PICHAÇÃO NA ESCOLA E A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE JUVENIL
João Batista Martins - UEL
Resumo: Esta pesquisa focaliza as marcas deixadas nas carteiras e paredes escolares – as
"pichações". Entendemos que estas re-estabelecem as funções destes “espaços” tomando-os como
suportes para esta atividade comunicativa. Três escolas foram escolhidas como locais para esta
pesquisa. Os dados para este estudo incluem 694 registros fotográficos. Foram realizadas entrevistas
com os diretores escolares e com estudantes. A análise dos registros nos informa a complexidade da
pichação enquanto um sistema específico de comunicação. Esta análise também nos sugere que a
pichação está relacionada com os processos de construção de identidade dos estudantes. Tal
perspectiva está calcada nos temas sexualidade; namoro, paquera e disputas românticas; vinculos
religiosos; filiações a grupos musicais; territorialidade, apologia ao uso de drogas e violência. Além
disso, as pichações nas paredes e nas carteiras podem nos revelar aspectos da cultura escolar e das
suas experiências o que dizem respeito as historicidade das experiências dos jovens. Nesse sentido,
a prática de pichação é aqui considerada como uma forma de expressão e de comunicação, e não
como depredação escolar.
Palavras-chave: escola; pichação, juventude
INTRODUÇÃO
Nossas observações do cotidiano ao longo dos últimos anos, têm nos indicado que os
alunos vão para a escola em função do processo de socialização que ela possibilita, os alunos
entendem o espaço escolar como um lugar para encontros, caracterizando o estar na escola muito
mais como um processo de sociabilidade do que um processo de escolarização (MARTINS, 2003;
MARTINS, SCHMIT, 2003; MARTINS; SILVA, 2003; MARTINS; SCHMIT; SILVA203).
É muito frequente encontrarmos na literatura especializada a idéia de que o cotidiano
escolar se caracteriza pela diversidade. Diversidade esta marcada sob várias perspectivas: sob a
ótica das classes sociais, sob a perspectiva sociológica, sob a marca cultural, religiosa, etc... Assim,
partimos do pressuposto que o cotidiano escolar é perpassado por esta diversidade – ou pluralidade
– e que isto nos coloca diante da necessidade do reconhecimento da presença, no contexto escolar,
de vários grupos.
Por outro lado, também é lugar comum na literatura a idéia de que a escola se organiza
com a perspectiva de estabelecer dispositivos que garantam uma “certa” homogeneidade no
tratamento dos problemas enfrentados, geralmente tratados com a perspectiva de manter o processo
disciplinador que muitas vezes marca a atuação da administração diante de problemas por ela
enfrentado (MARTINS, 2002).
Sob estas perpectivas, e considerando os vários grupos que frequentam o cotidiano
escolar, assim como as estratégias da administração escolar em manter este espaço “limpo” –
asséptico – nos interessamos em conhecer como os diversos grupos presentes no contexto da escola
se manifestam, quais as estratégias que utilizam para estabelecer suas fronteiras, deixar suas
marcas... tendo como objeto de pesquisa as “marcas” que encontramos nas paredes, nos bancos, nas
carteiras, etc.. o que denomiremos aqui de pichação1.
A PICHAÇÃO E INSTITUIÇÃO ESCOLAR
Existem ruídos na escola, manchas de pintura, paredes pintadas, rabiscadas, escritas,
desenhadas de várias formas com materiais de diversos tipos (canetas, pincel atômico, cola, etc...).
As paredes exibem gritos silenciosos, ameaças, recados, mensagens que, ao longo do tempo,
caracterizam diálogos, trocas, informações, paqueras, etc..
As paredes, cabe lembrar, estão no limite entre o público e o privado, delimitam os
espaços. Os jovens, ao tomarem as paredes como suportes para sua expressão, utilizando-se para
tanto os mais variados recursos... e ao assim procederem, reinventam as funções das paredes...
Enquanto as paredes defendem a intimidade e a propriedade privada, as pichações a transgridem,
tomam-na de assalto, colocando-a sob os olhares do público.
Nas escolas é muito comum encontrarmos escritos nos banheiros, nas paredes, nos
bancos, nos pontos de ônibus utilizados pelos alunos, nas carteiras... Diante de tal produção nos
perguntamos: o que leva alguém a deixar sua marca na parede? Estabelecer um diálogo? Expressar
uma angústia? Quem ou que grupo necessitou escrever nas paredes, quem ou que grupo apressa-se
em limpá-las? Quem escreve, o que quer nos falar? As paredes nos falam? Quem quer comunicar-se
com quem? Que discurso circula entre os insterstícios da escola?
Cabe registrar, que a escola é um lugar institucional (estabelecido social, cultural e
juridicamete), e em função deste lugar, ela é determinada institucionalmente, regulamentarmente, e
seu caráter instituído marca bem seu peso, sua inércia, tanto para os professores como para alunos.
Há uma administração, o diretor, o supervisor, os inspetores etc. que se ocupam de estabelecer e
manter a “programação” (os programas), os controles, a disciplina assim como a definição dos
poderes, os estatutos. De uma certa forma o caráter estático da organização expressa-se através da
“burocratização”.
A instituição, por sua vez, não tem somente um caráter instituído, ela tem também um
caráter instituinte2. Assim, a escola pode ser o lugar de aprendizagem institucional e da experiência
democrática. Ela é, vista sob esse ângulo, igualmente possibilidade de mudança, se admitirmos que
as instituições possam mudar de maneira evolutiva e não somente de maneira revolucionária. É sob
1
Cabe aqui estabelecer uma diferença entre grafite e pichação: Grafite é uma denominação utilizada para caracterizar
expressões artísticas no contexto urbano. São marcas espalhadas pelos muros, fachadas de casas e que assumem várias
matizes: políticas, estéticas, protestos, etc... Pichação, por sua vez, não tem necessariamente um caráter estético.
2
Ver Lourau (1995) sobre a dialética instituído/instituínte das instituições sociais.
a perspectiva instituinte que entendemos a expressão dos alunos nas paredes, bancos, carteiras
escolares, na medida em que os estudantes reiventam o cotidiano escolar com tal prática.
DA ESCOLARIZAÇÃO
Se consideramos que a educação é um conjunto de alvos, de finalidades, o que a
inscreve na ordem do político, podemos dizer com Castoriadis que “o objeto da verdadeira política
é transformar as instituições, mas transformá-las de maneira que estas eduquem indivíduos para
autonomia” (CASTORIADIS apud ARDOINO, BARBIER e GIUST-DESPRAIRIES, 1998, p. 61).
No entanto, Castoriadis assevera:
Somente uma coletividade autônoma pode formar indivíduos autônomos – e vice-versa,
daí o paradoxo para a lógica corrente. Veja um dos aspectos desse paradoxo: a autonomia
é a capacidade de questionar uma instituição dada da sociedade – e é esta instituição que,
através sobretudo da educação, deve nos tornar capazes de questioná-la. (CASTORIADIS
apud ARDOINO, BARBIER e GIUST-DESPRAIRIES, 1998, p. 61)
Ou seja, segundo Castoriadis, o paradoxo de um projeto educativo voltado para a
autonomia, para a autorização consiste no fato de que ela deve ajudar os seres humanos a aceder à
autonomia ao mesmo tempo em que interiorizam as instituições existentes.
Tal paradoxo, principalmente no que tange aos aspectos relacionados com os fins da
educação, é aprofundado na medida em que não há um consenso na determinação destas
finalidades, pois, de um lado, as finalidades da educação são ditadas pela sociedade, refletindo suas
necessidades. Por outro lado, os aprendizes, professores, pais etc. exercem uma influência,
consciente ou inconscientemente, sobre as determinações institucionais destas finalidades. Além
disso, a Pedagogia, a Filosofia, as Ciências da Educação intervêm também com seu peso específico
na determinação das finalidades. Tais circunstâncias nos permitem dizer que não existe uma
correspondência necessária entre estas esferas no entendimento do que vem a ser as finalidades da
educação, e que, por determinado momento, elas podem ser até contraditórias.
A escola, por sua vez, é um dos “palcos” privilegiados onde estas contradições tomam
forma, se objetivam. Podemos dizer, de uma maneira bastante genérica, que tais interesses
estabelecem-se no contexto escolar sob uma polaridade: de um lado se localizam os conservadores,
que tentam utilizá-lo para a manutenção do status quo, e de outro os setores progressistas, que vêem
a educação como um instrumento importante para as transformações sociais. Tal confronto se
caracteriza por uma “disputa de sentidos” (reconhecida ou não, democrática ou não) entre aqueles
que se fazem presentes no cotidiano escolar - estudantes, pais, professores, direção, Estado etc.
“Disputa de sentido” que se aprofunda na medida em que reconhecemos a presença das diferenças
no cotidiano escolar.
Sob esta perspectiva consideramos as práticas que os adolescentes desenvolvem no
contexto escolar, práticas muitas vezes consideradas como “indisciplinadas” como um processo de
construção de “regras” (ou de uma ética) próprias e que elas (as práticas) expressam as políticas de
construção de identidade que estão implícitas no cotidiano escolar.
Cabe salientar ainda que os adolescentes ao operacionalizarem “sentidos” nas relações
que se estabelecem no contexto escolar, estão, concomitantemente, estabelecendo fronteiras
múltiplas e heterogêneas, onde diferentes histórias, linguagens, vozes e experiências combinam-se
com diversas relações de poder e privilégios.
Tal consideração nos sugere que a escola se realiza de um modo diverso e diferenciado
daquele previsto pelo poder estatal ou pelas administrações escolares. Apesar de a escola
estabelecer alguns mecanismos disciplinadores (que pressupõem a descaracterização da
heterogeneidade), tais como: registro das “faltas”, denominado atualmente de termo de ocorrência
(designação que nos lembra os inquéritos policiais); a estruturação de um “catálogo” de punições
que podem culminar com a expulsão do estudante; o “mapeamento” dos lugares nas salas de aula
para assegurar o silêncio e a disciplina; a oração no início das aulas para “acalmar” os estudantes; a
estruturação das salas tendo como ponto de referência o rendimento escolar... (HORST e
NARODOWSKI, 1999), as práticas que ali se sucedem, como a da pichação, por exemplo, tendem
a instituir novas formas de relacionamento entre eles e aqueles que vivenciam o cotidiano escolar.
Assim, ao nos aproximarmos das pichações temos como estabelecer um encontro com a
cultura material deixada pelos jovens que vivem o cotidiano escolar. Entendemos que esta é uma
forma que eles estabelecem de se objetivarem no contexto escolar, saírem do anonimato, terem
visibilidade, expressar suas angústias e ansiedades, suas visões de mundo.
Cabe registrar, no entanto, que este processo de objetivação é concomitantemente um
processo de subjetivação, estabelecendo-se uma dialética que culmina na constituição do sujeitos
sob um determinado momento histórico. Entender a pichação como uma forma de comunicação,
significa considerar que os jovens que a praticam enunciam desejos, lugares, pensamentos e, na
medida em que isso acontece no coletivo, cria-se uma rede de significados e de sentidos que
permite a identificação com os grupos, os vínculos de pertença, onde o desenvolvmento pessoal é
circunscrito pelas vivências intersubjetivas que ocorrem na instituição escolar – sendo as pichações
um dos elementos que possibilita essas trocas.
DA PESQUISA
Tendo em vista as considerações anteriores esta pesquisa objetivou conhecer e analisar as
expressões dos jovens através do grafite no contexto escolar. Com essa perspectiva, entramos em
contato com três escolas públicas de Londrina e passamos a fotografar – na medida do possível – as
marcas que os estudantes deixam em vários suportes: carteiras, paredes, portas, cadeiras, etc.
Recolhemos cerca de 694 fotografias que foram tiradas em diversos momentos, especialmente
quando os estudantes não estavam presentes na escola.
Ao longo do desenvolvimento da pesquisa tivemos a oportunidade de discutir com alguns
alunos, de maneira bastante informal, acerca da questão da presença da pichação no contexto
escolar.
As Escolas
Nossa pesquisa envolveu três escolas da cidade de Londrina, uma que se localiza no centro
da cidade (que a partir de agora será denominada de Escola A), uma outra se localiza na zona oeste
(que a partir de agora será denominada de Escola B) e a terceira na zona norte (que a partir de agora
será denominada de Escola C).
Todas as escolas oferecem Ensino Fundamental (5ª a 8ª série) e o Ensino Médio nos três
períodos – matutino, vespertino e noturno. Elas recebem, cada uma, cerca de 1000 alunos De uma
certa forma, quando apresentamos a proposta de trabalho para as direções das escolas fomos muito
bem recebidos, mas em função de nossa disponibilidade não fizemos o mesmo número de incursões
nas – na Escola A fizemos 3 incursões, na Escola B 1 incursão e na Escola C, 5 incursões.
A Escola A oferece Ensino Fundamental (5ª a 8ª série) e o Ensino Médio. Atende cerca de
1000 alunos nos períodos matutino, vespertino e noturno. Nas entrevistas que realizamos com a
direção sobre a questão da pichação no contexto da escola, fomos informados que ela tem
enfrentado essa questão limpando constantemente as carteiras (que são de fórmica). Assim, nos
intervalos entre os períodos, as zeladoras que ali trabalham passam em todas as salas limpando as
paredes e carteiras. O diretor se diz preocupado com esse tipo de manifestação, principalmente com
o conteúdo que veiculam, uma vez que podem estar vinculado às temáticas ministradas por
professores (conhecidas como “cola”) ou pode estar relacionado com pornografia e ou com
conteúdos que “ataquem” a “moral e os bons costumes”.
Na escola, segundo o diretor, há dois espaços onde os alunos estão autorizados para
deixarem suas marcas: uma lousa no pátio e um mural num dos corredores próximos a quadra
coberta da escola – lugar de grande movimentação de alunos. No primeiro espaço – nos momentos
em que fizemos nossas visitas – não encontramos marcas dos alunos, já no outro espaço – o mural –
pudemos verificar várias expressões (ver Fotos 1 a 4).
Foto 1-
Foto 2
Foto 3
Foto 4
Apesar da vigilância e limpeza, os alunos mantêm uma prática de “pichação”, deixando
suas marcas nas carteiras, paredes, portas, bancos, banheiros etc. que extrapolam o “espaço
permitido” para essa prática de escrituração (Fotos 5 a 9).
De certa forma, como veremos mais adiante com mais detalhes, as marcas deixadas pelos
estudantes dizem respeito às problemáticas por eles vivenciadas, tais como questões identitárias,
sexualidade, namoro, paqueras, solidão etc.
Foto 5 – Parede no pátio (um pênis)
Foto 6 – Banco no pátio
Foto 7 – Porta banheiro (uma ameaça?)
Foto 8 - Mangueira de incêndio
Foto 9 - Cadeira de professor (um pênis)
Um outro dado interessante observado nesta escola foi o fato de que apesar da limpeza e da
vigilância, ou mesmo de uma prática de pichação autorizada, os estudantes se apropriaram também
das paredes da escola e dos prédios em seu entorno: os estudantes ocupam os espaços extra-muros
do estabelecimento escolar para deixarem suas marcas. A hipótese aqui é a de que, na medida em
que eles não têm espaços de expressão no interior da escola, ocupam outros espaços – aqueles que
estão fora dela. Assim, encontramos as marcas dos alunos nas paredes de lojas e das residências do
entorno, em muros, no ponto de ônibus... (ver Foto 10)
Foto 10 – Muro de edifício em frente à escola onde encontramos várias marcas deixadas pelos estudantes
As administrações das Escolas B e C apesar de atribuírem um sentido negativo para
a prática – como depredação – não criaram dispositivos de vigia e de coibição para tal prática. A
direção da Escola B não toma providência alguma, pois não tem funcionários para limpar as
carteiras. Além disso, justifica sua atitude “laisse faire” em função da falta de envolvimento dos
pais e dos estudantes com a escola, que poderiam ajudar a administração na manutenção do
mobiliário (que também é de madeira e que, para estar limpa, necessita ser lixada) e do espaço
físico
Já a direção da Escola C repinta as paredes da escola e “lava” as carteiras (o que não
resulta no apagamento das marcas, pois as carteiras são de madeira). Seu interesse é manter a escola
“limpa”, e não estabelecer confrontos com alunos. A direção da escola tem uma perspectiva de que
ao longo do tempo os estudantes reconheçam o esforço da escola e ajudem em sua manutenção.
Das pichações
Uma análise mais externa das marcas nos sugere que estamos diante de um tipo de
comunicação bastante específica, o que traz uma dificuldade de interpretação para aqueles que não
dominam o código que sustenta tal sistema, ou seja, somente aqueles envolvidos nas redes sociais
que compartilham o sistema de escrita compreendem o que está sendo dito ou expresso: tal fato se
revela tanto na grafia de certas marcas – as vezes cifrada (Foto 11a e Foto 11b)) –, como na forma
de organização do sistema – geralmente se apresenta muito confuso pois muitas marcas aparecem
juntas chegando a se confundirem umas com as outras (Foto 12).
Foto 11a – Carteira de escola (detalhe): Código
Foto 11b – Carteira de escola (detalhe): Código
Foto 12 – Carteira Escolar – um sistema de comunicação muito confuso
Entendemos esta forma de comunicação como um paradoxo, próprio da adolescência.
Temos um sistema de comunicação que é “silencioso”, indisponível para o adulto uma vez que nós
não o conseguimos entender – é uma comunicação em segredo – que não deve ser descoberta (como
explicita a Foto 11b), mas, ao mesmo tempo, está ali no espaço público... ao ser deixada neste
espaço, ela deixa de ser segredo – ou da esfera do privado – e se inscreve num lugar onde ela é
passível de interpretação – momento em que o jovem explicita suas idéias, seus pensamentos etc.,
cabendo a nós interpretá-los.
Apesar deste paradoxo, encontramos nas marcas deixadas pelos estudantes uma rede de
comunicação. É um sistema de troca de informações, de idéias que se articulam em torno de uma
demanda dos jovens. Essa rede pode ser identificada na medida em que as marcas vão sendo
enredadas através de de setas, que vão se articulando e compondo um diálogo, as vezes particular
mas se torna público. É o que podemos ver na Fotos 13, 13a, 13b, 13c, 13d.
Foto – 13 – Carteira escolar - Diálogo
Foto 13a - Eu amo ele (seta aponta) Bruno
Foto 13c - Esquece o Bruno, ele é das
biscataida
Foto 13b - Você não sente nada por ele? Não
Foto 13d - Ele gosta de mim, não tanto quanto
eu dele, mas ta bom
Esta “conversa”, em determinados momentos, ganha intensidade, especialmente nos
momento em que há “disputas”, como podemos notar nas Fotos 14a, 14b, 14c e 14d
Foto 14 a – Parapeito da janela da sala de aula – Rampeira, arrombada, biscate – Ass: nóis da manhã – Biscate, filha
da puta, rampeira, cedinaria, tilanga, cu arrombado, acho ruim, kata... (continua em 14b)
Foto 14b – Parapeito da janela da sala de aula – Kata eu sua piranha galinha – Biscate, cata eu, to te esperando sua
vadia baxa aki, ass. J.J.P.A.N (continua em 14c).
Foto 14c – Parapeito da janela da sala de aula – coloca seu nome suas vadias que eu tenho te bater, biscataiada – ass.
...
Foto 14 d – Parapeito da janela da sala de aula – (acima) – sua vadia, descobre se você for mulher, sua incompetente,
biscateee J.J.A.N.P Kata nóis. (embaixo) biscate, kenga, leza, renha, rampi, puta, vadia, arrombada, dadeira
Essa sequência de “conversa” foi encontrada no .... de uma janela de uma sala de aula
em uma das escolas. Num primeiro momento identificamos que são garotas da turma da manhã que
estão em disputa com garotas da turma da noite ou da tarde. O motivo da disputa ou das ofensas não
é claro e nem esclarecido no corpo das enunciações, mas o espaço é suporte – parede – para
expressar as desavenças e o estabelecimento do diálogo.
O fato é que existe uma demanda para os jovens se comunicarem – especialmente se
considerarmos que vivemos uma escola que se pauta pelo silêncio e pelo silenciamento (cfe
BIANCHINE, 2009). É o que expressa as Fotos 15a, 15b, 15c, 15d
Foto 15a: Cadeira de escola: “Quem é você?
Foto 15b: Carteira Escolar (detalhe): “Quem é você?” “R – Não interesa”
“Burrooooo!!!! Interessa é com dois s, inútil”
Foto 15 c – Carteira de escola (detalhe): “Quem senta aqui é a Maria Teresa”
“Quem senta aqui é homem ou mulher?
Foto 15 d: Carteira de escola (detalhe): “Quem está sentada nesta carteira é
biscate e vive rodando bousinha na esquina”
As marcas que os estudantes fazem nas carteiras e nas paredes trazem muitas
referências sobre o universo em que vivem a partir das quais podemos vislumbrar alguns elementos
que contribuem para a construção da identidade dos mesmos. Na Foto 16 aparece alguns aspectos
deste universo:
Foto 16: Carteira de escola (detalhe)
Nesta carteira podemos vislumbrar uma série de informações sobre as vivências dos
estudantes: temos a inscrição de alguém que se inscreve através da marca da territorialidade (tete
ZN), outra através da religiosidade (SÓ DEUS PODE JULGAR); outra através de uma marca que
pode ter várias interpretações - 100% Vida Loka – o que pode estar vinculada ao uso de drogas, a
uma opção musical, a do Rick Martin, enfim... Se por um lado o processo de construção de
identidade diz respeito ás vivências individuais, por outro ele também é circunscrito por elementos
culturais, vivências que são experienciadas coletivamente (como bem nos aponta Ciampa, 1978).
Assim, o exercício da pichação coloca em movimento esse construir-se – individual e coletivamente
– uma vez que o jovem expressa-se no espaço público e, sendo o espaço público, ele pode ser
contestado e interpelado (como veremos mais adiante). Tal situação cria uma dinãmica onde as
informações estão constantemente em movimento, se transformando, uma vez que é possível
responder ao que está posto (algumas Fotos anteriores ilustram essa dimensão – a da rede de
comunicação que se estabelece através da pichação)
Como apontamos anteriormente, muitas pichações estão diretamente relacionadas com
as vivências e demandas experienciadas pelos jovens. Apresentaremos a seguir algumas temáticas
que circunscrevem um conjunto de questões próprias do momento em que estes jovens estão
vivenciando.
Devemos lembrar que boa parte dos jovens que frequentam a escola estão passando por
mudanças significativas do ponto de vista biológico e psicológico3. Tais mudanças nos fazem
compreender as várias pichações que dizem respeito a questões relacionadas à sexualidade, ao
corpo e ao namoro (Fotos 17a, 17b, 17c, 17d):
3
Para mais detalhes, ver Knobel, 1981.
Foto 17a - Carteira de Escola (Detalhe) –
Corpo feminino
Foto 17b - Cadeira de Escola (Detalhe) – Senta no teléco...
(pênis)
Foto 17b - Carteira de Escola (Detalhe) – Corpo
masculino e ????? (um corpo indefinido)
Foto 17b - Cadeira de Escola (Detalhe) – Fer 100% Filé
Olha o cofre, cú prá fora
Cú (seta indicando para baixo) C
O que nos chama atenção nos desenhos apresentados nestas fotos são seus traços
infantis, com deformações corporais e desproporções - – bastante primitivos. Já as inscrições nos
remetem para as brincadeiras juvenis envolvendo a sexualidade, o desejo, um certo voyeurismo – já
que o namoro é meio “complicado” nesse período. Encontramos várias inscrições que já
caracterizam um certo romantismo entre os pichadores. É o que podemos perceber na Foto 11b que
traz a expressão Viviane e Samir (mas em segredo). Além disso, como podemos ver no diálogo nas
Fotos 13, 13a, 13b, 13c e 13d, nas carteiras também encotramos certos dramas afetivos do amor não
correspondido (ver também Foto 18).
Foto 18 – Carteira de escola (Detalhe) – Thigo Fibtacao “Já
que vc não me quer mais, vou espalhar meu amor por aí”
Cabe também registrar que este espaço – o das paredes, das carteiras e das cadeiras –
também é compartilhado por grupos minoritários, dentre os quais, destacamos os homossexuais,
conforme nos mostra a pichação da Foto 19.
Foto 18 – Parede de banheiro de escola – “Queremos chupar pinto e dar. Ass: os viadinhos que andam junto
recreio – endereço de email - me manda um e-mail (confidencial) Beijo no seu pinto!
Estabelecemos um recorte entre as pichações que encontramos que denominamos de Um
“Territorialidades culturais”. Aqui incluímos aspectos do universo juvenil vinculados aos grupos de
música, às manifestações religiosas, a torcidas pelos times de futebol. Como veremos, os espaços
da pichação são marcados por disputas – as vezes muito intensas (como pudemos ver nas Fotos 14a,
14b, 14c e 14 d) e por uma convivência, caracterizando-se como um espaço paradoxal – pois temos
a disputa e a convivência, a busca pela hegemonia com a vigência da heterogeneidade. Pois então,
vejamos:
Foto 19a – Carteira de Escola (Detalhe) – Os boys
comandam. Odeio manos
Foto 19b - – Carteira de Escola (Detalhe) – o mundo
só será mundo quando o último pagodeiro morrer
enforcado nas cordas de uma guitarra
Foto 19c – Carteira de escola – (No alto) – Curta rock e nada mais. (Embaixo Lado direito) – Punk
Na sequência de fotos acima (19a à 19c), identificamos o quanto paradoxal é o universo
da pichação. Nas Fotos 19a e 19b, temos a disputa entre grupos “os boys” x “os manos”; os
“pagodeiros” x “roqueiros”. Já na Foto 19c, temos a convivência de dois estilos musicais bastante
diferentes – o rock e o punk. E o que é mais interessante, eles não se atravessam, não disputam
espaço, os pichadores não rasuram a pichação do outro.
Além dos grupos musicais, os pichadores também expressam suas crenças, seus
territórios (o que as vezes pode indicar disputa ou rivalidade), seus esportes preferidos, seus estilos
musicais, é o que queremos demonstrar com a sequência de Fotos 20a à 20f.
Foto 20a – Carteira de escola
(Detalhe) – Agradeço a N.S.
Aparecida pela benção me concedida
Foto 20b – Cadeira de escola (Detalhe)
– Wicca (denominação de uma seita de
bruxas)
Foto 20c – Carteira de escola (Detalhe)
– É comando zona oeste (foto tirada
numa escola da Zona Norte de
Londrina)
Foto 20d – Carteira de escola
(Detalhe) – Corinthians 5 x 1
Cianorte (Futebol)
Foto 20e – Carteira de escola (Detalhe)
– Skate
Foto 20f – Carteira de escola –
Cultura hip-hop
A sequência de Fotos 20a - 20f, leva-nos a pensar na diversidade que marca nossa
juventude, nos informa que não existe uma única juventude, mas várias juventudes que convivem
em nossos contextos escolares, diversidade muitas vezes escamoteadas pelos rigores das normas e
das regras escolares (HORST & NARODOWSKI, 1999), especialmente por esperarem que este
jovens se comportem de uma mesma maneira.
Além das marcas culturais que circuncrevem os grupos de jovens que convivem no
cotidiano escolar, os jovens também são influenciados por uma certa “ideologia” que permeia nosso
universo social, especialmente aquela dirigida a figura da mulher e sua inserção na realidade. É o
que podemos vislumbrar com a Foto 21.
Foto 21 – Carteira de Escola (Detalhe) – Acróstico de Marcia: Modelo;
Atriz; Rica; Cat; Linda; Amorosa. Acróstico de Ana Paula: Amiga,
Nenezinha; Amorosa, Pirada; Atenciosa; Valiosa; Linda; Amante
A Foto 21 traz uma série de perspectivas analíticas – econômica, política, etc.. – para
esse trabalho. Gostaria de enfatizar, no entanto, aquela que diz respeito ao processo de construção
de identidade de Marcia e Ana Paula, uma vez que aos seus nome estão vinculados –
intrinsecamente – várias expectativas, desejos. Estes desejos e expectativas trazem em seu cerne
valores que se apóiam no esteriótipo de mulher disseminado em nossa sociedade – como a amante,
a atenciosa, a amorosa, a amiga. Traduzem, também, um padrão de beleza praticamente inatingível
em nosa sociedade que é o que marca o universo das modelos e atrizes – linda, rica, modelo.
Sonhos, sonhos, sonhos... ou senão marcas ideológicas?
Duas dimensões da realidade dos jovens que frequentam as escolas aqui estudadas que
se fazem presentes nas pichações dizem respeito à violência e a uma certa apologia para o uso de
drogas.
A violência está presente por certo tipo de ameaça, informando os leitores para um certo
tipo de comportamento que é marcado por “certa normatização” – saiu do “caminho” morre. É o
que nos indica as Fotos 22a e 22b. A convivência com a violência também se faz presente nas
pichações através de desenhos estilizados que nos lembram os desenhos animados que são passados
nos canais de televisão.
Foto 22a – Carteira de Escola (Detalhe) – Marco
levo cumbo na cara
Foto 22b – Carteira de Escola (Detalhe) – Vacilo,
Lava tiro???
Foto 22c – Carteira de Escola (Detalhe) – Homem
armado
Foto 22d – Carteira de Escola (Detalhe) – Figura
humana levando um tiro
Acompanhando a violência, temos muitas pichações que se referem ao uso da droga.
São desenhos, escritos, rimas e frases. Em eu conjunto elas nos revelam o uso e, provavelmente, a
convivências com o tráfico dentro de nossas escolas. A sequência de Fotos 23, nos sugerem esse
convívivo.
Foto 23a - Carteira de Escola – “Não fume cigarro tem nicotina e
faz mal fume hemp puro e natural” (hemp é uma denominação
atribuída a maconha)
Foto 23b – Parede de Escola – Desenho de um pé de
maconha
Foto 23c – Parede de Escola – “A vida se basea na base
de um baseado” (baseado é uma denominação atribuída
ao cigarro de maconha)
Foto 23d – Carteira de Escola – “Quando morrer não quero vela no meu
caixão Quero 1 kg de maconha para mim subir doidão
Aproveitando a “deixa” da frase destacada na Foto 23d, gostaríamos de destacar
algumas outras que nos remetem para a seriedade e o bom humor que marcam esta fase da vida...
Foto 24a – Parede – Quando ficares triste nunca cruze os
braços pois lembre-se que o maior homem do mundo
morreu de braços abertos
Foto 24b – Parede – O gozo não é apenas um liquido
gosmento, mas sim um choro de um pinto apaixonado
Foto 24c – Parede – Dinheiro não traz felicidade, me dê o seu e
seja feliz!
Foto 24d – Carteira de Escola – Se for dirigir não beba, se for
beber, me chama
Considerações finais
Uma dimensão interessante que vislumbramos com essas pichações são o que
denominarei aqui de “licença poética”. Encontramos palavras que não correspondem ao português
oficial, seja do ponto de vista ortográfico como gramatical, o que nos faz pensar que os suportes
para a pichação são espaços para a livre expressão, uma liberdade que subverte, que rompe, que
apresenta a possibilidade de novos sentidos para a experiência – seja ela cultural, identitária, social,
estética. Nesse sentido, gostaria de destacar a Foto 24, que expressa um pouco essa ideia – quando a
encontramos,nós a denominamos de “estoura palavra”, uma vez que caracteriza, de uma certa forma
tal liberdade (assim como tantas outras que foram apresentadas ao longo deste estudo.
Foto 24 – Carteira de escola (detalhe) – Poli Jú Braço Gi Mayara Driana (seta) Cabeção,
Amanda (seta) Pega Anão
Essa perspectiva nos leva a pensar as paredes, as carteiras, enfim, os suportes tomados
pelos jovens para expressarem questões vivenciadas em seus cotidianos, como interstícios, espaços
escorregadios, prontos para receberem novas mensagens e acolherem novos sentidos para a
expressão destes jovens. Na medida em que acolhem essas expressões, tornam-se suportes de
diálogos, transformando-se em um campo onde os autores das pichações podem exercitarsuas
possibilidades, expressar seus desejos, mostrar sua realidade.
É por conta desta dimensão que não consideramos o exercício da pichação no contexto
escolar como uma depredação do patrimônio público, mas sim como um sistema de comunicação e,
cabe a nós, tentar decifrá-lo se quisermos compreender um pouco melhor a vivência dos jovens que
convivem conosco em nossas escolas.
Quando discutimos a questão da pichação com os estudantes, pudemos perceber que
eles atribuem este problema como algo que é da competência da direção – esta é que deve cuidar e
tentar resolver o problema. Alguns confessaram que picham as carteiras e os livros que recebem, e
dentre as manifestações dos jovens que entrevistamos, uma declaração nos pareceu muito
interessante que foi de uma aluna do período noturno. Esta, ao ser questionada sobre o destino de
novas carteiras ela respondeu: “... carteiras novas para registrar nossos momentos... nossa
historia...”, ou seja, a pichação, as marcas deixadas pelos estudantes, devem ser consideradas dentro
dessa dimensão: enquanto fragmentos de histórias, que perpassam o cotidiano escolar.
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pichação na escola e a construção da identidade juvenil