3­ DIAGNÓSTICO DA SITUAÇÃO ATUAL O Centro Histórico de Belém atravessa hoje um dos períodos mais críticos de sua história. O legado cultural herdado, materializado na forma de um inestimável acervo arquitetônico e paisagístico, encontra­se submetido a um processo de degradação urbana que ameaça a sua própria sobrevivência. Tal situação coloca em risco não apenas o grande potencial turístico e econômico existente na área, mas a própria imagem identitária de Belém, marcada, de modo decisivo, pela relação historicamente estabelecida entre a cidade e a paisagem geográfica que lhe emoldura. Não se trata, no entanto, de um processo recente. Ao longo de pelo menos quatro décadas, o centro histórico de Belém esteve abandonado à própria sorte, tão desassistido pelo poder público, quanto submetido à miopia imediatista dos interesses econômicos presentes na área. Embora o Centro Histórico de Belém encontre­se tombado desde 1990 pela Lei Orgânica do Município, não se empreendeu, durante todo esse tempo, nenhuma ação integrada de revitalização urbanística visando reverter o processo em curso, a exemplo do que passou com outras cidades históricas brasileiras, entre as quais poderíamos destacar São Luís, Salvador, Recife, Diamantina e Rio de Janeiro. Ao propormos quatro décadas como recorte temporal para a análise da situação atual, pretendemos, justamente, abarcar o período, já referido pela pesquisa histórica, de retomada do crescimento econômico verificado a partir da abertura da rodovia Belém­ Brasília, nos anos 60. A dinâmica urbana deste processo, localmente capitaneada pela indústria da construção civil, assumiu a especulação imobiliária como uma de suas diretrizes principais, reproduzindo programaticamente em Belém a lógica da cidade moderna capitalista. Essa lógica instrumental, de resto compartilhada com as demais cidades brasileiras, assenta­se na própria negação da cidade tal como fora historicamente instituída. A cidade tradicional é representada como uma “camisa­de­força” que impede o desenvolvimento das forças produtivas presentes na cidade moderna. Em nome desta lógica assistimos, durante décadas, a destruição massiva e irreversível do patrimônio edificado de nossas cidades. Na área de estudo do presente trabalho, por se tratar de um centro comercial, o processo geral acima descrito encontra­se associado às vicissitudes do fenômeno da especialização monofuncional do espaço urbano. Os problemas decorrentes deste tipo de segregação espacial dos usos do solo são bem conhecidos. Tornada hegemônica, isto é, assumindo o comando das ações, a atividade comercial passa a ditar a forma de gestão do espaço urbano. Prevalecem os interesses econômicos imediatos, em detrimento de outros usos possíveis do espaço. Ao passante, compulsoriamente transformado em consumidor, não resta outra alternativa senão conformar­se e submeter­se às regras do jogo. De hegemônica, a atividade comercial se torna exclusiva, afastando da área o uso residencial. Desfaz­se o complexo e delicado equilíbrio entre as funções urbanas, responsável pelos índices de vitalidade verificados nos tecidos urbanos tradicionais. Os horários da atividade comercial condicionam o ritmo dos usos do espaço. O movimento da vida urbana começa quando abrem­se as lojas e cessa quando elas se fecham. Fora do horário comercial essas áreas, totalmente infraestruturadas e equipadas, permanecem desertas ou sub­utilizadas. A sensação de insegurança gerada re­alimenta o processo de esvaziamento a que estão sujeitas essas áreas em tais circunstâncias. Contando com o beneplácido da própria
legislação urbanística (ainda vigente na maioria das cidades brasileiras) que preconiza e incentiva a segregação espacial dos usos do solo através do zoning funcional, esta apropriação exclusivista do espaço pela atividade comercial constitui, em última análise, uma das formas veladas de privatização do espaço público em curso na cidade moderna. Os investimentos dispersamente realizados, ao longo das últimas décadas, pela iniciativa privada no bairro do Comércio ­ parte integrante do Centro Histórico de Belém, expressam de modo inequívoco os processos de destruição do patrimônio cultural e privatização do espaço público, acima descritos. Na ausência de mecanismos eficazes de proteção e salva­guarda do patrimônio histórico por parte do poder público, a tendência assumida foi a descaracterização indiscriminada das edificações. As intervenções empreendidas assumiram graus de renovação diferenciados, conforme o montante dos recursos disponíveis para cada caso, podendo ir desde a intervenção localizada para alteração das fachadas até a completa substituição das edificações existentes. A supressão da modenatura arquitetônica das fachadas, sobretudo com relação ao pavimento térreo das edificações, passou a ser a opção preferencial dos proprietários das lojas comerciais. Esta opção, certamente menos onerosa, permitia “modernizar” a entrada do estabelecimento e ainda, como se verifica na maioria dos casos existentes na área em questão, ocultar o pavimento superior (não reformado) com painéis publicitários (estruturas metálicas fixadas na fachada) que se multiplicaram, poluindo visualmente a cenografia urbana constituída pelos conjuntos arquitetônicos. fig. 9/10 – Fachadas descaracterizadas A alteração das fachadas dos estabelecimentos comerciais cumpria ainda uma outra função imprescindível dentro da lógica imediatista que presidia essas intervenções. A
abertura dos vãos térreos das fachadas correspondia aos objetivos de “trazer a rua (e os clientes) para dentro das lojas” e, ao mesmo tempo, “levar a loja (e as mercadorias) para a rua”. Aliás, no que se refere à segunda assertiva, os lojistas não se diferenciam em nada dos camelôs que disputam, com suas barracas armadas nas áreas públicas, a atenção dos incautos. Ao suprimir a fachada do seu estabelecimento, o lojista estava eliminando, também, o elemento arquitetônico responsável pela separação física e simbólica entre a loja e a rua. Deste modo, o comércio passa a tratar o espaço público como extensão da atividade privada. O urbano, coisa pública por excelência, é colonizado e apropriado pelo comércio, dissolvendo­se deste modo, as fronteiras tradicionalmente estabelecidas entre o público e o privado. A rua se torna, por assim dizer, um complemento “natural” das lojas. E o cidadão, reduzido à condição de mero cliente, vê­se constrangido e, mesmo, persuadido, a abrir mão de seu direito à cidade. Ao quadro acima apresentado deve­se ainda acrescentar os graves problemas acarretados pelo recrudescimento do comércio informal, recentemente verificado na área de estudo. A desaceleração do crescimento e o grau de endividamento da economia nacional, decorrentes do modelo neoliberal adotado pelo governo federal ao longo das últimas décadas, levou para as ruas do centro histórico de Belém algumas centenas de trabalhadores desempregados, estabelecidos como vendedores ambulantes, que encontraram no comércio informal sua forma de sustento. fig. 11/12 – Ambulantes, Rua Cons. João Alfredo Os transtornos provocados pela presença dos camelôs no eixo das ruas Cons. João Alfredo e Santo Antônio vêm contribuindo para acelerar o processo de degradação urbana em curso. As barracas ocupam o leito das vias de forma desordenada, constituindo verdadeiras “barricadas” que impedem a livre circulação dos pedestres. Se, por um lado, devemos considerar atentamente os condicionantes sócio­econômicos que se encontram na
origem do problema do comércio informal, deve­se igualmente reconhecer que se trata de outra forma de privatização do espaço. A obstrução do ir e vir, bem como a apropriação privada das ruas pela atividade comercial (seja ela formal ou informal), reduzem as possibilidades de utilização coletiva do espaço público, produzindo uma indesejável inversão nos modos tradicionais de funcionamento da cidade. fig. 13 – Ambulantes, Tv. Sete de Setembro O processo de degradação ambiental, aliado à descaracterização do conjunto arquitetônico e paisagístico do centro comercial de Belém, acabaria, finalmente, por afugentar uma parte de sua clientela tradicional, constituída por estratos das classes média e alta. O capital simbólico representado pelo patrimônio cultural do centro histórico sofria sucessivas “baixas”, contribuindo para a sua acentuada desvalorização e perda de atratividade. Para as classes de maior poder aquisitivo e, portanto, mais exigentes, surgiam novas e atraentes opções de lazer e consumo em outras áreas da cidade, como as lojas de grife da rua Braz de Aguiar e os shopping­centers. Pouco a pouco, o centro comercial foi se tornando um mercado predominantemente voltado para as classes populares. A proximidade com o conjunto do Ver­o­Peso, uma das mais tradicionais feiras populares do país, reforçava e, numa certa medida, justificava essa tendência. Sob essa aparente “tendência de mercado” consumava­se, entretanto, um arranjo socialmente pactuado que apontava para a manutenção do processo de degradação urbana da área. Numa sociedade perversamente estratificada como a nossa, marcada por profundas desigualdades sociais, as áreas destinadas às classes de menor poder aquisitivo tendem a receber menor atenção por parte do poder público. Não por acaso, as intervenções de restauro ou revitalização de áreas históricas, quando ocorrem, tendem a promover, como decorrência direta da valorização dos espaços re­qualificados, a chamada “expulsão branca” de seus usuários tradicionais. A perspectiva de um governo municipal comprometido com os interesses dos setores populares abre, no entanto, novas possibilidades para o enfrentamento das questões acima
apresentadas. Disso constitui confirmação a restauração da Feira do Ver­o­Peso e do Mercado de Peixe, recém concluída pela Prefeitura de Belém. Não será, entretanto, isento de dificuldades esse enfrentamento. O adiantado estado de degradação do patrimônio arquitetônico e paisagístico da área de estudo deste projeto, agravado sobremaneira pelas conseqüências das sucessivas crises econômicas vividas pelo país fornecem, por si só, uma medida do desafio colocado.
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