando para alguns cuidados: das
três tropas marcharem sempre combinadas, onde portugueses acompanhassem de perto
todos os movimentos de espanhóis e estrangeiros; e que o “governo principal” de cada tropa
coubesse sempre a um português, que devia também estar incumbido de “tudo o que pertencer
à substância do negócio”.
O ministro português segue recomendando que os limites deviam ser demarcados “material
e mecanicamente por cada uma das tropas” seguindo “a carta geográfica” remetida pela Coroa
a Gomes Freire, ficando as operações reduzidas a “simples divisões topográficas, que se devem
fazer por partes e lugares certos, determinados e prefixos”. E toda a operação devia ser posta em
prática com grande cautela no trato com os estrangeiros, que deviam ser “empregados em parte
28 ‘Segunda carta secretíssima de Sebastião José de Carvalho e Melo, para Gomes Freire de Andrada, sobre os oficiais
militares que se lhe enviaram, assim nacionais, como estrangeiros, com motivo da execução do Tratado de Limites.
Sebastião José de Carvalho e Melo a Gomes Freire, Lisboa, 21 de setembro de 1751’ In: Marcos Carneiro de
Mendonça. O marquês de Pombal e o Brasil... Op. cit., p. 189-196.
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As artes de governar o Brasil no período pombalino
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e excluídos em parte”, sem que se levantasse a suspeita e desconfiança dos mesmos.
Com isso, as tropas que iam ocupar-se da demarcação das fronteiras deviam ser montadas
de maneira que fossem lideradas sempre por portugueses, mesmo em caso de “mortes e
falecimento”, nas quais não deviam ultrapassar o número de dois oficiais estrangeiros. Além do
reduzido número, os oficiais estrangeiros não deviam nunca passar “da patente de tenente e
ajudante para cima”, cabendo apenas aos comandantes de cada tropa as informações necessárias
para poderem conferir as demarcações.
Segundo o Conde de Oeiras, se tomados estes devidos cuidados os perigos seriam
neutralizados:
sendo cada uma das três tropas subordinadas inteiramente
a um comandante português, sendo pouco em número
os subalternos estrangeiros, e sendo estes sempre
acompanhados por oficiais portugueses, que hão de informar
o sobredito comandante de tudo que eles fizerem, não
poderão facilmente extrair cartas topográficas e menos
cartográficas, nem ainda formar relações dos países, sem que
o comandante venha logo a ter conhecimento delas para os
fazer repor e fechar na secretaria da sua comissão29.
Para que não levantassem suspeitas ou ocorresse qualquer “contestação desagradável”,
fazia-se necessário estabelecer as seguintes ordens às tropas: “que nenhum oficial ou soldado
de qualquer qualidade possa formar carta ou relação particular nos países a que se dirigir”. E que
cada uma das tropas tenha livros “destinados e distintos, para se escrever em um o que pertencer
à demarcação de limites na forma e que for concordado pelos dois respectivos comandantes”.
Assim, a Coroa lusa procurava evitar que estrangeiros viessem depois das ditas demarcações
a “vender manuscritos, ou publicar impressos, cartas e relações do sertão do Brasil”.
Por fim, uma última instrução é passada a Gomes Freire: que de maneira discreta
fossem introduzidos nas tropas “bons sertanejos do país, daqueles que têm experiência de
descobrimentos”, com “melhor conhecimento das terras minerais, para reconhecerem se há
algumas desta qualidade nas terras que nos ficam pertencendo” e que se tome o cuidado de
escolher homens de confiança que “guardem o segredo que observarem”.
Uma análise mais atenta das duas “cartas secretíssimas” enviadas por Sebastião José de
Carvalho e Melo para Gomes Freire sobre as demarcações do Tratado de Madri ratifica, mais
uma vez, quais eram as principais preocupações da Coroa em relação à América Portuguesa. As
instruções enviadas demonstram a insegurança perante as intenções de seu vizinho espanhol, que
já de longa data vinha pressionando suas fronteiras e ameaçando o domínio de seus territórios
americanos, e o perigo constante de uma invasão estrangeira, fazendo-se necessário um grande
cuidado com a defesa, que, nas palavras do futuro Marquês de Pombal, se tinha feito, até então,
muito mais pelo segredo do que pela força militar.
O desempenho diplomático de Gomes Freire de Andrada foi alvo de muitas críticas
29 ‘Segunda carta secretíssima de Sebastião José de Carvalho e Melo, para Gomes Freire de Andrada, sobre os oficiais
militares que se lhe enviaram, assim nacionais, como estrangeiros, com motivo de execução do Tratado de Limites.
Sebastião José de Carvalho e Melo a Gomes Freire, Lisboa, 21 de setembro de 1751’ In: Marcos Carneiro de
Mendonça. O marquês de Pombal e o Brasil... Op. cit., p. 195.
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IZABELA GONÇALVES VIEIRA
disseminadas por seus adversários políticos. Contudo, a Coroa parece ter reconhecido o
extremado empenho que colocou em sua função.30 Além das questões de limites da América
Portuguesa, Gomes Freire de Andrada foi incumbido também de pôr em curso a determinação
régia de expulsar os jesuítas dos domínios lusos em 175931.
Os jesuítas vinham sendo acusados de conspiração e más intenções em relação à Coroa, que,
ao escrever ao Conde de Bobadela, em 4 de novembro de 1759, alertava-o para o perigo dos
jesuítas insuflarem a população contra o governo, sendo necessário prudência no trato com os
inacianos:
Eu em uma tal distância vos ponho diante dos olhos, como
certa, que os ditos Regulares só não farão ao meu Real serviço,
e interesses; a esse Estado, e ao sossego público dele, o mal,
que não poderem pela absoluta, e total impossibilidade de
meios, e de comunicações, a que os reduzires: E não devendo
ser inútil a lembrança do que tem sucedido nestes Reinos com
os sobreditos Regulares contra tudo o que se devia esperar
das pessoas por eles iludidas [...] para incutirem medos, onde
acham espíritos capazes de neles fazerem impressão as suas
ameaças; têm procurado iludir a credulidade das pessoas pias,
e timeratas, para concitarem com elas sedições, e formarem
partidos sequazes das suas horrorosas malícias32.
Com isso, Gomes Freire uniu-se ao Vice-rei Conde dos Arcos num grande esforço governativo
que buscava pôr fim à ação da Companhia de Jesus na América. Durante toda a governação do
Conde dos Arcos, a questão jesuítica e o controle das populações indígenas tiveram grande
destaque. Em carta régia datada de 1758, a Coroa ordenou ao arcebispado da Bahia a substituição
das missões jesuíticas por vicariatos, a ser organizados por aquela instituição. No caso de
resistência, El-rey afirmava:
No cazo em que os Religiosos, que actualmente adminstrão
as ditas Paroquias, intentem despojal-as, como praticarão em
algumas do Maranhão escandalosamente, não permittireis
hum attentado tão estranho e tanto mais destituído de todo
o pretexto para se colorar. [...] Assim he de esperar que o
reconheção perante vós para cumprirem as vossas ordens
ao dito respeito. Succedendo porem pelo contrario, fareis
executar o que houveres determinado com o auxilio com
que para este effeito vos mando eficazmente assistir pelo
Governo desse Estado.33
A organização das populações indígenas em “villas”, que já vinha sendo feita no Estado do
Maranhão, passa a se tornar também uma preocupação no Estado do Brasil. Ao Conde dos Arcos
30 Nelson Costa. ‘Gomes Freire, Vice-rei’ In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, v.225, Rio de
Janeiro, abr.-jun de 1962, p. 364. Sobre sua ação como diplomata nas fronteiras sul da América portuguesa ver
também: Roberto Macedo. Op. cit., p. 69
31 Arthur Cezar Ferreira Reis. Op. cit., p. 157.
32 ANRJ. Correspondência da Corte com o Vice-reinado, códice 67, v. 1, fundo D9. Carta Régia ao Conde de Bobadela,
4 /11/1759.
33 ‘Carta Régia de 8 de maio de 1758’ In: Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, v. 31, Rio de Janeiro, 1913.
p. 299.
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foi recomendado, por carta régia, para que tomasse encargo do estabelecimento de um governo
civil dos índios e o erguimento de “villas e logares”, no lugar das aldeias já estabelecidas, a fim de
um maior controle e incentivo ao crescimento das populações locais:
Sou servido a ordenar-vos, que logo que receberes esta,
façaes dar às sobreditas leis a sua devida e plenária execução,
restituindo os Indios de todas as Aldeias desse Estado à
inteira liberdade das suas pessoas, bens e commercio, na
forma, que nellas tenho determinado: dando-lhes todo o
favor e protecção de que necessitarem, até serem todos
constituídos na mansa e pacifica posse das referidas
liberdades: fazendo-lhes repartir as terras competentes por
novas cartas de sesmaria, para a sua lavoura e commercio,
nos districtos das Villas e Lugares [...]34.
O repúdio e a perseguição aos jesuítas encontrou seu ponto máximo na Lei de 3 de setembro
de 1759, na qual a Coroa lusa expulsou dos “seus Reinos e domínios os regulares da Companhia
de Jesus”. Os membros da Companhia, a partir de então, foram tidos oficialmente como “notórios
rebeldes, traidores, adversários e agressores” que agiam contra a paz do Reino e de seus domínios,
passando a ser deportados, em sua grande maioria, para os Estados Pontifícios.35
As medidas governativas tomadas pelo Conde dos Arcos, em seguimento às ordens da Coroa,
demonstravam prudência e desconfiança em relação aos padres jesuítas, fazendo se concentrar
ainda mais naquela que havia sido uma grande preocupação durante todo seu vice-reinado: o
reforço da defesa. Uma série de ações foi posta em prática visando à melhoria da defesa e à
organização do território. O Conde Vice-rei buscou fardar suas tropas e melhor equipá-las, assim
como reformou algumas fortalezas e edificou outras, como o fortim Rio Vermelho.36
Cabe destacar, ainda, que as medidas tomadas pelo Vice-rei Conde dos Arcos buscando
diminuir o controle dos jesuítas sobre as populações indígenas, eram vistas, desde pelo menos o
início da década, como elementos estratégicos para a povoação das fronteiras.
Deste modo, a preocupação com a defesa da colônia, que datava de antes do período
pombalino, viu-se reforçada neste, seja com medidas efetivas em relação a tropas, fortalezas,
ou em ações extremas que buscavam afastar aqueles elementos que podiam apresentar riscos
maiores ao controle luso sobre suas possessões. Assim, ao deixar o posto em 1760, o Vice-rei
Conde dos Arcos foi substituído pelo Marquês de Lavradio, escolhido e enviado para continuar o
legado de seu antecessor. Contudo, tendo vindo “incumbido de desterrar os jesuítas, foi o último
Vice-rei instalado na Bahia. Empossou-se em 9 de janeiro de 1760, mas, gravemente enfermo,
faleceu logo em 4 de julho”37.
Nos três anos seguintes, o Estado do Brasil permaneceu sem Vice-rei. Durante este período,
a intensificação das tensões no Sul e as ações militares comandadas por Gomes Freire de Andrada,
que tinha a tutela de boa parte das Capitanias do Sul, contribuíram para destacá-lo como um
34 ‘Carta Régia dirigida ao Vice-rei Conde dos Arcos, em 19 de maio de 1759’ In: Anais da Biblioteca Nacional do Rio
de Janeiro, v. 31, Rio de Janeiro, 1913. p. 336.
35 Ver: Nuno Gonçalo Monteiro. Op. cit., p. 137.
36 Ver Pedro Calmon. História do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio Ed., 1959, vol. 3. p. 1045. Coube ainda ao
Conde dos Arcos impor o subsídio para a reconstrução de Lisboa. Cf. ‘Ofício do Vice-rei Conde dos Arcos para
Diogo de Mendonça Corte-Real, de 14/05/1756’ In: Francisco Adolfo de Varnhagen, História Geral do Brasil. Belo
Horizonte: Itatiaia São Paulo: Edusp, 1981. Vol. 2, tomo IV. p. 248.
37 Cf. Pedro Calmon. Op. cit., p. 1046.
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nome cotado para assumir o cargo de Vice-rei do Brasil. Seus serviços já lhe tinham rendido, além
do título de Conde de Bobadela e de um retrato no Senado da Câmara, o cognome de “Pai da
Pátria, dado pelo povo”38. Contudo, Gomes Freire de Andrada não chegou a assumir o Vice-reinado
devido a seu falecimento, em 1 de Janeiro de 176339.
Pelo próprio modo que se despediu da vida o simpático
patrício Conde de Bobadela, cumpriu ele de todo a promessa
que fizera, em 10 de abril, ao agradecer a nomeação de
Vice-rei, e várias graças e favores feitos a ele, pelo rei e pelo
ministro, na pessoa de seu irmão [...]40.
Devido ao grande envolvimento de Gomes Freire com as tensões no Sul da América
Portuguesa, difundiu-se a hipótese de que seu falecimento teria sido fruto do desgosto diante
da notícia, em 5 de dezembro de 1762, de considerar-se perdida a Colônia de Sacramento, região
que tanto lutara para conservar: “foi sua ação no Sul, referente à Colônia de Sacramento, que
lhe deu especial projeção, a par de muitas contrariedades, que culminaram no desgosto fatal de
perda daquela praça”41.
Com a morte do Conde de Bobadela não se concretizou sua possível governação como Vicerei do Estado do Brasil. Contudo, “apesar de nunca ter sido Vice-rei, Gomes Freire exerceu sua
jurisdição sobre uma parte do Brasil mais extensa do que a abrigada pelos Vice-reis da Bahia”42.
Durante os trinta anos em que o governador Gomes Freire prestou serviços para a Coroa
lusa no Estado do Brasil, suas ações estiveram pautadas, em grande parte, pelo reforço das
defesas, seja nas demarcações das fronteiras, nas tensões referentes à Colônia do Sacramento ou
nas estratégias de melhoria dos quadros militares. As ações do Conde de Bobadela o destacaram
com grande estrategista e homem de governo, cujas obras só se compararam, mais tarde, às do
2º Marquês de Lavradio.
No mesmo mês do falecimento do Conde de Bobadela, janeiro de 1763, foi enviado como
Vice-rei do Estado do Brasil, agora com sede no Rio de Janeiro, Antônio Álvares da Cunha, no qual
permaneceu durante os anos de 1763 a 1767 e que será examinado adiante.
No final do período do Vice-reinado de Antônio Álvares da Cunha, o Conde de Oeiras passa a
sistematizar suas ações governativas em relação à América Portuguesa, dando início a uma política
mais efetiva de defesa das fronteiras e militarização da colônia. Segundo Romero Magalhães, foi
a partir de 1760 que “pode começar a falar-se com rigor de uma política ‘pombalina’ para o Brasil”.
Sendo nomeados por Pombal homens de governo da sua confiança como, “a partir da nomeação
do Conde da Cunha (1763-1767) como Vice-rei e, sobretudo, com a do Marquês de Lavradio, em
1767 para a Bahia – Lavradio que reverenciava o Conde de Oeiras sem pudor”43.
Entre os Vice-reis do Estado do Brasil escolhidos pela Coroa lusa no período pombalino, a
38 Nelson Costa. Op. cit., p. 364.
39 Vale registrar a controvérsia sobre se Gomes Freire de Andrada teria ou não sido convocado para se tornar Vicerei do Brasil, que data, pelo menos, da década de 1960, em: Arthur Cezar Ferreira Reis. Op. cit., p. 159.
40 Francisco Adolfo Varnhagen, História Geral do Brasil. São Paulo: Edições Melhoramentos, 1959. Vol. 4. p. 233234. Apud: Roberto Macedo. Op. cit., p. 92.
41 Nelson Costa. Op. cit., p. 363-364.
42 Russell-Wood. Um mundo em movimento: os portugueses na África, Ásia e América (1415-1808). Lisboa: DIFEL,
1998. p. 109.
43 Ver: Joaquim Romero Magalhães. ‘Sebastião José de Carvalho e Melo e a economia no Brasil’ In: Seminários de
História do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Lisboa, 2004. p. 14. Disponível em: http://www.
ics.ul.pt/agenda/seminarioshistoria/Joaquimromero.pdf. Acesso em 30 de agosto de 2007.
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As artes de governar o Brasil no período pombalino
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nomeação do 2º Marquês de Lavradio talvez seja a mais instigante. Muito se tem cogitado sobre
a relação entre Pombal e Lavradio: seu biógrafo e sucessor, o 7º Marquês de Lavradio, relata que
a indicação do 2º Marquês do Lavradio para o governo da Bahia ocorreu para afastá-lo da Corte,
devido ao ciúme de Pombal ao vê-lo indicado por D. José I para ser preceptor de seu neto44. No
entanto, Dauril Alden argumenta que o prestígio do 2º Marquês de Lavradio na Corte e suas
vinculações familiares contribuíram para sua nomeação e governação como governador da Bahia
e seu Vice-reinado no Estado do Brasil45.
Seja como for, as instruções de Pombal em relação ao governo do Brasil durante o Vicereinado do 2º Marquês de Lavradio seguiram aquilo que parece ter sido o padrão sistematizado
desde Gomes Freire. Dois documentos, já muito divulgados pela historiografia, permitem analisar
de forma privilegiada as diretrizes que lhe foram recomendadas para execução durante os dez
longos anos de sua governação46. A “Carta de Instruções” enviada pelo Conde de Oeiras ao 2º
Marquês de Lavradio, em 14 de abril de 1769, por exemplo, passava “secretíssimas e cabais
instruções” nas quais as ações militares e as intermináveis tensões no Sul se destacavam,
demonstrando a grande atenção dispensada pela Coroa lusa a esse assunto.
Cumprindo uma estratégia recorrente durante todo o período de sua governação, Pombal
envia ao novo Vice-rei do Estado do Brasil, o 2º Marquês de Lavradio, “cartas instrutivas” contendo
orientações minuciosas de como proceder. Logo em suas primeiras linhas, Pombal destaca aquele
que seria “o maior e mais importante interesse” da Coroa lusa: a “segurança e conservação da
praça do Rio de Janeiro em seu estado respeitável”. Era fundamental que o novo Vice-rei criasse
meios para “que cubra e proteja aquela capitania; e que desengane a cobiça dos que sabemos que
têm vastas e ambiciosas ideias contra ela”47.
As secretíssimas e cabais instruções a serem seguidas por Lavradio estavam organizadas
em um conjunto de quatro cartas, todas a mesma data, 14 de abril de 1769. Estas, além das
orientações sobre as medidas governativas a serem postas em prática, informavam também das
estratégias implementadas no período dos Vice-reinados que o antecederam. Entre elas estavam
nove cartas que continham as instruções enviadas ao Conde da Cunha.
Os assuntos tratados nas instruções dos antecessores do 2º Marquês de Lavradio conformam
um grande conjunto de medidas de aspecto principalmente militar, como o envio, organização,
criação e distribuição dos regimentos, a formação e recrutamento de tropas e oficiais, a disciplina
dos soldados, entre outros. Através da troca de experiências vividas por outros oficiais régios,
a Coroa buscava colocar o Vice-rei a par de suas intenções para aquela que era a sua principal
possessão ultramarina. Este procedimento típico parecia colaborar para a formação de um tipo
de memória administrativa, tendo a função, neste caso em particular, de apontar os caminhos a
serem seguidos por Lavradio.
Assim, pode-se perceber que eram os Vice-reis instrumentos privilegiados de “poder
44 José de Almeida Correia de Sá. Memórias do Conde do Lavradio: D. Francisco de Almeida Correia de Sá (1858 a
1865). Lisboa, Imprensa Nacional, 1943. p. 306.
45 Fabiano Vilaça dos Santos. ‘Sociabilidade de Pares: relações cortesãs em torno do Marquês do Lavradio’ In: Anais
do X Encontro Regional de História - ANPUH-RJ História e Biografias. Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2002.
Disponível em: http://www.rj.anpuh.org/Anais/2002/.../Santos%20Fabiano%20V.doc. Acesso em julho de 2007.
Ver também, do mesmo autor, ‘Mediações entre a fidalguia portuguesa e o Marquês de Pombal: o exemplo da
Casa de Lavradio’. In: Revista Brasileira de História, v. 24, n. 48, São Paulo, 2004. p. 301-329.
46 Os documentos destacados, que tratam do Vice-reinado do Marquês de Lavradio, estão publicados, Ver: Carta
de Instruções enviada pelo Conde de Oeiras ao Marquês de Lavradio, em 14 de abril de 1769, em: Marcos Carneiro
de Mendonça. O Marquês de Pombal e o Brasil... Op. cit., p. 4 e 31; ‘Relatório do Marquez do Lavradio, Vice-rei do Rio
de Janeiro, entregando o governo a Luiz de Vasconcelos e Souza, que o sucedeu no Vice-reinado, em 19 de julho de
1779’ In: Revista do IHGB, vol. 4, Rio de Janeiro, 1842. p. 409-486. Ver também, Lourival Machado. Op. cit., p. 409.
47 Carta de Instruções enviada pelo Conde de Oeiras ao Marquês de Lavradio, em 14 de abril de 1769, em: Marcos
Carneiro de Mendonça. O Marquês de Pombal e o Brasil... Op. cit., p. 4 e 31.
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e conhecimento” que, inseridos no interior de “redes”, transformavam-se em “centros de
transmissão e produção de poder e saberes”. Eram homens que propiciavam a circulação de
informações privilegiadas pelo imenso Império Português. Através de instruções, registros e
cartas, as informações circulavam, sendo produzidas em diferentes níveis da administração
colonial portuguesa. “Os circuitos de oficiais régios que movimentavam a governação portuguesa
tornaram possível a acumulação e a circulação de informações essenciais para o acrescentamento
político e material dos interesses portugueses”48.
As instruções enviadas ao 2º Marquês de Lavradio não diferiam em muito das de seus
antecessores: em suas raízes estavam problemas que perpassaram todo o período pombalino.
Os ingleses continuavam sendo alvo das atenções e preocupações da Coroa lusa, apesar de se
manterem até aquele momento como um perigo “somente figurado”. A possível aliança entre
jesuítas e ingleses também não tinha sido descartada: Conde de Oeiras continuava a apontar
os jesuítas e os ingleses como “os principais inimigos a serem confrontados”, argumentando
inclusive para as possíveis infiltrações de ambos dentro da sociedade colonial49.
A preocupação com o contrabando também ocupou lugar de destaque nas instruções
enviadas ao Marquês de Lavradio. O Conde de Oeiras lembrava a Lavradio que o contrabando
representava um grande perigo aos cofres da Coroa, tendo sido “o verdadeiro espírito da carta
instrutiva que S. Majestade mandou expedir ao Conde da Cunha, na data de vinte e seis de junho
do ano de mil setecentos setenta e sete [...]”50.
Frente ao contrabando e aos perigos de invasões constantes, as instruções esclareciam
ser necessárias medidas para fortalecer a defesa, “fazendo ver aos nossos até agora figurados
inimigos, que não lhes seriam tão fáceis como eles cuidavam: ou para nos casos delas, resistirmos
aos seus iníquos e cobiçosos atentados”51.
Na última carta de instruções, o Conde de Oeiras buscou esclarecer os “meios e modos com
que Sua Majestade tem ordenado que os Capitães-Generais do Rio de Janeiro e São Paulo se
devem conduzir em causa comum a respeito dos nossos infectos vizinhos Castelhanos”, uma vez
que representavam naquela altura um perigo igual ao dos jesuítas. Sendo assim, era necessária
muita cautela para não se deixar enganar por eles. A carta seguia lembrando as tensões, os
embates e os enormes prejuízos causados por eles (castelhanos e jesuítas) à Coroa lusa, tanto na
disputa por Sacramento quanto em relação à ocupação do Rio Grande:
É certo que os mesmos Castelhanos e Jesuítas, seus sócios
(ou sobre eles dominantes), fingindo ignorarem que a dita
paz se achava concluída, foram invadir o Rio Grande de São
Pedro e o seu território, que perfidamente ocuparam e estão
ocupando até o dia de hoje52.
Dando um panorama geral de seu governo, o “Relatório do Marquez do Lavradio”, entregue
ao seu sucessor Luiz de Vasconcelos e Souza, também se revela de suma importância, uma vez que
48 Maria de Fátima Gouvêa; Gabriel Almeida Frazão & Marília Nogueira dos Santos, ‘Redes de poder e conhecimento
no governo do Império português (1688-1735)’. In: Topoi, v. 5. n. 8. Rio de Janeiro, 2004. p. 102.
49 Carta de Instruções enviada pelo Conde de Oeiras ao Marquês de Lavradio, em 14 de abril de 1769, em: Marcos
Carneiro de Mendonça. O Marquês de Pombal e o Brasil... Op, cit., p. 31-35.
50 Idem. p. 36.
51 Idem. p. 120.
52 Carta de Instruções enviada pelo Conde de Oeiras ao Marquês de Lavradio, em 14 de abril de 1769, em: Marcos
Carneiro de Mendonça. Op. cit., p. 168.
REVISTA 7 MARES - NÚMERO 4
As artes de governar o Brasil no período pombalino
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neste documento Lavradio procurava prestar contas das medidas governativas que havia posto
em andamento. Em seu “Relatório”, Lavradio segue o padrão de ressaltar o reto cumprimento de
todas as instruções enviadas pela Coroa. O que é digno de nota, contudo, é que, também neste
documento, estavam mais uma vez “em primeira linha de conta os problemas militares do sul,
sempre presentes”, e recrudescidos “com inesperado vigor”, devido à recente ofensiva militar de
D. Pedro de Ceballos, sob as ordens de Floridablanca53.
Assim como ocorrera com o Conde da Cunha, o relatório de prestação de contas de Lavradio
destacava “o estado deplorável em que encontr[ara] as fortificações da capitania” e as realizações
e reformas que teve de empreender, tanto quanto a criação e reorganização dos corpos e
regimentos54. Por isso,
ainda que a S.M. tenha o Conde da Cunha dado conta de ter
formado quatro terços de infantaria auxiliar nesta capital, e
que estavam em muito boa ordem e disciplina, os quais nunca
existiram senão na imaginação do Conde, que se contentou
com a nomeação de Mestres-de-Campo, Sargentos-Mores e
Ajudantes, e de chamar em multidão estes povos, mandando
formar delles umas relações que nunca apareceram, nem se
registraram, e finalmente sem se ter formado nem uma só
companhia [...].55
Como de costume, desmerecia a governação anterior e engrandecia seus feitos. O Marquês
de Lavradio escreve, ainda, sobre a utilidade da conservação de corpos e terços e seu caráter
disciplinador, atentando para a criação de terços auxiliares e ordenanças:
Estes povos em um paiz tão dilatado, tão abundante, tão rico;
compondo-se a maior parte dos mesmos povos de gentes
de peior educação, de um caráter o mais libertino, como
são negros, mulatos, cabras e mestiços, e outras gentes
similhantes, não sendo sujeitos mais que ao Governador e aos
magistrados, sem serem primeiros separados e costumados
a conhecerem mais junto, assim outros superiores que
gradualmente vão dando exemplo uns aos outros da
obediência e respeito, que são depositários das leis e ordens
do Soberano, fica sendo impossível o poder governar com
socego e sujeição a uns povos similhantes56.
Assim, também o Marquês de Lavradio teve seu Vice-reinado marcado pelas ações militares,
principalmente no que se refere ao Sul. Ao final de sua governação, apontava sugestões sobre
como resolver o problema das defesas militares da América Portuguesa e acusava seu antecessor
de ter feito muito pouco em relação a isso, menos até do que tinha afirmado que fizera. Além
de ser uma recorrência na correspondência de quase todos os Vice-reis e oficiais régios que lhe
precederam, tal procedimento do marquês de Lavradio era uma forma, também, de se isentar de
responsabilidade sobre a derrota recente para os espanhóis, que tinha custado a Portugal não
53 Lourival Gomes Machado. ‘Política e administração sob os últimos Vice-reis’ Op. cit., p. 410.
54 ‘Relatório do Marquez do Lavradio, Vice-rei do Rio de Janeiro, entregando o governo a Luiz de Vasconcelos e
Souza, que o sucedeu no Vice-reinado, em 19 de julho de 1779’. In: Revista do IHGB, vol. 4, Rio de Janeiro, 1842.
p. 409-486.
55 Idem. p. 418.
56 Idem. p. 424.
ARTIGO - JUNHO DE 2014
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IZABELA GONÇALVES VIEIRA
só a Colônia de Sacramento, mas também parte do Rio Grande, os Sete Povos das Missões e a
ilha de Santa Catarina (depois retomada, no Tratado de Santo Ildefonso, como já foi apontado.
Por isso mesmo, as obras para a defesa do Rio de Janeiro não cessariam, demarcando antes uma
continuidade nos períodos mariano e joanino57.
A proeminência das questões militares na administração da América Portuguesa durante o
período pombalino pode ser cotejada ainda de outro modo. Como já foi destacado no início desse
artigo, com base nos trabalhos de Lourival Machado e Marcos Carneiro de Mendonça, as reformas
pombalinas para a América não se explicitam ao pesquisador por meio de documentos legais, mas
principalmente por meio de “cartas, instruções e relatórios”58, análogos, no período em tela, ao
que “antes eram Regimentos”59.
Em tais documentos é que Marcos Carneiro de Mendonça identifica, desde 1771, a
recorrência do que ele chama de um slogan: uma espécie de um por todos e todos por um que
representa, de certo modo, a oficialização das sugestões de Gomes Freire quanto à unificação
das tropas do Centro-sul do Estado do Brasil. Em sua forma mais acabada, tal slogan aparece por
volta de meados da década, como exemplificado no trecho da “Instrução Militar” (que serviu de
epígrafe nesse artigo):
Todas as Colônias Portuguesas são de S. Maj. e todos os que
as governam são Vassalos seus: e nesta inteligência tanta
obrigação tem o Rio de Janeiro de socorrer a qualquer das
Capitanias do Brasil, como cada uma delas de se socorrerem
mutuamente, umas às outras e ao mesmo Rio de Janeiro,
logo que qualquer das ditas Capitanias for atacada ou
ameaçada de o ser: sendo certo que nesta recíproca união de
poder consiste essencialmente a maior força de um Estado, e,
na falta dela, toda a fraqueza dele60.
Considerações finais
O século XVIII foi marcado por intensas disputas de poder entre as grandes potências
europeias (França e Inglaterra), alterando profundamente o cenário internacional e impondo
rearranjos e realinhamentos aos países ibéricos, que se colocaram em lados opostos da disputa. A
Europa passou a estar constituída por monarquias muito mais poderosas e capazes de desenvolver
atividades coordenadas, tornando a paz entre elas ainda mais incerta.
O alinhamento de Portugal à Inglaterra, que sai vitoriosa da Guerra dos Sete Anos, deixa o
Império português mais vulnerável, principalmente em relação as suas possessões ultramarinas.
A partir de então a Coroa se colocou em constante estado de alerta, principalmente em relação à
América, que tinha se tornado sua principal fonte de recursos.
A percepção de um constante perigo de invasão estrangeira perpassa todo o período
pombalino, refletindo diretamente nas instruções enviadas pela Coroa aos diversos oficiais régios
que estiveram envolvidos no governo do Estado do Brasil. O acompanhamento destas instruções
ao longo do período é instrumento adequado para cotejar as intenções da Coroa lusa em relação
à América Portuguesa.
57 Lourival Gomes Machado. Op. cit., p. 410.
58 Idem. p. 421.
59 Marcos Carneiro de Mendonça. ‘O pensamento da metrópole portuguesa... Op. cit., p. 43-44.
60 ‘Instrução Militar passada para uso do Governador e Capitão-General da Capitania de São Paulo...’ In: Marcos
Carneiro de Mendonça. ‘O pensamento da metrópole portuguesa... Op. cit., p. 54.
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As artes de governar o Brasil no período pombalino
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No período pombalino se consolidou a ideia de que o eixo do Império português tinha se
deslocado do oceano Índico para o Atlântico, transformando a América Portuguesa na principal
fonte de recursos da Coroa lusa, tornando fundamental sua defesa. Pombal, ao perceber a
importância da centralização e unificação militar sob o comando do Rio de Janeiro, sugerida por
Gomes Freire de Andrada ainda na primeira metade do século XVIII, se empenhou em fazê-lo para
proteger e fortificar as ameaçadas Capitanias do Sul, promovendo uma reorganização militar na
colônia.
A análise diacrônica das instruções régias a sucessivos oficiais régios que serviram à Coroa
no Estado do Brasil serviu para demonstrar continuidades e tensões marcantes quanto às
questões militares. Talvez o melhor aspecto para evidenciar este argumento seja o papel militar
desempenhado pelo Rio de Janeiro nesta conjuntura. Para ilustrar este aspecto, pode-se recorrer
a uma continuidade marcada durante a governação dos três oficiais régios mais destacados
nesse artigo: na governação de Gomes Freire de Andrada, quando as questões do Sul ganham
proeminência e motivam a sugestão de unificação das tropas do Centro-Sul sob o comando do
Rio de Janeiro; no Vice-reinado de Antônio Álvares da Cunha, quando a capital é transferida para
o Rio e implementa-se a sugestão de Gomes Freire; e, por fim, no Vice-reinado do Marquês de
Lavradio, quando o problema capital da arregimentação de tropas para dar cabo da contenção das
seguidas investidas espanholas no Centro-sul se evidencia, e se institucionaliza a recomendação
real a todos os seus Vice-reis, repetidas e insistentes vezes, que se transformou no mote central
das instruções pombalinas: uma espécie de um por todos e todos por um.
Artigo recebido para publicação em 15 de março de 2014.
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