Luna Halabi Belchior; Luisa Rauter Pereira; Sérgio Ricardo da Mata (orgs) Anais do
7º. Seminário Brasileiro de História da Historiografia – Teoria da história e
história da historiografia: diálogos Brasil-Alemanha. Ouro Preto: EdUFOP, 2013.
(ISBN: 978-85-288-0326-6)
Perspectivas historiográficas sobre a música popular: o “Desfile de Craque”
de Sérgio Cabral
Luã Ferreira Leal*
O “descendente” de Lúcio Rangel: Cabral e a redescoberta da música popular
Os parâmetros estéticos que permitem a classificação de formas artísticas como
adequadas aos critérios de inserção ao âmbito da Música Popular Brasileira não são
anistóricos, um mapeamento intelectual de sua constituição pode ser realizado a partir de
textos que nortearam as disputas por legitimação. Para tratar da análise da organização dessas
narrativas, “fazer história” deve ser compreendido como prática social construtora de
sentidos, pois o “fato histórico” resulta de uma práxis e da afirmação de um sentido para a
escrita da história (Certeau, 1982).
A categoria MPB “apesar de certamente deter um ar de família, não é monolítica,
inclusive no plano musical” (Menezes Bastos, 2009: 6), seu uso tornou-se mais recorrente
após os festivais competitivos da década de 1960 com sua adoção por agentes do mercado
fonográfico. Em sua escrita da história, Cabral retomou um modelo de relato construído pela
“primeira geração” de críticos musicais, memorialistas, cronistas e jornalistas que se
dedicaram à música popular produzida e executada em meio urbano a partir das décadas de
1920 e 1930 como Francisco Guimarães, Alexandre Gonçalves Pinto, Jota Efegê e Edigar de
Alencar (Moraes, 2006). Com o propósito de analisar a consagração dos produtores ou dos
produtos de determinadas práticas culturais no meio musical brasileiro (Fernandes, 2010),
compreendemos a criação e a reprodução de parâmetros estéticos definidos por um conjunto
de críticos e jornalistas como etapas fundamentais desse processo de legitimação.
Cabral iniciou sua carreira em 1957 no Diário da Noite, dois anos depois se transferiu
para o Jornal do Brasil e cobriu o carnaval carioca de 1960. Em 1961, foi convidado para
escrever uma coluna semanal sobre música popular às quintas-feiras, intitulada “Música
naquela base”, no recém-criado Caderno B. O primeiro artigo da coluna “Primeiras lições de
samba”, publicado em dezembro de 1961, foi escrito por José Ramos Tinhorão em parceria
com Sérgio Cabral. Demitido após a greve de jornalistas de 1962, Cabral trabalhou na Light
até ser contratado pelo Diário Carioca e, posteriormente, pela sucursal carioca da Folha de
*
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da
Unicamp. Bacharel em Ciências Sociais pela Escola de Ciências Sociais – CPDOC/FGV. Agência financiadora:
Capes.
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Luna Halabi Belchior; Luisa Rauter Pereira; Sérgio Ricardo da Mata (orgs) Anais do
7º. Seminário Brasileiro de História da Historiografia – Teoria da história e
história da historiografia: diálogos Brasil-Alemanha. Ouro Preto: EdUFOP, 2013.
(ISBN: 978-85-288-0326-6)
São Paulo. O jornalista trabalhava nesse jornal e na Última Hora quando, ao lado de Tarso de
Castro, Jaguar e Sérgio Porto, fundou o periódico Pasquim em 1969. Na década de 1970,
Cabral tornou-se apenas colaborador do Pasquim e em 1972 assumiu o cargo de editor da
revista Realidade da Editora Abril. Em sua trajetória profissional, podemos avaliar como
pontos cruciais para a consolidação de seu papel como crítico especializado em música
popular a sua participação na coluna “Primeiras lições de samba” entre 1961 e 1962 no Jornal
do Brasil, o lançamento do livro “As escolas de samba – o quê, quem, como e porque” em
1974, o prêmio recebido em 1977 por sua monografia sobre Pixinguinha e o lançamento do
livro “Pixinguinha, Vida e Obra”. A vasta obra de Sérgio Cabral contribuiu para a
consolidação de um panteão de artistas, músicas, conjuntos musicais e gêneros classificados
como referências da história da música popular brasileira.
Criado em 1966 por Ricardo Cravo Albin, primeiro diretor do Museu da Imagem e do
Som do Rio de Janeiro, com o apoio de dois outros funcionários da instituição, Henrique
Foreis (Almirante) e Ary Vasconcelos, o Conselho Superior de Música Popular era composto
por 40 pesquisadores, a maioria jornalistas profissionais. Cabral, além dessa instituição,
também esteve envolvido em duas outras “trincheiras” em defesa da tradição musical
brasileira: a Fundação Nacional de Arte (Funarte) e a Associação de Pesquisadores da Música
Popular Brasileira (APMPB), ambas criadas em 1975. Com as disputas pela classificação da
música popular brasileira, nessas instituições que funcionavam como instâncias de
legitimação da produção cultural houve a consolidação de interpretações que aglutinavam o
samba, o choro, a Bossa Nova e a música dos festivais na chamada MPB (Baia, 2011, p. 40;
Fernandes, 2010: 184-190).
A respeito dos debates sobre música popular, as considerações de Napolitano (2007)
explicitaram alguns dos elementos que marcaram esse campo de estudos: a concentração em
determinados temas privilegiados, sobretudo a MPB e o samba, as biografias, as crônicas
jornalísticas e os depoimentos de artistas. Em 1977, a Funarte promoveu o primeiro concurso
de monografias, cujo tema era “Pixinguinha”, em homenagem ao músico falecido em 1973.
Cabral era um dos diretores de núcleo do projeto e conquistou o prêmio no primeiro concurso
de monografias da Funarte. Dessa forma, distante da produção acadêmica, conferimos a
relevância desse autor para os registros da “história de grande circulação” (Sarlo, 2007:13) da
música popular brasileira.
O conjunto de jornalistas e colunistas colaboradores do Pasquim era formado por
Jaguar, Tarso de Castro, Henfil, Millôr, Ziraldo, Nani, Ivan Lessa, Paulo Francis e Alberto
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Luna Halabi Belchior; Luisa Rauter Pereira; Sérgio Ricardo da Mata (orgs) Anais do
7º. Seminário Brasileiro de História da Historiografia – Teoria da história e
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Dines, entre outros. A Editora Codecri – sigla de “Comissão de Defesa do Crioléu” –, lançada
como alternativa no mercado editorial para intelectuais de esquerda, era dirigida por Jéferson
Ribeiro de Andrade. A editora responsável pelo Pasquim, além da publicação de livros e
histórias em quadrinhos, vendia discos da coleção “Disco de Bolso” em bancas de jornal.
Cabral era o colaborador do Pasquim responsável pelos temas da música popular brasileira,
mas também participou de diversas entrevistas realizadas pela equipe do periódico, sobretudo
com futebolistas. Também foi responsável pelas entrevistas com relevantes figuras da
imprensa escrita, como Ibrahim Sued, cuja entrevista foi publicada no primeiro número do
Pasquim em junho de 1969, e Alceu Amoroso Lima, em setembro do mesmo ano (Medeiros,
2003).
O papel de jornalista que cumpre a função de descobridor de talentos musicais coube a
Cabral também na condição de produtor musical. A redescoberta de compositores no
ostracismo foi um dos aspectos mais marcantes em sua trajetória no campo da música popular
brasileira. Seja na realização de entrevistas, seja na produção de matérias jornalísticas sobre
compositores consagrados entre as décadas de 1920 e 1940 e os fundadores e precursores das
escolas de samba cariocas, Cabral promoveu uma espécie de “redescoberta” da música
popular a partir de seus “compositores autênticos”: Ismael Silva (1905-1978), Cartola (19081980), Nelson Cavaquinho (1911-1986) e Zé Keti (1921-1999) (Fernandes, 2010: 194). A
busca pelas origens da música brasileira, pelos gêneros matriciais ou pelas raízes folclóricas,
era o objetivo de suas reflexões e, em alguma medida, repercutiu em pesquisas acadêmicas
que abarcariam a música popular como objeto de estudo a partir do final da década de 1970.
Autor do prefácio de “As Escolas de Samba”, publicado em 1974, Lúcio Rangel
destaca a capacidade de Cabral em comover os seus leitores com “os verdadeiros criadores da
nossa música popular, os autênticos, um Cartola ou um Nelson Cavaquinho”. Esse trecho do
prefácio permite que seja retomado o debate sobre a permanência da questão da “tradição” e
da “autenticidade” na escrita da história da música brasileira. “A emergência de novas
camadas de consumidores, a situação da cultura de matiz nacionalista e a redefinição do papel
do artista e do intelectual no conjunto da sociedade” (Napolitano, 1998: 98) foram alguns
elementos que promoveram uma reconfiguração da relação entre artistas e o mercado durante
a década de 1960. Após os debates suscitados pela Bossa Nova, no final da década de 1950 e
no início dos anos 1960, as canções dos festivais e as canções vinculadas a movimentos que
refletiam a internacionalização do mercado de bens culturais, como exemplo pode ser citada a
Jovem Guarda, contribuíram para a construção de novos parâmetros estéticos. Em um período
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Luna Halabi Belchior; Luisa Rauter Pereira; Sérgio Ricardo da Mata (orgs) Anais do
7º. Seminário Brasileiro de História da Historiografia – Teoria da história e
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de turbulências no plano político, novas movimentações de produtores culturais mobilizaram
o campo musical brasileiro, tendo em vista que
se a implantação do regime militar foi o estopim, o combustível foi um outro
processo: a reestruturação da indústria cultural brasileira. A inserção da música
popular no circuito de um consumo renovado, processo no qual os programas musicais
da televisão tiveram um papel fundamental, exigia a redefinição da sua identidade
histórica (Napolitano, 1998: 94).
Música popular brasileira, seus criadores, seus mártires, seus intérpretes
Publicado em 1979, no âmbito das publicações da Coleção Edições do Pasquim, o
“ABC do Sérgio Cabral” apresenta na orelha do livro o texto de Jaguar, editor da coleção
acima citada. Jaguar enfatiza o caráter boêmio do autor, característica que teria facilitado o
acesso às informações do meio musical apresentado no livro. Cabral é definido como um
“carioca-padrão”, por preferir uma “loura gelada” em detrimento do “batente”, e sua escrita,
em “fluente carioquês”, é cotejada com uma conversa na mesa do bar. No texto da quarta
capa, o jornalista e produtor cultural Roberto Moura, crítico de música popular dos jornais O
Dia e Pasquim e autor dos livros “A Casa da Tia Ciata e a Pequena África do Rio de Janeiro”
(1983), “Carnaval – da redentora à praça do Apocalipse” (1986), “MPB – caminhos da arte
brasileira mais reconhecida no mundo” (1998), entre outros, afirma que a atuação de Cabral
“descende diretamente de Lúcio Rangel”, e elenca semelhanças entre os dois jornalistas: o
Diário Carioca como “escola”, o aspecto “bairrista” de seus textos que permaneceram
“indelevelmente cariocas”, a proximidade ao objeto de suas análises, a “imensa brasilidade” e
o “sentimento de defesa de nossos valores”.
Enquanto Jaguar define o livro como um “roteiro da malandragem”, Ferreira Gullar
afirma no prefácio que, embora não queira se tornar um historiador, por ser “jornalista aberto
ao que há de engraçado, poético e humano”, Cabral conta a história da cultura urbana carioca.
De acordo com Gullar, devido à sua intimidade com as figuras ligadas ao ambiente cultural
que o próprio contribui para fecundar, o autor do livro torna o povo o personagem central de
sua história da “música popular brasileira, seus criadores, seus mártires, seus intérpretes; o
carnaval, o disco, o rádio, as escolas de samba” (Cabral, 1979:7).
Composto por 24 capítulos, “ABC do Sérgio Cabral: um desfile dos craques da MPB”
reúne textos, em sua maioria, anteriormente publicados na imprensa escrita. À exceção dos
três textos inéditos, um deles censurado em agosto de 1975, que seria publicado na revista
Cadernos de Opinião, os capítulos do livro foram originalmente publicados: no jornal O
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Luna Halabi Belchior; Luisa Rauter Pereira; Sérgio Ricardo da Mata (orgs) Anais do
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Globo (nove capítulos), na série “História das Escolas de Samba” (cinco capítulos), no
Pasquim (três capítulos), no Jornal do Brasil, no Tribuna de Imprensa, na Revista Homem e
na revista Realidade (um capítulo publicado em cada um desses veículos da imprensa escrita).
Os textos coligidos contemplam 17 anos de sua atividade jornalística (1961-1978). O
capítulo “U de Um pioneiro do samba” dedicado a José Luís de Morais, o Caninha, havia sido
publicado em 1961 no Jornal do Brasil na semana posterior ao falecimento do compositor.
Para uma periodização da publicação original dos textos, dividirei os capítulos de acordo com
o veículo de publicação original: os textos extraídos do jornal O Globo foram publicados
entre 1976 e 1978, a série “História das Escolas de Samba” havia sido publicada pela Rio
Gráfica e Editora em 1976 e as entrevistas do Pasquim incorporadas ao livro foram
publicadas originalmente em 1971 (capítulos “O de Ouvindo o Poeta” e “S de Sérgio Porto”)
e 1977 (capítulo “T de Tempos de Bossa Nova”). Os demais capítulos foram publicados em
1963 no jornal Tribuna da Imprensa (capítulo “C de Conselhos para quem vai assistir a um
desfile de escolas de samba em 1963”), em 1972 na revista Realidade (capítulo “R de Rádio
Nacional, Anos 50”) e em 1977 na Revista Homem (capítulo “B de Banda de Ipanema”).
“ABC do Cabral” abarca diferentes modalidades de textos – anedotas, entrevistas,
trajetórias de artistas da música popular brasileira, breves análises de conjuntos de obras –,
por isso também será proposto um mapeamento dos formatos apresentados no decorrer da
obra. Foram listadas 12 entrevistas, entre as quais duas são fictícias – com Carlos Drummond
de Andrade, no capítulo “O de Ouvindo o Poeta”, e Sérgio Porto, ambas publicadas no
Pasquim em 1971 –, cinco foram publicadas na série “História das Escolas de Samba” e
quatro no jornal O Globo, além de uma entrevista de João Donato e Milton Banana publicada
no Pasquim em 1977.
Cada capítulo conta com uma introdução, a qual apresenta de forma breve data e local
de nascimento do artista tratado no texto. As anedotas, em sua maioria, fazem referência aos
artistas da música popular, mas há espaço para outros temas de um universo de símbolos
relacionados ao “nacional-popular”. Em “V de Vasco da Gama”, capítulo originalmente
publicado no jornal O Globo em 1977, Cabral dedica-se a escrever a história das campanhas
populares do clube carioca, a saber, a defesa da entrada de moradores da Zona Norte,
operários negros, no time que competiu no Campeonato Carioca de 1923 e a construção de
um estádio particular. Em “P de Phono-Arte”, há uma breve trajetória de Cruz Cordeiro,
criador da revista “Phono-Arte”, lançada em 1931. O capítulo é voltado para explicitar as
múltiplas formas de ligação de Cruz Cordeiro com a música popular, seja na imprensa escrita,
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Luna Halabi Belchior; Luisa Rauter Pereira; Sérgio Ricardo da Mata (orgs) Anais do
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história da historiografia: diálogos Brasil-Alemanha. Ouro Preto: EdUFOP, 2013.
(ISBN: 978-85-288-0326-6)
como editor da “Phono-Arte”, colaborador da “Revista de Música Popular” e crítico musical,
seja na gravadora RCA Victor como produtor musical.
As caricaturas de Nássara, também membro da equipe do Pasquim, estão em diversos
capítulos do livro: “G de Getúlio Vargas e a Música Popular Brasileira”, “H de Historinhas”,
“J de João de Barro”, “L de Lúcio Alves”, “V de Vasco da Gama” e na “entrevista
psicografada” com Sérgio Porto. Em “V de Vasco da Gama”, a primeira página do capítulo
mostra a caricatura de Cabral com a camisa do clube. No capítulo “H de Historinhas”, além
de fotografias de Jota Canseira e Jacob Bandolim, portando seu instrumento, há caricaturas de
Lúcio Rangel, Zé Keti, Tom Jobim, Jamelão, Jorge Veiga, Sérgio Porto, Artur Moreira Lima,
Aracy de Almeida, Noel Rosa, Nelson Cavaquinho, Bororó, Vinicius de Moraes e Ari
Barroso, protagonistas de anedotas e das narrativas sobre a história da música popular
brasileira empreendida por Sérgio Cabral.
Nesse capítulo há uma sequência de anedotas envolvendo diversos nomes da música
popular, a começar por Lúcio Rangel, definido como “grande historiador de nossa música
popular e crítico” e “Mestre” por Cabral. As escolas de samba, tema fundamental do primeiro
livro de Cabral, são também relevantes no “desfile de craques”. As menções a diferentes
agremiações carnavalescas são apresentadas a partir das trajetórias biográficas dos sambistas:
Alvaiade e Zé Keti, da Portela; Duduca do Salgueiro; Ivone Lara, do Prazer da Serrinha e do
Império Serrano; Cartola, do Bloco dos Arengueiros e da Mangueira; Caninha, fundador do
rancho Dois de Ouro; e Raul Marques, integrante de diversas agremiações, como Unidos da
Saúde, Recreio de Ramos e Prazer da Serrinha. Os “pioneiros” recebem o tratamento de
responsáveis pela consolidação das escolas de samba no cenário cultural brasileiro. Os
sambistas entrevistados responderam as perguntas de Cabral sobre a entrada na agremiação,
sua participação e as redes de contato com outros compositores. O carnaval e o sistema de
rádio são dois balizadores fundamentais para a construção do panteão de artistas da música
popular brasileira. Embora nem todos os capítulos sejam dedicados a personagens da música
popular, o livro está voltado para apresentar figuras fundamentais na “autêntica” da cultura
brasileira.
No capítulo “C de Conselhos para quem vai a um desfile de escolas de samba em
1963” são elencados os enredos das agremiações Beija-Flor de Nilópolis, Unidos de Bangu,
União de Jacarepaguá, Portela, Mangueira, Império Serrano, Mocidade Independente,
Acadêmicos do Salgueiro e Aprendizes de Lucas. O desfile, o primeiro realizado na Avenida
Presidente Vargas, foi vencido pelo Salgueiro com a introdução de alas coreografadas que
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Luna Halabi Belchior; Luisa Rauter Pereira; Sérgio Ricardo da Mata (orgs) Anais do
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dançavam minueto. Cabral destaca neste capítulo os principais sambistas dessas agremiações,
todas do “grupo 1” das escolas de samba do Rio de Janeiro, tecendo comentários elogiosos às
renomadas escolas, as quais concentram compositores de “primeira categoria”.
Ao iniciar o capítulo “B de Banda de Ipanema” com uma composição sua e de Rildo
Hora que homenageia o bloco, Cabral explicita sua ligação com o universo carnavalesco
retratado. Aliás, o referido capítulo, escrito na primeira pessoa, não passa de uma exposição
de alguns elementos recorrentes da Banda de Ipanema, a exposição de fatos históricos é
marcada pelo predominante tom de testemunho. Cabral, nesse texto publicado originalmente
na Revista Homem em 1977, relata a história dessa instituição do carnaval de rua carioca e
lista padrinhos e madrinhas de grande renome da Banda de Ipanema, como Lúcio Rangel,
Nássara, Eneida de Morais e Carlos Alberto Ferreira Braga (João de Barro). Na primeira
fotografia apresentada no capítulo, é possível conferir a presença de Cartola e Albino
Pinheiro, fundador da Banda de Ipanema, à frente de uma faixa com os dizeres “Banda de
Ipanema saúda o povo e pede passagem”; a segunda fotografia mostra um grande número de
foliões na Banda de Ipanema. O panegírico de Cabral identifica na figura de Albino Pinheiro,
à época diretor do Teatro João Caetano, e no caráter carnavalesco dos demais componentes os
motivos da permanência da Banda de Ipanema, fundada em 1965, como marco cultural da
cidade do Rio de Janeiro. De acordo com Cabral, a criação da Banda de Ipanema promoveu
um renascimento do carnaval de rua “espontâneo”. Seu comentário vituperativo no
encerramento do capítulo direciona-se contra os críticos de carnaval que fazem “programas de
turista” ao privilegiar apenas o desfile das escolas de samba sem percorrer as ruas da cidade,
sem conhecer as manifestações de milhares de pessoas fantasiadas nos subúrbios (Cabral,
1979:25).
Três textos inéditos compõem a coletânea de Cabral: “G de Getúlio Vargas e a
Música Popular Brasileira”, censurado em 1975 quando seria publicado pela revista Cadernos
de Opinião, “Historinhas” e “F de Formigão”, que é, nas palavras do autor, um capítulo “feito
apenas de lembranças de Ciro Monteiro”. A caricatura de Getúlio Vargas com um charuto ao
lado de um rádio, de autoria de Nássara, abre o capítulo sobre as relações do presidente com a
música popular brasileira. O capítulo, após uma pequena introdução que questiona os motivos
de censura à publicação original do texto, trata do lockout das emissoras de rádio. A
Sociedade Brasileiro de Autores Teatrais (SBAT) pretendia o cumprimento da chamada Lei
Getúlio Vargas de 1928 para defesa dos interesses de artistas e autores. De acordo com a
proposta do então deputado gaúcho, deveriam ser válidas as disposições do Código Comercial
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história da historiografia: diálogos Brasil-Alemanha. Ouro Preto: EdUFOP, 2013.
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para a realização de espetáculos com fins lucrativos. Cabral lista os discos lançados após 1930
pela RCA Victor favoráveis à figura política de Getúlio Vargas, assim como apresenta as
letras de sambas e de marchinhas que promoveram uma inserção desse personagem político
no imaginário coletivo a partir do universo musical. As recepções promovidas no Palácio
Guanabara, com a presença de cantores populares, como Mário Reis, e as subvenções para
sociedade, ranchos e escolas de samba pelo prefeito do Rio de Janeiro em 1932, Pedro
Ernesto, são apontadas como exemplos da aproximação de Getulio Vargas com artistas da
música popular brasileira. O capítulo é encerrado com o samba da Mangueira, composto por
Pandeirinho para o carnaval de 1956, cujo título era “O grande presidente”.
Sobre Ciro Monteiro, Cabral dedica o capítulo “F de Formigão” para contar algumas
anedotas do cantor. As subdivisões do capítulo foram intituladas “Inéditos”, sobre sambas
inéditos de Ciro Monteiro, “Ciro e o avião”, “A vida dos objetos”, “Vasco x Flamengo”,
“Bis” e “A última”, sobre a piada que fez com o médico que perguntou o seu nome e o cantor
respondeu que era Roberto Carlos. No texto de introdução desse capítulo, há menção a duas
provas do nível de reconhecimento de Ciro Monteiro no meio musical, a declaração de
Vinicius de Morais que hesitaria entre Pixinguinha e Ciro Monteiro se alguém perguntasse
quem ele gostaria de ser e a enquete promovida por Flávio Porto na revista Manchete com 20
pessoas ligadas à música, na qual Ciro Monteiro figurou em todas as listas como um dos
maiores cantores brasileiros.
Conclusão
Não foi realizada uma análise da recepção do livro “ABC do Cabral – um desfile de
craques da MPB” neste trabalho, tampouco foram propostas generalizações a respeito do
papel intelectual de Cabral, pois o objetivo dessas reflexões era promover uma análise a
respeito de um objeto específico: o livro publicado no final da década de 1970 por um dos
principais autores da história de ampla circulação da música popular brasileira. As ações no
campo intelectual são orientadas pelas relações que os intelectuais mantêm em relação a seus
pares, portanto as autoridades intelectuais assumem o papel de organizadores em competição
pela consagração e pela legitimidade. Inserida nessa estrutura dinâmica de disputas, a escrita
da história pode ser compreendida a partir da historicidade da história (Certeau, 1982).
Ao comentar sobre o carnaval de rua nos subúrbios cariocas, Sérgio Cabral avisa ao
leitor que encontrará “um gordinho, de olheiras, bermudas e camisa do glorioso Clube de
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Regatas Vasco da Fama (recebida do zagueiro Fontana, depois de uma memorável vitória
sobre o Botafogo), um carioca, enfim que se assina Sérgio Cabral” (Cabral, 1979:25). O autor
nas entrevistas e nas anedotas mostra-se imbricado nas relações com aqueles que se tornariam
personagens de sua narrativa. Assim como na escrita da história da música empreendida pelos
autores da “primeira geração” de historiadores da música popular urbana, Cabral valoriza o
papel da “testemunha ocular”, transforma o seu testemunho em “ícone da verdade” (Sarlo,
2007). Esse material elaborado por memorialistas e cronistas, historiadores não acadêmicos
responsáveis pela escrita de narrativas da história da música popular brasileira passou a ser
tratado em pesquisas acadêmicas como fontes primárias ou secundárias, sendo necessário
analisar esse material a partir de um método de crítica da escrita da história (Napolitano,
2000).
Embora não seja uma obra elaborada com o intuito de propor uma definição sobre
Música Popular Brasileira, o “ABC do Cabral: um desfile de craques da MPB” pode ser
analisado em conjunto com reflexões contemporâneas sobre a narrativa da história da música
brasileira. No cerne dos debates acerca da construção dessa categoria, encontra-se o
enquadramento da memória para a criação de um panteão dos personagens da MPB
consolidado a partir das décadas de 1960 e 1970, privilegiando as trajetórias biográficas de
artistas apresentados como fundamentais para a história da música popular brasileira. A
emergência de intensas discussões sobre a cultura brasileira esteve atrelada, nesse contexto
histórico, às transformações na indústria cultural e à retomada da busca pela identidade
nacional, a qual se conjugava com a temática do “nacional” e do “popular” (Ortiz, 1991).
Os processos de legitimação de artistas, obras, movimentos e gêneros perpassam por
diversas instituições e agentes, porém a escrita da história é central como elemento de análise
para a compreensão da construção de um sentido das narrativas que englobam um contínuo
temporal homogêneo. Cabral em seu discurso histórico legitima um determinado conjunto de
artistas, procedimento “necessariamente diacrônico, marcado por descontinuidades,
monumentalizações, lugares de memória e invenção de tradições” (Napolitano, 2007: 167),
em um contexto histórico de redefinição dos conceitos “popular” e “nacional” com o advento
de uma cultura popular de massa (Ortiz, 1991). O “desfile de craques” apresenta nomes
consagrados e autores relegados, em relação a esses, pode-se concluir que o compromisso de
resgate de Cabral foi firmado apenas com a história daqueles músicos considerados
“autênticos” e “populares”.
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(ISBN: 978-85-288-0326-6)
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Perspectivas historiográficas sobre a música popular