UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013
Universitas
REVISTA FANORPI DE DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA
N. 2,
2013
SANTO ANTÔNIO DA PLATINA
Universitas
Santo Antônio da Platina
n. 2
p. 1-235
UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013
2013
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UNIVERSITAS – Revista FANORPI de Divulgação Científica / FANORPI/UNIESPFaculdade do Norte Pioneiro. – n. 2 (2013)
050
Santo Antônio da Platina: FANORPI/UNIESP, 2013
UN588
Publicação anual
ISSN 2316
1. Administração – Periódicos. 2. Contabilidade – Periódicos. 3. Comunicação Social
– Periódicos. 4. Direito – Periódicos. 5. Pedagogia – Periódicos. 6. Marketing – Periódicos.
7. Modas – Periódicos. – 8. Psicologia – Periódicos.
I. FANORPI/UNIESP-Faculdade do Norte Pioneiro.
CDD 050.05
CDU 025(05)
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PIONEIRO, sediada na cidade de Santo Antônio da Platina, PR, com o
objetivo de divulgação de trabalhos dos corpos docente e discente da
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Mateus Faeda Pellizzari – FANORPI
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NÚCLEO DE APOIO TÉCNICO
Rondinele Aparecido Ribeiro – Revisão da língua portuguesa
Newton de Camargo Braga – Editoração e revisão de inglês
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COMUNICAÇÃO SOCIAL
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DESIGN DE MODAS
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DIREITO
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Vanessa Padilha Catossi
MARKETING
Neimar Leonardi Minardi
PEDAGOGIA
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SUMÁRIO
Contribuições da psicanálise e das psicoterapias de orientação psicoanalítica em
um caso de adicção – Ana Carolina Barreto BRAGA . . . . . . . . . . . . . . . .
11
Aplicabilidade direta das normas de direito fundamental às relações privadas –
Lucyellen Roberta Dias GARCIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
33
Acesso à justiça em face à litigância de má-fé por meio da assistência judiciária
gratuita – Danielle Augusto GOVERNO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
63
A incidência do ICMS na circulação de mercadorias via internet – Nayara
Marques LONGHINI . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
77
Casamento entre pessoas do mesmo sexo à luz da Constituição Federal e da
jurisprudência – Marlon Franco MACIEL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
..
103
Sobre guris e pivetes: as canções de Chico Buarque e o Estatuto da Criança e do
Adolescente – Marilu Martens OLIVEIRA e Vívian Martens Oliveira
Banks dos SANTOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 125
Considerações acerca do universo machadiano: Memórias Póstumas de Brás
Cubas na literatura e no cinema – Rondinele Aparecido RIBEIRO . . . . . 145
Ensino superior para quê – Maria Suely Fernandes da SILVA . . . . . . . . . 163
Justiça fiscal como fonte de promoção da dignidade no estado constitucional –
Bruna Geovana Fagá TIESSI . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 181
A impossibilidade do reexame necessário de sentenças ilíquidas em Juizados
Especiais Federais e a Súmula 490 do STJ – Tiago TONDINELLI . . . . . 203
O direito à educação em consonância com o princípio da dignidade humana –
Tânia Maria ZANETTI . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 215
Normas para publicação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 229
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EDITORIAL
Olá, leitor.
Prazerosamente, eis-nos, uma vez mais, retomando fala sobre
o mesmo tema, ao fim e ao cabo, sem muitas variações. Seria tarefa
difícil – senão impossível –, tentar dimensionar a satisfação do Corpo
Editorial da nossa revista UNIVERSITAS consequente à recepção de seu
número inaugural. Em outra oportunidade, em desabafo incontido, já
disséramos: para a pesquisa, o momento que vivemos é de
perplexidade e desencanto. Os raros cenáculos que se dedicam ao
estudo dos grandes dilemas sociais e científicos e as escassas
publicações que divulgam seus resultados representam, cada vez mais,
exceções nunca desejadas no campo investigatório. Não sabemos
exatamente para onde vamos. Com alguma segurança, temos a
constatação de que a história nos trouxe até este ponto. E daí? Seria
isso suficiente? Não! É muito pouco contentar-se com “estar”, sem
“ser”. Comodismo e estagnação grassam em todos os setores da vida
acadêmica, se a compararmos com alguns países. Por tal negativo
prisma, uma conclusão avulta com clareza: se as comunidades
universitárias pretendem um futuro com garantias, não pode ser pelo
prolongamento do presente. E é “por nos alimentarmos diariamente
do tormento de saber pouco que não temos a faculdade do descanso,
ou a prerrogativa da acomodação, e, como expiação, sempre nos
deverá ser negado o direito de viver em paz, até que adotemos uma
nova postura”, advertiu com propriedade o professor Fachin. A célere
correção da atual rota, a caminho do nada, é necessária e urgente, sem
desperdício das alternativas que se nos apresentam. A assunção de
compromissos definitivos com o estudo e a pesquisa equivalem a um
pacto com o amanhã, que não pode nem deve esperar mais. Não é
outra a pregação que devemos ter, em constante busca de eco.
Levados pelo propósito de manter vivo um centro de
recepção, triagem e divulgação de produções científicas, nas mais
diferentes áreas, logo no início o bom senso nos indicou linha editorial
a ser seguida: abertura de espaço para professores e alunos, tanto da
FANORPI como de outras instituições, bem como de colaboradores em
áreas correlatas. Nesse passo, impulsionados por esse ideal é que
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trazemos a público nosso segundo número, graças à onipresença de
nossos abnegados colaboradores, a quem, na oportunidade, deixamos
expressos nossos agradecimentos. Mais uma vez nos fizemos ao mar,
com absoluta consciência das dificuldades que iríamos encontrar. E
foram muitas, em todos os sentidos. Entretanto, independentemente
do mau tempo, de ventos contrários, da alternância entre tormentas e
calmarias, do cansaço deixado pela travessia e mesmo do canto das
sereias que tentaram desvios, graças a nossos intimoratos argonautas,
uma vez mais o audacioso barco da UNIVERSITAS chegou a seguro e
bom porto. Com isso, uma vez mais restou provado que, dentre todas,
a maior força que existe ainda é aquela que nasce da união motivada,
como a que sempre encontramos na comunidade acadêmica da
FANORPI.
Nossa UNIVERSITAS, a princípio despretensiosa, buscando
apenas preencher lacuna no âmbito universitário, desde logo se
constituiu em precioso agente catalisador de produções científicas,
responsável pelo nascimento de uma equipe de professores, alunos,
profissionais liberais e pesquisadores das mais diversas áreas. Nessa
feliz rota, com agradável surpresa, revelou um grupo de estudiosos,
interessados em colaborar efetivamente para a consolidação de uma
nova postura educacional que, além de científica, vem demonstrando
louvável preocupação didático-pedagógica em suas pesquisas.
Assim, nesta era em que, exitosa experiência em Londres nos
dá conta de que robôs preparam comida e o delivering é feita por drones
(veículos aéreos não tripulados); a nanotecnologia vem dominando a
pesquisa científica, em busca de melhor qualidade de vida para o
homem, já com resultados auspiciosos; em que o livro impresso – isso
não sem muito saudosismo –, aos poucos vai cedendo lugar aos
avanços da informática, enfim, diante de uma verdadeira revolução
silenciosa, em todos os setores, é profundamente gratificante o
lançamento de mais um número de uma revista científica. Esperamos
– em reiteração – a mesma simpática acolhida e proveito, ora
acompanhados de nossos agradecimentos e votos de boa leitura.
Nelson Borges
Editor
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CONTRIBUIÇÕES DA PSICANÁLISE E DAS PSICOTERAPIAS DE
ORIENTAÇÃO PSICOANALÍTICA EM UM CASO DE ADICÇÃO
Ana Carolina Barreto Braga*
RESUMO
Este artigo inspirou-se em estudo desenvolvido a partir de um caso
clínico, cujos atendimentos tiveram início em abril de 2012, no Centro
de Educação para a Saúde (CEPS), do Centro Universitário Filadélfia
(UNIFIL). Considerando a incidência da toxicomania, sua demanda
clínica, a necessidade de compreender as diversas formas de
manifestações sintomáticas decorrentes dessa prática e as possíveis
maneiras de manejá-las, intentou-se demonstrar a importância e a
contribuição da Psicanálise e psicoterapias de orientação psicanalítica
como tratamento que possibilita a recuperação, abstinência e cura de si
mesmo do sujeito adicto. A apreensão do fenômeno toxicomania
realizou-se pela revisão de literatura, com o uso de referencial da
Psicanálise e da Psicossomática psicanalítica. Essa é uma pesquisa
qualitativa que se utiliza do método da construção do caso clínico.
Serão descritos os principais conceitos psicanalíticos utilizados para
compreensão do fenômeno da toxicomania e na análise do caso
clínico.
Palavras-chave: Psicanálise. Psicoterapia. Toxicomania. Adicção.
ABSTRACT
This article was inspired by a study from a clinical case, whose attendance began in April 2012, at the Center for Health Education (CEPS)
of the University Center Philadelphia (UNIFIL). Considering the incidence of drug addiction, its clinical demand, the need to understand
the various forms of symptomatic manifestations resulting from this
*
Especialista em Residência em Psicologia Clínica e da Saúde, pelo Centro Universitário Filadélfia (UniFil, 2013); graduada em Psicologia (UniFil, 2011) [email protected]
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practice, and the possible ways to handle them, an attempt to demonstrate the importance and contribution of psychoanalysis and psychoanalytic psychotherapy as a treatment that enables the recovery, abstinence and self-healing of the individual addict. The seizure of the addiction phenomenon took place by means of literature review, using
the reference of Psychoanalysis and Psychoanalytic Psychosomatics.
This is a qualitative research which uses the method of construction of
the clinical case. It will describe the major psychoanalytic concepts
used in the understanding of the phenomenon of drug addiction and
in the analysis of the clinical case.
Key words: Psychoanalysis. Psychotherapy. Drug addiction.
Addiction.
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CONTRIBUIÇÕES DA PSICANÁLISE E DAS PSICOTERAPIAS DE
ORIENTAÇÃO PSICOANALÍTICA EM UM CASO DE ADICÇÃO
Ana Carolina Barreto Braga
1 INTRODUÇÃO
Este artigo baseia-se em caso clínico cujos atendimentos foram
iniciados em abril de 2012 no Centro de Educação para a Saúde
(CEPS), do Centro Universitário Filadélfia (UNIFIL), e contou com a
valiosa supervisão da Dra. Denise Hernandes Tinoco. O CEPS realiza
atendimentos de Psicologia e Psiquiatria, com psicólogos residentes,
credenciados pelo SUS.
Considerando a incidência do fenômeno toxicomania e sua
demanda clínica, a necessidade de compreender as diversas formas de
manifestações sintomáticas que surgem atualmente nessa prática,
dentre elas, o fenômeno da drogadição, e sobre as possíveis maneiras
de manejá-las, levanta-se o questionamento: qual a importância e a
contribuição da Psicanálise e das psicoterapias de orientação
psicanalítica como tratamento que viabiliza a possibilidade de
recuperação, abstinência e a cura de si mesmo na questão da
drogadição?
Foi em torno desta questão que o presente estudo se
desenvolveu no intuito de, a partir das respostas aqui encontradas,
contribuir e enriquecer a prática de todos os profissionais envolvidos
com essa problemática e que utilizam a Psicanálise como referencial
teórico para suas intervenções e propostas de tratamento do sujeito
adicto.
Dessa forma, tornam-se relevantes novos estudos que
abordam o complexo fenômeno toxicomania na perspectiva
psicanalítica a partir da prática clínica e suas propostas de tratamento e
recuperação do sujeito considerado como dependente de drogas no
contexto atual.
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Pretende-se demonstrar neste estudo como a Psicanálise e as
psicoterapias de orientação psicanalítica podem contribuir no
tratamento, possibilitar a recuperação, sustentar o período da
abstinência e oferecer outra saída para a questão da toxicomania, a
partir da elaboração de um caso de adicção, que serviu de referência
para a análise e conclusão desta pesquisa.
O objetivo geral deste trabalho é fazer um estudo psicanalítico
do fenômeno da toxicomania, promovendo um recorte nesse campo
para promover um marco clínico e teórico a partir do qual seja
possível discutir suas possíveis contribuições no tratamento dos
sujeitos adictos. Como objetivo específico, demonstrar por meio do
método de pesquisa qualitativo na construção do caso clínico –
fundamentado teoricamente desde os pressupostos freudianos e de
outros conceituados autores da psicanálise – a importância e a
contribuição da Psicanálise e da psicoterapia de orientação
psicanalítica, como pilares teóricos e metodológicos que visam a
ampliar as possibilidades de recuperação, abstinência e cura de si
mesmo.
2 METODOLOGIA
Este trabalho é uma pesquisa qualitativa que se utiliza do
método da construção do caso clínico. Nele, serão descritos os
principais conceitos psicanalíticos utilizados para a compreensão do
fenômeno da toxicomania e na análise do caso clínico desse estudo.
Os dados de pesquisa utilizados foram os prontuários da
paciente, contendo o histórico clínico, a evolução do tratamento e
informações sobre o núcleo familiar. Também foram utilizados os
relatórios de algumas sessões e registros de memória de entrevistas
realizadas com sua mãe, bem como relatos da própria paciente. Todos
esses elementos foram relacionados à problemática discutida neste
trabalho e analisados por meio das técnicas psicanalíticas de atenção
flutuante, análise da transferência, contratransferência e das defesas
egóicas da paciente.
A apreensão do fenômeno toxicomania realizou-se por meio
da revisão bibliográfica, utilizando o referencial da Psicanálise e da
Psicossomática psicanalítica. Muitos autores seguiram a mesma direção
para a compreensão dessa problemática, bem como seus
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desdobramentos, utilizando da teoria psicanalítica desde sua fundação
até os dias de hoje.
De acordo com Chaves (2006, p. 108), o conceito de
transferência sofre transformações ao longo da obra de Freud
aproximando-se cada vez mais do centro da experiência psicanalítica.
Segundo a autora, o fenômeno apresenta-se em três facetas: repetição,
resistência e sugestão. Como repetição, atesta a existência do
inconsciente, revela seu funcionamento e permite observá-lo em seu
estado bruto não traduzido em palavras. A faceta da repetição ainda
inclui o analista numa das séries psíquicas constituídas pelo analisando,
que, a partir da experiência analítica, deve ser tomado como uma
atualização das suas relações primordiais. Freud (1996c, p. 445)
ilustrou o fenômeno quando comparou a transferência à camada de
troca de uma árvore, entre a madeira e a casca, a partir do qual deriva a
nova formação de tecidos e o aumento da circunferência do tronco.
Como resistência, torna-se um obstáculo à análise por
interromper as associações, permitindo ao paciente evitar recordar os
conteúdos recalcados, repetir marcas das primitivas relações afetivas
com o analista, e atuar no setting terapêutico. Por sugestão, entende-se
a forma de influir sobre o paciente mediante os fenômenos
transferenciais, que contribuem para a influência do analista sobre o
paciente, para que este seja capaz de suportar os sofrimentos
desagradáveis e persistir no tratamento (CHAVES, 2006, p. 108-9).
Nas palavras da autora:
A cura psicanalítica se realizará fundamentalmente no
campo da transferência. Se a finalidade da análise é propiciar
a emergência da simbolização, ela se realiza mediante a
análise da resistência, pela colocação da repetição no campo
da transferência, onde a significação encontra a condição de
possibilidade para se articular. O campo analítico está assim
circunscrito entre o sentido e a força pulsional. E o analista
não pode se contentar em pensar as relações entre analista e
analisando em termos racionais. Tem que se entregar à
experiência transferencial, para manter as coordenadas do
espaço analítico e para que a simbolização possa se articular.
(CHAVES, 2006, p. 109)
A contratransferência para McDougall (1996, p. 100), em
acordo com o que formulou Freud, é o afeto positivo ou negativo
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despertado por determinados analisandos ou por determinado
discurso, proveniente de diversas fontes e que diz respeito ao analista.
A técnica da atenção flutuante, conforme descrita por Freud
(1996a, p. 125-6), rejeita o emprego de qualquer recurso especial,
como o de tomar nota, por exemplo, consiste apenas em não dirigir
reparo para algo específico e em manter a atenção uniformemente
suspensa em face de tudo o que se escuta, em contrapartida da
exigência feita ao paciente de que comunique tudo o que lhe ocorre,
sem crítica ou seleção, regra fundamental da Psicanálise de associação
livre.
De acordo com Freud (1996b, p. 427):
a escolha objetal que se faz após o estádio narcísico pode
realizar-se segundo dois tipos diferentes. Um, segundo o tipo narcísico, no qual o próprio ego da pessoa é substituído
por outro, que lhe é tão semelhante quanto possível; e o outro, segundo o tipo ligação, no qual as pessoas que se tornaram valiosas, porque satisfizeram suas necessidades vitais
básicas, são escolhidas como objetos pela libido.
Para o autor, “[...] uma intensa fixação ao tipo narcísico de
escolha de objeto deve ser incluída na predisposição ao
homossexualismo manifesto” (FREUD, 1996b, p. 427).
Freud (1996b, p. 427-8) falou sobre a hipótese da libido objetal
se transferir para a libido do ego e, portanto, ser a única capaz de
resolver o enigma daquilo que se denominavam neuroses narcísicas,
porém uma retirada da libido objetal para dentro do ego não seria
diretamente patogênico, a exemplo do que ocorria no sono. Assim,
chegou-se à conclusão de que se tratava de algo bem diferente quando
determinado processo, muito vigoroso, força uma retirada da libido
dos objetos, como constatado – posteriormente – na paranoia e na
melancolia (quando perdiam o objeto sexual ou quando o objeto se
tornava sem valor para os sujeitos, por sua própria falha).
Compreendeu-se que o melancólico, na realidade, retira do objeto sua
libido, mas que, por um processo de identificação narcísica, o objeto
se estabelece no ego, projetando-se sobre o ego. O que ocorre a partir
disso é que o ego da pessoa então é tratado à semelhança do objeto
que foi abandonado e é submetido a todos os atos de agressão e
expressões de ódio vingativo, anteriormente dirigidos ao objeto.
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Nesses casos, a libido que se tornou narcísica não consegue
retornar aos objetos. Essa interferência na mobilidade, certamente,
torna-se patogênica, parecendo não ser tolerada uma acumulação de
libido narcísica além de determinado nível. Freud (1996b, p. 428)
afirma que na melancolia, bem como em outros distúrbios narcísicos,
emerge, com acento especial, um traço particular na vida emocional do
paciente – aquilo que, de acordo com Bleuler, foi acostumado a se
descrever como ambivalência, o que significa que estão sendo
dirigidos à mesma pessoa sentimentos contrários amorosos e hostis.
Ainda de acordo com Freud (1996d, p. 375), a libido encontra
as fixações necessárias para romper as repressões nas atividades e
experiências da sexualidade infantil, nas tendências parciais
abandonadas, nos objetos da infância que foram abandonados.
Contudo, seus derivados foram mantidos com alguma intensidade na
fantasia e é a esses, por conseguinte, que a libido retorna. Dessa
forma, a retração da libido para a fantasia é um estádio intermediário
no caminho da formação dos sintomas (introversão).
Os sintomas são substitutos da satisfação frustrada, realizando
uma regressão da libido a épocas anteriores do desenvolvimento,
regressão a que necessariamente se vincula um retorno a estádios
anteriores de escolha objetal ou de organização (FREUD, 1996d, p.
367).
Freud (1996b, p. 422) afirmou que o ponto fraco no
desenvolvimento libidinal das neuroses narcísicas situa-se numa fase
diferente. A fixação determinante, que permite a irrupção que leva à
formação dos sintomas, situa-se em outra posição, provavelmente na
fase de narcisismo primitivo, ao qual a demência precoce retorna em
seu resultado final. Ele considerou surpreendente, no caso de todas as
neuroses narcísicas, ter de supor que os pontos de fixação da libido
remontam a fases muito anteriores do desenvolvimento, em
comparação com o que se observa na histeria e na neurose obsessiva.
Orientou-se pelos conceitos obtidos em seus estudos das neuroses de
transferência por se mostrarem adequados na compreensão das
neuroses narcísicas, considerados por ele, na prática, tão mais graves.
A experiência de Gurfinkel (1995), trabalhando em uma
instituição de toxicômanos segundo o modelo de Comunidade
Terapêutica, trouxe inquietações e uma série de perguntas. O autor se
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perguntava sobre uma maneira de entender, em termos de
investimentos pulsionais, o vínculo do toxicômano com a droga. Entre
os questionamentos que precederam o início de sua pesquisa, esse
tem, a meu ver, especial interesse para o presente trabalho: o autor
pretendia compreender como pensar a toxicomania do ponto de vista
da Psicanálise.
Gurfinkel (1995) escolheu explorar as diversas configurações
que a teoria das pulsões foi tomando, buscando subsídios para
compreender o fenômeno dos usos de droga e da toxicomania. Ao
tomar a toxicomania como um tipo particular de adicção, e não apenas
como uma modalidade específica de uso de drogas, ele encontrou
caminho fecundo para a abordagem propriamente psicanalítica do
tema.
Gurfinkel se propôs a trabalhar a noção de toxicomania em
seus dois elementos constitutivos, drogas e adicções, no intento de
compreendê-los separadamente. Para o autor, o maior problema
metodológico no trabalho clínico com a questão das drogas foi a
dificuldade de haver uma aproximação com o toxicômano que não
fosse simplesmente externa, adaptativa, “do lado da realidade”
(GURFINKEL, 1995, p. 17).
Nos estudos de Gurfinkel (1995, p. 245), as relações entre
pulsão de morte e narcisismo conduziram à revisão do significado do
autoerotismo e da teoria da perversão em sua articulação com a
toxicomania, partindo da vinculação das adicções com a atividade
masturbatória, sugerida por Freud, para compreender essa relação. O
que percebeu, em McDougall, na concepção contemporânea de
perversão, foi “[...] uma reformulação que acrescenta, no aspecto
qualitativo, conflitos de ordem mais arcaica em que está em jogo a
identidade subjetiva e, do ponto de vista quantitativo, o problema
econômico de uma atividade adictiva ou compulsiva” (GURFINKEL,
1995, p. 246).
A partir desse ponto, passa-se a abordar, com certa ênfase, os
conceitos desenvolvidos por McDougall em seus estudos baseados em
outros autores psicossomatistas importantes como Pierre Marty,
M’Uzan e Sifneos por ter sido a autora privilegiada na análise do caso
clínico de que trata este trabalho. As razões que nos levaram a isto são
especialmente a atualidade de seu trabalho, sua dedicação ao tema
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adicção e sua enorme contribuição para a prática clínica com sujeitos
adictos.
McDougall (1996, p. 90) é taxativa ao dizer que, caso o bebê
seja tratado apenas como objeto de satisfação narcísica da mãe, correrá
o risco de ter problemas em sua constituição psíquica precocemente e
em estágios posteriores de desenvolvimento. A autora se referiu à fase
em que surgem os fenômenos transicionais descritos por Winnicott.
Grosso modo, é o período em que a criança elege determinados
objetos que a ajudam a suportar sentimentos de angústia diante da
ausência materna por certo período de tempo até que, gradualmente,
os possa abandonar. No adulto, falhas nessa fase podem ocasionar o
que McDougall denominou de potencial de criação de objetos
transicionais patológicos ou objetos transitórios, sob a forma de
substâncias, das quais dependerá de forma adicta, ou de
relacionamentos, em que a dependência ocorrerá como condutas
sexuais adictivas.
Avaliando os próprios sentimentos transferenciais, despertados
na situação analítica por pacientes com um modo característico de
funcionamento psíquico que eliminava grande parte das experiências
emocionais, McDougall passou a se interessar e a observar, em muitos
casos, como as experiências afetivas abalavam os indivíduos e
determinavam a emergência de problemas psicossomáticos e adictivos
(MCDOUGALL, 1996, p. 99).
McDougall (1996, p. 100) percebeu que determinados sujeitos,
em circunstâncias particulares, eliminavam indícios de sentimentos
profundos, indicando que vivências que estiveram na origem de
emoções intensas ficavam inacessíveis à consciência, tornando
impossível elaborá-las psiquicamente. Notou que o traço de
personalidade comum a esses pacientes era de manterem uma conduta
fria em suas relações, regida por regras e normas sociais e sem
manifestação de sentimentos, como se precisassem recusar sua
dependência em relação aos outros.
A autora cunhou o termo desafetação e o descreveu como um
mecanismo de defesa. O prefixo des- contém a ideia de separação ou
perda e sugere metaforicamente que o sujeito desafetado está
psiquicamente separado de suas emoções, podendo ter perdido a
capacidade de manter contato com suas realidades psíquicas. E
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prossegue afirmando que perder a capacidade de se conectar com as
próprias emoções é um problema psíquico grave. Na situação analítica,
a desafetação surge no discurso, em palavras desafetadas, com
ausência de sua função pulsional, apresentando-se esvaziadas de
significado. O discurso pode ser inteligível, intelectualizado, porém
desprovido de afeto (MCDOUGALL, 1996, p.104- 05).
A autora preferiu o termo desafetação a outros mais difundidos
atualmente – como pensamento operatório, alexitimia, neurose de
comportamento –, para ressaltar que vivências prematuras de emoções
intensas ameaçam a constituição subjetiva desses sujeitos, que para
manter sua integridade psíquica, desenvolveram um modo de se
defender que pudesse evitar lembranças de experiências traumáticas
portadoras da ameaça de aniquilamento (MCDOUGALL, 1996, p.
105).
As defesas mobilizadas para enfrentar essa ameaça de aniquilação psíquica impelem um bom número de adultos – através do abuso das drogas, do alcoolismo, do suicídio – a
realizar aquilo que, em sua infância, inconscientemente acreditavam que pudesse abrir para eles a única passagem em
direção à liberdade. (MCDOUGALL, 1996, p. 98)
Sobre o funcionamento mental que gera esse estado de
desafetação, McDougall formulou as seguintes hipóteses: os fatores
dinâmicos formam a base da existência de uma brecha psíquica entre
as emoções e as representações mentais às quais elas estão ligadas e os
recursos econômicos, por meio dos quais funciona essa maneira de
viver, excluem os sentimentos, as vivências afetivas, e dissimulam o
poderoso mecanismo defensivo envolvido em seu funcionamento
(MCDOUGALL, 1996, p. 106).
Na impossibilidade de elaborar psiquicamente uma emoção,
ela é descarregada no corpo, como na primeira infância, o que, afirma
McDougall (1996, p. 107), “leva à ressomatização do afeto”,
reduzindo-a a uma mensagem de ação não verbal. Para a autora, os
indivíduos que tratam a emoção dessa forma são predispostos a
explosões somáticas de todos os tipos, especialmente, quando surgem
ocasiões de fortes impactos emocionais, como acidentes, nascimentos,
luto, divórcio, abandono.
McDougall (1996, p.107) diz que nessas ocasiões as soluções
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adictivas falham e não permitem ao sujeito esquecer seus sentimentos,
revelando a contradição do objeto adicto, já que nenhum objeto real
pode substituir o objeto fantasístico, que falhou ou sofreu danos no
mundo interno.
Ao comparar os objetos transicionais às substancias adictivas,
McDougall ressalta que:
os indivíduos, que funcionam com uma economia psíquica
adictiva a fim de fazerem desaparecer a dor psíquica, não
dispõem de uma representação interna da mãe como objeto
introjetado capaz de dispensar cuidados, mãe com a qual eles poderiam se identificar nas situações de tensão ou conflito. [...] [A] fragilidade interna torna-se maior pela falta (igualmente importante) do objeto paterno poderoso introjetado. (MCDOUGALL, 1996, p. 109-10)
Para McDougall (1996, p. 110-11), a experiência da ruptura
com determinada adicção permite ao analisando fazer descobertas
durante o processo analítico e considera que as recaídas são antes a
regra do que a exceção e que podem ser importantes para o analisando
elaborar os sentimentos de feridas narcísicas e libidinais que o
arrastam para a armadilha da adicção.
Com os estudos desenvolvidos por McDougall, é possível
pensar na questão da toxicomania e do sujeito adicto, propriamente
dito, de uma maneira ampliada e com enormes possibilidades
terapêuticas no contexto da perspectiva da psicossomática
psicanalítica.
3 APRESENTAÇÃO DO CASO
A paciente aguardava atendimento inscrita na lista de espera de
procura espontânea do CEPS. Nessa lista, os únicos dados disponíveis
aos residentes são o nome, a idade e o telefone do paciente.
Por questões éticas, o verdadeiro nome da paciente será
omitido e passará a ser identificada como P (de paciente). As iniciais
dos nomes das demais pessoas eventualmente mencionadas também
são fictícias.
Foram marcados 130 atendimentos, dos quais a paciente
compareceu a 103 sessões, portanto, faltou a 27.
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No início de seu atendimento, em março de 2012, P contava
38 anos. Era filha temporã em uma família de seis filhos, com mãe
aposentada e pai falecido há cerca de um ano. Domiciliada em
Londrina, morava com a mãe, possuía formação em curso superior e
estava desempregada na época. Apresentava um histórico de abuso de
diversos tipos de drogas ao longo de 28 anos.
4 ANÁLISE DO CASO
Quando inquirida sobre a razão para estar desejando
atendimento psicológico, P respondeu: “Minha mãe. Foi por causa
dela que eu vim”.
P relatou se drogar desde os dez anos de idade, usando
preferencialmente crack e cocaína, e, eventualmente, maconha, bebidas
alcoólicas e cigarros. Fazia uso de medicamentos controlados de forma
indiscriminada para amenizar as reações físicas, como insônia e
inapetência, e psíquicas, como alucinações e delírios persecutórios
causados pelo uso constante de drogas.
Sua opinião sobre os tratamentos aos quais havia se submetido
era de que não surtiram nenhum efeito terapêutico sobre ela.
Descreveu-se como drogada, ladra, mentirosa e fria, declarando não se
sentir nem um pouco mal com isso. Informou que fora abusada pelo
cunhado por três anos consecutivos, dos dez aos treze anos de idade,
período em que começou a se drogar, e que hoje sua palavra de ordem
era o desamor. Disse não acreditar na Psicologia, em psicólogos e em
terapia, considerando-se um caso perdido e acreditando que a única
solução para ela seria a morte, porém era covarde demais para tomar
essa providência. Apesar de saber que o uso abusivo do crack e da
cocaína poderia causar-lhe a morte, P não atribuía ao ato uma tentativa
de se matar. Pelo contrário, ela considerava que o alívio e o prazer
proporcionados pela droga a ajudavam a continuar viva.
Homossexual assumida desde os 21 anos, relatou na primeira
sessão que suas relações amorosas foram todas desastrosas e causaram
muito sofrimento a ela. Desde sua última separação, há cerca de dois
anos, desiludira-se e nunca mais se envolvera com alguém (P disse que
viveu com essa mulher, também usuária e bem mais nova do que ela,
durante alguns anos). Relatou que sempre preferira as mulheres que
não correspondiam às suas investidas, considerando como o auge do
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prazer apaixonar-se platonicamente.
P relatou que em seus “casamentos” (foram dois), cumprira o
papel de provedora, pois suas mulheres dependiam dela para tudo e,
mesmo assim, elas a traíram, mentiram e a enganaram, porém P
sempre as perdoara. Nas duas relações de P, foram as mulheres que
decidiram pelo término.
Ela contou sua história sem demonstrar emoções e os únicos
sentimentos explícitos em sua narrativa eram o ódio e ressentimento.
Na primeira entrevista, o manejo foi realizado visando a
transformar a queixa originalmente feita pela mãe da paciente em uma
demanda por tratamento da própria paciente. O primeiro eixo do
trabalho consistiu em validar seu discurso para a percepção do
desamparo e solidão como índice de seu mal-estar subjetivo,
tamponados por sua dependência a drogas, com o objetivo de implicar
a paciente em seu problema e possibilitar sua entrada em tratamento
psicoterápico.
O segundo eixo foi questionar sobre os eventos traumáticos
com o objetivo de apoiar um novo posicionamento subjetivo diante
do sofrimento, cuja origem estava no abuso sexual realizado por seu
cunhado e na conduta de negação desse fato pela mãe e irmãos. P
encontrava-se totalmente identificada ao objeto droga, chegando a
dizer que ela era pura toxina e, por meio desse vínculo simbiótico com
a droga, absteve-se, até aquele momento, de confrontar seus conflitos
de maneira consciente.
O terceiro eixo consistiu em confrontá-la com sua adicção e a
função do abuso das drogas para fugir e se distanciar do sofrimento.
Como o acontecimento traumático apontava para o fracasso familiar
em prover segurança, confiança e amor e evidenciava o fracasso de
seus pais em suas funções maternas e paternas, a paciente passou a se
autodestruir abusando das drogas e planejando estratégias para se
vingar dos irmãos. Em consequência, manteve intactos seus objetos de
identificação narcísica. Assim, sua mãe passou a ser interpretada como
vítima dos irmãos, que a incentivaram a não acreditar nela, e o pai,
como um homem frágil, que não suportaria a decepção de se saber
traído por alguém em quem confiava e amava.
Nesse sentido, o trabalho consistiu em confrontá-la em sua
posição de filha e de criança indefesa, que era na época do abuso
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sexual, desmitificar as figuras paternas, aceitar a realidade, tolerar a
frustração e o sofrimento de maneira consciente, para que ela pudesse
encontrar uma nova maneira de viver, livrando-se da dependência das
drogas.
O objetivo de P em seu tratamento era ficar em abstinência de
crack e cocaína, conseguir e manter um trabalho e conquistar
novamente sua autonomia. No início do tratamento, antes de iniciar o
acompanhamento psiquiátrico e o tratamento farmacológico, P
comparecia a uma sessão semanal. Às vezes, eram necessárias duas
sessões no mesmo dia, quando estava em surto psicótico decorrente
do uso de drogas.
Nessa ocasião, P foi classificada em um processo seletivo
simplificado e convocada para trabalhar em duas escolas públicas, em
dois períodos, tornando necessária a implantação de um tratamento
medicamentoso domiciliar. Mas as chances de P aderir ao tratamento
seriam bastante reduzidas, não fosse a presença do psiquiatra do
CEPS. Além disso, sua presença e intervenções trouxeram à baila
questões edipianas importantes para uma mudança de posição de P. O
psiquiatra, convidado para aceitar P como paciente, colocou como
condição a autorização e colaboração da mãe na administração de
medicamentos, além de uma interconsulta semanal com a paciente
acompanhada pela psicóloga.
Em casos graves de adicção, sabe-se que apenas a dita "força
de vontade" do paciente não asseguram sua permanência em
abstinência. As questões orgânicas intrínsecas ao processo de
abstinência se impõem e favorecem as recaídas, desde que nada seja
feito para que sejam asseguradas condições para contê-las. Foi
imprescindível promover-se o diálogo entre a psiquiatria e a psicologia
para que o tratamento de P tivesse possibilidade de avançar.
Após decidir interromper o uso de drogas, era previsto que o
desejo de usá-las se intensificaria, pois a dependência química não
afeta apenas o aspecto orgânico. Além disso, P não lidava com a
realidade conscientemente havia muito tempo. Os sentimentos e
angústias desencadeados pela desintoxicação e pelo próprio processo
psicoterapêutico se constituiriam em um desafio ao seu propósito de
abstinência. Partindo dessas premissas, assim que teve início o
tratamento psiquiátrico, passou-se a realizar quatro sessões semanais
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de psicoterapia, além daquela com o psiquiatra, para proporcionar
apoio e continente1 à paciente.
Em um período de três meses, durante o acompanhamento
psiquiátrico, P teve três recaídas. Na primeira, Dr. L advertiu-a
novamente sobre o perigo de um surto psicótico na mistura de
medicamentos e drogas psicotrópicas e que não estava disposto a se
arriscar caso ela voltasse a repetir tal comportamento. Na segunda vez,
Dr. L atribuiu à psicoterapeuta o poder de decidir sobre a questão,
considerando que naquela altura a medicação já estava agindo e não
mais se tratava de uma crise de abstinência. Dr. L disse à paciente que
podia perceber o quanto ela estava melhor e o quanto ele acreditava
em sua capacidade de recuperação, porém que não poderia ser omisso
diante da gravidade da situação. O parecer foi favorável à paciente,
reconhecendo sua honestidade ao não omitir seu grave deslize, sua
dedicação à psicoterapia e da necessidade de ter o acompanhamento
médico nesse período tão delicado. Dr. L informou P que seria
desligada, se o fato se repetisse.
P teve sua terceira recaída. Foi decidido que, para o bem de P,
o Dr. L encerraria seu acompanhamento. Mesmo considerando que
seria um manejo muito arriscado, houve a disposição de correr-se o
risco. Era conhecido o prazer pervertido de P em transgredir a lei e a
ordem das coisas, de corromper o setting terapêutico, ainda que isso
implicasse colocar em risco sua vida. Contudo, não era possível ser
conivente. Dr. L considerou a possibilidade de voltar a atendê-la em
momento oportuno. P manteve-se em abstinência por quatro meses,
voltando a ter o acompanhamento do psiquiatra em sessões
quinzenais.
A primeira impressão, após a entrevista inicial com P, baseada
na escuta e na interpretação transferencial, sinalizava um pedido de
ajuda, porém os fatos não indicavam um bom prognóstico para o caso
clínico devido ao obstáculo que a grave adicção da paciente
representava para sua entrada e adesão ao tratamento.
No decorrer dos atendimentos, percebeu-se que o conflito
1
Continente, palavra cunhada por Bion, indica a capacidade do terapeuta de conter as necessidades, angústias e demandas do paciente, análogas à função materna
no início da vida do bebê. (ZIMERMAN, D. Vocabulário contemporâneo de
psicanálise. Porto Alegre: Artmed, 2001. p. 84-5)
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psíquico da paciente centrava-se no abuso sexual sofrido na infância e
mantido em segredo, agravado pela forma de sua mãe e irmãos
lidarem com o assunto, assim que foi revelado. O que se verificou foi
que, na aparência, todos negaram o acontecido, apoiando-se no fato
de P ser uma dependente de drogas, por isso não merecedora de
confiança. O abuso sexual consistiu em fato inaceitável para a
instituição familiar. Foi uma situação geradora de extremo sofrimento
para P. Assim, ela procurou esquecê-la apoiando-se na crença de que
não haveria solução possível para esse problema. Aceitou o lugar de
drogada na constelação familiar e considerou a dependência como
única saída existente para evitar o sofrimento de uma realidade sem
sentido algum para ela. Na impossibilidade de aceitar falhas das figuras
paternas idealizadas, considerava que os pais eram vítimas dos
acontecimentos e ela seria a culpada, aceitando sentir todo ódio, culpa
e ressentimento apenas por si mesma e por seus irmãos. Nas relações
amorosas, P promovia uma inversão de papéis, colocando-se no lugar
de provedora, não se permitindo perceber o desejo de ser cuidada e
amada, e negando sua necessidade de dependência. Ao preferir amar e
não ser correspondida, ela repetia o que sentia em sua relação com a
mãe.
Sobre a personalidade de P, considerou-se a hipótese de uma
sexualidade adictiva, com pontos de fixação da libido na fase de
narcisismo primitivo, na qual o objeto sexual é buscado
incessantemente como droga.
Em decorrência do abuso sexual, a paciente sofreu inúmeros
abalos narcísicos, principalmente na relação com a mãe, por falta desse
olhar protetor e afetivo, denunciando sua vulnerabilidade dentro da
própria família e tendo seu sofrimento agravado pela descrença de
todos quando o fato veio à tona. P recorreu ao uso e abuso de drogas
como uma forma de defesa poderosa na tentativa de esquecer e poder
suportar o sofrimento diante da angústia de perder seus objetos de
amor, do aniquilamento subjetivo e de não pertencimento familiar.
Toda a sensação de prazer obtida pelo uso frequente de drogas
havia gradativamente desaparecido ao longo dos anos, obrigando-a a
recorrer a doses cada vez maiores, que, por sua vez, intensificavam as
alucinações e os delírios persecutórios, aterrorizando-a. P se viu diante
de um impasse. A solução adicta que a ajudara a fugir de seus
problemas ao longo de tantos anos estava fracassando e fatalmente a
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levaria a uma overdose, porém não conseguia encontrar outra saída
para lidar com seus conflitos, a não ser afastando-os de sua
consciência com o uso de drogas.
A mãe de P, ao longo do tratamento, representou muitas vezes
um entrave para sua recuperação. No início, ligava frequentemente
queixando-se do comportamento destrutivo da filha, da agressividade,
de ficar se esfregando publicamente com “aquela mulher” e
envergonhá-la (P iniciou um namoro no início do seu tratamento), de
criar problemas em sua relação com os outros filhos, de estar gorda,
de não fazer nada para ajudar em casa, de não arrumar um emprego,
etc. A Sra. S simplesmente se negava a aceitar que a filha tinha
dependência de drogas, que sua adicção era de muitos anos e
considerada grave e que, pela primeira vez na vida, havia pedido ajuda
e estava em tratamento. Insistia em perceber P como seu
prolongamento narcísico e a exigir que ela correspondesse ao seu ideal
de filha, completamente alheia à realidade interna e externa. Ignorava
as qualidades de P e exaltava os seus defeitos, fazendo-se de vítima ao
expor seus problemas de saúde, o quanto havia sido boa mãe e que
não era merecedora, naquela idade, de passar pelas situações criadas
por P. Convocava constantemente a atenção de todos à sua volta.
Naturalmente, a Sra. S não tinha consciência do que fazia. P
era produto de uma gravidez indesejada, pois a Sra. S já possuía seis
filhos nessa ocasião, sendo a mais nova uma adolescente. A culpa que
sentia desde que soube estar grávida de P só piorava diante do sintoma
de adicção da filha e se tornou uma fonte inesgotável de enorme
angústia. Ela me relatou que P sempre recebeu dos pais mais atenção,
afeto, dedicação e recursos do que seus irmãos, portanto não
conseguia compreender porque insistia em se comportar de maneira
tão inadequada e causar tantos problemas. Excluía completamente de
suas considerações o fato da filha ter sofrido abuso sexual pelo genro
e ter se tornado dependente de drogas. A Sra. S agia como se houvesse
algum engano, parecia óbvio para ela que a verdadeira vítima de toda
aquela situação era ela mesma e não sua filha. Parecia que a Sra. S
tentava esclarecer que P precisava de atendimento psicológico para
compreender tudo e passar a se comportar de acordo com o plano que
ela e o marido traçaram. Não era para ser tratada por ter dependência
química, o que a mãe sequer admitia existir.
Convicta de que ela e o marido ofereceram a P uma educação
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sólida e irrepreensível, a Sra. S possivelmente suspeitava e temia que
aceitar a existência do abuso sexual – e que isto estava diretamente
relacionado com a adicção da filha – implicava admitir ter ocorrido
alguma falha em seu modelo idealizado de educação, assim como na
execução das funções maternas e paternas, o que agravaria o
sentimento de culpa pré-existente, inviabilizando a conscientização e
participação no problema.
Quando P tornou pública sua história e, consequentemente, a
história de sua família, isso foi sentido pela Sra. S como humilhação e
condenação, uma injustiça. A mãe descarregava toda sua frustração na
filha, como se quisesse castigá-la por lhe causar tanto
constrangimento.
Porém, para promover a separação dessa relação simbiótica
estabelecida entre mãe e filha, em que não havia uma distinção
subjetiva clara indicando uma passagem mal sucedida pelo processo de
estruturação psíquica conferida ao Complexo de Édipo, foi necessário
acolher essas manifestações da Sra. S, para então poder ocupar a
posição de terceiro (o pai) nessa relação e favorecer a operação de
corte necessária para que cada uma pudesse se aplicar em suas
próprias questões.
Por outro lado, com sua nova companheira, a paciente estava
estabelecendo o mesmo tipo de relação simbiótica que desejava
manter com sua mãe, dependendo emocionalmente dela para realizar,
inclusive, as necessidades mais básicas como comer e tomar banho.
P estava muito mais estruturada quando conseguiu falar sobre
questões mais delicadas de sua história. Ela nutria um intenso
sentimento de ódio por uma de suas irmãs, a que era casada com o
homem que a violentara por três anos. P estava convicta de que a irmã
não havia acreditado no que ela disse ou sequer se importara por ela
ter sido abusada pelo marido, mantendo seu casamento com ele.
Certo dia, P chegou à sessão radiante. Aquela expressão em
seu rosto era surpreendente. Contou, com muita satisfação, sobre uma
conversa que tivera com a mãe na noite anterior. Sua mãe informoulhe que a irmã não continuara casada depois que soubera do
acontecido. Ele se mudara para outra cidade e nunca mais entrara em
contato com os próprios filhos, porque sua irmã nunca permitira.
Antes de se casar com o segundo marido, sua irmã ficara anos sozinha,
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informou-lhe a Sra. S. Outros detalhes da história foram esclarecidos
por sua mãe, que nunca, antes daquele momento, havia permitido que
P tocasse no assunto com ela.
Naturalmente, isso não explicava toda a história e muitas
questões continuavam pendentes, mas saber o que houve entre sua
irmã e seu cunhado permitiu que P abrisse mão de seu apego ao ódio e
possibilitou resignificar sua história, admitir o desejo de se
reaproximar da família, de ser aceita, de ser amada e de perdoar. Agora
P estava disposta a ouvir o outro lado da história e tomar
conhecimento do que acontecera, sentia-se capaz de enfrentar o
problema e o sofrimento ocasionado por ele.
Para finalizar esta análise, menciona-se a dificuldade e a
angústia de P, sabendo que o final das sessões estava próximo. Esse
sentimento era causado justamente pelo tipo de vínculo simbiótico
que a paciente sempre estabeleceu em suas relações com pessoas
significativas. Soubera pela mãe, no início do tratamento, que as
psicólogas do CEPS permaneciam somente durante certo tempo na
instituição e, desde essa ocasião, preocupou-se com o término do
vínculo. Especialmente no caso de P, a quem esse processo gerava
muita ansiedade acentuando sua sensação de desamparo, tornou-se
necessário trabalhar a separação desde o início do tratamento. A
paciente sempre esteve ansiosa em obter resultados rápidos e certeiros,
estimulada por essa premissa. No decorrer do tratamento, a questão
pareceu ter ficado de lado e apenas eventualmente P se referia ao
assunto. No final, P começou a faltar frequentemente e a apresentar
muita dificuldade tanto em ficar até o término de cada sessão como de
prosseguir no tratamento.
Nesse ponto, o vínculo terapêutico entre paciente e psicóloga
despertou o ciúme da companheira de P, dificultando ainda mais o
processo de desligamento. Restavam poucas sessões e P faltou à
metade, pretextando querer evitar desentendimentos com sua
companheira. O que P realmente evitava era falar sobre os
sentimentos despertados pelo iminente término do vínculo terapêutico
e do quanto essa separação estava sendo difícil para ela. Quando
finalmente voltou, P ficou surpresa ao saber que restavam apenas duas
sessões. Nelas, P falou do quanto seria difícil recomeçar com outra
terapeuta. Queria expressar que era muito grata por tudo o que a
terapeuta havia suportado – o ódio, o desrespeito, as faltas – e o
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quanto a figura da psicóloga se tornara importante: “Sem você, eu não
teria conseguido”. Chorou muito e disse que agora se autorizava a
chorar, a sorrir, que conseguia suportar melhor a tristeza, a frustração
e sua impotência, mas que também estava ciente de que podia fazer
muito mais do que supunha. Agora podia sonhar, “só por hoje”, disse,
referindo-se ao lema dos Narcóticos Anônimo.
P conseguiu, pela primeira vez na vida, manter vínculo de
trabalho do início ao fim do contrato (final do ano letivo). Atualmente,
aguarda sua renovação. O trabalho foi fundamental em sua
recuperação, pelo sentido que proporcionou à sua vida. Ela sentia-se
produtiva, tinha autonomia econômica e se ocupava diariamente,
podendo acompanhar os resultados positivos de suas ações.
Onze meses após o início do tratamento, ao término do
período da especialização, o caso clínico foi encaminhado para outra
psicóloga, que iniciava a residência. P estava em abstinência há sete
meses e sabia que sua recuperação ainda exigiria muita dedicação e
cuidado, mas desejava continuar seu tratamento.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O déficit de serviços extra-hospitalares, de profissionais
especializados, de equipes transdisciplinares e de tempo hábil para
acompanhamento pode ser destacado como o grande obstáculo ao
atendimento a casos de sujeitos adictos à droga que, frequentemente,
chegam a oferecer riscos a si próprios e a outros, e acabam sendo
encaminhados para internação hospitalar psiquiátrica. Muitos casos
poderiam receber acolhimento e intervenção em serviços
ambulatoriais, pelo tempo necessário, permitindo a esses sujeitos
permanecer em família e reintegrar-se à sociedade.
A Psicanálise configura-se em importante referencial que
contribui para a compreensão dessa problemática e de tantas outras,
ressaltando a importância de uma prática clínica que, diante das
contradições humanas, valorize o que há de mais humano no homem:
sua própria história, conforme afirmou Dunker (2011, p. 433).
A Psicanálise foi utilizada para compreensão do fenômeno da
toxicomania e das adicções e a Psicoterapia de Apoio de Orientação
Psicanalítica, nas intervenções durante o tratamento da paciente, cujo
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caso clínico foi construído neste estudo. Sua contribuição foi
imprescindível e inestimável na condução do caso.
Por meio do espaço e vínculo terapêuticos, a paciente pode
resignificar suas dores, perceber os sintomas psíquicos, a função de
seu abuso de drogas, e retirar o investimento libidinal de alguns
objetos e reinvestir em outros, além de conseguir enxergar novas
possibilidades de vida e readquirir a capacidade de sonhar.
Ressalte-se que o processo psicoterapêutico de P está apenas
no início. Há um longo caminho a ser percorrido para compreensão
das representações inconscientes que estão subjacentes ao seu sintoma
de dependência a drogas e que se implicam em seu conflito. Durante o
período de tratamento da paciente, foram trabalhados alguns
sentimentos inconscientes que estavam relacionados ao evento
traumático ocorrido no período de sua infância, o abuso sexual. Da
observação da estrutura e do funcionamento psíquico e pela escuta do
discurso da paciente, foi possível formular o psicodiagnóstico inicial
que possibilitou escolher a forma de condução de seu tratamento. Os
aspectos mais arcaicos de sua sexualidade, sua homossexualidade,
vínculos afetivos, sua maneira de se relacionar e escolhas objetais são
questões a serem analisadas na sequência do processo.
É importante evidenciar a importância das experiências
proporcionadas pelas Clínicas-Escolas ao oferecer aos psicólogos
residentes ou em processo de graduação a oportunidade de vivenciar a
realidade em sua pluralidade e de se aprimorar, sobretudo pelo apoio
de seus supervisores. Como modelo de serviço ambulatorial integrante
do SUS, o CEPS é um bom exemplo, oferecendo aos pacientes um
tratamento pautado nos princípios dos Direitos Humanos, em que é
possível tratar questões – como a toxicomania – vistas sob uma
perspectiva crítica e holística do ser humano e suas contradições.
Demonstrou-se, a partir da construção do caso clínico, como a
Psicanálise e a psicoterapia de orientação psicanalítica contribuíram no
tratamento de uma paciente adicta a drogas, possibilitando a
recuperação, sustentando o período de abstinência e sua adesão ao
tratamento, oferecendo outra saída para a toxicomania.
Concluiu-se que os objetivos propostos neste estudo foram
cumpridos e espera-se que tenham contribuído para que profissionais
envolvidos com a questão da saúde mental possam ter se beneficiado e
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se motivado a também publicar novos estudos abordando o assunto,
compartilhando suas próprias experiências e fortalecendo, desta
maneira, a prática da profissão.
REFERÊNCIAS
CHAVES. E. Toxicomania e transferência. Pernambuco, 2006. 199
f. Dissertação (Mestrado em Psicologia Clínica) – Pró-reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação, Universidade Católica de Pernambuco. Disponível em: <http://www.unicap.br/tede//tde_busca/arquivo.
php?codArquivo=8>. Acessado em: 15 mai. 2013.
DUNKER, C. I. L. O Nascimento da Clínica. In: ______. Estrutura
e constituição da clínica psicanalítica: uma arqueologia das práticas de
cura, psicoterapia e tratamento. São Paulo: Annablume, 2011.
FREUD, S. Recomendação aos médicos que exercem a psicanálise (1912). Rio de Janeiro: Imago, 1996a. v. 12. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 24 v.)
______. Conferência XXVI: “A teoria da libido e o narcisismo”.
(1916-1917 [1915-1917]). Rio de Janeiro: Imago, 1996b. v. 16. (Edição
standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund
Freud, 24 v.)
______. Conferência XXVII: “Transferência”. (1916-1917 [19151917]). Rio de Janeiro: Imago, 1996c. v. 16. (Edição standard brasileira
das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 24 v.)
______. Conferência XXXIII: “Os caminhos da formação dos sintomas”. (1916-1917 [1915-1917]). Rio de Janeiro: Imago, 1996d. v. 16.
(Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 24 v.)
GURFINKEL, D. A pulsão e seu objeto-droga: estudo psicanalítico
sobre a toxicomania. Petrópolis: Vozes, 1995.
MCDOUGALL, J. Teatros do corpo: o psicossoma em psicanálise. 2.
ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
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APLICABILIDADE DIRETA DAS NORMAS DE DIREITO
FUNDAMENTAL ÀS RELAÇÕES PRIVADAS
Lucyellen Roberta Dias Garcia*
RESUMO
Este estudo promove reflexão crítica acerca da eficácia horizontal dos
direitos fundamentais, analisando-os sob a ótica do Constitucionalismo moderno, da dimensão objetiva dos direitos fundamentais e dos
efeitos práticos que essa dimensão produz. Discute-se a necessidade
de ponderação entre as normas de direito civil e direito constitucional,
de modo a não excluir os princípios basilares do direito privado, mas
adequá-los ao alcance axiológico que se quer atingir, para se obter a
máxima efetividade dos direitos constitucionalmente garantidos. Confrontando-se os diferentes fundamentos teóricos, conclui-se que aquele constante na teoria da aplicação direta ou imediata dos direitos fundamentais nas relações entre particulares é o que melhor se coaduna
com a realidade e o ordenamento jurídico brasileiro por não admitir o
condicionamento da prestação dos direitos fundamentais ao exercício
da atividade legislativa, mas sim a aplicação direta desses direitos de
modo a salvaguardar a dignidade da pessoa humana e o exercício dos
postulados da democracia constitucional.
Palavras-chave: Direitos fundamentais. Relações privadas. Eficácia horizontal. Dimensão objetiva.
ABSTRACT
This study promotes critical reflection about the horizontal effect of
*
Advogada; pós-graduada em Direito Aplicado (Escola do Ministério Público do
Estado do Paraná e Escola da Magistratura do Estado do Paraná) e em Direito
Constitucional (Academia Brasileira de Direito Constitucional); professora de Direito Ambiental e Agrário na Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP)
e na Faculdade do Norte Pioneiro (FANORPI/UNIESP); mestranda em Ciências Jurídicas (UENP).
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fundamental rights, analyzing them from the perspective of modern
constitutionalism, of the objective dimension of fundamental rights
and of practical effects that size produces. It discusses the need for
balance between the rules of civil and constitutional rights, so as not
to exclude the basic principles of private law, but adjust them to reach
axiological you want to achieve, to achieve the maximum effectiveness
of the constitutional rights guaranteed. While comparing the different
theoretical foundations, it is concluded that one constant in the theory
of direct or immediate application of fundamental rights in relations
between individuals is the one that best fits with the reality and the
Brazilian legal system by not allowing conditioning the provision of
fundamental rights to the exercise of the legislative activity, but to the
direct application of these rights in order to safeguard the dignity of
the human person and the exercise of the tenets of constitutional democracy.
Key words: Fundamental rights. Private relations. Horizontal effectiveness. Objective dimension.
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APLICABILIDADE DIRETA DAS NORMAS DE DIREITO
FUNDAMENTAL ÀS RELAÇÕES PRIVADAS
Lucyellen Roberta Dias Garcia
1 INTRODUÇÃO
Para o doutrinador Carlos Roberto Siqueira Castro (2008, p.
10),
[...] o sentimento constitucional contemporâneo passou a exigir que o princípio da dignidade do homem, que serve de
estrutura ao edifício das Constituições da Era Moderna, venha fundamentar a extensão da eficácia dos direitos fundamentais às relações privadas, ou seja, a eficácia externa,
também denominada direta ou imediata que, na prática, coincide com o chamado efeito horizontal do elenco de direitos, de liberdades e de garantias que através dos tempos
granjearam assento nos estatutos supremos das nações.
O presente ensaio tem por escopo analisar a questão da
vinculação dos particulares aos direitos fundamentais, resultado do
rompimento do antigo pensamento liberal-burguês, para o qual a
afirmação dos direitos e garantias fundamentais no plano
constitucional se deu em razão dos abusos praticados pelo Estado
Absolutista, e por essa justificativa deve permanecer atrelado, sem
qualquer possibilidade de estender sua aplicação às relações travadas
entre particulares.
Neste cenário histórico, não se pode olvidar que a decadência
das ideias liberais e a consequente substituição do regime pelo Estado
Social deram-se em razão da inexistência de uma atuação positiva do
Estado, capaz de garantir aos cidadãos os direitos sociais mínimos
para a implementação dos direitos de primeira dimensão; a tão
almejada igualdade material de direitos pôde ser alcançada a partir do
momento em que o Estado passou a intervir em todas as esferas da
sociedade, garantindo aos seus povos condições mínimas para se viver
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com dignidade.
Não obstante as diversas vozes que ecoam dos estudiosos
sobre o tema, não se pode negar que a supremacia da Constituição
Federal responsável por alocar os direitos fundamentais num plano
superior e irradiar valores morais e éticos, também vincula todos os
demais ramos do direito, sejam em aspectos materiais ou formais.
No plano prático, porém, em muitas situações ainda se observa
uma inatingível irradiação dos direitos fundamentais nos conflitos
estabelecidos entre particulares, levando-se a crer que a sociedade
neocapitalista esta sujeita a uma igualdade meramente formal, marcada
pelo domínio dos poderosos grupos econômicos que atuam sob a
égide de um direito privado, mas dissociado das garantias
fundamentais elencadas pela Constituição de 1988.
Destarte, o que se almeja através do presente estudo é o
convencimento acerca da aplicação harmônica dos direitos
fundamentais nas relações entre particulares, de modo que não se
estabeleça qualquer exclusão das regras de direito civil, mas sim que se
utilizem critérios de ponderação dos bens e valores confrontados na
esfera privada, necessário para garantir a plena eficácia dos direitos e
garantias fundamentais presentes na Constituição Federal.
2 O CAMINHAR HISTÓRICO-EVOLUTIVO DOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS
O surgimento da expressão “direitos fundamentais”,
acompanhado de seu conteúdo normativo e axiológico, remonta de
tempos antigos, então marcados por sangrentas e infindáveis batalhas
entre classes, nas quais o objetivo comum era certamente o
enfraquecimento do Estado soberano e opressor, violador das
garantias humanas e de toda forma de dignidade que porventura
restavam àqueles povos (SARMENTO, 2006, p. 4).
Sob uma perspectiva histórica, os direitos fundamentais
adquiriram diferentes formatos até alcançar a personificação e o
hodierno âmbito de aplicabilidade no Estado contemporâneo. A
começar pela terminologia do instituto, o que é motivo de repudio por
grande parte dos constitucionalistas que rechaçam a utilização de
expressões como “liberdades fundamentais”, “direitos individuais”,
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“liberdades públicas”, dentre outras derivações que não abarcam todo
o conteúdo dogmático-jurídico dos direitos fundamentais, por se
tratarem de categorias específicas do gênero “direitos fundamentais”.
Outra questão terminológica tratada pela doutrina ao traçar a
evolução histórica dos direitos fundamentais diz respeito à
abrangência dos termos “direitos humanos” e “direitos fundamentais”.
De fato, os primeiros remetem ao conteúdo de normas que
centralizam a proteção do ser humano numa esfera universal, ou seja,
de caráter supranacional, desconsiderando as regras específicas de um
determinado ordenamento jurídico, ao passo que o segundo retrata
um conjunto de regras positivadas no âmbito constitucional de um
Estado, reunindo direitos e garantias que assegurem a liberdade e
igualdade dos povos daquela nação.
Sob esse aspecto, seguro afirmar que as expressões em
comento não se tratam de sinônimas, mas também não deixam de
guardar uma íntima relação de cunho axiológico, já que o objetivo
comum perseguido por ambos é a proteção do homem e a garantia de
uma vida digna, sem interferência de quaisquer questões políticas,
sociais e econômicas que possam suprimir o principal dos direitos que
é a vida com dignidade.
A proximidade que une o conteúdo e a direção de tais
expressões, acoplado à luta incessante dos Estados em afastar toda
forma de atrocidade e violência contra os povos tem desencadeado
um autêntico processo de aproximação e harmonização dos direitos
elencados na esfera nacional e internacional, resultando na formulação
de um direito constitucional internacional, cuja autonomia didática já
lhe é ínsita (SARLET, 2005, p. 39).
José Afonso da Silva (1996, p. 176-7) insurge-se contra as
expressões diferenciadas, salientando sua preferência por uma terceira
categoria terminológica, qual seja “direitos fundamentais do homem”,
sob a justificativa de que:
[...] além de referir-se a princípios que resumem a concepção
do mundo e informam a ideologia política de cada ordenamento jurídico, é reservada para designar, no nível do direito
positivo, aquelas prerrogativas e instituições que ele concretiza em garantias de uma convivência digna livre e igual de
todas as pessoas.
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Bobbio, por sua vez, estabelece uma distinção entre direito do
homem enquanto estritamente naturais e direito do homem enquanto
direitos positivados, passando, pois, a equipará-los às expressões ora
apontadas neste estudo. Para ele, os direitos naturais do homem
equivalem aos direitos humanos, ao passo que os direitos positivados
seriam os definidos como direitos fundamentais (BOBBIO, 1992, p.
31).
Seguindo o critério de diferenciação, Ingo Sarlet (2005, p. 37)
defende a existência de três espécies de direitos, que se distinguem
tomando por base um único elemento caracterizador, qual seja, a
positivação ou não em suas diferentes esferas; para o autor, existem os
chamados direitos naturais, os quais não se encontram ainda
positivados; os direitos positivados na esfera supranacional, que seriam
denominados de direitos humanos e, por fim, os famigerados direitos
fundamentais, cuja classe se encontra reunida e positivada no sistema
de garantias interna de um determinado ordenamento jurídico, sendo,
portanto, mais restritos e específicos do que aqueles últimos.
Bruno Galindo apresenta uma veemente crítica ao
posicionamento adotado por Ingo Sarlet, argumentando não ser
possível enquadrar as três espécies de direitos em modalidades, como
se coexistissem diferentes classes de ser humano. Segundo o seu
parecer:
Os direitos positivados, tanto na esfera estatal, como na internacional, são direitos fundamentais, uns abrangendo apenas os cidadãos de um determinando Estado e outros de espectro mais amplo, alcançando a comunidade internacional,
podendo então ser considerados, respectivamente, direitos
fundamentais estatais e direitos fundamentais internacionais.
Os direitos inerentes ao ser humano, positivados ou não,
são direitos humanos ou direitos do homem. (GALINDO,
2003, p. 49)
Compreendidas algumas das mais importantes posições
doutrinárias que permeiam o universo jurídico em torno da questão
terminológica dos direitos fundamentais, cumpre proceder a uma
análise histórica acerca dos caminhos percorridos ao longo do tempo
para se alcançar a atual configuração e abrangência normativa dos
chamados direitos fundamentais, os quais justificam, por si só, a
instalação de um verdadeiro Estado Democrático de Direito.
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A contribuição da doutrina jusnaturalista clássica como
elemento propulsor do processo de afirmação dos direitos
fundamentais é indiscutível. Muitos dos direitos hodiernamente
positivados na ordem estatal, antigamente eram já considerados
naturais pelos jusfilósofos, os quais concebiam o ser humano como
detentor de garantias naturais, ínsitas a sua pessoa e, portanto,
inalienáveis, imutáveis e inatingíveis pelo Poder Estatal, soberano à
época.
Posteriormente, veementemente influenciado pelas ideias
contratualistas e racionalistas de Hugo Grocio e Kant, inicia-se o
processo de laicização do direito natural, o que inspirou a formulação
do movimento iluminista, que apelava à razão como fundamento do
direito.
Neste aspecto, necessário ressaltar a expressiva contribuição de
John Locke como primeiro filósofo a reconhecer a eficácia oponível
dos direitos naturais, notadamente em face dos detentores do poder,
reconhecendo-se, pois, aos cidadãos, então titulares de direitos e não
meros objetos do governo tal qual eram associados sob a égide de um
contrato social, o direito de resistência e de organização frente a um
Estado guiado pela sua razão e vontade (SARLET, 2005, p. 46-7).
Inspirado pelas ideias da razão humana inicia-se, neste período,
o processo de universalização dos direitos naturais, dando ensejo a
importantes documentos de concretização de garantias, como por
exemplo, a Declaração dos Direitos do Homem (França, 1789) que
posteriormente vieram a resultar na construção de uma teoria
constitucional e o próprio movimento de codificação que marcou o
século XIX (LAFER, 1998, p. 38).
Amparada nas ideias contratualistas e iluministas de que o
homem é titular de direitos naturais que antecedem a própria
instituição do Estado, criando-se, por conta disso, uma esfera
inviolável de direitos e garantias, iniciou-se no século XVIII uma
árdua batalha dos povos com aspirações liberais pela efetivação desses
mesmos direitos, e notadamente sua extensão às camadas mais
humildes da sociedade.
Surge a partir desse processo de luta pelo reconhecimento
universal de direitos, então oprimidos pelo Estado Absolutista, a
expressão “direitos humanos”, o qual serviu de fundamento para o
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início da era constitucionalista, e como pilar do Estado Liberal, então
substituto do decadente Estado Absolutista.
2.1 As diferentes dimensões dos direitos fundamentais
No intuito de promover uma harmonização entre as três
principais correntes do pensamento jurídico, quais sejam positivistanormativista, positivista-sociológico e jusnaturalista, Alexy propõe um
estudo dos direitos fundamentais abalizado em uma tríplice dimensão
de direitos que se sucedem consoante à progressiva conquista e
afirmação destes no cenário mundial (GUERRA FILHO, 1997, p. 11).
Sobre o tema, de início, necessário reportar-se às fundadas
críticas operadas pela doutrina moderna concernente a adoção da
terminologia “gerações”, ao invés de “dimensões” para se referir ao
conjunto de direitos reconhecidos de forma gradativa, cada qual ao seu
tempo e em momentos históricos marcantes, resultando numa
autêntica mutação histórica dos direitos fundamentais.
Com efeito, a ideia de dimensão, ao contrário do que se
pretende afirmar ou que pelo menos transparecer com a utilização do
termo “geração”, encontra-se intimamente relacionada com a noção
de complementariedade, de soma gradativa de direitos, que longe está
de indicar qualquer noção de substituição ou alternância de direito
conforme se faz crer pela utilização da segunda terminologia ora
apresentada (BREGA FILHO, 2002, p. 25-6).
De qualquer forma, certo é que a problemática sob enfoque
reside essencialmente na esfera terminológica, não alcançando
expressiva importância para o que se pretende inferir neste estudo,
mesmo porque basta uma singela análise acerca do conteúdo
semântico normativo da Constituição Federal de 1988 para se rechaçar
por completo qualquer possibilidade de abolição de direitos ditados
pelas dimensões anteriores, considerando que a Carta Magna reúne em
sua esfera de proteção, todos os direitos conquistados gradativamente
ao longo da história (DIMITRI; MARTINS, 2007, p. 32).
Os direitos fundamentais de primeira geração, fortemente
influenciados pelas ideias jusnaturalistas, representam uma conquista
da burguesia liberal frente ao poder do Estado Absoluto, sendo
também denominados “direito de defesa” ou “direitos de
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resistência/oposição”, por rechaçar a intervenção do Estado na vida
social, política e econômica do cidadão; dentre o rol dos direitos
negativos, podem ser destacados o direito à vida, à liberdade, à
igualdade, à propriedade e ao voto.
Esses mesmos direitos dão início a uma nova fase do
Constitucionalismo, sendo os primeiros a serem insertos nas
Constituições após as Revoluções Liberais. Apesar de prever um dos
principais direitos do cidadão, qual seja a igualdade, a esta lhe era
atribuído um sentido meramente formal, e não material que ensejou
uma segunda dimensão de direitos. Tal fato, deve-se, certamente, à
predominância dos interesses da burguesia sobre a classe proletária, o
que faz caracterizar essa “geração” de direitos como de cunho
altamente individualista.
Os fatos pretéritos que desencadearam a reação revolucionária
da burguesia, influenciados pelos ideais liberais concentram-se na
atuação ostensiva do Estado onipotente em não permitir o exercício
das liberdades fundamentais, todavia, equivoca-se grande parte dos
doutrinadores ao atribuir essa atuação abusiva contra os do cidadão
tão somente ao Estado.
Citado por Galindo (2003, p. 60), Neumann afirma que a ideia
segundo a qual o Estado é sempre considerado inimigo do cidadão e
legítimo violador das garantias fundamentais deve ser rechaçada,
podendo outros seguimentos da sociedade ou Instituições também o
fazê-lo, o que de fato ocorre às vistas do cidadão quando
monopolizam ideias e produtos, notadamente no campo econômico
onde tal prática se mostra mais patente.
Reiterando as ideias acima, Galindo (2003, p. 60-1) expõe:
O Estado não é o único violador de direitos fundamentais,
mas também o são aqueles que detêm determinados poderes
não estatais que, por vezes, têm muito mais força e efetividade do que os próprios poderes do Estado. Por isso, mesmo no conceito estrito dos direitos de primeira dimensão,
não cabe ao Estado uma mera conduta omissiva, mas sim
uma conduta necessariamente ativa em muitos casos para
proceder a uma repressão às violações desses direitos, não
só pelos próprios órgãos (a ideia de Montesquieu do poder
se autolimitando), mas também pelos poderes não estatais
em geral que, por ser uma esfera de poder com alcance efetivamente social, podem se tornar sérios violadores dos diUNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013
reitos fundamentais.
As ideias encontram correspondência com o atual sistema
neoliberal que permeia as sociedades contemporâneas, marcadas pela
dominação absoluta do mercado pelas multinacionais, o que de fato
representa um sério quadro de violação dos direitos fundamentais
entre particulares, sendo este o objeto de estudo no presente trabalho
científico.
Em suma, caracterizam-se os direitos de primeira dimensão
pelo seu caráter individualista, pela conquista e afirmação das
liberdades civis e políticas, e pelo início de uma nova era, o
constitucionalismo ocidental (SARLET, 2005, p. 56).
Os direitos de segunda dimensão são chamados de direitos
positivos e abrangem os direitos sociais, econômicos, culturais e as
liberdades sociais justificam-se por não terem sido abrangidos
totalmente no Estado Liberal, em razão da desigualdade entre as
classes, que permitia somente aos nobres burgueses, detentores de
recursos econômicos, a possibilidade de exercer as liberdades políticas
e realizar os direitos econômicos e sociais.
A grave crise gerada pelo Estado Social, o qual se mostrou
incapaz de solucionar as mais diversas demandas decorrentes da
deficiente prestação dos direitos sociais e econômicos, aliado ao
assustador impacto tecnológico e expansão dos grupos econômicos
que passaram a promover a dominação dos mercados e, dessa forma,
sobrepor o ideal capitalista a quaisquer valores de ordem
constitucional, determinou o surgimento de uma dimensão de direitos,
os de fraternidade (que compõe a terceira dimensão de direitos).
Essa inovadora e necessária reivindicação do ser humano que
ultrapassa o caráter individual de suas relações e passa a enxergar o ser
humano por meio dos problemas e anseios que atingem toda a
coletividade compreendem, sob o manto da fundamentabilidade, os
direitos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, à paz,
solidariedade universal, segurança.
Dirley da Cunha Junior (2007, p. 34) retrata com clareza a
essência dos direitos de fraternidade:
[...] enquanto os direitos de primeira dimensão (direitos civis
e políticos)- que compreendem as liberdades clássicas, negaUNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013
tivas ou formais- realçam o princípio da liberdade e os direitos da segunda dimensão (direitos sociais, econômicos e culturais)- que se identificam com as liberdades positivas, reais,
materiais ou concretas- enfatizam o princípio da igualdade,
os direitos fundamentais- que encerram poderes de titularidade coletiva ou difusa atribuídos genericamente a todas as
formações sociais consagram o princípio da solidariedade ou
fraternidade e correspondem a um momento de extrema
importância no processo do desenvolvimento e afirmação
dos direitos fundamentais, notabilizados pelo estigma de sua
irrecusável inexauribilidade.
Por fim, cabe esclarecer que a doutrina vem admitindo a
existência de uma quarta, quinta e até sexta dimensões de direitos
fundamentais.
A quarta geração de direitos humanos esta relacionada à
questão do biodireito. A preocupação em proteger esses direitos e
incluí-los no rol de direitos fundamentais ocorreu após as atrocidades
da 2ª. Grande Guerra Mundial, quando foram realizados inúmeros
experimentos genéticos nos campos de concentração nazistas.
A quinta, por sua vez, relaciona-se com o direito à paz, sendo a
sexta dimensão decorrente da globalização, que abarca o direito à
democracia, à informação correta e ao pluralismo.
2.2 As dimensões objetiva e subjetiva dos direitos fundamentais
O rompimento do pensamento liberal, segundo o qual os
direitos fundamentais foram afirmados somente com a finalidade de
evitar os abusos praticados pelo Estado Absolutista. Por essa razão,
teria sua aplicabilidade adstrita às relações travadas entre Estadoparticular foi determinante para se operar uma mudança de paradigma
das sociedades modernas e o reconhecimento de uma Constituição
que reúne em seu corpo, além de regras e princípios, uma ordem
objetiva de valores válidos em todo o ordenamento jurídico, que
vincula não só o Estado, mas também os particulares em suas relações
privadas.
Neste contexto, um acontecimento histórico foi determinante
para a sedimentação das bases necessárias para a construção da
dimensão objetiva dos direitos fundamentais, qual seja o caso Lüth
julgado pelo Tribunal Constitucional Alemão em 1958.
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De acordo com o caso ora citado:
Um cidadão alemão chamado Erich Lüth, crítico de cinema
e diretor do Clube de Imprensa da cidade de Hamburgo, na
Alemanha, incitou, no início da década de 50, todos os distribuidores de filmes cinematográficos e ao público em geral, a boicotar o filme lançado por Veit Harlan. Harlan era
um cineasta conhecido do regime nazista e acusado de ser
um dos principais responsáveis pela alienação ideológica a
que foi submetido o povo alemão no III Heicht. Harlan e
seus parceiros comerciais ingressaram com ação cominatória, com base no art. 826 do Código Civil Alemão (BGB), na
Justiça Estadual de Hamburgo, postulando que Lüth fosse
impedido de continuar com o boicote. Isso porque o boicote estava causando dano a outrem por ação imoral. As instancias ordinárias acataram o pedido de Harlan, o que motivou Lüth a propor reclamação constitucional, no Tribunal
Constitucional Federal, alegando ofensa ao direito fundamental à liberdade de expressão garantida na Lei Fundamental de Bonn de 1949. O Tribunal julgou o pedido da reclamação procedente e revogou a decisão do Tribunal Estadual
de Hamburgo. A decisão teve por base a prevalência do direito de liberdade de expressão em detrimento da liberdade
de exercício da atividade empresarial de promover e divulgar
filmes. (DETROZ, 2012)
Por meio da decisão proferida pela Corte Alemã, solucionouse uma questão individual, fixando-se, ao mesmo tempo, novos
contornos objetivos da Constituição Federal e dos direitos
fundamentais, de efeitos irradiadores e vinculantes para os três
poderes do Estado na tomada de suas decisões, bem como aos
particulares, no trato dos próprios interesses e dos seus pares.
Como considerou Ingo Sarlet (2005, p. 167):
A descoberta (ou redescoberta) da perspectiva jurídicoobjetiva dos direitos fundamentais revela, acima de tudo,
que estes- para além de sua condição de direitos subjetivos
(e não apenas na qualidade de direitos de defesa) permitem
o desenvolvimento de novos conteúdos que, independente
de uma eventual possibilidade de subjetivação, assumem papel de alta relevância na construção de um sistema eficaz e
racional para a sua (dos direitos fundamentais) efetivação.
Esse novo enfoque trazido pela dimensão objetiva dos direitos
fundamentais, determinou o surgimento de um novo princípio,
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denominado de “princípio de proibição de déficit”, o qual
compreende a impossibilidade do Estado imitir-se no seu dever de
prestar uma assistência eficiente e mínima para a implementação dos
direitos fundamentais, em todas as esferas relacionais, vale dizer,
pública e privada (ANDRADE, 2004, p. 115).
Ao tratar do dever de proteção do Estado perante terceiros,
Canotilho esclarece que o Estado não só possui o dever de proteger o
direito do cidadão contra eventuais agressões de outros indivíduos,
como também de propiciar condições seguras para propiciar a
aplicabilidade dos direitos fundamentais nas relações travadas entre
particulares. Veja-se:
Diferentemente do que acontece com a função de prestação, o esquema relacional não se estabelece aqui entre o titular do direito fundamental e o Estado (ou uma autoridade
encarregada de desempenhar uma tarefa pública), mas entre
indivíduo e outros indivíduos. Esta função de protecção de
terceiros obrigará também o Estado a concretizar as normas
reguladoras das relações jurídico-civis de forma a assegurar
nestas relações a observância dos direitos fundamentais (ex.:
regulação de casamento de forma a assegurar a igualdade entre cônjuges) (CANOTILHO, 2002, p. 407).
Em resumo, a construção de uma dimensão objetiva dos
direitos fundamentais, retrata a ideia de que esses podem e devem ser
considerados independentemente da perspectiva individualista contida
na noção de sujeito de direito, presente na normativa civilista, os
direitos fundamentais consagram os valores norteadores de toda a
ordem jurídica e, que por representar interesses supraindividuais,
acabam por vincular a atuação tanto do Estado quanto da sociedade
civil.
Sob outro viés, a dimensão subjetiva dos direitos fundamentais
abarca a função tradicional desses direitos, aqui entendidos em sua
completude, como os clássicos direitos de liberdade, direitos políticos
e direitos sociais.
A clássica definição de direitos subjetivos indica que o titular
de um direito fundamental detém legitimidade para postular em Juízo
a reparação de lesão a qualquer dos interesses juridicamente tutelados
em face de quem se obrigou a satisfazê-lo.
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Destarte, denota-se que a clássica referência aos direitos
fundamentais como direitos subjetivos atribui a esses a característica
de serem exigíveis judicialmente em face do Estado. Tal perspectiva
subjetiva com o passar dos anos, aliado à modernização das
sociedades, permitiu que as Constituições passassem a adotar uma
dimensão objetiva no sentido de vincular não só o Estado ao
cumprimento dos direitos fundamentais, como também toda a
coletividade, inclusive, nas relações regidas pelo Código Civil, cuja
tendência contemporânea denota uma crescente constitucionalização
do referido ramo de direito privado.
3 DIREITOS FUNDAMENTAIS E SUA APLICAÇÃO NO ÂMBITO
DAS RELAÇÕES PRIVADAS
Historicamente, os direitos fundamentais foram concebidos no
sentido de proteger o indivíduo contra os abusos praticados pelo
Estado, os quais diretamente afrontavam o exercício das liberdades
públicas e a própria dignidade humana.
Essa nova submissão do Estado aos direitos fundamentais do
cidadão, positivada pelas Constituições pós-liberalismo, impõe
também, no sentido de resguardar a igualdade material, uma conduta
ativa e prestacional a fim de garantir não só a consecução dos direitos
individuais, mas também dos direitos sociais, os quais não possuem
aplicabilidade sem o necessário aparato ofertado pelo Estado.
Toda a construção jurídica realizada em torno da dicotomia
público-privado se deu justamente por se atribuir ao Estado, nesse
caminhar evolutivo dos direitos fundamentais, posições distintas em
diferentes momentos históricos. De início, com o intuito de
enfraquecer o Estado Absolutista, aliada as ideias liberais, insurgiu-se a
burguesia contra os abusos do Poder Soberano, exigindo desse uma
abstenção da vida privada dos cidadãos. Posteriormente, em razão da
impossibilidade dos direitos de liberdade alcançar as classes menos
favorecidas economicamente, passou o Estado a assumir uma posição
de garantidor dos direitos sociais, essenciais para a própria dignidade
humana.
Essa noção de verticalidade de direitos, que se instalou após o
advento do Estado Liberal e Estado Social, torna ainda mais
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dificultoso o desafio de se compreender a possibilidade da aplicação
dos direitos fundamentais às relações particulares. Necessário
entender, nesse contexto, a posição do Estado opressor que motivou
lutas, revoluções e guerras sangrentas no sentido de se afirmar os
direitos fundamentais na ordem constitucional.
Naquele momento histórico, certamente era a figura do Estado
quem mais representava uma ameaça institucionalizada ao homem, o
que deve ser repensado no atual contexto, marcado pela dominação
dos mercados, em que a lei do mais forte travada entre particulares
acaba por suprimir uma série de direitos fundamentais, violação esta
que as disposições contidas no Código Civil não estão legitimadas a
solucionar.
A ordem constitucional vigente, ao estabelecer o sistema de
garantias fundamentais a que faz jus todos os cidadãos, não determina
necessariamente as figuras do ofensor e ofendido, de modo a
deslegitimar qualquer outra ofensa a direitos que não se enquadre nos
moldes estabelecidos na Constituição. Quaisquer pessoas ou entidades
capazes de realizar condutas contrárias às garantias ali fixadas, sejam
elas públicas ou privadas, encontram-se no mesmo patamar de
responsabilidade, sendo ao ofensor indiferente a fonte de onde
emanam as agressões.
O problema em torno da aplicação dos direitos fundamentais
nas relações privadas surge a partir do momento em que se concebe a
autonomia privada dos particulares, devidamente codificada em regras
específicas que, para os críticos da ideia ora proposta, vai de encontro
a essa limitação que se pretende impor, mitigando o poder de
autodeterminação das pessoas.
Não obstante as digressões doutrinárias que almejam refutar a
possibilidade de aplicação dos direitos fundamentais ao âmbito dos
particulares, certo é que não se podem empregar os mesmos critérios
sistêmicos eleitos para tratar da relação Estado-particulares para
solucionar outro problema que de igual forma representa uma lesão
aos direitos fundamentais da pessoa humana, mesmo porque a lei que
regula ambas as relações são distintas e disciplinadas em ramos
autênticos do direito.
Para tanto, busca-se fundamento nos conceitos trazidos pela
dimensão objetiva dos direitos fundamentais para acatar-se a ideia de
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vinculação dos direitos fundamentais nas relações privadas, não se
olvidando a necessidade de adoção de critérios de ponderação,
vinculados à aferição da intensidade e extensão da vinculação na
relação sob enfoque, eis que ambas as partes comungam o mesmo
plano de legitimação dos direitos fundamentais.
Não parece crível estabelecer uma ordem constitucional em
que somente o Estado tenha obrigações éticas e morais para com os
direitos fundamentais e mínimos do cidadão, olvidando-se que essa
lesão de direitos também pode se suceder nas relações travadas entre
particulares. Por outro lado, não se pode desconsiderar a inevitável
diferença do modo de atuar das entidades públicas e privadas,
consequência do regime jurídico diferenciado aplicado em ambas as
situações, o que exige uma análise interdisciplinar e uma cautelar
especial no sentido de não suprimir o princípio da autonomia privada
dos particulares, que pela sua natureza, por si só, condiciona a
aplicação de direitos, liberdades e garantias fundamentais
(MIRANDA, 1998, p. 287-8).
Essa análise interdisciplinar e ponderação de valores e
princípios podem ser facilmente aferidas em normativas diversas
presentes no ordenamento jurídico vigente cujo destinatário exclusivo
é o Poder Público, não podendo se opor, portanto, aos particulares, a
saber: direitos de personalidade, direito políticos, etc. (SARLET, 2000,
p. 115-6).
Em suma, a Constituição Federal de 1988, além de não elencar
expressamente qualquer possibilidade de aplicação horizontal dos
direitos fundamentais nas relações privadas, tampouco apresenta um
critério para solucionar esse difícil problema trazido a lume. Cabe,
pois, ao exegeta, guiado pelas teorias formuladas em torno da questão,
bem como os princípios constitucionais que norteiam as relações
humanas, solucionar, de forma harmônica e ponderada, eventuais
lesões ocorridas em face de particulares, sejam elas originadas do
Poder Público, seja advindas de particulares.
3.1 Teoria dos deveres estatais de proteção
Por essa teoria entende-se que o Estado, na qualidade de
garantidor dos direitos fundamentais de todo cidadão, tem o dever não
só de abster-se de violar esses mesmos direitos, como também de
UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013
adotar uma postura ativa em defesa de seus titulares, evitando lesões e
ameaças advindas de terceiros.
Para que possa exercer tal mister a contento, detêm o Estado
mecanismos específicos de proteção, tal como poderes de polícia, de
fiscalizar, de legislar, dentre outros, todos determinados a limitar a
atuação do particular que porventura possa lesionar as garantias
fundamentais de seus pares que se encontrem em par de igualdades.
Adepto das ideias vinculadas à teoria do dever de proteção
estatal, Daniel Sarmento (2006, p. 24) salienta que os direitos e
garantias fundamentais arrolados pela Constituição Federal abarcam
uma qualificação muito superior à de mera condição de direitos de
defesa, sendo, pois, sucedâneo para uma atuação ostensiva do Estado
em face das ameaças perpetradas pelos particulares.
A principal crítica levantada a essa teoria diz respeito ao
condicionamento irrestrito da aplicação dos direitos fundamentais nas
relações privadas a vontade do legislador, o qual deve traçar os
parâmetros e intensidade de tais normas fundamentais nos conflitos
instalados entre particulares, situação essa que não se coaduna com o
atual estágio das sociedades modernas, sujeitas a constantes mutações
que claramente o Legislativo não tem conseguido acompanhar, o que
acaba por ensejar a figura do ativismo judicial.
Daniel Sarmento (2006, p. 24) explica:
Neste quadro, ele nega qualquer relevância à distinção entre
Direito Público e Privado para fins de submissão aos direitos fundamentais. Portanto, segundo Schwabe, quando um
ator privado viola um direito fundamental, o ato poderá ser
imputado também ao Estado, seja porque não proibiu, através do legislador, aquele comportamento individual lesivo a
direitos alheios, seja porque não impediu o ato, através [sic]
da atividade administrativa ou da prestação jurisdicional.
Na Constituição Cidadã, é possível visualizar a exigência
normativa de uma postura ativa por parte do Estado, em situações que
coloquem em risco a integridade de direitos fundamentais, como, por
exemplo, no dever de proteger o meio ambiente (artigo 225 da
CF/88), de propiciar segurança aos cidadãos (artigo 6º da CF/88),
dentre outros.
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3.2 Teoria da aplicabilidade direta ou imediata
Segundo a teoria da aplicabilidade direta ou imediata, os efeitos
decorrentes dos direitos fundamentais nas relações privadas não
deixam de se perpetuar em razão de eventual ausência de previsão
normativa no plano infraconstitucional, sendo estes direitos válidos e
de aplicação imediata em todo o ordenamento jurídico.
Os direitos fundamentais, sejam eles observados nas relações
travadas entre Poder Público e particulares, ou tão somente entre esses
últimos, irradiam de forma incondicionada por todo o território em
face de sua previsão Constitucional, não encontrando qualquer
limitação advinda de outras espécies normativas, notadamente do
Código Civil (GORZONI, 2007, p. 17).
Afirmar a aplicabilidade direta e imediata dos direitos
fundamentais na esfera das relações privadas não significa defender a
aplicação irrestrita de tal preceito, sem o apoio das técnicas de
ponderação e o respeito aos demais princípios que norteiam o
ordenamento jurídico, tal como o da autonomia individual, o que
determinaria, indubitavelmente, um verdadeiro desarranjo social.
Exemplo prático da aplicação da técnica de ponderação em
situações que exigem a afirmação dos direitos fundamentais nas
relações privadas é a própria atividade jurisdicional. Estando o
magistrado no cotejo dos conflitos trazidos a lide em que visualiza
evidente situação de desrespeito a direitos fundamentais entre
particulares, autorizado a decidir, consoante os ditames normativos da
Constituição Federal, independente da existência ou não de legislação
correlata.
Nesse viés, importante ressaltar que a atuação do Estado-Juiz,
baseada em técnicas de ponderação, para solucionar um conflito
estabelecido entre particulares, em que presente uma situação de lesão
a direitos fundamentais, não tem o condão de afastar o princípio da
supremacia do legislador na concretização dos valores constitucionais.
O que se busca é evitar uma lesão ainda maior, nas hipóteses em que o
legislador não previu uma solução em norma específica (DETROZ,
2012).
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3.3 Teoria da aplicabilidade indireta ou mediata
Diferentemente das ideias defendidas pela teoria da
aplicabilidade direta ou imediata dos direitos fundamentais na esfera
das relações privadas, essa teoria perfilha do entendimento de que tal
prática é possível, desde que não realizada de forma irrestrita,
desvinculado de critérios estabelecidos diametralmente em cláusulas
gerais do Código Civil, ou seja, desde que se estabeleça um ponto de
conexão entre as normas constitucionais definidoras de direitos e
garantias fundamentais e o Código Civil, o que se perpetuaria por
meio de cláusulas gerais contidas nesse último Códex, não haveria
oposição pela aplicação indireta dos direitos fundamentais nas relações
envolvendo particulares.
Daniel Sarmento (2006, p. 198) busca um entendimento para
as ideias acima expostas, explicando que:
[...] para a teoria da eficácia mediata, os direitos fundamentais não ingressam no cenário privado como direitos subjetivos, que possam ser invocados a partir da Constituição. Segundo Dürig, a proteção constitucional da autonomia privada pressupõe a possibilidade de os indivíduos renunciarem a
direitos fundamentais no âmbito das relações privadas que
mantêm, o que seria inadmissível nas relações travadas com
o Poder Público.
Defensor veemente desta teoria, Konrad Hesse defende a
necessária atuação do legislador infraconstitucional em transformar o
conteúdo dos direitos fundamentais em normas específicas de eficácia
vinculante. Para o doutrinador, a aplicabilidade dos direitos
fundamentais no âmbito de atuação dos particulares somente se
mostra legítima, quando o legislador estabelece, caso a caso, ou seja,
em um estado de exceção, situações em que se permite uma limitação
aos princípios da autodeterminação e responsabilidade individual
(HESSE, 1998, p. 149-50).
Canotilho apresenta duras críticas ao pensamento de Hesse,
que busca condicionar a eficácia dos direitos fundamentais no âmbito
das relações privadas a uma mera mediação estatal. Para o
doutrinador:
Dizer, como faz Dürig e, na sua senda, os defensores da eficácia mediata, que as posições jurídico-subjetivas reconheciUNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013
das pelos direitos fundamentais e dirigidas contra o Estado
não podem transferir-se, através de uma eficácia externa, de
modo imediato e absoluto, para as relações cidadão-cidadão
(melhor: particular-particular), embora se reconheça terem
os direitos fundamentais força conformadora quer através
[sic] da legislação civil susceptíveis ou carecidas de preenchimento valorativo (wertausfüllungsfähige und wertausfüllungsbedürftige Generalklauseln), parece-nos uma conclusão quase evidente que não responde, como demonstrou Leisner, ao verdadeiro problema da eficácia dos direitos fundamentais em
relação a entidades privadas.
Também não resolve o problema a ideia que, partindo do
caráter jurídico-objetivo das garantias dos direitos fundamentais, prefere situar a questão não no plano de uma eficácia directa dos direitos nas relações cidadão-cidadão, mas no
plano da congruência ou conformidade normativa jurídicoobjetiva entre as normas consagradoras dos direitos fundamentais e as normas de direito civil. Isto supõe a existência
de dois ordenamentos autônomos e horizontais, quando a
ordem jurídica civil não pode deixar de compreender-se
dentro da ordem constitucional: o direito civil não é matéria
extraconstitucional, é matéria constitucional. (CANOTILHO, 2002, p. 1207)
Reforçando a crítica exposta por Canotilho, Marinoni (2008, p.
79) expõe:
Quando se pensa em eficácia mediata, afirma-se que a força
jurídica dos preceitos constitucionais somente se afirmaria,
em relação aos particulares, por meio das normas e dos
princípios de direito privado. Além disso, as normas constitucionais poderiam servir para a concretização de cláusulas
gerais e conceitos jurídicos indeterminados, porém sempre
dentro das linhas básicas do direito privado.
As ideias reunidas nessa teoria ganharam força por meio da
célebre decisão proferida pelo Tribunal Constitucional Alemão, no
julgamento do afamado caso Luth, a seguir descrito:
Em 1950, Erich Lüth, presidente de uma associação de imprensa em Hamburgo, na Alemanha, em uma conferência
na presença de diversos produtores e distribuidores de filmes para cinema, defendeu um boicote ao filme Unsterbliche Geliebte (Amantes imortais), do diretor Veit Harlan,
que, na época do regime nazista, havia dirigido filmes antissemitas e de cunho propagandístico para o regime em vigor.
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Diante disso, o produtor do filme ajuizou ação, considerada
procedente pelas instâncias inferiores, contra Lüth, com o
intuito de exigir indenização e proibi-lo de continuar defendendo tal boicote com base no § 826 do Código Civil alemão, segundo o qual “aquele que, de forma contrária aos
bons costumes, causa prejuízo a outrem fica obrigado a indenizá-lo”. Em face do resultado, Lüth recorreu ao Tribunal
Constitucional, que anulou as decisões inferiores, sustentando que elas feriam a livre manifestação do pensamento de
Lüth. Mas a decisão não se fundou em uma aplicabilidade
direta do direito à manifestação do pensamento ao caso
concreto, mas em uma exigência de interpretação do próprio § 826 do Código Civil alemão, especialmente do conceito de bons costumes, pois, segundo o Tribunal, “toda
[disposição de direito privado] deve ser interpretada sob a
luz dos direitos fundamentais”. (SILVA, 2004, p. 80)
Malgrado existam vozes contrárias a este entendimento, no
sentido de afastar qualquer contribuição do mencionado julgamento
para a consolidação da teoria sob enfoque, certo é que a grande maioria
dos defensores da teoria da aplicabilidade mediata comunga do
entendimento de que a solução dada pelo Tribunal ao caso Luth
contribuiu de forma veemente para reforçar a tese de que os direitos
fundamentais podem ser aplicados nas relações estabelecidas entre
particulares, desde que exista uma conformação dessas regras pelo
legislador ou o magistrado.
3.4 Teoria da State Action
Opondo-se aos posicionamentos ditados pelos defensores das
teorias da aplicabilidade direta e indireta dos direitos fundamentais na
esfera das relações privadas, a presente teoria, também conhecida
como teoria da ineficácia horizontal, afasta por completo a vinculação
das condutas perpetradas pelos particulares aos direitos fundamentais,
o que restaria adstrito tão somente ao Estado, por meio de suas ações.
Para os defensores dessa teoria norte-americana, não há que se
atribuir qualquer hierarquia entre as normas de direitos privado e o
sistema normativo constitucional, mesmo porque os idealizadores de
tal ideia se valem do sistema jurídico a que estão vinculados para
justificar a autonomia dos Estados para solucionar embates
estabelecidos entre particulares; nos Estados Unidos, a União não
detém competência para legislar sobre regras de direito privado,
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função essa atribuída diretamente aos Estados, afastando as Cortes
Federais de proceder a eventuais ingerências em assuntos que
permeiam as relações privadas.
3.5 Teoria da inaplicabilidade dos direitos fundamentais às relações privadas
Para aqueles que defendem a inaplicabilidade absoluta dos
direitos fundamentais aos conflitos estabelecidos entre pessoas do
direito privado, basta, ao seu entender, perquirir acerca da essência dos
direitos fundamentais, ou seja, a motivação histórica que os levaram a
ser reconhecidos na ordem constitucional na condição de cláusulas
pétreas, para entender que qualquer tentativa voltada à vinculação dos
direitos fundamentais aos particulares promoveria uma desnaturação
da tradicional concepção liberal de sistema de direitos voltados à
proteção do indivíduo.
Outro argumento utilizado é que equiparar um dos particulares
à figura do Estado opressor representaria uma agressão declarada ao
princípio da autonomia individual, não sendo justo atribuir ao
magistrado tamanhos poderes para decidir conflitos estabelecidos
entre particulares, valendo-se da ponderação de direitos cuja abstração
lhe é ínsita (SARMENTO, 2006, p. 198-9).
O que se pretende, pois, por meio da presente teoria, é negar a
vinculação dos particulares, justificada, unicamente, na origem
histórica dos direitos fundamentais, o que se apresenta razoável,
considerando que naquele momento histórico quem se apresentava
como o maior opressor dos direitos e garantias fundamentais do
cidadão era o Estado, mas também o poderia ser a Igreja ou a
burguesia, o que relegaria ao insucesso os argumentos ora abarcados
nessa teoria.
Atualmente, com a evolução das sociedades modernas,
notadamente com a forte influência que a corrente neoliberal exerce
sobre todas as esferas da vida humana, outros perigos maiores existem
que não a atuação do Estado na vida privada, sendo, pois,
fundamental que se proteja o ser humano contra todas as ameaças que
porventura possam suprimir os direitos que lhe garantam viver de
forma adequada e digna, provenham elas de qualquer fonte que seja. A
mera igualdade fática entre os particulares não é suficiente para afastar
UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013
as possíveis ameaças e lesões que um particular possa provocar em
outro, mormente quando interesses mesquinhos tornam-se o objeto
central de desejo.
Outrossim, os poderes conferidos aos magistrados para decidir
determinada lide levada ao seu conhecimento não o são exercidos de
forma indiscriminada, estando, pois adstritos aos princípios
constitucionais que guiam o seu oficio. Esse poder lhe conferido de
decidir conforme a ponderação de valores morais e éticos que
permeiam o objeto de disputa justifica-se em razão da evidente
abstração das normas de direitos fundamentais e a própria utilização,
pelo legislador, de cláusulas gerais, abertas e abstratas, rompendo-se
com aquela ideia segundo a qual todas as situações deveriam receber
previsão expressa.
Andrey Borges de Mendonça e Olavo Augusto V. A. Ferreira
(2010, p. 299-301) apresentam como justificativa para afastar
quaisquer ingerências contrárias à eficácia dos direitos fundamentais
nas relações privadas no direito brasileiro, o fato de que a própria:
[...] Constituição direciona-se, para além de regular o poder
político, também para reger a conduta do povo que integra
o território submetido à Constituição. Assim, se o Poder
Constituinte estabeleceu que é fundamento do nosso ordenamento jurídico a proteção aos direitos fundamentais, isto
significa que todos aqueles que estiverem sob o império do
ordenamento jurídico brasileiro estão submetidos aos fundamentos dele, dentre os quais se encontra o respeito aos
direitos fundamentais.
Não obstante a tentativa engendrada pelos defensores da teoria
sob comento, restou a mesma fadada ao insucesso, notadamente após a
decisão proferida pelo Tribunal Constitucional Alemão no caso Luth,
que definiu a possibilidade de aplicação dos direitos fundamentais nas
relações entre particulares, considerando a dimensão objetiva destes,
responsável por irradiar valores vinculativos a toda a sociedade,
independente do regime jurídico adotado (público ou privado).
4 O USO DA PONDERAÇÃO PARA SE ALCANÇAR UMA TEORIA
APLICÁVEL AO ESTADO CONTEMPORÂNEO
Objetivando destacar somente os aspectos positivos das
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teorias que procuram explicar a aplicabilidade (ou não) dos direitos
fundamentais às relações privadas, Robert Alexy propôs uma
harmonização das teorias da eficácia direita ou imediata; eficácia
indireta ou mediata e a teoria dos deveres de proteção estatais acima
relacionadas.
De acordo com o pensamento do autor, o ponto de partida
para se alcançar elementos eficazes que autorizem a aplicação dos
direitos fundamentais nas relações estabelecidas no âmbito privado,
sem, contudo, esvaziar a autonomia dos particulares, nada mais é do
que a aplicação do critério da ponderação.
Essa ponderação é realizada na aplicação das três teorias
conjuntamente, as quais acabariam por conduzir a resultados
equivalentes. Assim, em um primeiro momento, impõe-se ao Estado o
dever de legislar e julgar conforme o alcance estabelecido pelos valores
contidos na dimensão objetiva dos direitos fundamentais (teoria da
aplicação indireta ou mediata). Na sequência, caberia ao Estado tutelar
esses direitos fundamentais, assegurando a aplicação prática desses por
meio de mecanismos específicos (teoria da proteção estatal). Por fim,
reunindo todos os elementos necessários para a efetivação dos direitos
fundamentais, não haveria óbice algum para se proceder a vinculação
dos particulares ao referidos direitos (RABELO NETO, 2012).
A teoria própria e diferenciada proposta por Alexy é vista por
muitos doutrinadores como equivalente a própria teoria da eficácia
direta dos direitos fundamentais, a qual é adotada pela Espanha, Itália,
Argentina e em Portugal.
No Brasil, apesar de manifestos contrários, tem se observado
uma forte tendência em adotá-la, haja vista o fato de a referida teoria
se adequar à realidade e ao ordenamento jurídico brasileiro.
Neste diapasão, seguem os ensinamentos Luís Roberto
Barroso (2007, p. 17):
O ponto de vista da aplicabilidade direta e imediata afigurase mais adequado para a realidade brasileira e tem prevalecido na doutrina. Na ponderação a ser empreendida, como na
ponderação em geral, deverão ser levados em conta os elementos do caso concreto. Para esta específica ponderação
entre autonomia da vontade versus outro direito fundamental em questão, merecem relevo os seguintes fatores: a) a igualdade ou desigualdade material entre as partes (e.g., se
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uma multinacional renuncia contratualmente a um direito,
tal situação é diversa daquela em que um trabalhador humilde faça o mesmo); b) a manifesta injustiça ou falta de razoabilidade do critério (e.g., escola que não admite filhos de
pais divorciados); c) preferência para valores existenciais sobre os patrimoniais; d) risco para a dignidade da pessoa humana (e.g., ninguém pode se sujeitar a sanções corporais).
O Supremo Tribunal Federal adotou a teoria da eficácia direta
dos direitos fundamentais nas relações entre particulares no
julgamento do RE 201.819/RJ, 2ª turma, relator para o acórdão Min.
Gilmar Mendes, julgado em 11 de outubro de 2005, entendendo
aplicável o direito fundamental ao devido processo legal, contraditório
e ampla defesa em favor do sócio que se pretendia ver-se excluído pela
associação:
SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. UNIÃO BRASILEIRA DE COMPOSITORES. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. RECURSO DESPROVIDO.
I. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES
PRIVADAS.
As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente
no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à
proteção dos particulares em face dos poderes privados.
II. OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS COMO LIMITES À
AUTONOMIA PRIVADA DAS ASSOCIAÇÕES.
A ordem jurídico-constitucional brasileira não conferiu a
qualquer associação civil a possibilidade de agir à revelia dos
princípios inscritos nas leis e, em especial, dos postulados
que têm por fundamento direto o próprio texto da Constituição da República, notadamente em tema de proteção às liberdades e garantias fundamentais. O espaço de autonomia
privado garantido pela Constituição às associações não está
imune à incidência dos princípios constitucionais que asseguram o respeito aos direitos fundamentais de seus associados. A autonomia privada, que encontra claras limitações na
ordem jurídica, não pode ser exercida em detrimento ou
com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros, especialmente aqueles positivados em sede constitucional, pois a
UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013
autonomia da vontade não confere aos particulares, no domínio de sua incidência e atuação, o poder de transgredir ou
de ignorar as restrições postas e definidas pela própria
Constituição, cuja eficácia e força normativa também se impõem, aos particulares, no âmbito de suas relações privadas,
em tema de liberdades fundamentais.
III. SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. ENTIDADE
QUE INTEGRA ESPAÇO PÚBLICO, AINDA QUE NÃO ESTATAL. ATIVIDADE DE CARÁTER PÚBLICO. EXCLUSÃO DE
SÓCIO SEM GARANTIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL. APLICAÇÃO DIRETA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS À AMPLA
DEFESA E AO CONTRADITÓRIO.
As associações privadas que exercem função predominante
em determinado âmbito econômico e/ou social integram o
que se pode denominar de espaço público, ainda que não estatal. A União Brasileira de Compositores- UBC, sociedade
civil sem fins lucrativos, integra a estrutura da ECAD e, portanto, assume posição privilegiada para determinar a extensão do gozo e fruição dos direitos autorais de seus associados. A exclusão do sócio do quadro social da UBC, sem
qualquer garantia de ampla defesa, do contraditório, ou do
devido processo constitucional, onera consideravelmente o
recorrido, o qual fica impossibilitado de perceber os direitos
autorais relativos à execução de suas obras. A vedação das
garantias constitucionais do devido processo legal acaba por
restringir a própria liberdade de exercício profissional do sócio. O caráter público da atividade exercida pela sociedade e
a dependência do vínculo associativo para o exercício profissional de seus sócios legitimam, no caso concreto, a aplicação direta concernentes ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa (art. 5º, LIV e LV, CF/88).
IV. RECURSO EXTRAORDINÁRIO DESPROVIDO. (BRASIL,
2006)
O que se conclui da análise das diversas teorias que buscam
encontrar critérios de interferência ou não do Estado na vida privada e
a possibilidade de aplicação direta ou indireta dos direitos
fundamentais às relações entre particulares é que o ordenamento
jurídico é uno e complexo, sendo, pois, ilógico conceber uma fórmula
simples e acabada para solucionar questões cuja resposta encontra-se
na ponderação dos valores e bens determinados no caso concreto, em
consonância com os princípios que regem o ordenamento jurídico,
irradiando sua eficácia sobre todas as pessoas que se encontram sob
sua tutela.
UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pela análise do conteúdo exposto, notadamente dos
fundamentos utilizados por doutrinadores nas construções teóricas
que ora defendem, ora negam a eficácia horizontal dos direitos
fundamentais na seara privada, denota-se que em nenhum momento, a
busca por argumentos justos e democráticos encontra-se presente no
embasamento proposto.
As digressões em torno da aplicabilidade dos direitos
fundamentais para a solução de conflitos estabelecidos entre
particulares não se devem concentrar na mera formalidade de serem
direta ou indiretamente aplicáveis, mas sim na compreensão de que o
particular, esteja ele em que posição se encontre, é destinatário dos
direitos fundamentais constitucionalmente garantidos.
Essa irradiação de valores que deve nortear todo o atuar dos
Poderes Estatais, na solução de conflitos levados a sua análise, foi
determinante para a construção do atual cenário neoconstitucional em
que a sociedade moderna encontra-se inserida. Nesse contexto, a
aplicação direta dos direitos fundamentais, sem qualquer
intermediação legislativa como condição a quo, é a solução que melhor
se coaduna com o sistema de proteção e princípios adotados pela
Constituição Federal de 1988.
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UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013
ACESSO À JUSTIÇA EM FACE À LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ
POR MEIO DA ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA GRATUITA
Danielle Augusto Governo*
RESUMO
Este trabalho científico surgiu da necessidade de se entender a razão
pela qual a população abarrota as varas dos tribunais de todo o Brasil
com lides desnecessárias, produzidas de modo abusivo e, não raro, de
má-fé. Partindo de análise histórica, mostrando a transformação do estado liberal em social, e depois, em pós-social, no qual se verifica uma
visão estritamente individualista, nascedouro de uma legislação social
protecionista. Cresceu demasiadamente o número de litigantes aventureiros a utilizar indevidamente do direito de ação e do acesso à justiça
gratuita. Este estudo pretende demonstrar o quão relevante é o acesso
à justiça por ser uma das maiores garantias dentro do ordenamento jurídico brasileiro. A pesquisa mostra que de nada adianta o melhoramento legislativo, se não houver mudança na mentalidade dos operadores do direito, dos juízes, advogados e, principalmente, das partes
envolvidas.
Palavras-chave: Acesso à justiça. Assistência judiciária gratuita. Litigância abusiva.
ABSTRACT
This scientific work arose from the need to understand why the population crams the courts throughout Brazil with unnecessary litigations,
produced in an abusive way, and often in bad faith. Starting from historical analysis, showing the transformation of the liberal in the social
state, and later in post-social, in which there is a strictly individualistic
vision, birthplace of a protectionist social legislation. The number of
*
Graduanda do curso de Direito, na Faculdade do Norte Pioneiro (FANORPI/UNIESP).
UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013
adventurer litigants that misuse the right of action and access to free
legal aid grew excessively. This study attempts to demonstrate how
relevant access to justice is for being one of the best guarantees in the
Brazilian legal system. The research shows that there is no point improving the legislative branch if there is no change in the mindset of
jurists, judges, lawyers, and especially of the parties involved.
Key words: Access to legal aid. Free legal aid. Abusive disputes.
UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013
ACESSO À JUSTIÇA EM FACE À LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ
POR MEIO DA ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA GRATUITA
Danielle Augusto Governo
SUMÁRIO: 1 Introdução – 2 Antecedentes históricos – 3 Justiça gratuita x assistência
judiciária – 3.1 Divergência entre assistência judiciária e justiça gratuita – 4 Assistência
jurídica integral e gratuita – 5 Litigância de má-fé – 6 Considerações finais
1 INTRODUÇÃO
Infelizmente, o Poder Judiciário brasileiro encontra-se em
crise. Antes de ser apenas um mal em si, o fato deve ser encarado
como uma extraordinária oportunidade de aperfeiçoamento, pois o
problema é complexo. De um lado, a concorrência da sociedade com
suas inúmeras dificuldades econômicas, sócio-políticas (degradação
dos costumes político-administrativas), culturais (desagregação
familiar, falta de acesso à escola), bem como conjunturais (corrupção,
violência urbana, pauperização da classe média) concorrendo para o
aumento das responsabilidades do aparelho jurídico em face de um
conflito cada vez mais explosiva e crescente. Nesse sentido, a Magna
Carta de 1988 ensejou nova visão jurídica, na qual o que falta à norma
deve ser adicionado pelos intérpretes da lei, num construtivismo
discricionário, porém coerente, que objetiva privilegiar a igualdade,
com um mínimo de perda da liberdade de cada cidadão. Contudo, de
nada adianta um judiciário moderno e equilibrado, se a sociedade o vê
em percepção errônea de instituição paternalista, voltada a justiça
corretiva de compensações, retrógrada e inexequível. Como se não
bastasse esse cenário, o mesmo vem se acentuando paralelamente a
um questionamento inevitável do ponto de vista sociopolítico, da
eficácia das democracias representativas e da mui relevante figura do
judiciário em frente à progressiva “falência” das mesmas.
Diante do lançamento do objeto de estudo desta dissertação,
conclui-se que é obrigação dos juízes, “representantes do Estado” e na
condição de legisladores, usarem de toda sua perspicácia e poder
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interpretativo para coibir as litigâncias abusivas. Também é obrigação
dos causídicos prezarem a sua esfera e, por fim, do cidadão conviver
com as vicissitudes, sem se deixar levar pelo chamariz da vantagem a
qualquer custo.
Destarte, este estudo auxiliará o amadurecimento humano,
haja vista ser consequência desse debate a colocação do homem a
refletir e, assim, melhorar aquilo que já existe, já que se pretende com
o presente escrito analisar o instituto jurídico da litigância abusiva e a
questão do acesso e assistência judiciária gratuita como uma das
maiores causas da crise da efetividade da Justiça.
2 ANTECEDENTES HISTÓRICOS
Primeiramente, é mister fazer uma investigação histórica no
tocante às transformações processadas ao longo dos séculos XVIII,
XIX, XX e XXI. Nesse sentido, a história do direito é intrínseca ao
surgimento e à evolução do Estado, bem como de suas atribuições, o
que é mui relevante para este estudo, pois a sobrecarga é, sem sombra
de dúvidas, a maior delas já que compromete a efetividade da
prestação jurisdicional.
Assim, bom é destacar que, nos séculos XVIII e XIX, duas
grandes revoluções marcaram a história da humanidade, mudando de
modo significativo a concepção do que vem a ser Estado e o
relacionamento da sociedade com o Direito.
O Direito, antes da Revolução Francesa, existia tão somente
como instrumento para ajudar a impor privilégios à nobreza, com
fulcro em códigos jusnaturalistas, os quais eram supostamente
delegados pelo Poder Divino e absolutamente indiferentes e, pior
ainda, eram inacessíveis ao homem comum (ALEXY, 2008, p. 203).
Diante dessa ausência de preocupação com o bem comum, a
Revolução Francesa, com seus apelos à igualdade e à fraternidade,
modificou demasiadamente o relacionamento individual e as relações
com o Poder, o que fez com que a burguesia tomasse posse das
reivindicações e impregnasse a população dos ensinamentos
filosóficos originados da produção intelectual de grandes mestres
como Montesquieu, Rousseau e Locke (ALEXY, 2008, p. 204).
Com o escopo de limitar os poderes concentrados nas mãos
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dos reis, a classe burguesa solidificou o princípio da legalidade sob o
manto individualista e voltado à noção de propriedade.
Tal contexto histórico, pode se falar, favoreceu de modo
excessivo o nascimento do Estado liberal de Direito e colocou a lei
como um ato supremo, suprimindo as tradições jurídicas do
absolutismo e as arbitrariedades, haja vista os direitos consistirem
somente em norma jurídica, a qual não dependia de corresponder com
a justiça, mas de ter sido feita apenas por uma autoridade competente.
Outro fato de enorme curiosidade importância para esta
pesquisa foi o surgimento das Cartas Americana de 1787 e a Francesa
de 1791 que marcam o primado da Lei (ALEXY, 2008, p. 204). Sem
enfatizar que as primeiras diferenças de concepção de ambas as Cartas
eram que os franceses pretendiam afirmar primária e exclusivamente
os direitos do indivíduo, enquanto que os americanos ligaram os
direitos do indivíduo com o bem comum da sociedade.
Vê-se que a Democracia, desde sua fase nascitura, já
apresentava contradições, quais sejam, uma nova imposição da
soberania marcada pela vontade da maioria, um Estado forte
concebido por Rousseau e um grau quase irrestrito de liberdades,
compatíveis com o Estado mínimo proposto por Montesquieu, em
sua divisão tripartite (L’esprit de lois).
Nesse sentido, o estado liberal de Direito garantia a
propriedade e as liberdades individuais, mas estava muito mais
preocupado em não retroceder do que fazer a Justiça propriamente
dita e, infelizmente, não havia preocupações com o acesso à justiça
que se revelava formal e caro.
Em que pese os sucessivos infortúnios que continuavam a
atingir os trabalhadores, no final do século XIX, começavam a se
institucionalizar os direitos civis, políticos e econômicos da massa de
trabalho, com o fim de corrigir as imensas injustiças sociais,
acentuadas pelo capitalismo (ALEXY, 2008, p. 203).
Posteriormente, nasce a segunda forma de Estado de Direito,
chamada Estado de Bem Estar Social – expressão advinda do direito
britânico (Welfare State) –, na qual se admitia a necessidade de proteção
do estado para o cidadão desfavorecido, dependente, escravizado
pelos ásperos contratos do sistema liberal em virtude de todos
dispuserem de condições mínimas de renda, saúde, alimentação,
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habitação, asseguradas pelo Poder Público como direito político e não
como caridade ocorre hodiernamente. Ou seja, as leis, que antes
libertavam o homem do jugo da nobreza, passaram a ser um
instrumento de progresso social e superação dos valores burgueses de
exploração operária.
No tocante à esfera do acesso à justiça, o surgimento do
Estado de Bem Estar Social foi essencial. Afirma-se isso em razão do
Estado, ao resgatar para si a responsabilidade do controle e da
equidade sociais, aproximou-se do cidadão para protegê-lo por
intermédio da legislação que dispunha, visto que o Direito Público
chegou perto do Direito Privado, fato esse conhecido como
“publicização”2 do Direito (ALEXY, 2008, p. 203).
Vale salientar que o homem comum, que não dispusesse de
um sindicato forte que o protegesse ou força de um partido
majoritário, necessitaria do judiciário, que era uma espécie de
interlocutor protetor, pois os juízes e os “intérpretes da lei” passaram
a ser vistos como a última esperança daqueles.
Diante disso, a busca quase obsessiva pela Justiça lançou o
Judiciário na complexa tarefa de intrometer-se nas funções de outros
poderes para obrigá-los a cumprir as prestações positivas que a
sociedade reivindicava.
Já no Brasil, após a Proclamação da Independência em 1822, o
acesso à justiça e as noções de liberdade das revoluções europeias
pouco se modificou, infelizmente. Tenha-se presente que o Estado
Social teve como marco inicial a Constituição de 1934, a qual dispunha
uma grande evolução de direitos trabalhistas, embora, já em 1937
tenha havido um retrocesso político, por meio da criação de um
estado centralizador e autoritário (MORAES; SILVA, 1984, p. 184).
Nesse sentido, é imprescindível ressaltar que desde a década de
1930 até os anos 1980, assistiu-se a um processo de lenta e
permanente expansão das políticas sociais.
Diz-se isso porque a partir de 1988, com a promulgação da
2
PUBLICIZAÇÃO. Ação ou resultado de tornar público, de dar publicidade;
Processo infraconstitucional de intervenção legislativa em área que antes interessava apenas ao âmbito privado do indivíduo. In: iDICIONÁRIO Aulete. Disponível em: <http://aulete.uol.com. br/publicização#ixzz2aa2LUsz8>. Acesso em:
30 jul. 2013.
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nova Carta Magna, o Poder Judiciário iniciou uma fase de
modificações. Portanto, foi garantido incompletamente o acesso à
justiça, de modo coletivo e individual. Infelizmente, contribuiu
também para que os brasileiros apoderaram-se de seus novos direitos
e, por consequência, superlotaram os tribunais.
3 JUSTIÇA GRATUITA X ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA
Ab initio, a doutrina compreende justiça gratuita essencialmente
como a isenção de custas processuais, no caso concreto, isto é, perante
aquele juiz que irá responder pela prestação jurisdicional.
Posta assim a questão, observa-se que justiça gratuita é a
gratuidade de todas as custas e despesas, judiciais ou não, relativas a
atos necessários ao desenvolvimento do processo e à defesa dos
direitos do beneficiário em juízo (MARCACINI, 1996, p. 96).
Cumpre assinalar que o benefício de justiça gratuita abrange a
isenção de toda e qualquer despesa necessária ao pleno exercício dos
direitos e faculdades processuais, sendo tais despesas judiciais ou não
(JUNKES, 2008, p. 14). Em outras palavras, não apenas as custas
relativas aos atos processuais a serem praticados como também todas
as despesas decorrentes da efetiva participação na relação processual
são tidas como elementos da justiça gratuita.
Deve-se lembrar de que a justiça gratuita trata de concessão do
Estado, que por intermédio da gratuidade processual assume uma
postura passiva. No dizer sempre expressivo de Augusto Marcacini
(1996, p. 33):
A gratuidade processual é uma concessão do Estado, mediante a qual este deixa de exigir o recolhimento das custas e
das despesas, tanto as que lhe são devidas como as que
constituem crédito de terceiros. A isenção de custas não pode ser incluída no conceito de assistência, pois não há a
prestação de um serviço, nem desempenho de qualquer atividade; trata-se de uma postura passiva assumida pelo Estado.
Dessa forma, a assistência judiciária é, indubitavelmente, um
serviço público organizado, consistente na defesa em juízo do
assistido, que deve ser oferecido pelo Estado, contudo também pode
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ser desempenhado por entidades não estatais, conveniados ou não
com o Poder Público, para o exercício de tal atividade perante o Poder
Judiciário.
Como se observa no caso da Defensoria Pública – entidade
não estatal que desempenha este serviço como objetivo principal –, os
advogados que por ordem judicial ou por convênio com o Poder
Público exerçam esse serviço podem ser considerados prestadores de
assistência judiciária.
Partindo desse pressuposto, a prestação de assistência
judiciária nada mais é que um serviço público. Sob tal aspecto existe
uma divergência entre as relações assistido e prestador de assistência
judiciária e também entre cliente e advogado. No primeiro caso, o
assistido não escolheu seu defensor, porém se dirigiu a um órgão
prestador de assistência judiciária em busca de um serviço gratuito,
que atenderá o carente, porque sua função é esta. Na segunda hipótese
ocorre o inverso, pois o cliente procura o advogado privado, que lhe
prestará um serviço por meio de contrato oneroso (JUNKES, 2008, p.
313).
3.1 Divergência entre assistência judiciária e justiça gratuita
Em um primeiro momento, não se pode olvidar que a
assistência judiciária não se confunde de modo algum com a justiça
gratuita. Assegura-se isso, porque a assistência judiciária é garantida
pelo Estado, que permite ao necessitado o acesso aos serviços
profissionais do advogado e dos demais auxiliares da justiça, bem
como dos peritos, seja por meio da defensoria pública ou da
designação de um profissional liberal pelo Juiz (MARCACINI, 1996,
p. 101).
No tocante à justiça gratuita, a mesma consiste na isenção de
todas as despesas inerentes à demanda, e é instituto de direito
processual. Entretanto, as duas são fundamentais para que os desiguais
tenham acesso à Justiça.
Destaca-se que na assistência judiciária, o Estado assume a
obrigação de arcar não só com as despesas processuais, como também
com os honorários advocatícios do patrono do assistido. Enquanto
que na justiça gratuita, a isenção suportada pelo Estado restringe-se às
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despesas processuais, sendo o causídico escolhido constituído e
remunerado pelo próprio cliente.
4 ASSISTÊNCIA JURÍDICA INTEGRAL E GRATUITA
A princípio, a assistência jurídica integral e gratuita é conceito
bem mais amplo que a assistência judiciária, visto que essa última está
relacionada à tutela de direitos subjetivos, abrangendo atividades
técnico-jurídicas
de
prevenção,
informação,
consultoria,
aconselhamento, bem como atividades extrajudiciais e notariais, sendo
que está disposta no Art. 5º, inciso LXXIV, da Carta Cidadã, “O
Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem
insuficiência de recursos”.
É óbvio que esse direito é conferido a quem não possua
recursos financeiros para arcar com os ônus do processo, incluídos
honorários de advogados e peritos, podendo obter a prestação
jurisdicional do Estado.
Em linhas gerais, nota-se que a Defensoria Pública presta
“assistência jurídica integral e gratuita”, e não “justiça gratuita” ou
“assistência judiciária” (MARCACINI, 1996, p. 101).
Convém ressaltar que a assistência judiciária é um benefício do
Estado, que é entendido como a defesa técnica gratuita dos interesses
da pessoa assistida perante o Poder Judiciário.
Neste ponto, é indispensável citar as palavras de Junkes (2008,
p. 81-2):
Já a “assistência jurídica integral” abrange não só o patrocínio judicial como também o extrajudicial. Isto é, através
desse benefício, o Estado é incumbido não só de propiciar a
defesa gratuita em juízo dos interesses do assistido em juízo,
como também prestar-lhe orientação e aconselhamento jurídico gratuito. O benefício da assistência jurídica, portanto,
é mais amplo que o da assistência judiciária, englobando-a.
Já os benefícios da “justiça gratuita” implica a gratuidade de
custas e despesas, tanto judiciais como extrajudiciais, atinentes a um processo judicial.
Como já dito, a expressão assistência jurídica integral e gratuita
é mais ampla que a mera assistência judiciária, haja vista importa até
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mesmo na assistência profissional na esfera extrajudicial, quer dizer, na
esfera tipicamente administrativa, quer seja a esfera administrativa
vinculada ao Poder Judiciário, quer seja a esfera administrativa
tipicamente relacionada com a atuação do Poder Executivo e dos seus
órgãos, tais como secretarias de Estado e organismos outros
vinculados à administração pública direta ou indireta.
A assistência jurídica integral, pelo fato de ser integral, por via
de consequência, tutela os interesses das pessoas necessitadas quer na
esfera judicial ou extrajudicial.
A assistência jurídica integral e gratuita trata de um conceito
que vai dos dois anteriormente traçados, pois não se cinge apenas e
tão-somente ao campo de atuação junto ao Poder Judiciário, mas
abarca aspectos de assistência para ingresso em juízo bem como
aspectos não diretamente relacionais ao processo tais como
esclarecimentos, orientações e auxílios aos hipossuficientes na seara
extrajudicial, por exemplo, como proceder junto a Cartórios de
Registro de Pessoas Naturais, de Registro de Imóveis, etc.
A assistência jurídica integral e gratuita prestada aos
hipossuficientes transcende a pura e simples assistência judicial
precipuamente levando-se em conta a expressão “assistência jurídica
integral e gratuita” elevada ao patamar de direito fundamental para
aqueles que, comprovadamente, são juridicamente carentes, conforme
reza o inciso LXXIV, do art. 5º da Constituição Federal
(MARCACINI, 1996, p. 87).
Enfim, infere-se, ainda, que esse direito da assistência jurídica
integral e gratuita é uma garantia para a efetivação de tantos outros
direitos, ou seja, deve haver uma atenção maior com esse direito, na
busca de uma almejada isonomia entre todos.
5 LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ
Litigância simulada – advinda da expressão sham litigation do
direito britânico – equivale a uma ação ou um conjunto de ações
promovidas na esfera do Poder Judiciário, com bases objetivas,
fundamentadas e, naturalmente, com expectativa plausível e razoável
de sucesso, mas portando a finalidade dissimulada de prejudicar
concorrente direto.
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A expressão está relacionada ao abuso do direito de petição ao
Poder Executivo e Legislativo, haja vista a litigância simulada salientar a
compreensão de utilização de camuflagem processual pelo competidor
de má-fé, pois é essencial para a caracterização da conduta que a tutela
estatal seja invocada com o desiderato claro de prejudicar a
concorrência (MARINONI, 2006, p. 301). Sem esse último requisito
comprovado, não há como se falar em sham litigation, pois a invocação
da autoridade estatal acontece de maneira disfarçada, simulando uma
situação para ocultar o fim almejado de prejudicar. Utiliza-se da má-fé
para a obtenção de uma vantagem indevida.
A Carta da República prega, em seu artigo 5º, inciso XXXIV,
alínea "a", o direito fundamental de petição aos poderes públicos e
também há o direito de ação que é protegido (artigo 5º, inciso XXXV,
da Constituição Federal de 1988) e seu abuso coibido com o instituto
da má-fé processual. In casu, tendo em vista que no direito de ação o
sujeito passivo é o Estado, o dolo do litigante provoca vício na
vontade judicial e somente o Estado-juiz é titular para declarar o
exercício abusivo desse direito.
Em que pese o artigo 14, inciso III, do Código de Processo
Civil que versa sobre a litigância de má-fé, como se pode observa:
Art. 14. São deveres das partes e de todos aqueles que de qualquer forma participam do processo:
[...]
III – não formular pretensões, nem alegar defesa, cientes de que
são destituídas de fundamento.
Nota-se que mesmo assim os brasileiros usam e abusam de seu
direito de ação por meio da assistência judiciária gratuita,
superlotando, assim, as varas dos tribunais desse país.
Não se pode olvidar também que o artigo 17 do mesmo codex
exemplifica condutas apuradas como má-fé do litigante. Dentre elas, o
inciso III, que tacha como má-fé o uso do processo com fins de se
alcançar objetivo ilegal.
Para melhor entender, é preciso ver que as normas
constitucionais são de hierarquia superior às demais normas do
ordenamento jurídico e quando surge um conflito de aplicação
normativa, prevalece o direito disposto na Constituição Federal, pois
se deve optar qual delas favorecer e qual restringir e isso pode ser feito
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por meio do teste do sopesamento – teoria de Robert Alexy, que
requer a análise da proporcionalidade (MORAES, 2002, p. 34).
Não se pode perder de vista que, para se restringir um
princípio, exige-se competência processual e cabe unicamente ao
Poder Judiciário a declaração da má-fé processual. Em outras palavras,
para se limitar o direito de ação e de petição com fulcro na litigância
de má-fé, a competência do Sistema Brasileiro de Defesa da
Concorrência depende de prévia declaração da má-fé pelo Judiciário
(MORAES, 2002, p. 185).
Registre-se ainda que a proporcionalidade, proposta por Alexy,
compreende critérios de adequação, necessidade e proporcionalidade
em sentido estrito. Em consonância, é mister explanar cada um deles:
a) adequação refere-se ao fomento do objetivo privilegiado, no
sentido de que a restrição a um dos direitos gera benefícios na esfera
daquele que o contrapõe;
b) necessidade está ligada à existência e possibilidade de
utilização de outros meios que fomentem o objetivo proposto, com
menos restrição a outro direito;
c) proporcionalidade em sentido estrito é o emprego de método
comparativo e equivalente: avalia-se, na situação concreta, se o grau de
efetivação de um lado justifica o grau de restrição do outro (custobenefício), não por meio da comparação de medidas (como na
avaliação da necessidade), mas pela análise interna da medida. Lida-se,
neste último ponto, com direitos.
Isto é, se a eficiência for muito grande com o mínimo de
restrição, o ganho se encaixa na proporcionalidade, contudo se mesmo
com elevado grau de eficiência a restrição também for muito grande, o
ganho não compensará e a medida será desproporcional
(MARINONI, 2006, p. 580).
O conflito entre direito de ação e de petição versus a litigância
de má-fé, se apurada esta última, pende para o lado da restrição ao
direito de ação, pois atuando de má-fé, a parte infringe o dever do
artigo 14, do Código de Processo Civil.
Os casos em que há litigância de má-fé causada por meio de
assistência judiciária gratuita geram muitos malefícios ao Poder
Judiciário, visto que lotam fóruns de todo o Brasil.
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Destarte, o que se percebe é que falta consciência cívica e o
problema mais uma vez, lamentavelmente, se volta contra o Estado,
porque este, por ter sucumbido em seu dever de promover a educação
e semear a noção de cidadania, sofre agora, com mais esta mazela
(DINAMARCO, 2001, p. 223).
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em que pese ter conhecimento de que o debate não se finda
por aqui e diante dos argumentos até aqui levantados, vê-se que o
problema é cultural, porque falta pedagogia cívica, entretanto a
mudança dessa situação requer esforços do próprio Estado, o que é
contrário à vontade dos detentores do poder.
Foram analisados o acesso à justiça, a assistência judiciária
gratuita integral e sua divergência, bem como a litigância de má-fé
causada por aqueles institutos jurídicos, motivada também por
inúmeros fatores sociais, culturais e educacionais.
O Código de Processo Civil exige tanto da parte, quanto de
seu representante, um comportamento ético, mas não responsabiliza
este último pelo pagamento de perdas e danos em casos de litigância
de má-fé e isso deve ser reformado, uma vez que não se concebe mais
no atual contexto jurídico e social que o compromisso do defensor
seja tão somente cuidar dos interesses das partes, quaisquer que sejam
eles.
Ad postremum, conclui-se que a sociedade deve pugnar do
Estado o cumprimento das obrigações dispostas na Carta Cidadã e
essa deve cumpri-las com o fim de evitar a litigância abusiva, visto que
o próprio cidadão deve preservar os ganhos políticos e sociais
presentes em tal Constituição, obedecer às leis e, mormente, exigir de
seus iguais a mesma conduta.
REFERÊNCIAS
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008.
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DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual
civil. São Paulo: Malheiros, 2001. v. II.
JUNKES, Sérgio Luiz. Defensoria Pública e o princípio da justiça
social. 1. ed. reimp. Curitiba: Juruá, 2008.
MARCACINI, Augusto Tavares Rosa. Assistência Jurídica, Assistência Judiciária e Justiça Gratuita. Rio de Janeiro: Forense, 1999.
MARINONI, Luiz Guilherme. Manual do Processo de Conhecimento. 5. ed. rev., atual., amp. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 11. ed. São Paulo:
Atlas, 2002.
MORAES, Humberto Peña; SILVA, José Fontenelle. Teoria da assistência judiciária: sua gênese, sua história e a função protetiva
do Estado. 2. ed. Rio de Janeiro: Líber Juris, 1984.
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A INCIDÊNCIA DO ICMS NA CIRCULAÇÃO DE MERCADORIAS
VIA INTERNET
Nayara Marques Longhini*
RESUMO
Este estudo tem o escopo de analisar a incidência do ICMS, enunciado
no artigo 155, inciso II, da Constituição Federal, nas operações de circulação de mercadorias do comércio na Internet. Procede-se à análise
das implicações que o comércio eletrônico trouxe ao mundo tributário
e econômico, principalmente quanto à tributação de bens comercializados. Faz uma reflexão sobre a possível tributabilidade do ecommerce e a incidência do ICMS na operação de circulação de bens
tangíveis, discutindo se os intangíveis também serão considerados
mercadorias para fins de aplicação desse imposto. Concluindo e pregando que o comércio eletrônico é passível de tributação e que o imposto incidente no comércio virtual deve ser o ICMS.
Palavras-chave: Sistema tributário nacional. Comércio eletrônico.
ICMS. Circulação de mercadorias.
ABSTRACT
The scope of this study is to analyze the incidence of ICMS (VAT), as
stated in Article 155, item II of the Federal Constitution, in the operations of movement of trade goods on the Internet. It proceeds to an
analysis of the implications e-commerce has brought to tax and economic areas, especially regarding the taxation of goods sold. It makes a
reflection on the possible taxation of e-commerce and application of
ICMS in the operation of movement of tangible and intangible goods,
discussing whether intangible goods will also be considered for the
application of this tax. It concludes by asserting that e-commerce is
*
Advogada; pós-graduanda em Direito do Estado (Universidade Estadual de
Londrina).
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subjected to tax and that the tax levied in virtual shopping should be
ICMS.
Key words: Electronic commerce. ICMS. Movement of goods.
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A INCIDÊNCIA DO ICMS NA CIRCULAÇÃO DE MERCADORIAS
VIA INTERNET
Nayara Marques Longhini
1 INTRODUÇÃO
Desde o surgimento da grande rede mundial de computadores,
o que se percebe é a grande revolução pela qual a sociedade vem
passando com a implementação deste novo sistema.
Rapidez e liquidez de informações, encurtamento de distâncias,
velocidade de transações, virtualização de operações que antes só eram
possíveis em meio físico, a exemplo do comércio eletrônico,
trouxeram para todas as áreas de convívio social grandes modificações,
e com o direito, ciência que se pauta no relacionamento humano, não
seria diferente.
Conceitos arraigados e diretrizes já firmadas precisam ser
revistos frente a tantas transformações, até mesmo no campo
tributário.
Para abordagem do tema em estudo, proceder-se-á a uma
análise do comércio eletrônico, nova modalidade de transação
mercantil que se desenvolve via internet, em conjunto com institutos
do direito tributário, para se discutir a possibilidade de tributação das
operações de circulação de mercadorias realizada em rede virtual.
O Imposto Sobre Operações Relativas à Circulação de
Mercadorias e Sobre Prestações de Serviços de Transporte
Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (ICMS), de
competência estadual e distrital, disposto no art. 155, II, da
Constituição Federal, surgiu, justamente, para taxar a comercialização
de bens que se dá em meio físico. No entanto, diante da atual
conjuntura e da crescente disseminação do e-commerce não faz
sentido que o citado tributo fique restrito àquilo que não seja
eletrônico.
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Dentro desse panorama, o presente estudo delimitará como
objeto a incidência do ICMS em sua vertente que mais interessa ao
comércio desenvolvido em meio eletrônico, qual seja, a transferência
de bens via internet, sejam eles tangíveis ou intangíveis.
Para tanto, esta pesquisa abordará especificamente a
tributabilidade do comércio eletrônico, mais precisamente se discutirá
a possibilidade de incidência do ICMS nas operações de circulação de
mercadorias ocorridas em meio virtual, somando o que fora levantado
nas proposições iniciais para definição de bens tangíveis e intangíveis,
sua relação com o e-commerce e a aplicação do comentado imposto.
2 A TRIBUTABILIDADE DO COMÉRCIO ELETRÔNICO
De forma assente, afirma-se que o comércio eletrônico, nova
modalidade de operações mercantis, invadiu os meios sociais e veio
pra ficar, se expandindo dia-a-dia e ganhando contornos mais claros e
definidos com o passar do tempo.
Entre os mais variados conceitos que foram se formando na
tentativa de definir esta prática comercial, que surgiu com o
aparecimento da internet lá por meados da década de 90, se torna
consenso, que para ser caracterizado como comércio eletrônico é
necessário a existência da troca de dados por meio de redes de
computadores, principalmente a Internet. Para Albertin (2010, p. 3):
O comércio eletrônico (CE) é a realização de toda a cadeia
de valor dos processos de negócio num ambiente eletrônico,
por meio da aplicação intensa das tecnologias de comunicação e de informação, atendendo aos objetivos de negócio.
Os processos podem ser realizados de forma completa ou
parcial, incluindo as transações negócio-a-negócio, negócioa-consumidor e intraorganizacional, numa infraestrutura
pública de fácil e livre acesso e baixo custo.
Com o mesmo sentido, discorre Coelho (2006, p. 32):
Comércio eletrônico é a venda de produtos (virtuais ou físicos) ou a prestação de serviços realizados em estabelecimentos virtuais. A oferta e o contrato são feitos por transmissão
e recepção eletrônica de dados. O comércio eletrônico pode
realizar-se através da rede mundial de computadores (comércio internetenáutico) ou fora dela.
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O fato é que, como tudo que se torna inovador, tal forma de
negociação ainda traz em seu bojo uma série de dúvidas, que
influenciam até mesmo o campo tributário.
A maioria dos questionamentos surge no sentido de que se tais
operações seriam tributáveis. Se sim, como se faria essa tributação. E
os conceitos clássicos e convencionais de fato gerador, definição de
objeto, hipótese de incidência, bens corpóreos e incorpóreos,
estabelecimento comercial, e tantos outros já enraizados no sistema
tributário nacional há muito tempo, como seriam aplicados no
comércio eletrônico.
Uma série de posicionamentos aparece com a finalidade de dar
tratamento à causa e solucionar os problemas acima levantados.
Há quem defenda que o comércio eletrônico não deveria
sofrer tributação, com a justificativa de que o fenômeno ainda possui
pouca relevância no mundo comercial e que os mecanismos
administrativos e tecnológicos para administrar de forma eficaz o
cumprimento das regras tributárias são indisponíveis, bem como que
por ser uma atividade ainda nova merece proteção e incentivo. Assim
se posicionam os norte-americanos, como confirma Ribeiro (2012, p.
3) ao argumentar que os Estados Unidos tem proposta para eliminar
qualquer barreira fiscal sobre a comercialização de diversos produtos
pela rede de internet, podendo encontrar dificuldade para tentar
controlar a comercialização na rede, face às inovações tecnológicas e a
impossibilidade de controlar o acesso das pessoas.
Em contrapartida, teoria aceita e melhor difundida postula pela
incidência tributária nas operações mercantis realizadas
eletronicamente, tendo em vista que, assim como as que se dão fora da
internet, o comércio eletrônico é uma atividade capaz de propiciar o
surgimento de fatos geradores sendo, portanto, tributável. É o que
demonstra Ferreira (2011, p. 25):
No entanto, os defensores da tributação do comércio eletrônico argumentam que a não tributação ameaça rapidamente parte da receita dos governos, além de representar
concorrência desleal com o comércio tradicional. Além disto, quem tem acesso à Internet são pessoas de mais alta renda, representando a não tributação um subsídio aos mais ricos em detrimento dos mais pobres que realizam suas compras no comércio tradicional. Também a não tributação e a
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consequente perda de receita devido ao comércio eletrônico
representaria uma ameaça maior para países em desenvolvimento, que contam com uma base menos ampla de contribuintes de imposto de renda.
O certo é que, diante das inúmeras discussões surgidas acerca
do assunto, o que se resta afirmar e defender é que o comércio
eletrônico, em suas diferentes formas, é uma atividade passível de
tributação e que, assim, deve sofrê-la.
Tal posição ganha ainda mais força e aceitabilidade depois do
ano de 1998, quando em uma Reunião Ministerial, em Ottawa,
Canadá, a Organization for Economics Cooperation and
Development (OECD) traçou uma série de diretrizes com a finalidade
de orientar os governos em como se tributar o e-commerce, como
destaca Ferreira (2011, p. 31):
Apesar de alguns especialistas e países proporem uma moratória, a OECD, em sua reunião ministerial de Ottawa, Canadá, em 1998 [OECD, 1998], estabeleceu que os princípios
que orientam os governos na tributação do comércio convencional devem ser mantidos no comércio eletrônico: neutralidade, eficiência, certeza, simplicidade, efetividade, equidade e flexibilidade. Estes princípios devem ser implementados por meio das regras tributárias atuais, ainda que com
algumas adaptações.
Esse conjunto balizador, chamado de “Taxation Framework
Conditions for e-Commerce”, logo no seu parágrafo introdutório,
observa que os governos devem instalar um ambiente fiscal onde o
comércio eletrônico possa crescer e, concomitantemente, transmite a
eles o dever de operar um sistema tributário justo e previsível, capaz
de atender às expectativas dos cidadãos. Assim, da leitura do
documento pode se depreender que suas principais conclusões são
pela aplicação ao comércio eletrônico dos conhecidos princípios que
regem o comércio convencional: neutralidade, eficiência, flexibilidade
e certeza.
Portanto, deste enunciado da OECD, constata-se que o
comércio eletrônico não deve sofrer tratamento discriminatório em
sua tributação, ou seja, diferente daqueles que pregam a não tributação
desse tipo de operação, a recomendação é pela aplicação das regras
tributárias atuais, ainda que com algumas adaptações, para se evitar
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que tributos específicos sejam impostos para a Internet.
Conclui-se, assim, que o comércio eletrônico é uma atividade
passível de tributação e o modelo proposto pela OECD vem sendo o
espelho para a maioria das autoridades tributárias construírem seus
sistemas de gestão da tributação das operações comerciais eletrônicas.
Resta demonstrar que o negócio empresarial realizado via
Internet pode referir-se a diferentes tipos de bens e serviços, tendo
por objeto o fornecimento de bens ou serviços convencionais, como a
compra de livros ou eletrodomésticos, o que se acerta chamar de
comércio eletrônico indireto ou off-line, onde apenas a contratação é
realizada de maneira eletrônica, sendo que a execução do contrato se
dará da forma convencional com a entrega física do bem ou o
desenvolvimento do serviço contratado de forma pessoal. Como
também pode ser realizado de maneira direta ou on-line e, assim, não só
a contratação é teleinformática, como a própria execução do objeto
constante do contrato será de maneira virtual, como salienta
Emerenciano (2003, p. 64), “as operações iniciam-se e terminam no
âmbito da rede, sem remessa física de qualquer espécie, transitando
somente no ambiente de rede de computadores, de forma virtual, em
um espaço topológico”. É o que acontece, por exemplo, com o
fornecimento de bens digitais como filmes, fotografias, músicas ou as
atividades de desenvolver softwares, prestar aconselhamentos
econômicos e realizar investimentos.
Para abordar cada possível tributo incidente nas operações
mercantis realizadas em meio eletrônico, convém distingui-las em três
modalidades: comércio de bens tangíveis, comércio de bens intangíveis
e serviços de provedores de acesso à Internet.
3 A INCIDÊNCIA DO ICMS NO COMÉRCIO ELETRÔNICO DE
BENS TANGÍVEIS
Importante para a questão aqui comentada se faz a
conceituação do que seria um bem tangível. Assim, nas bases do
Direito Civil e de acordo com Rodrigues (2003, p. 116), “bens” são
coisas que, por serem úteis e raras, são suscetíveis de apropriação e
contêm valor econômico. E, complementando a idéia, se define bens
tangíveis ou corpóreos como “coisas que têm existência material,
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como uma casa, um terreno, uma jóia, um livro” (DINIZ, 2008, p.
327).
Para a incidência tributária de compras que apenas se iniciam
em meio eletrônico, com a contratação usando a rede mundial como
intermediadora, mas que pelo bem ser tangível, por ter existência
material, palpável, ocorrerá execução contratual de maneira
convencional, com a efetiva entrega física do bem ao seu destinatário,
não há maiores problemas nem é diferente da tributação incidente
sobre os bens que não usam meio eletrônico para serem adquiridos. É
o que afirmam, por exemplo, Tôrres e Caliendo (2005, p. 171):
[...] o comércio eletrônico de mercadorias não apresenta
maiores distinções em relação a outras formas de contratação inter ausentes (telefone, fax, telex, entre outros), não se
podendo indicar a “internet” como meio hábil para justificar
tratamento específico, sob pena de criar-se grave medida de
discriminação tributária. Desse modo, quando uma mercadoria for adquirida por meio de contratação eletrônica e a
entrega física venha a ser operada mediante agente de transporte ou correio, aplicar-se-á a legislação tributária que
normalmente incidiria nos casos similares, sem qualquer diferença.
Assim também é o posicionamento de Barros (2003, p. 49):
No caso do comércio de bens tangíveis ou corpóreos (mercadorias), sujeito à cobrança do ICMS, a transação via Internet recebe tratamento equivalente ao das transações realizadas via telefone, fax ou catálogo, com a saída da mercadoria representando o fato gerador do imposto devido ao Estado em que o vendedor está estabelecido.
Portanto, tratando-se de mercadorias tangíveis, com existência
física e material, o tributo incidente na comercialização delas será o
conhecido ICMS, de competência estadual, que também incide em
outras modalidades de compras onde vendedor e consumidor não
estão presentes, frente a frente, como naquelas efetuadas via telefone,
catálogos, etc. Assim, passamos à análise de alguns pontos do tributo
incidente – ICMS – no comércio eletrônico que envolve bens
tangíveis.
O ICMS encontra-se estabelecido no artigo 155 da
Constituição Federal (VADE MECUM SARAIVA, 2012, p. 54), o
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qual traz suas diretrizes.
Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:
[...]
II – operações relativas à circulação de mercadorias e sobre
prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as
prestações se iniciem no exterior.
O ICMS, de competência estadual e distrital, é um imposto
plurifásico por incidir sobre o valor agregado e obedecer ao princípio
da não cumulatividade, é também real e proporcional, de caráter
eminentemente fiscal. O parágrafo §2º do artigo 155 da Constituição
Federal (VADE MECUM SARAIVA, 2012, p. 55) determina
expressamente que caberá à lei complementar definir seu contribuinte,
sendo que, consoante leitura do artigo 4º da Lei Complementar nº
87/96, os sujeitos passivos do ICMS são as pessoas que pratiquem
operações relativas à circulação de mercadorias, os importadores de
bens de qualquer natureza, os prestadores de serviço de transportes
interestadual e intermunicipal, bem como os prestadores de serviços
de comunicação.
Importante destacar que também há possibilidade do polo
passivo ser ocupado pelo responsável tributário, quando determinado
por lei, sem que tenha verdadeiramente realizado o fato gerador, é o
que a própria Constituição Federal (VADE MECUM SARAIVA,
2012, p. 53-4) admite em seu artigo 150, §7º, in verbis:
Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao
contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
[...]
§ 7.º A lei poderá atribuir a sujeito passivo de obrigação tributária a condição de responsável pelo pagamento de imposto ou contribuição, cujo fato gerador deva ocorrer posteriormente, assegurada a imediata e preferencial restituição
da quantia paga, caso não se realize o fato gerador presumido.
Da leitura do dispositivo acima, em especial da frase “cujo fato
gerador deva ocorrer posteriormente”, percebe-se a existência daquilo
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que se chama de substituição tributária progressiva ou ‘pra frente’,
onde uma terceira pessoa é escolhida para recolher o tributo antes que
o fato gerador ocorra, ou seja, uma clara antecipação de pagamento
diante de um fato gerador presumido. Custa ressaltar, no entanto, que
no âmbito do ICMS, é mais comum a chamada substituição regressiva
ou ‘para trás’, caracterizada pela ocorrência do fato gerador em ocasião
anterior ao adimplemento do tributo, sendo sua efetivação postergada
ou diferida. Trata-se do diferimento, como explica Sabbag (2011, p.
1007):
O diferimento é a postergação do recolhimento do tributo
indireto para um momento ulterior ao da ocorrência do fato
gerador. Está inserido no contexto tributacional do ICMS,
havendo a efetiva extinção do crédito tributário (= pagamento) pelo “contribuinte de fato”, e não pelo “contribuinte
de direito”. Tal fenômeno ocorre por conveniência do sujeito ativo (Fisco), que vê no responsável tributário (terceira
pessoa escolhida por lei para pagar o tributo) alguém com
maior aptidão a efetuar o pagamento do tributo, mesmo não
tendo realizado o fato gerador. Ocorre com produtos como
o leite cru, a sucata, a cana em caule, etc.
Partindo para definição de seu fato gerador, se tem que a
circulação de mercadorias ou prestação de serviços interestadual ou
intermunicipal de transporte e de comunicação, ainda que com início
fora do Brasil, são as bases nucleares para incidência do ICMS. Assim,
existiria, na verdade, um conjunto de operações flagrantes a dar ensejo
à cobrança do referido imposto, que, para maior didática, poderiam ser
dividas em: circulação de mercadorias, prestação de serviço de
transporte interestadual e intermunicipal e de serviço de comunicação.
Importante para este trabalho se faz discorrer sobre um tipo
de operação tributável por ICMS, qual seja, a circulação de
mercadorias.
O vocábulo “circulação” transmite a ideia de mudar de titular;
se um bem ou uma mercadoria transmuta de titular, terá circulado para
efeitos jurídicos. O comentado termo acaba por restringir as operações
nas quais ocorrerá incidência do ICMS, ou seja, somente naquelas que
estejam ligadas à transferência de uma determinada categoria de bens,
as mercadorias, é que são passíveis de cobrança pelo referido imposto,
devendo a operação se revestir de um caráter jurídico. É o que
discorre Cezaroti (2005, p. 52-3):
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O significado jurídico de circulação está ligado à mudança
de titularidade de um direito sobre uma determinada mercadoria, ou seja, mediante a circulação o sujeito transfere sua
posse de uma mercadoria ou propriedade sobre ela a outrem, mediante contraprestação; há uma transferência de
disponibilidade.
Essa mudança de titularidade do bem pressupõe a tradição
deste, pelo industrial ou comerciante, em um percurso entre
fornecedores e consumidores, até que o bem objeto da atividade mercantil chegue à posse de aluem que simplesmente
irá retirá-lo da circulação jurídica com o intuito de integrá-lo
ao seu patrimônio por um período de tempo prolongado ou
para seu consumo.
Diante do enunciado, em que se afirma que não haverá
incidência de ICMS quando ocorrer mera circulação econômica, será
necessário, para tanto, conhecer o caráter jurídico da operação. Por
isso que o simples deslocamento de mercadorias entre diferentes
estabelecimentos de um mesmo contribuinte não é flagrante para
desencadear a incidência do comentado imposto, falta-lhe juridicidade
na operação, ou seja, há circulação física, mas não destinada ao
consumidor final, que lhe revestiria com o caráter jurídico para
cobrança de ICMS.
No entanto, se faz necessário expor o entendimento de Torres
(2006, p. 384) acerca do assunto:
Nesse fato gerador se consubstancia, portanto, a circulação econômica das mercadorias revestida obrigatoriamente de uma qualquer
forma jurídica. Todo ato jurídico que implique circulação econômica de mercadoria, independentemente de sua categoria
ou de sua natureza gratuita ou onerosa será fato gerador do
ICMS; da mesma forma as situações jurídicas que legitimem
a circulação econômica, como por exemplo, a situação do
industrial e do comerciante que promovem as remessas de
mercadorias de um para outro de seus estabelecimentos,
bem como o auto-consumo da mercadoria sem a sua circulação física para fora do estabelecimento, posto que para o
ICMS é indiferente que haja, ou não, a transferência de domínio. [grifo do autor]
Contudo, diante do estudo empreendido, restou claro que a
posição acima transcrita encontra-se nas bases do pensamento
minoritário, já que a maioria dos doutrinadores afirma que circulação é
alteração de posse ou propriedade dos bens, objeto de atividade
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mercantil em operações alicerçadas em negócios jurídicos, destinados
ao consumidor final.
Cabe agora analisar o conceito de mercadoria, o qual
complementa o termo circulação, para fins de incidência do imposto
sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre
prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de
comunicação.
Segundo Silva (1997, p. 181), mercadoria é:
Derivado do latim merx, de que se formou mercari, exprime
propriamente a coisa que serve de objeto à operação comercial. Ou seja, a coisa que constitui objeto de uma venda. É
especialmente empregado para designar as coisas móveis, postas em mercado. Não se refere aos imóveis, embora estes sejam também objeto de uma venda. A rigor, pois, mercadoria
é designação genérica dada a toda coisa móvel, apropriável,
que possa ser objeto de comércio. As coisas fora de comércio não se entendem mercadorias e não são suscetíveis de
venda. A mercadoria é a que está no comércio, pode ser
vendida pelo comerciante ou mercador. A coisa que não está para venda não é mercadoria.
Diante do que foi exposto, fica demonstrado que um bem,
para ser classificado como mercadoria, além de vários outros
requisitos, deve levar em consideração o aspecto subjetivo de sua
destinação. Assim, nada é mercadoria pela sua própria natureza, só a
será aquele bem que está destinado à atividade de mercancia. É o que
ensina, por exemplo, Carraza (2005, p. 41) ao afirmar que “não é
qualquer bem móvel que é mercadoria, mas tão-só aquele que se
submete à mercancia”. Pode-se, pois, dizer que toda mercadoria é bem
móvel, mas nem todo bem móvel é mercadoria. Só o bem móvel que
se destina à prática de operações mercantis é que assume a qualidade
de mercadoria.
Continuando seus ensinamentos sobre mercadorias, o autor
afirma que a Constituição Federal, ao aludir o tema, encampou o
conceito que já era proveniente de lei comercial. Logo, para fins de
incidência do ICMS, mercadoria é aquilo que a lei comercial considera,
e, portanto, que lei dos Estados e Distrito Federal não pode alterar o
conceito uma vez que o Direito Comercial está sob reserva de lei
nacional, só podendo ser modificável por lei ordinária proveniente do
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Congresso Nacional.
Também acerca do assunto se faz necessário transcrever a
posição de Machado (2010, p. 369):
Mercadorias são coisas móveis. São coisas porque bens corpóreos, que valem por si e não pelo que representam. Coisas,
portanto, em sentido restrito, no qual não se incluem os
bens tais como os créditos, as ações, o dinheiro, entre outros. E coisas móveis porque em nosso sistema jurídico os
imóveis recebem disciplinamento legal diverso, o que os exclui do conceito de mercadorias. A própria Constituição Federal, na partilha das competências impositivas, já determina
sejam tratados diferentemente os bens imóveis, que não podem receber do legislador, complementar ou ordinário, o
tratamento jurídico-tributário dispensado às mercadorias.
[grifos do autor]
Mercadorias são, portanto, segundo se infere do
posicionamento acima, coisas móveis, corpóreas e que se destinam ao
comércio, sendo que, coisas adquiridas pelos empresários para uso ou
consumo próprio, não poderão figurar entre a classificação
comentada.
Na mesma linha, segue Emerenciano (2003, p. 149-50):
Assim, exercitando a análise dos 36 artigos da Lei Complementar nº 87, que como norma complementar contribuiu
inegavelmente na interpretação constitucional, pode-se afirmar que o termo “mercadoria” traz em suas múltiplas aparições e de forma consistente o seguinte núcleo de significação:
i) coisa móvel;
[...]
ii) corpórea;
iii) indiferente à circunstância de estar industrializada ou
não;
iv) objeto de um negócio jurídico que lhe determine a transferência de titularidade;
v) negócio este cuja habitualidade ou volume revele intuito
comercial;
vi) que tenha como destino ser revendida; (EMERENCIANO, 2003, p. 149-50)
De tudo exposto, se vê que não há divergências entre a
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doutrina no que tange ser mercadoria, para fins de ICMS, coisa móvel
e destinada aos atos de comércio, ou seja, venda e revenda habitual,
para obtenção de lucro, com movimentação jurídica (transferência de
titularidade). No entanto, a discussão começa quando se analisa a
questão da tangibilidade do bem. Para Machado e Emerenciano, os
dois autores anteriormente citados, para ser mercadoria deve ser bem
corpóreo, ou seja, tangível. Tal posicionamento não é compartilhado,
por exemplo, por Paulsen.
Efetivamente o conceito secular de mercadoria tem como
justificativa um bem corpóreo. Entretanto, na era atual, na
qual é possível transformar uma mercadoria em dados digitalizados e transmiti-los entre dois computadores, o conceito tradicional deve ser flexibilizado. Ora, para que seja considerada uma mercadoria, basta que o bem tenha valor econômico e caráter circulatório. O requisito de ser corpóreo é
plenamente dispensável. (PAULSEN, 2009, p. 342)
Esta também é a linha de raciocínio empreendida por Cezaroti
(2005, p. 82) quando afirma que não há necessidade da mercadoria ter
uma manifestação material, no sentido de ter uma forma, mas que o
importante é o modo como o bem é percebido.
O certo é que, diante da falta de um conceito de mercadoria
determinado pela legislação em vigor, bem como que por ser a
determinação constitucional um tanto vaga, é que surgem discussões a
respeito do tema, que, por essa lacuna, pode sofrer alargamentos para
se adequar à nova realidade.
Importante para este trabalho se faz considerar o ICMS nas
operações interestaduais e o pólo arrecadador do citado imposto. Nas
operações efetuadas por contribuintes que se encontram em Estados
diversos, a questão é a quem caberia o produto da arrecadação, se aos
Estados produtores ou aos Estados consumidores.
A resposta para o questionamento se encontra no artigo 155,
§2º, incisos VII e VIII, da Constituição Federal (VADE MECUM
SARAIVA, 2012, p. 55), in verbis:
§ 2º O imposto previsto no inciso II [ICMS] atenderá ao seguinte:
[...]
VII - em relação às operações e prestações que destinem
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bens e serviços a consumidor final localizado em outro Estado, adotar-se-á:
a) a alíquota interestadual, quando o destinatário for contribuinte do imposto;
b) a alíquota interna, quando o destinatário não for contribuinte dele;
VIII - na hipótese da alínea "a" do inciso anterior, caberá ao
Estado da localização do destinatário o imposto correspondente à diferença entre a alíquota interna e a interestadual;
[...].
No estudo em voga se deve atentar, principalmente, para a
alínea b, do inciso VII, do artigo 155, da Constituição Federal, a qual
demonstra que o imposto será recolhido pelo Estado produtor com
base em sua alíquota interna. Quem melhor explica o procedimento é
Alexandre (2009, p. 575).
Para uma perfeita compreensão das regras será utilizado um
exemplo, dividido em três situações hipotéticas, todas envolvendo a venda de uma mercadoria por uma empresa
domiciliada em São Paulo a um adquirente domiciliado em
Pernambuco. Para a análise dos casos, suponham-se as seguintes alíquotas como aplicáveis à mercadoria objeto da
operação:
Alíquota Interestadual (SP-PE) = 8%
Alíquota interna de São Paulo = 18 %
Alíquota interna de Pernambuco = 17%.
E prossegue em seu raciocínio:
Três situações são possíveis quanto à operação.
No primeiro caso, o destinatário em Pernambuco não é
contribuinte do ICMS (não é comerciante) e adquire a mercadoria como consumidor final. É o caso, por exemplo, da
pessoa física que adquire uma mercadoria por meio de pedido via internet ou por ligação telefônica para comerciante
domiciliado em outro Estado.
Perceba-se que não há motivo de fato ou de direito para se
aplicar a alíquota interestadual (8%) ao caso. Não há diferença relevante entre a operação relatada e aquela em que o
adquirente, de passagem por São Paulo. Adquire a mercadoria no balcão da empresa comerciante. Em ambos os casos,
será aplicável a alíquota interna de São Paulo (18%). (ALEXANDRE, 2009, p. 576)
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Assim, diante do exposto, se confirma a tese de que em sede
de comércio eletrônico, que envolva destinatário não contribuinte de
ICMS, ou seja, não comerciante, que adquire a mercadoria como
destinatário final, o Estado produtor será o agraciado com o produto
da arrecadação tributária.
Aliás, entendimento este ratificado recentemente pelo STF na
ADI nº 4705 (BRASIL, 2012) onde o ministro Joaquim Barbosa
suspendeu, com efeitos retroativos, a aplicação da Lei nº 9582,
de 12 de dezembro de 2011, do Estado da Paraíba. Tal norma
estabelecia a exigência de parcela do ICMS nas operações
interestaduais que destinem mercadorias ou bens a consumidor final,
quando a aquisição ocorrer de forma não presencial, ou seja, por meio
de internet.
Importante, no entanto, comentar sobre a Proposta de
Emenda Constitucional 103/2011 (BRASIL, 2012b), de autoria do
Senador Delcídio do Amaral e outros senadores, que se encontra para
ser votada na Câmara dos Deputados, já tendo sido aprovada, em
segundo turno, em 4 de julho de 2012, no Senado Federal. Essa PEC
acrescenta o inciso VIII-A ao § 2º, do artigo 155, da Constituição
Federal, para modificar a sistemática de cobrança do ICMS incidente
sobre as operações e prestações realizadas de maneira eletrônica e que
destinem bens e serviços a consumidor final localizado em outro
Estado. Assim, de acordo com o texto, caberá ao Estado do
destinatário o imposto correspondente à diferença entre a alíquota
interna e a interestadual. Quando o destinatário for contribuinte do
ICMS, geralmente no caso de empresas, a diferença será calculada
entre as duas alíquotas. Já no caso de não contribuinte, ou pessoa
física, aplica-se a diferença entre a alíquota interna do estado
remetente e a alíquota interestadual.
4 TRIBUTAÇÃO NO COMÉRCIO ELETRÔNICO DE BENS INTANGÍVEIS
Em sentido oposto ao que se discorreu anteriormente, bens
intangíveis ou incorpóreos, diferente daqueles que apresentam
tangibilidade, são os que não possuem um aparato físico para lhes
caracterizar. Como ensina Diniz (2008, p. 327), “os bens incorpóreos
não tem existência tangível”, ou seja, não são palpáveis, não possuem
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existência física.
No que consente ao comércio eletrônico, vários são os bens
intangíveis que podem ser comercializados por via da grande rede.
Desde músicas, filmes, fotografias, jogos, etc., até livros e softwares. E
grandes questões surgem então: Se a compra de um produto em uma
loja física exige o recolhimento de um determinado imposto, em uma
loja virtual dever-se-ia aplicar o mesmo? Os bens digitais intangíveis
são considerados mercadorias para fins de incidência do ICMS? E os
softwares, são igualmente objetos de tributação? Qual imposto incidiria
sobre eles?
Se o conceito adotado para se definir mercadoria for aquele
enunciado por Hugo de Brito Machado, Adelmo da Silva
Emerenciano, Bernardo Ribeiro de Moraes, Alcides Jorge Costa,
Roque Antônio Carrazza e outros doutrinadores clássicos do ramo
tributário, as operações eletrônicas mercantis de bens intangíveis não
poderiam ser fatos geradores para incidência de ICMS, uma vez que,
para tais pensadores, no termo “mercadorias” tributáveis pelo citado
imposto só caberiam aquelas dotadas de tangibilidade, ou seja, de
existência física e palpável, sendo que inexiste essa característica para
os bens digitais transacionados via comércio eletrônico direto.
Essa é a conclusão que também chega Lanari (2005, p. 201):
Nessa linha de raciocínio, só se pode concluir que as normas
constitucionais e infraconstitucionais vigente não permitem
a tributação das operações envolvendo os fornecimentos de
intangíveis via Internet. Essa circunstância [...] constitui flagrante agressão aos mais elementares princípios de justiça
fiscal – especialmente ao princípio da isonomia.
A autora continua justificando sua afirmação pela não
incidência do ICMS na comercialização, via internet, dos bens
intangíveis, com base na literalidade do artigo 191 do Código
Comercial Brasileiro e na sua enumeração exaustiva dos bens
considerados mercadorias. Para Lanari, diante destas circunstâncias, é
fato que o legislador quis restringir o universo da compra e venda
mercantil no campo dos bens incorpóreos, para eleger como
mercadoria aquele bem objeto de comércio do produtor ou
comerciante, que tenha destinação mercantil, seja móvel ou semovente
e corpóreo, sendo que, assim, o vocábulo mercadoria, para fins
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jurídicos, possui uma acepção técnica, não devendo ser considerada
qualquer interpretação vulgar.
Continua, ainda, salientando que o artigo 110 do Código
Tributário Nacional não permite que este conceito de mercadoria, já
delimitado para bens corpóreos, seja ampliado, bem como que,
superando discussões provenientes acerca de ser ou não mercadoria,
outro fator que impediria a tributação por ICMS seria a
impossibilidade de se caracterizar efetiva circulação jurídica nos
negócios envolvendo fornecimentos eletrônicos.
Outro grande nome atuante na área do direito digital e que
prega pela não incidência do imposto é Pinheiro (2010, p. 267):
Toda a doutrina é enfática ao dizer que, para fins de tributação, mercadoria é bem corpóreo (constituído por átomos)
móvel e destinado ao comércio. Bens imateriais não podem
a princípio ser objeto de tributação pelo ICMS (por exemplo, quem compra legalmente um software, na verdade não
está adquirindo a propriedade deste, mas está recebendo
uma licença do autor para usar o programa). Algumas mercadorias virtuais são de fato verdadeiras prestações serviços,
outras constituem-se em direitos como o de autor. Independentemente da classificação, só podem ser tais bens objeto
de incidência tributária se o legislador os previr e sobre eles
dispuser, visto que até o momento estão imunes à tributação.
No entanto, em uma toada inversa e mais condizente com a
realidade digital vivida pela sociedade globalizada, se encontra tantos
outros posicionamentos favoráveis pela incidência do ICMS no
comércio eletrônico de bens intangíveis. É o que se passa a expor.
Para Cezaroti (2005, p. 81-2) é importante, na distinção entre
bens corpóreos e incorpóreos, o destaque quanto à percepção que se
tem destes ou daqueles. Assim, segundo o autor, bens corpóreos ou
materiais são os perceptíveis pelos sentidos humanos direta ou
indiretamente por meio de instrumentos materiais, sendo que, bens
imateriais ou incorpóreos são as coisas imperceptíveis pelos cinco
sentidos humanos. Ou seja, qualquer coisa que seja constatada por
qualquer dos sentidos humanos, será material.
Desta forma, se justifica a incidência do ICMS no comércio
eletrônico de bens intangíveis. Por mais que se fique preso ao conceito
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de mercadoria como algo material, os bens intangíveis que podem ser
comercializados via internet não perdem tal característica, visto que
ainda são perceptíveis por algum sentido humano, sendo assim,
incluídos entre os fatos geradores do comentado imposto.
Como Cezaroti (2005, p. 82) comenta, a falta de suporte físico
não implica que o bem seja imaterial, já que os bens comercializados
eletronicamente são empiricamente constatados pelos seus
consumidores:
Essa percepção empírica ocorre no momento em que utilizamos um computador, máquina com aptidão para transformar os impulsos elétricos denominados bytes em sinais
sensíveis à visão humana. Mas não é só, também quando
utilizamos equipamentos controlados por meio de computador temos a percepção de que existe um comando (ainda
que não voluntário e previamente programado por um ser
humano) para a máquina. Não Há necessidade que a mercadoria tenha uma manifestação material, no sentido de ter
uma determinada forma; o importante é a percepção do
bem. Essa percepção pode ocorrer por meio de qualquer
um dos sentidos humanos. [...] É preciso ficar claro que o
tato não é a única forma de percebermos a presença de uma
mercadoria; os seres humanos podem utilizar os outros sentidos (audição, olfato, paladar e tato) para apreendê-las.
Prosseguindo, o autor destaca um ponto de grande
importância para se postular pela tributação por ICMS das operações
mercantis eletrônicas de bens imateriais: o aspecto subjetivo na
definição do fato gerador do ICMS. Ou seja, assim como já foi
exposto neste trabalho, a materialidade não é a única forma de se
caracterizar um bem como mercadoria, ainda existe um segundo traço,
onde, pelo aspecto intrínseco, subjetivo, mercadoria é tudo aquilo que
envolva especulação comercial, tudo que o adquirente, no momento
da compra, tenha a intenção de revender, que demonstre uma
operação de circulação, com transferência de titularidade e faça
movimentar recurso financeiro. É o que conclui Cezaroti (2005, p. 92):
Deste modo, podemos dizer que a qualificação de um bem
como mercadoria depende do aspecto subjetivo do empresário que realiza a venda. Esse aspecto econômico foi escolhido pelo legislador como o critério objetivo para a definição do que é ou não mercadoria. Com isso, concluímos que
o aspecto subjetivo escolhido pelo legislador para ser um
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critério objetivo na qualificação do que vem a ser mercadoria é o ponto de vista do vendedor do bem numa relação jurídica de compra e venda.
Somando os dois lados apontados até agora, quais sejam
mercadoria é aquilo que pode ser percebido pelo ser humano por
qualquer de seus sentidos e mercadoria é aquilo que se destina à
especulação econômica, que faz movimentar recursos financeiros e
que está destinado à revenda, se pode afirmar, com certeza, que os
bens digitais intangíveis são mercadorias, já que se encontram entre os
pontos levantados (são perceptíveis pelos sentidos humanos, são
destinados à revenda e movimentam lastros de recursos) e, portanto,
passíveis de tributação via ICMS quando comercializados
eletronicamente.
É o que prega, também, Braghetta (2003, p. 164) ao defender a
incidência de ICMS no comércio eletrônico de bens intangíveis, dando
importância ao aspecto subjetivo da “operação de circulação”:
Buscando um amadurecimento das questões oriundas do
comércio eletrônico, entendemos que os procedimentos realizados por meio de digitalização, englobando-se aqui tanto
mercadorias como serviços, podem ser objeto de comercialização por meios eletrônicos, permanecendo resguardado,
saliente-se, o enunciado principiológico que estabelece o valor da segurança jurídica.
Conclui-se, assim, ter havido a operação de circulação da
mercadoria, ação necessária para que se reconheça a presença do ato comercial.
Não há comprometimento da forma de tributação, pois há
que se adequar à nova realidade o conceito de mercadoria,
tributando-se da mesma forma, pelo ICMS, já que se encontram presentes os requisito de “realizar” “operação” de “circulação” de “mercadorias”. [grifos da autora]
Continuando, a autora afirma que, “assim, o que se tributa são
as operações; circulação e mercadorias são termos com o papel de
qualificar a operação tributada” (BRAGHETTA, 2003, p. 166).
Ou seja, diante do raciocínio empreendido, o importante para
se defender a incidência de ICMS na compra e venda de bens
intangíveis via rede mundial de computadores é o fato de que eles,
além de poderem ser entendidos sim como mercadorias diante de uma
nova interpretação do termo, mais condizente com a realidade virtual
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vivida, ainda são alvo de circulação jurídica e econômica, como prega
o arquétipo do fato gerador do comentado tributo e, mais ainda, são
demonstradores de capacidade contributiva passíveis de submissão
tributária.
Aliás, Paulsen (2009, p. 342) levanta um grande ponto acerca
do tema, para superar a questão no que tange à importância do
aspecto subjetivo da operação de circulação:
Ora, para que seja considerada uma mercadoria, basta que o
bem tenha valor econômico e caráter circulatório. O requisito de ser corpóreo é plenamente dispensável. Devemos, sim,
entender como bens, sejam estes imateriais ou não, todos
aqueles responsáveis por manifestação de capacidade contributiva, ou seja, que gerem o interesse do Estado em regulá-los e tributá-los, sendo e gerando riquezas para a sociedade, restando insuficiente a noção tradicional de ‘mercadoria’,
já que esta se encontra atrelada ao dogma “bem x materialidade”. Sem a referida interpretação, estaríamos inadvertidamente desconsiderando inúmeras e importantíssimas manifestações de capacidade econômica suscetíveis de submissão tributária [...]. Por conseguinte, a mercadoria não necessita ser um bem corpóreo. Basta que seja negociada com
habitualidade e que o negócio objetive lucro [...].
Prosseguindo, o autor discute outro lado de grande
importância na defesa da incidência tributária no que diz respeito a
uma nova interpretação jurídica.
Não se defende a ideia de ampliar indiscriminadamente o
conceito secular de mercadoria, mas tão-somente adaptá-lo
à realidade atual. A ampliação deve valer somente para os
bens que tenha caráter comercial, mas que não se enquadram atualmente no ultrapassado conceito, tais como filmes,
músicas e software digitalizados, circuláveis através de download [...]. A interpretação extensiva que se dá ao vocábulo
‘mercadoria’ deve abranger bens que seguramente tenham
características para serem classificados como tal [...]. Isso
porque nada impede que a Lei Maior altere o conceito de direito privado para fins tributários [...], ou então que venha a
equiparar a transmissão de dados digitalizados à circulação
de mercadorias, assim como a pessoa física que poder ser
equiparada à pessoa jurídica (art. 149, §3º, da CF/88). Logo,
percebe-se que a Carta Magna, por óbvio, tem autonomia
sobre a regra do art. 11 do Código Tributário Nacional.
(PAULSEN, 2009, p. 343)
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Portanto, diante de todo o exposto, se postula pela incidência
do ICMS no comércio eletrônico de bens intangíveis. Até porque estes
podem sim ser incluídos no conceito de mercadoria para fins da
comentada tributação, tendo em vista que tal conceito não possui um
significado determinado pela legislação em vigor, como afirma
Cezaroti (2005, p. 97-8):
A legislação em vigor não determina que as mercadorias
precisem ser bens tangíveis, basta que sejam suscetíveis de
individualização e de transporte de uma parte a outra, independentemente do meio adotado. Gases podem ser acondicionados em tanques e vendidos como mercadorias.
A referência à legislação comercial ou civil não impede que
o conceito de mercadoria varie ao longo do tempo, porque a
evolução humana demonstra que novos tipos de bens suscetíveis de apropriação e comercialização surgem ao longo do
tempo.
Assim, diante de um termo que não se encontra expressamente
definido pela legislação, sendo apenas uma construção doutrinária,
podendo, portanto, ser alvo de uma interpretação mais realista e
adequada aos novos tempos. E mais, diante do fato de que não se
pode aplicar uma tributação diferenciada entre bens que sendo físicos
serão tributados e passando para versão digitalizada não deveriam
sofrer tal ônus, é que se defende a imposição do imposto sobre
operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de
serviços de transporte interestadual, intermunicipal e de comunicação
(ICMS) na compra e venda de bens incorpóreos, demonstrativos de
circulação econômica, que fazem girar recursos financeiros e que,
integram o rol de mercadorias.
Interessante a forma de argumentação empreendida por Castro
(2000, p. 10) para também defender a tributação por ICMS dos bens
intangíveis comercializados eletronicamente:
[...] como já afirmamos, a modernidade e seus inusitados
componentes impõe a adequação ou atualização dos conceitos jurídicos, mesmo aqueles determinados e fechados, sob
pena de que manifestações de capacidade contributiva, identificadas com bases econômicas juridicamente tributadas,
deixem de ser atingidas e colaborem para o financiamento
das atividades de interesse público realizadas pelo Estado.
Ademais, no caso do conceito de “mercadoria”, sua referênUNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013
cia mais remota no campo do direito privado, encontrada
no art. 191 do Código Comercial editado no século passado,
já contemplava elementos não tangíveis, buscando abarcar
todos os objetos do comércio independentemente da forma.
Este, inclusive, é o sentido mais coerente e adequado para a
idéia de mercadoria: “aquilo que é objeto de compra ou
venda” ou “aquilo que se comprou e que se expõe à venda”.
Portanto, em face a todos os motivos elencados, é fácil
concluir que a mercadoria virtual, ente não palpável, pode ser aceita
como objeto do chamado comércio eletrônico para efeitos de
tributação.
O fato é que, o mundo globalizado passa por muitas
transformações e vários conceitos precisam ser reavaliados, cabendo
ao operador do direito não deixar de considerar essa evolução nem
ficar esperando que o legislador modifique o texto. Como diz
Machado (2010, p. 292), “o melhor caminho, sem dúvida, para que o
Direito cumpra o seu papel na sociedade, é a interpretação evolutiva”.
Ainda mais no que diz respeito ao território novo da internet e sua
agilidade.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente estudo teve como finalidade analisar a incidência
do ICMS nas operações de circulação de mercadorias ocorridas via
Internet, partindo de premissas que buscaram examinar, diante dos
enunciados constitucionais, os reflexos causados pela cobrança deste
tributo no mundo virtual.
Para tanto, a motivação do presente trabalho teve origem no
desejo de compreender como o direito tributário pode ser aplicado
nesta nova realidade digital, tendo em vista que muito de seus
conceitos e aspectos foram enunciados ainda quando não se existia a
rede mundial de computadores.
No disposto pela Constituição Federal, o ICMS é o imposto
capaz de atingir as transações de bens que, dada a realidade existente
quando de sua criação, seriam tangíveis, físicos e capazes de alteração
de propriedade. No entanto, com a revolução empreendida pelos
fatores eletrônicos, o entendimento vem se alargando e o conceito de
fato gerador do comentado tributo deve ser reavaliado nas bases de
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uma interpretação mais atual.
Dadas as considerações, optou-se fazer uma análise crítica do
sistema tributário nacional em conjunto com a nova modalidade de
operações mercantis, qual seja o e-commerce. Para tanto, abordou-se
alguns conceitos constitucionais, bem como aqueles presentes no
Código Tributário Nacional, para se explicar a tributabilidade do
comércio eletrônico.
De tudo o que foi analisado e debatido na presente
investigação, acredita-se ser possível uma abordagem crítica que prega
pela aplicação do campo tributário também no mundo virtual,
concluindo-se que o comércio eletrônico é passível de incidência
tributária, uma vez que, diante dos conceitos sopesados, que integram
o sistema brasileiro, a mercantilização eletrônica em nada destoa dos
enunciados que geram a obrigação de recolher impostos ao Estado.
Fatos geradores, hipóteses de incidência, sujeitos ativos e passivos
continuam a existir, também, no mundo digital, sendo, portanto, um
grande erro se pregar a isenção tributária do e-commerce.
A partir do analisado, concluiu-se que, para fins de circulação
de mercadorias via internet, sejam elas tangíveis ou intangíveis, o
tributo incidente é o ICMS, dado seu fato gerador e sua hipótese de
incidência.
Portanto, diante de tudo que foi lido, estudado, analisado e
aprendido durante a realização do presente trabalho, a grande
conclusão que se chega, em soma com tantas outras, é que a sociedade
passou por mudanças extremamente significativas desde o surgimento
da internet. O Direito, ciência dinâmica e em sintonia com o
comportamento humano, não deixaria de ser atingido pelas
transformações empreendidas. O caminho para uma convivência
harmoniosa, que traga benefícios tanto para o Estado quanto para
aqueles que o formam, é a adaptação de institutos e valores, uma
interpretação mais condizente com a novel realidade, em prol do bem
comum.
REFERÊNCIAS
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modificar a sistemática de cobrança do imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de
transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação incidente
sobre as operações e prestações realizadas de forma não presencial e
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UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013
CASAMENTO ENTRE PESSOAS DO MESMO SEXO À LUZ DA
CONSTITUIÇÃO FEDERAL E DA JURISPRUDÊNCIA
Marlon Franco Maciel*
RESUMO
O presente trabalho aborda a possibilidade do casamento civil entre
pares homoafetivos, tanto pela conversão de prévia união estável,
quanto pela via direta. Tal possibilidade decorre do julgamento conjunto da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.277 e da Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental 132, oportunidade na qual
o Supremo Tribunal Federal equiparou as relações homoafetivas às
heteroafetivas, mediante interpretação conforme do artigo 1.723 do
Código Civil. Contudo, uma vez que o julgado silencia sobre as consequências jurídicas dessa equiparação e que a legislação nada dispõe a
respeito das uniões homoafetivas, não resta claro em que medida eles
poderiam exercer os direitos dos pares heterossexuais. Analisando os
princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, igualdade e
liberdade, este trabalho conclui que, a partir deste novo paradigma, a
interpretação mais razoável é aquela que permite o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo. De outra parte, também se refuta os argumentos comumente utilizados pela doutrina para distinguir as uniões homoafetivas, demonstrando-se que o ordenamento jurídico brasileiro não as proíbe.
Palavras-chave: Direito homoafetivo. Uniões homoafetivas. Casamento civil. Conversão de união estável.
RESUMEN
El presente trabajo trata de la posibilidad del matrimonio civil por parejas homoafectivas, sea su conversión desde la unión estable, sea por
la vía directa. Esa posibilidad ha sido abierta por el juzgamiento de la
*
Bacharel em Direito (Universidade Estadual do Norte do Paraná – UENP).
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Acción Directa de Inconstitucionalidad 4277 y de la Alegación de Incumplimiento de Precepto Fundamental 132, oportunidad en que el
Supremo Tribunal Federal igualó las relaciones homoafectivas a las
heteroafectivas, mediante la interpretación según la Constitución del
artículo 1.723 del Código Civil. No obstante, una vez que el juzgado
omitió opinar sobre las consecuencias jurídicas de esa equiparación y
que la legislación nada dispone con relación a las uniones homoafectivas, no se puso claro en cual medida esas parejas podrán ejercer los
mismos derechos de los heterosexuales. Analizando los principios
constitucionales de la dignidad de la persona humana, igualdad y libertad, el trabajo concluye, a partir del nuevo paradigma, que la interpretación más razonable es aquella que permite el matrimonio civil entre
personas del mismo sexo. Por otra parte, también se rechazan los argumentos comúnmente utilizados por la doctrina para diferenciar las
uniones homoafectivas, demostrándose que el ordenamiento jurídico
brasileño no las prohíbe.
Palabras-clave: Derecho homoafectivo. Uniones homoafectivas. Matrimonio civil. Conversión desde unión estable.
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CASAMENTO ENTRE PESSOAS DO MESMO SEXO À LUZ DA
CONSTITUIÇÃO FEDERAL E DA JURISPRUDÊNCIA
Marlon Franco Maciel
1 INTRODUÇÃO
Após o histórico julgamento conjunto da Ação Direta de
Inconstitucionalidade 4277 e da Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental 132 pelo Supremo Tribunal Federal em maio de
2011, restou incontroverso o caráter familiar das uniões homoafetivas,
desde que preenchidos os requisitos também exigidos para uniões
heteroafetivas – exceto, por óbvio, a diversidade de sexos.
No dizer da própria Corte:
ante a possibilidade de interpretação em sentido preconceituoso ou discriminatório do art. 1.723 do Código Civil, não
resolúvel à luz dele próprio, faz-se necessária a utilização da
técnica de ‘interpretação conforme a Constituição’ [...] para
excluir do dispositivo em causa qualquer significado que
impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como família. Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas regras e
com as mesmas consequências da união estável heteroafetiva. (BRASIL, 2011, p. 614-5)
Nesta senda, em que pese o Supremo Tribunal Federal não ter
expressamente esclarecido sobre a possibilidade de conversão da união
homoafetiva em casamento civil, entende-se, neste trabalho, que sua
possibilidade jurídica não só advém da força vinculante da
interpretação conferida ao artigo 1.723 do Código Civil –
considerando que a lei civil deve facilitar a conversão da união estável
em casamento –, como também da melhor exegese dos princípios
constitucionais, em especial a dignidade da pessoa humana, a igualdade
e a liberdade, ora comentados. Portanto, a despeito do silêncio do
ordenamento positivo acerca desta realidade social, a pesquisa
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pretende justificar a extensão do casamento civil aos homossexuais
com base nos comandos supracitados, cujo conteúdo não somente
demonstra a ausência de qualquer vedação expressa ao casamento
homoafetivo, mas também fundamenta sua celebração.
2 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS FUNDAMENTADORES DA
POSSIBILIDADE DE CASAMENTO
Na esteira da observação de Aimberê Francisco Torres
(TORRES, 2008, p. 50), não se pode perder de mira o fato de que a
Constituição Federal de 1988 trouxe o fenômeno da
constitucionalização do Direito Civil, o que significa imposição direta
da incidência de princípios constitucionais nas relações de Direito
Privado, especialmente no tocante ao Direito de Família. Destarte, o
tratamento das entidades familiares foi amplamente oxigenado pelo
advento da nova sistemática constitucional. Tendo em vista, também,
o fato de que a Constituição de 1988 erigiu a dignidade da pessoa
humana à condição de fundamento do Estado Democrático de
Direito, partir-se-á desse fundamento da República para fundamentar
a possibilidade do casamento civil homoafetivo. Além desse princípio,
escolheram-se outros que lhe são umbilicalmente ligados – a liberdade
e a igualdade –, por se entender que são valores que incidem de modo
mais imediato sobre a questão, tendo sido considerados pelo Supremo
Tribunal Federal quando da equiparação das uniões homoafetivas às
heteroafetivas. Assim, como se demonstrará a seguir, a aplicação do
regime de união estável do Código Civil às uniões homoafetivas,
quando complementada pela interpretação dos princípios
constitucionais escolhidos, não deixa dúvida sobre a possibilidade de
conversão da união estável em casamento civil, bem como de
habilitação para o casamento direto.
2.1 O princípio da dignidade da pessoa humana
Apesar da posição central de que goza a dignidade da pessoa
humana na sistemática constitucional atual, seu prestígio nas
Constituições brasileiras é fenômeno recente. A Carta de 1988 foi a
primeira a positivá-la como fundamento do nosso Estado
Democrático de Direito, no seu artigo 1º, inciso III. Além disso,
previu um capítulo próprio destinado aos princípios fundamentais,
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situado na parte inaugural do texto, logo após o preâmbulo e antes dos
direitos fundamentais, em manifesta homenagem ao especial
significado e função de tais princípios (SARLET, 2007, p. 63-4). Na
verdade, como recorda Ingo Wolfgang Sarlet (2007, p. 64), ressalvada
uma ou outra exceção, tão somente a partir da Segunda Guerra
Mundial, a dignidade da pessoa humana passou a ser reconhecida
expressamente nas Constituições, notadamente após ter sido
consagrada pela Declaração Universal da ONU de 1948.
Fábio Konder Comparato (2006, p. 37) apresenta uma
explicação para tal fenômeno:
a compreensão da dignidade suprema da pessoa humana e
de seus direitos, no curso da História, tem sido, em grande
parte, o fruto da dor física e do sofrimento moral. A cada
grande surto de violência, os homens recuam, horrorizados,
à vista da ignomínia que afinal se abre claramente diante de
seus olhos; e o remorso pelas torturas, pelas mutilações em
massa, pelos massacres coletivos e pelas explorações aviltantes faz nascer nas consciências, agora purificadas, a exigência
de novas regras de uma vida mais digna para todos.
Do mesmo teor é o entendimento de Rizzatto Nunes (2002, p.
48):
[...] se torna necessário identificar a dignidade da pessoa
humana como uma conquista da razão ético-jurídica, fruto
da reação à história de atrocidades que, infelizmente, marca
a experiência humana. Não é à toa que a Constituição Federal da Alemanha Ocidental do pós-guerra traz, também, estampada no seu artigo de abertura que ‘a dignidade da pessoa humana é intangível. Respeitá-la e protegê-la é obrigação
de todo o poder público’. Foi, claramente, a experiência nazista que gerou a consciência de que se devia preservar, a
qualquer custo, a dignidade da pessoa humana.
Nessa ordem de ideias, a preocupação da Carta de 1988 em
destacar e assegurar os direitos fundamentais parece advir do fato de
ter sucedido à ditadura militar (1964-1985), período de violação
sistemática dos direitos humanos por parte do próprio Estado.
Buscando um ponto de partida para se chegar ao conceito de
dignidade da pessoa humana, Ingo Wolfgang Sarlet (2007, p. 62) a
qualifica como
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[...] a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada
ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres que
assegurem a pessoa contra todo e qualquer ato de cunho
degradante e desumano, como venham a lhe garantir as
condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e coresponsável nos destinos da própria existência e da vida em
comunhão com os demais seres humanos.
Dada sua importância, é inafastável a conclusão de que a
dignidade da pessoa humana é o valor supremo do ordenamento
jurídico pátrio. Uadi Lammêgo Bulos (2009, p. 393) se refere à
dignidade como um sobreprincípio, pois dele emanam todos os outros
princípios constitucionais, como a legalidade e a liberdade de
profissão, servindo, ainda, de vetor interpretativo para todas, do qual o
hermeneuta não pode se afastar, dada a força centrípeta que a
dignidade humana possui; é, portanto, o carro-chefe dos direitos
fundamentais na Constituição de 1988. Nessa esteira, é preciso
ressaltar a íntima ligação entre família e dignidade humana, reforçada
na mudança de paradigma pela qual vem passando o núcleo familiar.
A família patriarcal, sacralizada e patrimonializada, tal como
concebida no Código Civil de 1916, não existe mais. A relação
matrimonial não se presta mais para identificar um agrupamento de
pessoas como grupo familiar. Hodiernamente, o que permite distinguir
uma família não é mais o casamento – outrora único meio de
constitui-la –, mas sim a afetividade entre seus membros. Por via dessa
mudança paradigmática, acentuada, sobretudo, pelo advento da Carta
de 1988, cristalizou-se a noção de que a família não é um fim em si
mesmo, mas sim um instrumento para implementar a realização
espiritual e afetiva daqueles que a compõem, tutelada na exata medida
em que constitua um núcleo intermediário de desenvolvimento da
personalidade dos filhos e de promoção da dignidade de seus
integrantes (TEPEDINO, 2004, p. 398). Em outras palavras, significa
dizer que as pessoas constituem famílias para serem felizes, e que esse
núcleo familiar perdura na medida em que permite a seus integrantes a
troca de afeto, a solidariedade, o companheirismo, o carinho,
instituindo verdadeira comunhão de vida entre eles. Quando a
afetividade entre os familiares desaparece, o próprio núcleo perde sua
razão de ser, já que não mais proporciona a realização de seus
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membros. Assim, para a família contemporânea importa muito mais o
conteúdo das relações pessoais que lá se desenvolvem – se pautados
pela afetividade ou não –, do que o status de seus componentes – se
casados ou conviventes, se o parentesco é consanguíneo ou civil, etc.
Em outras palavras, importa, como elemento essencial, “o amor que
vise a uma comunhão plena de vida e interesses”, como refere Paulo
Roberto Iotti Vecchiatti (2008, p. 218).
Pois bem: considerando que tanto homossexuais como
heterossexuais possuem exatamente a mesma dignidade – e,
consequentemente, o mesmo direito de determinar suas próprias vidas
– e que os núcleos familiares assumem, atualmente, a função de
promoção da dignidade da pessoa humana, o Estado não deve, nem
pode, criar óbices para a constituição de famílias, tanto por parte de
heterossexuais quanto por homossexuais. Afinal, a supressão do
casamento homoafetivo acarreta evidente restrição da liberdade sexual
dos indivíduos homossexuais, em sério prejuízo à sua personalidade,
como constata Érika Harumi Fugie (2003, p. 75-6):
As relações sexuais se albergam entre os direitos de personalidade, sob o teto da liberdade de expressão, precipuamente
no que diz respeito à identidade pessoal e à integridade física
e psíquica. [...] O direito à liberdade permite ao indivíduo reclamar acima de tudo os bens de viver e de viver incólume,
imprimindo às suas energias o caminho que prefere, dentro
dos limites prescritos. [...] De modo que a liberdade de expressão sexual, como direito de personalidade, é direito subjetivo que tem
como objeto a própria pessoa. Assim, é dotado de uma especificidade e
se insere no minimum necessário e imprescindível ao conteúdo do indivíduo. De maneira que o aniquilamento de um direito de personalidade
ofusca a pessoa como tal. [grifo nosso]
Significa que todos devem ter a possibilidade de estruturar suas
relações afetivas como bem entenderem. Não reconhecer a um
indivíduo a possibilidade de viver sua orientação sexual em todos os
seus desdobramentos é privá-lo de uma das dimensões que dão
sentido à sua existência; é, na opinião de Luís Roberto Barroso (2007,
p. 19), fazer com que os homossexuais sejam menos livres para viver
suas escolhas. A relação entre dignidade da pessoa humana e a
possibilidade de casamento entre pessoas do mesmo sexo também tem
repercussões psicológicas e sociais sobre homossexuais. Assim,
observa Paulo Roberto Iotti Vecchiatti (2008, p. 348):
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ao não se admitir a realização do casamento civil [...] está
quem o faz a afirmar que a união homoafetiva não possuiria
o mesmo valor de dignidade que a heteroafetiva. Afinal, é
inegável que o casamento civil sempre foi colocado ao longo
dos séculos como a consagração máxima da união amorosa
entre duas pessoas, no sentido de dar uma condição de legitimidade a essa união afetiva. [...] Há um verdadeiro arquétipo
social construído em torno da consagração da união amorosa
pelo casamento civil, pois desde pequenos ouvimos direta e
subliminarmente que só seremos felizes quando nos casarmos com a pessoa que amamos. [Grifo do autor]
De fato, não há como negar a existência desse mencionado
“arquétipo social”. Infelizmente, ainda está muito incutida no
imaginário popular a ideia de que só é possível ser feliz por meio de
uma relação amorosa, preferencialmente matrimonializada, havendo,
inclusive, um “apiedamento” em relação àqueles que não se encaixam
nesse padrão. Muito embora essa percepção seja falsa, é fato que a
vedação do matrimônio entre pessoas de mesmo sexo traria nefastas
consequências à autoestima – e, logo, à dignidade – da população
homossexual. Primeiro, porque os homossexuais, mais uma vez
alijados desse “modelo de felicidade”, fatalmente alimentariam um
sentimento de “menos valia” em relação a si mesmos, quando
comparados aos heterossexuais. Afinal, se as relações homoafetivas e
heteroafetivas são essencialmente pautadas pelo amor familiar, e se
apenas estas puderem ser convertidas em casamento, será evidente a
mensagem emitida pelo Estado de que as relações entre pessoas do
mesmo sexo são menos importantes e menos dignas do que as
relações entre pessoas de sexo oposto. Segundo, porque, como bem
observado por Luís Roberto Barroso (2007, p. 21), “[...] o
reconhecimento do outro exerce importante papel na constituição da
própria identidade (do self3) e no desenvolvimento de auto-estima”.
Assim, a contrario sensu, o não reconhecimento se converte em
desconforto, levando muitos indivíduos a negarem sua própria
identidade à custa de grande sofrimento pessoal, pelo que a não
atribuição de igual respeito às relações homoafetivas apenas vem
perpetuar a dramática exclusão e estigmatização a que os
homossexuais têm sido submetidos, numa patente violação à
dignidade da pessoa humana (BARROSO, 2007, p. 21).
3
TAYLOR, Charles. A Política do Reconhecimento. In: ______. Argumentos filosóficos. Tradução de Adail U. Sobral. São Paulo: Loyola, 2000.
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Portanto, em face dos argumentos elencados, pode-se
defender que a vedação da conversão em casamento das uniões
formadas entre pessoas do mesmo sexo é inconstitucional, por,
primeiramente, colidir com a dignidade da população homossexual e
bissexual, e, também, com outros princípios emanados da Lei Maior,
conforme será demonstrado nos tópicos subsequentes.
2.2 O princípio da igualdade
Não há como falar do princípio da igualdade sem remeter à
clássica distinção entre igualdade formal e igualdade material. A
primeira, surgida do ideário da Revolução Francesa, preconiza que
todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza.
Destarte, impõe-se a aplicação do direito vigente a todos os
indivíduos, sem consideração das características pessoais específicas
dos cidadãos sujeitos à legislação a ser aplicada (VECHIATTI, 2008,
p. 113).
Em que pese o inegável avanço dos direitos individuais trazido
por esta concepção formal de igualdade, este viés acabou se revelando
insuficiente para efetivamente equiparar os indivíduos, porque o fato
de estar desconectada de suas condições econômicas e sociais
oportunizava que dois iguais fossem tratados de forma desigual, e
vice-versa. Nesta ordem de ideias, analisando o critério formal, Roger
Raupp Rios (2002, p. 36) constata que se admitiu uma “[...] definição
do conteúdo dos direitos fundamentais pelo legislador”, e que “o
esvaziamento material deste conteúdo [do princípio da igualdade],
cujos contornos ficam à mercê da legislação, acabou por tolerar a
adoção de medidas flagrantemente contrárias à dignidade humana”.
Desta forma, a insuficiência da compreensão meramente
formal do preceito isonômico demandou uma consideração de
igualdade também material, proibitiva de tratamento desigual de
situações idênticas ou análogas, mesmo que tal diferenciação arbitrária
fosse instituída por lei (VECHIATTI, 2008, p. 115).
Assim, a igualdade em seu aspecto material, baseada nas
formulações de Aristóteles, preconiza o mesmo tratamento para os
indivíduos que se encontrem em igual situação, ao passo que, aos que
se encontram em situação diversa, deve ser dado um tratamento
jurídico diverso (VECHIATTI, 2008, p. 116).
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Celso Antônio Bandeira de Mello (2012, p. 21-2) tenta
estabelecer critérios para saber se determinada discriminação colide ou
não com o princípio da igualdade e, assim, leciona que:
tem-se investigar, de um lado, aquilo que é adotado como
critério discriminatório; de outro lado, cumpre verificar se
há justificativa racional, isto é, fundamento lógico, para, à
vista do traço desigualador acolhido, atribuir o específico
tratamento jurídico construído em função da desigualdade
proclamada. Finalmente, impende analisar se a correlação ou
fundamento racional abstratamente existente é, in concreto,
com os valores prestigiados no sistema normativo constitucional.
Assim, com fundamento nos parâmetros acima propostos, e
sabendo que a Constituição de 1988 adotou a igualdade em ambos os
aspectos e, delineados os contornos gerais desse princípio, impende
verificar se a diferenciação entre pares formados por pessoas do
mesmo sexo e aqueles constituídos por pessoas de sexos opostos, com
o fim de excluir aqueles do regime matrimonial, é ou não
constitucional. Primeiramente, impõe-se saber quais os fins e os
valores visados pelas normas jurídicas que tratam do casamento para, a
partir daí, aferir se a adoção da orientação sexual como fator
desigualador é legítima e, portanto, válida. Ora, como explanado neste
trabalho, é latente que a tutela jurídica da família contemporânea toma
por objeto a afetividade e a realização de seus componentes, de modo
que, hodiernamente, as entidades familiares merecem proteção na
medida em que buscam a troca de afeto e o objetivo de comunhão de
vida em sua constituição.
Considerando que tanto homossexuais e bissexuais como
heterossexuais são iguais, tendo a mesma capacidade de constituir
famílias embasadas pelo amor familiar – que é o “amor que vise a uma
comunhão plena de vida e interesses de forma pública, contínua e
duradoura” (VECHIATTI, 2008, p. 196) –, tendo esta capacidade sido
reconhecida até pelo Supremo Tribunal Federal, não há razão para
negar àqueles e possibilitar a estes a conversão de suas uniões estáveis
em casamento, pois são exatamente iguais no que diz respeito à
finalidade almejada pela norma, qual seja a proteção do amor familiar.
Logo, inconcebível discriminá-los pelo critério de sua orientação
sexual, vez que totalmente desconectados do objeto tutelado pelas
normas constitucionais relativas ao casamento, qual seja, a afetividade.
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Na verdade, mesmo que por si só tal fator constituísse razão suficiente
para ensejar tratamento discriminatório aos homossexuais e bissexuais,
sua admissibilidade não sobreviveria ao exame do nosso direito
constitucional positivo, tendo em vista a proibição da discriminação
em razão de sexo, insculpida no artigo 3º, IV, da Lei Maior. Em tese,
poder-se-ia argumentar que a discriminação em relação a pares
homoafetivos tem como critério a orientação sexual dos conviventes,
e não seu gênero em si, de modo que tal descrímen não teria sido
albergado pela proibição expressa no texto constitucional, e, portanto,
seria válido. Todavia, como pontua Roger Raupp Rios (2002, p. 133),
é impossível a definição da orientação sexual sem a consideração do sexo dos envolvidos na relação verificada; ao contrário, é essencial para a caracterização de uma ou de outra
orientação sexual levar-se em conta o sexo.
Isto porque a homossexualidade não apresenta sinais
identificadores externos, só podendo ser identificada pela definição do
sexo para quem o indivíduo se volta amorosamente.
Assim, no exemplo do mencionado autor:
Pedro sofrerá ou não discriminação por orientação sexual
precisamente em virtude do sexo da pessoa para quem dirigir seu desejo ou sua conduta sexual. Se orientar-se para
Paulo, experimentará a discriminação; todavia, se dirigir-se
para Maria, não suportará tal diferenciação. Os diferentes
tratamentos, neste contexto, tem sua razão de ser no sexo
de Paulo (igual ao de Pedro) ou de Maria (oposto ao de Pedro). Este exemplo ilustra com clareza como a discriminação por orientação sexual retrata uma hipótese de discriminação por motivo de sexo. (RIOS, 2002, p. 133)
Deste modo, o raciocínio aqui construído permite concluir que
a Constituição veda a discriminação em razão de orientação sexual,
pela proibição do preconceito de gênero. E mesmo que não vedasse,
entende-se que ela estaria albergada pela expressão “quaisquer outras
formas de discriminação”, do artigo 3º, IV, da Carta Magna. Aliás, tendo
em vista que o tratamento igualitário é a regra e que as diferenciações é
que devem ser justificadas, não se pode deixar de mencionar que o
correto seria que os defensores da vedação do matrimônio aos pares
de mesmo sexo justificassem o porquê de estes não merecerem iguais
direitos. É de se lamentar que os estigmas ainda hoje carregados pela
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homossexualidade e bissexualidade obriguem essa minoria a explicar e
fundamentar a sua própria igualdade em relação aos heterossexuais,
quando, em verdade, o correto seria a justificação do preconceito e da
exclusão sofrido por eles.
2.3 O princípio da liberdade
O princípio da liberdade, aqui encarado no prisma da liberdade
de orientação sexual, guarda íntima conexão com o princípio da
dignidade da pessoa humana. Isto porque, entendendo-se esta também
como o direito de propiciar e promover a participação ativa e
corresponsável no destino da própria existência (SARLET, 2007, p.
87), inafastável a conclusão de que extinguir o direito de liberdade
fatalmente conduz à supressão da dignidade. Afinal, quando falta a
prerrogativa de determinar a própria vida, o ser humano se veria
reduzido a mero objeto.
Ingo Wolfgang Sarlet (2007, p. 87), ao relacionar a liberdade
com a dignidade humana, comenta:
Em primeiro lugar, relembrando que a noção de dignidade
humana repousa – ainda que não de forma exclusiva [...] na
autonomia pessoal, isto é, na liberdade [...] que o ser humano possui de, ao menos potencialmente, formatar a sua própria existência e ser, portanto, sujeito de direitos, já não mais
se questiona que a liberdade e os direitos fundamentais inerentes à sua proteção constituem simultaneamente pressuposto e concretização direta da dignidade da pessoa, de tal
sorte que nos parece difícil [...] questionar o entendimento
de acordo com o qual sem liberdade (negativa e positiva)
não haverá dignidade, ou, pelo menos, esta não estará sendo
reconhecida e assegurada.
No que toca especificamente à esfera da sexualidade, vale
mencionar a lição de Érika Harumi Fugie (2003, p. 75), para quem
“[...] as relações sexuais se albergam entre os direitos de personalidade,
sob o teto da liberdade de expressão, precipuamente no que diz
respeito à identidade pessoal e à integridade física e psíquica”. Nesta
senda, afirma Maria Berenice Dias (2011, p. 89):
O princípio da liberdade está consubstanciado numa perspectiva de privacidade e intimidade, podendo o ser humano
realizar suas próprias escolhas, isto é, o seu próprio projeto
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de vida. No campo específico da homoafetividade, o princípio da liberdade se faz presente no sentido de que toda e qualquer pessoa possui a
prerrogativa de escolher o seu par, independentemente do sexo, assim
como o tipo de entidade familiar que desejar constituir. [Grifo nosso]
Assim, reportando-nos expressamente à conexão entre
dignidade da pessoa humana e o princípio da igualdade, é possível
falar, segundo o pensamento de Ingo Sarlet (2007, p. 108), na
existência de um direito à livre orientação sexual, consequência lógica
e inseparável do princípio da liberdade. Pois bem. Se é verdade que,
como bem afirmou o eminente Ministro Carlos Ayres Britto (BRASIL,
2011, p. 638), da mesma forma que os heterossexuais se realizam
heterossexualmente, os homossexuais só podem se realizar
homossexualmente, então também é certo que não se pode vedar o
matrimônio para pares de mesmo sexo. Do contrário, “como não
desejam contrair matrimônio com uma pessoa de sexo distinto, não
lhes [seria] assegurado o direito de constituir família” (DIAS, 2011, p.
90).
Aliás, ao se permitir apenas o casamento de heterossexuais, a
mensagem emanada pelo ordenamento é a de que só é válido exercitar
o direito de liberdade se for para constituir união amorosa com pessoa
de sexo diferente. Ora, tal regulamentação não confere liberdade
alguma; ao contrário, impõe um modelo pré-ordenado de conduta,
qual seja a heterossexualidade. Sobretudo agora que a liberdade de
constituir uniões homossexuais foi finalmente reconhecida pelo
Supremo Tribunal Federal, urge permitir a sua conversão em
casamento. Afinal, se a liberdade é concretização da dignidade
humana, e se homossexuais e heterossexuais são rigorosamente iguais
em dignidade, é imperioso reconhecer a ambos a possibilidade de se
casar, já que o casamento é, indubitavelmente, expressivo meio de
exercício da liberdade individual.
3 INEXISTÊNCIA DE VEDAÇÃO ÀS UNIÕES HOMOAFETIVAS E
AO CASAMENTO ENTRE PESSOAS DO MESMO SEXO
Embora esta pesquisa dirija-se para o entendimento de que a
interpretação mais razoável dos princípios fundamentais já é suficiente
para autorizar a possibilidade de conversão da união de pessoas do
mesmo sexo em casamento, é necessário comentar alguns dos
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argumentos comumente utilizados por aqueles que têm posição
contrária.
Ressalte-se que alguns destes fundamentos já restaram
superados com o posicionamento do Supremo Tribunal Federal sobre
a admissibilidade da união homoafetiva como entidade familiar.
Contudo, a título de argumentação, o presente trabalho pretende
demonstrar que o ordenamento brasileiro não veda, ao menos de
modo expresso, a união e o casamento entre pessoas do mesmo sexo;
o que se tem, ao contrário, é uma lacuna legal, a ser suprida pela
interpretação dos princípios constitucionais já relatados.
Um argumento comum para a objeção do casamento
homoafetivo, a “teoria do silêncio eloquente” preconizava que o fato
de o legislador citar apenas o modelo heteroafetivo nos dispositivos
relativos à união estável e ao casamento – por meio da célebre fórmula
“homem e mulher” – estaria a vedar sua constituição por pares de
mesmo sexo. Isso porque, como explica Paulo Roberto Iotti
Vecchiatti, tal teoria fundava-se na ideia de que “[...] determinadas
lacunas do texto da Constituição Federal teriam sido intencionais, no
sentido de que o Constituinte Originário teria decidido não
regulamentar a matéria, impondo-lhe o vazio normativo”
(VECCHIATTI, 2008, p. 436).
No caso das relações homoafetivas, a lacuna do legislador
seria, então, a forma que este teria encontrado para negar efeitos
jurídicos. Em outras palavras, significa que se o legislador quisesse
validá-las, as teria previsto de modo expresso, tal como fez com as
uniões heterossexuais. Entretanto, não se pode acolher tal
entendimento. Em primeiro lugar, não há dispositivo constitucional
que afirme que o suposto silêncio deliberado do legislador ensejaria
uma proibição à situação não regulamentada (VECCHIATTI, 2008, p.
436).
Nesse ponto, é preciso considerar o raciocínio do Ministro
Ayres Britto (BRASIL, 2012, p. 641):
cuida-se, em rigor, de um salto normativo da proibição de
preconceito para a proclamação do próprio direito a uma
concreta liberdade do mais largo espectro, decorrendo tal liberdade de um intencional mutismo da Constituição em tema de empírico emprego da sexualidade humana. É que a
total ausência de previsão normativo-constitucional sobre
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esse concreto desfrute da preferência sexual das pessoas faz
entrar em ignição, primeiramente, a regra universalmente válida de que
“tudo aquilo que não estiver juridicamente proibido, ou obrigado, está
juridicamente permitido”. (Grifo do autor)
Ademais, é praticamente impossível determinar uma vontade
una do Poder Legislativo, tendo em vista o elevado número de seus
componentes e o próprio procedimento legiferante, no qual o projeto
de lei pode sofrer inúmeras modificações, por vezes mutiladoras do
seu espírito original. Assim, a interpretação conforme deve, na
verdade, obedecer à vontade da lei, quando não for possível chegar à
finalidade de seu criador.
Não há, então, como concluir por um silêncio eloquente do
legislador constituinte – tampouco do legislador infraconstitucional –,
seja pela plena falta de embasamento desta interpretação, seja por
contrariar a regra insculpida pelo artigo 5º, II, da Constituição Federal,
ou pela simples impossibilidade de determinar se sua intenção foi
mesmo excluir as uniões formadas por pessoas de mesmo sexo, de
modo a ser mais razoável supor o mero esquecimento destas, não sua
proibição. Em todo caso, evidente que tal teoria restou esvaziada após
a decisão do Supremo Tribunal Federal reconhecendo as uniões
homoafetivas, já que a exegese da Corte estendeu a estas a proteção do
artigo 226, § 3º da Constituição Federal, afastando-se, portanto,
qualquer interpretação excludente do citado dispositivo constitucional.
Ainda que não tivesse sido superada, haveria que se considerar
o ensinamento de Luís Roberto Barroso (2007, p. 27):
É certo, por outro lado, que a referência a homem e mulher não
traduz uma vedação da extensão do mesmo regime às relações homoafetivas. Nem o teor do preceito nem o sistema constitucional
como um todo contêm indicação nessa direção. Extrair desse preceito tal consequência seria desvirtuar a sua natureza: a
de uma norma de inclusão. De fato, ela foi introduzida na
Constituição para superar a discriminação que, historicamente, incidira
sobre as relações entre homem e mulher que não decorressem do casamento. Não se deve interpretar uma regra constitucional contrariando os princípios constitucionais e os fins que a justificaram. [Grifo nosso]
No mesmo sentido, a opinião de Maria Berenice Dias (2011, p.
137):
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quando se assegura à família especial proteção, não se identifica a sua formatação. [...] Como é assegurada a proteção
não só ao casamento e à união estável, mas também à família monoparental, resta evidente que não é a prática sexual
ou a capacidade procriativa o elemento identificador da entidade familiar. Deste modo, descabido negar direitos a vínculos afetivos que não têm a diferença de sexo como pressuposto.
Como observa a citada autora, a norma do artigo 226 da
Constituição apenas poderia ser excepcionada se existisse outra de
eliminação explícita de tutela de tais uniões (DIAS, 2011, p. 145).
Poderia o legislador ter utilizado expressão restritiva, impedindo de
modo expresso a união entre pessoas de idêntico sexo, mas não o fez
(DIAS, 2011, p. 144). E se não o fez, foi porque provavelmente não
quis negar seu caráter familiar.
Nessa ordem de ideias, destacam-se as palavras de Luís
Alberto Barroso (2007, p. 29):
não tem pertinência a invocação do argumento de que o
emprego da expressão “união estável entre o homem e a
mulher” importa, a contrario sensu, em proibição à extensão
do mesmo regime a uma outra hipótese. Tal norma foi o
ponto culminante de uma longa evolução que levou à equiparação entre companheira e esposa. Nela não se pode vislumbrar uma restrição – e uma restrição preconceituosa – de
direito. Seria como condenar alguém com base na lei de anistia.
Em suma, a interpretação do artigo 226 da Constituição
Federal exige sua consideração como norma inclusiva; destarte, não se
pode invocá-la para afastar comunhões de vida estabelecidas pelo
afeto – como é a união homoafetiva – da proteção estatal que a Carta
Maior desejou estabelecer a todas as entidades familiares. Caso esta
desejasse proteger determinados modelos familiares em detrimento de
outros, teria consignado essa preferência textualmente. Na ausência de
uma “exclusão expressa”, há que se levar em conta o sistema
constitucional sustentado pelo princípio da dignidade da pessoa
humana, albergando-se as relações homoafetivas no âmbito da
proteção do Direito de Família. Da mesma forma, também não há que
se vedar o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo sob o
argumento de a igualdade de gênero constituir impedimento
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matrimonial. Na lição da civilista gaúcha:
Entre os impedimentos matrimoniais, não está prevista a identidade de sexo dos nubentes. Limita-se a lei a estabelecer
requisitos para a sua celebração, elencar os direitos e os deveres dos cônjuges e disciplinar os regimes de bens. Sequer
ao apontar as causas de nulidade ou anulação do casamento,
é feita referência à identidade sexual dos cônjuges. (DIAS,
2011, p. 138)
Em verdade, o argumento que vinha sendo – e ainda é –
utilizado para repelir o matrimônio homossexual é o de que este seria
um ato inexistente (conhecida como a “teoria do ato inexistente”), sob
o fundamento de que a diversidade de sexos seria um pressuposto
fático tão evidente do casamento, que sequer necessitaria de menção
legislativa (VECCHIATTI, 2008, p. 417). Adotando essa posição,
escreve Maria Helena Diniz (2010, p. 54):
O casamento tem como pilar o pressuposto fático da diversidade de sexo dos nubentes (CC, arts. 1.514, 1.517, 1.565;
CF, art. 226, § 5º). Se duas pessoas do mesmo sexo, como
aconteceu com Nero e Sporus, convolarem núpcias, ter-se-á
casamento inexistente, uma farsa. Absurdo seria admitir que
o matrimônio de duas mulheres ou de dois homens tivesse
qualquer efeito jurídico, devendo ser invalidado por sentença judicial. Se, porventura, o magistrado deparar com caso
desta espécie, deverá tão somente pronunciar sua inexistência.
Maria Berenice Dias (2011, p. 264) explica as razões da
elaboração dessa teoria:
Eis a justificativa: como a lei não elenca algumas causas de
nulidade do casamento (ausência de celebração, ausência de
manifestação de vontade e diversidade de sexo dos nubentes), ficava o juiz desarmado, não havendo possibilidade de
invalidar casamentos portadores de defeitos insanáveis por
não encontrar texto expresso para fundar a ação anulatória.
Assim, a afronta a tais pressupostos passou a ser considerada como ausência de elemento essencial à própria existência do
casamento. A categoria da inexistência vem em socorro do
intérprete em situações de extrema perplexidade, quando o
sistema de nulidades não se amolda perfeitamente ao caso.
Aí está a origem do casamento inexistente. [Grifo do autor]
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Perceba-se, então, que o casamento entre pessoas do mesmo
sexo era uma possibilidade tão absurda que, tendo o legislador “se
esquecido” de proibi-lo, foi preciso construir essa tese, para barrar o
negócio jurídico já no plano de sua existência. Em todo caso, é preciso
afastar a aplicação da tese do ato inexistente. Primeiro, porque se
mostra demasiadamente arbitrária e subjetiva: cria uma proibição sem
texto, o que, como já mencionado, é vedado pelo teor do artigo 5º, II,
da Lei Maior; além disso, possibilita ao intérprete que conceba um
matrimônio como inexistente de acordo com os seus próprios critérios
do que seria “absurdo” – da mesma forma que, para muitos, ainda é
absurda a ideia de um casamento entre dois homens ou mulheres, o
que, para outros, já é um acontecimento perfeitamente aceitável.
Assim, ao tentar “resguardar” a instituição matrimonial contra
hipóteses “inconcebíveis”, a teoria do ato inexistente acaba abrindo as
portas para a insegurança jurídica. Não fosse o bastante, ainda incorre
no erro de visualizar o casamento como uma instituição estanque, com
requisitos inerentes a si, sem qualquer interação com o ordenamento
jurídico vigente. Como esclarece Paulo Roberto Iotti Vecchiatti (2008,
p. 273),
a partir do momento em que uma “instituição” é inserida
em um ordenamento jurídico, deve ela respeitar obrigatoriamente os princípios que regem a ordem jurídica em questão. Não importa a origem desta, se religiosa, cultural ou
qualquer outra: deve ela obrigatoriamente obedecer aos ditames legais que regem o Direito eu o consagra, mesmo que
isso venha eventualmente a alterar parte de seu conteúdo
histórico “pré-jurídico”.
E, com efeito, a partir do momento em que integra o
arcabouço jurídico pátrio, mormente por sua dialética com os
princípios constitucionais, a melhor interpretação parece ser aquela
que defere aos pares homoafetivos o acesso ao casamento.
Em todo caso, fato é que a tese do casamento inexistente
padece de uma grande incongruência: não se sustenta em nenhuma
proibição positivada no ordenamento positivo, mas, ao mesmo tempo,
pretende estabelecer uma vedação, contrariando o artigo 5º, II, da
Constituição Federal, por força do qual se exige que as proibições
sejam expressas. Ainda assim, por mais que os argumentos expendidos
ao longo deste trabalho não tivessem força para legitimar a
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possibilidade do casamento civil homoafetivo, haveria que se
reconhecer, todavia, a eficácia vinculante de que goza a equiparação
das uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo. Em outras palavras,
significa dizer que, por mais que o Supremo Tribunal Federal não
estivesse correto em sua decisão de conferir às uniões homoafetivas o
mesmo regime jurídico das uniões heterossexuais, fato é que, por ter
ocorrido em sede de Ação Direta de Inconstitucionalidade, ela é
dotada de eficácia erga omnes e efeito vinculante, conforme o artigo 284
da Lei nº 9.868/99.
O paradigma jurídico das uniões homoafetivas é
inescusavelmente o mesmo das heteroafetivas: desta forma, se estas
podem ser convertidas em casamento, aquelas também o podem, até
porque seguramente a intenção dos eminentes ministros não foi incluir
“pela metade” os pares homoafetivos. Se tanto heterossexuais como
homossexuais podem constituir entidades familiares com seus
respectivos parceiros na mesma medida, e se estas se concretizam
tanto pela união estável quanto pelo casamento, seria ilógico aplicar
aos pares homoafetivos apenas o regime das uniões estáveis. Portanto,
uma vez que o direito homoafetivo teve seus paradigmas revolucionados
com a reinterpretação efetuada pelo STF, tornou-se irrelevante discutir
a existência ou não do caráter familiar nas uniões homoafetivas.
Agora, importa repensá-las a partir da determinação do Supremo –
isto é, apreciando-as segundo o mesmo complexo de direitos e
obrigações das relações heteroafetivas –, o que fatalmente redunda no
reconhecimento do direito ao casamento – por meio da conversão de
união estável ou pela via direta.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tendo em vista todos os argumentos apresentados, impende
reconhecer aos pares homoafetivos o direito ao casamento civil. Isso
porque a negativa do matrimônio igualitário viola os princípios da
dignidade da pessoa humana, igualdade e liberdade, já que não há
como dissociar o livre exercício da própria orientação sexual dos
4
Art. 28. [...] Parágrafo único. A declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, inclusive a interpretação conforme a Constituição e a declaração
parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto, tem eficácia contra todos e
efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal.
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outros aspectos que compõem uma pessoa: obstar ou dificultar sua
realização afetiva é, portanto, frustrar seus projetos de felicidade,
abalando sua autoestima.
Além disso, permitir o casamento civil somente entre
heterossexuais significa que o Estado valora o relacionamento
homossexual como “menos correto” que o modelo heteroafetivo,
numa discriminação proibida pelo artigo 3º, IV, da Constituição de
1988 e que, inevitavelmente, incute em todos aqueles impedidos de se
casar, um sentimento de “menos-valia”.
Também se procurou demonstrar que as normas
constitucionais de tutela da família visam a proteger não um modelo
familiar pré-estabelecido, mas sim a afetividade entre seus membros.
Nessa ordem de ideias, defendeu-se que só é válida a discriminação
que tenha pertinência com o fim cominado pela norma, o que não é o
caso, pois orientação sexual nada tem a ver com amor familiar.
De outra parte, o ordenamento positivo em nada proíbe as
uniões homoafetivas; aliás, sequer as menciona. Diante de tal silêncio,
é preciso homenagear a sistemática constitucional atual e os princípios
citados, incluindo-as nos mesmos regimes jurídicos aplicáveis às
relações entre pessoas de sexo diferente. Não é possível, como
pretendem alguns, ver neste silêncio uma intenção de exclusão.
Primeiro, porque as normas que tutelam a família são normas de
proteção e inclusão; assim, interpretá-las para negar direitos aos
homoafetivos desvirtuaria totalmente sua finalidade. Depois, porque
prevalece o artigo 5º, II, da Constituição: na ausência de proibição, o
comportamento deve ser permitido.
Assim, os argumentos expendidos mostram que é possível
uma interpretação razoável no sentido de se deferir direito ao
casamento aos pares homoafetivos. É preciso aproveitar as portas que
foram abertas pelo Supremo Tribunal Federal para sepultar o velho
Direito de Família, patrimonializado e patriarcal, “reabilitando”
perante a sociedade um grupo há muito estigmatizado e valorizando o
elemento mais importante para uma entidade familiar: o afeto.
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SOBRE GURIS E PIVETES: AS CANÇÕES DE CHICO BUARQUE
E O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
Marilu Martens Oliveira*
Vívian Martens Oliveira Banks dos Santos**
RESUMO
Este trabalho tem como centro de interesse as canções da música popular brasileira (MPB) “Meu guri” e “Pivete”, do cantautor Chico Buarque de Hollanda, que versam sobre o jovem infrator, e que, após
mais de trinta anos, infelizmente, continuam não datadas, justificandose, portanto, a pesquisa sobre o tema. Serão, também, realizadas reflexões sobre as medidas protetivas e socioeducativas estabelecidas pelo
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e sobre a sociedade brasileira hodierna.
Palavras-chave: Chico Buarque; Meu Guri; Pivete, Estatuto da Criança
e do Adolescente (ECA); Medidas protetivas e socioeducativas.
*
*
Doutora em Letras (Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, São
Paulo); Mestra em Letras (Universidade Estadual de Londrina - UEL); graduada
em Letras Franco-Portuguesas (FAFICOP), em Direito (UEL) e em Pedagogia (Faculdade de Educação Ciências e Letras Dom Domênico, Guarujá, SP); especialista
em Língua Portuguesa: Descrição e Ensino (Faculdade Estadual de Filosofia Ciências Letras de C. Procópio - FAFICOP, atual UENP); possui curso de aperfeiçoamento em Formação Empreendedora na Educação Profissional (Universidade
Federal de Santa Catarina); professora aposentada da UENP e efetiva da Universidade Tecnológica Federal do Paraná, campus Cornélio Procópio).
* Mestra em Direito Processual e Cidadania (Universidade Paranaense-Umuarama,
2012); graduada em Direito (Universidade Estadual do Oeste do Paraná, 2008);
pós-graduada em Direito de Família (Fundação Escola do Ministério Público, Curitiba, 2010) e em Direito Contemporâneo (Curso Prof. Luiz Carlos, Curitiba,
2010); Técnica Judiciária e professora no curso de Direito da Faculdade de Ensino
Superior (Marechal Cândido Rondon, PR); associada ao Instituto Brasileiro de Direito de Família; tem experiência em Direito Civil (Família), Bioética, Infância e
Juventude.
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ABSTRACT
The center of interest of this work is the Brazilian popular music
(MPB) songs "Meu Guri" and "Pivete", authored by songwriter and
singer Chico Buarque de Hollanda. They deal with the young offender
and are, after more than 30 years, unfortunately, still undated, justifying the research on the topic. Reflections will be held on protective
and social-educational measures established by the Statute of Child
and Adolescent (ECA) and today's Brazilian society.
Key words: Chico Buarque. Meu Guri. Pivete. Statute of Child and
Adolescent (ECA). Social-educational measures.
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SOBRE GURIS E PIVETES: AS CANÇÕES DE CHICO BUARQUE
E O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
Marilu Martens Oliveira
Vívian Martens Oliveira Banks dos Santos
1 INTRODUÇÃO – REBENTOS BRASILEIROS
Hoje, “seu moço”, a conversa é sobre rebentos, sobre crianças
e jovens brasileiros que vivem na chamada “situação de risco”,
segundo operadores jurídicos, instituições tutelares, técnicos sociais,
mídia e senso comum: são provenientes de lares desfeitos (há a falta
de um dos genitores, ou a de ambos, assim moram com avós, tios,
padrinhos); pouco vão à escola e nela permanecem (é muito alto o
índice de evasão); a formação deficiente não lhes permite bons
empregos; sentem-se discriminados em relação às ações policiais
(apreensões arbitrárias, muitas vezes); a situação financeira da família é
precária e vivem de benefícios sociais; além do que a sedução do
consumo, “marqueteada”, é imensa, acompanhada pela sedução da
droga, onírica e produtora de “grana” fácil; a vizinhança é violenta; há
falta de afeto (o relacionamento familiar não é dos melhores), de lazer,
de condições de higiene, enfim, de uma vida saudável. E, sabe-se, é
muito importante que o jovem sinta-se querido e protegido.
O vínculo familiar é um aspecto tão fundamental na condição humana, e particularmente essencial ao desenvolvimento, que os direitos da criança o levam em consideração na
categoria convivência, estar junto. O que está em jogo não é
uma questão moral, religiosa ou cultural, mas sim vital. (VICENTE5 apud QUINTAS, 2009, p. 6)
Nossas reflexões, portanto, inicialmente serão sobre algumas
questões sociais que assolam o Brasil há muitos anos e, para tanto,
precisamos primeiro definir quem é a nossa criança e quem é o nosso
5
VICENTE, C. M. O direito à convivência familiar e comunitária: uma política de
manutenção do vínculo In: KALOUSTIAN, S. M. (Org.). Família brasileira: a
base de tudo. 3. ed. São Paulo: Cortez, 1998. p. 51.
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jovem. A adolescência compreende um período etário e um processo
psicossomático transitório entre as fases infantil e adulta, estando, por
isso, sujeita às circunstâncias sociais e históricas para a formação do
indivíduo.
O “ser adolescente”, por conseguinte, é muito complexo, pois
além das alterações biológicas e psicológicas que sofrem os jovens
neste período, eles têm ainda que passar por vários outros dilemas,
encargos e responsabilidades, que, muitas vezes, são verdadeiros
fardos para a idade, podendo provocar revolta, transgressão e desafio
à autoridade de qualquer tipo. Ressalte-se que tanto os filhos como os
pais, muitas vezes, pouco sabem lidar com os conflitos que se
apresentam nessa fase da puberdade, conhecida como período de
“tempestade e stress”, em famosa expressão de Stanley Hall.
Juridicamente, adolescente seria o jovem entre 12 e 18 anos de
idade. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) – Lei nº 8.069,
de 13 de julho de 1990, no seu artigo 1º, dispõe sobre a proteção
integral ao adolescente e à criança (ROSSATO; LEPORE; CUNHA,
2012, p. 51). O legislador nele instituiu os termos “criança” e
“adolescente”, buscando, dessa forma, não permitir a marginalização,
o estigma e o trauma (LIBERATI, 2006, p. 17). Ele assim dispõe:
Art. 2º. Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a
pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente
aquele entre doze e dezoito anos de idade.
Parágrafo único. Nos casos expressos em lei, aplica-se excepcionalmente este Estatuto às pessoas entre dezoito e vinte e um anos de idade. (ISHIDA, 2006, p. 2)
Empregamos aqui, por conseguinte, o vocábulo “jovem”, visto
que a terminologia “menor” deixou de ser usada, tendo em vista seu
caráter pejorativo e discriminatório.
Na concepção técnico-jurídica, “menor” designa aquela pessoa que não atingiu ainda a maioridade, ou seja, 18 anos. A
ele não se atribui a imputabilidade penal, nos termos do art.
104 do ECA c/c art. 27 do CP. Se isto não bastasse, a palavra “menor”, com o sentindo dado pelo antigo Código de
Menores, era sinônimo de carente, abandonado, delinquente, infrator, egresso da FEBEM, trombadinha, pivete. (LIBERATI, 2006, p. 17)
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Nosso tema é instigante e polemiza-se bastante nas rodas,
jurídicas ou não, quando se fala de jovem infrator e do ECA.
Discutem-se estereótipos cristalizados no vocábulo “menor”, que
aparecem em letras de canções populares, filmes, romances,
reportagens jornalísticas e mídias sociais. É comum, inclusive em
programas policiais “mundo-cão”, da televisão, aparecer jovens
envolvidos em delitos, que, para se safarem, dizem assim que são
detidos: “sou de menor” [sic].
Causou grande controvérsia, na época de seu lançamento,
1981, o filme Pixote – a lei do mais fraco, dirigido por Hector Babenco, e
calcado no romance-reportagem de José Louzeiro, A infância dos mortos.
Ele mostra a vida de um garoto, com aproximadamente 10 anos de
idade, que, devido às circunstâncias, usa e vende drogas, torna-se
cafetão e assassino. E, o que é pior, faz pós-graduação no crime nas
instituições para os chamados menores infratores da época, nas quais
esteve internado. Foi tamanho o sucesso da obra cinematográfica que
houve uma sequência dela, em 1996 – Quem matou Pixote?, dirigida por
José Joffily (na vida real, o ator de Pixote, Fernando Ramos, havia sido
assassinado, após cometer diversos delitos). São inúmeros os filmes
que tratam da temática do jovem (da periferia, em especial, ou da
classe média e da classe média alta) envolvido com drogas, do
desajuste familiar, da violência e da criminalidade. Entre eles estão
Bicho de sete cabeças, Ônibus 174, Ódiquê?, Anjos do Sol, Paraísos artificiais,
Querô, Os doze trabalhos, Meu nome não é Johnny, Última parada 174, Juízo,
Território e violência, Bróder, Capitães de areia.
Destacam-se ainda documentários, como o recente Território e
violência, 2008, de Patrícia S. Riviero e Ruth Imanashi Rodrigues,
complementando a pesquisa "Indicadores de Proteção e Risco para a
instrumentação de Políticas Públicas em Favelas no Rio de Janeiro",
realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), com
apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de
Janeiro (FAPERJ), sobre vítimas de homicídios. São analisadas, via
depoimentos de urbanistas, especialistas em segurança pública e
moradores, as causas prováveis das favelas serem o local de moradia
da maioria das citadas vítimas. Apontam-se as políticas que
produziram tais fatos e também quais as que “poderiam mudar o
quadro de segregação social urbana através da violência”
(OBSERVATÓRIO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2013). E o
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polêmico documentário de João Moreira Salles e Kátia Lund, Notícias
de uma guerra particular, lançado, em 1999, que assinala nossas mazelas
sociais, tais como a negligência, o comodismo, a injustiça, a
banalização da violência, que aumentava nos morros do Rio de
Janeiro, no caso, a favela Santa Marta. O cenário em que pisam jovens
traficantes, moradores e polícia é o de uma guerra, uma guerra
particular, na qual não há vencedores (OBSERVATÓRIO DE
SEGURANÇA PÚBLICA, 2013). O maior sucesso de público e de
crítica, porém foi o premiado Cidade de Deus, 2002, filme de Fernando
Meirelles, inspirado no livro homônimo de Paulo Lins, que denuncia a
escalada da violência e do crime na sociedade brasileira, com intensa
participação de crianças e adolescentes. Passa-se da “era da maconha”
para a “era da cocaína” e, depois, para a “era do crack”.
Porém, mais que os filmes e livros, são as canções (e clipes) que
melhor retratam e influenciam a sociedade, por serem um recurso
midiático barato e de fácil acesso. “Meu guri”, de 1981, composta por
Chico Buarque de Hollanda, é o canto da mãe, humilde e ingênua,
moradora do morro, que não se dá conta da marginalização do filho.
Do mesmo autor, em parceria com Francis Hime, é “Pivete”, de 1978,
que mostra as peripécias de um pequeno Garrincha, flanelinha de
pernas tortas, que “descola uma bereta” (para praticar as infrações),
“batalha na sarjeta”, e para comover o transeunte fala de sua fome
numa linguagem macarrônica, mesclando francês, inglês e italiano,
com a malandragem carioca eivada de certa sofisticação globalizada:
“Monsieur have money per mangiare”.
Na cartografia do crime, “pivete” é o menor que age por conta
própria e se dá bem, é o “esperto”, “o bandidinho”, “o malandro” que
atravessa o mundo do “otário”, do “trouxa”, que é aquele que trabalha
muito e ganha pouco.
Observamos, na canção, a reprodução dos estereótipos sobre
o jovem da periferia: talvez more no morro do Borel, no Rio de
Janeiro (ou, pelo menos, lá é seu esconderijo), provavelmente joga
futebol, é negro (“Pelé”), anda armado (canivete, bereta), usa droga e
fica “doidão”, pratica infrações (rouba transeuntes, – ameaçando-os
com canivete – e furta carros, fazendo “ligação direta”, saindo em alta
velocidade como seus ídolos, pilotos campeões da Fórmula I:
Emerson Fittipaldi e Airton Senna).
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Pivete (Francis Hime e Chico Buarque)6
Monsieur have money per mangiare
No sinal fechado
Ele vende chiclete
Capricha na flanela
E se chama Pelé
Pinta na janela
Batalha algum trocado
Aponta um canivete
E até
Dobra a Carioca, olerê
Desce a Frei Caneca, olará
Se manda pra Tijuca
Sobe o Borel
Meio se maloca
Agita numa boca
Descola uma mutuca
E um papel
Sonha aquela mina, olerê
Prancha, parafina, olará
Dorme gente fina
Acorda pinel
Zanza na sarjeta
Fatura uma besteira
E tem as pernas tortas
E se chama Mané
Arromba uma porta
Faz ligação direta
Engata uma primeira
E até
Dobra a Carioca, olerê
Desce a Frei Caneca, olará
Se manda pra Tijuca
Na contramão
Dança para-lama
Já era para-choque
Agora ele se chama
Emersão (Airtão)
Sobe no passeio, olerê
Pega no Recreio, olará
Não se liga em freio
Nem direção
6
Em versão posterior (CD “Paratodos”, 1993), Chico, depois de ver moleques de
rua pedindo esmola em várias línguas, alterou a letra original de "Pivete" (1978) e
aproveitou para colocar Ayrton Senna, destaque na época, no lugar de Emerson
Fittipaldi.
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No sinal fechado
Ele transa chiclete
E se chama pivete
E pinta na janela
Capricha na flanela
Descola uma bereta
Batalha na sarjeta
E tem as pernas tortas
(BUARQUE, 2013a)
Chico Buarque, considerado por Meneses (1982, p. 17) o
“artesão da palavra”, em suas canções coloca em destaque os
“desvalidos”, apropriando-nos de uma expressão de Anazildo
Vasconcellos, que são os menores abandonados, as prostitutas, os
travestis, os lúmpens, ressaltando a condição de marginalização dos
mesmos em relação ao status quo, o que ocorre na canção supracitada.
Nela a melodia tem um ritmo ágil, assim como a vida acelerada do
pivete, no que é acompanhada pela letra, marcada por verbos de ação:
“pinta” (aparece, chega), “capricha”, “descola”, “batalha”, “vende”,
“aponta”, “dobra”, “desce”, “se manda”, “sobe”, “descola”, “agita”...
O vocabulário coloquial, permeado por gírias (“Pinta na janela”, “se
maloca”, “se manda pra Tijuca”, “Sonha aquela mina, olerê”), retrata o
discurso da malandragem da época da composição, denotando certa
ingenuidade até, perto do que ouvimos mais recentemente, em certos
raps e funks, com letras chulas, que fazem bastante sucesso e incitam ao
sexo, ao uso de drogas e à violência, rebaixando a figura feminina, em
associações com imagens de animais.
Nessas canções que retratam muitas vezes a violência urbana,
quase sempre ela é explícita, mas o que seria a violência? Lato sensu
seria o ato que atinge fisicamente o corpo da pessoa. Para Chesnais
(1981, p. 32), ela é exterior, brutal e dolorosa. Juridicamente
corresponde ao crime contra a pessoa. Vale notar outros tipos de
violência, a moral e a psicológica, que não serão aqui estudadas.
Distinto aspecto a ser lembrado é que, para a sociedade, o
adolescente infrator possui duas faces: a de vítima e a de delinquente
juvenil, o marginal. Sob o primeiro ângulo, observa-se a realidade de
diversos jovens como a de alguém vitimizado, vivendo à margem do
Estado de Direito, em um país, no qual, todos os dias pipocam
escândalos (ligações entre polícia e criminosos; políticos corruptos;
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pessoas assassinadas por marginais ou por balas perdidas, de armas
“sem donos”). É visto como o morador da periferia com inúmeros
problemas já citados, acrescentando-se dificuldades relacionadas à
saúde (descaso estatal) e à violência de ordem sexual, que dele
independem. Por outro lado, olha-se para um jovem sem limites,
violento, que abusa de tóxicos, geralmente tatuado (o que para a
sociedade é marca de transgressão), irresponsável, marginalizado, e
que, provavelmente, irá trilhar sua vida por uma via diversa daquela
considerada correta pela sociedade. Desse modo, pergunta-se: será o
adolescente infrator o real problema na existência em sociedade? Não
será esta própria a causadora de dificuldades, inclusive, as existentes na
vida de tal adolescente?
Pesquisa realizada em Marechal Cândido Rondon, cidade do
oeste paranaense com aproximadamente 50.000 habitantes, detectou o
grande número de reincidentes entre os jovens infratores cujos
processos foram examinados e que haviam sido submetidos às
medidas socioeducativas (SANTOS, 2008, p. 70).
Também Cezar Bueno de Lima (2009, p. 20) analisa as
medidas tomadas em relação ao jovem infrator, em função de pesquisa
que realizou em Londrina, Paraná, cidade de aproximadamente
515.000 moradores, sobre adolescentes assassinados entre 2000 e
2003, que passaram pelo Centro Integrado de Atendimento ao
Adolescente Infrator (CIAADI/SAS), pela Vara da Infância e da
Juventude, além de cumprirem algum tipo de medida socioeducativa.
Aponta o mesmo pesquisador que Michel Foucault foi o primeiro
teórico a mostrar que a sociedade disciplinar e de controle tem seu
poder legitimado pelo discurso científico (LIMA, 2009, p. 21) e, dessa
forma, Lima procurou acompanhar todo o processo relacionado com
o jovem eliminado, “o itinerário trilhado pelos técnicos sociais e
jurídicos”, investigando “o tipo de ato infracional praticado,
internamento provisório, laudo social, sentença judicial e
acompanhamento da medida socioeducativa aplicada” (LIMA, 2009, p.
13).
Dos jovens assassinados, 452 eram atendidos pelo Projeto
Murialdo, instituição que acompanha, desde o ano 2000, as medidas
socioeducativas de “Prestação de Serviço à Comunidade e de
Liberdade Assistida na cidade de Londrina” (LIMA, 2009, p.14). Foi
constatado que a maioria dos jovens mortos era de infratores reincidentes,
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o que se aproxima dos resultados da outra pesquisa, ainda que os
contextos geográfico e social sejam bem diferentes. Uma cidade está
localizada no norte; a outra, no oeste do Estado. Uma é bem pequena
(não tem cinema nem teatro, poucas são as bibliotecas e instituições de
ensino superior); a outra é um grande centro urbano e regional, com
destacado relevo na cultura nacional (Festivais internacionais de
música e de teatro, vários cinemas e bibliotecas, inúmeras
universidades). Numa, a colonização foi feita por gaúchos e
catarinenses, descendentes de alemães e italianos, a partir de 1950,
após a compra de grande gleba pela Companhia Madeireira e
Colonizadora Rio Paraná S.A. (Maripá), em 1946 (VITECK, 2010). Na
outra, paulistas e mineiros predominaram na sua formação inicial,
além da influência da Companhia de Terras Norte do Paraná,
subsidiária da firma inglesa Paraná Plantations Ltd., que, a partir de
1924, muito impulsionou o processo de desenvolvimento na região
(LONDRINA, 2013). Logo, situações diversas, mas resultado igual
quanto aos jovens infratores: não houve recuperação, não houve o
prometido caráter pedagógico previsto pelo ECA. Onde está a falha?
Para Lima (2009, p. 222),
As propostas visando à contenção da violência permanecem
valorizando as instâncias burocráticas que produzem decisões descentralizadas e que acionam a polícia, os promotores, os magistrados, os peritos policiais e os agentes comunitários. No interior dessas engrenagens do poder-saber, as
decisões proferidas não representam o produto consensual
que envolve “vítima e infrator”, segundo o caso, e seja decidido na “localidade onde ocorreu o ato infracional”.
De acordo com o pesquisador, os “atos indesejáveis e não os
definidos como infrações devem constituir o ponto de partida para a
solução dos conflitos” (LIMA, 2009, p. 222). Portanto, o adolescente
ser transformado em alguém “infantil”, segundo ele, e a vítima em
“testemunha”, na esfera judicial, com o cumprimento das medidas
preconizadas, apenas ampliam e produzem novos problemas. Cita,
para corroborar seus argumentos, que normalmente o tipo de solução
adotada não
[...] guarda relações de proximidade e não sela compromissos de dependência com o poder jurídico-político monoinstitucional, sustentado por leis uniformes, interesses corporaUNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013
tivos e pesquisadores remunerados para pensar e sugerir reformas, visando à manutenção da máquina estatal penalizadora. (LIMA, 2009, p. 223)
Aponta, ainda, ser perigosa a relação entre os meios
acadêmicos e “os poderes punitivos do Estado”, visto que aqueles
devem ter sua utilidade pautada de acordo com o desejado pelos
especialistas do sistema penal, o que, “conforme as circunstâncias
políticas históricas, se apresentam com nomenclaturas diferentes
(Código de Menores, ECA). Por isso, não basta trocar de contrato”
(LIMA, 2009, p. 223). Implícita está à crítica ao ECA e aos seus
instrumentos de ressocialização, de recuperação do jovem, assim
como aos que seriam os operadores auxiliares de tal fato. Para Lima
(2009, p. 10), o ECA , assim como as instituições juvenis de controle,
apega-se “à ontologia do crime e à inevitabilidade da criação de
políticas penais de prevenção geral que combinam distintas formas de
vigilância e controle”.
A respeito desse controle, sob o qual deve ser mantida
determinada parcela da população, uma autoridade de segurança
pública do Rio de Janeiro, no documentário de João Moreira Salles,
afirma: “[...] a polícia precisa ser corrupta e violenta, nós fazemos a
segurança do Estado, [...] temos que manter os excluídos sob controle.
Vivemos numa sociedade injusta e a polícia garante essa sociedade
injusta [...]” (OBSERVATÓRIO DE SEGURANÇA PÚBLICA,
2013).
É conveniente também lembrar entrevista concedida à Revista
Isto É, em abril de 2013, por Agnelo Queirós (2013, p. 10), governador
do Distrito Federal, que, discorrendo sobre “as máfias” que enfrentou
em seu governo, coloca: “Outro feudo que existia era no setor da
ressocialização de jovens [grifo nosso]. Esse sim envolvendo o crime
organizado. Mas vamos desativar o Caje e construir sete unidades com
capacidade para 90 internos com o objetivo de recuperar jovens”. E é
sobre estes jovens a canção enfocada na próxima seção.
2 FAMÍLIAS E SEUS REBENTOS
Meu guri, canção de Chico Buarque, foi composta em 1981,
durante o governo militar (implantado por um golpe de estado), que
aconteceu de 1964 e a 1985, e se percebe que pouca coisa mudou, na
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prática, em relação à vida de muitos jovens, apesar do ordenamento
jurídico protetivo, o ECA, que adota a doutrina de “proteção integral”,
segundo a qual todos os direitos da criança e do adolescente devem ser
reconhecidos, conforme a Convenção sobre os Direitos da Criança, adotada
pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), no
final de 1989.
Bem, algo está diferente: usam-se alguns eufemismos. Quem
vive na favela ou na periferia hoje é conhecido como o “morador da
comunidade” e o menor (abandonado, delinquente...) é o “jovem
infrator”. E são justamente os moradores do morro, mãe e filho, os
protagonistas buarqueanos.
O Meu Guri (Chico Buarque)
Quando, seu moço, nasceu meu rebento
Não era o momento dele rebentar
Já foi nascendo com cara de fome
E eu não tinha nem nome pra lhe dar
Como fui levando, não sei lhe explicar
Fui assim levando ele a me levar
E na sua meninice ele um dia me disse
Que chegava lá
Olha aí
Olha aí
Olha aí, ai o meu guri, olha aí
Olha aí, é o meu guri
E ele chega
Chega suado e veloz do batente
E traz sempre um presente pra me encabular
Tanta corrente de ouro, seu moço
Que haja pescoço pra enfiar
Me trouxe uma bolsa já com tudo dentro
Chave, caderneta, terço e patuá
Um lenço e uma penca de documentos
Pra finalmente eu me identificar, olha aí
Olha aí, ai o meu guri, olha aí
Olha aí, é o meu guri
E ele chega
Chega no morro com o carregamento
Pulseira, cimento, relógio, pneu, gravador
Rezo até ele chegar cá no alto
Essa onda de assaltos tá um horror
Eu consolo ele, ele me consola
UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013
Boto ele no colo pra ele me ninar
De repente acordo, olho pro lado
E o danado já foi trabalhar, olha aí
Olha aí, ai o meu guri, olha aí
Olha aí, é o meu guri
E ele chega
Chega estampado, manchete, retrato
Com venda nos olhos, legenda e as iniciais
Eu não entendo essa gente, seu moço
Fazendo alvoroço demais
O guri no mato, acho que tá rindo
Acho que tá lindo de papo pro ar
Desde o começo, eu não disse, seu moço
Ele disse que chegava lá
Olha aí, olha aí
Olha aí, ai o meu guri, olha aí
Olha aí, é o meu guri
(BUARQUE, 2013b)
Ao ler o texto poético em sua integralidade, percebemos que
se trata de um poema narrativo, com dois personagens – a mãe e o
guri, seu filho –, além do interlocutor dela, que é o “seu moço”. A
situação de penúria é revelada pela genitora quando afirma que o
garoto nasceu “com cara de fome”, o que, provavelmente, ocorreu em
função da miséria em que ela vivia e da falta de cuidados pré-natais,
reveladores das deficiências das políticas de atendimento à saúde, que
se estendem por governos e governos, por mais que medidas paliativas
tenham sido tomadas nos últimos anos para melhorar o atendimento à
população. Prematura a criança (“não era o momento dele rebentar” –
destaque ao jogo linguístico feito com as palavras “rebento”,
substantivo, e “rebentar”, verbo, assim como aos sentidos de levar:
“Como fui levando não sei lhe explicar / Fui assim levando ele a me
levar”), a mãe não tinha ainda um nome “pra lhe dar”: o nome, aqui,
também pode ser pensado, além do prenome, como o nome de família
do pai, que não assumiu o rebento, pois ela o cria sozinha. Logo,
inexiste a base familiar, essencial para a formação do filho, para o
desenvolvimento do guri. A Constituição Federal (CF), entretanto,
dentro dos chamados direitos fundamentais, e também o Estatuto da
Criança e do Adolescente garantem-lhe o direito à convivência
familiar, o direito a ser criado e educado no seio de sua família natural.
Acrescentamos que, para Quintas (2009, p. 7), a família deve
ser compreendida em sentido amplo: não somente a que se baseia no
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casamento, mas também a que se insere em situações que denomina
de análogas, tais como a união estável, a família adotiva e a família
monoparental. Diante de tanta diversidade, encontra destaque a
família formada por vínculos de afeto, a qual passou a ser reconhecida
pela doutrina e jurisprudência brasileira. Esse novo conceito de
família, a de natureza socioafetiva, da qual derivam duas espécies,
biológica e não biológica, caracteriza-se pelos laços afetivos, de amor,
carinho e solidariedade, independendo de vínculo jurídico ou
biológico, diferentemente do que se afirmava sobre a sua constituição
e origem: “casamento é a união de duas pessoas de sexos diferentes
[grifo nosso], realizando uma integração psíquico-físico permanente”
(PEREIRA, 2011, p. 33).
Na canção, porém, o que se coloca é uma situação de solidão,
de família aparentemente constituída só por mãe biológica e filho,
portanto, monoparental. Aliás, uma mãe fragilizada, que tem sua
condição – a de pessoa que protege – invertida com o filho, talvez por
ser muita nova, se pensarmos no grande número de adolescentes
grávidas: “Eu consolo ele, ele me consola / Boto ele no colo prá ele
me ninar...” [grifo nosso]. E também a de alguém que parece sentir
orgulho do seu rebento e chama a atenção para ele que chega, após o
que ela pensa ter sido um dia de extenuante trabalho, no alto do
morro onde moram: “Rezo até ele chegar cá no alto”, “Chega suado e
veloz do batente!” (será que não fugia da polícia?).
Olha aí
Olha aí
Olha aí, ai o meu guri, olha aí
Olha aí, é o meu guri
E ele chega
Chega suado e veloz do batente
E traz sempre um presente pra me encabular
Tanta corrente de ouro, seu moço
Que haja pescoço pra enfiar
Me trouxe uma bolsa já com tudo dentro
Chave, caderneta, terço e patuá
Um lenço e uma penca de documentos
Pra finalmente eu me identificar, olha aí
Olha aí, ai o meu guri, olha aí
Olha aí, é o meu guri
E ele chega
(BUARQUE, 2013b)
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Fica evidente a ingenuidade da progenitora, quando considera
como presentes o que é fruto de roubo ou furto ou, pior ainda, talvez
de latrocínio. Para ela, o filho é atencioso e carinhoso, dando-lhe,
inclusive, documentos que ela não tem (índices de sua pobreza e falta
de conhecimento, e que não a registram como cidadã). O “finalmente”
é um índice do seu desejo e da sua espera para documentar-se. Faz,
então, orações para que nada de ruim aconteça ao seu guri, visto que a
vida está extremamente violenta, com muitos assaltos acontecendo,
fatos que continuam presentes na nossa vida. O “terço” ao lado do
“patuá” são símbolos do sincretismo que permeia a religiosidade do
brasileiro, da sua fé que lhe dá forças para viver, conforme entrevistas
e depoimentos divulgados pela mídia.
[...] com o carregamento
Pulseira, cimento, relógio, pneu, gravador
Rezo até ele chegar cá no alto
Essa onda de assaltos tá um horror
Eu consolo ele, ele me consola
Boto ele no colo pra ele me ninar
De repente acordo, olho pro lado
E o danado já foi trabalhar, olha aí
(BUARQUE, 2013b)
A labuta do guri é grande, pensa a mãe, pois ele sai até quando
ela ainda dorme e, como havia prometido a ela, ele chega lá, faz
sucesso, com direito à fotografia no jornal, ainda que com tarja preta
nos olhos e somente as iniciais do nome, sinalizando sua pouca idade.
Olha aí, ai o meu guri, olha aí
Olha aí, é o meu guri
E ele chega
Chega estampado, manchete, retrato
Com venda nos olhos, legenda e as iniciais
(BUARQUE, 2013b)
A inocência da mãe é tamanha que não percebe que o filho foi
encontrado morto, e que a publicação do fato colocou a vizinhança
em polvorosa.
Eu não entendo essa gente, seu moço
Fazendo alvoroço demais
O guri no mato, acho que tá rindo
Acho que tá lindo de papo pro ar
Desde o começo, eu não disse, seu moço
Ele disse que chegava lá
UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013
Olha aí, olha aí
Olha aí, ai o meu guri, olha aí
Olha aí, é o meu guri (3x)
(BUARQUE, 2013b)
3 A LEI E OS GURIS
Para o ECA, é ato infracional aquele praticado por
adolescentes que, se cometido por adulto, corresponderia a um crime
ou a uma contravenção penal. Logo, toda infração prevista no Código
Penal, na Lei de Contravenção Penal e em Leis Penais esparsas (como
a Lei de Tóxico, a Lei de Porte de Arma, entre outras), quando
praticada por criança ou adolescente corresponde a um ato infracional.
E, para caracterizar tal ato, deve-se observar o princípio da legalidade,
verificando-se se a conduta é típica, antijurídica e culpável. Na
doutrina, há divergência quanto ao fato da criança e do adolescente
praticarem cometerem ou não crime: para a teoria clássica, o menor de
idade não pratica comete crime, recaindo o dolo e a culpa no conceito
de culpabilidade e consequente para a finalista da ação, que situa dolo
e culpa como tipo penal, o menor comete crime, visto que este é um
fato típico e antijurídico. E o ECA somou as duas correntes para
conceituar o ato infracional, decidindo-se a aplicar a finalista ao
adolescente e a clássica à criança.
Assim sendo, à criança são aplicadas apenas as medidas
protetivas, ao passo que ao adolescente infrator cabe a aplicação tanto
das medidas protetivas como as socioeducativas previstas no ECA.
As medidas contidas no ECA, como resposta estatal às
necessidades do adolescente, tem caráter impositivo e cunho
sancionatório (LIBERATI, 2006, p. 102), objetivando inibir
reincidências, portanto, presente a visão pedagógica, instrutiva.
Medidas socioeducativas aparecem no seu artigo 112, e são elas: a
advertência, a obrigação de reparar o dano, a prestação de serviços à
comunidade, a liberdade assistida, o regime de semiliberdade (estudam
ou trabalham a céu aberto e, à noite, recolhem-se em uma entidade
especializada), a internação em estabelecimento educacional (só ocorre
em casos graves) e, por fim, medidas de proteção previstas no art. 101,
inciso I.
A medida socioeducativa será precedida por uma audiência
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admonitória, quando o jovem será orientado sobre como proceder
para cumprir o que foi disposto pelo juiz. Ele será fiscalizado por uma
instituição responsável, que enviará relatório mensal ao Juízo. Após o
cumprimento da medida, haverá nova audiência, sendo essa de
encerramento. Caso o jovem não cumpra o que foi estabelecido,
poderá ser aplicada a ele a conversão em medida mais grave (período
mais longo de prestação de serviço e até mesmo sua internação).
Pode ainda acontecer a remissão, ou seja, o perdão do ato
infracional praticado, espécie de acordo feito com a autoridade
judiciária, que poderá ocasionar a exclusão, a suspensão ou a extinção
do processo. Medida bastante polêmica, há quem afirme se tratar de
uma transação, um negócio jurídico entre o Ministério Público e o
adolescente, acompanhado por seus pais: o jovem não é processado,
desde que aceite voluntariamente as medidas socioeducativas, que são
encaradas por ele e sua família como verdadeiras “penas”, enquanto
que a sociedade as vê como medidas brandas, aplicadas a jovens
considerados delinquentes, perigosos marginais.
4 ÚLTIMOS ACORDES DE UMA DORIDA CANÇÃO
Várias críticas foram feitas à aplicação e ineficácia dessas
medidas. Percebe-se, que, para muitos juristas, a simples aplicação de
medidas socioeducativas como forma de reeducação não irá converter
um adolescente infrator em um jovem sem problemas, inserido na
sociedade, haja vista que tais medidas não costumam atingir os
problemas sociais de sua vida, ainda que aparentassem ser a solução
das suas dificuldades. Elas mostraram-se, na maioria dos casos,
ineficientes.
Há que se reconhecer que houve uma boa caminhada no que
tange aos aspectos protetivos legais em relação à criança e ao
adolescente. A legislação foi aperfeiçoada, mas o que aí está não é o
suficiente, pois nossos guris, nossos pivetes continuam morrendo e
matando, sendo espoliados e furtando, roubando, traficando. Deve ser
outro o diapasão, pois por ser inimputável, e ainda relativamente
incapaz, o adolescente que pratica ato infracional terá um tratamento
diferenciado, como previsto no ECA. E as medidas socioeducativas
(art. 112), que mesclam o caráter pedagógico ao punitivo precisam ser
reavaliadas.
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Hodiernamente, muito se discute sobre a redução da
maioridade penal, contudo esta não nos parece ser a melhor solução
para os guris brasileiros. É necessária a adequação das medidas
previstas no ECA e a imposição do regime de semiliberdade e
internamento de forma mais eficaz, mesmo em casos que não haja
violência contra a pessoa, como o tráfico de drogas. Importante
também a efetivação de políticas públicas, e que o governo lance um
olhar mais atento aos jovens infratores e à sua condição social, pois
muitos se encontram afastados dos bancos escolares e possuem pouco
ou nenhum contato com a família.
Falhas existem, no seio familiar, na escola, no aparato estatal, e
a reincidência quanto aos atos infracionais praticados apresenta-se em
número expressivo. Marginais ou marginalizados? É preciso que se
discuta o problema, que não haja mais a banalização da violência e do
crime. É culpado o jovem que transgride as regras, mas também é
culpada a sociedade que deixa de auxiliá-lo a não pular o muro da
violência.
REFERÊNCIAS
BUARQUE, Chico. Pivete. In: Chico Buarque: Obra. Disponível
em: <http://www.chicobuarque.com.br/construcao/mestre.asp?pg=
pivete_78.htm>. Acesso em: 10 jan. 2013a.
BUARQUE, Chico. O Meu Guri. In: Chico Buarque: Obra. Disponível em: <http://www.chicobuarque.com.br/construcao/mestre.
asp?pg=omeuguri_81.htm>. Acesso em: 10 jan. 2013b.
CHESNAIS, J. C. Histoire de la violence. Paris: Pluriel, 1981.
ISHIDA, V. K. Estatuto da Criança e do Adolescente: doutrina e
jurisprudência. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2006.
LIBERATI, W. D. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 2006.
LIMA, C. B. de. Jovens em conflito com a lei: liberdade assistida e
vidas interrompidas. Londrina: EDUEL, 2009.
LONDRINA. Prefeitura Municipal. História da cidade. Disponível
UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013
em: <http://www.londrina.pr.gov.br/index.php?option=com_con
tent&view=article&id=3&Itemid=5>. Acesso em: 20 mar. 2013.
MENESES, A. B. de. Desenho mágico: poesia e política em Chico
Buarque. 2. ed. São Paulo: Ateliê, 2000.
OBSERVATÓRIO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Boas práticas no
Estado de São Paulo. Projeto visão periférica: filmes brasileiros sobre violência, polícia, prisões e crimes. Disponível em: <http://www.
observatoriodeseguranca.org/dados/visao>. Acesso em: 20 mar.
2013.
PEREIRA, C. M. da S. Instituições de Direito Civil: Direito de Família. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011. v. 5.
QUEIRÓS, A. Entrevista. Isto É, São Paulo, n. 2262, 27 abr. 2013, p.
6-12. Entrevista concedida a M. Simas Filho e S. Pardellas.
QUINTAS, M. M. R. A. Guarda compartilhada de acordo com a
lei nº 11.698/08. Rio de Janeiro: Forense, 2009.
ROSSATO, L. A.; LÉPORE, P. E.; CUNHA, R.S. Estatuto da Criança e do Adolescente: comentado artigo por artigo - Lei
8.068/1990. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012.
SANTOS, V. M. O. B. Medidas sócio-educativas aplicadas a infratores de Marechal Cândido Rondon entre 2007-2008: eficazes
ou ineficientes? Marechal Cândido Rondon, 2008, 91 f.. Trabalho Acadêmico (TCC) – Curso de Direito, Universidade Estadual do Oeste
do Paraná (UNIOESTE).
VITECK, C. Marechal Cândido Rondon: da colonização à emancipação. Blog do Viteck. Marechal Cândido Rondon, 27 jul. 2010. Disponível em: <http://blogdoviteck.blogspot.com.br/2010/07/mare
chal-candido-rondon-da-colonizacao.html>. Acesso em: 10 abr. 2013.
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CONSIDERAÇÕES ACERCA DO UNIVERSO MACHADIANO:
MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS NA
LITERATURA E NO CINEMA
Rondinele Aparecido Ribeiro*
RESUMO
Considerado pela crítica como o maior escritor brasileiro, Machado de
Assis problematizou aspectos comportamentais do ser humano em
suas obras. Seu romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, publicado em 1881, inaugurou a estética realista no Brasil, além de ser considerado um “divisor de águas” na carreira do escritor. Com ele, Machado inova a literatura brasileira ao criar um defunto-autor, que narra
de forma inusitada e irônica os episódios de sua vida. Para o crítico Ivan Teixeira, as Memórias compõem uma antinarrativa, sendo excêntricas pela tamanha inovação experimentada por Machado de Assis.
Pelo modo como carnavalizou a literatura, o autor é extremamente estudado. O presente artigo, longe de esgotar a fecunda obra machadiana, irá tecer considerações acerca do romance e da adaptação cinematográfica da obra de Machado, recorrentemente transcodificada para a
linguagem cinematográfica.
Palavras-chave: Memórias Póstumas de Brás Cubas. Carnavalização.
Realismo. Inovação literária. Linguagem cinematográfica.
ABSTRACT
Considered by critics as the greatest Brazilian writer, Machado de Assis questioned behavioral aspects of the human being in his works. His
novel, The Posthumous Memoirs of Brás Cubas, published in 1881,
started the realist aesthetic in Brazil, besides being considered a "wa*
Professor de Língua Portuguesa e Literatura; especialista em Cultura, Literatura
Brasileira e Língua Portuguesa; graduado em Letras: Literatura (UENP, 2011); atua na Educação Básica, em cursinhos pré-vestibulares e no Ensino Superior (FANORPI/UNIESP).
UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013
tershed" in the writer's career. With it, Machado innovates in Brazilian
literature when he creates a deceased writer, who narrates in a bizarre
and ironic way episodes of his life. For the critic Ivan Teixeira, Memoirs makes up an eccentric anti-narrative by such innovations experimented by Machado de Assis. For the way he desecrated the literature,
the author is extremely studied. This article, far from exhausting the
fruitful work of Machado, makes considerations about the novel and
the film adaptation of his work, recurrently transcoded to film language.
Key words: The Posthumous Memoirs of Brás Cubas. Desecration.
Realism. Literary innovation. Film language.
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CONSIDERAÇÕES ACERCA DO UNIVERSO MACHADIANO:
MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS NA
LITERATURA E NO CINEMA
Rondinele Aparecido Ribeiro
1 A IMPORTÂNCIA DE MACHADO PARA A LITERATURA BRASILEIRA
Nome recorrente e fecundo, Machado de Assis ocupa papel de
destaque no panorama da literatura brasileira. Nascido no Rio de
Janeiro, em 21 de junho de 1839. O autor, conhecido como Bruxo do
Cosme Velho, viveu em um momento de profunda transição, o que
lhe permitiu presenciar alguns dos mais importantes aspectos políticos
da nação brasileira. Os biógrafos relatam que ficou órfão de mãe
muito cedo, tendo também perdido a irmã mais nova. Estreou na
literatura em 1855 com a publicação do poema “Ela” na revista
Marmota Fluminense. De origem humilde, Machado havia iniciado
nessa época sua carreira como aprendiz de tipógrafo na Imprensa
Oficial, que tinha como diretor Manuel Antônio de Almeida, que o
influenciou no trabalho como escritor.
O nome do autor é recorrentemente associado tanto à
modalidade romance quanto à modalidade conto. “E além das
narrativas literárias a que ele se dedicou, é importante destacar sua
contribuição para a crítica literária do período” (OLIVEIRA, 2008,
p.85).
Nesse sentido, é lícito o ponto de vista de Campedelli (2004, p.
145):
A posição de Machado de Assis no panorama da Literatura
Brasileira é a de um renovador, não apenas porque realmente revolucionou a narrativa brasileira, imprimindo a ela um
tom mais verossimilhante e menos supérfluo, mas também
porque foi além de seu tempo imprimindo-lhe um senso
psicológico notável.
UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013
O universo machadiano está dividido em duas fases justamente
divididas pelo conjunto temático de sua obra. Costumam ser
denominados de primeira fase os romances como Ressurreição (1872),
A mão e a luva (1874), Helena (1876) e Iaiá Garcia (1878). Tais obras,
embora sejam marcadas por contornos românticos, deixam
transparecer a preocupação do autor com temas polêmicos, como a
questão da ascensão social. Os enredos dos livros dessa fase giram em
torno do dinheiro, da família e do casamento por interesse.
Tais obras podem ser consideradas como sendo de transição,
uma vez que se observam os elementos essenciais da narrativa
folhetinesca: narrativas de gosto burguês com o objetivo de provocar
surpresas e emoções no leitor. São obras com intenção de moralizar e
divertir.
Já as obras da segunda fase revelam um machado mais maduro
e preocupado em problematizar os aspectos humanos. Nesse sentido,
o conjunto dessa fase concentra-se em temas como a falsidade da vida,
o adultério, as relações sociais, os comportamentos humanos. Situamse nessa fase as obras Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881),
Quincas Borba (1891), Dom Casmurro (1899), Esaú e Jacó (1904) e
Memorial de Aires (1908).
Modernamente, os teóricos adotam a expressão
“convencional” e não romântica para designar a primeira fase
machadiana, uma vez que muito do Machado de Assis Realista, já se
apresentava em suas primeiras obras. Isso é posto porque sobressai
em tais obras a observação psicológica das personagens, o interesse
como movedor das relações e o estilo conciso do autor em detrimento
do excesso de adjetivações dos românticos.
Aclamado pela crítica como grande mestre da literatura
nacional, Machado apresenta características que lhe são peculiares.
Em suas obras, o autor propõe um olhar sobre a realidade
psicológica de suas personagens de modo inédito nas narrativas nacionais. Para Martins7 (1966), essa característica é
denominada de Realismo Psicológico, uma vez que a ação
extrema de suas obras está subordinada a uma avaliação interna ora é feita pela personagem narrador, ora pela voz nar7
MARTINS, José Endoença. Enquanto isso em Dom Camurro. Florianópolis:
Paralelo 27,1993.
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rativa em terceira pessoa. (OLIVEIRA, 2008, p. 73)
Para Silvana Oliveira (2008), o conjunto de obras de Machado
dialoga com a alta literatura moderna e universal, passando pelos
ingleses – marcadamente Shakespeare – e chegando aos russos –
Dostoievski. Para a autora: “a produção ficcional de Machado de Assis
conduziu a literatura brasileira para o cenário da literatura mundial já
no século XIX” (OLIVEIRA, 2008, p. 74).
Ainda de acordo com postulações da autora:
A consciência revelada pela obra de Machado de Assis se dá
na medida em que ele aproveita a tradição do romance universal desde Dom Quixote, de Miguel de Cervantes até as
manifestações locais do romance brasileiro de sua época. A
ironia, o humor e a crítica que encontramos na obra de Machado a tornam única na história da literatura brasileira,
desde os seus primeiros romances românticos. Veremos, então, que o seu enfoque do Realismo não passa pela aceitação
dos preceitos da objetividade e experimentação. Nenhum de
seus romances da fase realista se baseia no princípio da objetividade. (OLIVEIRA, 2008, p.76)
2 MACHADO: ESCRITOR REALISTA
A Estética Realista-Naturalista inicia-se no Brasil em 1881 com
a publicação de duas obras: Memórias Póstumas de Brás Cubas e O
Mulato. Estende-se até 1902, ano em que Graça Aranha publica a obra
Canaã. No Brasil, a instauração da estética esteve ligada a Tobias
Barreto, que divulgou as ideias estéticas e científicas e filosóficas do
Realismo Europeu. O teórico em questão influenciou teóricos como
Sílvio Romero Capistrano de Abreu, Euclides da Cunha e Graça
Aranha.
Definir o termo Realismo não é uma tarefa fácil, ainda mais
que se constata que a objetividade de arte não foi uma inovação desse
período. Por outro lado, a definição do termo ganha contornos mais
palpáveis quando se associa que a estética Realista, na verdade, volta
sua observação para a realidade enfocando situações cotidianas e
representativas. Dessa forma, uma definição plausível para o termo
pode ser a seguinte: “o Realismo é uma arte engajada, que tem como
compromisso o momento presente e com a observação objetiva e
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exata do mundo” (CAMPEDELLI, 1999, p. 155). Pode-se falar que
essa maneira de observar a realidade foi uma continuidade dos padrões
formais românticos.
Para Oliveira (2008, p.27):
A partir do Romantismo, o século XIX, trouxe uma mudança radical na percepção que o ser humano tem do mundo. O
Romantismo expandiu o horizonte da arte, trazendo para
dentro dela a representação do mundo comum, das identidades humanas distantes dos heróis aristocráticos e elitizados do mundo clássico.
Para a autora, “o Realismo marcou a metade do século XIX e,
na instância formal, reafirmou as conquistas do Romantismo”. Por sua
vez, do ponto de vista conteudístico e temático, observam-se
profundas preocupações em se estabelecer vínculos com o ideário
cientificista que marca esse século. Dessa forma, Biologia, Sociologia e
Filosofia são submetidas a um crivo cientificista. Na estética Realista, é
lícito afirmar, opera a desconstrução dos mitos românticos, tais como
a natureza-mãe, o amor fatal, a idealização da mulher, e do herói
nacional íntegro, bem como da nação redentora. Vê-se, então, que o
realista se notabiliza por enfrentar-se e de se colocar de maneira
racional e mais objetiva. A esse respeito, a estudiosa Silvana Oliveira
pontua: “O Realismo em conformidade com os avanços das ciências e
do pensamento filosófico, buscou tornar essa percepção de mundo
mais precisa, mais objetiva” (OLIVEIRA, 2008, p.27).
3 MEMÓRIAS PÓSTUMAS E A INOVAÇÃO LITERÁRIA
Com a publicação do romance Memórias Póstumas de Brás
Cubas, em 1881, Machado renova a literatura brasileira. Esse romance,
vale acrescentar, é importante pelo fato de inaugurar a estética Realista
no país e também pelo fato de marcar a produção matura de Machado
de Assis amplamente marcada pela ironia e pela sutileza no tratamento
das relações pessoais.
Para o país, é inegável sua importância. Basta lembrar, por
exemplo, que o romance em questão foi a primeira obra realista
brasileira. Com ela, Machado inova a técnica da narrativa literária ao
criar um narrador-defunto, que conta a história de sua vida. Para
UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013
Abdalla e Campedelli (2004, p. 138): “A prosa de ficção, propriamente
realista, foi marcada pelo destaque do elemento psicológico no registro
psicossocial típico do final do Império”.
Como se observa pela afirmação dos estudiosos, podemos
perceber que o estilo machadiano é bastante diferente das técnicas de
outros escritores. Suas obras mostram uma dimensão psicológica
bastante grande, uma vez que retrata comportamentos humanos. Sem
sombra de dúvidas, Machado é um grande gênio da Literatura
Universal. Nas palavras de Campedelli (1999, p. 164):
Preocupado com o significado da existência (ou com a sua
falta de significado), cria as personagens objetivamente,
dando-lhes uma vida interior intensa. Assim, a temática de
seus romances realistas (que varia da tentativa de compreender o ser humano à completa descrença nele) constitui o
ponto alto da literatura brasileira no Realismo.
O romance machadiano Memórias Póstumas de Brás Cubas,
como já pontuado, foge da técnica narrativa até então tradicional: a
sequência início, meio e fim. Machado emprega um narrador-defunto
que narra sua história de vida. Nesse sentido, o livro começa pelo fim.
O narrador conta sua existência de uma forma desafiadora, inusitada.
Sua retrospectiva da existência é bastante fria, distanciada e completa.
Na dedicatória, já temos uma ampla noção de como se portará esse
narrador: “Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver
dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas” (ASSIS,
2008, p. 11).
A contar por essa atitude a obra é bastante inovadora.
Chocante ou irônica, pouco importa, a dedicatória certamente não é
das mais comuns. Fugindo ao senso comum, Brás Cubas dedica suas
memórias aos vermes, como se não houvesse alguém digno de
lembrança, deixando claro o pessimismo da obra. O prólogo do
romance parece fazer o mesmo, pois o narrador não espera ter mais
que cinco leitores:
Que Stendhal confessasse haver escrito um de seus livros
para cem leitores, coisa é que admira e consterna. O que não
admira, nem provavelmente consternará é se este outro livro
não tiver os cem leitores de Stendhal, nem cinquenta, nem
vinte, e quando muito, dez. Dez? Talvez cinco. (ASSIS,
2008, p. 13)
UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013
Para o estudioso Ivan Teixeira, essa técnica permite incluir as
Memórias como sendo excêntricas, uma vez que não se pode escrever
depois de morto. O autor sustenta a tese de que a grande originalidade
do livro não se deve ao enredo, mas sim à condição do narrador. Nas
palavras do teórico:
Brás Cubas preserva, apesar de defunto, suas qualidades de
milionário excêntrico, inteligente e culto. Passou por quase
todas as experiências da vida, inclusive a da morte. Daí o
encanto de seu relato. (TEIXEIRA, 1988, p. 87)
Ainda de acordo com postulações do autor:
Com as Memórias Póstumas Brás de Cubas, Machado de
Assis não escreveu um romance: inventou um defunto empenhado em recompor seus dias mediante um livro de memórias. Em vez de romance, o que existe é uma cabeça agitada por lembranças e pensamentos. Brás Cubas é um homem muito pouco sistemático para compor uma estória segundo as regras do gênero. Além disso, acha-se em estado
de euforia pela experiência da morte, o que lhe tira o equilíbrio para uma reconstituição ordenada da vida. (TEIXEIRA, 1998, p. 87)
O romance começa pelos funerais de Brás Cubas, narrados por
ele próprio. Conta, depois, sua morte, o nascimento, a infância e o
primeiro amor – aos 17 anos, com a prostituta Marcela. Segue depois
para Coimbra, onde se forma em Direito. Retorna por ocasião da
morte da mãe. Namora Eugênia, filha de dona Eusébia, amiga pobre
de sua família, mas o pai quer casá-lo com Virgília, filha do
conselheiro Dutra. Essa, no entanto, casa-se com Lobo Neves. O pai
falece. Instala-se litígio por herança entre Brás Cubas e sua irmã
Sabina, casada com Cotrim. Virgília e Brás Cubas tornam-se amantes e
passam a encontrar-se numa casa cuja direção é dada a dona Plácida.
Brás Cubas reencontra Quincas Borba, seu amigo de infância, que lhe
apresenta a doutrina do humanitismo. Brás Cubas torna-se deputado.
Lobo Neves é nomeado presidente de província e parte com Virgília
para o Norte. Termina a aventura dos amantes. Brás Cubas namora,
então, Nhã-loló, sobrinha de seu cunhado Cotrim, a qual morre aos 19
anos. O solteirão tenta ser ministro de Estado e não consegue. Funda
um jornal de oposição. Começa a loucura de Quincas Borba. Virgília,
já velha, solicita a Brás Cubas amparo à indigência de dona Plácida,
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que morre em seguida. Morrem, também, Lobo Neves, Marcela e
Quincas Borba. Eugênia é encontrada num cortiço. Brás Cubas
adoece, quando pensava em inventar um emplasto. Virgília,
acompanhada do filho, visita o ex-amante. Após longo delírio, Brás
Cubas morre aos 64 anos e, depois de morto, começa a contar, de trás
para frente, a história de sua vida.
O romance apresenta um narrador em primeira pessoa. Um
narrador bastante irônico e indiferente às situações. O trecho a seguir
exemplifica:
Algum tempo hesitei se deveria abrir estas memórias pelo
princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o
meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar
seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou
propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito
ficaria assim mais galante e mais novo. Moisés, que também
contou a sua morte, não a pôs no introito, mas no cabo: diferença radical entre este livro e o Pentateuco. (ASSIS, 2008,
p. 14)
O caráter digressivo do narrador não passa de um
esclarecimento quanto ao método adotado para a narrativa: uma vez
que é inovador começar um romance pela morte de seu protagonista,
o nascimento ficará para depois. Mais: a sepultura foi, para Brás
Cubas, um novo berço. A objetividade e a clareza do texto e do
método são interrompidas por um comentário ímpar: a diferença entre
as Memórias e o Pentateuco – os cinco primeiros livros da Bíblia:
Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio – é que aquelas
começam na morte de seu narrador e este, no nascimento. A
comparação consterna por insinuar que as obras da Bíblia Sagrada são,
no mínimo, menos originais que a narrativa de Cubas. Se nem Moisés
pode resistir à galhofa do narrador, espera-se o mesmo quando se trata
de outras personagens.
O último capítulo também é bastante revelador, uma vez que
mostra um narrador bastante amargurado e movido por um
negativismo:
Este último capítulo é todo de negativas. Não alcancei a celebridade do emplasto, não fui ministro, não fui califa, não
UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013
conheci o casamento. Verdade é que, ao lado dessas faltas,
coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor
de meu rosto. Mais; não padeci a morte de D. Plácida, nem
a semidemência do Quincas Borba. Somadas umas coisas e
outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua
nem sobra, e conseguintemente que saí quite com a vida. E
imaginará mal; porque, ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: – não tive filhos, não
transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria.
(ASSIS, 2008, p. 210)
O estudioso da obra machadiana, Roberto Schwarz, aponta a
crítica social presente no romance já no aspecto formal. Para o crítico:
A novidade está no narrador, humorística e agressivamente
arbitrário, funcionando como um princípio formal, que sujeita as personagens, a convenção literária e o próprio leitor,
sem falar na autoridade da função narrativa, a desplantes periódicos. As intrusões vão da impertinência à agressão desabrida. Muito deliberadas, as infrações não desconhecem
nem cancelam as normas que afrontam, as quais, entretanto,
são escarnecidas e designadas como inoperantes, relegadas a
um estatuto de meia-vigência, que capta admiravelmente a
posição da cultura em países periféricos. (SCHWARZ, 2004,
p. 5)
Percebe-se, dessa forma, que a postura de machado é a de um
crítico de seu tempo, uma vez que ao subverter as regras da literatura
convencional e criar um narrador não confiável, pertencente à elite
que goza de grandes privilégios, Machado de Assis tece uma grande
crítica social de modo indireto. Nesse sentido, é lícito afirmar que a
atitude machadiana é responsável pela formação de um novo modelo
de leitor, sendo marcado pela criticidade e pela consciência acerca dos
processos de elaboração do texto ficcional. A esse respeito, escreve
Schwarz:
A ousadia machadiana começou tímida, limitada ao âmbito
da vida familiar, na qual analisava as perspectivas e iniquidades do paternalismo à brasileira, apoiado na escravidão e vexado pelas ideias liberais. Sem falar ao respeito, colocava em
exame o desvalimento inaceitável dos dependentes e o seu
outro polo, as arbitrariedades dos proprietários, igualmente
inaceitáveis, embora sob capa civilizada. Quanto ao gênero,
tratava-se de um realismo bem pensante, destinado às famíUNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013
lias. Quanto à matéria, Machado fixava e esquadrinhava com
perspicácia um complexo de relações característico, devido
ao reaproveitamento das desigualdades coloniais na órbita
da nação independente, comprometida com a liberdade e o
progresso. (SCHWARZ, 2004, p.4)
Para o crítico, a obra de Machado e responsável pela
introdução da literatura brasileira em uma tradição mais ampla. Dessa
forma, “a ênfase de Schwarz será na consciência de Machade de Assis
sobre as diferenças de classes existentes no Brasil e de como isso
define as relações em sociedade” (OLIVEIRA, 2008, p. 107). Já para
Ivan Teixeira (1998), as memórias dessolenizam a observação social e
renovam o romance de intenções críticas. Para o autor:
[...] a crítica desse livro vai muito além do social. E essa superação decorre da condição do “autor defunto”, cujo cinismo o transforma num verdadeiro monstro de indiferença. Brás Cubas desdenha de tudo, e tanto, que não hesita
confessar em si as maiores baixezas: leviandade, covardia,
preguiça, sadismo, ganância, inveja e maldade gratuita. Tais
confissões formam, no conjunto, uma implacável análise da
existência, para cuja força concorre o microrrealismo psicológico, que é o estudo do todo pela decomposição de parcelas mínimas da intimidade. (TEIXEIRA, 1988, p. 89)
Quanto às personagens, Machado emprega, sobretudo,
personagens
femininas
representativas
extremamente
de
personalidades fortes. Como assevera Campedelli (1999, p. 164), as
mulheres são personagens mais fortes de Machados de Assis, tanto em
seus romances como nos contos, e os temas com que trabalhou são
psicológicos, versão em miniatura de seu modo de interpretar a
sociedade. No romance, por exemplo, não faltam personagens
femininas representativas. Brás Cubas, por exemplo, amou Marcela,
personagem extremamente densa e ambígua. Consegue dominar Brás
Cubas, tirando dele tudo o que quer. Ficou célebre, por exemplo, a
máxima proferida pelo narrador: “Marcela amou-me durante 15 meses
e 11 contos de reis” (ASSIS, 2008, p. 47), mostrando o quão
interesseira a personagem era. Virgília é outra personagem feminina
bastante representativa na obra. Seu casamento com ela, arquitetado
pelo pai de Brás, era o mesmo que uma porta de entrada para a
política: a noiva e o parlamento são a mesma coisa. Não é à toa que,
recém-chegado do bizarro encontro com Marcela, Brás Cubas tenha
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uma alucinação e veja Virgília, talvez a mais atrevida criatura da nossa
raça e, com certeza, a mais voluntariosa, tomada pelas bexigas: as duas
são objetos de conquista, cada uma a sua maneira. No entanto, para
sua infelicidade, surge Lobo Neves e arrebata o coração da amada.
Brás Cubas, narra esse episódio:
[...] um homem que não era mais esbelto que eu, nem mais
elegante nem mais lido, nem mais simpático, e todavia foi
quem me arrebatou Virgília e a candidatura, dentro de poucas semanas, com um ímpeto devidamente cesariano. Não
precedeu nenhum despeito; não houve a menor violência de
família. Dutra veio dizer-me, um dia, que esperasse outra aragem, porque a candidatura de Lobo Neves era apoiada por
grandes influências. Tal foi o começo da minha derrota.
(ASSIS, 2008, p. 84)
Esse narrador também se lembra dos seus encontros com
Quincas Borba, um filósofo excêntrico, criador da teoria do
Humanitismo. Os fatos ligados às personagens e à vida de Brás Cubas
são intercalados a lembranças de episódios aparentemente sem
importância, relacionados a seu temperamento cismado e
hipocondríaco. Dessa forma, a digressão assume função principal,
deixando a estrutura da obra bastante híbrida e descontínua,
produzindo a linearidade do enredo.
4 MACHADO NO CINEMA
Roger Silverstone (2002, p. 12) postula que é impossível
escapar à presença, à representação da mídia. Para o teórico, o homem
criou uma profunda dependência desse formato e já se torna quase
impossível viver sem elas. O autor defende a tese de que passamos, na
atualidade, a um estágio de dependência da mídia para fins de
entretenimento e informação. Dessa forma, surge nos veículos de
comunicação, tais como cinema e televisão, uma profunda simbiose.
Essa relação, aliás, como assevera Ana Maria Gottardi (2008),
constitui-se em uma das temáticas mais discutidas pelos estudos que
enfocam a sétima arte.
Em linhas gerais, pode-se afirmar que essa relação entre
narrativa audiovisual e literatura foi bastante conturbada, uma vez que
num primeiro momento a preocupação da crítica recaiu na fidelidade
UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013
entre as duas obras. Outra preocupação decorrente surgiu do enfoque
estrutural em que se preconizou uma preocupação em como o código
fílmico transformou o código linguístico. Como se percebe, essa
relação foi, durante muito tempo, bastante conturbada. A Literatura,
por exemplo, ganhou, no início, status de vítima. Enquanto o filme
ganhou status de parasita, à medida que alimentou a indústria capitalista
ávida por recursos financeiros. Vale, portanto, o posicionamento de
Milton José de Almeida (1993, p.137):
O cinema e a televisão são indústrias grandes, com divisão e
hierarquização de trabalho, poder e interesses de mercado e
de política social, que produzem para o consumo geral, como muitas outras. Sua produção complexa e cara torna-se
inacessível para qualquer um. Você pode pagar cinema, ver
cinema, gostar, desgostar, porém dificilmente poderá produzi-lo. Pode contar para outra pessoa o que viu no cinema,
escrever um texto sobre isto, contar de novo história, somente em palavras. Como a maioria das pessoas, você está
do lado do consumo.
Nas produções iniciais, operava-se uma relação que fazia com
que o crítico analisasse até que ponto a obra cinematográfica era fiel
ao livro. Nesse momento, o conhecimento que o espectador tinha da
obra levava ao interesse pelo filme. Já na contemporaneidade, essa
situação se inverteu: primeiro porque o romance pode surgir de um
roteiro original; Segundo, porque a obra cinematográfica pode levar ao
interesse pelo livro.
Como já afirmado, nossa sociedade contemporânea é
essencialmente visual, todavia não perde gosto pela fabulação, aliás, é
ávida por essa faculdade. Pode ser alheia à Literatura e à poesia
escritas, às histórias escritas, mas não é alheia a mitos e a uma boa
história. Dessa forma, valem as postulações de Eco (1995 apud
AGUIAR, 2003, p. 122):
Narrativa literária e filme cinematográfico são artes de ação,
eis seu ponto em comum. Partem de um processo imaginário de fabulação que, como produto humano, lhes é terreno
de operação ou alicerce. A diferença entre um e outro está
na articulação temporal de suas sequências para o receptor
[...] cinema e literatura [...] são criadores de mitos, no sentido
aristotélico da palavra, isto é, de fabulações que engendram
a possibilidade do reconhecimento da situação presente dos
destinatários em relação aos parâmetros da cultura de que
UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013
fazem parte.
Pode-se afirmar que o ponto comum entre as duas artes é este:
partem de um processo imaginário de fabulação que, como produto
humano, lhes é terreno de operação ou alicerce.
A adaptação do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas
para o cinema já contou com três versões. A primeira, rodada em tom
completamente experimental, em 1967, chamava-se Viagem ao Fim do
Mundo, sendo dirigida por Fernando Cony Campos. A segunda
versão, datada de 1985, foi filmada por Julio Bressane, com Luiz
Fernando Guimarães no papel de Brás Cubas. Em 2001, Machado
teve mais uma adaptação. Dirigida por André Klotzel, contou com
Reginaldo Faria e Petrônio Gontijo se revezando no papel central. A
obra conseguiu recriar o universo machadiano. O único tema que
escapou ao filme foi justamente a briga entre Brás Cubas e a irmã
Sabina no que se refere à herança. Por fim, vale citar as palavras de
Milton José de Almeida (1993, p. 137):
O cinema não é só matéria para fruição e a inteligência das
emoções; ele é também matéria para a inteligência do conhecimento e para a educação, não como recurso para a explicitação, demonstração e afirmações de ideias, ou negações
destas, mas como produto de cultura que pode ser visto, interpretado em seus múltiplos significados, criticado, diferente de muitos outros objetos culturais, igual a qualquer produto no mercado da cultura massiva. Poucos de boa qualidade estética e técnica para poucos consumidores especiais,
e muitos de baixa qualidade para muitos consumidores desarmados culturalmente [...].
A adaptação feita por Klotzel, além de ser fiel à obra, é
também elogiada por seus recursos, recursos esses capazes de
passarem ao espectador toda a crítica e importância que a obra possui.
No filme, é possível perceber que Brás Cubas é oposto a Machado,
enquanto que um é aproveitador, dominador de escravo, “filho de
papai”, como mostra o trecho em que Brás Cubas se aproveita de seu
escravo Prudêncio, fazendo desse seu cavalinho. Já o outro condena a
escravidão, é trabalhador, e conquistou seu espaço e objetivos.
Se Klotzel tivesse colocado o autor Machado para apresentar o
narrador-personagem Brás Cubas, traria a obra uma crítica mais clara,
revelaria a distinção entre o autor e o narrador-personagem e ainda
UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013
mostraria, de maneira mais objetiva, o diálogo existente na obra entre
escritor-narrador-leitor, onde há lacunas a serem preenchidas, bem
como no filme, onde o espectador se torna uma personagem.
Machado ainda se elogia por ser o primeiro a escrever uma
obra com um defunto autor, sendo esse superior, pois Brás Cubas ao
narrar sua história por estar morto se torna indiferente ao fato que está
narrando, como se o fato de estar morto o elevasse a outro nível
físico, psicológico e mental. Assim, Machado se torna excelente por
quebrar a barreira que separa o escritor do leitor e Klotzel consegue
passar isso para o cinema.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Longe de esgotar as possibilidades de abordagem seja do
código literário ou do código fílmico, este artigo se propôs a tecer
breves considerações acerca do universo machadiano e de sua
aplicabilidade no romance mais inovador da literatura brasileira,
Memórias Póstumas de Brás Cubas. O conjunto de obras do autor
também tem alimentado um vasto conjunto de releituras nos mais
diversos códigos. Com o romance ora cotejado não é diferente. A
importância da obra não reside apenas no fato de ter inaugurado o
Realismo no Brasil, mas sim pela profunda inovação empregada por
Machado para possibilitar a excentricidade da obra, tal como assevera
Ivan Teixeira (1988). Para o referido teórico, com essa obra Machado
abandona o romance de enredo e acaba instaurando o romance
poético no país. As Memórias Póstumas abandonam a técnica
tradicional e introduz uma revolucionária, que busca a novidade na
maneira de dizer e não na centralização daquilo que se diz. O teórico
Ivan Teixeira ainda postula que a técnica empregada por Machado, na
verdade, deve ser chamada de um antimétodo. Nas palavras do autor:
Memórias póstumas possuem uma estrutura multiforme,
sem padrões preestabelecidos ou normas fixas, em que entra, principalmente através da paródia, um pouco de tudo:
crônica, história, contos, necrológios, crítica literária e de
costumes, filosofia, tragédia, humor, realismo cru, fantasmagorias, etc. E tudo isso é amarrado por uma implacável lógica de construção, a qual, se contraria a superfície ordenada
das coisas pelo excesso de paradoxo, retrata com fidelidade
a desidentificação essencial do homem consigo mesmo, dos
UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013
homens entre si e destes com a natureza. (TEIXEIRA,
1988, p. 96)
Por esse conjunto estrutural, pode-se falar que Machado
“carnavalizou” a literatura brasileira, uma vez que libertou a imagem e
incorporou à estrutura do romance a diversidade do indivíduo e da
sociedade. Dessa forma, “as Memórias Póstumas inventam o nosso
romance dialético ou problematizador, pois foi o primeiro a
promover, de fato, a interação fenomenológica entre a vida cultural e
forma literária” (TEIXEIRA, 1988, p. 96).
Já quanto à transcodificação, a obra de André Klotzel, focaliza
muito mais o que a personagem Brás Cubas diz. Nesse sentido,
Klotzel em sua obra, trata do percurso de uma vida movido muito
mais que um tom de anedota do que uma forma típica de viver. De
fato, a adaptação cinematográfica possibilita um fecundo diálogo com
o romance machadiano.
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UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013
ENSINO SUPERIOR PARA QUÊ
Maria Suely Fernandes da Silva*
RESUMO
Este trabalho tem como premissa a constatação de que um dos grandes desafios do século XXI é promover a educação em todos os níveis, e, ao ensino superior estabelecer base de um pacto com a sociedade, conduzir-se a novos rumos para que possa exercer seu papel à
altura das exigências históricas. Assim, realiza-se um estudo partindo
da seguinte problematização: quais são as prováveis contribuições desse nível de ensino à sociedade? Ainda, objetiva fornecer subsídios a
outros pesquisadores que possam se interessar pelo tema e encontrar
material disponível para novos estudos. Seu caráter é descritivo, com
predominância de abordagem qualitativa, permite concluir que são
significativas as contribuições do ensino superior ao processo de construção de cenário com políticas educacionais voltadas à formação do
cidadão crítico. Elege, como prioridade, sua preparação para atuar na,
para e pela sociedade. Dá ênfase à produção e transmissão do conhecimento para a construção coletiva da universidade cada vez mais forte
e verdadeiramente inserta na sociedade. Seu fim, primeiro e último, será o de eleger como fundamentais conexão entre educação e desenvolvimento, buscando responder à indagação-título sobre os nobres e
elevados objetivos da universidade.
Palavras-chave: Educação. Ensino Superior. Contribuições. Consciência crítica. Retorno social.
*
Mestre em Educação (Universidade Estadual de Londrina), professora de Língua
Portuguesa da Rede Pública Estadual de Ensino, membro da Equipe de Educação
Básica do Núcleo Regional da Educação de Cornélio Procópio, professora de Língua Portuguesa e de Metodologia da Pesquisa Científica da Faculdade de Ensino
Superior Dom Bosco, de Cornélio Procópio.
UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013
ABSTRACT
This article is based on the premise that one great challenge of the
twenty-first century is to promote education at all levels, and that college education has to establish the basis of a commitment to society,
oriented to new directions so that it may exercise its role and fulfill
historical demands. Therefore, a study was carried out based on the
following question: what are the likely contributions of this level of
education to society? It also aims to provide support to other researchers who may be interested in the topic and find materials available for further studies. His character is descriptive, with a predominantly qualitative approach, allowing to conclude that the contributions of higher education are significant to the process of building a
scenario with educational policies aimed at the formation of the critical citizen. It chooses, as a priority, the preparation to act in and for
the society. It emphasizes the production and transmission of knowledge for the collective construction of a university increasingly strong
and truly embedded in society. Its first and ultimate purpose will be to
elect as fundamental connections between education and development, seeking to answer the question of the title on the high and noble
goals of the university.
Key words: Education. College education. Contributions. Critical consciousness. Social return.
UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013
ENSINO SUPERIOR PARA QUÊ
Maria Suely Fernandes da Silva
Neste trabalho, são apresentados fundamentos teóricometodológicos embasadores do estudo bibliográfico a respeito do
ensino superior e sua função social . Dalarosa (2000, p. 101) assinala
que
a pesquisa científica busca explicar as implicações econômicas, culturais, educacionais, as relações de trabalho, as diferentes possibilidades de produzir e não produzir, enfim,
busca uma explicação sistemática, analítica e contextualizada
que dê conta de esclarecer as leis, as causas que provocam
um fenômeno [...].
Essa constatação é, de fato, fundamental, uma vez que a
pesquisa sempre permite o resgate histórico dos fatos para ampliar
horizontes voltados à consciência do papel que cada indivíduo deve
desempenhar no meio em que vive. Exige, constantemente, do
pesquisador uma retomada de percurso – e não raras vezes uma
expressiva correção de rota – porque a história, por ser dinâmica,
compõe-se de agentes transformadores, participantes contínuos do
processo.
Demo (1995) adverte que é necessário desmistificar a pesquisa
considerando-a atividade cotidiana. E na sua discussão e prática na
universidade, ela deverá estar articulada com o ensino, entre outros,
para analisá-lo e aperfeiçoá-lo. É dessa forma que se apresenta a
pesquisa: buscam-se, nas reflexões do pesquisador e nos materiais e
recursos disponíveis, informações, explicações, esclarecimentos para o
desencadeamento de seu trabalho. É o momento de gestação durante
o qual se recolhem dados, abre-se espaço para leituras e reflexões,
avaliam-se vivências já experimentadas, fazendo-se, releituras,
observações, discussões, anotações e registros. A esse processo que
conduz a uma educação mais substantiva, sendo única como a arte,
exclusiva como cada música, particular como cada tela, chama-se
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pesquisa: “[...] maravilhosa utopia de quem crê que a vida, como a
educação, pode-se fazer como arte-construtora de um amanhã mais
pleno, mais realizado, mais feliz” (FAZENDA, 1989, p. 14). Ainda, no
mesmo tom, Severino (2002, p. 70) afirma que
A ciência como modalidade de conhecimento, só se processa como resultado de articulação do lógico com o real, do
teórico com o empírico. Não se reduz a um mero levantamento e exposições de fatos ou a uma coleção de dados.
Esses precisam ser articulados mediante uma leitura teórica.
Só a teoria pode caracterizar como científicos.
É por tal motivo que a realização de pesquisa científica está
implícita no investimento acadêmico: desenvolver pesquisa significa
entrelaçamento de teoria e empirismo, comunhão de fatos e dados, o
tête-à-tête entre sujeito e objeto, a fim de que seja caracterizado o ato de
criação do conhecimento.
Oliveira (1999, p. 15) reforça: “Além disso, no contexto
universitário a caracterização desse conhecimento permite a
hierarquização de prioridades com a definição de novas diretrizes para
o ensino”.
A produção científica espelha, pois, a realidade do momento
atual, indica a fase de desenvolvimento na qual se encontra certa área
do conhecimento; no caso, o estudo sobre a função social do ensino
superior. Portanto, segue a historicização do ensino superior brasileiro,
suas mazelas, seus benefícios, suas chagas, suas conquistas.
No Renascimento e na Idade Moderna, a chamada Revolução
Científica, resultante do modelo copernicano do heliocentrismo para a
astronomia e da nova física constituída por Galileu, mais tarde
enriquecida por Newton, aponta a superação do modelo da ciência
aristotélica prevalecente desde a Antiguidade e durante a Idade Média.
Uma autêntica revolução que configura ruptura metodológica
desencadeada pelo projeto epistemológico de Descartes e Bacon, no
século XVII e, ao final, se reafirma no reconhecimento da objetividade
fundada no mecanicismo. Sob a égide do pensamento científico, a
crença na razão e na elaboração do conhecimento com o domínio do
homem sobre a natureza e a consolidação do capitalismo como
projeto civilizatório (trouxe) traz novos trajetos para a humanidade
(CARDOSO, 1997).
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Fulcrada na Razão, a Modernidade incita nova ordem das
relações sociais com aceitação da importância do conhecimento à
sociedade, sua construção, sobretudo voltado ao pragmatismo das
exigências cotidianas.
Um dos aspectos da educação no Ocidente é de transmissora
de herança cultural da humanidade, em que sua parcela de
contribuição social é decisiva. Essa visão de educação prevalece como
um dos vetores da racionalidade capitalista, aparece na organização
burocrático-racional do Estado, da organização do mundo do trabalho
e da produção e difusão do conhecimento.
Segundo Schwartzman (1997), a partir da década de 50, a
educação torna-se tema de caráter técnico-administrativo, fazendo que
as grandes discussões sobre ela sejam deslocadas para o domínio de
especialistas, diretamente envolvidos com a problemática, como
professores, secretarias, ministério da educação e até editores. É um
período em que a educação passa a ser encarada como variável de
grande importância no projeto desenvolvimentista latino-americano;
assim, os chamados países periféricos, paralelo aos projetos de
implantação da infra-estrutura industrial, desencadeiam processos de
modernização na área educacional. Nessa perspectiva, este artigo visa a
delinear possíveis respostas para algumas indagações acerca das
contribuições do ensino superior à sociedade, tendo em vista que se
vive época de valorização desse nível de ensino, com significativas
repercussões gregárias, mudanças pessoais, concentração em
profissões de cunho humanitário, dentre outras.
No Brasil, a Reforma Capanema 1942-1946, a criação do
Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA); na década seguinte, a
criação da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (CAPES), atualmente, denominada Coordenação de Pessoal
de Nível Superior; e do Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq) reforçam as teses de que um sistema
de ensino superior e geração de ciência e tecnologia são indispensáveis
para fazer decolar projetos desenvolvimentistas, sempre tendo o
Estado como seu grande responsável. A respeito da junção política de
cunho industrial e educacional, Durham (1998, p. 93) observa:
[...] é a convicção de que as universidades são um instrumento fundamental para a modernização da sociedade. É isso que justifica, até mesmo, o seu controle pelo Estado (o
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qual é a instância que deve promover a modernização), bem
como o seu financiamento pelo poder público. Esta concepção, que permanece até hoje, tem fornecido o quadro de
referência no qual se negociaram os recursos, a autonomia e
a organização das atividades acadêmicas e tem sido fonte
importante de legitimação e projeção política das instituições de ensino superior.
Assim, nas sociedades latino-americanas, o sistema de ensino
superior cumpre suas funções tradicionais de formação das elites, de
preparo profissional para carreiras liberais, de agentes técnicos para as
burocracias e também (participou) participa de forma intensa das
tentativas de criar uma América Latina, industrialmente autônoma.
Depois do período da ditadura militar, no Brasil, até à
redemocratização, ainda que de forma restrita, o ensino superior se
amplia de acordo com novas demandas de tarefas pela e para a
sociedade.
O debate atual em torno do ensino superior, no Brasil, está
polarizado entre uma abordagem neoliberal da universidade pública
tida como desperdiçadora de recursos, anacrônica, a serviço das
classes médias e que dificulta as reformas de que a sociedade necessita
para se integrar de forma plena ao processo de globalização da
economia, e, por um outro enfoque que avalia o modelo neoliberal
como privatizante e destruidor da universidade como instituição social
(Chauí, 2002). Ainda, em visão geral do ensino superior privado com
crescimento desenfreado, mas com potencial e dinamismo
arrebatados.
Hoje em dia, além de o compartilhamento das informações
acontecer com extrema rapidez, a maior parte de todo o
conhecimento atual tende a ser produzido por técnicos altamente
especializados trabalhando em grandes centros universitários ou
institutos de pesquisas financiados em sua totalidade ou em grande
parte pelo capital privado. Vale ressaltar, entretanto que, nas
instituições públicas e privadas de ensino superior, ou mais precisa e
intensamente, nas universidades públicas, essa atividade é
desenvolvida.
A vinculação entre uma política de ensino superior fortemente
atrelada às diretrizes internacionais é analisada por Catani e Oliveira
(2000, p. 45) que observam
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o perfil da atual educação superior, as temáticas, as críticas,
as tendências e as políticas e estratégias mais significativas
revelam o alto grau de subordinação dos países em relação
às orientações dos organismos internacionais.
Resta esperar que os sistemas universitários não se restrinjam a
condicionalidades do desenvolvimento econômico que a poucos
beneficia.
Até o início do século XIX, mais precisamente 1808, o Brasil
Colônia não conta com ensino superior em seu território. Nas colônias
espanholas da América, a primeira universidade, embora de curta
duração, surge em 1538, na ilha de Santo Domingo, território da atual
República Dominicana. Entre 1549 e 1759, o ensino formal brasileiro
é dirigido pela Companhia de Jesus, responsável pela cristianização
dos índios, pela formação do clero em Seminários de Teologia e pela
educação dos estudantes da elite colonial portuguesa, nascidos aqui,
onde recebem educação medieval-latina associada à grega. Deslocamse até à metrópole a fim de frequentar e se graduar nas universidades
portuguesas cujo objetivo é, dentre outros, a unificação cultural do
império de Portugal, desenvolver nos estudantes uma homogeneidade
intelectual capaz de fazê-los compreender a fé católica inquestionável,
bem como sua superioridade sobre a Colônia: mais de 2.500 jovens
nascidos no Brasil graduaram-se em Teologia, Direito Canônico,
Direito Civil, Medicina e Filosofia, durante os três primeiros séculos
de nossa história.
No Brasil Colônia, dada sua condição de território a serviço da
exploração metropolitana, não há justificativa para que a população
nativa possa se preocupar com estudos e os filhos dos nobres
portugueses frequentam universidades europeias. Cunha (1980, p. 12)
observou que é argumento comum afirmar que “Portugal bloqueava o
desenvolvimento do ensino superior no Brasil, de modo a manter a
colônia incapaz de cultivar e ensinar as ciências, as letras e as artes”.
Com a chegada da família real portuguesa, por volta de 1808, no (ao)
Brasil, (foram surgindo) surgem as primeiras escolas superiores:
Academia Real de Marinha, o curso de Cirurgia, Anatomia e
Obstetrícia e a Academia Real Militar, com a característica
predominante de cursos isolados, basicamente profissionalizantes,
divorciados da investigação científica.
Sobre o tema, Borges (2006, p. 22) informa
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Registre-se que, até o ano de 1808 (vinda da família real portuguesa para o Brasil), em solo nacional não existia um só
curso superior. Os que tinham recursos enviavam seus filhos para Europa (Lisboa e Coimbra, em Portugal, Oxford,
na Inglaterra, Heildelberg, na Alemanha, Salamanca, na Espanha, Gênova, na Itália e para a Universidade de Paris, na
França) a fim de que fizessem um curso superior. Com a
vinda de D. João VI (fugindo da fúria napoleônica na Península Ibérica) o ensino superior começou a se estruturar
no Brasil. Em menos de três décadas foram criadas a Fundação da Academia da Marinha, a Academia Militar, a Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios, as Faculdades de Medicina, Economia, Desenho Técnico e Agricultura, entre as
principais, com grande desenvolvimento no campo literário,
sociológico e matemático.
O ensino superior, até então destina-se à qualificação da elite, à
aristocratização e ao exercício do poder com estreita concepção de
ciência dirigida às atividades imediatas e não à produção do
conhecimento. Apesar da existência desse tipo de ensino, até o início
do século XX, não se cria qualquer universidade em território
brasileiro.
Cunha (1980, p. 12) registra os seguintes fatores favoráveis a
essa realidade:
1) Contrariamente ao colonizador espanhol, o português
não encontrou nas terras do Brasil, povos indígenas com
culturas complexas, contra os quais fosse necessário travar
uma luta no campo próprio da ideologia, para conquistar a
ambiciosa hegemonia. Os missionários religiosos, em especial os jesuítas realizaram a tarefa de ‘conversão dos índios’,
sem prescindir, como no caso hispano-americano do apoio
das armas.
2) Portugal dispunha de um pequeno quadro universitário,
integrado pela Universidade de Coimbra e, mais tarde, pelo
Colégio de Évora e pelo de Lisboa. A criação de universidade no Brasil empobreceria perigosamente a metrópole.
3) O envio de maior número de estudantes de nível superior
a Portugal, socializando-os na submissão à metrópole foi
sempre um expediente do qual os governantes portugueses
nunca esconderam seus propósitos.
A escassa demanda e pouca importância atribuída, até então,
ao ensino superior para o desenvolvimento da sociedade brasileira na
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criação, até a República, de apenas 12 a 15 cursos e faculdades
superiores. Inscreve-se aí, o que se torna tradição na história
educacional brasileira: a atribuição de distintivo social ao recebimento
de diploma. Miguel Lemos (apud CUNHA, 1980, p. 89) afirma:
[...] já existe, no Brasil, um número de instituições mais do
que suficiente para a formação de profissionais e a fundação
de uma universidade só traria, como resultado, a ampliação
das deploráveis pretensões pedantocráticas da nossa burguesia, cujos filhos abandonam as demais profissões, igualmente úteis e honrosas para só preocupar-se com a aquisição de
um diploma qualquer. Melhor seria utilizar os recursos demandados pela universidade pretendida para a instituição
popular, mais urgente e necessária do que qualquer outra,
destinada a um pequeno número de privilegiados.
Ainda pelo ângulo histórico, pode-se verificar que desde a
criação das primeiras faculdades no Brasil, o ensino superior está, na
maioria do tempo despregado da realidade social, dirigido, de
ordinário, aos grupos dominantes e, portanto, caracteristicamente
conservador, elitista, clássico, decorativo, como mero distintivo social,
ligado a interesses governamentais e à manutenção do poder
hegemônico.
Ao fim do século XIX, significativos acontecimentos ocorrem
no Brasil: troca de regime político, introdução da mão-de-obra livre
consequente da abolição da escravatura, primeiro surto industrial,
intensificação da influência positivista, fortalecimento dos setores
médios com militares aliados à burguesia cafeeira os quais deram
origem a uma postura descentralizada presente também no ensino
superior com a criação de instituições superiores nos Estados
(ROMANELLI, 2005). A estrutura de ensino dos níveis primário e
secundário existente segue a orientação do Ato Adicional de 1834, não
se organiza à base de um sistema nacional: há (havia) sistemas
estaduais, sem articulação com o central, as reformas havidas se
limitam ao Distrito Federal, que as mostra como modelo sem
obrigatoriedade de adoção (RIBEIRO, 1982).
Ainda que o ensino superior tenha sido criado durante a
permanência da família real portuguesa no Brasil (1808-1821), é no
período da Primeira República (1889-1920) que a história educacional
registra acanhados momentos de expansão nesse nível de ensino:
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criação da primeira Universidade organizada conforme determinação
do Governo Federal em 1920, no Rio de Janeiro com a anexação da
Faculdade de Direito à Faculdade de Medicina e à Escola Politécnica,
e, na esteira, é fundada a Universidade de Minas Gerais, em 1927.
As décadas de 20 e 30 registram momentos ricos em termos de
mobilização nacional em prol da educação. Condensa-se, nesse
período republicano, grande parte das reivindicações dos movimentos
educacionais que (nasceram) nascem em fins do século XIX e início
do XX.
A partir de 1930, a educação superior tem um novo impulso:
dentre as primeiras medidas educacionais do Governo Vargas, a
reforma Francisco Campos (1931), considerada grande por ter dado
estrutura orgânica a várias modalidades de ensino, incluindo o
superior, por atingir em profundidade o arcabouço organizacional do
ensino, e por ser, pela primeira vez, imposta a todo o país cujo ponto
de partida é a junção de cursos superiores; na prática, porém, mantêmse isolados uns dos outros. A reforma Campos é o grande momento
em que o ensino superior brasileiro ) é centralizado pelo governo
federal, ao instituir o Estatuto das Universidades Brasileiras (EUB),
estabelecendo em seu artigo 1°:
O ensino universitário tem como finalidade elevar o nível da
cultura geral; estimular a investigação científica em quaisquer domínios dos conhecimentos humanos; habilitar ao
exercício de atividades que requerem preparo técnico e científico superior; concorrer, enfim, pela educação do indivíduo
e da coletividade, pela harmonia de objetivos entre professores, estudantes e pelo aproveitamento de todas as atividades universitárias, para a grandeza da Nação e para o aperfeiçoamento da Humanidade. (ROMANELLI, 2005, p. 133)
Caracterizado fica, pois, o tipo de liderança do governo ao
estabelecer amplos objetivos educacionais sem levar em conta a
realidade educacional brasileira à época. (Continuação do mesmo
pensamento). Segundo concepção de Mendonça (2000, p. 140)
[...] a Reforma Campos teria armado o Estado para exercer
sua tutela sobre o ensino e [...] especificamente sobre o ensino superior. Com isso, a autonomia do campo cultural
tornar-se-ia letra morta, sendo esse campo invadido primeiro pelo autoritarismo e depois pelo paternalismo do Estado.
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O EUB, em seu art 5º, estipulou “[...] a obrigatoriedade de pelo
menos três dos seguintes cursos para a constituição de uma
Universidade: Direito, Medicina, Engenharia e Educação, Ciências e
Letras” (ROMANELLI, 2005, p. 133). A mencionada reforma
(reiterou) reitera, pois, uma educação humanista e elitizante que reflete
uma época; entretanto, inegável seu mérito ao abrir perspectivas para
as universidades.
Outro momento importante: a publicação do Manifesto dos
Pioneiros da Educação, em 1932, sintetizando partes dos ideais de
seus proponentes. No campo da educação superior, o documento
recomenda a criação de universidades capazes de integrar atividades de
ensino e pesquisa.
A primeira Universidade, criada nos moldes das normas
previstas no EUB, (foi) é a de São Paulo (USP), em 1934, uma
agregação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, à Escola
Politécnica, à Faculdade Direito e à Faculdade de Medicina. A partir
de 1935, cria-se a Universidade do Distrito Federal, a de Porto Alegre,
de tal sorte que as públicas e privadas ascenderam a 46
(ROMANELLI, 2005). A partir dessa mesma década, já existe no
Brasil, considerável número de instituições, em sua maioria, de
iniciativa privada confessional católica; gradativamente, se implantam
as primeiras universidades institucionalizadas do país, entendidas agora
como espinha dorsal do sistema de ensino nacional, cujos objetivos
priorizam formação de professores para atuação no ensino secundário,
realização de elevados estudos desinteressados e pesquisa. Essa
reestruturação do campo educacional serve, sobretudo, como
possibilidade de ascensão social, principalmente, para as classes médias
que adentram nas burocracias públicas e privadas, constituindo-se os
diplomas escolares em verdadeiros instrumentos para a ascensão
social.
À sombra do Estado interventor e planejador, o ano de 1951
marca a institucionalização da pesquisa no país. Conforme
mencionado, além do CNPq, com o objetivo de responder pelas
atividades em áreas estratégicas de ciência e tecnologia e promover a
capacitação científica e tecnológica nacional, graças à convergência de
interesses entre militares, técnicos do governo e a comunidade
científica nacional), cria-se, a CAPES. Esses dois órgãos são
referências do início da valorização efetiva do ensino superior, em
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especial, a universidade, como meio e instrumento de capacitação de
profissionais e de produção científica aplicada e aplicável.
No período pós-guerra, muitas daquelas universidades criadas
a partir do EUB federalizam-se, reforçando a tese de que a presença
do Estado planejador é fundamental ao ensino superior (CUNHA,
2000).
Em 1961, estabelece-se a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (LDBEN) que não altera disposições até então
vigentes, como hierarquização docente, restringindo-se a determinar a
fixação dos currículos mínimos, delegando às universidades a
normalização sobre concursos. Regulamenta distribuição de docentes
de acordo com disciplinas e cursos atendidos, por entender que os
estatutos da universidade deveriam desenvolver o assunto com
fidelidade aos padrões nacionais e internacionais do ensino
universitário. Nesse mesmo ano, Anísio Teixeira apresenta proposta
inovadora, quando da fundação da Universidade de Brasília, tendo
como objetivo para essa instrução o de ”[...] formar cidadãos
empenhados na busca de soluções democráticas para os problemas
com que se defronta o povo brasileiro na luta por seu
desenvolvimento econômico e social” (Cunha, 1983, p. 171).
O período de 1945-1964 destaca-se por uma política
educacional superior como uma fase de construção do próximo tempo
instaurado com a reforma universitária de 1968. (Continuação do
mesmo pensamento). O paradigma existente para o curso superior,
entretanto, pela adequação às necessidades do desenvolvimento
econômico e social do país: de um lado, atender o (ao?) capital
monopolista; de outro, satisfazer anseios de mobilidade social das
camadas médias.
Na exposição de motivos da lei 5.540/68 responsável pela
fixação de normas para organização e funcionamento do ensino
superior, gestada a partir dos acordos entre o Ministério da Educação
e Cultura e United States Agency for International Development
(MEC/USAID) para assistência técnica e cooperação financeira e do
polêmico Relatório Atcon, (assessor norte-americano a serviço do
Ministério da Educação), além de estar indicada a necessidade de
disciplinar a vida acadêmica, coibindo o protesto, reforçando a
hierarquia e a autoridade, é enfatizada a importância de racionalizar a
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universidade para dar-lhe maior eficiência e produtividade. Ali se
identificavam atividades empresariais, concepção vinculada à
mentalidade tecnocrática, hegemônica à época.
Germano (1994, p. 123) informou que
Na esteira dos acordos MEC/USAID foi constituída a Equipe de Assessoria ao Planejamento do Ensino Superior
(EAPES), grupo de trabalho que produziu documento, concluído em 1968, que continha análises sobre a educação brasileira e proposições acerca da reforma universitária.
O pressuposto principal desse documento é sobre a
essencialidade da educação, essencial ao desenvolvimento da sociedade
e parte de medidas como as de organização departamental; adoção de
sistema de créditos; ciclos básico e profissionalizante; combate ao
desperdício; defesa da racionalização; aumento de produtividade, que
se fizessem necessárias. Mais uma vez, a presença majoritária do
Estado na elaboração de políticas se consubstancia: ao expandir a
economia, gera a necessidade de também criar infra-estrutura de
comunicações, transporte e energia a fim de originar fonte de
empregos que exijam os mais diversos níveis de habilitação. As
normatizações refletem o contexto sócio-econômico-político brasileiro
no qual o desenvolvimento caracteriza o processo de modernização da
sociedade com base na industrialização e na expansão internacional da
economia. Mendonça (2000, p. 143) esclarece que
Vários foram os grupos que se envolveram com esse debate
e que assumiram iniciativas bastante diversificadas: o Estado
– e, no interior do aparelho do Estado, grupos distintos assumiram a liderança de iniciativas algumas vezes até contraditórias entre si – e dois novos atores coletivos que imprimiram a sua marca na orientação que será dada a esse debate
como a posteriores encaminhamentos da questão: a comunidade científica organizada e o movimento estudantil.
Apesar da participação efetiva de dois novos atores, e de
algumas pretensões geradas pelo clima efervescente dos anos 60, o
conteúdo técnico, de âmbito organizacional e administrativo
predomina em vez do político na reforma universitária de 68:
ampliação das funções para o ensino e pesquisa; criação de
organização departamental; extinção do sistema de cátedras;
responsabilidade da comunidade acadêmica na seleção de professores;
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reestruturação da carreira docente, sendo condição para ingresso estar
cursando a pós-graduação; adoção do sistema de créditos; imposição
de uma gestão inspirada na tecno-burocracia, visando a uma
racionalidade eficientista; criação do regime de trabalho de dedicação
exclusiva, ênfase na pós-graduação, dentre outros (Germano, 1994).
Essa modernização vem acompanhada pela expansão desordenada do
ensino superior privado com a implantação de faculdades isoladas que
proliferaram no país. Não raras vezes apresentam oferta de cursos de
graduação muitas vezes sem organização e experiência acadêmicas
devidas e indispensáveis.
O caráter utilitarista da educação, prevalecente no período,
expresso na relação direta entre mercado de trabalho e produção
clarifica-se sobremaneira, porque o sistema educacional deve preparar
a força de trabalho para um processo produtivo: planejamento na
educação compatível com as demandas de mercado.
São visíveis e constantes os efeitos que as alterações no campo
político provocam na área educacional, passando a enfatizar a teoria
do capital humano e o binômio desenvolvimento e segurança. Dessa
forma, a qualificação profissional passa a ser prioridade e investimento
para o desenvolvimento da nação. A reforma da universidade,
portanto, procura atender a demanda do mercado de trabalho.
Germano (1994, p. 104) assinala que
[...] a política educacional faz parte desse contexto, em que o
Estado assume um cunho ditatorial, a economia apresenta
um forte crescimento em alguns períodos, e os interesses do
capital prevalecem enormemente sobre as necessidades de
trabalho.
No período da Nova República, pós-ditadura, surgem
movimentos para institucionalizar mecanismos democráticos nas
universidades públicas, em grande parte, canalizados para a
Constituinte e, posteriormente, inseridos na Constituição de 1988
(Cunha, 2000).
Em 1996, promulga-se a LDBEN 9394/96 e outras medidas
complementares com diversos formatos que se estendem desde as
orientações para uma organização eficiente, sustentável,
empreendedora até a constituição de um sistema universitário
diversificado objetivando atender interesses de caráter econômicos.
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Além do mais, assiste-se a processo de internacionalização das
instituições de ensino superior. Se no período colonial, é praxe a
formação das elites brasileiras em Portugal ou na França, na
atualidade, há forte tendência de preparo intelectual das elites
empresariais nos Estados Unidos da América (país no qual se aplicam,
de forma radical, as concepções e políticas neoliberais). Stallivieri
(2002, p. 36) estabeleceu que
Os inúmeros desafios, que estão surgindo no momento em
que chega o novo século, impulsionam as universidades a
buscarem um grau de internacionalização muito mais elevado. A globalização da economia e das telecomunicações criou um cenário interconectado. A globalização da cultura, da
ciência, das tecnologias exige de nossos estudantes universitários um nível de competência e de formação muito mais
sólido e competitivo. Torna-se mister, então, que as instituições estejam preparadas para oferecer soluções a esses novos desafios.
Trata-se, portanto, de imperativo de sobrevivência, é preciso
até certa medida, acompanhar o movimento acadêmico internacional,
uma vez que o sistema universitário brasileiro reflete as desigualdades
regionais que o caracteriza como federação. Por outro lado, não se
pode negar o distanciamento intelectual em termos de qualidade e
quantidade de pesquisas existente entre as universidades brasileiras e
suas congêneres internacionais. Nesse passo, indispensável refletir
sobre caminhos para conviver ou diminuir essas distâncias,
possibilitando intercâmbios acadêmicos em vários níveis (recursos
humanos, conhecimentos, tecnologias e outros).
Com o deslocamento dos eixos de poder do mundo, as relações entre os países modificaram-se e, em decorrência, também o papel das instituições de diferentes regiões e países,
apresentando em sua constituição comunidades internacionais que se reuniam em busca de um objetivo comum: o conhecimento (STALLIVIERI, 2002, p. 36-37).
Para isso, pressupõe-se cooperação: científica, tecnológica,
acadêmica em seus diferentes níveis, de forma horizontal e vertical,
bilateral e multilateral voltada para o âmbito interinstitucional. Porque
o deslocamento dos eixos de poder do mundo modifica as relações
entre países, também o papel da universidade se altera. Governo,
instituições, empresas e responsáveis pela educação conscientizam-se
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do inarredável conhecimento do grande referencial para planejamento
do futuro. Logo, amplia-se a missão da universidade que deve
produzir e socializar o conhecimento científico, vetor de expansão, de
qualificação e de manutenção de sua atividade fundamental primeira.
Para tanto, Stallivieri (2002, p. 55) reafirma:
Tendo isso presente, a cooperação internacional deve ser
perseguida, pois através dela as instituições de ensino superior podem buscar uma efetiva integração de nações, não
somente com vistas à defesa de seus interesses econômicos
e sociais comuns, mas também, e acima de tudo, para buscar
uma realidade mais justa e equilibrada para as populações.
A interligação entre os centros de pesquisa e de ensino
superior de todos os cantos do mundo extrema-se em importância por
oportunizar troca de informações com possibilidade de se dar origem
a verdadeiras redes de saber universal.
O período compreendido entre 1994-2002 marca-se por
avanços na educação brasileira, principalmente quanto à continuidade
das políticas favoráveis à proliferação de faculdades privadas criadas
ou transformadas em Centros Universitários e Universidades. Os
efeitos das políticas educacionais desse tempo ainda estão surtindo
resultados no início do século XXI, com mudanças no perfil do
alunado atendido e definição de sua inserção no mercado –
compromisso social do governo.
Encetam-se políticas públicas afirmativas concretas como o
Programa Universidade para Todos (PROUNI), reconhecidamente
articuladas para o acesso ao ensino superior. O Jornal de Políticas
Educacionais n. 4 de jul 2008, p. 53-63 informa que, até o início do
novo milênio, o governo federal responsabiliza-se pela inclusão de
cerca de 200 mil estudantes no mundo universitário.
Não basta simplesmente aplaudir iniciativas governamentais
em se tratando de avanços significativos no ensino superior, mas de
reconhecer limitações de recursos do setor público bem como, que
notável estrato social, hoje, faz parte do mundo universitário. Ainda
que se considerem os avanços acentuadamente marcados, não se pode
perder de vista o sucateamento das instalações físicas, o baixo salário
dos professores, a apuração elitista dos exames de seleção para
ingresso nas universidades públicas brasileiras. Por outro lado, as
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instituições privadas padecem da mercantilização, da falta de incentivo
para formação docente, não conseguem oferecer retorno social e
cultural (de alguns cursos) à população e, ainda, as perspectivas
profissionais oferecidas aos estudantes é ínfima. O ensino superior
caminha a passos longos, porém lentos. Urge retomada de rota para
que o retorno social venha a galope para o bem estar da população.
Acima de tudo, é fundamental que o discurso deixe o leito estéril
panfletário das reiteradas promessas e, efetivamente, passe de vez para
a prática tão prometida, em busca de melhores dias no plano
educacional, sempre com os olhos fixos na dignidade humana. É o
mínimo a esperar.
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UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013
JUSTIÇA FISCAL COMO FONTE DE PROMOÇÃO DA DIGNIDADE
NO ESTADO CONSTITUCIONAL
Bruna Geovana Fagá Tiessi*
RESUMO
Este trabalho traz – com o auxílio de ideias elaboradas por eminentes
nomes da ciência do direito – uma gama de entendimentos para o
conceito de justiça fiscal, para melhor adequá-lo à aplicação dentro do
estado social de direito. Antes de adentrar o tema, foi necessário fundar paralelos entre justiça fiscal e justiça distributiva, e estabelecer como um de seus maiores fundamentos os princípios constitucionais tributários. Assim, tornou-se possível elaborar, pelas práticas conducentes à efetivação da justiça fiscal, uma ideia concreta das formas que o
poder público dispõe para concretizar a dignidade da pessoa.
Palavras-chave: Justiça fiscal. Justiça distributiva. Princípios constitucionais tributários. Educação fiscal.
ABSTRACT
This paper presents a range of understandings of the concept of tax
fairness – with the aid of ideas developed by prominent names in the
science of law – to better adequate in the application within the social
state of law. Before entering the subject, it was necessary to establish
parallels between tax fairness and distributive justice, and to establish,
as one of its major foundations, the tributary constitutional principles.
Thus, it became possible to elaborate, by practices that lead to the
achievement of fair taxation, a concrete idea of the ways that the government has to make true the dignity of the human being.
Key words: Fair taxation. Distributive justice. Tributary constitutional
*
Advogada; bacharel em Direito (UENP).
UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013
principles. Education for taxes.
UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013
JUSTIÇA FISCAL COMO FONTE DE PROMOÇÃO DA DIGNIDADE
NO ESTADO CONSTITUCIONAL
Bruna Geovana Fagá Tiesse
1 INTRODUÇÃO
Pela leitura de pensadores do direito como Kant, Habermas,
Rawls bem como Hans Kelsen, pode-se perceber que a conceituação
do termo justiça sempre passou longe de obter uma conceituação que
delineasse os liames do consenso. Para uns, a justiça seria a liberdade,
para outros a justiça não passa de uma bela utopia e há, ainda, quem
defenda ser a justiça a maior expressão da equidade. No entanto, é
necessário ressaltar a importância desses primados para a aplicação da
justiça, que se faz por meio da justiça distributiva, bem como da justiça
fiscal, separando, desta forma, o justo do direito.
Com base nisto, entende-se que a justiça distributiva consiste
em analisar toda a sociedade de um modo geral, para conceder a cada
um de seus membros aquilo que lhe é devido, zelando pelo princípio
da equidade. Neste diapasão, é perfeitamente possível compreender a
necessidade de se estabelecer um paralelo entre a justiça distributiva e
justiça fiscal, uma vez que, o Estado que aplica o princípio da
distributividade à sua forma de governar, também o fara na sua forma
de arrecadar tributos. Nasce, portanto, a justiça social, oportunamente
denominada de justiça fiscal, que tem por escopo a promoção do bemestar coletivo.
Não obstante, consubstanciados na própria Constituição
Federal de 1988, encontram-se os princípios constitucionais
tributários, verdadeiros guardiões da justiça fiscal, que, por sua vez,
são fundamentais uma vez que zelam pela dignidade de cada cidadão.
Para tanto, busca-se ainda com fulcro na mesma Constituição, meios
de obtenção e efetivação da justiça fiscal. Neste sentido, a tributação
voltada à propriedade e ao consumo, há que ser analisados bem como
há que ser observados ainda, os princípios da progressividade e da
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seletividade, tudo levando em consideração o melhorando na
arrecadação e distribuição fiscal.
2 JUSTIÇA NA ACEPÇÃO DE PENSADORES DO DIREITO
O termo justiça pode ser concebido sob a égide de diversos
enfoques. Importante tema, sobretudo para a ciência do direito,
inspirou diversos autores, dentre eles, Del Vecchio (1960, p. 4), que a
bem definiu como sendo “a pedra angular de todo o edifício jurídico”.
2.1 A justiça na acepção de Hans Kelsen
De acordo com Nader (2001, p. 125), Kelsen entendia que a
justiça era apenas um sonho, algo totalmente utópico, que jamais
alcançaria uma verdade absoluta, pois acreditada que ela era concebida
de maneira subjetiva, de acordo com cada grupo, e de pessoa para
pessoa. Neste sentido, para o autor austríaco a própria razão humana
só é capaz de produzir valores relativos.
Partindo do pressuposto de que Kelsen somente considera a
existência de uma justiça relativa, ele nega que as leis sejam injustas, e
somente acredita que haverá injustiça quando a norma jurídica não for
aplicada ao caso concreto (MENESCAL, 2007, p. 24). Tendo o
exposto por base, Montoro (2000, p. 143) explica muito bem que:
[...] mesmo que seja possível decidir-se objetivamente sobre
o que é justo e o que é injusto, como é possível determinar
o que é um ácido e o que é uma base, justiça e lei devem ser
consideradas como dois conceitos diferentes. Se a ideia de
justiça possui alguma função, é a de ser um modelo para leitura da boa lei e um critério para a distinção entre uma lei
boa e uma lei má.
Maria Helena Diniz (2009, p. 131) complementa afirmando
que, desta forma, Kelsen tentou preservar a pureza do sistema
normativo partindo de sua análise estrutural, desvinculando-o
totalmente e de maneira sistemática de qualquer fato empírico,
impossibilitando assim, o desfrute de uma noção concreta e
significativa de justiça.
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2.2 A justiça para John Rawls
A teoria da justiça proposta por Rawls consiste basicamente no
princípio da liberdade e no princípio da equidade, este, também
denominado princípio da diferença. Com relação ao princípio da
liberdade há elevado apreço pelo tratamento igualitário aos indivíduos
de uma sociedade. Já o princípio da igualdade é visto tendo por base a
igualdade de oportunidades, de tal sorte que as diferenças sociais sejam
levadas em consideração no oferecimento de benefícios aos menos
favorecidos (RAWLS, 2002, p. 20-38).
Esses princípios somente são válidos perante os indivíduos de
um grupo social quando são aplicados sob o fulcro do “véu da
ignorância”:
Trata-se de um artifício, ou de uma apresentação, para usar
o seu termo, pelo qual se remete a uma situação hipotética
na qual as pessoas, ignorando sua posição e a posição dos
demais na sociedade, bem como seus talentos e habilidades
respectivos (o “véu da ignorância”), escolhem aqueles princípios mais equitativos, pelos quais, na pior das hipóteses,
não seriam prejudicados ou não sairiam perdendo. (ROUNET, 2010, p. 27)
Com base nessa assertiva, afirma-se que a teoria partiu de um
pressuposto contratualista, em que o indivíduo é analisado a partir de
seu estado natural, ou ainda, partindo da sua posição original.
Não obstante a teoria ter sido desenvolvida tendo por base
uma sociedade bem ordenada, em que os conceitos de democracia
estão definidos, ela poderá ser aplicada a outros tipos de sociedade.
Rawls (apud ROUNET, 2010, p. 64) classifica as sociedades em:
[...] democráticas liberais bem-ordenadas, sociedades hierárquicas decentes, sociedades imperfeitamente ordenadas e
sociedades fora da lei. Em Uma teoria da justiça, Rawls estudava primeiro as condições para uma sociedade bemordenada. Caso fosse bem-sucedido, estenderia então sua
análise para outros tipos de sociedade. Em seu penúltimo livro, Justiça como equidade – uma reformulação, Rawls tem a preocupação de mostrar que essa teoria serve para estudar as desigualdades da sociedade [...].
Fica claro o caráter social incutido no conceito de justiça, que
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tanto tratou de priorizar o coletivo quanto o individual, preocupandose ainda em atender tanto aos reclames sociais quanto aos interesses e
ideais políticos. Desse modo entende-se que a melhor forma de aplicar
essa teoria é primeiramente compreender suas fases:
[...] A teoria se distingue em duas fases: uma, a posição original, na qual os agentes, situados por trás de um “véu da
ignorância”, escolhem os princípios pelos quais vão governar a sociedade; vimos que esses princípios são o da liberdade igual para todos e o da diferença; a segunda fase é a da
deliberação, quando os agentes – ou a sociedade reunida –
decidem como por em prática esses princípios. Assim, cabe
a cada sociedade criar as condições para a implementação
dos dois princípios acima mencionados, ou outros, caso lhe
ocorram, a situação resultante sendo considerada, por definição, justa. (ROUNET, 2010, p. 64)
Tendo por base a teoria da justiça desenvolvida por Rawls,
para ter uma sociedade justa é preciso que cada indivíduo tenha
dignidade, além disso, é preciso existir e, para existir, o mesmo
indivíduo tem que ser enxergado pelo Estado que o governa.
2.3 A Justiça como liberdade para Imannuel Kant
Kant (apud ROUNET, 2010, p. 64), ao dizer que o direito “é o
conjunto das condições, por meio das quais o arbítrio de um pode
estar de acordo com o arbítrio de outro, segundo uma lei universal da
igualdade”, acabou delimitando o campo do justo do campo do
injusto.
Sendo assim, Kant8 (apud ROUNET, 2010, p. 64) deu ensejo à
ideia de que “uma ação é justa, quando, por meio dela, ou segundo sua
máxima, a liberdade do arbítrio de um pode continuar com a liberdade
de qualquer outro segundo uma lei universal”. Resultado disso foi um
dos fundamentos para o estado liberal.
A justiça é a liberdade. Com base nesta concepção, o fim último do direito é a liberdade (e entenda-se liberdade externa). A razão última pela qual os homens se reúnem em sociedade e construíram o Estado, é a de garantir a expressão
8
Emmanuel Kant. Doutrina do Direito. 2. ed. Trad. de Edson Bini. São Paulo:
Icone, 1993.
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máxima da própria personalidade, que não seria possível se
um conjunto de normas coercitivas não garantisse para cada
um uma esfera de liberdade, impedindo a violação por parte
dos outros. O ordenamento justo é somente aquele que
consegue fazer com que todos os consociados possam usufruir de uma esfera de liberdade tal que lhes seja consentido
desenvolver a própria personalidade segundo o talento peculiar de cada um. Aqui o direito é concebido como conjunto de limites às liberdades individuais, de maneira que cada
um tenha a segurança de não ser lesado na própria esfera da
leicedade até o momento em que também não lese a esfera
da leicedade dos outros. (BOBBIO, 1984, p. 71)
Pela teoria Kantiana o direito funciona como uma lei universal
que rege a atuação dos indivíduos, a qual não poderá invadir a esfera
de liberdade de cada indivíduo, pois é ela, direito único e originário.
2.4 Jungen Habermas
Habermas ao falar a respeito da justiça deixou claro que a
mesma deve ser moral e deverá partir de três premissas, sendo elas a
cultura, a personalidade e a sociedade.
A cultura dirige cada pessoa a interpretar o ambiente em que o
cerca para que possa conviver em sociedade. A personalidade é o
próprio conjunto dessas interpretações e, por sua vez, é a forma como
irão correlacionar essas atitudes dentro da comunidade.
(MENESCAL, 2007, p. 28)
Para Habermas essa convivência se exterioriza sob a forma da
comunicação, isso justifica ele ter proposto a teoria da ação
comunicativa e ainda, a substituição do conceito de individualismo,
para o conceito de grupo:
No mundo contemporâneo, as cosmovisões metafísicas ou
religiosas são incapazes de providenciar tal legitimidade. A
irrupção do individualismo, exacerbado pela Reforma Protestante, pelo capitalismo e o racionalismo trazido pela Revolução Científica e pelo humanismo, fundaram uma sociedade de cosmovisões heterogêneas, com concepções dispares do que seja uma “vida digna”, tanto no plano individual
quanto no coletivo. (CRUZ, 2006, p. 129)
Isto leva ao pensamento da justiça como algo utópico, pois
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partindo do princípio de que o homem tornou-se um ser individualista
em sua essência, por conta do contexto histórico e social ao qual está
inserido, se torna inviável a promoção do justo.
3 JUSTIÇA NA ACEPÇÃO CONTEMPORÂNEA
A justiça pode ser entendida como virtude, como hábito ou
ainda como força de vontade. Para Aristóteles, em seu livro, Ética a
Nicômaco, a justiça é uma virtude da ação de um indivíduo. Entretanto:
[...] Esta diversidade não significa que exista uma oposição
entre o sentido subjetivo e objetivo da justiça. Estamos na
presença de dois aspectos de uma mesma realidade. Justiça,
no sentido subjetivo, é a virtude pela qual damos a cada um
o que lhe é devido. No sentido objetivo, justiça aplica-se à
ordem social que garante a cada um o que lhe é devido. Trata-se de um caso de analogia. O que se disser da justiça como virtude aplicar-se-á, também, analogicamente, à ordem
social e às demais acepções do vocábulo. (MONTORO,
2009, p. 164)
A justiça ainda poderá ser associada a um sentido lato e a um
sentido estrito. No sentido lato, ou seja, em um sentido menos amplo,
justiça significa o “conjunto das virtudes sociais ou virtudes de relação
e convivência humana” (MONTORO, 2009, p. 165).
Já em sentido estrito, justiça “designa uma virtude como
objeto especial” (MONTORO, 2009, p. 164); significa dizer que
“onde se pratica justiça, respeita-se a vida, a liberdade, a igualdade de
oportunidade. Praticar justiça é praticar o bem nas relações sociais”
(NADER, 2011, p. 106). A justiça funciona basicamente indicando um
norte para as condutas humanas de modo que:
A presença, pois, da justiça como uma espécie de código de
ordem superior, cujo desrespeito ou violação produz resistência e cuja ausência conduz à desorientação e ao semsentido das regras de convivência, pode-nos levar a admiti-la
como um princípio doador de sentido para o universo jurídico. (FERRAZ JÚNIOR, 2010, p. 328)
Dessa forma, não há como falar em justiça sem elencar sua
importância para a efetivação do direito. Nesse sentido:
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A ideia de justiça faz parte da essência do Direito. Para que
ordem legítima seja legítima, é indisponível que seja a expressão da justiça. O Direito Positivo deve ser entendido
como um instrumento apto a proporcionar o devido equilíbrio nas relações sociais. A justiça se torna viva no Direito
quando deixa de ser apenas ideia e se incorpora às leis, dando-lhes sentido, e passa a ser efetivamente exercida na vida
social e praticada pelos tribunais. (NADER, 2011, p. 107)
Pode-se subtrair desses dizeres que a justiça não é algo que
deva ficar restrito ao direito, mas a todos os fatores da vida em
sociedade, de modo que a não existência da justiça tornaria essa
convivência impossível.
Para que a justiça saia do plano da utopia, também há a
necessidade de se analisar o comportamento de cada um para com o
todo, e do todo para com cada um. Segundo Reale (2002, p. 125):
Diante de certos casos, mister é que a justiça se ajuste à vida.
Este ajustar-se à vida, como momento do dinamismo da justiça, é que se chama de equidade, cujo conceito os romanos
inseriram na noção de Direito, dizendo: jus est arsaequiet boni.
É o principio da igualdade ajustada à especificidade do caso
que legitima as normas de equidade. [Grifo do autor]
Sendo assim, a equidade atua em um campo de flexibilidade,
mediando situações práticas da vida e garantindo a fidelidade para com
o princípio da igualdade. A partir disso não haverá igualdades
absolutas, mas haverá sim, uma relativização desse conceito.
Por isso, se a justiça, em seu aspecto formal, exige igualmente proporcional e exclui a desigualdade desproporcional como princípio estrutural sem o qual não há sentido no jogo
jurídico, em seu aspecto material denuncia-se um campo de
probabilidade que tornam a justiça o problema que dá também sentido ao jogo. Em suma, a justiça é ao mesmo tempo
o princípio racional do sentido do jogo jurídico e seu problema
significativo permanente. Ao criar normas, interpretá-las, fazê-las cumprir, a justiça (em seu aspecto material) é o problema que deve ser enfrentado, como num jogo de futebol, em
que o objetivo é atingir o gol. Como, porém, no futebol só
há jogo se houver onze jogadores de cada lado, um campo
conforme certas medidas de certo tamanho, assim também a
produção, a aplicação e a observância do direito estão delimitadas pelo princípio formal da igualdade proporcional a
partir do qual o jogo se identifica como jurídico: a justiça
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formal não pertence ao jogo, mas é o limite do jogo. [Grifo do
autor] (FERRAZ JÚNIOR, 2010, p. 332)
Não é tarefa das mais fáceis conceituar justiça, tampouco
promovê-la, mas é certo que, de tudo há que se fazer para que a
mesma seja alcançada e, ninguém melhor do que o próprio Estado sob
o crivo do poder legislativo, para começar o cumprimento desta
importante e essencial tarefa.
4 JUSTIÇA SOB A FORMA DISTRIBUTIVA
Inicialmente cabe esclarecer que a justiça distributiva se difere
da justiça comutativa uma vez que nesta, há uma priorização do
particular em detrimento do coletivo e, naquela, ocorre justamente o
contrário, há participação da coletividade tanto nos benefícios quanto
nas onerações advindas do Estado.
Ao falamos em ações sociais bem como em promoção do
bem-estar social e uma atuação estatal voltada à coletividade, a justiça
distributiva encontra um campo bastante vasto, pois é responsável por
“regular a aplicação dos recursos da coletividade às diversas regiões ou
setores da vida social, disciplinar a fixação dos impostos e sua
progressividade” (MONTORO, 2009, p. 216), dentre outras
responsabilidades, como fomentar a implementação de reformas nos
setores agrário, tributário, educacional, etc.
A distributividade consiste em analisar toda a sociedade de um
modo geral para conceder a cada um de seus membros aquilo que lhe
é devido, zelando pelo princípio da equidade que, nesse caso deverá
ser relativizado.
Vale lembrar que para o estudo da justiça distributiva,
pressupõem-se uma alteridade, ou seja, certo número de pessoas que
estejam vivendo numa determinada sociedade. Dessa forma:
[...] essas pessoas são o todo e a parte, a comunidade e os
particulares. A sociedade deve dar a cada um de seus membros aquilo que lhe é devido. A sociedade como termo a quo
ou devedora (sujeito passivo) e os particulares como termo
ad quem ou credores (sujeito ativo). (MONTORO, 2009, p.
216)
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Além da alteridade, há também outro ponto que fundamenta a
justiça distributiva, qual seja, o “devido”. Pelo devido, entende-se o
bem-comum compartilhável com todas as pessoas de uma
coletividade. Sendo assim:
Realmente, é da própria essência do bem comum que dele
participem os membros da comunidade, pois trata-se de um
“bem-comum” e não “próprio”. E esse é o dever fundamental da autoridade: distribuí-lo com justiça. Dever rigoroso, que confere aos particulares o direito de recorrer contra
os excessos ou abusos que lhes prejudiquem. (MONTORO,
2009, p. 226)
É certo que a justiça distributiva deverá observar e zelar pela
promoção da justa distribuição do bem-comum à coletividade, mas
nesse caso, surge uma grande dúvida na doutrina no que diz respeito à
distribuição dos encargos. A corrente minoritária acredita que a
distribuição na justiça distributiva deverá se dar apenas com relação
aos benefícios. O fundamento para tal assertiva diz que:
Sua razão, em síntese, é a seguinte: como justiça particular, a
distributiva tem por objeto o bem dos particulares, e no
conceito de bem não se podem incluir os ônus e encargos.
Consequentemente, cabe à justiça distributiva reger apenas a
repartição dos benefícios. (MONTORO, 2009, p. 230)
Já a corrente majoritária afirma que assim como os benefícios,
os ônus também deverão ser repartidos entre a coletividade e para
isso, levam em conta o objeto que está em discussão. Sendo assim:
A justiça distributiva tem por objeto, diretamente, a repartição dos bens sociais. E, só indiretamente, a dos encargos.
Ela distribui os encargos, enquanto essa repartição é, de certa forma, um bem para os membros da comunidade. Os encargos podem representar um bem para o particular, duplamente. Primeiro, porque, beneficiando a sociedade, de que
ele é parte, também o beneficia indiretamente. Segundo,
porque é um bem para o individuo que os encargos sejam
distribuídos “proporcionalmente” a suas possibilidades.
(MONTORO, 2009, p. 231)
Insta salientar ainda que complementarmente à alteridade e ao
dever, há também um terceiro requisito que, segundo Montoro (2009,
p. 232), é indispensável à promoção da justiça distributiva, que é a
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própria igualdade.
Portanto, a igualdade deverá ser relativizada e deverá preservar
a ideia de tratar aos desiguais segundo sua desigualdade. Fruto do
contexto histórico-social, a proporcionalidade na igualdade vai ser
aplicada de acordo com cada tipo de sociedade.
Ainda com base nos ensinamentos de Montoro (2009, p. 235),
o Estado tem um papel importantíssimo na efetivação da Justiça
distributiva, pois ele está presente na realização das funções jurídica,
social administrativa e, ainda, fiscal.
Tendo estudado primeiramente acerca da justiça distributiva,
nota-se a possibilidade de estabelecer um paralelo a fim de associá-la à
justiça fiscal, pois se entendeu que o Estado, o qual aplica a
distributividade à sua forma de governar, irá fazê-la também no
âmbito da tributação, atentando dessa forma para a efetivação da
justiça fiscal.
5 A JUSTIÇA FISCAL
Trata-se no presente tópico da ideia de justiça tributária como
forma de efetivação da justiça em sentido amplo. Pouco se teorizou
acerca do assunto, visto que a ciência do Direito Tributário somente se
desenvolveu após a Segunda Guerra Mundial, tendo sido estudada
mais por economistas do que por juristas. Como consequência:
A consagração da justiça fiscal como uma espécie autônoma, tomando-a em sentido estrito, se justifica pela ênfase
que se pretende dar aos aspectos ligados ao relacionamento
entre indivíduo e Estado arrecadador, e vice-versa. Contudo,
há que se considerar que, ainda que se reconheça que certas
normas ou certos princípios de justiça fiscal dizem respeito
especialmente às relações bilaterais entre o individuo e o Estado, toda forma de justiça é, precipuamente, justiça social,
na medida em que se aplica à vida em sociedade. (MENESCAL, 2007, p. 38)
No que tange à justiça fiscal e social, Klaus Tipke e Douglas
Yamashita foram dos primeiros estudiosos a dar enfoque à temática.
Segundo eles, o sistema tributário apresenta bastantes desigualdades de
modo que a “justiça em sua essência exige que os ricos contribuam
proporcionalmente mais que os pobres. O princípio da liberdade
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impõe limites à oneração fiscal do contribuinte” (TIPKE;
YAMASHITA9, apud MENESCAL, 2007, p. 28):
[Portanto] [...] cobrar impostos é atividade fundamental para
manter a sobrevivência do Estado, mas acreditamos ser possível tributar mais quem pode mais do que quem pode menos. “estados de direito são obrigados a criar um Direito
Tributário justo. Se, segundo suas próprias Constituições,
tanto o Brasil como a Alemanha são igualmente Estados
Sociais de Direito, cada qual não pode ser diferentemente
justo.”
Dessa tributação idealizada, se extrai a possibilidade de chegar
à almejada justiça social, a qual foi tão bem delineada por Aristóteles.
Nesse viés, Montoro (2009, p. 280) ainda segue dizendo:
Uma civilização material e intelectual adiantada será incapaz
de assegurar a “grata existência”, se não houver também ensinado os homens a equilibrarem os interesses individuais
com autolimitações impostas pelo bem dos outros, a respeitarem a dignidade dos seus semelhantes e a traçarem regras
adequadas de coexistência e cooperação nos vários planos
da vida [...].
Ocorre que o desequilíbrio vivido na atual sociedade
proveniente do Estado de direito advém de um desiquilíbrio préexistente que tem como precedente uma economia de mercado. Não
que necessariamente os indivíduos que tenham elevado poder
aquisitivo tenham que pagar maior número de impostos, mas que aos
impostos já existentes, sejam aplicadas alíquotas diferenciadas, ou seja,
progressivas, e não regressivas como ocorre atualmente no Brasil, e
que acabam por onerar sobremaneira as classes menos abastadas.
6 OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS TRIBUTÁRIOS COMO
BASILARES DA JUSTIÇA FISCAL
Conforme analisamos no presente trabalho, os princípios
constitucionais são de suma importância para o ordenamento jurídico
e, principalmente para o direito tributário, tanto para efetivar a
segurança nas relações tributárias quanto para promover, juntamente
9
TIPKE, Klaus; YAMASHITA, Douglas. Justiça fiscal e princípio da capacidade
contributiva. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 11.
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desta, a justiça fiscal. No que tange a isso, explicam Tipke e Yamashita
(2002, p. 20):
Direito justo pressupõe princípios (regras, critérios, padrões). Tais princípios são especialmente necessários quando direitos e obrigações, cargas e reivindicações devem ser
repartidos entre membros de uma comunidade. Repartição
sem princípios é repartição arbitrária. Isso é pacífico, tanto
na filosofia moral como na filosofia do Direito [...].
Portanto, acredita-se que para casos semelhantes deverá haver
medidas semelhantes, significa dizer que o princípio deverá ser
imparcial e deverá auxiliar o legislador desobrigando-o da impossível
missão de regular todos os casos concretos possíveis.
Sendo assim, podemos dizer que no caso do Direito
Tributário, também haverá justiça quando forem aplicados princípios
que atentam para a capacidade de contribuir sendo que, além disso, a
distribuição do produto dessa arrecadação deverá atender à população
mais necessitada e carente de serviços públicos. Tipke e Yamashita
(2002, p. 22) seguem dizendo que:
Na busca do princípio adequado à matéria deve ser também
questionado, considerando a finalidade do ramo do Direito,
qual dos diversos princípios possivelmente pertinentes melhor corresponde aos direitos fundamentais da Constituição,
qual é amplamente aceito, quais consequências favoráveis e
desfavoráveis tem um princípio, se este pode ser realizado
de modo isonômico na prática. Também pode ser útil examinar as consequências da transformação do princípio em
seu oposto. Se, por exemplo, fosse concedida a mais alta
subvenção àquele que dela menos necessita (inversão do
principio da necessidade), o resultado seria absurdo. Se assim se procede não se pode dizer que o resultado se baseia
em critérios subjetivos.
Afirma-se então, que um dos maiores fundamentos da justiça
fiscal é o respeito aos direitos dos contribuintes que por sua vez, são
representados pelos princípios constitucionais tributários.
Por fim, cabe ressaltar que a principiologia constitucionaltributária é apenas uma forma de zelar pela promoção da justiça fiscal.
Os princípios deverão ser utilizados como uma forma de guiar a
atuação do Estado e de informar os contribuintes através de uma
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linguagem clara, quais são os seus direitos frente ao polo ativo da
relação fiscal.
Embora exista uma grande gama de princípios, tanto dispostos
pela Constituição como pelo próprio Código Tributário Nacional, não
se reputa uma reavaliação dos mesmos, visto que o grande problema,
tendo por base sua análise, é verdadeiramente efetivá-los.
7 PRÁTICAS CONDUCENTES À JUSTIÇA FISCAL
Conforme acabamos de analisar, a atuação fiscal voltada ao
respeito e observação dos princípios constitucionais tributários são um
meio dentre tantos de promover a justiça fiscal. Neste tópico, se
examina alguns programas, ações e práticas que conduzem o Estado a
uma atuação que vise à concretização dessa Justiça.
7.1 Educação e transparência fiscal
Cabe salientar que o tributo é instrumento importantíssimo na
promoção do sustento do Estado e, por conseguinte, de melhorias nas
condições de vida da população. Por meio dele, o Estado ainda obtém
e promove o controle econômico e a diminuição das desigualdades
sociais.
Nesse sentido afirma-se que
o cidadão consciente da função social do tributo como forma de redistribuição da Renda Nacional e elemento de justiça social, é capaz de participar do processo de arrecadação,
aplicação e fiscalização do dinheiro público. (BRASIL,
2012a)
Ainda no que tange a isto, a educação fiscal constrói uma
consciência crítica voltada para o exercício da cidadania, pois tem
como objetivo “propiciar a participação do cidadão no funcionamento
e aperfeiçoamento dos instrumentos de controle social e fiscal do
Estado” (BRASIL, 2012a).
Para dar efetividade a essa ideia, a Secretaria da Receita Federal
do Brasil começou no início dos anos 70 a realizar ações de educação
fiscal. Dentre elas, implementou o programa “Contribuinte do
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Futuro”, a partir do qual se objetivou conscientizar a população da
importância do exercício da cidadania e do conhecimento da atuação
fiscal do Estado.
Atualmente, a Receita Federal participa do Programa Nacional de Educação Fiscal que visa a contribuir para a formação do cidadão participativo e tem por fundamento
conscientizar os cidadãos dos seus direitos e deveres. (BRASIL, 2012b)
Esse programa tem como objetivo: sensibilizar o cidadão para
a função social-econômica do tributo; levar conhecimento aos
mesmos acerca da administração pública; incentivar o
acompanhamento pela sociedade da aplicação dos recursos públicos;
criar condições para uma relação harmoniosa entre o Estado e o
cidadão. Ele abrange os Ministérios da Educação, a Receita Federal do
Brasil, o Secretariado do Tesouro Nacional, a Escola Superior de
Administração Fazendária, e Secretarias de Fazenda e Educação
estaduais.
De acordo com a portaria nº 413, de 31 de dezembro de 2002,
ficaram definidas as competências dos órgãos responsáveis pela
implementação do Programa Nacional de Educação Fiscal (PNEF).
O PNEF atua sobre três áreas específicas. No âmbito educacional engloba a educação formal e a educação informal
voltada para a sociedade em geral. A área fiscal e tributária
tem como objeto imediato o sistema tributário nacional envolvendo as instituições e servidores que atuam na arrecadação, tributação e fiscalização, assim como, quanto ao gasto
público, servidores, entidades e instituições que atuam na
gestão de recursos públicos. No que diz respeito à esfera social, estimula a participação popular, o controle democrático, o acompanhamento e intervenção do cidadão na elaboração e execução das políticas públicas. Já as instituições
gestoras do Programa atuam na gestão dos processos relacionados à implementação do PNEF. (BRASIL, 2012c)
Além da instauração desse programa, que é uma ação
extremamente significativa no âmbito do controle fiscal, existem
outras práticas que, igualmente, são conducentes à justiça fiscal, como
se vai demonstrar na próxima seção.
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7.2 Aplicação da seletividade e progressividade ao ICMS
Como ressaltado, os princípios constitucionais que versam
acerca da tributação bem como o incentivo à educação fiscal são
meios que conduzem à Justiça Fiscal. Juntamente a eles, elenca-se
outro meio igualmente eficaz.
Assim sendo, insta salientar que o ICMS é um imposto
cobrado sobre a circulação de mercadorias ou de serviços. Ao
levarmos em consideração o fator necessidade que circunda
determinadas mercadorias e serviços, observa-se que alguns deles são
perfeitamente dispensáveis, justamente porque assumem o caráter de
supérfluos ou secundários.
Nesse sentido, por meio do princípio da seletividade, que vem
demonstrado no artigo 155, §2º, inciso III, da Constituição Federal,
afirma-se que o ICMS poderá ser graduado de acordo com a
essencialidade dessas mercadorias e serviços.
O objetivo da seletividade é tributar indiretamente aquilo que
exceder aos gastos dos consumidores, ou seja, tributar aquilo que
exceder ou ultrapassar o entendido como consumo básico
indispensável. Com base nisso, os encargos do ICMS recairiam sobre
os consumidores finais destes produtos considerados supérfluos.
Nesse sentido:
Pode-se exemplificar o uso da seletividade como instrumento de intervenção do governo na economia, com as alíquotas de 25% sobre o valor da operação, para os produtos supérfluos, e outras de 17%, 12% ou 9%, para os produtos essenciais. No ICMS, o princípio da seletividade visa atingir
aos contribuintes finais ou contribuintes de fato, que, como
visto anteriormente, são os que suportam a carga econômica
do ICMS. Por esta razão, infere-se que quem adquire um
bem ou um serviço luxuoso possui grande capacidade econômica, devendo, pelo princípio da capacidade contributiva,
ser proporcionalmente mais tributado por meio do imposto
sobre o consumo, do que quem adquire um bem essencial
ou imprescindível. (MENESCAL, 2007, p. 145)
Também podemos elencar como meio de promoção da justiça
fiscal a aplicação da progressividade, que aumenta a carga tributária
conforme é aumentada a alíquota da base de cálculo. Aplica-se ao
IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano), ao IPVA (Imposto
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Sobre a Propriedade de Veículos Automotores), ao IR (Imposto de
Renda) e, de acordo com o Supremo Tribunal Federal, também
poderá ser aplicada a progressividade sobre as taxas.
É importante ressaltar que toda política que vise à promoção
da justiça social entenda-se fiscal deverá respeitar os direitos dos
contribuintes, os limites estabelecidos ao Estado quando da sua
atividade tributária bem como os impactos que a carga tributária
exerce sobre a economia brasileira, tanto no âmbito arrecadatório
quando no âmbito da promoção da redistribuição de riquezas.
Vale lembrar que, embora tímido, o judiciário também tem
apresentado atuação em prol da justiça fiscal, ainda assim, a sua função
deve se restringir apenas à fiscalização e não promoção da mesma,
pois, este, é dever do Estado, e por assim ser, espera-se que as
medidas à promoção de referida justiça sejam as mais claras,
transparentes e efetivas possíveis.
7.3 Reforma tributária a partir de ajustes nos tributos incidentes
sobre a propriedade e o consumo
Como sobejamente sabido, o Brasil é um dos países onde mais
se pagam impostos e, por mais contraditório que possa parecer, é
também um dos países que mais carecem de incentivos nas áreas
sociais. Atualmente, a carga tributária no Brasil representa 34% do PIB
nacional. Significa dizer que 34% de toda a riqueza produzida no
Brasil vão para os cofres públicos.
Segundo a Federação Nacional do Fisco (FENAFISCO, 2012,
p. 6), existem cinco maneiras pelas quais o Estado pode exercer a
atividade da tributação, sendo feitas através da cobrança de tributos
sobre o consumo, sobre a propriedade, sobre a renda, sobre a mão-deobra além da cobrança de taxas diversas sobre serviços.
Por sua vez, os tributos que têm por base as relações de
consumo são cobrados através de produtos consumidos pelas pessoas.
Essa tributação é feita de forma indireta, pois os valores referentes a
eles estão embutidos nos preços dos produtos, ou seja, todo aquele
indivíduo que consumir algo estará sendo tributado, o que representa
50% da carga tributária arrecadada pelo Fisco (FENAFISCO, 2012, p.
8).
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Grande é a oneração que sofre o consumidor final dos
produtos, pois “quanto mais o produto comprado tiver valores
agregados, isto é, por quanto mais fases, ou intermediários, passar até
ficar pronto para o consumo, maior será o valor dos tributos pagos
pelo comprador” (FENAFISCO, 2012, p. 9).
Já com relação à cobrança de tributos sobre a propriedade,
estes incidem sobre o patrimônio de um indivíduo. Diante de tantos
impostos instituídos sobre a propriedade tem-se a falsa impressão de
que são muitos, contudo a tributação sobre a propriedade corresponde
a um total de apenas 4% dos tributos arrecadados no Brasil
(FENAFISCO, 2012, p. 13).
Partindo de uma breve análise, poderia recair sobre o ITR uma
verdadeira reforma, pois o mesmo representa apenas 16% do PIB do
país, o que é relativamente ínfimo se levado em consideração a grande
concentração de terras existentes no país.
Por sua vez, tendo por base o IPTU, o mesmo representa
1,5% do total de tributos arrecadados, sendo que o número de
propriedades urbanas é exorbitantemente maior do que o número de
propriedades rurais. Isso deixa transparecer uma ideia de
desproporcionalidade e discrepância da tributação.
Já com base no IPVA, e de acordo com a cartilha da reforma
tributária da FENAFISCO, os veículos automotores comuns ou
populares são excessivamente tributados e praticamente nada se
tributa dos veículos de luxo, como por exemplo, iates, helicópteros,
jatinhos.
Significa dizer que uma frota equivalente há aproximadamente
15 milhões de veículos, consegue arrecadar um total maior de dinheiro
do que a própria cobrança de IPTU. Levando em consideração que a
maior parte dessa frota corresponde a carros populares, percebemos o
quão é excessiva a tributação sobre essa propriedade.
No tocante ao ITBI (Imposto Sobre Transmissão de Bens
Imóveis), tributo cobrado sobre a transmissão de bens imóveis é, 10
vezes menor do que a tributação que incide sobre alimentos, o que é
absurdo levando em conta que quem realiza tais transmissões
geralmente possuem elevado poder aquisitivo e exprimem
concretamente o poder aquisitivo. Desta forma deveria ser calculado
com observâncias à progressividade, ou seja, quanto mais valioso fosse
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o bem imóvel, maior o valor a ser cobrado, contrário do que é hoje,
com percentual além de baixo, único (FENAFISCO, 2012, p. 16).
O mesmo ocorre com relação ao ITCMD (Imposto de
Transmissão Causa Mortis e Doação), pois sendo tributo referente a
heranças, doações, etc., deveria possuir progressividade mais
acentuada. Ocorre que novamente as alíquotas são baixas e fixas,
favorecendo sobremaneira a concentração de renda.
Para concluir esta breve análise, inevitável aludir os impostos
sobre as grandes fortunas, famoso IGF, que, embora previsto na
Constituição Federal, nunca foi cobrado.
Dessa forma, diante do entendido, conclui-se que o grande
problema da carga tributária no Brasil não é necessariamente seu
volume, mas a sua arrecadação e distribuição, que, por hora favorece
ricos em detrimento de pobres e por sua vez, onera demasiadamente a
estes.
Como encerramento, afirma-se que aludida carga tributária
nacional deverá ser do tamanho do respectivo gasto nacional, cuja
elevada proporção se deve à dimensão colossal do país, mas necessário
se faz e com premente urgência que o ajuste da balança seja feito, sob
o risco do total descarte e afronta ao resguardado ao indivíduo como
ser-humano dotado de dignidade.
8 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como sabido, o Estado, no anseio de lhe custear os gastos,
transfere aos cidadãos aos quais governa o ônus de arcar com parte
deles. Essa tarefa ocorre por meio da tributação que se dá tanto no
âmbito federal, quanto estadual e ainda municipal.
Tendo em vista os estudos elaborados com base no presente
trabalho, conclui-se que a tributação, em especial no Brasil, se dá de
forma indiscriminada, tendo por base a arrecadação dos tributos
voltados à propriedade e ao consumo, recaindo desta forma, sobre a
parcela da sociedade que menos tem condições para arcar com tais
custos estatais.
Constatou-se ainda que a tributação utiliza-se da forma
regressiva, somando a isso o fato de as alíquotas dos tributos serem
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fixas, o que acaba aumentando sobremaneira o valor dos tributos. Isto
posto, acredita-se que a melhor maneira de desenvolver a tributação,
levando em consideração que ela tem que existir, principalmente face à
relevante dimensão do país, é cobrá-la com vistas à promoção da
redistribuição de renda e, com isso, atentando sempre para a
efetivação da dignidade da pessoa humana.
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UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013
A IMPOSSIBILIDADE DO REEXAME NECESSÁRIO DE
SENTENÇAS ILÍQUIDAS EM JUIZADOS ESPECIAIS
FEDERAIS E A SÚMULA 490 DO STJ
Tiago Tondinelli*
RESUMO
O art. 575 do Código de Processo Civil trata do Reexame Necessário
de sentenças de primeiro grau pelo tribunal, quando proferidas contra
a Fazenda Pública e, além disso, que sejam líquidas e com valor inferior a 60 salários mínimos. Há, no entanto, sentenças ilíquidas proferidas em Juizados Especiais Federais que, em vista da renúncia do excedente pelo autor, nunca poderão ir além dos 60 salários mínimos.
Lendo o artigo supracitado de forma literal, juízes de segundo grau de
jurisdição veem utilizando o reexame necessário para tais sentenças
que, virtualmente e por necessidade legal, estão abaixo dos 60 salários
mínimos. De fato, isto é uma eiva de inconstitucionalidade, principalmente diante da redação da Súmula 490 do STJ.
Palavras-chave: Reexame necessário. Justiça Especial. Sentenças.
ABSTRACT
There is an institute in Procedural Law called “reexame necessário”
whose principal goal is creating a possibility for reviewing the sentences from the judge by the Tribunals. However, only sentences concerning 60 salaries can be connected with these imperatives. In the
Special Federal Judiciary, this situation has been occurring a lot, but
even the sentences limited by the legal order of the Special Court –
simply for the absent of a specific value – have been determined by
this institute. In fact, this is a serious attack against the constitutional
*
Advogado; Doutor em Filosofia Medieval, Mestre em Letras e professor de Filosofia e de Processo Civil; coordenador do curso de pós-graduação da Faculdade
de Ensino Superior Dom Bosco, de Cornélio Procópio.
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principles, principally because of the Precedent 490 written by STJ.
Key words: Necessary reexamination. Special Federal Judiciary. Sentences.
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A IMPOSSIBILIDADE DO REEXAME NECESSÁRIO DE
SENTENÇAS ILÍQUIDAS EM JUIZADOS ESPECIAIS
FEDERAIS E A SÚMULA 490 DO STJ
Tiago Tondinelli
As ações contrárias à Fazenda Pública e, em especial, contra
suas Autarquias, são regidas por alguns princípios especiais que,
malgrado a natureza de discussão jurídica que lhes convêm, recebem
tratamento diferenciado pelo legislador pátrio.
É por isso que há a recomendação de um reexame necessário para
sentenças vinculadas a ações contra a Fazenda Pública, um “grau de
jurisdição revisional obrigatório”, em virtude do relevante papel que o
ente público tem na órbita constitucional e autárquico-federalista.
Insta destacar que esta revisão imperativa afasta-se de um
deslinde processual em que o ente público tenha, no ardor da disputatio
jurídica, perdido a demanda sentencial; evitar uma injustiça, frenando
um malefício ao interesse público, é o núcleo essencial do proposto no
artigo 475, inciso II, do Código Processual Civil, pátrio. É neste trecho
normativo que se pode encontrar a necessidade de uma confirmação
do tribunal para que uma sentença contrária ao ente público prevaleça,
gerando os efeitos justos aos autores das exordiais10.
No entanto, exclusive o embasamento legal na defesa do ente
público prevalecer no dispositivo processual, não se pode olvidar que
o Processo Civil eleva-se aos ditames constitucionais e, em especial, ao
princípio da dignidade da pessoa humana; corroborando-se no
universo previdenciário em pró do beneficiário-dependente, gerandolhe preferência, e presumindo sua necessidade veraz sob o paradigma
latino do in dubio pro misero. É neste aspecto que o artigo 475, inciso II,
10
Art. 475. Está sujeita ao duplo grau de jurisdição, não produzindo efeito senão
depois de confirmada pelo tribunal, a sentença: I. proferida contra a União, o Estado, o Distrito Federal, o Município, e as respectivas autarquias e fundações de
direito público (Redação dada pela Lei nº 10.352, de 26/12/2001).
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sofre ao frenar, cunhando uma excepcionalidade em seu parágrafo
segundo, quando comenta que, se o valor discutido sentencialmente,
mesmo gerador de obrigação fazendária, não superar 60 saláriosmínimos, o reexame não será obrigatório nem necessário. Por este artigo,
presumir-se-á uma situação normal de vitória sentencial com
materialidade recursal totalmente determinada à parte e com força de
coisa julgada provisória. Em outras palavras, havendo a sentença
judicial contrária à autarquia-ré, o reexame necessário será passível de
obrigatoriedade pelo tribunal se, e somente se, o valor certo não
ultrapassar o mínimo legalmente auferido. Cabe, neste ponto, frisar
que o valor mínimo leva em conta a concretização do princípio
constitucional do in dubio pro misero, no sentido de que, sendo o Direito
a ciência do verossímil, pairando na busca pelo mais provável, cabe às
autarquias estatais arcar, como partes perdedoras, com as ações cujo
valor máximo não acarrete quaisquer danos maiores aos seus
instrumentos monetário-institucionais. Assim, se o valor de 60 salários
mínimos é uma eventual perda irrisória para as autarquias estatais,
doutra monta, pode ser de grã prejuízo para um eventual autor, mero
necessitado, e portador de uma vantagem axiológica legalmente
sofisticada, em face da supremacia fazendária. A sentença, espaço do
mais provável, no nível inferior aos 60 salários mínimos, volta-se para
o beneficiário, negando a necessariedade de reexame meritocráticosubstancial, in malam partem.
O valor máximo, quando não ultrapassa os 60 salários
mínimos, impede o reexame de cunho material pelo tribunal, pois a
função do magistrado de segunda instância passará meramente a ser
um garantidor potencial dos direitos do mais desfavorecido que, aliás,
já adentrara na sua esfera de discussão, com vitória garantida por
sentença anterior.
Uma escusa a este frenamento poder-se-ia fundar no brocardo
“líquido”, qualificação essencial para o impedimento da revisão
meritocrático-substancial pelo tribunal, quando não haveria
possibilidade de reexame necessário somente em face de sentença
líquida menor que 60 salários mínimos:
Art. 475 § 2º. Não se aplica o disposto neste artigo sempre que
a condenação, ou o direito controvertido, for de valor certo não excedente a 60 (sessenta) salários mínimos [...].
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A interpretação deste trecho pode ser feita de duas formas: de
maneira restritiva ou contextual-ampliativa. Pela primeira espécie
(restritiva), restringe-se a exceção de reexame necessário apenas
quando há sentença líquida ou valor certo propriamente dito, um valor
fixado pela sentença e que se encontre em patamar inferior aos 60
salários mínimos. Pelo segundo tipo (ampliativa), amplia-se a noção de
“valor certo” para as situações em que a iliquidez presente represente
uma concreção virtual futura máxima, necessariamente inferior ao
mínimo legal estipulado. Havendo uma sentença, no presente, ilíquida,
mas que, quando líquida11, ficará inferior ao máximo legal permitido,
então, pelo respeito à celeridade processual e ao direito do
beneficiário, deve se submeter à impossibilidade de releitura
meritocrática pelo Tribunal, como se líquida já o fosse. Este benefício,
portanto, é direito adquirido pela parte; representa, ademais, a
segurança da coisa julgada material que não fora posta em xeque por
qualquer recurso da autarquia-ré, e cuja rescisão posterior em outro
grau de jurisdição fere o comungado constitucionalmente pelo artigo
5º, inciso XXXVI da Carta Magna.
Se a coisa julgada é resguardada, diante da força normativa,
muito menos o deve ser diante de decisões de trato jurisdicional que a
transijam. Então, apesar de existirem sentenças proferidas e
concretamente ilíquidas, havendo hipoteticamente sua reforma
integral, conforme o pedido na apelação, o valor final ainda seria
claramente inferior aos sessenta salários mínimos, descabendo,
portanto, o uso do reexame necessário.
A iliquidez de uma sentença proferida em Juizados Especiais
11
Este é o entendimento de vários julgadores no presente status quaestionis: “Acórdão: o TRF da 4ª Região não conheceu da remessa oficial, pois ‘o valor da condenação, considerando as parcelas vencidas até a data da prolação da sentença, ficaria abaixo de sessenta salários mínimos’, e negou provimento ao recurso de apelação interposto pelo embargante, nos termos da seguinte ementa (fls. 168/171):
PREVIDENCIÁRIO. CONCESSÃO DE APOSENTADORIA POR INVALIDEZ. INCAPACIDADE LABORATIVA DEMONSTRADA. CONDIÇÕES
PESSOAIS. SENTENÇA MANTIDA. 1. De manter-se a sentença que concedeu
aposentadoria por invalidez à autora, eis que amparada no conjunto probatório
dos autos, em especial na prova pericial produzida. 2. Hipótese em que a prova
pericial produzida diagnosticou limitação para o exercício de esforços excessivos
que em conjunto com suas condições pessoais, tais como a idade avançada, o fato
de ser analfabeta, bem como o de sempre ter desempenhado suas atividades no
meio rural, levam a concluir que qualquer tentativa de reabilitação para outra atividade restaria frustrada [...].”
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Federais está restrita aos sessenta salários mínimos, quando oriunda de
expressa renúncia pela parte12. Cabe ao legislador, em conformidade
com a situação concreta e com espírito da lei, acatar a interpretação
mais conveniente que, incidenter tantum, respeite o projeto
constitucional referente à teleologia previdenciária propriamente dita.
Isto, de fato, representa uma liquidez virtual que a exporta para o
espaço da exceção de reexame necessário de trato meritocrático,
coroando a celeridade e o princípio in dubio pro misero.
Contrariando, entretanto, essa leitura lógica apresentada, o
Superior Tribunal de Justiça criou a famigerada Súmula 490: “A
dispensa de reexame necessário, quando o valor da condenação ou do
direito controvertido for inferior a 60 salários mínimos, não se aplica a
sentenças ilíquidas”.
Conforme o que será abaixo demonstrado com mais empenho,
tal escrito do STJ é contrário ao bom senso jurídico, bem como ao
sistema lógico de análise do processo, em face da segurança jurídica da
coisa julgada. Não cabendo, portanto, um reexame material pela
hipótese contemplada do artigo 475 do Código de Processo Civil, uma
tentativa de discutir a materialidade sentencial aduzida só poderia ser
feita com a utilização do chamado efeito translativo sentencial. Cabe,
então, um breve relato deste instituto, presente, ademais, em outras
legislações alienígenas e que tem sua presença no ambiente contextual
pátrio convalidado pela lei e pela respectiva jurisprudência.
A Teoria dos Recursos constitui um dos capítulos de maior
importância e influência no âmbito do Processo Civil pátrio porque é
ela que tolhe um coágulo processual na busca pelo justo, dando
potencialidade para a reordenação plena de sentenças ou para a
suplementação reformatória. Havendo uma sentença, há coisa julgada
gerando efeitos, fatos jurídico-processuais que podem ter respaldos
concretos ou não entre as partes.
O recurso é uma espécie de impugnação do que fora decidido,
sendo ornamento do justo, limitado por um instrumento volitivo
12
Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais no âmbito da Justiça Federal: Art.
3º Compete ao Juizado Especial Federal Cível processar, conciliar e julgar causas
de competência da Justiça Federal até o valor de sessenta salários mínimos, bem
como executar as suas sentenças. [...] § 2º Quando a pretensão versar sobre obrigações vincendas, para fins de competência do Juizado Especial, a soma de doze
parcelas não poderá exceder o valor referido no art. 3º, caput.
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(discute-se o que fora devidamente impugnado) e pelo garantismo
constitucional da unilateralidade in bonam partem. O instrumento
volitivo é a qualidade do recurso, olvidado pelo princípio de que cabe
ao juízo que recebera a discussão decidir especificamente apenas
acerca do que nele fora suscitado, sendo-lhe incoerente e legalmente
indevida uma discussão extensiva: o que não fora impugnado pela
parte, em regra, não pode ser mais discutido, dando-se, então, a
preclusão, a consideração de coisa julgada e a força completa entre as
partes, conforme o imperativo resolvido sentencialmente.
O garantismo constitucional da unilateralidade in bonam partem
é uma variação da máxima latina processual conhecida como non
reformatio in peius. Por esta, o juízo recursal não pode gerar sentença que
piore a situação já decida anteriormente se apenas houver, nas raias do
recurso, a manifestação de uma das partes13. Na monta previdenciária,
por exemplo, este princípio é mais vigente e claro, quando a autarquia
não se manifesta acerca do pedido revisional, simplesmente aceitando
o que já fora decidido e dando ganho de causa para o autor.
Se houve recurso do autor em relação à parte da sentença que
não lhe parecia correta, não se dando manifestação contrária do réu, é
certo que o dever do juízo recursal é somente o de discutir o que fora
tratado pelo autor, sendo-lhe descabida e melindrável qualquer
mutabilidade acerca do já decidido, e não impugnado, e que, pelo teor do
art. 473 do Código de Processo Civil, qualifica-se como coisa julgada.
Este é o caráter “horizontal” das sentenças, mas que, como regra geral,
detém, é certo, exceções mitigáveis pelo espírito constitucional. Não
obstante esta impossibilidade discursiva em face da preclusão material,
há duas exceções processuais que permitem uma intervenção de
mérito do Tribunal, mesmo inexistindo um suscitar claro e direto pelo
autor do recurso. Estas exceções enquadram-se no chamado “efeito
translativo” sentencial que, de ordem vertical, pelo invólucro
hierárquico de resguardo da Ordem Constitucional, dão possibilidade
para a ação do Tribunal, quando ocorrerem eivas de ordem pública ou
questões suscitadas, e não decididas desde que relacionadas ao capítulo
impugnado no recurso.
Quanto à Ordem Pública, o dispositivo processual refere-se
13
Art. 474. Passada em julgado a sentença de mérito, reputar-se-ão deduzidas e repelidas todas as alegações e defesas, que a parte poderia opor assim ao acolhimento como à rejeição do pedido.
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aos elementos necessários para a formação do processo como as
condições da ação e do processo, bem como quaisquer elementos da
órbita constitucional que envolvam o devido processo legal.
As questões não suscitadas na sentença, mas impugnadas no
recurso, são objeto de decisão translativa, na medida em que cabe ao
tribunal assegurar uma situação mais justa para as partes. Sobre esta
segunda situação, vale uma análise acurada do artigo 515 em seu
parágrafo primeiro:
Art. 515. A apelação devolverá ao tribunal o conhecimento da
matéria impugnada. § 1º Serão, porém, objeto de apreciação e
julgamento pelo tribunal todas as questões suscitadas e discutidas
no processo ainda que a sentença não as tenha julgado por inteiro.
Pela leitura deste dispositivo, fica claro que pode haver análise
do Tribunal para a matéria impugnada no recurso, bem como para as questões
suscitadas e discutidas no processo, ainda que a sentença não as tenha julgado.
Contudo, esta possibilidade não exonera a parte de, para haver o
reexame no Tribunal, propô-las no recurso. Em outras palavras, as
questões do processo podem não ter sido julgadas na sentença, mas, para
serem discutidas pelo tribunal, devem ser propostas no recurso. Mutatis mutandis, o
tribunal não pode reanalisar uma questão já discutida em sentença, mas não
suscitada no recurso.
Modificar o que fora decidido sentencialmente em nível
meritocrático, e que não fora suscitado no recurso, é justamente se
opor aos dois princípios retro transcritos: primeiro, modifica-se a
sentença meritocrática para pior e, in simultaneus, discute-se algo que
não fora suscitado por qualquer das partes, sendo-lhes, então, coisa
julgada com matéria preclusa.
Se o juiz de segunda instância julgar matéria já preclusa, seus
argumentos serão eivados pela inconstitucionalidade formal e, assim
procedendo, estará o magistrado agindo como se fosse o réu, e não o
julgador. Isto ocorre porque ele deixou de simplesmente apreciar a lide
suscitada, passando a contestar com argumentos de ordem material,
em momento inoportuno, imaginando um recurso que nunca fora
suscitado.
A Carta Magna, em seu artigo 5º, nos notáveis incisos LIV e
LV, coroa a defesa dos pressupostos fundamentais do processo, a
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saber: o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa com
seus recursos e meios inerentes. O processo legal é devido na medida
em que as ações dos envolvidos, das partes e do julgador seguem o
caminho instrumental dado pelas corretas regras procedimentais,
direcionando as ações, sob o véu da segurança e dos dispositivos com
precaução prévia. Quando as costas são viradas para o correto
procedimento processual ele é abandonado, tomando seu lugar um
processo minguado, refratário da insipidez e da justiça concreta que
lhe cabe.
O processo desdobra-se em várias subespécies que se
estabelecem nos procedimentos concatenados do organismo
processual
constitucional;
dois
destes
princípios
são
intercomplementares, a saber: duplo grau de jurisdição e o princípio da
non reformatio in peius. Pelo primeiro, o devido processo legal reserva à
parte a possibilidade de ter reexaminada a sentença que lhe imputou
determinado dever; pelo segundo, há a garantia de que afirmativa
sentencial não suscitada em recurso por quaisquer partes não pode
sofrer modificação. Em suma, ele se consubstancia na garantia da
parte de ver o que lhe fora positivo e não impugnado em recurso,
como precluso e, in simultaneus, de poder rediscutir o que não lhe
convinha do imperativo sentencial por outro órgão ad quem.
O Processo Civil contemporâneo não pode ser mais
entendido, como outrora o fora, como se correspondesse a um mero
instrumento concretizador dos ditames do direito material; ao
contrário, a capa adjetiva do processo fora trocada pela função
constitucional direta que lhe convém. Este ventilar neoconstitucional
ou “neoprocessual” dá ao Processo Civil a função matizadora da
Constituição Federal, no deslinde das lides e, acima de tudo, influencia
todos os seus principais institutos direta ou reflexamente.
De certo, a questão do reexame necessário é um dos institutos
processuais que mais sofre influência da Carta Magna, devendo, na sua
práxis, ser interpretado conforme os objetivos maiores da constituição
pátria: o respeito ao devido processo legal e à dignidade da pessoa
humana.
Formalmente, há, como exposto no imperativo do Processo
Civil, um limite quantitativo para a utilização do reexame necessário,
nas causas em que a Fazenda Pública vem a reboque, quando lhe cabe
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uma derrota, durante uma determinada discussão, finalizada por
sentença em primeiro grau de jurisdição e em Juizados Especiais
Federais.
O limite matemático (valor mínimo para a propositura do
reexame) funda-se no interesse material da Fazenda Pública de
recorrer, sendo lhe mais vantajoso o engajamento final – e pagamento
do proposto em sentença monocrática – do que a morosidade de uma
continuidade posterior no discurso jurídico. Mas este valor deve ser
exato, concreto e certo – adjetivos, aliás, que se unificam no conceito
jurídico de “sentença líquida”. Neste lema, sendo a sentença líquida e
menor do que 60 salários-mínimos, o interesse de recorrer da Fazenda,
ainda que eventualmente existente, não pode ser substituído pelo
reexame necessário, porque o juiz de segundo grau não está obrigado a
reanalisar o já decidido em sentença de tão pouca monta diante do
gigante leviatã fazendário. Por este raciocínio, é óbvio que inexiste
ameaça de quaisquer malefícios irreversíveis a este último.
A noção de “valor exato, concreto e certo” não pode ser
reduzida à sentença “simplesmente” líquida. Uma decisão que,
inobstante ilíquida, se ‘líquida o fosse” permaneceria com valor
inferior (necessariamente) ao mínimo próprio do reexame necessário,
deve ser peia a este instituto, dando prazo necessário para eventual
apelação Fazendária – por meio do recurso inominado – sob a pena de
uma vantagem indevida e imoral. Como visto, tal problema ocorre nos
Juizados Especiais Federais em que há a possibilidade da parte autora
renunciar a valor excedente, ficando, necessariamente, presa a uma
sentença posterior aquém do limite de aplicação obrigatória do
reexame necessário. Esta “certeza” de um máximo necessário gerador
de um valor (ainda que, no presente, virtual) aquém do estipulado para
o reexame necessário mostra o espírito constitucional derramado
sobre o Processo Civil, interpretando o artigo 475. Há a situação de
que, apesar do artigo em xeque se referir ao valor de 60 salários
mínimos confirmados em “sentença líquida”, é certo que esta
“liquidez” não é somente o simplesmente líquido, mas, também, o
virtualmente líquido. A Constituição “tem força normativa” sobre o
artigo, obrigando a extensão de seu sentido, tanto para sentenças que
são concretas e presentemente inferiores ao valor estipulado
(simplesmente líquidas), quanto para outras que, se líquidas fossem,
ficariam abaixo do valor apresentado (virtualmente líquidas).
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Uma leitura reducionista que interprete o vocábulo “líquida” somente como “contrário à ilíquida” - é de uma feroz rusticidade,
própria de uma hermenêutica jurídica capenga e cega. Sentenças que,
desde o momento em que são proferidas, detenham valor objetivo e
certo são simplesmente líquidas, e se opõem a outras que não
apresentam quaisquer índices quantitativos (sentenças ilíquidas como
as de dano moral, por exemplo, em que cabe totalmente ao juiz o
sopeso final do seu valor). No entanto, outras sentenças são
presentemente ilíquidas, mas virtualmente líquidas, pois, ao serem
incluídas em um processo no qual houve a renúncia expressa do valor
máximo para adequação de competência, nunca poderão ir além do
máximo legalmente imposto. O magistrado, em sede de reexame
necessário, não pode fechar os olhos para esta distinção lógica e cabal,
regendo as relações jurídicas.
Certamente, o texto da Súmula 490 corresponde a um atentado
a estudos concretos e justos acerca da noção de coisa julgada, bem
como da própria segurança e boa-fé processuais. Esta súmula coroa a
tétrica realidade de que os tribunais superiores pátrios atuam como
“tribunais legislativos”, na medida em que, sob a escusa de tratar de
interpretações das leis vigentes, criam, de fato, exigências normativas
como se legislativos fossem.
REFERÊNCIAS
SANTOS, Mario Ferreira dos. Lógica e Dialética. São Paulo: Logos,
1965. 3 v.
DIDIER JÚNIOR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Salvador: Juspodium, 2011. v. 2.
MARINONI, L. Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Código de Processo Civil Comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012.
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O DIREITO À EDUCAÇÃO EM CONSONÂNCIA COM O PRINCÍPIO
DA DIGNIDADE HUMANA
Tânia Maria Zanetti*
RESUMO
Este artigo tem como escopo analisar o direito que toda pessoa tem à
educação como um dos princípios norteadores de garantias fundamentais das condições dignas de existência do ser humano. A dignidade da
pessoa em si é um atributo de todo ser humano. Dessa forma, o direito à educação, como direito fundamental do homem, deve ser analisado em harmonia com o princípio da dignidade da pessoa. Por via da
Educação, absorvendo conhecimentos, o homem pode viver plenamente todos os direitos essenciais e fundamentais, conseguindo, por
meio da consolidação básica de uma infraestrutura obtida, evoluir, melhorando, assim, sua qualidade de vida e preservando, em um todo,
sua dignidade.
Palavras-chave: Direito à educação. Dignidade humana. Desenvolvimento do ser humano.
ABSTRACT
This article aims to analyze the right that each person has to education
as one of the guiding principles of the fundamental guarantees of decent human existence. The dignity of a person in itself is an attribute
of every human being. Thus, the right to education as one of the fundamental rights of man must be analyzed in accordance with the principle of human dignity. Through Education, absorbing knowledge,
man can live fully all the essential and fundamental rights, achieving,
by consolidating the basic infrastructure obtained, evolve, thus improving his quality of life and preserving his dignity as a complete
*
Graduanda do curso de Direito (Faculdade do Norte Pioneiro – FANORPI/UNIESP).
UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013
whole.
Key words: Right to education. Human dignity. Human development.
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O DIREITO À EDUCAÇÃO EM CONSONÂNCIA COM O PRINCÍPIO
DA DIGNIDADE HUMANA
Tânia Maria Zanetti
SUMARIO: 1 Introdução. 2 A relação entre o direito à educação e o princípio da dignidade. 2.1 O entendimento internacional do direito à educação. 3 O direito à educação, um
bem necessário. 4 A responsabilidade do Estado. 5 Considerações finais.
1 INTRODUÇÃO
A educação é o embasamento indispensável na formação do
ser humano. É um dever da família e do Estado inspirada nos
princípios de liberdade, dignidade e nos ideais de solidariedade
humana, tendo por finalidade o pleno desenvolvimento do educando,
o seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o
trabalho. Na concepção de Paulo Freire (1996, p. 22), “[...] ensinar não
é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua
própria produção ou sua construção”.
O acesso à Educação deve ser visto como condição para a
realização dos outros direitos, o que evidencia que deve a educação
capacitar o ser humano a cumprir um papel favorável numa sociedade
livre, gerar compreensão, tolerância e amizade entre todos os seres
humanos, bem como constituição e conservação dos outros direitos
econômicos, sociais e culturais. Assim, para que cada ser humano seja
considerado e respeitado como tal, é fundamental que possua uma
vida digna, sendo imprescindível a aplicação do princípio da dignidade
da pessoa no âmbito educacional para que o ser humano não seja
transformado em mero objeto do Estado, pois o Estado existe em
função do homem e não o homem em função do Estado.
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2 A RELAÇÃO ENTRE O DIREITO À EDUCAÇÃO E O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE
O princípio da dignidade da pessoa humana é um dos mais
importantes do Estado Democrático de Direito, até porque é dele que
decorrerem todos os outros direitos. Para que o ser humano possa
desenvolver suas potencialidades em igualdade e dignidade, ele precisa
de saúde adequada, alimentação, educação, moradia. Esse conjunto de
necessidades e aptidões nada mais é que o conteúdo dos direitos
humanos, como princípios e direitos fundamentais na Constituição
Brasileira.
A educação está intensamente ligada ao princípio da dignidade
humana, pois pelo conhecimento adquirido via educação, o ser
humano, possuirá as condições mínimas de sustento físico próprio,
bem como condições para que possa participar da vida social de seu
Estado, relacionando-se com pessoas que estão ao seu redor e que
fazem parte da sociedade na qual vive. Essas condições mínimas são
essenciais para que o ser humano possa viver dignamente.
Assim, Celso de Mello Filho (1986, p. 326) destaca: “O acesso
à educação é uma das formas de realização concreta do ideal
democrático”.
Desse modo, para conquistar a dignidade, o cidadão precisa
participar, estar incluso na sociedade, dentro dos padrões
fundamentais para suprir suas necessidades, ter cidadania, ter seus
direitos preservados. Nesse sentido, a professora Maria Victoria
Benevides (2013) expõe que:
A Educação em Direitos Humanos é essencialmente a formação de uma cultura de respeito à dignidade humana através da promoção e da vivência dos valores da liberdade, da
justiça, da igualdade, da solidariedade, da cooperação, da tolerância e da paz. Portanto, a formação desta cultura significa criar, influenciar, compartilhar e consolidar mentalidades,
costumes, atitudes, hábitos e comportamentos que decorrem, todos, daqueles valores essenciais citados – os quais
devem se transformar em práticas.
Nas palavras de Maria Del Mar Rubio Horta (2003, p. 128):
“O sentido de uma educação em valores deve ser a instauração de uma
nova cultura, cujo centro seja o ser humano e sua dignidade”.
UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013
Nesses contextos, ratifica-se que o direito à educação se faz
indispensável como instrumento de afirmação da dignidade da pessoa
humana, pois educar implica na evolução e transformação da própria pessoa.
O processo educacional possibilita contínuo aperfeiçoamento do
indivíduo e da sociedade a que pertence. Por isso, atualmente,
aconselha-se a continuação da educação ao longo de toda a vida.
2.1 O entendimento internacional do direito à educação
Nos tempos atuais, a Educação é entendida como um direito
humano internacionalmente reconhecido e, assegurado em vários
instrumentos jurídicos, sendo apontado tanto em princípios universais
como no ordenamento nacional e também na ordem internacional.
Nesse entendimento, o artigo 13 do Pacto Internacional dos Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais (ORGANIZATION OF
AMERICAN STATES, 2013) afirma que:
Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito
de toda pessoa à educação. Concordam em que a educação
deverá visar o pleno desenvolvimento da personalidade humana e do sentido de sua dignidade e fortalecer o respeito
pelos direitos humanos e liberdades fundamentais. Concordam ainda em que a educação deverá capacitar todas as pessoas a participar efetivamente de uma sociedade livre, favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as
nações e entre todos os grupos raciais, étnicos ou religiosos
e promover as atividades das Nações Unidas em prol da
manutenção da paz.
Os Estados Partes, nesse Pacto, reconhecem e valorizam o
direito de toda pessoa à educação, concordam que a educação deve
visar ao pleno desenvolvimento da personalidade humana e do sentido
da sua dignidade, reforçando o respeito pelos direitos do homem e das
liberdades fundamentais.
Está exposto na Declaração de direitos Humanos (UNIC RIO
DE JANEIRO, 2013) da ONU, no Artigo 26º:
1. Todo ser humano tem direito à instrução. A instrução será
gratuita, pelo menos nos graus elementares e fundamentais. A
instrução elementar será obrigatória. A instrução técnicoprofissional será acessível a todos, bem como a instrução superior,
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esta baseada no mérito.
2. A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos
direitos humanos e pelas liberdades fundamentais. A instrução
promoverá a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas
as nações e grupos raciais ou religiosos, e coadjuvará as atividades
das Nações Unidas em prol da manutenção da paz.
Assim sendo, é obrigação do estado oferecer ao cidadão, o
estudo de forma gratuita. A educação deve ser de qualidade para
melhor aproveitamento e absorvimento de conhecimentos para que o
educando possa se promover no preparo do exercício da cidadania e
sua qualificação para o trabalho.
É nesse sentido que se pode observar a importância do
conhecimento e da educação para o desenvolvimento do ser humano
com dignidade. Para que ocorra a evolução da pessoa, é necessário
existir a oportunidade de usufruir uma vida mais harmoniosa em
sociedade, participando do trabalho, sustento familiar e lazer, entre
outros, tendo acesso a todos os direitos sociais e fundamentais,
conformados, sempre, ao princípio da dignidade. De tudo deverá advir
o reconhecimento humano e social e, principalmente, a consciência de
saber que realmente se tem direitos e deveres em sociedade.
Explicou Augusto de Oliveira Santos (2011, p. 29):
A dignidade da pessoa humana é a qualidade intrínseca e
distinta reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado
e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo
de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa
tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante ou
desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar
e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os
demais seres humanos, mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida.
Segundo Marcelo Novelino Camargo (2007, p. 135):
A dignidade da pessoa humana, em si não é um direito fundamental, mas sim um atributo a todo ser humano. Dessa
forma, o direito à educação, em quanto direito fundamental
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do homem deve ser analisado em consonância com o principio da dignidade da pessoa humana.
Nesse contexto, o que se pode notar é que a ausência da
educação impossibilita ao ser humano evoluir suas próprias
potencialidades, ficando como um projeto descontínuo, em razão da
falta dos meios indispensáveis à sua realização, ou seja, o
conhecimento adquirido pela educação. Fica assim compreendido que,
quando o ser humano não consegue exercer o mínimo necessário para
sua sobrevivência com decência, isso fere sua dignidade, pois a pessoa
não é um projeto qualquer, mas um ser humano deve ser tratado e
respeitado como tal, na sua vida profissional e social. Hobbes (1993, p.
281-2) considerava a educação como elemento essencial na formação
do homem para a vida em sociedade.
A educação ocupa papel fundamental no âmbito dos direitos
humanos, uma vez que é imprescindível ao desenvolvimento e ao
exercício dos demais direitos, como discutido. É instrumento
fundamental, por meio do qual adultos e crianças marginalizados
econômica e socialmente podem emancipar-se da pobreza e obter
recursos necessários à sua plena participação no meio social.
3 O DIREITO À EDUCAÇÃO, UM BEM NECESSÁRIO
O direito à Educação identifica-se como direito fundamental
necessário a todos os cidadãos brasileiros amparados pela Constituição
Federal. É um direito humano que ocupa lugar de destaque no rol das
prerrogativas fundamentais, sendo indispensável para o exercício da
cidadania de todos os brasileiros. Entre todos os direitos humanos, o
direito à educação é imprescindível ao cidadão, pois educação é
processo consecutivo de informação e desenvolvimento físico e
psíquico, não só para vivência, mas também para coexistência.
O conceito de educação, conforme Celso Mello Filho (1986, p.
533) ensina:
É mais compreensivo e abrangente que o da mera instrução.
A educação objetiva propiciar a formação necessária ao desenvolvimento das aptidões, das potencialidades e da personalidade do educando. O processo educacional tem por meta: (a) qualificar o educando para o trabalho; e (b) prepará-lo
para o exercício consciente da cidadania. O acesso à educaUNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013
ção é uma das formas de realização concreta do ideal democrático
Percebe-se que, dentre os méritos da educação, destaca-se a
formação do sujeito autônomo, pois somente ela é capaz de abrir-lhe
os olhos para dimensões da realidade, inacessível por outros meios. A
Constituição Federal, em seu art. 6º, consagra a educação como um
direito social, tendo por desígnio criar condições para que o ser
humano se desenvolva, adquirindo, assim, o mínimo necessário para
viver em sociedade. Veja-se:
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o
trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a
proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (VADE MECUM SARAIVA, 2011, p. 13)
A educação compõe direito fundamental a todos,
independente de raça, cor, religião, sendo dever do Estado garantir o
acesso a ela, pois esta é de suma importância na vida do ser humano.
Representa o início da busca para uma melhor qualidade de vida,
garantindo a dignidade da pessoa num futuro melhor, fator que
possibilita a formação da sociedade.
A Constituição Federal, em seu artigo 205 expõe:
A educação, direito de todos e dever do Estado e da família,
será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu
preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para
o trabalho. (VADE MECUM SARAIVA, 2011, p. 74)
O artigo mencionado enfatiza os objetivos da educação, dando
destaque à formação e desenvolvimento da pessoa, à sua preparação
para o trabalho e à sua essencial formação como cidadão. Contudo,
um dos principais objetivos da educação é formar pessoas para a
liberdade, que vem pelo conhecimento, pela possibilidade de escolhas,
de formar para a cidadania, para a plenitude dos direitos e, acima de
tudo, para a dignidade da pessoa, princípio essencial do Estado
brasileiro, conforme estabelece o art.1º da Constituição.
Importante ressaltar que somente o procedimento educacional
pode possibilitar o mais amplo desempenho das faculdades físicas e
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psíquicas de cada indivíduo, sendo capaz de trazer-lhe o
autoconhecimento, bem como a noção do entorno em que vive e das
demais pessoas com quem convive. Contudo, a ausência da educação
impossibilita o ser humano de evoluir desenvolvendo suas próprias
potencialidades, permanecendo como projeto interrompido
prematuramente, consequente à falta de meios necessários à sua
realização. Isso é profundamente lamentável e vergonhoso para a
sociedade, porque não se trata de um projeto qualquer, mas de um
projeto de vida do ser humano, cuja dignidade resta profundamente
ferida quando se nega à pessoa a possibilidade de desenvolver-se
como tal, por meio da educação.
A Constituição Federal, em seu artigo 6º, consagra a Educação
como um direito social. Sendo um direito social, tem por objetivo criar
condições para que a pessoa se desenvolva, para que o ser humano
adquira o mínimo necessário para viver em sociedade, destinado,
sobretudo, às pessoas mais carentes e necessitadas.
Para Paulo Freire (1996, p. 131-7), basta o trabalho
educacional e teremos o que queremos uma Educação verdadeira que
dê conta da mudança da realidade. Dessa forma a Educação, não é
uma doação ou imposição, mas uma restituição dos conteúdos
coletados na própria coletividade, que depois de sistematizados e
organizados, são devolvidos aos indivíduos na busca de uma
construção de consciências críticas frente ao mundo, assim sendo, o
homem, um ser inacabado, toma consciência do seu inacabamento e
busca, através da Educação, realizar mais plenamente sua pessoalidade.
A Lei de Diretrizes e Bases, em seu art. 1º, apresenta:
A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem
na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais. (BRASIL,
2013)
Assim, o exposto no artigo 227 da Constituição Federal:
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar às crianças e adolescentes, com absoluta prioridade, o direito à vida, à
saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização,
à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência
familiar e comunitária, além de coloca-los a salvo de toda forma
UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013
de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e
opressão. (VADE MECUM SARAIVA, 2011, p. 79)
E, ainda, o artigo 2º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação:
A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios da liberdade e nos ideais da solidariedade humana, tem por
finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para
o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.
(BRASIL, 2013)
Fica evidente que, hoje, esses direitos são assegurados em
vários instrumentos jurídicos e conclamados em princípios universais
tanto no ordenamento nacional como na ordem internacional.
4 A RESPONSABILIDADE DE ESTADO
Educação é prerrogativa que todas as pessoas possuem de
exigir do Estado. Como direito de todos, a educação traduz muito da
exigência que todo cidadão pode exercitar em seu favor.
Assim expõe Zulmar Fachin (2011, p. 610): “O ensino é dever
do estado e da sociedade e, ao mesmo tempo. direito público
subjetivo, titularizado por toda pessoa. O poder público tem o dever
de oferecê-lo em condições adequadas”.
O Estado é o principal responsável pela educação dos
cidadãos, por duas razões: porque as famílias, sobretudo, as mais
pobres, não têm os recursos necessários para criar todas as
possibilidades de satisfação do direito à educação, porque o Estado é o
órgão do Bem Comum, formulado nas normas fundamentais de cada
comunidade nacional e da Comunidade Internacional, que
reconhecem os direitos básicos do ser humano.
Fachin (2011, p. 611) complementa que, na omissão do
Estado, o indivíduo tem direito de ingressar judicialmente, exigindo o
direito a educação, in verbis: “O direito fundamental social de acesso à
educação pode ser exigido e efetivado judicialmente, quando não tiver
sido atendido pelos órgãos administrativos e legislativos”.
O art. 5º, caput, da Constituição especifica cinco direitos
fundamentais básicos: vida, liberdade, igualdade, segurança e
propriedade, que constituem o fundamento de todos os
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demais direitos consagrados, quer pelos seus incisos, quer
pelos dispositivos sequenciais, do mesmo Título II, bem
como de toda a Constituição – dado que órgãos, bens, direitos, deveres, instituições refluem, todos, para um destinatário único e especial: o ser humano. (GARCIA, 2002, p. 122)
O que se pode dizer é que além do ensinamento escolar, o
educando adquire conhecimentos, competências e habilidades,
fazendo-se indispensável à formação de valores fundamentais para a
vida e para a convivência, isto é, as bases para uma educação plena,
que integra cidadãos em uma coletividade plural e democrática.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O direito à Educação é, como visto, um direito fundamental,
com previsão no artigo 6º, da Constituição Federal, e na Carta das
Nações Unidas (ONU). Esses direitos também são assegurados em
vários instrumentos jurídicos e conclamados em princípios universais,
tanto no ordenamento nacional como na ordem internacional. Porém,
o amplo respaldo documental não impede, infelizmente, constantes
violações dos direitos humanos em todo o mundo.
O direito à educação, declarado em nível constitucional, tem
sido, do ponto de vista jurídico, aperfeiçoado no Brasil. Contudo, os
mecanismos declarados e garantidores ainda encontram obstáculos
para sua efetivação, o que acaba restringindo a inclusão da nação na
cidadania.
É imprescindível ter consciência de que toda luta por uma
educação de qualidade representa uma garantia de igualdade, em nível
superior. Na hipótese de omissão ou lacuna da Administração no
cumprimento do seu encargo assistencial, a pessoa lesada terá acesso
ao Poder Judiciário, valendo-se do instrumento jurídico competente
para compelir o agente público à prestação necessária, sem que tal
signifique indébita intromissão entre os poderes do Estado.
Destarte, compreende-se, a Educação como caminho
imprescindível para a inserção de práticas de respeito aos direitos
humanos e construção da cidadania na vida diária de cada pessoa,
permitindo a transformação do status quo. É necessário, pois,
apropriar-se do processo educativo como meio de formação de uma
cultura de consideração à dignidade da vida humana. O que é
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indispensável é que deve ser lembrado, tanto pelo governo como pela
sociedade, que a educação traz o conhecimento e isso significa
evolução e conquistas do ser humano. Esse conhecimento se faz
necessário para que o ser humano possa ser um educando com
dignidade de direito e, principalmente, direito com dignidade.
REFERÊNCIAS
BENEVIDES, M. V. Educação em Direitos Humanos: de que se trata? Convenit Internacional, São Paulo, n. 6, s. d. Disponível em:
<http://www.hottopos.com/convenit6/victoria.htm>. Acesso em: 22
mar. 2013.
BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Presidência da República, Casa
Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/
l9394.htm>. Acesso em: 27 mar. 2013.
CAMARGO, M. N. O conteúdo jurídico da dignidade da pessoa humana. In: ______ (Org.). Leituras complementares de Direito
Constitucional: direitos fundamentais. 2. ed., Salvador: Juspodivm,
2007. p. 113-35.
FACHIN Z. Curso Direito Constitucional. 5. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2011.
FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática
educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. (Coleção Leitura)
GARCIA, Maria. Mas, quais os Direitos Fundamentais? Revista de
Direito Constitucional e Internacional, São Paulo, n. 39, p. 115-23,
abr.-jun. 2002.
HOBBES, T. De Cive: elementos filosóficos a respeito do cidadão.
Petrópolis: Vozes, 1993. Nota no cap. 1, art. 2º.
HORTA, M. del M. R. Educar em direitos humanos: compromisso
com a vida. In: CANDAU, V. L.; SACAVINO, S. (Org.) Educar em
direitos humanos: construir democracia. 2. ed. Rio de Janeiro:
DP&A, 2003. p. 125-39.
MELLO FILHO, J. C. de. Constituição federal anotada. 2. ed. São
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Paulo: Saraiva, 1986.
ORGANIZATION OF AMERICAN STATES (OAS). Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1966). Disponível em:
<http://www.oas.org/dil/port/1966 Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos.pdf>. Acesso em: 23 mar. 2013.
SANTOS, F. A. de O. Desenvolvimento nacional sustentável como
direito fundamental à luz da Constituição de 1988. Revista de Direito
Brasileira, São Paulo (SP), ano 1, v. 1, jul.-dez. 2011.
UNIC RIO DE JANEIRO – Centro de Informações das Nações Unidas. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível
em: <http://unicrio.org.br/img/DeclU_D_HumanosVersoInternet.
pdf>. Acesso em: 27 mar. 2013.
VADE MECUM SARAIVA. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
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NORMAS PARA PUBLICAÇÃO
UNIVERSITAS, revista de divulgação científica da
FANORPI/UNIESP, objetiva publicação de artigos e comunicações de
cunho científico, resenhas, revisões bibliográficas, resumos de teses e
dissertações. As contribuições serão de autores da comunidade da
FANORPI, de outras instituições de ensino ou pesquisa, nacionais ou
estrangeiras, e de convidados. Os trabalhos deverão ser inéditos.
As contribuições deverão ter caráter científico e autenticidade
e ser enviadas para apreciação do Conselho Editorial, que se reserva o
direito de aceitá-las ou não e, eventualmente, sugerir modificações aos
autores para adequar os textos à publicação. Trabalhos recusados
serão oficialmente comunicados ao autor pelo presidente do Conselho
Editorial.
A revista não se responsabiliza, individual ou solidariamente,
por opiniões, ideias e conceitos emitidos nos textos, de total
responsabilidade dos autores.
Ao enviar artigo para análise, implicitamente seu autor
concorda com todos os termos das normas de publicação e decisões
de Conselho Editorial, abrindo mão de qualquer ação que às regras da
revista se relacione. Trabalho publicado na revista terá direito a dois
exemplares.
1 APRESENTAÇÃO DE ORIGINAIS
As contribuições deverão ser enviadas por e-mail ao Conselho
Editorial da revista, nas seguintes normas (baseadas na ABNT):
formato de arquivo: doc ou docx (editor de texto MS Word);
tamanho do papel: A4, orientação vertical;
margens:
a) esquerdo e superior: 3,0cm;
b) direita e inferior: 2,0cm.
fonte: Times New Roman
a) estilo: normal;
b) tamanho: 12pts.;
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c) espaçamento entre caracteres: 100% e normal.

parágrafo:

a) alinhamento: justificado, sem hifenização;
b) recuo esquerdo e direito: 0;
c) primeira linha: 1,25cm;
d) espaçamento antes e depois: 0;
f) espaçamento entre linhas: 1,5cm;
g) tabulação: 0,5cm (padrão do MS Word).
Citação longa (mais de três linhas):
a) fonte em tamanho 10pts;
b) alinhamento: justificado, sem hifenização;
c) recuo esquerdo: 4cm; direito: 0;
d) primeira linha: sem afastamento;
e) espaçamento antes e depois: 0;
f) espaçamento entre linhas: simples.
2 CATEGORIA DOS TRABALHOS
a) artigos científicos: máximo de 20 (vinte) laudas (±650
linhas);
b) comunicações científicas e divulgações: máximo de 6 (seis)
laudas (±192 linhas);
c) artigos de revisão: máximo 16 (dezesseis) laudas (±512
linhas);
d) resenha de livros: máximo de 3 (três) laudas (±96 linhas);
e) resumos de teses e dissertações: máximo de 1,5 (uma e meia)
laudas (48 linhas).
3 LÍNGUAS
Serão aceitos, preferencialmente, trabalhos redigidos em língua
portuguesa. Contribuições em outros idiomas poderão ser aceitas
mediante aprovação do Conselho Editorial.
4 ARTIGOS CIENTÍFICOS (NBR 6022 – INFORMAÇÃO E DOCUMENTAÇÃO - ARTIGO EM PUBLICAÇÃO PERIÓDICA CIENTÍFICA IMPRESSA - APRESENTAÇÃO)
São identificados como artigos científicos: estudos teóricos ou
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práticos referentes à pesquisa e desenvolvimento que atingiram
resultados conclusivos significativos. Os originais relacionados com
pesquisas experimentais devem conter todas as informações
necessárias que permitam ao leitor repetir as experiências descritas e
avaliar as conclusões do autor. Publicações de caráter científico
deverão conter os seguintes tópicos:
titulo e subtítulo (se houver);
nome do autor;
resumo;
palavras-chave;
abstract;
key words;
texto (com divisão em itens e subitens) e
referências.
5 Comunicações científicas e divulgações
São textos mais curtos, denominados de comunicações curtas ou
cartas ao editor, nos quais são apresentados resultados preliminares,
julgados novos ou especialmente relevantes, de uma pesquisa em
curso. Apresentam as mesmas características dos artigos, mas são
redigidos de maneira menos detalhada. Deverão conter as mesmas
exigências do item 4, com exceção das divisões em itens e subitens.
6 Artigo de revisão
Consiste em breve resumo de trabalho existente, seguido de
avaliação de novas ideias, métodos, resultados e conclusões, e
bibliografia relacionando as publicações significativas sobre o tema. O
autor da revisão de literatura deve ser um especialista. Os tópicos
obrigatórios são:
título;
nome do autor;
resumo;
palavras-chave;
abstract;
key words;
introdução;
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desenvolvimento;
conclusão;
referências.
7 Resenha de livro
É trabalho de síntese, publicado após edição de uma obra,
tendo por objetivo servir de veículo de crítica e avaliação. Nela, o
autor, um especialista, deve comparar, avaliar e criticar a obra, sob seu
ponto de vista pessoal, em relação a outras produções e, em especial,
ao estado da arte, equivalente ao nível mais alto de desenvolvimento de
aparelho, de técnica ou de área científica, alcançado em tempo
definido. A resenha deve, sempre, ser precedida da Referência.
8 Resumo
Apresentação concisa e seletiva de texto, destacando de forma
clara e sintética a natureza do trabalho, seus resultados e conclusões
mais importantes, valor e originalidade. Deve ser redigido de acordo
com a NBR 6028 Informação e documentação – Resumo - Apresentação, da
ABNT. Conterá, obrigatoriamente, os seguintes tópicos:
título;
comissão examinadora;
resumo;
palavras-chave;
abstract;
key words.
9 Itens obrigatórios na apresentação de trabalhos

título: conciso, somente com inicial maiúscula, alinhado à esquerda, sem
ponto final;

títulos internos e sub-títulos (seções): alinhados à esquerda, conforme determina a NBR 6024 Informação e documentação – Numeração progressiva das seções de um
documento escrito – Apresentação;

nome do autor: alinhamento à esquerda, sem ponto final, devendo ser escrito por extenso, com especificação do currículo e endereço para correspondência
completo, com inclusão de e-mail;
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
resumo e abstract (NBR 6028 Informação e documentação – Resumo – Apresentação): máximo de 250 palavras, redigido em parágrafo único, sem deslocamento inicial, e com alinhamento justificado.

palavras-chave e key words: mínimo de três e máximo de seis termos.
citações bibliográficas (NBR 10520 Informação e documentação – Citações em
documentos – Apresentação): na apresentação de citações em documentos, diretas
ou indiretas, poderão ser usados os sistemas autor-data ou numérico. Qualquer que
seja o sistema adotado, deve ser seguido consistentemente ao longo de todo o trabalho, permitindo sua correlação na lista de referências ou em notas de rodapé. Ex.:
Sistema autor-data:
Lucács (1908, p. 15) afirma que “a presença de concreções
de bauxita no...
...verdadeiro guia de leitura.” (FÁVERO; KOCK, 1994, p.
50)
...deterioração e morte de plântulas. (HENNING et al.,
1991b)
Sistema numérico:
No texto:
No Brasil, Aguiar Dias³: “Os conceitos de evento imprevisível e extraordinário são coincidentes, como coincidentes
são os de previsível e ordinário.”
Na nota de rodapé:
³ DIAS, José de Aguiar. A equidade é poder do juiz. Revista
Forense, Rio de Janeiro, v. 164, n. 633, p. 47-52, 1956, p.
48.
Nas referências (em ambos os sistemas):
DIAS, José de Aguiar. A equidade é poder do juiz. Revista
Forense, Rio de Janeiro, v. 164, n. 633, p. 47-52, out.-dez.
1953.

referências (NBR 6023 Informação e documentação Referências – Elaboração): devem conter todos os dados necessários à identificação das obras dispostas em ordem alfabética. Para distinguir trabalhos diferentes da mesma autoria, será levada
em conta a ordem cronológica, segundo o ano de publicação. Se num mesmo ano
houver mais de um trabalho do mesmo autor, acrescentar uma letra ao ano. Ex.:
...contra fungos do solo (HENNING et al., 1991ª)
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...deterioração e morte de plântulas (HENNING et al.,
1991b)
10 Complementos do texto:
Imagens (figuras, tabelas e quadros), com as respectivas
legendas, deverão ser apresentados em folhas separadas e,
preferencialmente, em CDs, com extensões tif, jpg ou bmp.

Figuras: são desenhos, gráficos e fotos. A palavra FIGURA (em caixa alta) e
seu texto explicativo deverão ser escritos abaixo e receber numeração consecutiva
em algarismos arábicos. As fotos, se não estiverem digitalizadas, devem ser preto e
branco, reveladas em papel brilhante e de alto contraste, devendo ser identificadas
no verso com o nome do autor, orientação da borda superior e número das legendas correspondentes. Os desenhos também serão aceitos em impressão a laser. Ex.:
Figura 2 (Fonte: Best, 1997, p. 378 – adaptado)

Tabelas e quadros: as palavras TABELA e QUADRO (em caixa alta) e seu
texto explicativo deverão ser escritas acima e receber numeração consecutiva em
algarismos arábicos. Ex.:
TABELA 1 – Relação estatura x peso em crianças;
QUADRO 1 – Balanço patrimonial do cliente.
Obs.: Quadro é a representação tipo tabular que não emprega dados estatísticos.
11 Notas de rodapé
As notas de rodapé deve ser reduzidas ao mínimo. Devem ser
indicadas com asterisco quando se tratar de informações referentes à
qualificação, títulos ou credenciais do autor, e, em algarismo arábico,
quando se tratar de informações referentes ao corpo do trabalho.
12 Responsabilidade
As opiniões e conceitos contidos nos trabalhos são de
exclusiva responsabilidade do autor.
13 Agradecimentos
As menções de auxílio de fundações, conselhos e outras
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instituições poderão ser feitas inserindo o item Agradecimentos, após as
conclusões.
14 Ofício
O ofício de encaminhamento dos artigos deverá conter a
assinatura de todos os autores, indicação da categoria do trabalho e
área de publicação da UNIVERSITAS – Revista FANORPI de Divulgação
Científica.
Obs. Os trabalhos enviados para publicação não serão
devolvidos ao autor.
15 Remessa
Os textos deverão ser enviados por e-mail para Conselho
Editorial da UNIVERSITAS – Revista FANORPI de Divulgação
Científica, no endereço [email protected], aos cuidados do
professor Nelson Borges.
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