Ao protótipo da busca apaixonada e íntegra,
Shadrach Emmanuel Lee,
a meus pais
e às minhas três graças
Nunca sabemos que altura alcançamos
Até sermos chamados a nos elevar...
– E m i ly D i c k i n son
Meu celeiro incendiou-se
Agora posso ver a lua.
– Mi zu ta M as a hide
Os homens anseiam por divulgar o sucesso de seus esforços, mas relutam
em anunciar os próprios fracassos. E se deixam arruinar por essa prática
limitada de ocultação dos fiascos e derrotas.
– A b ra ha m L i n c ol n 1
Mesmo quando sofremos muitas derrotas, não podemos nos deixar derrotar.
Parece piegas, eu sei, mas acredito que um diamante seja o resultado da
pressão extrema e de milênios incontáveis. Menos tempo produz cristal.
Ainda menos, apenas carvão. Bem menos, folhas fossilizadas. Muitíssimo
menos, nada mais que poeira. Em todo o meu trabalho, nos filmes que
escrevo, nas letras de música, nas poesias, na prosa, nos ensaios, afirmo que
podemos nos deparar com muitas derrotas, mas somos muito mais fortes do
que parecemos ser e, quem sabe, muito melhores do que nos permitimos ser.
– M aya A n g e l ou
Lista de ilustrações
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27
30
47
65
70
71
84
Anna Batchelor, Dirigindo nas planícies salgadas da Bolívia,
2012.
Mike Osborne, Ilha flutuante, 2012 (Bonneville, Utah).
Chris Taylor, Impossibilidade das linhas retas, planícies salgadas
de Bonneville, Utah, 2003. Foto: Bill Gilbert.
Michelangelo Buonarroti, “Soneto 5” (a Giovanni da Pistoia),
com uma caricatura do artista, em pé, pintando uma figura no
teto, acima de sua cabeça, c. 1510. Pena e tinta, 28 x 18 cm, “Para
Giovanni da Pistoia, quando o autor estava pintando a abóbada
da Capela Sistina”, 1509. Casa Buonarroti, Florença, Itália. Foto:
Studio Fotografico Quattrone, Florença.
Louis Horst, “Resenha de Paul Taylor and Dance Company”.
Dance Observer 24.9 (novembro de 1957), 139.
Herbert Pointing, Caverna em um iceberg, Antártica, 1911. Licenciado pelo Instituto de Pesquisa Polar Scott, Universidade de
Cambridge.
Martin Hartley, Localizador, Expedição Ecológica Transboreal de
Aventura, 2004.
Martin Hartley, Navegador, Expedição Ecológica Transboreal de
Aventura, 2004
Herbert Ponting, Os baluartes do monte Erebus, Antártica, 1911.
Licenciado pelo Instituto de Pesquisa Polar Scott, Universidade
de Cambridge.
97
99
100
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121
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139
140
168
170
181
Lisette Model, Louis Armstrong, c. 1956. National Portrait Gallery,
Museu Smithsonian. © Lisette Model Foundation Inc. (1983).
Descrição de um navio negreiro (Londres: James Phillips, 1787).
© The British Library Board.
Nasa/William Anders, Nascer da Terra, 1968.
Joel Sternfeld, Olhando para o sul numa tarde de junho, Nova
York, 2000. Digital C-print, 100 x 127 cm. Cortesia do artista e
de Luhring Augustine.
Franklin Leonard, The Black List (detalhe), 2005.
Experimento de Solomon Asch, Scientific American, 1955. ©
1955 Scientific American, Inc.
Grafeno visto pelo microscópio. © Grupo de Física da Matéria
Condensada, Universidade de Manchester.
Rã levitando na região estável. Em M. V. Berry e A. K. Geim, “Of
flying frogs and levitrons”, European Journal of Physics 18 (junho
de 1997), 312. © IOP Publishing Ltd and European Physical Society.
Rã em levitação. © Laboratório High Field Magnet, Radbound
University Nijmegen.
Samuel F. B. Morse, Primeiro instrumento de telégrafo, 1837.
Divisão de Trabalho e de Indústria, Museu Nacional de História
Americana, Instituto Smithsonian.
Samuel F. B. Morse, Galeria do Louvre, 1831-1833. Óleo sobre tela,
187 x 274 cm. Daniel J. Terra Collection, 1992.51. Terra Foundation for American Art, Chicago / Art Resource, Nova York.
Samuel F. B. Morse, A Câmara dos Representantes, 1822-1823.
Óleo sobre tela, 220 x 331 cm. Galeria de Arte Corcovan, Washington D.C.
Sumário
O enigma
13
14
24
Provação
63
64
89
105
A dádiva
O iconoclasta
O amador deliberado
Determinação nas artes
Epílogo: As estrelas
115
116
136
159
184
Agradecimentos
Notas
188
192
O paradoxo do arqueiro
A obra-prima inacabada
A quase vitória
Vazio43
A dádiva – A lacuna – Domínios privados – Que sejam
recebidas: sobre críticas e pressões
Verão ártico: rendição
Beleza, erro e justiça
O ponto cego
O e n i gma
O paradoxo do arqueiro
As mulheres da equipe de tiro com arco da Universidade de Colúmbia
saltaram de uma van numa tarde fria de primavera, descontraídas. Uma
segurava uma casquinha de sorvete na mão direita e um punhado de
flechas com penas amarelas na esquerda; outra usava a peiteira, uma
espécie de malha por cima da blusa, para proteger os seios do atrito com
o arco. O Complexo de Atletismo de Baker, o conjunto de instalações
esportivas da universidade, na ponta norte de Manhattan, parecia estar
recebendo uma falange de guerreiras despreocupadas.
O encarregado da manutenção da propriedade nem sabia que elas
chegariam. Talvez fosse novo no lugar, porque perguntei onde a equipe
praticaria e ele me olhou com ar interrogativo. Parecia não acreditar
que a universidade realmente tivesse uma equipe esportiva de tiro com
arco. Era até compreensível. Eu chegara cedo e os alvos ainda não estavam posicionados. Lançar flechas a quase 250 quilômetros por hora
na direção de alvos a cerca de 70 metros de distância exige medidas de
segurança rigorosas, razão pela qual a equipe de tiro com arco não se
exercita perto de nenhuma outra. O treino desse esporte de alta precisão
se dá longe dos olhos do público.
O técnico Derek Davis chegou com as arqueiras, dirigindo uma van
cinza, e me cumprimentou com o braço para fora da janela do motorista. Seus dreadlocks grisalhos pendiam abaixo dos ombros, cobertos por
uma bandana azul estampada que combinava com o casaco de arqueiro
da universidade. Fiquei impressionada ao ver como era um tipo compa-
tível com o clã: sociável e relaxado, mas atento. Pelo telefone, alguns dias
antes, ele havia me dito que, de início, se dedicara ao esporte como passatempo, por insistência da esposa, no final da década de 1980 (“mais
seguro que bilhar e não envolve álcool”). Desde 2005, liderava a equipe
titular e outros times do clube universitário, em parte como especialista
em biomecânica, em parte como iogue – na essência, um sábio universitário talhado para a antiga prática de guerra hoje considerada esporte.
As jovens sorriram, avaliaram-me de relance e desfilaram à minha
frente, enquanto eu as recepcionava de pé junto ao alambrado do local
de treinamento. A do sorvete jogou fora a casquinha, que já pingava, e
se juntou às outras, que retiravam os apetrechos do porta-malas da van.
Falavam não com palavras, mas com números, os escores ou pontuações
ideais e os graus em que deveriam se posicionar para acertar os alvos.
Elas se preparavam para o próximo campeonato nacional.1 (Não há
homens na equipe titular, apenas nos times do clube universitário.)
Fiquei olhando enquanto as arqueiras cuidadosamente armavam arcos compostos ou recurvos – como os usados nos Jogos Olímpicos,
cujas pontas se inclinam, afastando-se do corpo –, puxavam a corda
e disparavam a flecha, que fazia uma curva e desaparecia no ar até
atingir o alvo redondo. Davis não ficava junto à equipe, preferindo
manter-se à distância, na retaguarda, talvez avaliando quem poderia
precisar de ajuda. Mais ao longe, espalhadas pelas laterais do campo,
viam-se caixas de ferramentas, com carretéis, alicates, chaves inglesas, martelos e pregos.
Duas arqueiras se alinharam para lançar. Só uma queria saber os escores. Davis observava com o binóculo a extensão de quase duas quadras de tênis entre elas e os alvos. Uma arqueira disparou a primeira
flecha. Só ouvi o som de um chicote estalando no ar.
“Sete, em seis horas.”
“Nove, em duas horas.”
As flechas ainda não estavam agrupadas.
“Dez, alto.”
“Dez, muito alto.”
Em seguida ao disparo seguinte não se ouviu nenhum som.
15
“Não. Nem olha!”, lamentou-se a arqueira, relaxando e largando o
arco. “Acho que nem atingi o alvo.”
“É”, confirmou Davis. “Nem vi onde a flecha caiu.”
Atrás delas, eu tentava me imaginar naquela situação, mas não tinha ideia de como conseguiam atingir o alvo. Cada arqueira calculava
a trajetória da flecha – a linha de ascensão, a queda e os deslocamentos
laterais durante o percurso –, algo que apenas elas podiam prever no
instante exato do disparo. Antes mesmo de considerar a velocidade do
vento, é preciso sempre levar em conta algum grau de desvio que ocorre
quando a flecha deixa o arco, com certa inclinação em relação ao alvo,
para que as penas não toquem a corda. É como se confecciona a flecha.
O arqueiro destro mira ligeiramente para a esquerda, a fim de acertar na
mosca. Para isso, é preciso se concentrar no alvo em si e no arqueamento provável do voo da flecha, intuindo as muitas variáveis capazes de
alterar a trajetória. Os arqueiros mais certeiros chamam esse processo
de “foco duplo de visão bipartida”.
O tiro com arco também demanda uma reinvenção constante, pois
o praticante se vê como alguém que marca dez, quando na verdade faz
apenas nove; como um arqueiro que somente atinge sete, mas pode chegar a oito. Esse é um esporte que gera feedback instantâneo e exato.
Classifica os atletas pela maneira como se comparam consigo mesmos
segundos antes. Os arqueiros lidam constantemente com a “quase vitória”, quando não atingem exatamente a mosca naquela hora, mas segundos depois, demonstrando que são capazes.
Se o arqueiro errar a mira em menos de meio grau, não acertará o
alvo. “Basta mexer a mão um milímetro para mudar tudo, principalmente quando se está a distâncias maiores”, disse Sarah Chai, formada
recentemente pela Colúmbia e ex-cocapitã da equipe titular de tiro com
arco da universidade.2 À distância-padrão de 75 jardas do alvo, o anel
10, a mosca, parece tão pequeno quanto a cabeça de um palito de fósforo a uns 70 centímetros do olho. Acertar esse oitavo anel é como perfurar um círculo do tamanho do orifício de uma rosquinha a quase 70
metros de distância, sustentando um peso de mais ou menos 22 quilos
em cada disparo.
16
Não é fácil. Depois de bem mais de três horas de prática, duas das mulheres estavam deitadas de costas, atrás da linha de tiro, olhando para o
céu. Três horas por dia de concentração total, tentando encontrar o que
T. S. Elliot chamava de “ponto morto do mundo em rotação”, exige uma
intensidade singular e constante.3 Viver num contexto em que a diferença desprezível de alguns graus acarreta uma alteração substancial no
resultado é o que faz de um arqueiro um arqueiro. Significa desenvolver
o tipo de precisão que encontramos no mundo natural – como a dos
favos das colmeias ou a dos hexágonos perfeitos da Calçada dos Gigantes, na Irlanda. Quando começam a ficar boas, atingindo escores quase
sempre acima de 1.350 (do total de 1.440), as arqueiras aprimoram o
treinamento, atirando menos, aumentando a concentração e cuidando
da respiração, da meditação e da visualização. Uma delas, embora sobrecarregada de provas, ainda assim estava treinando, porque o foco
com que se dedica à arquearia a tranquiliza em relação a tudo o mais.
“Quando fiz intercâmbio, quase enlouqueci por não poder praticar”, disse. Sem aquela rotina, sentia-se irritada o tempo todo.
Fiquei no campo de treinamento durante três horas. Apesar de toda a
vibração de descobrir um novo esporte, foi um pouco monótono, devo
admitir. Eu não tinha levado binóculo, e é difícil se concentrar durante
três horas no que está à sua frente mas não é percebido com facilidade.
Além de tudo, fazia frio. Persisti, porém, para compreender o que eu
começava a perceber e com que talvez nunca voltasse a deparar: o pânico do amarelo, ou pânico do alvo – o que acontece quando o arqueiro
chega ao ponto de realizar ou superar as próprias expectativas e passa a
querer o ouro sem pensar no processo. Em casos extremos, isso significa
que num dia acerta na mosca; no dia seguinte, lança a flecha no estacionamento. Não está claro se é como uma aflição temporária, uma espécie
de ansiedade com o desempenho ou alguma forma de distonia.4 O que
se sabe é que a única maneira de se recuperar plenamente é recomeçar
do início, reaprender os movimentos e se concentrar no essencial – respiração, posição, movimentação, liberação e postura. Nenhuma das arqueiras que vi naquele dia parecia sofrer de pânico do alvo. No entanto,
poucas o admitem quando são acometidas desse mal.
17
Mesmo assim, algo na arquearia me arrebatou o bastante para me manter atenta. A explicação só me ocorreu ao deixar o local, enquanto eu caminhava pela Broadway. Passei por um marco histórico nacional, uma
casa de fazenda colonial, em estilo holandês, de propriedade da família
Dyckman. Antigamente ela se situava em meio a uma vasta área de terras
que cobria toda a extensão de Manhattan, do rio Hudson ao rio East, mas
hoje está aninhada na avenida congestionada, oculta por trás de árvores e
folhagens. A incongruência de uma casa de fazenda em plena Broadway
me deixou curiosa e então resolvi visitar o local. Aquela foi de fato minha segunda aventura naquele dia. Ver uma equipe de arco e flecha nos
tempos modernos foi como admirar uma antiga relíquia, um vestígio de
práticas remotas que raramente vemos em ação – não uma competição,
onde sempre se destaca um vencedor, mas a busca constante da maestria.
A maestria que presenciei nos campos de tiro com arco não era glamorosa. Percebia-se certa nobreza em tudo aquilo, mas nenhum indício
de bajulação. É raro ver a obstinação com esse nível de exatidão, ver o
que é preciso para alinhar o corpo com perfeição durante três horas no
esforço para compensar a velocidade do vento e acertar o alvo – a busca
da excelência na obscuridade. Era uma sucessão infindável de dias na
tentativa de conquistar o ouro a que poucos farão jus algum dia. Talvez
eu o tenha percebido com mais intensidade do que seria possível em
esportes mais populares, como basquete ou futebol, que oferecem mais
chances de glória e fama. Passar tantas horas com arco e flecha é uma
estranha combinação de marginalidade e seriedade poucas vezes vista.
Havia, porém, outra razão. Quando cada flecha partia rumo ao alvo,
as arqueiras se viam entre o sucesso (atingir o 10) e a maestria (saber que
o resultado isolado não significava nada se não fosse replicável repetidas
vezes). Se eu tivesse que arriscar um palpite, diria que essa tensão entre a
busca permanente da maestria e a natureza efêmera do sucesso é, antes
de tudo, parte do que gera o pânico do alvo.
Maestria, palavra que não usamos com frequência, não equivale a
perfeccionismo – propósito sobre-humano motivado pela preocupação
com a maneira como somos vistos pelos outros. Maestria tampouco é o
mesmo que sucesso – vitória eventual, pontual. Maestria não é somente
18
a realização de um objetivo, mas, sim, uma linha ascendente, de busca
contínua. Exige persistência e resistência.
Com certo distanciamento crítico, somos capazes de ver que muitas de
nossas conquistas mais grandiosas – desde descobertas recentes, ganhadoras do Prêmio Nobel, passando por clássicos da literatura, das artes
plásticas e da dança, até empreendimentos inovadores revolucionários
– foram, na verdade, não proezas revolucionárias, mas correções graduais, ajustes incrementais, com base na experiência adquirida depois
do disparo da flecha anterior. Sempre tive enorme curiosidade sobre a
maneira como evoluímos, como as pessoas se superam e se destacam a
ponto de surpreender o mundo.
Filha única, vivendo no próprio imaginário, eu mergulhava nas histórias da vida dos mais velhos, de meus contemporâneos e dos que hoje
atuam no auge da capacidade: pessoas cuja existência era ao mesmo
tempo parecida e bem diferente da minha. E não podia evitar uma observação: muitas das coisas que quase todo mundo rejeitaria, esses indivíduos – em geral, inovadores, criadores, inventores – haviam convertido em vantagens inigualáveis. Ainda me lembro do calafrio que senti ao
me dar conta da realidade inquestionável de que de fato eu só poderia
alcançar a plenitude de minhas capacidades se explorasse territórios
desconhecidos e assustadores, permanecendo aberta a novas descobertas ao longo do percurso.
Eu vinha refletindo a respeito disso durante boa parte de minha vida,
embora a constatação só tenha ficado mais nítida enquanto escrevia este
livro. Aconteceu quando fui a Harvard para um evento de ex-alunos.
Bill Fitzsimmons, reitor de admissões havia muito tempo, contou ao público que ele fora expulso da escola no ensino médio. Envolvera-se com
más companhias e começara a faltar às aulas. Depois da expulsão, com
muita dificuldade, acabou matriculando-se em outra escola, de uma cidade vizinha. O episódio desenvolveu nele certa resiliência, ele disse, e
algo que considera fundamental para a própria vida.
“Lembro-me de quando você se matriculou”, garantiu-me o reitor Fitzsimmons quando o cumprimentei pela palestra. E o reafirmou, convenci19
do de que estava certo, ao ver no meu crachá o ano de minha formatura.
Ele sorriu e apertou os lábios, como que afastando um pensamento.
Talvez não quisesse revelar algo que ele recordara e que eu havia esquecido: a redação que eu escrevera no processo de admissão sobre a
importância e o benefício dos fracassos quando os enfrentei, aos 18
anos, e, em geral, como fatos da vida. Lembrei-me, então, de como escondera o texto de meus pais e até de meu orientador na faculdade,
plenamente consciente de que aquilo era um material de “alto risco”. Só
o revelei no último minuto, de modo que, caso surgissem objeções, a
falta de um texto substituto os obrigasse a me deixar apresentar o que já
estava pronto. Minha intenção era explorar por escrito o que eu começava a sentir na vida – que as descobertas, as inovações e os empreendimentos criativos muitas vezes (talvez sempre) ocorrem em condições
improváveis.
Em retrospectiva, percebo agora que me interessava por ascensões
improváveis porque, na época, eu começava a conviver com a dádiva do
que significa ser subestimado. O que acontece quando o mundo em geral presume, antes mesmo de você pronunciar uma palavra que seja, que
você irá fracassar – por não se encaixar em certas expectativas – e como
certas pessoas convertem essa descrença em vantagem para realizar os
próprios sonhos?
Essa crença se cristalizou na época em que eu frequentava a casa de
meus avós maternos, na área rural da Virgínia. A construção de madeira parecia ser sustentada apenas pela perseverança do casal e pelas
habilidades artesanais de meu avô. A vida para eles, quando eu estava
na casa, girava em torno de três cômodos – a cozinha, a sala de jantar e
a sala de estar. Ligando os três cômodos, havia um corredor onde meu
avô pintava seu elenco multicolorido de atores humanos e divinos. Ele
era faxineiro à noite, músico de jazz o tempo todo e pintor de anúncios
nos fins de semana. A mesa da sala de jantar era o lugar onde ele revelava seus sonhos, sempre pautados pelas privações. A realidade do que
não queria o ajudava a evocar com mais clareza o que queria, e, assim,
também contribuía para forjar o que viria a ser. Acima de tudo, eu não
teria escrito este livro sem o exemplo dele.
20
Naquela sala de Harvard, percebi que, 15 anos depois, eu ainda refletia
sobre as maneiras obscuras, mas vitais, como recriamos nosso futuro eu.
Já ouvimos muitas histórias a respeito disso. O compositor Duke
Ellington teria dito: “Apenas me dispus a ficar melancólico e a escrever
alguns blues.”5 O dramaturgo Tennessee Williams sentia que o “fracasso
aparente” o motivava. E acrescentou: “Na noite antes de saírem as críticas, ele me conduz de volta à máquina de escrever. Fico mais disposto
a retomar o trabalho do que se tivesse certeza do sucesso.” Muita gente
ouviu dizer que Thomas Edison teria afirmado ao assistente, admirado
com a perseverança do inventor, depois de zilhões de tentativas infrutíferas de criar a lâmpada incandescente: “Não fracassei, apenas descobri
10 mil maneiras que não funcionaram.”6 “Um mero passar de olhos é suficiente. Nem ao menos um exemplar seria vendido. Nenhum. Nenhum.
Muito obrigado...”, é o que se lê na carta de rejeição que a escritora Gertrude Stein recebeu de um editor, em 1912.7
O telégrafo, que deflagrou a revolução da comunicação, foi inventado
por um pintor, Samuel F. B. Morse, que transformou a armação de madeira da tela do que lhe parecia uma pintura inútil na primeira máquina
a incorporar a nova tecnologia. Em 1930, o boletim de avaliação de um
teste para um filme, dos estúdios RKO, com o veredito “Não sabe cantar,
não sabe atuar, está ficando careca e dança mais ou menos”, rejeitava
ninguém menos que Fred Astaire, que viria a ser um grande astro de
Hollywood. Ouvimos muitas histórias de como celebridades como J. K.
Rowling, Steve Jobs e Oprah Winfrey encontraram maneiras inusitadas
de atingir o ápice de sua capacidade. No entanto, as histórias sobre as
vantagens obtidas nos momentos em que o fracasso parecia iminente
são, em geral, consideradas lugares-comuns ou, quando muito, situações excepcionais, aplicáveis a apenas poucos privilegiados.
Este livro pretende explorar as vantagens colhidas no solo improvável do
esforço criativo. Invenções brilhantes e proezas humanas resultantes do labor – empreendimentos que oferecem ao mundo dádivas da alma do criador – são alcançadas por caminhos amparados pela possibilidade de retrocessos e pelos ganhos inestimáveis que só a experiência é capaz de oferecer.
21
Alguns poderiam dizer que o que denominamos “trabalho” geralmente é
uma tarefa diferente. “Trabalho é o que fazemos por hora”, argumenta o
escritor Lewis Hyde. Labor, porém, é algo que “impõe o próprio ritmo.
Podemos até ser remunerados, mas é difícil quantificá-lo... Escrever um
poema, criar um filho, desenvolver um novo cálculo, resolver uma neurose, inventar sob todas as suas formas – tudo isso é labor”. 8
Uma distinção comum geralmente considera que a criatividade, a
inovação e as descobertas pertencem a uma categoria própria, até privilegiada, de realização humana: a escolha e a experiência de poucos.
Nossas histórias, porém, questionam essa segregação. Se cada um de
nós tem a capacidade de converter labuta em vantagem, esse processo
criativo deve ser crucial para o desbravamento de qualquer território.
O que ganhamos ao observar a maestria, a invenção e a realização é o
valor de ideias em geral ignoradas – o poder da rendição, o impulso das
“quase vitórias”, o papel crítico do lúdico para promover a inovação e a
importância da perseverança e da prática criativa.
Embora esteja no âmago do tema e no título do livro, raramente falarei
aqui de fracasso, pois se trata de uma palavra imperfeita. Assim que começamos a transformar a realidade, o termo perde o significado. Ele é
sempre fugidio, escapa pelos limites da visão, não só porque é difícil vê-lo
sem se retrair, mas também porque, quando nos dispomos a abordá-lo,
com frequência damos outro nome aos acontecimentos, como aprendizado, tentativa ou reinvenção, não mais o conceito estático de fracasso.
(O termo foi cunhado no século XIX na acepção de falência, bancarrota,
aparente beco sem saída, forçado a se adequar à valoração humana.)9
Como ocorre com o pânico do alvo que acomete os arqueiros – com sua
experiência sempre sentida, mas quase nunca percebida –, o fenômeno ainda é desconhecido, sendo pouco debatido. Até dispomos de ideias
parciais, como resiliência, reinvenção e perseverança, mas não há um
termo único para descrever o fato efêmero, ao mesmo tempo reiterado e
vital, de que exatamente quando parece ser inverno, é primavera.
Os capítulos que se seguem formam a biografia de uma ideia fundamental que ainda não tem definição. Quando não dispomos de um
22
termo adequado para uma ideia intrinsecamente volátil, referimo-nos a
ela por meio de subterfúgios ou evasivas. Há todo tipo de circunstâncias
geradoras – tropeços, quedas, colapsos, desastres –, mas a dinâmica inspiradora é interna, pessoal e, muitas vezes, invisível. Como nos lembra
o lendário dramaturgo Christopher Fry: “Quem, além de nós mesmos,
percebe qualquer diferença entre nossas derrotas e nossas vitórias?”10
É um clichê afirmar simplesmente que aprendemos mais com o fracasso. E não é exatamente verdadeiro. As transformações decorrem de
nossas escolhas de como abordar a questão no contexto dos acontecimentos, quer digamos isso para nós mesmos, quer em voz alta.
Naquele dia frio de maio, observando as arqueiras de Colúmbia, percebi
por que o aprendizado sem erros não resulta em vitórias certas. Alguns
arqueiros podem passar meses praticando a respiração rítmica para soltar a flecha no intervalo entre as batidas cardíacas, repetindo os movimentos, treinando o corpo para conseguir o alinhamento impecável dos
ossos e o movimento perfeito da escápula. Começam usando apenas
as mãos e uma faixa elástica, bem perto de um alvo muito grande. O
objetivo é alcançar quase a perfeição antes de ir afastando o alvo cada
vez mais. O triunfo, no entanto, consiste em enfrentar o paradoxo do arqueiro, em manejar o incontrolável: o vento, outras condições climáticas
e todas as variáveis sempre imprevisíveis da vida. Ganhar o ouro significa aprender a considerar a curvatura embutida na trajetória para o alvo.
Este livro não é sobre o fio de Ariadne, não é uma linha que nos ajuda
a sair de labirintos, qualquer coisa que nos oriente em circunstâncias difíceis. É uma exploração; um apanhado de histórias sobre a capacidade
humana; uma investigação, baseada em narrativas, dos fatos que percebemos bem antes de serem confirmados pela ciência. As muitas pessoas
que aparecem nestas páginas permitiram que eu narrasse suas jornadas
e também me lembraram de algo fundamental, compondo a tese não
intencional deste livro. É o processo criativo – impulsor da invenção,
da descoberta e da cultura – que nos leva a converter com agilidade o
chamado fracasso em uma vantagem insubstituível.
23
A obra-prima inacabada
Senhor, conceda-me a graça de sempre desejar
mais do que posso alcançar.
– Mi c h e l a n g e l o
Ano passado, fui a um lugar onde a relação entre céu e terra se desfaz.
Não se pode mais distinguir primeiro plano, plano intermediário e plano de fundo para orientar o percurso. O fenômeno ocorre em poucos
locais: no leito branco e salgado de um lago pré-histórico, em Bonneville, Utah, perto da fronteira com Nevada (aonde eu fui); no lago Eyre,
na Austrália; no Salar de Atacama, no Chile; e no Salar Uyuni, no Planalto Boliviano, o maior deserto de sal do mundo, onde se aninham
flamingos cor-de-rosa quase míticos. Ao longo dos anos, a evaporação
superou a precipitação nessas regiões, e os ventos áridos nivelaram em
um plano tão constante as enormes extensões de sal remanescentes que
as tornaram isotrópicas – apresentam-se sempre com a mesma planura,
com a mesma constância em todas as direções.1
Quando, finalmente, cheguei lá, encontrei um homem que me disse,
perplexo, que cruzara todo o estado de Illinois com menos gasolina do
que consumira para atravessar as planícies salgadas de Bonneville. Pisar
naquele solo, dirigir naquelas chapadas, é como se equilibrar sobre uma
bola – cada passo adiante, em meio à alvura ofuscante, parece inesperadamente novo. Andar por lá é um exercício de resistência que se estende
por todo o percurso.
Anna Batchelor, Dirigindo nas planícies salgadas da Bolívia, 2012.
As montanhas criam uma ilusão nas planícies salgadas de Bonneville Salt Flats – os maciços até parecem montes de terra pendurados no
céu. A distorção cria a imagem de pedras com bordas flutuantes, afiadas
como pontas de flechas. As extremidades, à semelhança de lâminas de
sílex, pairam no espaço, como que suspensas por um gigante. À frente
do observador, como uma provocação materializada, elas dão a impressão de mostrar um futuro iminente, mas ainda inacessível.
Pouca gente visita as planícies salgadas. É o tipo de lugar aonde se vai
porque não resta nenhum outro a conhecer; quando é preciso percorrê-lo de carro para chegar ao destino; ou quando alguém quer se aventurar deliberadamente, como se as outras maravilhas naturais da Terra
não mais fossem capazes de emocioná-lo e sobrasse apenas aquele local
estranho.
Na estação seca, a sensação de liberdade é forte. Afinal, o vazio é imenso. Alguns vão para lá com o objetivo de quebrar recordes de velocidade
no solo, atingindo mais de 700 quilômetros por hora em um automóvel.
Outros são atraídos pelos campeonatos anuais da Associação Nacional
25
Mike Osborne, Ilha flutuante, 2012 (Bonneville, Utah).
de Arquearia. Quando estive lá, o silêncio era tanto que durante muito
tempo eu só ouvia o som de meus sapatos no solo rachado. Afora o estampido de um trovão ocasional rasgando o firmamento ou o estrondo de
um carro de corrida rompendo a barreira do som, a quietude é absoluta.
Naquele lugar se repete o processo que se desenvolve em nosso interior quando a estrada adiante é plana e já realizamos grande parte do
que nos propusemos a fazer. Sem grandes obstáculos à frente, podemos
nos desorientar, perder o rumo, ficar à deriva.2
Dizem que nunca caminhamos realmente em linha reta, mas, nas planícies salgadas, o percurso retilíneo é impossível. O que à primeira vista
parece um avanço constante se revela, em retrospectiva, uma sucessão
de curvas. Sem perceber, corrigimos o rumo o tempo todo, cobrindo
uma extensão superior à que se supunha possível.
Uma artista amiga minha, que já visitou mais vezes que eu as planícies salgadas de Bonneville, diz que, mesmo com a ajuda de um GPS,
26
Chris Taylor, Impossibilidade das linhas retas, planícies salgadas de Bonneville, Utah,
2003. Foto: Bill Gilbert.
nunca conseguiu completar a travessia, jamais percorreu toda a trajetória curva, até a borda, para chegar ao sopé do maciço que cerca a planície salgada como um pires. Quando conversamos pela última vez, ela já
havia tentado esse feito três vezes.3
Caminhar nas planícies salgadas é como enfrentar o paradoxo do arqueiro, uma lógica excêntrica que contribui para o sucesso dos melhores
praticantes de tiro com arco.
27
Quantas vezes avaliamos um trabalho artístico ou uma inovação revolucionária como sendo uma obra-prima ou um clássico, produto de um
gênio extraordinário, ao passo que o autor a considera incompleta, inacabada e repleta de erros e falhas?4 Muito mais vezes do que imaginamos. Eis uma lista parcial: William Faulkner escreveu novos trechos de
O som e a fúria depois da primeira edição, incluindo os acréscimos em
um apêndice.5 Paul Cézanne receava “morrer sem jamais ter realizado
seu objetivo supremo”: criar uma obra de arte que derivasse diretamente
da natureza. Ele achava que suas pinturas deixavam a desejar.6 Cézanne
se identificou com Frenhofer, protagonista do conto A obra-prima ignorada, cuja ambição estética de recriar a realidade na forma de figuras
femininas termina em um fracasso inevitável.7 Frenhofer experimentava o significado da cor e da linha, “mas, em consequência de tanta
pesquisa, passou a questionar o próprio tema de suas investigações” –
dinâmica que Maurice Merleau-Ponty mais tarde denominou “Dúvida
de Cézanne”.8 Frenhofer era o personagem literário preferido do pintor
francês.
Émile Bernard, outro pós-impressionista, contou que durante uma
visita a Cézanne, em Aix, em 1914, a conversa passou a versar sobre
Frenhofer e A obra-prima ignorada, até que Cézanne, nas palavras do
narrador, “levantou-se da mesa, postou-se à minha frente e bateu no
peito com o dedo indicador, admitindo, sem dizer uma palavra, pelas
sucessivas repetições do gesto, que ele era o próprio personagem do romance. O sentimento o emocionou de tal maneira que seus olhos se
encheram de lágrimas”.9 Ao pintar autorretratos, denominou alguns deles de Frenhofer. Cézanne raramente considerava seus trabalhos acabados; em vez disso, os deixava de lado, “quase sempre com a intenção de
retomá-los”, o que significava não assinar a maioria.10 Menos de 10% das
pinturas no catálogo raisonné dele têm assinatura.11
O poeta Czeslaw Milosz, ganhador do Prêmio Nobel, foi um dos
muitos que repetiram esse desfecho. Depois de cada livro de poesia, ele
dizia: “Sempre fico com a sensação de que não me revelei o suficiente.
Termino o livro, ele é publicado, e digo para mim mesmo: ‘Da próxima
vez, me revelarei.’ E quando lanço outro, tenho o mesmo sentimento.”12
28
Prosperamos quando nos mantemos na vanguarda de nós mesmos.
Trata-se de uma sabedoria compreendida também por Duke Ellington,
tanto que a canção que mais apreciava em seu repertório era sempre a
seguinte, sempre a que ainda iria compor. Como a procura pelo fim de
uma onda sonora, esse esforço nunca termina.
A busca da maestria é um “quase” contínuo e permanente. “Senhor,
conceda-me a graça de sempre desejar mais do que posso alcançar”, implorou Michelangelo, como um Adão condenado ao perpétuo suplício
de manter o dedo esticado, sem nunca tocar a mão do Deus do Velho
Testamento na imagem da Capela Sistina.13 Quando Michelangelo foi
incumbido de pintar aquele teto abobadado no Vaticano, a quase 20 metros de altura, ele se queixava de que seu cérebro chegava a bater nas
costas e que ele quase contraíra “bócio” por causa da “tortura” de ficar
com o “estômago contraído” abaixo do queixo, com o rosto funcionando
como “chão” para as “gotas de tinta” que pingavam do pincel acima dele,
à medida que seus gestos se tornavam “cegos e inúteis”. “Minha pintura
está morta. Defenda-a por mim. Não estou no lugar certo – não sou pintor”, implorou ao amigo Giovanni, em carta escrita na forma de soneto.14
Em seguida, desenhou o que parece ser um autorretrato: uma figura se
põe de pé, estica a cabeça e pinta um rosto diabólico no teto. Enquanto
se dedicava ao segundo ciclo da pintura na abóbada da Capela Sistina, O Dilúvio, a mistura de argamassa criou mofo e o trabalho ficou
comprometido, como numa piada de mau gosto. Michelangelo, então,
escreveu a seu patrono, o papa Júlio II: “Eu disse a Vossa Santidade que
essa pintura não é a minha arte; o que eu fiz está perdido”, e pediu que
fosse substituído.15
Ele já havia deixado encomendas inacabadas antes. Era tal a frequência com que, deliberadamente, abandonava suas obras que, na verdade,
o hábito já virara estilo, o non finito, como os acadêmicos denominam
suas esculturas de figuras que emergem de pedras ainda em estado bruto.16 O público veio a conhecer esse hábito. Durante a criação de uma
dispendiosa estátua de bronze do papa, em Bolonha, para a Basílica de
San Petronio, ele admitiu para o irmão: “Todos em Bolonha são da opi29
Michelangelo Buonarroti, “Soneto 5” (a Giovanni da Pistoia), com uma caricatura do
artista, em pé, pintando uma figura no teto, acima de sua cabeça, c. 1510. Pena e tinta,
28 x 18 cm, “Para Giovanni da Pistoia, quando o autor estava pintando a abóbada
da Capela Sistina”, 1509. Casa Buonarroti, Florença, Itália. Foto: Studio Fotografico
Quattrone, Florença.
30
nião de que eu nunca deveria terminá-la”.17 Essa estética de inconclusão
propositada, no entanto, tornou-se uma metáfora de humildade e prosperidade.
São tantas as formas de inconclusão que é até possível categorizá-las.
Algumas obras parecem completas para o mundo exterior, mas continuam inacabadas para o autor, interrompidas, talvez, pela imposição de
prazos. Outras são abandonadas simplesmente por serem defeituosas.
Com frequência ainda maior constituem trabalhos preliminares ou preparatórios que, embora inconclusos, ajudaram o artista a se aprimorar.
Também há aquelas que foram suspensas pela morte do produtor, mas
concluídas postumamente por outros.
Em geral, concentramo-nos mais nessa última forma de obras inacabadas, especulando sobre até que ponto o que estamos vendo, ouvindo
ou lendo é realmente produto daquela mente brilhante. Se um artista
morre antes de terminar o que poderia ter sido um clássico, podemos
questionar se é correto expor ao escrutínio público um trabalho que o
artista não teve tempo de concluir. Ainda assim, com frequência, de alguma maneira terminamos o trabalho – como fizemos com Juneteenth
(19 de junho) e Three Days before the Shooting (Três dias antes do tiroteio),
de Ralph Ellison, a partir das 2 mil páginas de anotações deixadas pelo
escritor ao morrer; e com o romance multifacetado de David Foster Wallace, inconcluso, mas já com título, The Pale King (O rei pálido) –, como
se soubéssemos o que resultaria dos esforços continuados do autor.18
Franz Kafka, que percebia falta de acabamento onde outros viam apenas um trabalho a ser elogiado, supostamente formulou uma “última
vontade” ao morrer. Numa carta que deixou pouco antes de falecer, escreveu: “Tudo o que eu deixar para trás... na forma de diários, manuscritos, correspondências (próprias e de terceiros), esboços e assim por
diante deve ser queimado, sem ser lido.”19 Endereçou-a a Max Brod, seu
amigo havia mais de duas décadas. Três anos antes, dissera a Brod que
estava formulando o pedido.20 Brod recusou-se a atendê-lo e publicou
todos os romances que hoje temos de Kafka: O desaparecido ou Amerika, O processo e O castelo, em que havia até frases incompletas. Se em
vida Kafka publicou apenas 450 páginas de texto, o The New York Times,
31
“de acordo com uma estimativa recente”, relatou que “nos últimos 14
anos, um novo livro sobre a obra dele foi publicado a cada 10 dias”.21
Completar ou preencher com base no fragmento é parte do mecanismo da visão em si. Essa habilidade pode ser atribuída à capacidade
do cérebro de reconstruir uma imagem completa com base numa fração de informação um dia vislumbrada, a parte posterior da cabeça de
alguém, por exemplo, ainda que não vejamos a pessoa há anos. Como
o neurocientista Semir Zeki descreve, o inacabado “agita a imaginação
do observador, que pode concluí-lo mentalmente”.22 O artista Romare
Bearden considerava essa visão fragmentária fundamental para a definição do que é ser artista: “O artista é um amante da arte para quem,
em toda arte que vê, falta algo; inserir nela o que para ele está faltando
torna-se o centro da obra de sua vida.”23
Nós prosperamos, em parte, quando temos um propósito, quando
ainda há mais por fazer. O incompleto intencional há muito tempo desempenha um papel central na criação de mitos. Na cultura navaja, alguns artesãos procuravam a imperfeição, deixando em seus tecidos e cerâmicas falhas propositais, denominadas “linhas do espírito”, de modo
a lhes conferir um ímpeto de avanço, um impulso para a frente, uma
razão para prosseguir no trabalho. Quase um quarto da tapeçaria navaja
do século XX contém esses fios de cores contrastantes, que se estendem
do padrão interno até as margens que o delimitam; as cestas e alguns
potes navajos apresentam característica semelhante, chamada “linha do
coração” ou “pausa do espírito”. A quebra do padrão se destina a conceder ao espírito do tecelão uma saída, para evitar que caia em uma armadilha e se perca no que consideramos um fim não natural.
Existe certa incompletude inevitável que decorre da maestria. Quanto maior a nossa proficiência, mais suave o caminho que trilhamos e
mais claramente avistamos as montanhas que se erguem adiante. “O que
aumenta com o conhecimento?”, perguntou um dia o jornalista Jordan
Elgrably ao escritor James Baldwin. “Você aprende quão pouco sabe”,
respondeu Baldwin.24
O nome técnico dessa manifestação é efeito Dunning-Kruger – quanto maior é a nossa proficiência, melhor reconhecemos as possibilida32
des de nossas limitações. A recíproca é verdadeira – a ignorância nos
protege do conhecimento necessário para percebermos quão ignorantes
talvez sejamos na realidade. Albert Einstein, que deixou calhamaços de
papéis sobre a mesa de trabalho de seu escritório em Princeton, Nova
Jersey, na época de sua morte, resumiu esse efeito num recado a uma
jovem que lhe escrevera preocupada com as notas baixas em matemática.25 “Não se preocupe com suas dificuldades em matemática”, disse-lhe
Einstein. “Posso garantir a você que as minhas são ainda maiores.”26
A quase vitória
Quando se alcança a maestria e se tem a impressão de que já não há
mais nada à frente, é preciso encontrar alguma maneira de prosseguir,
superando a nós mesmos. O sucesso motiva. No entanto, a quase vitória
– a constante autocorreção de uma trajetória curva – pode nos impelir
numa busca contínua.
Os Jogos Olímpicos, um dos eventos esportivos em que se constata
plenamente essa intenção, já incluíram alpinistas e artistas. Entre 1912
e 1952, participantes nas categorias de arquitetura, literatura, música,
pintura e escultura estiveram entre atletas de classe mundial nas Olimpíadas de Estocolmo, Antuérpia, Paris, Amsterdã, Los Angeles, Berlim
e Londres. Nelas se destacavam alguns juízes e concorrentes de renome,
como os músicos Igor Stravinsky e Josef Suk.27 Era difícil, porém, encontrar artistas dispostos a vender seus trabalhos como amadores, exigência básica das competições olímpicas. Em consequência, as disputas
artísticas seguiram o caminho do alpinismo, a mais efêmera dessas duas
modalidades de competição no palco mundial.
Por mais estranho que pareça considerar artistas e atletas lado a lado,
existe tanto na arte quanto no esporte uma situação de alto nível em que
os resultados são determinados por nossos recursos interiores – pelo
espírito, pela vontade, pela crença e pelo foco. Todos que vão além da
competição em si, que se empenham na busca da maestria, jogam em
um campo que se desdobra em grande parte dentro deles mesmos.
33
Vislumbramos o fenômeno nos medalhistas de prata, de acordo com
Thomas Gilovich, professor de psicologia da Universidade Cornell,
que ficou fascinado pelas reações específicas de medalhistas de prata e
bronze durante as Olimpíadas de 1992. A equipe de pesquisa dele avaliou tudo o que podia – reações visuais e verbais, diferenças de resposta
durante as entrevistas depois das competições e posições assumidas no
pódio – e constatou que os medalhistas de prata pareciam muito mais
frustrados e se mostravam muito mais concentrados nas competições
seguintes que os medalhistas de bronze, que por sua vez estavam ainda
mais distantes da glória da vitória. Os medalhistas de prata muitas vezes
são afligidos por sentimentos e pensamentos do tipo “se pelo menos
eu...”, a respeito de suas quase vitórias.28 Já os medalhistas de bronze, que
não raro demonstram satisfação no pódio, embora estejam no mais baixo nível hierárquico, concluiu Gilovich, em geral se sentem gratificados
por terem conseguido uma medalha, em vez de ficarem esquecidos no
quarto lugar.29
Essa inversão à primeira vista ilógica resulta de um raciocínio contrafatual, ideias que nos ocorrem sobre “como poderia ter sido”. Daniel
Kahneman e Amos Tversky descobriram essa tendência por meio de
um experimento mental em que pediram aos participantes que imaginassem seu nível de frustração depois de perder por 5 minutos ou 30
minutos um voo programado com antecedência. É mais fácil para o viajante que se atrasou apenas 5 minutos imaginar como poderia ter evitado aquela situação: se pelo menos tivesse dirigido mais rápido, se tivesse
escolhido outro itinerário, se tivesse encontrado as chaves do carro um
pouco antes... – o que torna o pequeno deslize mais frustrante. Já para
quem se atrasou 30 minutos corrigir isso não teria sido tão fácil. Quanto
mais frustrante for o cenário, maior será a probabilidade de que venha a
resultar em mudança de comportamento no futuro.30
O abalo de uma quase vitória é tão duradouro que as máquinas caça-níqueis e as loterias instantâneas muitas vezes são programadas para
exibir derrotas por diferenças mínimas, a fim de estimular novas rodadas no jogo. Os resultados de quase vitória em raspadinhas são manipulados com tanta frequência que, na década de 1970, a Comissão Real de
34
Jogo da Inglaterra as incluiu na categoria de “exploração” do setor.31 As
máquinas caça-níqueis e os jogos em geral oferecem a probabilidade de
ganhar a taxas constantes, como a proporção dos lances de dados ou das
puxadas de alavancas, mas bilhetes mostrando a quase vitória proporcionam aos jogadores a sensação de que chegaram muito perto, o que os
estimula a tentar de novo.
Nos esportes que requerem preparação em vez de sorte, os medalhistas de bronze geralmente pensam como Jackie Joyner-Kersee. Nos Jogos
Olímpicos de 1984, ela chegou com a diferença de um terço de segundo
em relação à vencedora na prova de 800 metros, perdendo a medalha de
ouro no heptatlo. Seu treinador e marido, Bob Kersee, previu que aquilo
daria à esposa a determinação de que precisaria na próxima competição
olímpica, em 1988. De fato, quatro anos depois, ela conquistou um novo
recorde mundial, com 7.291 pontos. Desde então, nenhum outro atleta
chegou perto desse resultado. Quando ela perdeu novamente, nas eliminatórias de 1991, em Tóquio, em consequência de uma lesão no joelho,
Kersee sabia que aquilo de novo impeliria a esposa para a conquista do
ouro no heptatlo. Ela ficou com o terceiro lugar no salto em distância
em 1992. Confirmando o raciocínio contrafatual, a mulher até então
conhecida como a maior atleta do mundo não demonstrou frustração.
Ela havia competido apesar da lesão e recebeu o bronze como uma “medalha pela coragem”.32
As quase vitórias estão por toda parte, fabricadas ou previstas. Ao deixar o treinamento da equipe de tiro com arco de Colúmbia, procurei
Andrea Kremer, repórter veterana, respeitada pelas investigações bem
apuradas e pelas perguntas difíceis na cobertura para o programa Real
Sports, da HBO, e para a NBC nos últimos 30 anos. Ela me contou histórias de como os atletas vencedores encontram maneiras de se manterem
humildes, de “fabricar fracassos, forjar debilidades, para se motivarem
ainda mais”.33
A pressão que precede a vitória é algo que a fascina. Sem isso, em geral
carecemos do impulso de que precisamos. Essa talvez seja uma das razões, acredita ela, pelas quais nenhum time da NFL (a principal liga de
35
futebol americano) jamais conquistou o campeonato três vezes seguidas.
“Ocorreram algumas repetições, com Steelers, Patriots, Broncos, mas é
muito difícil, porque você se sente muito seguro, e sustentar esse nível de
euforia é bastante difícil.” A disciplina e a flexibilidade mental indispensáveis para manter a excelência são diferentes e, em geral, mais difíceis
de alcançar que o esforço necessário para chegar lá pela primeira vez.34
Quando o chão é muito plano, os realizadores de alto desempenho
podem fabricar montanhas, criando a sensação de “não suficiente”, de
algo incompleto, que gera um impulso. James Dawson, diretor da instituição de ensino Professional Chidren School (PCS), adota uma abordagem singular. Há quase 20 anos, ele dirige essa escola preparatória de
bailarinos, atores e atletas olímpicos que oferece os mesmos currículos
de escolas públicas e privadas, mas cujos horários são compatíveis com
a realidade de seus alunos – profissionais de alto nível ainda crianças.
Mais de 40% dos dançarinos do Balé da Cidade de Nova York são ex-alunos da PCS. Alguns dos 200 alunos da escola são atores da Broadway e da Off-Broadway. Yo-Yo Ma, Sarah Jessica Parker, Uma Thurman
e Berenika Zakrzewski são parte da longa lista de formados pela escola.
Cerca de 95% dos alunos tentam uma vaga no ensino superior e 85%
deles são aprovados.
Durante um café da manhã em Columbus Circle, Dawson me falou
sobre como os alunos são exigentes na autoavaliação. Ele mencionou
uma pianista russa que lhe perguntou se havia percebido que ela não
executara o terceiro compasso do quarto movimento, em um de seus
concertos. “É claro que não”, disse Dawson, com a fisionomia séria e imparcial, para em seguida sorrir e sacudir a cabeça.35 Também me contou
a história de um violinista que participou de uma importante competição, ficou em segundo lugar e depois disse a Dawson que seus pequenos
erros fizeram com que sentisse que havia traído o próprio Mozart. O
aluno entrou em depressão e parou de praticar durante algum tempo,
até que um dia confidenciou a Dawson, “em um cochicho”, que voltara a
pegar o violino. “Metade do meu trabalho é permitir que os estudantes
entrem e fechem a porta”, observou Dawson sobre o espaço seguro que
oferece a esses jovens artistas, quase sempre acostumados a se apresen36
tar em público e para os quais chegar perto, ou a experiência da quase
vitória, é a coisa mais comum do mundo.
Mesmo nas conversas mais descontraídas, vemos com frequência o
impulso desse contexto artificial de quase vitória. O cineasta alemão
Werner Herzog obteve resultado com o famoso desafio que lançou ao
amigo e colega Errol Morris: “Se você terminar o documentário Gates of
Heaven (Portões do paraíso), comerei meus sapatos.” Morris terminou
o filme e Herzog saboreou a iguaria em público, na noite de estreia.36
Uma quase vitória pode parecer eterna. O pugilista Byun Jong-il ficou
tão arrasado com a derrota nos Jogos Olímpicos de Seul, em 1988, que
se sentou no ringue, com as mãos na cabeça, e ficou lá por mais de uma
hora depois da luta.37
O ex-vice-presidente dos Estados Unidos, Al Gore, conversou comigo sobre uma das mais dolorosas quase vitórias – conquistar a presidência, para, no final das contas, depois de uma longa batalha na Suprema Corte, ser notificado de que a vitória não era dele. Perguntei-lhe se
aquilo o levara a se reinventar, a reforçar seus princípios básicos, e citei
um comentário, geralmente atribuído a Winston Churchill: “Sucesso é
avançar de fracasso em fracasso sem perder o entusiasmo.” Ele riu. Conhecia a citação e observou que Churchill, depois, admitira que, embora
a ideia fosse verdadeira, o sucesso tinha um ótimo disfarce.38
O tipo de amostragem aleatória que os sociólogos odeiam me proporcionou inúmeros outros vislumbres de situações cotidianas parecidas com
a de ficar sentado no ringue. Eu voltava para casa uma noite, de trem, e
escrevia este capítulo, cercada de papéis por todos os lados, quando um
homem no outro lado do corredor perguntou sobre o que eu estava escrevendo. Ele havia embarcado com pouco mais que uma pasta. Parecia
estar na casa dos 30 e ser do ramo financeiro. E era mesmo: trabalhava
no banco UBS. Expliquei a ele o fenômeno da quase vitória. Ele logo se
empolgou, descrevendo-me a sensação horrível que ainda o dominava ao
se lembrar da derrota num jogo de badminton, quando tinha 13 anos. “Fiquei simplesmente inconsolável”, recordou, virando-se para olhar pela janela empoeirada. “Eu estava ganhando!”, garantiu, em um tom de voz um
37
tanto alto demais para o ambiente. Depois de se recompor, prosseguiu,
comedido, mas ainda enfático, falando como os medalhistas de prata com
quem eu conversara: “Eu tinha tudo para vencer.”
Essa força pode ser tão intensa que organizações de saúde do porte da
Clínica Mayo e da Mayo Medical Ventures instituíram o prêmio Queasy
Eagle depois que seu Grupo de Trabalho para Inovação descobriu que a
baixa tolerância ao fracasso poderia retardar o progresso da medicina.
A Clínica Mayo gerara apenas 36 novas ideias para patentes em determinado campo nos 18 anos anteriores. Apenas pouco mais de um ano
depois da iniciativa, destinada a homenagear os esforços que redundaram em quase vitórias, mesmo que tenha sido abandonados, o número
de novas ideias se multiplicou, chegando a 245, muitas das quais mereceram novas patentes.39
As quase vitórias mudam nossa percepção do contexto. Elas transformam objetivos futuros, que tendemos a perceber a certa distância, em
eventos mais próximos. Consideramos a distância temporal da mesma
maneira que encaramos a distância espacial. (Ao imaginarmos um amanhã promissor, nós o vemos com muita nitidez e objetividade. Ao concebermos, porém, algum acontecimento no futuro remoto, não amanhã, mas daqui a 50 anos, a imagem será bastante nebulosa.)40 A quase
vitória muda o enfoque, levando-nos a pensar em como alcançar o que
se situa à nossa frente, mesmo que esteja longe e ainda inatingível.
Embora nem sempre resulte em triunfo no final, o impulso de chegar perto pode ajudar a nos superarmos. A história das proezas de Julie Moss, de 23 anos, contribuiu para a popularidade das competições
de Ironman. Em 1982, ela frequentava o último ano da faculdade, na
Universidade Estadual Politécnica da Califórnia, com especialização em
educação física, e se inscreveu na competição de Kona, no Havaí, para
coletar dados sobre ela mesma, como requisito da monografia de final
de curso. Deixou o treinamento para a última hora e se preparou durante apenas dois meses antes do triatlo, terminadas as provas finais da
faculdade. A única orientação dela “se limitou a um artigo na revista
Sports Illustrated”. Aquela experiência foi tão diferente de qualquer coisa
38
que já tinha feito que até pareceu ficção, “e a ficção lhe dá a liberdade
para imaginar o impossível e fazê-lo acontecer à medida que avança”,
disse ela.41
Depois de nadar 3.860 metros em águas revoltas e pedalar 180 quilômetros, ela estava vencendo a corrida final de 42 quilômetros, a menos
de 2 quilômetros da linha de chegada, com vantagem de seis minutos
sobre a segunda colocada, que estava mais de 1.600 metros atrás dela.
Quando faltava menos de 1 quilômetro para vencer o Ironman, a vitória
se descortinava com nitidez diante dela; mas, de repente, Julie começou a sentir câimbra, e a agilidade com que vinha correndo até então
foi substituída por um mancar irregular e bizarro. A poucos metros da
linha de chegada, as pernas dela não resistiram. Ela caiu de modo tão
desajeitado à beira do trecho final que até pareceu uma queda fatal.
Quando Kathleen McCartney a ultrapassou, Julie achou que estava
tudo acabado. “Pensei: ‘É ela. Está passando por mim. Desisto.’”, disse
Julie, narrando os pensamentos que a afligiram naquele momento. “E,
de repente, ouvi uma voz que insistia: ‘Levante-se!’”42
Como não conseguia ficar de pé, ela começou a engatinhar. “Não sei
se foi um novo surto de competitividade ou se apenas resolvi defender
o meu território, mas não queria perder o que eu conquistara depois de
chegar àquele ponto”, explicou.43 Ela se retesou no chão, apoiando-se
sobre os braços e pernas, como um tripé, em um avanço rastejante, para
começar de novo.
Julie engatinhou pelos últimos 10 metros da corrida. Exigiu tanto
de si que perdeu o controle das funções corporais. “Sujei as calças em
rede nacional”, revelou a repórteres. Tudo isso acontecia enquanto ela se
exauria para cruzar a linha de chegada, contorcendo-se rente ao chão
daqueles campos de lava havaianos. “Na minha mente, estava fazendo
um bom tempo. As imagens gravadas revelaram uma versão mais lenta
e mais verdadeira”, disse ela em outra ocasião.44 Ela enxotava quem tentava ajudá-la, no esforço para não ser desclassificada, chegando a afastar
até a própria mãe, que lhe ofereceu um colar de flores havaiano quando
ela tentava se erguer para cruzar a linha de chegada. O engatinhar doloroso era a única opção.
39
Jim McKay, da NBC, falou pelas muitas pessoas que assistiram à cena
quando classificou aquela chegada de Moss como “o mais inspirador
momento dos esportes que eu já vi”. O número de inscrições no Ironman dobrou nos três anos seguintes.45
Durante aquele flagelo, ela concluiu: “Minha vida seria diferente.
Senti que estava mudando naquele instante. Assumi um compromisso
comigo mesma. E o cumpri. Não me importava que doesse, não me importava que fosse chocante, mas eu iria até o fim, eu terminaria.”
Ela finalmente completou os últimos 10 metros, 29 segundos depois
da competidora que a ultrapassara, o que continua sendo a menor margem de vitória em todas as competições de Ironman.46 Julie ainda imagina como teria sido a vitória, mas, sem dúvida, atribui àquela quase
vitória as mudanças irreversíveis pelas quais passou desde então.
O caminhar constante não é apenas uma forma de movimento. Também reflete como vivemos. “Quando nos imaginamos, nos vemos caminhando”, lembra a autora Rebecca Solnit. “‘Quando ele caminhou sobre
a Terra’ é uma maneira de descrever a existência de alguém; a profissão
é a ‘caminhada pela vida’; o especialista é uma ‘enciclopédia ambulante’;
e ‘ele caminhou com Deus’ são os termos do Antigo Testamento para
descrever o estado de graça.”47
O pintor Mark Bradford, referindo-se ao processo que adota na procura de material básico para as suas obras monumentais, diz: “Como
não encontro o que preciso, tenho que me tornar disponível para o universo, então saio caminhando por aí, em busca de papel, do papel certo.”48 O que queremos mas não temos gera nossa marcha para a frente.
Os mestres são os melhores não porque levam a obra até o fim, mas
porque sabem que não há fim. Nos territórios mais amenos, o trajeto
entre o propósito e a realização sempre se encontra em um futuro permanente.
Michelangelo fazia caminhadas nas montanhas em busca das pedreiras
de mármore totalmente branco, onde encontraria a pietra viva certa.
Havia certa umidade nesse mármore preso ao veio da montanha, ou
40
escavado tão recentemente que conservava a seiva original, possibilitando a criação de esculturas que melhor “emulassem os antigos”.49 Ele
era o único artista da Itália do século XV, de semelhante reputação, que
buscava ele mesmo o próprio material. Contratava outras pessoas para
ajudá-lo, mas também passava boa parte do ano nessa busca – oito meses seguidos.50
Em Carrara, nos Alpes Apuanos, ele olhava para o oceano e imaginava entalhar em uma das montanhas uma obra colossal, uma escultura
que pudesse ser vista por todos os navegantes que se aproximassem da
costa. Quando Condivi escreveu a biografia do artista e narrou sua carreira tão meticulosamente documentada, Michelangelo quis que esse
exemplo vívido de sua trajetória inacabada fosse parte do registro de
sua vida.51 Esse foi o único ponto na biografia em que Condivi citou
diretamente sua conversa com o artista, para dar ênfase. Michelangelo
denominou essa ideia persistente de “loucura que me acometeu” e continuou: “Se eu tivesse, porém, a certeza de viver quatro vezes mais, eu
tentaria realizá-la.”52
Para Michelangelo, a arte era “uma sucessão infindável de lutas”.
“Davi com sua funda, eu com meu arco”: era como o artista via sua obra
famosa, sua jornada, suas ferramentas.53 Suas realizações são produtos
do foco no que restava fazer, enquanto mantinha o olhar nas montanhas
que constantemente se erguiam em seu caminho.
Agora faziam sentido para mim as palavras do técnico – ditas quase
no fim do treinamento, sem que as arqueiras o ouvissem – ao afirmar
que muitos de seus colegas nunca se consideram capazes de fazer o suficiente por seus arqueiros. Alguns simplesmente abandonam a profissão,
sentindo que todo o seu arsenal de instruções não é o bastante. Os exercícios de visualização e postura não são eficazes para ajudar os arqueiros
a superar os obstáculos. Esse comentário não pareceu exatamente uma
queixa, mas um reconhecimento humilde, uma maneira de expressar
o fato de que ele se desdobra em um caminho voraz, que sempre exige
mais dos caminhantes.
Construímos sobre os alicerces das ideias inacabadas, mesmo que essas ideias sejam parte de nosso antigo ego. “A utopia está lá no horizon41
te”, disse o escritor Eduardo Galeano. “Ando dois passos, ela se afasta
dois passos. Caminho 10 passos e ela corre mais 10 passos. Por mais que
eu avance, jamais a alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isto:
para que eu não deixe de caminhar.”54 A utopia impulsiona o que jamais
teríamos criado sem ela. A conclusão é o objetivo, mas, assim esperamos, nunca o fim.
42
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