TERRA, GADO E ESCRAVO: FORTUNAS ESCRAVISTAS NOS CAMPOS GERAIS
PARANAENSE, 1826-1850
Mariani Bandeira Cruz Oliveira
RESUMO
O presente trabalho propõe-se a discutir o escravismo nos Campos Gerais Paranaense, na
primeira metade do século XIX, suas bases econômicas e socioculturais. A historiografia
paranaense sobre a escravidão demonstra que, mesmo com percentual consideravelmente
baixo, os escravos estiveram presentes nesse território desde o século XVII. E participaram
intensamente do mundo do trabalho constituído nessa sociedade, pelo menos até meados do
século XIX: ocupavam-se em atividades de colheita e beneficiamento do mate, na criação de
gado, no cultivo de lavouras e no exercício de ocupações domésticas e ofícios diversos. Utilizase como corpo documental principal os inventários post-mortem de donos de escravos
inventariados na Vila de Castro, nos anos de 1826 à 1850. Foram criadas fichas para
catalogação dos dados dos bens materiais presentes na documentação e estabeleceu-se um perfil
de fortunas. A hierarquia econômica por faixa de fortuna demonstrou que naquela sociedade a
posse de escravos, a propriedade de terras e a propriedade de animais (muares, vacuns e
cavalares) caracterizavam sobremaneira a região. E mais, a pesquisa demonstra que a mão de
obra escrava foi componente estrutural da sociedade campeira, seja nas fazendas de engordas
e/ou nas atividades tropeiras. Foi possível ainda caracterizar um total de 994 escravos, sendo
194 africanos (134 homens e 60 mulheres); 309 crioulos (178 homens e 131 mulheres), 06
indígenas (03 homens e 03 mulheres) e 485 não especificados. A média de escravos por
inventariado na Vila de Castro, no período estudado concentrou-se em torno de 8 cativos por
proprietários. Dessa feita, considera-se essa região significativa no que tange o universo
escravista, além de revelar-se lócus de um escravismo bastante dinâmico no que refere-se às
lidas campeiras.
PALAVRAS-CHAVE: Escravismo. Riqueza. Sociedade campeira. Trabalho cativo. Vila de
Castro.
INTRODUÇÃO
Os Campos Gerais paranaense ficaram conhecidos na historiografia pelos seus
envolvimentos com as atividades de criação e engordas de animais. O desenvolvimento desta

Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História e Regiões da Universidade Estadual do Centro-Oeste
(UNICENTRO), Campus de Irati/PR.
E-mail: [email protected]
1
região se deu no início do século XVIII, baseado nas atividades do tropeirismo, nas posses de
grandes propriedades de terras, criação de animais, no trabalho livre e escravo.
Com a abertura do Caminho de Viamão1 entre os anos de 1728 e 1730 os Campos Gerais
Paranaense encontrava-se em meio a rota que ligava o Sul com Sudeste da colônia. E a posição
geográfica em que se situava em relação aos centros comerciais da colônia, fez com que se
constituísse num importante entroncamento e ponto de parada, de viajantes e tropeiros que
transitavam pela região. Desse modo, as localidades dos Campos Gerais “mais do que parada
[...] eram pontos de criação e de comércio, onde muitas pessoas fixaram moradia levando em
consideração a possibilidade de crescimento” (MARTINS, 2011, p.54).
A Vila de Castro estava, portanto, dentro deste processo. Desenvolveu-se ligada as
influências do tropeirismo que contribui com a formação de pequenos ranchos, os quais
consolidaram na ocupação dos espaços e constituição dos vilarejos ao longo do caminho das
Tropas. Conforme Ilton César Martins:
A localidade é a primeira região a ser habitada nos Campos Gerais basicamente por
conta do rio Iapó e suas cheias, que obrigava tropeiros de Curitiba, Viamão e de
Sorocaba, a repousar em suas margens, preferencialmente em sua margem esquerda,
onde podiam se pôr ao abrigo dos ataques de índios que habitavam a região”
(MARTINS, 2011, p.54).
Desde o século XVIII os Campos Gerais conviviam com o caminho de passagens de
viajantes e tropeiros que transitavam pela região. Vilas e povoados foram se formando ao longo
desse caminho, como é o caso de Castro.
Portanto, neste trabalho, procuramos pensar a sociedade castrense inserida no contexto
da primeira metade do século XIX, justamente quando as atividades da pecuária e do
tropeirismo já estavam consolidadas em todo o sul da América portuguesa.
VILA DE CASTRO: POVOAÇÃO E SOCIEDADE
A Vila de Castro faz parte da região que hoje conhecemos como Campos Gerais
Paranaense. A ocupação dessa área ocorreu pela distribuição da sesmaria2 no início do século
1
O Caminho de Viamão ligava a Província de São Pedro do Rio Grande, passando pelos Campos Gerais
paranaense, à Sorocaba no interior de São Paulo. Faz parte das muitas rotas e trilhas que foram criadas para
cruzarem do interior do Brasil aos centros comerciais da colônia e Império (MARTINS, 2011, p. 49).
2
Há um Alvará datado de 19/03/1704 em que Pedro Taques de Almeida, representante das principais famílias
paulistas, requeriam por sesmarias as terras nas proximidades do Rio Iapó, atualmente região dos Campos Gerais
2
XVIII. As terras foram adquiridas especialmente por paulistas, habitantes de Curitiba e
Paranaguá (Pinto, 1992, p.75). As primeiras famílias que se instalaram na região exploraram os
campos naturais para a engorda e criação de animais.
Para o período de 1826-1850 que propomos estudar é interessante destacar que a Vila
de Castro pertencente a 5ª Comarca Paulista abrangia uma extensa área. Na qual se incluía as
freguesias de: Jaguariaíva, Ponta Grossa, Tibagi e Guarapuava. O desmembramento dessas
áreas ocorreu após e/ou no decorrer do nosso recorte temporal, ou seja, Guarapuava em 1849,
Ponta Grossa em 1864, Tibagi em 1872 e Jaguariaíva em 1876.
Quanto ao aspecto físico da povoação da vila castrense pode-se levar em conta o olhar
de Jean-Baptiste Debret que passou pela região na década de 1820 e apresentou um ambiente
urbano bastante rarefeito.
FOTO I
A cidade de Castro, de Jean Baptiste Debret (1829) FONTE: BANDEIRA, Julio e LAGO, Pedro Correia do.
Debret e o Brasil: Obra completa 1816-1831. Rio de janeiro: Capivara Editora, 2007, p.284.
do Paraná. Esse pedido foi concedido parte da área localizada na paragem chamada Iapó, nas proximidades do rio
Iapó (PINTO, 1992, p.42).
3
Tomando como base a aquarela de Debret, temos a Vila de Castro no início do Século
XIX ainda pouco povoada, e isso, não é muito diferente das demais vilas paranaense, ou até
mesmo das espalhadas pelo interior brasileiro nesse período.
A vila castrense é representada com a Igreja ao centro e algumas casas em torno dessa.
O pintor destaca a presença de pessoas circulando pelas ruas - ainda em processo de formação
- e a presença dos homens montados nas tropas. A cidade de Castro de Debret é cercada pelos
campos verdes. Em meio a mata, é possível identificar uma estrada, que pelo destaque na obra,
poderia ser um caminho importante aos moradores castrenses no período. De modo geral,
podemos destacar na pintura uma valorização da cultura campeira na localidade. No período
não era possível uma definição precisa do que era urbano ou rural na Vila de Castro, ou seja,
existiam aspectos tênues entre um e outro.
Nos primeiros anos dos oitocentos os Campos Gerais era a região menos povoada no
território do Paraná. Para o ano de 1824, com base nas Listas Nominativas de Habitantes,
Cecília Maria Westphalen apresenta um total de 8.502 habitantes, correspondendo pouco mais
de 25% do total da população paranaense. E desses, 1.794 eram escravos. Já no censo de 1854
após a criação da Província do Paraná atingiu 22.187 habitantes nesse território. A população
cativa somava pouco mais de 23% do total dos habitantes dos Campos Gerais Paranaenses
(WESTPHALEN, 1997, p.35).
Com relação ao aumento populacional vale destacar que o que conhecemos como
Paraná, em 1824 contava com 32.887 habitantes, já em 1854 sua população quase dobrou,
atingindo 62.258 habitantes (WESTPHALEN, 1997, p.26). Esse cenário de crescimento
populacional não foi caso isolado para essas áreas, ou seja, a Província Paulista como um todo,
na primeira metade do século XIX, passava por um crescimento em sua população.
No início do século XIX os Campos Gerais Paranaenses passava por um alargamento
em suas fronteiras. Neste período tem-se a ocupação e povoamento de algumas áreas na região,
entre elas: Palmas e Guarapuava. O processo de povoamento destas áreas ocorreu a partir de
expedições ordenadas pela Coroa portuguesa.
Muitos homens, sozinhos e/ou acompanhados de sua família foram enviados a essas
terras. Conforme Franco Netto, as milícias destinadas a essa missão deveria ser formada pela
figura do soldado-povoador. Que além da atuação na defesa territorial fosse capaz de atuar nas
atividades de lavoura e criação de animais. Desse modo, “a família era um elemento
fundamental nesse processo, pois, sem a formação desses núcleos familiares, seria praticamente
4
impossível a formação desses núcleos populacionais, bem como a consolidação e permanência
de tropas para tal fim” (FRANCO NETTO, 2007, p. 48).
Sabe-se que com o processo de povoamento dos Campos Gerais Paranaense formou-se
nas redondezas da Vila de Castro a formação de um grupo de fazendeiros que dedicavam a
engorda e criação de animais. As atividades desenvolvidas nessas propriedades contavam com
participação de livres e escravos. Conforme Cacilda Machado “o escravo era mão-de-obra
fundamental nas fazendas, e os grandes proprietários dos Campos Gerais eram geralmente
senhores de escravarias maiores do que os das terras curitibanas” (MACHADO, 2008, p.30).
Algumas dessas fazendas possuíam características específicas, como das unidades
absenteístas3, onde os proprietários não costumavam permanecer em suas fazendas, deixandoas aos cuidados de capatazes de sua confiança, na maioria administradas pelos escravos.
Carlos Lima e Kátia Melo em investigações a partir das Listas Nominativas de
Habitantes, da primeira metade do século XIX observaram que diferentes unidades absenteístas
foram identificadas nos domicílios de Castro. A Fazenda Capão Alto, é uma delas, de propriedade
dos Padres Carmelitas, sua maior parte foi administrada por capatazes cativos. E nas listas nominativas
de 1835 aparece como a maior escravaria de Castro, contando com 99 escravos, no mínimo (LIMA e
MELO, 2004, p.140).
As investigações sobre o escravismo na área que irá abranger a Província do Paraná
demonstram que as regiões de predominância campeira, como é o caso dos Campos Gerais,
com suas atividades de pecuárias foram as possuidoras de maiores plantéis de escravos.
(PEREIRA, 1996, p.60; MACHADO, 2008, p.30; GUTIÉRREZ, 1986, p.151).
O universo oitocentista castrense era composto por diversos sujeitos, os quais constituíam a
sociedade do período. Muitos indivíduos conseguiram ao longo da vida acumular fortunas4 e
desfrutaram de uma vida razoável confortável, conforme as condições da época. Da mesma forma, que
muitas famílias contaram apenas com a sorte e a força de trabalho para garantir sua sobrevivência e dos
seus familiares. Desse modo, estamos diante de uma sociedade multifacetada: constituída por ricos
fazendeiros, detentores de poder econômico e político, cativos e assalariados, daqueles cujas
atividades supriam apenas as necessidades de subsistência e dos sitiantes (PINTO, 1992, p.04).
As unidades absenteístas são aquelas que “não contavam com a presença de seus donos, mas que também não
possuíam capatazes livres, assalariados, ficando a administração por conta dos próprios escravos. Os senhores às
vezes residiam em habitações urbanas” (LIMA e MELO, 2004, p.128).
4
Fortuna entendida como a posse de qualquer bem (MATTOSO, 1978).
3
5
Entretanto, a história desta localidade nesse período é marcada por história de
fazendeiros, sitiantes, trabalhadores livres e escravos, tropeiros e viajantes, de sucessos e
insucessos, numa área de pastoreio que acolhia pessoas dos mais variados graus de riqueza.
A administração pública era comandada, na maior parte, pelos grandes fazendeiros e
proprietários de escravos. A localidade se configurava como o espaço da sociabilidade,
permitindo o encontro e desencontro de pessoas. As notícias da corte chegavam principalmente
via tropeiros e viajantes que passavam pela região.
A maior força de trabalho nos Campos Gerais paranaense situava-se no setor primário,
especialmente na agricultura e a pecuária. O setor econômico obtinha importância significativa
com as atividades de pecuária e tropeirismo. Conforme Franco Netto e Vial essas atividades
além de possibilitarem uma dinamicidade na economia, forneciam aos moradores dos Campos
Gerais e redondezas vantagens econômicas, pois “a economia encontrava suporte no
tropeirismo, onde várias atividades se sustentavam com o comércio e a prestação dos serviços
aos tropeiros que pelos Campos Gerais passavam” (FRANCO NETTO e VIAL, 2013, p.3).
FORTUNAS INVENTARIADAS NA VILA CASTRENSE
No Brasil o estudo das fortunas coloniais, a partir dos inventários post-mortem, tem sido
tema de diversos trabalhos acadêmicos. Essas pesquisas, em sua maioria, constatam a
importância de alguns ativos significativos na formação das fortunas coloniais: escravos, terras,
imóveis e dívidas ativas. O que muda, em alguns casos, é a ordem que cada ativo possui no
conjunto do patrimônio analisado.
Para analisarmos a composição das fortunas5 dos inventariados pesquisados recorremos,
sobretudo, ao modelo proposto por Kátia Mattoso (1992) quando analisou a riqueza na Bahia
do século XIX. Entretanto, nosso modelo de análise segue com devidas alterações. Segundo
João Fragoso (1998), o “estudo das fortunas é um dos meios para se identificar a lógica que
perpassa o processo de reprodução da sociedade” (FRAGOSO, 1998, p.334). A fortuna é,
portanto, de fundamental importância na compreensão do funcionamento destas sociedades.
A partir da análise das fontes classificamos o valor do patrimônio dos inventariados em
faixas de fortunas, que permitiu-nos traçar um perfil de suas riquezas, conforme quadro abaixo.
5
Fortuna entendida no sentido material, a posse de qualquer bem, independente se muito ou pouco. (MATTOSO,
Kátia. Bahia, século XIX: uma Província no Império. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992, p.608).
6
QUADRO 01 – CLASSIFICAÇÃO DAS FORTUNAS DOS DONOS DE ESCRAVOS DA VILA DE
CASTRO, 1826-1850. (EM CONTOS DE RÉIS)
Faixas de fortunas
Valor monte-mor
Número de
%
bruto
inventariados
PEQUENAS
ATÉ 3:000$000
39
38,2
MÉDIAS
3:000$001 a
51
50
12
11,8
102
100
20:000$000
GRANDES
ACIMA DE 20:000$001
TOTAL
FONTE: FÓRUM DA COMARCA DE CASTRO. Inventário de proprietários de escravos da Vila de Castro.
Caixas: 1826-1850. Castro.
De acordo com a classificação no quadro acima é possível observar que pouco mais de
38% dos inventariados pesquisados possuíam um patrimônio que não ultrapassava três contos
de réis. Metade dos inventariados encontrava-se na faixa média (3:000$001 a 20:000$000) e
somente doze dos inventariados contavam com patrimônio acima de 20 contos de réis.
Neste contexto, observa-se que alguns inventariados da Vila castrense conseguiram
acumular volumosas fortunas, já outros chegaram ao final da vida com poucos bens materiais.
MINIMAMENTE AFORTUNADOS
Ana Gertrudes do Sacramento faleceu em 1831 e deixou uma fortuna avaliada em
113$980 (cento e treze mil e novecentos e oitenta réis). Nomeou três herdeiros: “Antonio
(falecido); Maria Thereza, 50 anos, casada; Josefa de tal, também casada”. Não era
afortunada, apesar de possuir uma escrava. Tinha três vacas, um par de canastra velha, um catre
tecido de couro, uma mesa, um caldeirão de cobre e um tacho pequeno. Não há descrição de
casa ou moradia.
“Mulher pobre”, Ana Gertrudes, (possivelmente já viúva) não possuía propriedade de
terras. O tacho e o caldeirão serviam como ferramentas de trabalho? E as três vacas contribuíam
para o sustento da família? Afinal, onde morava Ana Gertrudes? Na documentação não informa
se seus herdeiros moravam com ela. Se Maria Thereza tinha 50 anos possivelmente Gertrudes
7
era idosa e talvez não trabalhasse mais e dependesse da ajuda de sua escrava. As vacas
certamente forneciam leite (queijo) e bezerros. O caldeirão e o tacho fossem para cozinhar doce
(para vender?) provavelmente Rita é quem cozinhava.
Chama atenção nesses documentos a ausência de descrição de moradia de alguns nas
avaliações. E nos levam a alguns questionamentos: onde viviam esses “pobres” donos de
escravos, possuidores de animais e “sem moradia”? Residiam em propriedades de familiares ou
eram agregados?
Estamos diante de uma sociedade campeira, com posse de diversas fazendas, as quais
contavam com mão de obra livre e escrava. Cacilda Machado (2008) em estudo sobre a
população paranaense, do início do século XIX, especificamente São José dos Pinhais,
mencionou a presença de pessoas residindo como agregados em alguns domicílios dessa região,
especialmente nos chefiados por mulheres. Nesse caso, a presença de mais um membro
residindo no domicílio era considerado mais um benefício do que um fardo.
Na realidade, o número de pessoas na vida produtiva das propriedades tornava-se
interessante, principalmente dos mais empobrecidos, que dependiam muito da ajuda de
familiares no uso da terra e de bens em seu próprio proveito.
Em geral, conforme Cacilda Machado, os dados não trazem informações de vínculos
parentais, nem mesmo detalhes sobre as ocupações exercidas por esses agregados. Entretanto,
“possivelmente a maior parte deles trabalhavam na lavoura ou no serviço domestico, como, de
resto, o conjunto da população do lugar” (MACHADO, 2008, p. 117).
Desse modo, é possível que esses “pobres” donos de escravos, “sem moradia” viviam
prestando serviços em fazendas vizinhas, que contavam também com a mão de obra livre para
o auxílio das diversas atividades da fazenda.
Apesar da ausência nas fontes, pode-se inferir que para os sujeitos “pobres” viver como
agregados pode ter sido uma saída para driblar as dificuldades e conseguir sobreviver e, ainda
quem sabe, até a permissão de um lote de terra para nele cria um pequeno rebanho de gado,
como pode ter acontecido, por exemplo, com Ana Gertrudes do Sacramento mencionada acima.
Por outro lado, também não é destacada a possibilidade do inventariado que não possuía
morada de casa, ou propriedade de terra, mas era dono de escravos e animais, ocupar-se da
propriedade de pais ou sogros.
A permissão dos pais ou sogros à moradia e ao trabalho em suas terras era possível
devido ao tamanho das áreas, próprias ou alugadas, que excediam, em muito, as necessidades
8
do casal. As referências à moradia ou ocupação de terras, por parte de filhos ou genros, não
eram absolutamente necessárias nos inventários.
Desse modo, o patrimônio material dos minimamente afortunados da Vila de Castro era
constituído principalmente pela posse de escravos, poucos animais, utensílios de trabalho e
alguns poucos móveis. Sendo a posse de escravos responsável pela maior fatia na soma de sua
fortuna.
FORTUNAS MÉDIAS
Os inventariados cujas fortunas classificamos nas faixas: médias (mais de 3:000$000
até 2:000$000), corresponderam a metade dos inventários pesquisados. E desses, mais de 50%
tiveram sua fortuna concentrada na propriedade escrava e de animais; em três inventários não
foram constatado bens de raiz; dois não possuíam animais; e um contava somente com a posse
de escravos e bens de raiz.
Identificamos nesta faixa de fortuna apenas dois proprietários de mão de obra cativa que
tiveram a maior parte de suas fortunas concentradas nos bens de raiz. Entre esses se encontra
Ana Gertrudes Maria do Espírito Santo6, inventariada no ano de 1846. Constaram entre os bens
arrolados a posse de 6 escravos, equivalendo 13,5% de sua fortuna; 14 cabeças de animais
(incluindo vacas, bois, cavalos, éguas, porcos e ovelhas) correspondendo a 6,5% de sua riqueza;
02 casas no espaço urbano da vila de Castro e 10 propriedades no espaço rural (incluindo sítios,
rincão, moinho e terras lavradias) equivalente a 73% de sua fortuna; e ainda, outros bens:
enxadas, arreios, machados, foices, facão, tachos, catres e talheres.
Ana Gertrudes Maria do Espírito Santo e seus escravos possivelmente tenham se
dedicados às atividades agrícolas. Consta em seu inventário a descrição de um plantio de milho
em duas de suas propriedades. Além disso, constatamos entre seus bens a presença de moinho
e tachos. Dessa forma, não é descartada a possibilidade da fabricação de farinha em suas
propriedades.
A partir da faixa média, observamos que os inventariados dispunham de maiores
quantidades de bens, especialmente no se refere aos trastes de uso domésticos, como por
exemplo, louças, porcelanas, entre outros. No entanto, a propriedade de escravos, os bens de
6
FÓRUM DA COMARCA DE CASTRO. Inventário de Ana Gertrudes Maria do Espírito Santo. Caixa: 1846.
Castro, 1846.
9
raiz e os animais somam a maior parte de sua fortuna inventariada. O número médio de escravos
por proprietários concentrou em torno de 09 cativos por inventariados.
AFORTUNADOS
Os inventariados cujas fortunas foram classificadas na faixa grande corresponderam a
um total de 12 dos inventários pesquisados. É nesta que se encontram os maiores plantéis de
escravos.
Ao classificarmos o patrimônio desses inventariados observamos de certa forma, uma
distribuição percentual equilibrada entre as propriedades: escravos, raiz, animais e outros bens.
Entre os mais “afortunados”, os bens de raiz, posse escrava e animais continuaram sendo
ativos relevantes, porém os outros bens foram os que concentraram a maior parte de sua riqueza.
Os possuidores das maiores fortunas em Castro, no período estudado, foram também os
detentores dos maiores plantéis escravos. Entretanto, a concentração da riqueza não se
relacionava diretamente ao número de escravos. Encontramos indícios de envolvimento desses
inventariados com os negócios e vendas de animais, especialmente com os negociantes do
sudeste do império.
João Carneiro Lobo7 com uma fortuna avaliada em 156:395$460 (cento e cinqüenta e
seis contos, trezentos e noventa e cinco mil e quatrocentos reis) foi o mais abastado dos
inventariados da nossa pesquisa. Constaram entre os bens arrolados a posse de 53 escravos,
3.713 animais (incluindo vacas, cavalos, éguas e mulas) e mais de 16 propriedades de terras
(incluindo fazendas, invernadas, terras lavradias, senzalas e capões de matos), além de alguns
outros bens (como trastes de uso em animal: arreios e selas; enxadas, machados, roupas, objetos
de uso domésticos, algumas fazendas em tecidos, e entre outros).
João Carneiro Lobo possivelmente exerceu influência na região. A partir de seu
inventário foi possível constatar que manteve negócios também em outras regiões do império
português, principalmente no interior de São Paulo. Encontramos uma declaração feita pela
inventariante, Dona Ana Estevão Carneira, possivelmente sua viúva, que havia uma tropa de
bestas (éguas) que havia sido enviada a Feira de Sorocaba, junto com seu sócio Manoel José da
Trindade, a fim de ser vendida aos negociantes dessa região.
7
FÓRUM DA COMARCA DE CASTRO. Inventário de João Carneiro Lobo. Caixa: 1844. Castro, 1844.
10
A posse de escravos, as propriedades de terras, o comércio, inclusive de animais
contribuíram para a consolidação das fortunas da elite escravista que se estabeleceram em
Castro ao longo do século XIX. Os movimentos e as alianças estabelecidas entre a sociedade
campeira castrense com os negociantes das demais áreas do império português promoveu uma
integração maior entre as regiões do império.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em conformidade com estudos recentes sobre o papel da escravidão no mercado interno
e na dinâmica da economia de abastecimento de outras regiões do Brasil, verificou-se que a
Região dos Campos Gerais Paranaense nas primeiras décadas do oitocentos relacionava-se com
as demais localidades e províncias com o mesmo tipo de atividades pecuarista, como Sorocaba,
sul de Minas Gerais e Rio Grande do Sul, não apenas pelos caminhos das tropas.
A média de escravos por proprietário na vila de Castro, no período de 1826 a 1850
ultrapassou 8 cativos por proprietário. Esses dados em comparação a outras regiões paranaense
são bem mais elevados. A mão de obra escrava na vila castrense, na primeira metade do século
XIX, foi, de fato, componente estrutural dessa sociedade, seja em ocupações nas fazendas de
subsistências, criação de gado, no cultivo de lavouras e/ou nas atividades tropeiras.
Os escravos corresponderam os maiores percentuais de bens entre os minimamente
afortunados e entre os menos afortunados. Na faixa alta constatamos certo equilíbrio entre os
ativos de suas fortunas, porém com concentração, especialmente no dinheiro líquido, trastes de
uso campeiro, pratas, ferramentas de trabalhos no campo e entre outros.
Os mais afortunados foram os responsáveis pelas maiores escravarias na Vila de Castro.
Dessa forma, pode-se enfatizar a importância desses três elementos: escravos, terra e animais,
para essa sociedade nesse período.
A soma dos bens dos inventariados revelou que a riqueza na vila de Castro concentrouse principalmente nas mãos dos grandes fazendeiros, negociantes de animais, possuidores de
extensas propriedades de terras e conseqüentemente da posse de escravos.
REFERÊNCIAS
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12
WESTPHALEN, Cecília Maria. Afinal, existiu ou não regime escravo no Paraná? In: Revista
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13
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