Mesa 3- Diálogos Sur-sur: pedagogías descolonizadoras
DESCOLONIZAR PARA EDUCAR: É POSSÍVEL?
Mariane Del Carmen da Costa Diaz - Mestre em educação – UFRRJ/ Professora do
Colégio Pedro-II/RJ / Tutora a distância de Prática de Ensino – I CEDERJ/UFRRJ
[email protected]
Resumo:
O presente trabalho tem como mote a reflexão acerca do universo educacional
fomentando a indagação da possibilidade de uma descolonização da educação a partir
de uma ótica latino-americana à luz da “tomada de consciência latino-americana”
(Leopoldo Zea). A partir de algumas experiências durante a trajetória enquanto
professora e pesquisadora, algumas reflexões e, sobretudo, algumas falas dos estudantes
do 1º ao 5º ano do ensino fundamental de uma escola federal localizada no subúrbio da
cidade do Rio de Janeiro/RJ fomentaram o questionamento sobre a colonialidade do
poder (Quijano, 2006 a, 2006 b). A escola (e a nossa sociedade brasileira, latinoamericana) é machista, racista, eurocêntrica e excludente. É possível vislumbrarmos
uma educação descolonizadora? É possível vislumbrarmos nossas práticas docentes
com a perspectiva de descolonizar a educação? A partir de algumas falas como “Você
precisa gastar mais dinheiro no seu cabelo” (fala do aluno do 3º ano do ensino
fundamental para sua colega de turma, com o objetivo de ofendê-la), “Isso não é coisa
de menina.” (aluno do 1° ano do Ensino Fundamental referindo-se a garrafinha de
futebol de sua colega de turma), “Nada que é brasileiro presta! Filme, música,
literatura... Eu quero é conhecer as Viagens de Gulliver, a história de Hércules...” (aluno
do 5º ano quando trabalhávamos a anti-herói com a história de Lampião e Maria
Bonita), “Porque na África só tem pobreza.” (aluno do 3º ano em momento de discussão
antes de iniciarmos a leitura de uma história africana) objetivamos ratificar a
emergência de pensarmos outras pedagogias a partir de nossa realidade latinoamericana. Vislumbramos uma educação descolonizadora.
Palavras-chave: educação, descolonização, práticas docentes
Então, o nosso primeiro problema para quem vive no Sul é que as teorias estão fora do
lugar: não se ajustam realmente a nossas realidades sociais.
Boaventura de Sousa Santos
Introdução:
O que consiste o ato de educar na contemporaneidade?
A emergência por novos horizontes, ou melhor, outros horizontes, consistem na
“reflexão filosófica” ou como afirma Flicknger (1998), para além do esclarecimento dos
impasses ou a “cegueira teórica na prática educacional”. Urge a necessidade de uma
tomada de consciência por uma postura refletida.
O que seria, porém, essa tomada de consciência que o autor destaca? O que
seria, porém, em nossa realidade brasileira, latino-americana essa tomada de
consciência? O que seria, para nós, professores essa tomada de consciência?
O comportamento reflete do que nos obrigue a dar-nos conta dos pressupostos e
das implicações determinantes (ou, que são determinadas do perfil profissional do
educador).
Quão cruel é (conosco e para com nossas crianças, nossos alunos)
permanecermos pautados por uma lógica eurocêntrica, etnocêntrica e colonialista. Uma
lógica européia, com padrões e estéticas etnocêntricas, machista, racista, e,
consequentemente colonialista e excludente. Quão cruel é, para nós, professores com
um mínimo de sensibilidade, tais agressões imperceptíveis e diluídas no nosso fazer
pedagógico cotidiano. Nas nossas práticas diárias.
Freire (2000, p. 44) clama “Por uma nova sociedade, que, sendo sujeito de si
mesma, tivesse no homem e no povo, sujeitos de sua História. Opção por uma sociedade
parcialmente independente ou opção por uma sociedade que se „descolonizasse‟ cada
vez mais”.
É necessário conhecer nossa história (e contextualizo nossa história brasileira,
latino-americana, na condição de colonizada, explorada e saqueada como afirma
Eduardo Galeano). Como afirma Bruckmann (2011):
A produção e reprodução da vida material dos povos e a
elaboração de seus imaginários estão dominados pela ideia de que
a civilização ocidental é o único modelo civilizatório do planeta,
e que todas as demais civilizações- sem importar seu nível de
elaboração e complexidade, seu grau de desenvolvimento ou suas
contribuições à humanidade – são consideradas apenas culturas
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atrasadas frente ao modelo imposto (BRUCKMANN, 2011, p.
215)
Devemos (re) conhecer a partir de nossas dores, nossas feridas ainda latentes,
nossas “veias abertas” a projeção para a tomada da conscientização, proposta por
Flicknger e vislumbrar uma “filosofia da libertação” almejada pelo filósofo mexicano
Leopoldo Zea. A necessidade de uma filosofia da libertação, ou seja, o poder
transformador do pensamento sobre a realidade.
Em outros termos, numa circunstância histórica dependente
pode surgir uma filosofia da libertação capaz de superar esta
mesma dependência característica da circunstância histórica.
Não se pode excluir a priori que uma nova atitude filosófica
ibero-americana venha a ensejar uma nova práxis da superação
da dependência. (ZEA, 2005, p. 23)
Outro filósofo reafirma a necessidade da memória, e de não deixar-nos esquecer
as feridas que permanecem abertas, mas, querem-se ocultar, de nosso passado... “O
desejo de libertar-se do passado justifica-se (...) o passado de que se quer escapar ainda
permanece muito vivo.” (ADORNO, T. 1995, p. 29). Podemos dialogar ainda com a que
Lobo & Santos (2012 p. 11) afirmam, “a emancipação é um processo que se dá de
dentro para fora e depende da vontade de cada um tem de ser livre”
Theodor Adorno, em seu ensaio “Educação após Auschwitz” afirma que:
Mas a pouco consciência existente em relação a essa exigência
e as questões que ela levanta provam que a monstruosidade não
calou fundo nas pessoas, sintoma da persistência da
possibilidade de que se repita no que depender do estado de
consciência e inconsciência das pessoas.(ADORNO, 1995, p.
119)
Adorno afirma ainda que:
Quando falo de educação após Auschwitz, refiro-me a duas
questões: primeiro, à educação infantil, sobretudo na primeira
infância; e, além disto, ao esclarecimento geral, que produz um
clima intelectual, cultural e social que não permite tal repetição;
portanto um clima em que os motivos que conduziram ao
horror tornem-se de algum modo conscientes. (ADORNO,
1995, p. 123)
A partir de algumas falas e situações vivenciadas no universo escolar dediqueime a pensar na possibilidade da descolonização da educação. A partir da minha
experiência, advindas da pesquisa do mestrado em educação realizada em consonância
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com atores indígenas pude “experienciar” e conhecer outras formas de produção de
conhecimento e educação. Carlos Rodrigues Brandão utiliza “educações” para destacar
as inúmeras possibilidades educativas. A educação para e pelos sentidos, a educação
estética, a educação indígena, a educação do campo, educação quilombola, educação
ambiental ...
A interseção que gera o presente artigo é a repercussão ou o eco (para utilizar a
metáfora Benjaminiana) das falas dos alunos do 1º segmento do Ensino Fundamental
com o - cruel - modelo dominante. O espanto, como afirma Jorge Luis Borges, é o que
me moveu e me instigou a pensar outras possibilidades educacionais que não nos anule
enquanto sujeitos (estéticos, éticos, históricos, sensíveis) que leve em consideração o
nosso lugar, o nosso espaço e as nossas aspirações e desejos.
As falas reprodutoras de um modelo dominante que anula, exclui, agride, oprime
o outro, cerceando a sua liberdade enquanto sujeito dotado de direitos (entre eles, o ser
diferente) estimulou o questionamento direcionado para a descolonização da educação
tomando como mote teórico o que Aníbal Quijano denomina de “colonialismo do
poder”.
Tomando a exemplo a experiência boliviana retratada por Remberto Linera
(2012) em “Discursos des/colonizadores sobre „desarrolo‟ y educacion: analises de la
ley educativa „Avelino Siñani – Elizardo Perez” , a constituição de um Estado
Plurinacional que “apresenta-se como projeto político que questiona profundamente a
visão homogeinizante do Estado-nação e com ele, a tradição política ocidental na
América Latina” (BRUCHMANN, M. 2011, p. 219).
Na experiência boliviana, Larrea (2012) afirma que entre as perguntas
substantivas no debate latino-americano são “Que desenvolvimento e que tipo de
educação construímos no contexto da crise estrutural do capitalismo e da modernidade?
É possível construir „outro desenvolvimento‟ para descolonizar a economia, a política, a
cultura, a sociedade e a educação?” (LINERA, R. 2012, p. 13)
Aníbal Quijano (2006) destaca os principais produtos da experiência colonial.
São eles: (a) a “racionalização” das relações entre colonizadores e colonizados, ou seja,
naturalizar as relações sociais de dominação produzidas pela conquista; (b) a
configuração de um novo sistema de exploração que articula em uma única estrutura
conjunta todas as formas históricas de controle do trabalho ou exploração; (c) o
eurocentrismo como o novo modo de produção e controle da subjetividade; (d) o
estabelecimento de um novo sistema de controle da autoridade coletiva.
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Quijano (2006) destaca ainda que:
A colonialidade do poder implica que toda a parte da população
não-branca não pode consolidar-se em sua cidadania, sem
originar enormes e graves conflitos sociais. Em certos países
como Brasil, Equador ou Guatemala ou em certas zonas de
Bolívia, México ou Peru, essa é, exatamente, a raiz do que para
a fauna dominante talvez apareça todavia apenas como um
novo problema indígena, mas que na verdade, como se verá
imediatamente, tem inaugurado um novo período histórico e o
primeiro termo para o padrão de poder em que está implicado.
(QUIJANO, A. 2006, p. 63)
O que se pretende destacar nessa pesquisa é a possibilidade de outras educações,
outras formas de educar e se educar. Como afirma Bruckmann (2011) e Linera (2012),
existem outros modos de produção e relação do/com espaço, sociedade e natureza.
Existe a relação do “bem viver”.
Na visão indígena, o homem deve „criar a mãe-terra e se deixar
criar por ela‟. Esta relação profunda entre o homem e a terra
como fonte de vida se contrapôs radicalmente à visão do
colonizador que via a terra como objeto de posse, espaço de
exploração e extração de metas e pedras preciosa; ou seja,
objeto de depredação. (BRUCKMANN, M. 2006, p. 219)
Faz-se necessário libertarmo-nos do eurocentrismo como visão de mundo e
como estrutura de conhecimento. E como afirma Mônica Bruckmann (2006, p. 220),
“faz-se necessário reelaborar a nossa história e recuperar a nossa memória coletiva, bem
como o legado civilizatório, para construirmos nossos próprios modelos de
desenvolvimento e projetos de visões de futuro)”.
Leandro Machado e Roberta Lobo afirmam que:
Nesse momento de perplexidade generalizada em que a
perspectiva de futuro restringe à garantia da sobrevivência
diária – diante da fome, das epidemias, dos desastres naturais,
da guerra convencional ou dos inúmeros contextos da guerra
civil espalhados pelo planeta – na selva de pedra das cidades e
que a imagem do passado parece desaparecer paulatinamente da
nossa memória, surge a necessidade de refletirmos sobre nossas
experiências históricas, sobretudo as que vivemos até aqui, com
o sentido de ressignificar o passado, utilizando todo o seu
material explosivo como agente catalisador das nossas
experiências no tempo presente, ampliando com isso o nosso
horizonte histórico diante das possibilidades de um futuro
diferente. (LOBO & SANTOS, 2012, p. 13)
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Valdo Barcelos (2010 a, 2010 b) para além da descolonização da educação,
destaca o movimento antropofágico pós Semana de Arte Moderna de 1922 para uma
associação entre a antropofagia e a educação. O autor defende ainda uma “nãopedagogia” não no sentido de negar a pedagogia mas, por compreender que as práticas e
lógicas vigentes não dão conta da(s) necessidade(s) educacionais.
Barcelos afirma ainda que:
As sociedades latino-americanas precisam encontrar seus
próprios caminhos políticos. Mais que isso, há que inventar sua
própria ideia de sociedade, tomando como ponto de partida suas
diferentes formas de viver e morrer, suas formas de produzir e
consumir, suas relações de trabalho e lazer. Enfim, é essa uma
tarefa que está a exigir, além de todo um processo de
conhecimento histórico sobre o continente latinoamericano,
uma grande capacidade de imaginação criadora, coisa que não
falta às sociedades deste continente, embora essa capacidade
tenha sido por longos períodos desconsiderada pelas elites que
exerceram os poderes político e econômico. (BARCELOS, V &
FLEURI, R. . 2010 b, p. 272)
Miguel Arroyo (2007) apresenta trajetórias e experiências de professores e
alunos que dão sinais que a escola e a educação que temos hoje já não dão conta do
direito à educação. Que direito é esse? Destinados a quem? Com quais objetivos?
Arroyo (2007, p. 11) afirma que “Teríamos de rever nossas imagens profissionais.
Redefinir imaginários dos alunos exige redefinir imaginários da docência e da
Pedagogia. Uma tarefa inadiável diante da infância e da adolescência quebrada pela
barbárie da sociedade.”
Podemos dialogar tal afirmação de Miguel Arroyo (2007) com o que Barcelos
(2010 a) reafirma a partir de Paulo Freire:
Que dialogue com elas, sem, contudo, abrir mão de suas
origens, sua cultura, suas experiências, enfim, seus saberes e
fazeres. Em outras palavras: que proceda a devida devoração
cultural do estranho, do novo, do diferente, para, a partir dessa
devoração criar, inventar, aquilo que nos interessa. Que nos faz
feliz. (BARCELOS, V. 2010 a, p. 57)
Arroyo (2007) afirma ainda que a parte da população que é excluída pelo modo
e forma de educação (escolar) conhecem bem a negação de seus direitos:
As trajetórias escolares dos educandos(as) revelam que o direito
à educação é também uma construção paciente, sofrida deles
mesmos. Os movimentos sociais sabem disso. Alguém
outorgou os seus direitos às mulheres, aos povos indígenas, aos
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povos do campo, aos negros, aos trabalhadores, inclusive aos
trabalhadores da educação? (ARROYO, M. 2007, p. 111)
E destaca ainda que:
Nos relatos de suas vidas, os alunos e as alunas demonstram
que à escola levam muitas interrogações não apenas sobre o
sentido do estudo, mas sobre os sentidos ou sem-sentidos de
sua vida e seu estar no mundo. As precárias condições em que
reproduzem as suas existências, os preconceitos sociais e
racistas que padecem os instigam a interrogar-se e a duvidar das
explicações que lhes são dadas, a sair à procura de uma
compreensão da sua realidade e da realidade social, cultural
com que se defrontam. O direito à educação e ao conhecimento
inclui o direito a saber o que significa, hoje, estar no mundo
como crianças, adolescentes, jovens. Não apenas estar no
mundo como adultos. (ARROYO, M. 2007, p.114)
Pensar a descolonização da educação é antes de tudo pensar a educação e as
nossas práticas pedagógicas enquanto professores. A motivação e o interesse pela
questão afloraram durante minha pesquisa de campo referente ao mestrado em
educação, no qual visitei algumas terras indígenas no Rio Grande do Sul e Curitiba, e
conversei com alguns professores indígenas dos povos Kaingang e Guarani.
Após dois anos e meio imersa nas outras questões que permeiam a educação
(escolar) indígena e tendo uma aproximação com os estudantes da Licenciatura em
Educação do Campo (LEC) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ),
o ranço de nossa história colonial e colonialidade do poder e os fantasmas da América
Latina (Quijano, 2006 a, 2006 b) ficaram cada vez mais evidentes.
A primeira aproximação com a temática indígena surgiu na graduação, quando
participei de projetos de iniciação a pesquisa para trabalhar com a omissão do Estado e
o silenciamento desses atores1. O segundo passo foi reconhecer na minha trajetória a
marca do preconceito do estrangeiro (sendo meu pai um imigrante peruano) e tendo
vivenciado durante toda a minha trajetória de vida a marca da exploração, do “olhar
torto” e do deboche por ter algumas marcas visíveis dessa diferença. Os indígenas, no
entanto, são “instrangeiro”, termo utilizado por Cristóvão Buarque (2002) para
denominar os excluídos de suas próprias sociedades.
1
Bolsista PIBIC/CNPq/UFRRJ atuando nos projetos: EDUCAÇÃO E VIOLÊNCIA INSTITUÍDA EM
ALDEIAS GUARANI NO SUL FLUMINENSE: MEMÓRIAS DE OMISSÕES GOVERNAMENTAIS
E AUSÊNCIAS DE POLÍTICAS PÚBLICAS EM EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA DO ESTADO
DO RIO DE JANEIRO (2009 - 2010) e Educação escolar indígena: entre memórias e narrações Mbyá
Guarani em Angra dos Reis (2010)
7
“Porque esse não é o mundo Kaingang. Esse é o mundo do branco”. Essa
significativa fala de um professor Kaingang, durante minha pesquisa de campo no
mestrado, me fez pensar até que ponto a educação escolar que temos hoje, de modo
geral, em nossa sociedade é o nosso mundo e atende as nossas expectativas. Ou melhor,
até que ponto essa nossa escola é de nós, “brancos”, latino-americanos. Não seria esta, a
lógica e a escola do colonizador?
Enquanto professora da educação básica, pude perceber o quanto vivemos numa
sociedade ainda colonizada (e colonizadora). Como nossa escola reproduz, mesmo que
inconsequentemente (ou, perigosamente disfarçadamente) práticas de um modelo e de
uma realidade que não nos pertence. A emergência de vivermos a partir de nossas
histórias, nossas realidades, nossos anseios. Salvo exceções, nossas escolas e currículos
(como afirma Nilda Lino Gomes, 2012) são machistas, eurocêntricos e excludentes.
Pensar a possibilidade de uma educação descolonizadora é, como nos convida
Walter Benjamin (1994) com a metáfora do Anjo voltado com os olhos para trás a olhar
para a nossa história, compreendê-la e a partir daí buscar práticas que realmente
atendam as nossas demandas e aos nossos anseios. Pensar a descolonização da educação
nos emerge a pensar no negro, no índio, no camponês, no trabalhador, nos estrangeiros
e, acima de tudo, nos “instrageiros”. Pensar a descolonização da educação é
compreender a nossa sociedade, a nossa formação enquanto brasileiros, enquanto povos
latino-americanos; é pensar em nossa formação humana, compreendermo-nos enquanto
cidadãos, e como clamou Mercedes Sosa: “que vivir uma cultura diferente”.
O passado é mudo? Ou continuamos sendo surdos?
Eduardo Galeano
O Brasil, como propagado erroneamente nos meios de comunicação e nos livros
de histórias, não foi “descoberto”. O Brasil foi saqueado, usurpado, aniquilado,
explorado, sucateado e assim foi em toda a América Latina, como Galeano (2010)
revela em As veias abertas da América Latina. A relação entre os nativos (indígenas) e
os colonizadores não foi amistosa, foi uma relação conflituosa que permanece até os
dias de hoje no que tange as lutas pelas (suas) terras e pelos seus direitos.
Perdemos; outros ganharam. Mas aqueles que ganharam só
puderam ganhar perdemos: a história do subdesenvolvimento
da América Latina integra, como já foi dito, a história do
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desenvolvimento do capitalismo mundial. (GALEANO, 2010,
p. 18-19)
Reconhecer o colonialismo até então impregnado nessa relação é o primeiro
passo para sua superação e para a emancipação social, como destaca Boaventura de
Sousa Santos (2007). “Que história nos é contada e com a qual nos identificamos
enquanto brasileiros? Que silêncios nos acompanham ao longo dessa história?”
(ORLANDI, 1990, p. 19).
Como o silêncio divide, significativamente, o que se conta e o
que não se conta, produzindo assim uma configuração para a
brasilidade? Esta é, aliás, uma das formas eficazes da prática da
violência simbólica, no confronto das relações de força, no jogo
de poder que sustenta efeitos de sentido: o silenciamento que a
acompanha. (ORLANDI, 1990, p. 19).
“Os docentes são chamados para nos ensinar a salvar o mundo. E se o mundo
está assim, deve ser por culpa deles.” (GENTILI, 2008, p. 11). Pablo Gentili ironiza o
“posto” ocupado/imposto pelos professores de Superman e Mulher Maravilha. A partir
da ironia, porém, podemos refletir até que ponto nós, professores, temos a incumbência
de “salvar o mundo”, ou melhor, (re) pensar as nossas práticas.
Amparados pela filosofia da educação, compreendemos que:
A filosofia da educação cabe a tarefa de tornar transparente
para os próprios atores, a dependência de seu agir e de suas
convicções teóricas, em relação ao contexto de seu mundo
objetivo, que, longe de ser apenas determinado por eles, orienta
sua própria vida profissional. (FLICKNGER, 1998, p. 4)
Entendemos ainda que “A filosofia assumiria, neste caso, a função de
providenciar as ferramentas intelectuais capazes de quebrar o domínio de uma
racionalidade meramente instrumental” (FLICKNGER, 1998, p. 2-3).
Algumas falas de alunos do 1º ao 5º ano do ensino fundamental levaram-me a
alguns questionamentos (de minha prática pedagógica enquanto professora e
educadora). Dediquei-me a anotar algumas delas. Confesso que algumas foram tão
marcantes que ecoam em minha mente sorrateiramente, sem pedir licença. Entendo essa
mensagem como um estímulo para não esquecer a minha função e o meu
comprometimento para com a formação humana e emancipatória de meus alunos.
Freire destaca que:
Educação que, desvestida da roupagem alienada e alienante,
seja uma força de mudança e de libertação. A opção, por isso,
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teria de ser também, entre uma „educação‟ para a
„domesticação‟, para a alienação, e uma educação para a
liberdade. „Educação‟ para o homem-objeto ou educação para o
homem-sujeito. (FREIRE, 2000, p. 44).
É como Miguel Arroyo (2007, p. 19) questiona: “Diante do incômodo e malestar de mestres e alunos resta algo capaz de inspirar nosso pensar e fazer profissional?”
Falas que ecoam e o mundo do lado de cá...
Não nos move o amor, mas o espanto.
J. L. Borges
A fim de ratificar a argumentação para vislumbrar a emergência da
descolonização da educação, explicito nesse momento alguns discursos em diferentes
momentos dos alunos do 1º ao 5º ano do 1º segmento do Ensino Fundamental do
Colégio Pedro II, Realengo, Rio de Janeiro/RJ. A disciplina em questão é literatura.
Notem que estamos falando de crianças de idade entre 6 a 12 anos que não são
desprovidas de pensamentos e opiniões, mas
que de certo modo reproduzem
(cruelmente) discursos, falas, modos e pensamentos que já estão impregnados em nosso
pensar, agir e em nossa sociedade.
“Você precisa gastar mais dinheiro no seu cabelo”. (fala do aluno do 3º ano do ensino
fundamental para sua colega de turma, com o objetivo de ofendê-la)
“Isso não é coisa de menina.” (aluno do 1° ano do Ensino Fundamental referindo-se a
garrafinha de futebol de sua colega de turma)
“Nada que é brasileiro presta! Filme, música, literatura... Eu quero é conhecer as
Viagens de Gulliver, a história de Hércules...” (aluno do 5º ano quando trabalhávamos a
anti-herói com a história de Lampião e Maria Bonita)
“Eu sou Joana e adoro meu cabelo. #Soquenão” (desenho pejorativo que circulava na
sala com a charge de uma aluna negra – 5º ano)
“Porque é índio é canibal!” (aluna do 3º ano em uma conversa antes de iniciarmos a
leitura de uma história indígena)
“Porque na África só tem pobreza.” (aluno do 3º ano em momento de discussão antes de
iniciarmos a leitura de uma história africana)
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“Eu queria ter o cabelo igual ao dele pra fazer isso „óh‟ (abaixando a cabeça e passando
a mão simulando um „jogar de cabelo‟) (aluno do 1º ano referindo-se ao cabelo liso de
seu colega de turma)
Algumas situações também compõem esse “leque-reflexivo” de situações
cotidianas e práticas escolares...
Desenhos dos personagens negros, com traços europeizados são muito comuns.
A exemplo de Obax (personagem do livro Obax, de Rogério de Andrade), uma
personagem negra de uma história africana que foi desenhada por inúmeros alunos com
a cor de pele clara, ou o mais conhecido giz “cor de pele”.
Dificuldade em reconhecer no outro a beleza (o que é o belo? O que é a
estética?). Padrões eurocêntricos inclusive, nas falas dos professores.
Dificuldade em se reconhecer como negro e por isso, representação a partir de
ilustrações com os padrões de beleza eurocêntricos, olhos verdes ou azuis, cabelos lisos
e pele branca.
Um dos trabalhos mais marcantes e com falas mais expressivas para a urgência
de descolonizar a educação (o currículo e nossas mentes...) ocorreu com o 2º ano do
ensino fundamental. O conteúdo programático do 2º ano na literatura é sobre os contos
de fadas e após uma enxurrada de princesas brancas, loiras, olhos claros, cabelos lisos
(com exceção de Tiana, negra e Branca de Neve, cabelos negros como ébano)
solicitamos que os alunos se fizessem como reis e rainhas de seu próprio conto de fadas.
Antes da atividade conversamos sobre outros reis e rainhas e mostramos algumas
imagens de reis e rainhas diferentes das que eles estavam habituados. Desastre! Ao
projetar algumas imagens de reis e rainhas africanos, mostrar algumas fotos de
indígenas, como uma foto do indígena Raoni em Paris, instantaneamente surgiram os
comentários:
“Por que ele tem cara de macaco?”
“Ele parece animal!”
“Tia, que coisa horrorosa!”
“Tia, parece mais a „noiva do Chuck‟”.
Última situação...
Aluno 1: “Eu sou o Kiriku!”
Aluno 2: “Não, eu é que sou o Kiriku!!!”
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Aluno 3: “Quem é o único pretinho da sala? Então quem é o verdadeiro Kiriku? (com
passinhos de dança e gabando-se) Eu sou o Kiriku (ênfase na fala utilizando um tom de
voz diferente)!”
Kiriku e a feiticeira é um longa-metragem de animação franco-belga, dirigido
por Michel Ocelot (1998) que foi trabalhado com uma turma do 3º ano do Ensino
Fundamental. Kiriku é uma criança africana superdotada, um recém-nascido que tenta
solucionar os problemas de sua aldeia e, depois de muitas aventuras e confusões
consegue um final feliz para o seu povo. No final do filme, com um sorriso largo de
satisfação um aluno negro debocha “Quem é o único pretinho aqui da sala?! Então
quem é o verdadeiro Kirikou?!”. Muitos alunos desejaram ser o Kiriku (mesmo com
todos os estereótipos de uma criança africana) e esse desejo pelo o que até então, não é
o modelo, o padrão, ratificou ainda mais a possibilidade de uma educação
descolonizadora.
Eis aí, a necessidade e a urgência de enquanto professores tomarmos consciência
por uma postura refletida e assim, possibilitar a existência e o surgimento de outras
educações! Como poetiza Manoel de Barros:
Repetir repetir – até ficar diferente.
Repetir é um dom do estilo.
Em 2014 completamos 11 anos da lei nº 10.639/03 e 6 anos da lei nº 11.645/08,
leis que tornam obrigatório o ensino da(s) história(s) e cultura(s) afro-brasileira e
indígenas nas instituições de ensino fundamental e médio,
oficiais
e privadas.
Compreendemos, porém, que tais leis não nos garante um ensino “menos colonizado”
ou menos racista, machista, e excludente se, enquanto professores não nos despirmos de
certos ranços. Precisamos tomarmos consciência de nossas práticas mesmo quando,
afirmamos que por exemplo, trabalhamos os conteúdos obrigatórios na lei em abril e em
novembro, por exemplo. De tal forma, apenas ratificamos e assinamos embaixo tal
postura, como se a cultura afro-brasileira e indígena de nada mais valesse senão
comemorações e atividade pontuais.
Lúcia Hardt afirma que:
Até agora fomos domesticados e cuidados por um monstro que
diz nos proteger. (...) A sabedoria é uma mulher e nos quer ver
como guerreiros e não submissos. Somos camelos carregando a
palavra e o conceito do outro, outro meio asno que carrega o
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que interessa visando a dirigir e a criar consciências. É preciso
ser um pouco louco para enfrentar estes asnos e toda loucura
tem um quê de razão. (2013 a, p. 269)
Por fim, deixo uma bela poesia que é cantada por Mercedes Sosa paa a nossa
reflexão latino-amercana...
Salgo a caminar
Por la cintura cósmica del sur
Piso en la región
Más vegetal del tiempo y de la luz
Siento al caminar
Toda la piel de América en mi piel
Y anda en mi sangre un río
Que libera en mi voz
Su caudal.
Sol de alto Perú
Rostro Bolivia, estaño y soledad
Un verde Brasil besa a mi Chile
Cobre y mineral
Subo desde el sur
Hacia la entraña América y total
Pura raíz de un grito
Destinado a crecer
Y a estallar.
Todas las voces, todas
Todas las manos, todas
Toda la sangre puede
Ser canción en el viento.
¡Canta conmigo, canta
Hermano americano
Libera tu esperanza
Con un grito en la voz!
(Canción com todos – Mercedes Sosa)
Utilizando as palavras de Lúcia Hardt (2013 a, p. 271: “E essa experiência pode
ajudar o campo da educação a compreender o sujeito como uma totalidade sensível,
racional, previsível e tantas vezes imprevisível”. Acreditamos que a pesquisa
etnográfica dialoga com essa experiência e poderemos assim, pensar o sujeito não como
um objeto que recebe depósitos (informações), mas pensar na totalidade, nos sujeitos
sensíveis e como afirma Arroyo (2007, p. 115) “reconhecer que carregam para as salas
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de aula vivências pessoais e grupais dos grandes dramas humanos e que se interrogam
por seus significados afeta a concepção de currículos e de conhecimento escolar, afeta
nossas competências e tratos do conhecimento”.
Na aula magna de 2014 do Colégio Pedro II/RJ, o Prof. Drº Kabenguele
Munanga (USP) afirmou que “só a educação tem o poder de transformar os monstros
(que nossa sociedade constrói) em outros sujeitos”. Acrescento que esses novos e outros
sujeitos poderão ser formados a partir de uma educação anti-racista, anti-homofóbica,
anti-machista, ou seja, que respeite as diferenças ideológicas.
Que caminhemos em busca de tal educação transformadora...
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
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