Rotunda4
abril 2006
CEPAB-IA UNICAMP
Rotunda
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©Centro de Pesquisa em História das Artes no Brasil (CEPAB), Instituto de Artes, UNICAMP, 2003-2006
ISSN – 1678–7692
Editores responsáveis: Lygia A. Eluf e Paulo M. Kühl
Capa: Lygia A. Eluf
Conselho Científico:
Ana M. T. Cavalcanti
Jorge Coli
Maria Cecília França Lourenço
Maria de Fátima M. Couto
Mônica Zielinsky
Paulo Mugayar Kühl
Ricardo N. Fabbrini
Universidade Estadual de Campinas – Reitor: Prof. Dr. José Tadeu Jorge
Instituto de Artes – Diretor: Prof. Dr. José Roberto Zan
CEPAB – Coordenador: Prof. Dr. Paulo M. Kühl
Artigos, textos (com fontes e documentos) e resenhas para publicação devem ser enviados ao CEPAB e serão
submetidos ao Conselho Científico; se aceitos, serão publicados nos próximos números. Endereço para correspondência:
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Os textos aqui publicados são propriedade intelectual de seus autores. A impressão
da revista e sua distribuição, para fins acadêmicos, estão autorizadas e devem ser gratuitas;
citações para fins acadêmicos estão autorizadas, desde que mencionada a fonte.
Neste número estão reunidos artigos que tratam de assuntos variados, mas
que se imbricam. Dois textos tratam das relações entre as artes plásticas e a literatura no
Brasil, ainda que com objetos muito distintos. De qualquer modo, pode-se perceber a
vastidão dos assuntos ainda a serem estudados, o que vem atraindo novos pesquisadores e
novos esforços. Temas que envolvem a chegada da corte e a institucionalização da
produção artística ao longo do século XIX no Brasil estão presentes nos outros artigos,
revelando a pluralidade de problemas e abordagens e a necessidade constante de pesquisas.
Dentro desse espírito, gostaríamos já de anunciar que o CEPAB prepara para 2008 um
grande congresso sobre a produção artística em torno da chegada da corte portuguesa ao
Brasil.
Lygia A. Eluf
Paulo M. Kühl
Rotunda, n. 4, abril de 2006
Artigos
PAULA F. VERMEERSCH. Duas edições renascentistas da Divina Comédia no Brasil.
5
ANDRÉ TAVARES. Artes visuais e literatura: uma introdução à obra artística de Cornélio
Penna.
15
E LAINE DIAS. Félix-Émile Taunay e a recepção da tradição clássica na Academia
Imperial de Belas-Artes (1834-1851).
43
PAULO M. KÜHL. A chegada das óperas de Rossini no Rio de Janeiro.
59
Fontes e Documentos
FERNANDO PEREIRA BINDER. O Dossiê Neuparth.
71
Duas edições renascentistas da Divina Comédia no Brasil.
Paula F. Vermeersch *
Éden
A cidade de São Paulo na América do Sul não era um livro que tinha
cara de bichos esquisitos e animais de história.
Apenas nas noites dos verões dos serões de grilos armavam campo
aviatório com os berros do invencível São Bento as baratas torvas da
sala de jantar.
Oswald de Andrade, Memórias Sentimentais de João Miramar.
Ainda está por ser escrita a história da recepção de Dante Alighieri no Brasil.
Considerando-se que a presença de temas dantescos na literatura e artes plásticas brasileiras
existe claramente desde a primeira metade do século XIX, e que a virada do mesmo século
conheceu a grande empreitada de tradução de Joaquim Xavier Pinheiro da Divina Comédia
em versos (publicada com grande alarde em periódicos importantes como a revista Kosmos),
percebe-se que o tema, mais do que mera curiosidade, contém discussões importantes tanto
para a historiografia artística quanto para a literária.
De fato, a obra de Dante, fundamental para a constituição da poesia européia
ocidental, aportou às terras brasileiras e aqui encontrou leitura, tradução, comentário e
citação constantes (basta lembrar, a título de exemplo, as copiosas citações dantescas de
Machado de Assis). Porém, além de todos esses debates, possíveis e necessários, é
surpreendente, para muitos, pensar na existência de dois exemplares da obra maior do
Doutoranda em Teoria e História Literária (IEL-UNICAMP), pesquisadora do CEPAB e do Projeto
Temático Cicognara, Mestre em História da Arte e da Cultura e em Sociologia (IFCH-UNICAMP).
*
Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 5-14
5
Paula F. Vermeersch – Duas edições renascentistas da Divina Comédia no Brasil
poeta florentino, da época de sua maior glória, em acervos públicos brasileiros, ambos de
importância incalculável e de histórias relevantes.
O conjunto arquitetônico do Largo de São Francisco, no centro da cidade de São
Paulo, divide-se em duas partes: a primeira, compreendendo duas igrejas, a de São
Francisco de Assis da Venerável Ordem dos Frades Menores e a das Chagas do Seráfico
Pai São Francisco da Penitência, e a segunda, a Faculdade de Direito da Universidade de
São Paulo.
As igrejas remontam ao ano de 1642, quando a Câmara doou um terreno para os
“frades de Santo Antônio” construírem um templo. Em 1676, a Ordem Terceira, ao lado,
funda uma capela; os dois edifícios conhecem sucessivas melhorias até a década de 1790,
quando os frades dão ao conjunto seu aspecto atual. Segundo o guia Bens Culturais
Arquitetônicos no Município e na Região Metropolitana de São Paulo1, “o resultado foi a criação do
mais harmônico conjunto colonial de São Paulo que, felizmente, sobreviveu quase
intacto”2, não fosse pela remodelação, em 1934, do antigo Largo, que perdeu seu adro
devido à necessidade de aplainar a grande ladeira do Vale do Anhangabaú, e do contraste
com o enorme prédio da Faculdade.
O guia é impiedoso: “O prejuízo, na verdade, vem da enorme mole representada
pela Faculdade de Direito, construída para substituir o antigo convento, já bastante alterado
quando demolido em 1932. De um grandiloqüente neobarroco inspirado em Nasoni, com
influências classicistas”3, o prédio da Faculdade teria quebrado a harmonia e a delicadeza da
fachada das igrejas. O prédio da Faculdade, nesse estilo arquitetônico afetado (tão próprio
da São Paulo rica com o café e recém-industrializada, como no caso do Teatro Municipal)
guarda a simplicidade do convento franciscano apenas no pátio interno, com as arcadas
lembrando o claustro, e abriga a primeira biblioteca paulista.
Na seção de Obras Raras, figuram os livros do convento e aquisições feitas ao
longo de dois séculos, e o maior destaque é, sem dúvida, o exemplar veneziano, de 1520, da
1Bens
culturais arquitetônicos no município e na Região Metropolitana de São Paulo, São Paulo, Secretaria dos Negócios
Metropolitanos, Empresa Metropolitana de Planejamento da Grande São Paulo S/A e Secretaria Municipal de
Planejamento, 1984.
2idem, p. 164.
3idem, p. 165.
6
Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 5-14
Paula F. Vermeersch – Duas edições renascentistas da Divina Comédia no Brasil
Comédia, a obra mais antiga do acervo, reimpressão da edição feita em 1512 por Bernardino
Stagnino4 em Veneza.
A origem do exemplar do Largo de São Francisco permanece, até o momento, um
pequeno mistério. O livro é a obra impressa mais antiga dos acervos da Universidade de
São Paulo, segundo o catálogo Bibliotheca Universitatis5, e está guardada na que foi a primeira
biblioteca pública da cidade, fundada antes mesmo da constituição dos cursos jurídicos no
Brasil, em 1828. Percorrer as trilhas que o livro encontrou em São Paulo é enveredar pelos
documentos que atestam o desenvolvimento da biblioteca e da antiga Faculdade de Direito,
centro da formação de várias gerações de dirigentes e intelectuais do país.
Myriam Ellis, em 1957, trouxe à luz a série de documentos sobre a fundação da
biblioteca.6 São Paulo ainda era uma cidade provinciana e pobre quando, em 1745, seu
primeiro bispo, Dom Bernardo Rodrigues Nogueira, fez um projeto para o Palácio
Episcopal, que contaria com uma biblioteca pública. O bispado de São Paulo havia sido
criado por carta régia e confirmado por bula papal neste mesmo ano; o projeto de Dom
Bernardo, porém, permaneceu no papel, mas atesta o desejo dos antigos paulistas em
fundar na cidade uma biblioteca e cursos de formação universitária.
O terceiro bispo paulistano, Dom Frei Manuel da Ressurreição, em 1776, enviou
uma carta ao Marquês de Pombal, comunicando que tudo corria bem nas cercanias de São
Paulo, e, tendo aberto ao público sua própria biblioteca, de aproximadamente dois mil
volumes, requesitava ao Marquês que, quando de sua morte, esse acervo fosse para a Mitra,
evitando que os cabidos o vendessem, o que era a prática usual e que contrariava o
princípio que esses bens fossem do Estado português.7
4Os
dados sobre as edições da Comédia foram retirados, primeiramente, do site Dante Renaissance in Print,
http://www.italnet.nd.edu/Dante.
5 R. E. HORCH (coordenação técnica), M. ROSETTO (coordenação de equipe), E. COSTA RIBEIRO (pesquisa e
normalização bibliográfica), Bibliotheca Universitatis. Livros Impressos dos séculos XV e XVI do Acervo Bibliográfico da
Universidade de São Paulo, São Paulo, EDUSP e Imprensa Oficial, 2000.
6 M. E LLIS , Documentação sobre a primeira Biblioteca Pública Oficial de São Paulo, São Paulo, Separata da Revista de
História, n. 30, 1957. Ellis publicou os documentos que encontrou no Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro, já
que os que constavam na própria Biblioteca do Largo de São Francisco queimaram no incêndio que destruiu
o arquivo da Faculdade e parte do acervo, em 1880.
7 É de se ressaltar que existe um retrato, a óleo, de Dom Frei Manuel da Ressureição, 3º Bispo de São Paulo,
no Museu de Arte Sacra da cidade. Nesse belo retrato, Dom Frei Manuel é representado segurando
delicadamente um crucifixo ao peito, à frente de um cortinado que, desvelado à direita, mostra uma estante de
Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 5-14
7
Paula F. Vermeersch – Duas edições renascentistas da Divina Comédia no Brasil
Finalmente, em 1824, o primeiro presidente da província de São Paulo, Lucas
Antônio Monteiro de Barros, Visconde de Congonhas do Campo, resolveu criar a primeira
biblioteca pública de São Paulo, requisitando, por ofício ao Ministro do Império João
Severiano Maciel da Costa, a compra da biblioteca do bispo da diocese paulistana Dom
Matheus de Abreu Pereira, falecido naquele ano. O Visconde propôs que a biblioteca de
Dom Matheus fosse anexada à do Convento de São Francisco, legada pelo bispo de
Funchal Dom Luís Rodrigues Vilares ao proveito público; e no ofício afirmava claramente
que tal operação permitiria, mais tarde, a criação de uma universidade em São Paulo.
Um ano depois, no prédio do Convento, começou a funcionar a biblioteca. Nesta
ocasião, foi nomeado bibliotecário o Padre José Antônio dos Reis, mais tarde aluno da
Academia, membro do Conselho Geral da Província (contemporaneamente a Pa ula Sousa e
ao Padre Feijó) e bispo de Cuiabá. A probidade do Padre Reis no cargo foi posta em
dúvida e, para livrar-se das acusações de ingerência, o bibliotecário inventariou as obras e
enviou a lista ao Visconde de Congonhas. Esse inventário, que Ellis também apresenta em
sua publicação, feito provisoriamente, mas que divide as obras entre às pertencentes ao
convento e ao acervo de Dom Matheus e outras aquisições, não indica o exemplar da
Comédia de 1520.8
Os bibliotecários da Faculdade foram obrigados, por lei, a prestarem contas do
acervo, registrando compras, doações, empréstimos, e catalogando todas as obras. Em
1844, o diretor interino da Faculdade, José Maria de Avelar Brotero, por problemas
administrativos que transparecem na aflita correspondência entre o mesmo e os
bibliotecários que se sucediam com rapidez, toma para si a tarefa da catalogação do acervo.
Os livros foram declarados com o título em extenso, sobrenome do autor e número de
volumes; Brotero não dividiu as obras por assunto. Na página 48, figura um “DantheOpere em quarto, hum volume”. Em 1865, em outro desses volumes de controle da
livros, encadernados a couro e de lombadas vermelhas. O Museu de Arte Sacra de São Paulo, São Paulo, Banco
Safra, 1983.
8 Ao total, o Padre Reis inventaria mil e cinqüenta e nove volumes, provenientes da “livraria” (como se dizia
então) de Dom Matheus, e três mil e cento e sessenta e dois livros do Convento; em anexo, traz uma lista de
preços de outras obras adquiridas depois da fundação. Os livros foram divididos por assuntos (Escritura
Sagrada e Santos Padres, Liturgia, Teologia Natural Dogmática e Moral, Direito Canônico, entre outros) e as
obras literárias figuram em Miscelânea, área que conta com 201 tomos. A Comédia de 1520 já seria uma obra
antiga nesta ocasião, mas não consta na lista. Consultar M. E LLIS , op. cit.
8
Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 5-14
Paula F. Vermeersch – Duas edições renascentistas da Divina Comédia no Brasil
biblioteca, assinado pelo ajudante-bibliotecário J. B. Cardoso Drummond, os livros
finalmente foram divididos em seções, e em “Poesias Italianas” está um “Danthe, La
Divina Comedia, 4 o, Veneza”.9
Em 1887, é publicado um catálogo da biblioteca10, organizado em 1884 pelos
bibliotecários de então, Fernando Mendes de Almeida e seu assistente João Martins da
Silva. O “Prefácio” ficou a cargo do Diretor da Faculdade de Direito entre 1883 e 1890,
Conselheiro André Augusto de Pádua Fleury.11 Pádua Fleury, responsável por grandes
melhorias na Faculdade no final do Império12, explica que a divisão dos livros por assunto
seguiu a mais moderna metodologia, e nessa divisão dos volumes em cinco classes
(Teologia, Jurisprudência, Ciências e Artes, Belas-Artes e História e Geografia) ficou
patente que a biblioteca da Faculdade encontrava-se desatualizada e sem as principais
referências contemporâneas da área jurídica. A biblioteca, segundo Fleury, havia sido
formada “sem gosto e sem escolha”, pelas antigas livrarias dos frades franciscanos, do
bispo de Funchal e de Dom Matheus, e mais alguns volumes do primeiro diretor da
Inventário Geral da Bibliotheca do Curso Jurídico da cidade de São Paulo. Assinado por José Maria Avelar Brotero,
diretor interino, em São Paulo, a 3 de setembro de 1844. Manuscrito. Catálogo das Obras Existentes na Bibliotheca
da Faculdade de Direito. Assinado por J. B. Cardoso Drummond, em São Paulo, a 29 de outubro de 1865.
Manuscrito. Inventário dos móveis existentes na Faculdade de Direito de São Paulo. Secretaria da Faculdade de Direito
de São Paulo, 13 de abril de 1883 (volume relativo aos anos 1883, 1899, 1905, 1907, 1908, 1910, 1918, 1921).
Diário da Bibliotheca Pública da Cidade de São Paulo. São Paulo, 15 de junho de 1839. Assinado pelo Dr. Clemente
Falcão de Souza.
10 Fernando Mendes de ALMEIDA (org.), Catalogo da Bibliotheca da Faculdade de Direito de São Paulo em 1887, São
Paulo, Typographia a Vapor de Jorge Seckler & Companhia, 1887.
11 A identificação do diretor e demais informações sobre a Academia no final do Império foram obtidas em
Everardo Vallim Pereira de SOUZA, Reminiscências Acadêmicas – 1887-1891. Metamorfose da Paulicéia
Provinciana em grande metrópole. In C. E. M. de MOURA, Vida Cotidiana em São Paulo no século XIX- Memórias,
Depoimentos, Evocações, São Paulo, Ateliê Editorial, Fundação Editora da Unesp, Imprensa Oficial do Estado e
Secretaria do Estado da Cultura, 1998. O mais importante memorialista da Academia de Direito é Spencer
VAMPRÉ, Memórias para a História da Academia de São Paulo, São Paulo, Saraiva, 1924.
12 Conforme atestam Everardo Vallim Pereira de Souza, Spencer Vampré e a Princesa Isabel, em seu Diário da
viagem a São Paulo, que empreendeu em 1884. Desiludida com um exame de final de curso e doutoramentos que
assistiu na Faculdade, escreveu: “Outra desilusão: que salas para aulas, e me dizem que o Pádua Fleury tem
melhorado muito! A sala para biblioteca ficará muito bela; achei por lá o Artidoro, no meio de sua carvoeira
de papéis do Arquivo”. In Diário da Princesa Isabel – Excursão dos Condes D’Eu à Província de São Paulo em 1884,
organizado por Ricardo Gumbleton Daunt, e prefaciado por J. F. Almeida Prado. In C. E. M. de MOURA,
op.cit.
9
Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 5-14
9
Paula F. Vermeersch – Duas edições renascentistas da Divina Comédia no Brasil
Faculdade, o General Arouche, e possuía livros antigos, concentrados principalmente em
História e Geografia.
Pádua Fleury observa que o mesmo “estado de penúria” era lamentado pelo
Conselheiro Vicente Pires da Motta, em 1881, quando este era Diretor da Faculdade, e que
existia em 1887 uma disparidade entre o “ótimo prédio” (reformado por ele) e o acervo,
desatualizado e generalista. Tal estado de coisas fazia com que o Diretor reclamasse maior
atenção ao Ministro do Império.
Na 4a Classe do catálogo, “Bellas Letras”, figura, no número de 3118, o exemplar
da Comédia de 1520 (este número está escrito no colofão).13 Os dois números anteriores são
outros dois exemplares da Comédia, franceses, de 1768 e 184614, que igualmente se
encontram no acervo da biblioteca, e que no primeiro catálogo também não constam.
Em 1824, a Comédia renascentista provavelmente não se encontrava no Largo de
São Francisco; em 1844, lá estava e era a obra mais antiga do acervo. Outra indicação sobre
a origem do exemplar pode vir das marcas deixadas no livro: existem anotações com quatro
caligrafias muito distintas, sendo que a última parece ser a de quem assina a primeira
página: Dom Luys de Mendonça, em tinta avermelhada. A mesma letra, no final do
exemplar, parece ter assinado algumas notas em italiano sobre a Comédia. Enfim, serão
necessárias mais algumas pesquisas para se saber mais sobre a origem de tão bela obra nos
acervos brasileiros.
Infelizmente, não existem mais documentos que atestem a entrada do volume com
maior exatidão: o Arquivo da Faculdade ficou totalmente destruído num incêndio, em
1887, de causa criminosa, mas nunca totalmente esclarecida. Depois de 1824, e antes de
1844, a Comédia renascentista entra na biblioteca nos tempos “heróicos” da Academia,
quando Júlio Franck e Líbero Badaró lideravam os estudantes e os jovens poetas
românticos cruzavam o pátio do São Francisco.
Muitos nomes importantes das letras e políticas brasileiras passaram pelas Arcadas;
foi o caso de Salvador de Mendonça, jovem fluminense que se tornaria, mais tarde, um
diplomata de renome, e integrante da Academia Brasileira de Letras, ocupando a cadeira do
F. M. de ALMEIDA (org.), op.cit., p. 265. Neste catálogo, todas as inscrições do volume foram transcritas no
título. Naquela época, já era difícil ler o nome do editor; as letras estão desgastadas, e messer Bernardino
virou, no catálogo paulista, miser Bernardino Stagnino da Crino de Monferra.
14 Dante A LIGHIERI, La divina Commedia, Paris, Apresso Marcello Prault, 1768, e La divine comédie, Traduit en
français par Artaud de Montor, Paris, Librarie de Firmin Didot frères, 1846
.
13
10
Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 5-14
Paula F. Vermeersch – Duas edições renascentistas da Divina Comédia no Brasil
patrono Joaquim Manuel de Macedo. Um dos redatores do Manifesto Republicano, em
1870, Mendonça deixaria de herança um outro exemplar renascentista da Comédia no
Brasil.15
Salvador de Mendonça, depois de ter sido cônsul do Brasil em Baltimore e Nova
York, foi ministro do país em Washington e Lisboa. Após sua morte, em 1913, sua
biblioteca foi doada para a Biblioteca Nacional. Mas um livro raríssimo parou em outras
mãos.
Na Biblioteca da Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, existe um
exemplar da primeira edição florentina da Comédia, de 1481, com dezenove gravuras em
cobre, sendo duas impressas no texto (ilustrações relativas aos Cantos I e II do Inferno), e
outras dezessete impressas posteriormente e coladas no livro. O Catálogo da Biblioteca de
Rui Barbosa16 destaca que o livro é um “Precioso incunábulo biblio-iconográfico. É a
primeira edição do comentário de Cristophoro Landino e notável principalmente como
paleotipo iconográfico. Depois da obra de Bettini da Siena, ‘Monte Sancto di Dio’, 1477,
cujas figuras são dos mesmos artistas, e da ‘Cosmographia’ de Ptolomeu, 1478, com 27
cartas geográficas, gravadas sobre metal, é o mais antigo livro ilustrado com figuras em
talho doce”.
O Catálogo afirma que a autoria dessas gravuras é de Baccio Baldini, importante
gravador florentino em atividade em Florença nas décadas de 1470, 80 e 90, autoria hoje
contestada. O exemplar traz algumas notas feitas à mão, assinaturas de dois antigos
proprietários, e uma indicação a lápis, em inglês, que parece ser de uma livraria. Os
funcionários da biblioteca explicitam, no catálogo, a origem do livro, um presente dos
herdeiros de Salvador de Mendonça a Rui Barbosa. Uma cópia datilografada de uma carta
depositada nos Arquivos da instituição atesta essa origem; trata-se de uma carta de
Valentina de Mendonça, filha do diplomata, a Americo Lacombe, diretor da Casa de Rui
Barbosa em 1947. A seguir, a íntegra da carta17:
J. GALANTE DE SOUSA, Salvador de Mendonça. In A. COUTINHO & J. GALANTE DE SOUSA. Enciclopédia de
Literatura Brasileira, vol. II, São Paulo, Global, Rio de Janeiro, Fundação Biblioteca Nacional, Academia
Brasileira de Letras, 2001.
16 Catálogo da Biblioteca de Rui Barbosa, Rio de Janeiro, Fundação Casa de Rui Barbosa, 1951, vol. 2, pp. 295-296.
17 Carta de Valentina de Mendonça ao Diretor da Casa de Ruy Barbosa, datada de 14 de novembro de 1947. Arquivo
Histórias da Casa, Fundação Casa de Rui Barbosa. Cópia datilografada pertencente à Biblioteca Fundação
Casa de Rui Barbosa.
15
Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 5-14
11
Paula F. Vermeersch – Duas edições renascentistas da Divina Comédia no Brasil
Embaixada Americana
Rio de Janeiro
14 de novembro de 1947
Exmo. Snr. Americo Lacombe
M. D. Director da Casa Ruy Barbosa.
Prezado Snr:
Quem lhe dirigi estas linhas é a filha de Salvador de Mendonça. Tendo lido ha dias no Jornal
do Brazil, um artigo sobre a visita de Sua Excellencia o Presidente Dutra á Cas a Ruy Barbosa, e
no qual menciona a edição rarissima de Il Dante, achei que V.S a. talvez se interessaria saber
como o grande Mestre obteve esse folio, illustrado com gravuras de página inteira de Botticelli.
Quando meu pae faleceu, em 1913, eu e meus irmãos resolvemos presentear o Dr. Ruy com
uma obra, á sua escolha, dentre os livros que compunham a bibliotheca de Salvador de
Mendonça. Enviamos-lhe o catálogo e Dr. Ruy escolheu esta edição do Dante. Mandamos o
folio immediatamente á residencia delle.
No dia seguinte D. Maria Augusta Ruy Barbosa veio á nossa casa na Gavea, trazendo o
Dante de volta e dizendo que o Dr. Ruy não podia de modo algum aceitar uma obra daquelle
valor. Respondemos que a escolha do Mestre era a nossa e que o Dante veiu somente dar um
passeio na Gavea.
Mais tarde, ao receber-nos em sua casa, Dr. Ruy nos conduziu primeiro á sala da bibliotheca
principal, depois nos levou por um corredor aonde havia, uma coleção da Vida dos Presidentes
dos Estados Unidos a elle presenteado por meu pae quando Ministro do Brazil em
Washington. “Agora” disse, “aqui é o sanctuario” e lá nos mostrou o Dante, em uma vitrine do
tamanho do grande folio aberto, mostrando uma das gravuras pagina inteira.
Este folio, naquelle tempo, foi avaliado em 600 contos.
Ficamos satisfeitos em saber que o livro estava em boas mãos, e agora, que ficou para o
nosso Governo. Meu pae já havia doado mais de 4 mil livros raros á Bibliotheca Nacional do
Rio de Janeiro.
Sem mais, Creia-me, Atenciosamente, Valentina de Mendonça.
Para além do interesse no caso particular (um retrato um tanto quanto bemhumorado) de Rui Barbosa, é interessante registrar o desejo de uma integrante da família
do diplomata em retificar a reportagem, por se tratar de tão raro exemplar. O livro está em
excelente estado de conservação, e pode-se ler as linhas de Cristoforo Landino sem
12
Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 5-14
Paula F. Vermeersch – Duas edições renascentistas da Divina Comédia no Brasil
nenhuma dificuldade. As gravuras coladas parecem ser fac-similares das produzidas na
oficina florentina, mas seguem o padrão original.
Giuliano Mambelli18 informa que esta edição, rara, sofreu com as precárias
técnicas de seu tempo e com as vicissitudes do trabalho artístico: “L’edizione doveva avere
un’incisione per ogni canto del poema e perciò al principio di ogni canto vi è uno spazio
lasciato in bianco dove la incisione si doveva stampare. Il lavoro era stato commesso al
Botticelli per il disegno e al Baldini per l’incisione. Ma procedendo gli artisti più lentamente
che lo stampatore, ne avvenne che soltanto le prime due figure, per i primi due canti
dell’Inferno, si poterono tirare sulla carta insieme al testo. Le altre vennero tirate a parte su
altra carta, e si incollarono poi a proprio luogo suoi fogli già stampati. Questo spiega il
perché non tutti gli esemplari abbiano lo stesso numero di incisioni”.19
O próprio Landino, ao oferecer o livro à Signoria de Florença, encomendou
miniaturas para colar nos espaços em branco, e tal exemplar hoje pertence à Biblioteca
Laurenziana. Mambelli lista as bibliotecas italianas, européias e norte-americanas que
possuem a edição: a maior parte apresenta apenas as duas gravuras feitas no texto.
Acompanhar a história das primeiras edições da Comédia é observar como a
prensa, herança de Gutemberg, estabeleceu-se na Itália na segunda metade do
Quattrocento e aos poucos dominou o mercado de livros. No caso de Dante, o fato de a
primeira edição ser veneziana ocasionou, como se viu, grandes repercussões na terra natal
do poeta, Florença; a resposta do círculo neoplatônico florentino não poderia ter sido mais
espetacular, com gravuras sobre desenhos de Botticelli, o grande nome da pintura da cidade
de então, e comentários de Landino e Ficino.
Veneza, porém, contra-atacou em 1502, com a edição do célebre editor Aldus
Manutius, que contava com o comentário do humanista e mais tarde Cardeal Pietro
Bembo. Bembo propôs uma nova abordagem do poema dantesco, e, de posse de versões
diferenciadas do poema, uma nova compreensão do italiano utilizado por Dante. Profundo
conhecedor do latim e admirador sem reservas de Petrarca, Bembo retirou do texto de
Dante impurezas, corruptelas que teriam sido criadas em dois séculos de cópias
manuscritas. Para Bembo, a língua italiana seria uma ampliação e melhoramento do
18
19
Giuliano MAMBELLI, Gli annali delle edizioni dantesche, Bolonha, Nicola Zanichelli, 1931.
MAMBELLI, op. cit., p. 18.
Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 5-14
13
Paula F. Vermeersch – Duas edições renascentistas da Divina Comédia no Brasil
toscano; o debate lingüístico em torno da obra dantesca permaneceria um problema até o
século da unificação da nação. 20
Bernardino Stagnino da Trino, de importante família de editores piemonteses,
especializou-se em trazer ao público obras jurídicas, médicas e filosóficas, e estabeleceu-se
em Veneza a partir de 1483, aproximadamente. Mas, em 1512, ofereceu ao público letrado
italiano uma edição “mista”: o poema de Dante, estabelecido pela filologia de Bembo, foi
editado com o comentário de Landino, aumentado e corrigido por Pietro Figino,
“eccelente predicattore di ordine minori”. As anotações de Figino haviam sido retiradas da
edição Benali/Codecà de 1492. Tal operação faz com que a edição de Stagnino possua
algumas discrepâncias entre o texto e o comentário, nota o site Dante Renaissance on Print21,
que ainda traz a seguinte observação: “Little care seems to have gone into Stagnino's
editions of Dante, excepting the finely executed woodcuts”.22
Finalmente, sobre a edição de 1520, paulistana, Mambelli afirma que o in-fólio “in
quarto”, com incisões em madeira, figura nas bibliotecas das cidades do norte da Itália e foi
vendido, em 1927, por 1100 liras em Roma.
Consultar o verbete BEMBO, PIETRO, em John HALE (ed.), Dicionário do Renascimento Italiano, Rio de Janeiro,
Jorge Zahar, 1988, p. 51.
21 http://www.italnet.nd.edu/Dante.
22 Site citado acima.
20
14
Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 5-14
Artes visuais e literatura:
uma introdução à obra artística de Cornélio Penna.
André Tavares *
1. Introdução.
[...] o desenho é, na realidade, mais uma caligrafia, mais um processo
hieroglífico de expressar idéias e imagens, se ligando por isso muito
estreitamente às artes da palavra, poesia e prosa.
Mário de Andrade em Pintor Contista, 1939.
1
O texto que apresentamos nesta ocasião aos nossos leitores vem a propósito de
delinear, de maneira mais precisa, porém sucinta, o âmbito de nossas investigações no
âmbito do Centro de Estudos de História das Artes no Brasil e que constituem o objeto do
doutoramento em Artes que levamos a cabo neste momento. Tratamos, aqui, das relações
entre escritores e artes plásticas entre os anos 1890 e 1930. Essas, naturalmente, podem ser
de variada natureza: o homem de letras crítico de arte, encarnado de modo perfeito, entre
nós, na figura incontornável de Gonzaga-Duque; autores e literatos que, sem dedicar-se à
crítica militante propriamente dita, ocupam-se, vez por outra, de traçar perfis de artistas de
destaque ou de exposições de destaque no momento, como no caso de Coelho Netto;
escritores que, combinando as habilidades, passam de um a outro campo deixando atrás de
si um legado proteiforme e que, não raro, deixam entrever personalidades mais complexas
*
Doutor em Historia Social e Mestre em História da Arte e da Cultura (IFCH-UNICAMP). Pesquisador do
Centro de Estudos de História das Artes no Brasil (CEPAB), IA-UNICAMP.
1
Mário de Andrade, O empalhador de passarinho, São Paulo, Martins Editora, 1972, p. 53.
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André Tavares – Artes visuais e literatura: uma introdução à obra artística de Cornélio Penna
e facetadas. São estes últimos, os sacudidos pela indecisão da escolha dos meios
expressivos, aqueles que nos interessam. Estes escritores-artistas, se não chegam a
constituir uma grande tradição entre nós, são, por outro lado, uma recorrência no
panorama cultural brasileiro.
O rol dos que se dedicaram à expressão gráfica, à pintura, à caricatura, à ilustração
esporádica ou, mesmo, à formação acadêmica propriamente dita, encontraria um bom
nome para encabeçá-lo na figura de Aluísio Azevedo. O autor de O Cortiço, Casa de Pensão
ou O Mulato, antes de dedicar-se às literatura, daria início a uma educação artística formal,
transferindo-se do Maranhão natal para o Rio de Janeiro com o objetivo de matricular-se
nos cursos oferecidos pela Academia Imperial de Belas-Artes. Segundo juízo de Brito
Broca, Azevedo valia-se do desenho e das suas habilidades artísticas para esboçar e fixar,
antes da organização do texto literário, os caracteres nascentes de seus personagens ou,
mesmo, para apontar de modo um pouco mais preciso detalhes da sua composição. É
dizer, o desenho funcionaria como instrumento auxiliar do escritor. Dos relacionamentos
ou amizades iniciados neste período, talvez o de maior interesse seja, para nós, o laço que
se forma entre Aluísio e Émile Rouède, o artista plástico francês lembrado por GonzagaDuque na Arte Brasileira como personalidade excêntrica, boêmia. E de fato, com Rouède
passará o oposto, ou seja, de artista converte-se em crítico de arte, com artigos publicados
no Brésil Républicain, em 1894, mas, antes disso, aparece sob a pele de autor teatral
publicando, em parceria com Aluísio Azevedo textos dramáticos na década de 1880.
Seguindo a linha do tempo, o próximo destaque de nossa lista de escritores-artistas
seria, inevitavelmente, Raul Pompéia. As ilustrações delicadas e o traço leve das figuras que
compõe para o Ateneu, publicado em 1888, são conhecidos de todos os interessados pela
literatura brasileira do século XIX. Integrar os seus desenhos numa corrente geral de
produção artística seria trabalho instigante, assim como o levantamento de suas caricaturas
e ilustrações publicadas em diversos jornais e periódicos. À maneira de Aluísio Azevedo,
em Raul Pompéia, a ilustração complementa a caracterização das personagens, mas, desta
vez, o autor-desenhista, ele mesmo, estabelece a conexão das imagens e o fluxo da narrativa
que compõe. No caso do Ateneu e de seu autor, de trágica biografia, os desenhos guardam
certo caráter melancólico, típico, talvez, do tom de memória dolorida que perpassa toda a
narrativa. Impossível esquecer a figura delicada que elabora para Ema ou o perfil autoritário
do intransigente Aristarco. Há, nestas ilustrações, poder de sugestão que extrapola o do
16
Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 15-42
André Tavares – Artes visuais e literatura: uma introdução à obra artística de Cornélio Penna
desenhista de pretensões estritamente demonstrativas. A memória afetiva do autor parece
comandar a sutileza do seu traço.
Pelos anos 1920 aparecerá uma safra de brilhantes autores-artistas, de repertório
visual renovado e com uma “agenda” diferenciada: a modernização do traço pela via
“futurista” ou pelo apego a um primitivismo estilizado ganha campo, substituindo as
tendências Art Nouveau e os últimos laivos de um Simbolismo que se manifestava em
formas de extrema fluidez e temática mística. Desta nova safra, destacaríamos Pedro Nava,
com ilustrações para Austen Amaro (Juiz de Fora, Poema Lírico, 1925) e para o Macunaíma
(oito desenhos concluídos em setembro de 1929) de Mário de Andrade, Patrícia Galvão
(Pagu), com suas irreverentes garatujas e charges de puro non-sense ou, figura que mereceria
um estudo à parte pela extensão de suas atividades, Menotti del Picchia. Este último, além
da pintura e do desenho, cultivaria a escultura como forma de manifestação artística.
Menotti extrapola o limite da ilustração servil ou das prescrições de um texto qualquer que
seja. Alcança uma autonomia que não veremos em Nava ou, mesmo, mais adiante, em
Cecília Meireles, cuja obra de desenhista bissexta vai casar-se com seus interesses de
folclorista ou de educadora das sensibilidades. Sua conhecida série de desenhos, alguns
verdadeiramente brilhantes, inspirados nos costumes africanos dos negros cariocas é o
exemplo definitivo deste impulso. Pedro Nava, pintor bissexto, para utilizarmos sua
expressão, deixou, além dos trabalhos já mencionados e de telas executadas à imitação de
seus artistas favoritos – Portinari ou De Chirico, por exemplo – ilustrações feitas para a
Revista Estética, de 1924, e para o Roteiro Lírico de Ouro Preto, livro de Afonso Arinos de
Mello Franco. Além disso, Nava organizou, através do desenho, um verdadeiro
“inventário” da sua “matéria de memória”, desenhos de pessoas conhecidas, tipos curiosos
e registro de ambientes marcados pelas suas expansões afetivas, que viria a servir como
apoio na composição de seus livros, todos marcados pela minúcia na reconstituição do
passado. Para suas obras, aliás, criou capas lançando mão de colagens fotográficas que
foram cuidadosamente reproduzidas por seus editores. A mais recente edição de suas
memórias, embora traga encadernações neutras, sem outro requinte discreto que o da
tipografia em branco sobre o fundo em uma só cor (azul ou ferrugem, por exemplo)
conserva, na parte interna das capas, uma reprodução fotográfica destas montagens
originais, significativas para a compreensão da sensibilidade artística do autor. As
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André Tavares – Artes visuais e literatura: uma introdução à obra artística de Cornélio Penna
habilidades de Nava ilustrador mereceriam um capítulo de Monique Le Moing, quando a
autora francesa organizou seu livro A Solidão Povoada2, sobre o memorialista mineiro.
Além de Cecília ou de Menotti del Picchia, outro crítico e escritor passaria às artes
plásticas com resultados de valor estético considerável: trata-se de Sérgio Milliet. Autor de
obra vasta – seus dez volumes do diário crítico atestam sua envergadura como intérprete de
seu ambiente cultural – Sérgio Milliet é autor de paisagens que, em muito, lembram os
resultados obtidos pelos pintores do grupo Santa Helena. Do mesmo modo, poderíamos
destacar Jorge de Lima, poeta e romancista de grande força criativa, que nos deixou, além
de desenho e pintura, as famosas colagens fotográficas de sabor surrealista, além de um
romance em que trataria das angústias dos jovens artistas de sua época: Guerra dentro do Beco.
Nem sempre tocados por este impulso radical e algo marcado pela curiosidade
experimental, alguns outros autores apresentariam tra balho artístico delicado e mais atento
aos propósitos do texto e da ilustração como tradicionalmente compreendida. É o caso de
Luís Jardim3, romancista pernambucano premiado por seu Maria Perigosa, mas famoso,
também, como autor de livros infantis por ele mesmo ilustrados.
Um exemplo extremo de escritor que se converte em artista, mas, neste caso, com
implicações e motivações de natureza diversa, seria o de Lúcio Cardoso. O escritor
vigoroso, criador das imagens de pesadelo de O Desconhecido , de A professora Hilda ou de
Inácio revelar-se-ia um desenhista de linhas nervosas e um autor de paisagens que,
arrancadas da memória do interior opressivo de Minas Gerais, viriam ajustar-se
perfeitamente ao tom menor de suas narrativas e ao ritmo alucinante com que conduz o
seu texto. Lúcio Cardoso desenhará por um longo período, deixando, principalmente,
paisagens, mas, também, esquemas, esboços como o que fez para a Crônica da Casa
Assassinada apresentando o cenário em que a narrativa deveria desenvolver-se. Como
resultado, esta “planta” da Fazenda, cenário principal do romance, assemelha -se aos
levantamentos e prospecções afetivas de Pedro Nava, que recolhia em cadernos
reconstituições minuciosas, reduzidas por fim a desenho, de ambientes, mapas de trechos
de bairros, imagens das casas que freqüentava, das pessoas que conhecia, tudo isto
2
Monique LE MOING, A Solidão Povoada – Uma biografia de Pedro Nava, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1996.
A esse respeito, ver o já mencionado artigo Pintor Contista, de onde retiramos nossa epígrafe, publicado por
Mário de Andrade em 21/05/1939 e, mais tarde, incluído na coletânea O empalhador de passarinho, São Paulo,
Martins Editora, 1972, pp. 53-57.
3
18
Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 15-42
André Tavares – Artes visuais e literatura: uma introdução à obra artística de Cornélio Penna
reutilizado, mais tarde, no grande mural formado pela sua obra memorialística. Em Lúcio,
o impulso do catalogador é menos forte do que o desejo de sugerir o efeito do ambiente e a
importância da descrições da paisagem deste interior mineiro desolado sobre o caráter de
seus personagens e a condução da história para o desfecho muitas vezes trágico e
inevitável.
Sucedeu que, ao fim dos anos cinqüenta, o autor sofreria um derrame que o
impossibilitaria de continuar a escrever. Deixará inconcluso o romance O viajante, uma
continuação, ou, ao menos, um pendant à Crônica ... e passará a desenhar com mais
freqüência. Com parte do corpo imobilizado, vemos a personalidade enérgica esforçar-se
para transmitir aos seus desenhos, manchas em nanquim ou tinta a óleo, algo da energia
que aplicara antes ao processo de criação literária. Esses desenhos, depositados junto ao
acervo pessoal do autor no Museu da Casa de Rui Barbosa, são o testemunho trágico deste
desenlace, da dissolução, não há outro termo, de uma das mais singulares individualidades
artísticas do século XX no Brasil. Alguns desses desenhos tardios foram publicados,
posteriormente, em edições do romance Maleita, o primeiro a ser escrito por Cardoso
(1935), dadas a público pela Ediouro. São, porém, edições que, pelo pouco cuidado gráfico,
retiram o potencial valor que estas ilustrações e desenhos, impregnados pela circunstância
trágica que as engendrou, poderiam alcançar. É também de Lúcio Cardoso a capa para o
Vol. 10 da Tragédia Burguesa de Otávio de Faria, o romance A sombra de Deus. Ligados por
afinidades estilísticas e pelo tom confessional e subjetivo de seus romances, Cardoso, Faria
e, também Cornélio Penna, centro de nossas atenções na análise que se segue, formariam o
que seria a tríade máxima do romance de sondagem psicológica, ao menos até os anos
quarenta, entre nós. Em Cornélio Penna, entretanto, a atividade de ilustrador antecederia a
de romancista e, em alguns aspectos e temas, anteciparia as realizações da carreira literária,
dando materialidade aos ambientes soturnos e às personagens enigmáticas que começariam
a ser delineadas no primeiro romance, Fronteira, a partir de meados dos anos 30.
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André Tavares – Artes visuais e literatura: uma introdução à obra artística de Cornélio Penna
2. Os mundos de Cornélio Penna.
Cornélio parecia um homem desembarcado por engano neste
planeta. Num século que pretende nivelar em tom cinzento a
indistinta massa humana, ele pertencia ao número dos que
representam algo de excepcional.
Murilo Mendes, em seus Retratos-Relâmpago.
Nascido em Petrópolis no ano de 1896, Cornélio Penna seria, porém, marcado pelo
ambiente espiritual mórbido e tradicional, místico e um pouco divorciado do mundo real
que encontrou na infância em Itabira, Minas Gerais. Essa infância no interior da província
é sempre lembrada como matriz das imagens, temas e mesmo personagens que viria a
utilizar em algumas de suas realizações. Não há exagero em ressaltar este apego, como
fazem Afrânio Peixoto ou Adonias Filho, ao espírito que o imantou na estadia mineira.
Chega a dedicar Dois Romances de Nico Horta, o segundo livro que publicou, à cidade querida,
apresentada como sua amiga mais cara na abertura da obra. O caso mais radical, porém
seria mesmo Fronteira que teria seu tema extraído de uma história verdadeira passada em
Itabira e que envolvia uma personagem inusitada, uma mística chamada Maria Santa.
Sua educação é levada a cabo, em parte, no Colégio Culto à Ciência de Campinas
(SP) onde veio viver a família em princípios do século XX. Diploma-se em Direito, como
aluno medíocre, na Faculdade do Largo de São Francisco, em 1919, mas passa a viver do
jornalismo e da atividade de ilustrador e pintor. Trabalha, de volta ao Rio de Janeiro, como
redator nos jornais Gazeta de Notícias, A Nação e O Jornal. Realiza a única exposição de seus
trabalhos – pinturas desenhos e ilustrações – na Associação dos Empregados do Comércio,
no Rio de Janeiro, em 1928. Publica seus livros, definindo uma nova área de interesses,
entre 1935 e 1954, desenvolvendo e apurando o mecanismo da análise introspectiva e
psicológica em cada uma de suas obras. Dos capítulos mais curtos e de sabor
impressionista de Dois Romances de Nico Horta (1939) e Repouso (1948), vemos seu estilo
desenvolver-se no sentido da expressão de ampla envergadura, culminando na metáfora da
decadência e desagregação da sociedade aristocrática do interior fluminense representada
por A Menina Morta (1954), sua realização maior e compêndio de seu processo criativo.
Inacabado deixaria o romance Alma Branca, publicado como anexo à edição dos romances
completos que mereceu da editora José Aguilar em 1958. Sob sua técnica e habilidades,
20
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André Tavares – Artes visuais e literatura: uma introdução à obra artística de Cornélio Penna
podemos lembrar o juízo de Afrânio Coutinho registrado na Enciclopédia da Literatura
Brasileira:
Dotado de singular capacidade de análise introspectiva, criou personagens de grande
realismo e complexidade, situando-os, além do mais, em ambiente de densa atmosfera,
soturnos, próprios ao desenrolar dos enredos e episódios que narra numa linguagem seca,
objetiva e direta. Seus romances possuem grande significação simbólica, situando-se na zona de
“fronteira” em que se procura fazer sondagens sobre o mistério da vida, das pessoas, dos
4
fatos.
A atmosfera de sonho que se desprende de seus textos é apenas parte de um caráter
complexo e marcado por força criativa excepcional. Sob a gênese de seus romances, assim
se havia manifestado, em entrevista ao também escritor João Conde, publicada nos seus
Arquivos Implacáveis:
[...] desde que me conheço, ouvia histórias de Itabira, de Pindamonhangaba e das fazendas dos
meus avós e tios, contadas de forma interrompida, desconexa, cercadas pela mais suave
discrição que já me foi dado contar, contadas por minha mãe. Eu guardava tudo com avidez,
sem demonstrar como era funda a emoção que me provocavam aqueles episódios sem uma
5
ligação evidente entre eles, que eu recolhia e depois ligava com um fio inventado por mim.
Sua personalidade extravagante foi fixada através de séries de artigos ou referências
literárias, unânimes ao destacar seu caráter arcaizante, sua paixão pelas relíquias familiares,
móveis antigos ou seu intransigente apego ao passado, seja aquele da memória infantil,
dominada pela lembrança de uma Itabira fantástica, matizada de cores afetivas, ou o da
monarquia banida e à qual pertenceu fiel (“Era mesmo das baronesas”, como no Retrato
elaborado por Murilo Mendes). Marques Rebelo, em seu conto A árvore, página em que
evoca o bairro de Laranjeiras, o inclui entre os personagens típicos daquele canto do Rio de
Janeiro, passeando “o quanto pode” pelas ruas do bairro, apoiando-se ao braço da mulher,
4
Afrânio COUTINHO (dir.), Enciclopédia de Literatura Brasileira (2 vols.), São Paulo, Global, 2001, Vol. 2, p.1234.
ADONIAS F ILHO , Romances da Humildade, introdução aos Romances Completos, Rio de Janeiro, José Aguilar,
1958, pp. XXXIX- XL.
5
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21
André Tavares – Artes visuais e literatura: uma introdução à obra artística de Cornélio Penna
companheira de toda a vida.6 A sua casa-mausoléu, espécie de cenário montado com o fim
de reforçar esse caráter sombrio e original que o acompanhava, seria descrita por Lêdo Ivo
com minúcia e sensibilidade num texto cujo efeito é o de um conto gótico ou das
descrições soturnas de um Adelino Magalhães:
A casa onde reside Cornélio Penna, em Laranjeiras, dá frente para a rua, e, com a sua alta porta
de madeira pintada de escuro, cor de bronze antigo, lembra logo um pequeno convento. Para
essa impressão, muito contribui o estar sempre de janelas cerradas, bem como o seu ar de
recolhimento e de silêncio, no meio das outras residências ruidosas e muito abertas. O grande
vitral que nos surge logo aos olhos, com duas figuras graves, de olhar sereno, aumenta a
sensação de paz e de longitude, que os móveis sombrios, os papéis de cores discretas, a grande
7
quantidade de quadros de pinturas de tons velados e os enormes retratos de família acentuam.
Mário de Andrade dedicaria a ele, mais especificamente na ocasião do lançamento
de Dois Romances de Nico Horta, o artigo Romances de um antiquário.8 Também neste título
transparece a figura do autor dedicado a revolver o passado, recolhido entre seus leques,
relógios ou salvas de prata do tempo do rei. Este o perfil de Cornélio pelo autor de
Macunaíma :
Alma de colecionador vivendo no convívio de objetos velhos, Cornélio Penna sabe traduzir,
como ninguém entre nós, o sabor de beleza misturado ao de segredo, de degeneração e
mistério, que torna uma arca antiga, uma caixinha-de-música, um leque, tão evocativos,
repletos de sobrevivência humana assombrada. Se sente que seus os romances são obras de um
antiquário apaixonado, que em cada objeto antigo vê renascer uns dedos, uns braços, uma vida,
9
todo um passado vivo, que a seu modo e em seu mistério ainda manda sobre nós.
6
“Viam Cornélio Penna, enquanto pode, passeando ao sol com passos trôpegos, firmando-se no braço da
esposa dedicada e na mão invisível do Salvador, que o empolgou, afinal, para tê-lo eternamente junto ao seu
seio amantíssimo”. In Marques REBELO , A Árvore, incluído em Os Melhores Contos de Marques Rebelo, São Paulo,
Global, 1984, pp. 122-123.
7
Depoimento a Lêdo Ivo publicado originalmente n’O Jornal, em 23 de maio de 1948 e mais tarde incluído
nos Romances Completos, Rio de Janeiro, José Aguilar, 1958, p. LIII.
8
O artigo de 24/09/1939 foi publicado, mais tarde, no volume O empalhador de passarinho, ed.cit..
9
Mário de ANDRADE, op. cit., p. 124.
22
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André Tavares – Artes visuais e literatura: uma introdução à obra artística de Cornélio Penna
A estréia como romancista em 1935, com Fronteira, abre caminho para uma série de
novos romances, inaugurando – ou, ao menos, reinventando – uma tradição que será
desenvolvida até os limites da hipersensibilidade por Lúcio Cardoso (este também um
envenenado pela influência má do passado e da bile negra dos mineiros), por Otávio de
Faria e sua Tragédia Burguesa, mas, também, por personalidades menos lembradas como o
Ascendino Leite de A Viúva Branca e Salto Mortal, Breno Accioly de João Urso ou Cogumelos
e, mesmo, em certo clima sobrenatural que Antônio Olavo Pereira imprime ao fim de seu
romance Marcoré. O clima opressivo do interior desolado do país, o peso da tradição e dos
antepassados, a descrição impressionista e sugestiva dos ambientes, sua influência no
caráter das personagens cujas vidas parecem conduzir-se por fios invisíveis podem ser
identificados até em certos momentos da primeira Clarice Lispector, em obras como o
Lustre ou Cidade Sitiada. Os adjetivos assombrado, misterioso ou nublado são recorrentes na
descrição de seu estilo. O próprio autor, demonstrando possuir senso de auto-ironia e bom
humor, assim diria a João Condé sobre este ponto: “Sobre Fronteira, alguém disse que era
um romance de Boris Karloff, e eu achei que tinha razão”.10
A predileção pelos dramas de alma irreconciliáveis, pela análise psicológica ou pelas
personagens tão ricas de vida interior quanto tocadas por lampejos de loucura são
lembradas como essenciais na construção de suas narrativas, pontos distintivos, mas
também, fonte de falhas estruturais, principalmente quando convertidos em fórmulas ou
truques recorrentes:
Não posso realmente concordar com o romancista no processo de repetir truques de mistério
já usados no romance anterior. Em Fronteira surgia um viajante, ser misterioso que aparece e
desaparece, espécie de símbolo intangível, que o romancista fez questão em não nos explicar
quem era. [...] Da mesma forma, neste romance novo, surge a horas tantas uma Ela que
aparece e desaparece, e não tem por onde se lhe pegue. [...] A mim me parecem truques de mau
gosto, cujo valor poético relativo só serve para dispersar a intensidade nuclear dos seus
11
romances.
10
11
João CONDÉ, apud ADONIAS F ILHO , op.cit., p. XLI.
Mário de ANDRADE, O empalhador de passarinho, ed. cit., pp. 123-124.
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André Tavares – Artes visuais e literatura: uma introdução à obra artística de Cornélio Penna
Fronteira é baseado em caso real presenciado por Cornélio Penna durante sua
estadia em Itabira do Mato Dentro durante a infância.
Apesar de seus exageros e nebulosidades, apesar do seu gosto pelo estudo dos anormais e
mesmo do metapsíquico, o princípio psicológico de que Cornélio Penna se utiliza vem lembrar
aos nossos romancistas a hipótese riquíssima de dois e dois somarem cinco ou três. E esta me
12
parece a contribuição principal deste romancista.
Ao texto inovador de Fronteira seguir-se-iam Dois Romances de Nico Horta e Repouso,
etapas em que burilaria as histórias que colecionara em seu íntimo dando a elas a forma de
romances escuros, até então organizados em capítulos curtos. Sua obra, máxima, porém,
será A Menina Morta, obra-prima do gênero de romance fantasmagórico e noturno que
refinou ao extremo. O insólito do tema – a desagregação de uma família aristocrática no
Vale do Paraíba vista através da movimentação ao redor das exéquias de uma criança
defunta – soma-se à história da criação do próprio romance: a inspiração derivava de um
retrato de uma parenta (Zeferina, sua tia por parte de mãe) morta ainda menina e que o
autor conservava em sua casa. Neste romance, Cornélio Penna expande seu texto,
segurando por mais tempo, com mão de mestre, o leitor perplexo. A trama aparece
adensada, os capítulos mais extensos. Ao comentar a intimidade do autor com os objetos
antigos e ao culto do seu passado, assim escreve Murilo Mendes, não sem a habitual dose
de humor soturno:
O símbolo máximo era obviamente o quadro grande da menina morta (sua tia Zeferina),
pintado no século passado por um francês residente no Brasil que lhe daria a matéria de um
livro. A mudança de Cornélio para outra casa era sempre condicionada ao ajustamento desta
tela à parede da sala de jantar. Vi-o rejeitar uma bela casa em Botafogo, onde o espaço é o
primeiro elemento funcional, onde se contacta a natureza, onde os marginais recebem títulos
de cidadania: desses sobrados com delicioso jardim e pomar, hoje extintos. Hélas! Não cabia na
13
sala o quadro favorito, objeto feérico de sua paixão.
12
13
Mário de ANDRADE, op. cit., p.123.
Murilo MENDES, Retratos-Relâmpago. In Obra Completa, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 2000, p. 1218.
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André Tavares – Artes visuais e literatura: uma introdução à obra artística de Cornélio Penna
A relíquia familiar deu ensejo à criação de sua obra mais significativa. Apesar do
sucesso de seu procedimento e da acolhida favorável da crítica, Cornélio Penna sempre
posicionou-se um pouco fora dos holofotes e das discussões mais aferradas. Assim contava
a João Condé, respondendo a uma pergunta sobre o juízo que, eventualmente, faria do
movimento de 22:
Não julguei na época e não julgo hoje o modernismo, porque não conheço os movimentos
literários e penso que eles agem e influem fora da literatura. [...] De resto, leio apenas para não
14
pensar, para esquecer a vida e não para refletir sobre a literatura e fazer juízos paralelos.
O autor mereceu, em princípios da década de 1980, uma exposição intitulada “Os
dois mundos de Cornélio Penna”, iniciativa da Fundação Casa de Rui Barbosa, depositária
de seu acervo pessoal. O catálogo, assinado por Alexandre Eulálio, converteu-se na
referência maior para a análise do trabalho de C. Penna como artista gráfico e pintor. Nesse
texto, publicado posteriormente na Revista Discurso (FFLCH/USP, 1981) bem como no
volume Escritos (Ed. UNICAMP), Alexandre Eulálio tratava de esclarecer possíveis fontes
visuais, modelos de figuração, para o estilo fantástico das imagens elaboradas pelo autor de
A Menina Morta. Seu parecer era de que
em Cornélio Penna, pintura e literatura constituíram as formas artísticas que, nessa ordem, o
criador relutante aceitou a assumir a fim de dar expressão a um mundo pessoal torturado e
sombrio. Embora duvidasse muito da eficáci a da própria atitude, sempre a oscilar entre a
inutilidade de cada gesto e o arrebatamento interior, o artista acaba por aceitar o caminho da
15
invenção.
Se, ainda na faculdade de Direito, iniciara-se nas letras com pequenas lendas e
narrativas curtas dentro de filiação simbolista, seria na imprensa que sua personalidade
artística ganharia espessura. Nesta etapa, o artista gráfico passaria à frente do escritor,
apurando sua técnica e definindo seu campo de interesse temático. A esta altura,
14
Ver ADONIAS F ILHO em Romances Completos, ed. cit., p. LII.
Alexandre E ULÁLIO , Os dois mundos de Cornélio Penna. In Revista Discurso, São Paulo, FFLCH/USP,
1981, pp. 29-48. Esta citação, p. 29.
15
Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 15-42
25
André Tavares – Artes visuais e literatura: uma introdução à obra artística de Cornélio Penna
executa [...] caricaturas políticas, apontamentos esquemáticos, desenhos vários, em que o lado
grotesco do dia-a-dia vence a anotação por vezes lírica apanhada ao vivo: cenas de rua,
16
comentários de porta de bar, ridículos e mesquinheza da pequena-burguesia.
Sua ativida de, porém, foi além da caricatura e da ilustração de pequenas histórias
publicadas nos jornais e revistas da moda. Trabalhou, ainda, como um proto-designer,
compondo modelos tipográficos “modernos”, é dizer, com letras geometrizadas e arrojadas
para letreiros de lojas que desejassem para si um perfil e imagem inovadores.
A exposição de 1928 aparece como uma conseqüência natural do prestígio
crescente que seus desenhos vinham alcançando. Os estímulos dos amigos e fãs dedicados
acaba m entusiasmando o autor, o que é de causar espécie dado o caráter retraído que vinha
cultivando até então:
Já animado com o que me diziam alguns amigos, resolvi fazer uma exposição individual, o que
realizei graças ao espírito empreendedor de Dona Nini Gronau, e o Sr. Teodoro Heubergerm
que contou com o patrocínio do Ministro da Alemanha em nosso país, o Sr. Hubert Knipping,
fizeram tudo para que esse desejo se tornasse uma realidade. Em 1928 foi inaugurada minha
única exposição, e consegui vender alguns quadros [...]. O catálogo foi escrito pelo Sr. Augusto
17
Frederico Schmitd [...].
Em 1929, porém, mesmo após o sucesso de sua exposição e o continuado apoio
manifestado pelos fãs de seu desenho nervoso e do cinismo sutil com que impregnava
alguns de seus sketches mais bem-sucedidos, Cornélio Penna decide subordinar, pela
deficiência na transmissão plena do conteúdo emocional que deseja comunicar, o desenho
à escrita, publicando seu acerto pessoal de contas com o universo artístico e resolvendo,
através da atitude radical, a indecisão, a dúvida na escolha exata do meio de expressão
consoante com seu gênio, a que vinha se submetendo. Assim,
atingindo um paroxismo insuportável para o mesmo artista, sem no entanto provocar no
espectador a ânsia de absoluto que nele gostaria de incutir, Cornélio Penna julga frustrada a
16
Alexandre E ULÁLIO , op. cit, pp. 29-30.
Depoimento a Lêdo Ivo, em A vida Misteriosa de Cornélio Penna, Romances Completos, Rio de Janeiro, José
Aguilar, 1958, p. LX.
17
26
Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 15-42
André Tavares – Artes visuais e literatura: uma introdução à obra artística de Cornélio Penna
própria obra, que passa a considerar um equívoco. [...] Procurando libertar-se com tristeza, mas
de modo definitivo, de um sofrimento que parece não levar a coisa alguma, Penna assume para
si mesmo que o abandono da pintura é a única solução para o dilema. A pintura deixará
portanto (afirma) o principal meio de expressão do mundo interior dele. Em lugar adota a
pintura – arte do tempo, não do espaço, arte que afinal constituía o seu outro mundo – , que a
partir daí se torna o sangradouro dessa represa que ameaça aluir por excesso de tensão
18
dinâmica.
O desenho parece ter sido, até aí, o veículo. Passando ao romance, adotaria um
estilo sugestivo, marcado pelas impressões vagas e pelo discurso “a meia-luz” que
associam-se com eficácia poética. A cisão entre o artista plástico e o romancista era, a esta
altura, irreversível. Assim se manifesta C. Penna sobre os eventos posteriores à exposição e
que culminaram na Declaração de Insolvência:
[...] fizeram-me um convite para levar a exposição a Buenos Aires, a bordo do navio
estrangeiro que inaugurava então linha de navegação de longo curso, para permanecer na
capital argentina durante vinte dias, tudo à custa da empresa. Recusei, e pouco tempo depois,
tendo desenhado um quadro que chamei Anjos Combatentes, verifiquei com tristeza, que não
era pintor, nem desenhista, nem ilustrador, apesar de ter feito capas e ilustrações para livros de
19
Moacyr de Almeida, Arnalfo Tabaiá, Rubey Wanderley e outros ...
O momento de impasse em que se inscreve o Cornélio Penna artista gráfico – os
anos 20 da definição militante do caráter nacional – pode ter atordoado, mais do que
desafiado – como fez a tantos outros – o artista, precipitado num debate em que se via
prostrado, incapaz de uma contribuição efetiva. Chegava mesmo a achar graça, a zombar
de certa postura panfletária que percebia em certos grupos de artistas.20 O autor entendia
18
Alexandre E ULÁLIO , op.cit., p.38.
Do depoimento a Lêdo Ivo, ed. cit., p. LX.
20
Assim escrevia, na Declaração de Insolvência, publicada originalmente no jornal A Ordem, do Rio de Janeiro,
em 1929, sobre os que buscavam insistentemente a invenção de uma pintura “genuinamente” brasileira:
“Muitas vezes, em minha miséria, procurei esse apoio negativo, e só encontrei quem procurasse, por sua vez,
um pintor-cobaia ou um pintor-tabu; aqueles que pintam as idéias de seu grupo, ou aqueles que têm a
propriedade exclusiva da seção de pintura, também de seu grupo. Ora não posso aceitar, nem compreender,
sem rir, uma e outra dessas atitudes [...] E daí não poder escrever nunca sobre arte, porque em vez de me
19
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André Tavares – Artes visuais e literatura: uma introdução à obra artística de Cornélio Penna
que, a despeito dos cem anos de atividade da Academia e da renovação promovida pelas
novas hordas de pintores, escultores ou desenhistas, o ambiente das artes plásticas padecia
da falta de consistência e urdidura, inculcando nos que se dedicassem ao seu estudo mais
dúvidas e acanhamento intelectual que segurança e desenvoltura artística. A preferência
pela literatura, ao fim do balanço e da curva de vida representados pela Declaração, parece
ter correspondido a uma busca por um campo mais preparado para as realizações artísticas,
representado, entre nós, pela tradição literária. Uma postura como esta deduz-se
imediatamente de opiniões como a que se segue:
Uma vez que nosso adiantamento literário, as nossas livrarias e os nossos literatos, pelo menos
em um pequeno agrupamento à parte, são muito mais interessantes, completos e avançados,
como é natural, do que o nosso adiantamento artístico, as nossas galerias e os nossos artistas,
dispersos e isolados moralmente, todo aquele que deseja conhecer e estudar só acha diante de
si livros e teorias, e as viagens que faz, apressadas e como um coroamento do que já conseguiu,
são antes um novo elemento de confusão e desvirtuamento.
- Por quê? – interroga-nos, por sua vez Cornélio Penna – porque fazia literatura desenhada ...
Minha intenção primitiva na pintura era significar alguma coisa, criando uma imagem que
falasse longamente ao espírito, mesmo depois de esquecida a forma, o trabalho manual, a
21
representação em cores e linhas.
Dessa dúvida e da escolha subseqüente nasceria um dos mais originais autores da
primeira metade do século XX no Brasil. Estreando em um período em que os romances
do novo regionalismo, representado por A Bagaceira de José Américo de Almeida, pelo
Caetés de Graciliano Ramos, Cacau ou Suor de Jorge Amado, por exemplo, Cornélio Penna
abriria uma vertente audaciosa, reaproveitando elementos folclóricos, superstições e
densidade poética, indicando o caminho, v. g., ao Lúcio Cardoso de Maleita. Extrapola, por
certos procedimentos na estruturação narrativa, como a composição livre e deliberada de
cenas encerradas em si mesmo, como num sonho, as narrativas sombrias, porém marcadas
pelo recurso a finais surpreendentes ou a codas monumentais, de um João do Rio ou, mais
acudirem afirmações e doutrinas, brotam em mim, atropelando-se umas às outras, perguntas e dúvidas,
criadas pela minha educação literária, monstruosa e vulgar”. Ver Romances Completos, Rio de Janeiro, José
Aguilar, 1958, p. 1350.
21
Cornélio PENNA, Declaração de Insolvência, op. cit., p. 1350.
28
Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 15-42
André Tavares – Artes visuais e literatura: uma introdução à obra artística de Cornélio Penna
próximo ainda do universo de Cornélio Penna, do Monteiro Lobato das Cidades Mortas ou
dos contos dramáticos de Negrinha.
Os quadros e outros trabalhos artísticos seriam depositados no desvão da escada da
emblemática casa de Laranjeiras, no espaço a que o autor chamava – nada mais típico do
espírito corneliano – Necrotério. A Lêdo Ivo confessou, por fim:
– Não pintei mais – continuou o escritor, sem o menor sinal de emoção, na voz. Parecia falar
de alguém indiferente, morto há vinte anos. – Acabou-se a dúvida, e, se não me convenci de
22
todo que sou escritor, pelo menos estou certo de que não sou pintor.
3. Cornélio Penna ilustrador.
No Brasil, a arte é sobretudo um caso pessoal, e nós precisamos,
primeiro da formação de artistas, mesmo que sejam cegos e surdos
em nosso país, tão ruidoso e tão claro, para depois descobrir-se um
nexo entre eles, e nascer uma vaga e confusa personalidade coletiva,
que poderá ser estudada.
23
Cornélio Penna, Declaração de Insolvência (1929).
Curiosamente, alguns dos trabalhos mais pungentes e concisos de Cornélio Penna
viriam após a sua Declaração de Insolvência. De algum modo, ter-se desincumbido
formalmente do papel de artista plástico ou da função de contribuir diretamente para a
criação de uma arte brasileira genuína ao gosto dos debates da segunda metade dos anos
1920, parece ter dado asas à sua imaginação ou, ao menos, removido alguns pudores que o
impedissem de se apropriar livremente das estilizações angulosas e fantasiosas, mais
compactas e sem o peculiar ziguezaguear de linhas, que definem o seu estilo dos anos
trinta. Continuou a executar desenhos a nanquim, ex-libris para amigos, capas e desenhos
sem maior pretensão. Gravuras como Família de 1933 ou as quatro gravuras que elaborou
22
23
Cornélio Penna a Lêdo Ivo, op. cit., p. LXI.
Romances Completos, ed. cit., p. 1349.
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29
André Tavares – Artes visuais e literatura: uma introdução à obra artística de Cornélio Penna
para Fronteira indicam um artista em continuado desenvolvimento. Suas figuras e
composições ganhavam em potência psicológica e o gosto anterior pela alegoria explícita
cedia lugar a uma concisão de meios e a um uso mais eficiente das sombras e veios
gravados. A fantástica capa, muito elogiada por Alexandre Eulálio, de Espelho d’Água – Jogos
da Noite, livro de poemas de Onestaldo de Pennafort não data senão de 1931, assim como a
ilustração de cariz medievalizante para O Príncipe Glorioso, conto de Estrela Azul, de Murilo
Araújo, não viria antes de 1940, onze anos adiante da Declaração ...
Este estilo inconfundível, porém, vinha sendo desenvolvido desde o início de sua
carreira na imprensa. A sua capacidade estava pouco a pouco sendo expandida e, trabalho
após trabalho era possível enxergar mudanças significativas. E, de fato, vemos a série de
caboclos (1923), de caráter impreciso e anêmico ganhar em sentido, segurança de traço e
profundidade de caráter a cada nova tentativa para culminar em novos e melhores
resultados, desenvolvendo-se no que seria o seu estilo dos anos 30. O topo desta série
estará, sem dúvida, em desenhos como aquele de 1924 depositado, hoje, no Museu de Arte
Contemporânea. O que se passa com a série dos caboclos é significativo para
compreendermos essa modificação no estilo e na maneira de o autor compreender as suas
possibilidades plásticas e sua capacidade de expressão em um e outro meio. As telas
francamente medíocres do início da década de vinte – como, por exemplo, O Homem –
conviveram com gravuras macabras de sabor decadentista. Assim era Volúpia (1923), v. g.,
muito mais interessante como resultado plástico do que as telas e grisailles que vinha
produzindo. Segundo Alexandre Eulálio, o interesse pela série Caboclos viria do tratamento
original dedicado ao assunto. Assim,
A insistência no tema indigenista, nos vastos sombreiros dos homens, nos bandós, coques e
xales das mulheres, assim como o modo pouco ortodoxo de dispor a matéria na tela, provocou
curiosidade no Primeiro Salão da Primavera inaugurado no Rio naquele ano. – 1923,
lembremos, para continuar – Os trabalhos foram aí acolhidos com benévola curiosidade pelo
júri, que pensou tratar-se da produção de pintor mexicano não se sabia se de passagem ou
24
estabelecido havia pouco no Brasil.
24
Alexandre E ULÁLIO , op.cit., p. 33.
30
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André Tavares – Artes visuais e literatura: uma introdução à obra artística de Cornélio Penna
O clima sombrio de trabalhos como os de Cornélio Penna podem ganhar
significado mais amplo se comparados com a obra de artistas abertos ao mesmo gênero de
preocupações metafísicas ou ao chamado inequívoco do lado mais turvo da alma. É o caso
do pintor Roberto Rodrigues, que mais tarde sucumbiria ao ópio, difundido no Rio dos
anos vinte, com suas cenas de loucura e seus desenhos de temática boêmia e macabra.
Ganhariam, do mesmo modo, se cotejados com as Beatidudes de Cecíclia Meireles,
indicando um caminho místico, derivado dos últimos laivos de Simbolismo que continuaria
nutrindo, por muito tempo, alguns setores da cultura brasileira.
Quando opta abertamente pela estilização, pelos temas obscuros e pelos desvãos de
alma que tenta esquadrinhar, alcança estratos mais altos em sua produção. Não há o
resultado final dos Caboclos do MAC-USP sem trabalhos como Piedade (1924), Conversa
Afiada ou da série com temas macabros de 1924. Da mesma cepa dos Caboclos, a capa
assinada “Penna”, em letra alongada como seus desenhos, para o romance João Miguel de
Raquel de Queiroz editado por Schmitd.
Sobre a relação entre o artista plástico e o escritor, a análise de Adonias Filho é das
mais precisas:
Nos quadros e desenhos, expostos no saguão da Associação dos empregados do Comércio,
que oito anos depois Almeida Sales evocaria para explicar certos aspectos do romance Fronteira,
uma personalidade singular observava o crítico, focaliza os seres e as coisas sob um prisma
fantasmagórico. O painel embebido de mistério diluído, continua Almeida Sales, na
descontinuidade dos contornos, o recorte humano das figuras, já Cornélio Penna estabelecia os
dados imediatos da futura mensagem literária. Verificando o subjetivismo, o “desprendimento
do mundo”, e no ensaio que escrevia sobre o pintor, o poeta Augusto Frederico Schmidt
lembrava William Blake como ponto de referência para “a falta de prisão às coisas palpáveis”.
E não subsistirá exagero se acrescentarmos que a mensagem do romancista começa no pintor
25
Cornélio Penna. A correlação, em verdade, é perfeita.
A correspondência entre arte visual e literatura encontraria sua intersecção mais
bem resolvida e equilibrada em Fronteira. Para Adonias Filho, a ligação entre os desenhos e
pinturas dos anos 20 e a novidade da incursão literária era mais que evidente:
25
ADONIAS F ILHO , op. cit., p. XX.
Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 15-42
31
André Tavares – Artes visuais e literatura: uma introdução à obra artística de Cornélio Penna
As atmosferas são idênticas e de tal modo se ajustam que os desenhos podem ilustrar os
romances. O grande exemplo se encontra na edição de Fronteira: As ilustraçõ es que a
enriquecem não contrariam os desenhos e os quadros porque, dispondo dos mesmos traços,
oferecem o mesmo fundo. No pintor, e não viesse a ser escrita sua obra ficcional, já se
encontravam os elementos da mensagem: o mundo sombrio, o fundo místico, em sangue a
26
conversão da angústia.
A análise do autor das Memórias de Lázaro sobre Cornélio Penna seguia o seu
percurso apontando as razões que, hipoteticamente, teriam conduzido nosso autor do
desenho e da pintura ao romance. A idéia central é a de que os conteúdos intensos que
Cornélio Penna já desenvolvia e apresentava em seu trabalho artístico revelariam in herba, a
matéria literária solicitando, por desenvolvimento natural, os recursos infinitamente mais
potentes do romance, grande painel em que não só poderia evocar as imagens que
colecionava desde as narrativas que ouvira na infância mas, também, aproveitar as que
reelaborara como ilustrador. Assim,
é possível que, em conseqüência da força dessa mensagem – e mais literária que plástica –
Cornélio Penna chegasse ao romance como veículo mais eficiente para exteriorizá-la. O
romance, e não a pintura, era o veículo mais eficiente para explorá-la em todos os seus rumos e
todas as conseqüências. Sua estrutura especulativa, complexa e poderosa, demonstrava menos
27
o pintor e mais o romancista. E este não tardaria em absorver aquele.
A declaração de insolvência daria azo à criação de uma forma especial de romance
ilustrado. O autor desejaria organizar uma forma híbrida e equilibrada em que narrativa e
ilustração, elaboradas pelo mesmo artista, fosse combinada num possível modelo que lhe
satisfizesse as pretensões em um e outro campo? É hipótese a ser verificada.
26
27
Idem..
ADONIAS F ILHO , op. cit., p. XX.
32
Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 15-42
André Tavares – Artes visuais e literatura: uma introdução à obra artística de Cornélio Penna
4. Livros ilustrados na Coleção Cornélio Penna do IEL-UNICAMP como uma
possível chave para a compreensão de sua arte.
O catálogo de Alexandre Eulálio permanece o estudo mais completo e, mesmo,
afetuoso, sobre a obra artística, e aqui falamos especificamente do mundo das expressões
gráficas, de Cornélio Penna. Descreve e analisa, dispostas em ordem cronológica, suas
séries de gravuras e obras avulsas, destacando-lhes o perfil geral da composição, a paleta
melancólica e o efeito mórbido e fantasmagórico. Fornece os elementos que vão ajudar a
definir e identificar o estilo do desenhista.28 Com a acuidade e a erudição que lhe são
peculiares, com a pena leve e elegante do texto fluente, consegue traçar uma ampla
genealogia de artistas que poderiam estar na gênese da “maneira” de Cornélio Penna, seus
antepassados imediatos e também os antecessores menos óbvios. Fala de uma possível
influência de pintores vitorianos (“Alma-Tadema, Frederick Leighton, Albert Moore, E. J.
Poynter”29) a que o autor de Fronteira teria acesso pelas mãos de sua tia, Baronesa de
Paraná.30 A. Eulálio destaca as ilustrações feitas para contos como o emblemático, em sua
expressão, Anedota do Cabriolé de Machado de Assis, Las dos Sombras, de feições mouras,
para o conto de mesmo nome do espanhol Pedro de Réspide, os orientalizantes desenhos
algo à Bakst para Cleópatra (1909) e Xerazade (1916) que nosso crítico associa a Erté e aos
figurinos de Poiret. Menciona, ainda, como êmulo, as ilustrações de Rivière elaboradas em
1896 para o álbum Images d’après Mallarmé. Não esquece, também, de situar Cornélio Penna
no quadro dos seus contemporâneos nacionais com quem, mesmo guardando distância
pelo zelo extremo com que conduzia sua vida pessoal, mantém evidentes relações formais.
Inevitável lembrar Yan de Almeida Prado, Correia Dias, Di Cavalcanti (na capa de Estrela de
28
“[...] certa linha nervosa e trepidante [...] que avança em ziguezague irregular [...]”, escreve Eulálio, que, à
mesma p. 33, fala de “expressividade simbolista”. Essa linha nervosa, adotada a partir de 1923, “permite a
Penna expressar-se com absoluta economia e insuperável rigor. As conquistas dessa maneira ele as transpõe
também para as aquarelas e têmperas então executadas em cores baixas – cinzas, ocres, roxos, rosa-pálido,
cereja, castanhos, laranjas, amarelos e, mais raros, verdes-pálidos e púrpura –, obras em que a linha traveja a
estrutura.” Op. cit., p. 33.
29
Alexandre E ULÁLIO : op. cit. , p. 30.
30
Segundo Eulálio, ele também “das baronesas”, como na expressão de Murilo Mendes, seria esta Baronesa
de Paraná “autora de inverossímeis telas de tema antigo e afrescos em estilo pompeiano”, op. cit., p.30.
Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 15-42
33
André Tavares – Artes visuais e literatura: uma introdução à obra artística de Cornélio Penna
Absinto, por exemplo), Paim, Ferrignac, J. Washt Rodrigues, entre outros tantos. A lista de
artistas internacionais que nos poderia auxiliar a compreender a formação do estilo de
Penna seria igualmente variada. Esta incluiria, além do William Blake sempre lembrado,
assim como certos influxos derivados de Gustave Moreau,
o holandês Jan Toorop, os belgas Charles Doudelet e Georges Minne, o austríaco Koloman
Moser e, nos seus desenhos, o escultor italiano Adolfo Wildt. A eles [...], porém, [...]
excetuados talvez Toorop e Moser, Cornélio não chegaria a conhecer, senão imperfeitamente,
ao acaso de reproduções eventuais em revistas de arte ou algum livro avulso. Poder-s e-iam
31
citar ainda alguns outros nomes isolados ao lado destes.
Além disso, uma possível simpatia pelo espírito da Wiener Secession é
mencionada, assim como afinidades com Aubrey Beardsley e seus seguidores Charles
Ricketts, Alaistair, E. B. Bird ou William Horton. Hubert Kipping, plenipotenciário da
República de Weimar no Rio de Janeiro, teria sido atraído por este espírito e, entusiasta
desta arte de reverberações sutis e íntimas, converteu-se num dos principais patrocinadores
da exposição de Cornélio Penna, em 1928.32
A contribuição possível do nosso trabalho é o acréscimo, a esta lista de dados,
nomes ainda não mencionados bem como realizações artísticas ainda não analisadas.
Falamos dos artistas gráficos e ilustradores de livros que Cornélio Penna colecionava
habitualmente. Nesta coleção vamos encontrar fontes visuais subsidiárias que, combinadas
com a ampla análise conjuntural de Alexandre Eulálio n’Os dois mundos de Cornélio Penna,
potencializam a possível crítica da obra do romancista como artista plástico, desenhista e
pintor, possibilitando o surgimento de novas idéias sobre a natureza de seu caminho.
Nossa hipótese é a de que o autor alimentava a integração das artes visuais à literatura,
buscando meios de conjugar estes dois campos em proveito da comunicação dos
conteúdos poéticos e emotivos de seu texto. O próprio texto de Alexandre Eulálio
tangencia este caminho ao ocupar-se da análise do conto machadiano Anedota do Cabriolé,
quando as imagens propostas por Penna, ao princípio e ao fim do texto, não mais seriam
31
32
Alexandre E ULÁLIO , op. cit., p. 41.
Ver, sempre, A. E ULÁLIO , op. cit., p.41.
34
Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 15-42
André Tavares – Artes visuais e literatura: uma introdução à obra artística de Cornélio Penna
acessórias ao texto, mas, em sua expressão, o iluminariam, ganhando status de verdadeiro
emblema.
Das séries de livros conservados na Biblioteca Cornélio Penna, ganha destaque a
coleção Le livre moderne illustré, editada em Paris por J. Ferenczi et fils Éditeurs, num período
que cobre os anos 1923 e 1935. São volumes de tamanho médio contendo, além de bela
capa padrão ornamentada com motivos, impressos a cor, um bom número de gravuras e
vinhetas, apostas, em sua maioria, na abertura de cada um dos capítulos (gravuras maiores
com cenas alusivas à narrativa ou à sua ambientação) ou no encerramento dos mesmos
(pequenas imagens, vinhetas). Os gravados (“bois”, como é possível ler nas páginas iniciais
de cada romance) possuem autores diversos e é possível detectar algumas variantes
estilísticas ou momentos de exceção criativa num certo padrão que se estabelece ao longo
da série.
Imagino que, ao elaborar as quatro pranchas para a primeira edição do romance
Fronteira, Cornélio Penna pudesse ter em mente séries de livros ilustrados como esta. As
ilustrações de Vitor Marrey para o livro Bandadas do peruano Gonzalo Ulloa é outra
referência importante, por certas consonância detectáveis no estilo de Cornélio Penna.
Lembremos a confusão causada pela série dos Caboclos, quando pensava-se tratar Penna de
um artista mexicano radicado no Brasil ... Este parentesco “hispano-americano” poderia ser
evidenciado em um pequeno catálogo de ornamentação indígena peruana convertida em
motivos decorativos para aplicação moderna que Cornélio Penna possuía em sua
biblioteca.
Os livros nacionais formam outro grupo de interesse destacado: formam o
panorama do que deveria ser o mercado de livros ilustrados entre nós na década de 1920,
possibilitam a compreensão mais apurada do que alimentava o autor e balizava suas
pretensões como escritor-ilustrador. São, por assim dizer, a caixa de ressonância imediata
para os que se lançassem, no período, a esse tipo de publicação. Paulo Torres e seu Balé
Branco apresentam o ilustrador Angelus como um Aubrey Beardsley longevo e reduzido a
essencialidades do traço fluido. A capa em azul celeste com tipografia sinuosa – alternada
com ondas e formas curvas – em branco alcançam impacto visual inusitado.
Mais discreto, o poeta Murilo Araújo desenharia, para a capa de seu Cidade de Ouro,
as torres em azul de uma cidade de sonhos, cercadas por uma moldura oblonga e ovalada
formada por estrelas em ouro envelhecido. Seu livro contaria, também com cliché artístico
de Álvaro Souza e ilustrações internas de Nery. Mais próximo das realizações de Cornélio
Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 15-42
35
André Tavares – Artes visuais e literatura: uma introdução à obra artística de Cornélio Penna
seria a capa de Assombrações, livro de contos de suspense de Dionysio Garcia, elaborada por
Fox. A marca da editora, no verso deste volume, seria desenhada pelo mesmo artista,
inscrita numa pira cerimonial.
Extrapolando a data limite proposta para este pequeno estudo, mas precioso pelas
possíveis ligações que pode fazer supor, está A vida é o dia de hoje (1939), do escritor
português Alberto de Serpa. Este pequeno volume, com dedicatória a Cornélio Penna e
autógrafo do autor (no Porto em 1940), está ilustrado por Júlio, o dileto irmão mais novo
do escritor José Régio, e vai publicado pela Editora Presença, fruto da conjunção de
vontades de Régio, de Branquinho da Fonseca e João Gaspar Simões que, na Coimbra dos
anos 1930, marcaram a emergência de um novo momento no curso do modernismo
português. Uma possível ligação entre Cornélio Penna e o grupo de Presença, a ser
investigada com maior cuidado e vagar, faria muito sentido, principalmente se pensamos no
talhe da figura central de José Régio, ele também um católico marcado por misticismo
profundo, colecionador de antigüidades que reunia em sua casa de Portalegre e, também,
um desenhista “de domingo”, na sua própria expressão. Seu irmão Júlio, este, sim artista
plástico, foi responsável pela ilustração de uma série de seus livros, entre os quais
destacam-se o grande romance cíclico A Velha Casa (seis volumes) ou os famosos Poemas de
Deus e do Diabo. Régio, um tanto mais novo, é, porém um bom êmulo para Cornélio Penna.
Esperamos poder depurar um pouco mais esta hipótese que amplificaria o significado e a
compreensão desta onda “neocatólica” que floresce na primeira metade do século XX e da
qual, Conélio Penna e José Régio são pedra angulares.
Sem grandes programas ou séries de ilustração, mas com cuidado gráfico apurado,
poderiam se mencionadas a edição do Cobra Norato de Raul Bopp, com a “clássica” – e bela
– capa de Flávio de Carvalho (São Paulo, Irmãos Ferraz, 1931, edição autografada e
dedicatória a C. P.) ou Chuva de Pedra de Menotti del Picchia, de 1925. Este volume – cujo
projeto gráfico refinado não tem seu autor identificado – embora não conte com pranchas
ou gravuras, conta com letras capitais muito bem elaboradas e modelos tipográficos de
grande interesse. O título do livro é repetido como uma vinheta em todas as páginas. A
contracapa em verde e amarelo utiliza elementos vegetais nativos como inspiração.
36
Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 15-42
André Tavares – Artes visuais e literatura: uma introdução à obra artística de Cornélio Penna
5. Uma pequena conclusão.
As relações entre literatura e artes, entre escritores e artes plásticas, podem abrir aos
interessados uma série de campos de estudo e um amplo espectro de debates, como é
possível perceber. O estudo de Cornélio Penna é apenas uma etapa, inconclusa ela mesma,
deste projeto que se vai delineando pouco a pouco. As próximas etapas no caminho de sua
execução incluem a digitalização das imagens e ilustrações incluídas nos livros de sua
biblioteca, assim como a identificação, quando possível, de cada um dos artistas
identificados. A análise formal de cada exemplo e sua correspondência com a obra
corneliana deverá ser evidenciada quando possível, criando uma rede de informações que
se complementem de modo eficiente.
Mas, é, apenas, um princípio. Aqui, apenas o esforço coletivo promoverá um
resultado de maior expressão. Uma história dos livros ilustrados – que é rica ente nós –
ainda deve ser feita, somando-se estudos já desenvolvidos sobre Oswaldo Goeldi, sobre as
edições dos Cem Bibliófilos, sobre Axl Leskoschek ou Tomás Santa Rosa, para o que
devemos contar com a colaboração dos pesquisadores interessados na história da gravura
no Brasil. Nosso recorte temporal, lembramos, exaure-se ao redor dos anos 50. Além desse
limite há outro universo a se explorar.
A reedição ou a revalorização da obra crítica de autores hoje deixados um pouco de
lado, como a do eclético romancista José Geraldo Vieira, ainda aguarda a análise cuidadosa
de um interessado, assim como a de Coelho Neto (autor de alguns perfis de artistas em
textos curtos e sugestivos), Ribeiro Couto ou a de Marques Rebelo. Este último, aliás, foi
autor do texto do catálogo incluído no catálogo da retrospectiva de arte brasileira
organizada pelo Museu de La Plata ao fim dos anos 40.33 Este catálogo, conservou-o
Cornélio Penna entre seus volumes. A biblioteca de um escritor, a seleção que ele faz de
seus livros é ajuda sem par no trabalho da compreensão de um período, identificando as
nuances de uma personalidade artística ou reforçando ligações que passariam despercebidas
numa análise menos profunda. Numa época de especializações esterilizantes, a análise dos
esforços e das razões de artistas que, como Cornélio Penna, se revolvem diante da escolha
33
A Rotunda n. 3, pp. 13-21, inclui a transcrição por nós executada deste texto de Rebelo, antecedida por uma
pequena análise de seu conteúdo.
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André Tavares – Artes visuais e literatura: uma introdução à obra artística de Cornélio Penna
de um e outro meio de expressão, é um bom exercício para o pesquisador, uma maneira de,
evitando as chaves generalizadoras e padronizações empobrecedoras, reconstruir percursos
pessoais e reintroduzir tópicos que permanecem fora dos debates correntes. Nenhum
destes autores e artistas merece nosso desfavor.
6. Levantamento: Literatura ilustrada e livros sobre artes e estética na Biblioteca
Cornélio Penna (IEL-UNICAMP).
A seguir, elencamos um balanço preliminar do material encontrado na biblioteca
pessoal de Cornélio Penna, depositada no IEL-UNICAMP. Selecionamos exemplares que
se encaixassem nos limites cronológicos fixados aos nossos propósitos, ou seja, do início
das atividades do autor na imprensa em 1920 até o aparecimento do primeiro livro do
autor, Fronteira, em 1935. Imaginamos que estes volumes tenham sido de alguma
importância na formação não só da linguagem visual do autor e na fixação de sua
identidade como ilustrador, mas, também, de um possível projeto de conexão literaturaimagem para as edições nacionais. Acrescentamos, porém, alguns exemplos que extrapolam
a data indicada, uma vez que nossa intenção, a logo prazo, é o levantamento exaustivo de
toda a literatura ilustrada incluída na Biblioteca Cornélio Penna. Este arrolamento e sua
posterior catalogação sistemática, assim como o registro fotográfico de cada exemplo
deverá compor um banco de dados que servirá não só a uma história dos livros ilustrados
ligada à personalidade do autor, mas, do mesmo modo, a investigações desenvolvidas no
âmbito do Centro de Pesquisa em Gravura (IA-UNICAMP), dando origem a um atelier de
ilustração ou a um grupo dedicado ao estudo da História da Gravura.
Além da seção de livros ilustrados, incluímos um rol obras cujo conteúdo seja o das
artes plásticas, arquitetura ou estética – enumerados independentemente de limites
cronológicos determinados para nosso trabalho, das vinculações diretas com a atividade de
ilustrador de C. Penna ou com nossas hipóteses sobre este tópico – encontrados no acervo
de Cornélio Penna. A publicação de textos sobre história das artes no Brasil encontradas
no acervo Cornélio Penna começa pelas transcrições dos trabalhos de Mário Linhares e
Marques Rebelo. O conjunto destes textos será oferecido aos leitores pelos editores da
Rotunda.
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Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 15-42
André Tavares – Artes visuais e literatura: uma introdução à obra artística de Cornélio Penna
Livros Ilustrados.
ALVARENGA, Octávio Mello, Coletânea de Poesias, Belo Horizonte, 1954. Sem indicação de editora, com
ilustrações de Maria Helena Andrés. Exemplar autografado em 07/11/1955 e dedicado “Ao grande
escritor mineiro Cornélio Penna, com admiração”.
ARAÚJO , Murilo, A cidade de Ouro, Rio de Janeiro, Empresa Brasil Editora, 1923. Exemplar autografado pelo
autor, dedicado a “Cornélio Penna, cujo coração flameja estrelado. No Rio de Janeiro, dia de Nossa
Senhora da Glória de 1925”. O desenho da capa é do autor, as ilustrações internas de Nery e o cliché
artístico (design gráfico, como nós o entendemos?) de Álvaro Souza.
BERNARD, Tristan, Les Moyens du Bord, Paris, Le Livre Moderne Illustré, Ferenczi et Fils Éditeurs, 1931.
Ilustrações de Gérard Coché.
BOPP, Raul, Cobra Norato, São Paulo, Irmãos Ferraz, 1931. Edição autografada com a bela capa de Flávio de
Carvalho.
BORDEAUX, Henri, La Maison, Paris, Le Livre de demain, Arthème Fayard e Cia. Éditeurs, 1927. Com 40
gravuras originais de Paul Boudier.
CAPUS, Alfred, Annés d’Aventure, Paris, Colection Ilustrée, Pierre Lafitte e Cie., 1910. Ilustrações de Leonce
Beuret.
CHERAU , Gaston, Les Flambeaux des Riffault , Paris, Le Livre Moderne Illustré, J. Ferenczi et Fils Éditeurs,
1925. Ilustrações de Clemente Serveau.
DELARUE-MADRUS, Lucie, Le Pain Blanc, Paris, Le Livre Moderne Illustré, J.Ferenczi et Fils Éditeurs, 1924.
Gravados de Jean Buhot.
E LDER, Marc, La Passion de Vincent Vingeame, Paris, Le Livre Moderne Illustré, J. Ferenczi et Fils Éditeurs,
1925. Ilustrações d e Gabriel Belot.
FLEURIOT, Mlle. Zénaïde, Bouche en Coeur, Paris, Librairie Hachette et Cie., 1882. Com 45 gravuras de
Toffani.
GARCIA, Dionysio, Assombrações, Rio de Janeiro, Oficinas Gráficas A Noite, 1927. Capa e verso com desenhos
de Fox. Livro autografado, dedicado “Ao talentoso amigo Cornélio Penna, rara inteligência para a arte
criadora e cuja alma vibra ao ritmo das novas concepções. Rio, 18/10/27”.
HERMANT , Abel, Les Noces Venetiennes, Paris, Le Livre Moderne Illustré, J. Ferenczi et Fils Éditeurs, 1929.
HIRSCH, Charles Henry, La Grande Capricieuse, Paris, Le Livre Moderne Illustré, J. Ferenczi et Fils Éditeurs,
1927. Ilustrações de Gérard Cochets.
I VO , Lêdo, Cântico, Rio de Janeiro, José Olympio, 1949. Exemplar autografado pelo autor e dedicado “ao
casal Cornélio Penna”. Ilustrações do artista romeno Emeric Marcier.
J ALOUX , Edmond, L’Amour de Cécile Fougers, Paris, Le Livre Moderne Illustré, J. Ferenczi et Fils Éditeurs,
1923. Ilustrações com singular afinidade às de Cornélio Penna. Gravados de Clément Serveau. Letras
capitais, vinhetas e demais ilustrações com temas macabros.
LIMA, Jorge de, O Anjo, Rio de Janeiro, Ed. Cruzeiro do Sul, 1934. Exemplar autografado, datado de
28/03/34. Ilustrações de Thomaz Santa Rosa.
Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 15-42
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André Tavares – Artes visuais e literatura: uma introdução à obra artística de Cornélio Penna
MAURIAC, François, Trois Récits, Paris, Le livre Moderne Illustré, J. Ferenczi et Fils Éditeurs, 1931. Gravuras
de Clément Serveau.
_______________ , Thérèse Desqueyroux, Paris, Le Livre Moderne Illustré, J. Ferenczi et Fils Éditeurs, 1935.
Ilustrações de L. J. Soulas.
MAUROIS , André, Les Silences du Colonel Bramble, Paris, Le Livre Moderne Illustré, J. Ferenczi et Fils Éditeurs,
1924. Ilustrações de Jacques Boullaire.
________________ , Meïpe ou La Déliverance, Paris, Le Livre Moderne Illustré, J. Ferenczi et Fils Éditeurs,
1926. Ilustrações de Émmanoel Poirier.
NEMIROVSKY, Irène, L’Affaire Courilof , Paris, Le Livre Moderne Illustré, J.Ferenczi et Fils Éditeurs, 1936.
Ilustrações de Constant Le Breton.
PICCHIA, Menotti del, Chuva de pedra, São Paulo, Editorial Helios, 1925. Não há pran chas ou ilustrações, mas
possui um belo projeto gráfico e letras capitais de desenho refinado, além de modelos tipográficos de
interesse. O título do livro é repetido como uma vinheta em todas as páginas. A contracapa em verde e
amarelo utiliza elementos tipicamente brasileiros como inspiração. Sem indicação de autoria para o
projeto gráfico.
RADIGUET, Raymond, Le Bal du Comte d’Orgel, Paris, Le Livre Moderne Illustré, J. Ferenczi e Fils Éditeurs,
1925. Gravuras de Pierre François.
REIS, Fran Carlos, Mito e Presença, Massao Ohno, s.d. Trata-se de livro de poesias com ilustrações sem
identificação aparente, que lembram Lívio Abramo. Exemplar autografado e datado de 18/11/1963, é
dizer, além da data do falecimento de Cornélio Penna (1958).
SERPA, Alberto de, A vida é o dia de Hoje, Porto, Edições Presença, 1939. Autografado pelo autor, no Porto.
Ilustrações de Júlio, o irmão mais novo de José Régio.
TORRES, Paulo, Bailados Brancos, poemas. Sem indicação de editora, contém belas ilustrações à Beardsley de
Angelus e dedicatória com o seguinte texto: “Para o Penna, poeta trágico, o Paulo. Rio 1923”.
ULLOA, Gonzalo, Bandada, Talleres de Litografia, Imprenta, Rayado Encuadernación, Fotografados T.
Scheuch, Lima, Peru, 1925. Volume ilustrado por Victor Marrey, autografado pelo autor, no Rio de
Janeiro, 1926.
Livros sobre artes plásticas, arquitetura, estética ou história da arte.
Art et Litteratures: Matériaux et techniques, volume da Encyclopédie Française, Tomo XVI, Paris, s. ed., 1935.
BAYARD, Émile, L’Art de reconnaître les tableaux anciens e les styles de peinture, Paris, Roger et F. Chernoviz
Librairies Éditeurs, 1921.
BERGSON, Henri, L’Evolution Créatrice, Paris, Presses Universitaires de France, 1946.
BORJA, Arturo Jiménez, Cuadernos de Dibujo Indo-Peruano, Lima, Actual, 1935.
CARDOSO , Vicente Licínio, Philosophia da Arte, Rio de Janeiro: Livraria José Olympio editora, 1935.
Coleções Baroneza de Bomfim e Galeno Martins de Almeida, Catálogo dos dois colecionadores para exposição e
posterior leilão realizado no Copacabana Palace, 1955.
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Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 15-42
André Tavares – Artes visuais e literatura: uma introdução à obra artística de Cornélio Penna
Cuadernos de Arte (Série dedicada a cidades espanholas), Ecija (vols. 1 e 2) e Cáceres, Madrid, Editorial Mundo
Hispánico, 1952 Ecija Vol.1) e 1954 ( Ecija, Vol.2 e Cáceres).
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La Grammaire dês Styles – L’Art Japonais, Paris, Librairie d’Art, R. Durcher, 1926. Volume contendo 26
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Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 15-42
Félix-Émile Taunay e a recepção da tradição clássica
na Academia Imperial de Belas-Artes (1834-1851).
*
Elaine Dias **
Nunca se abale em vós a fé nos modelos gregos. Eles dão a chave do
estudo da natureza. É deles, mas só deles, como de uma base certa,
que se pode atirar o vosso vôo poético para um infinito de
combinações novas, para um sistema de modificação da arte; que
venha um dia a constituir a arte brasileira. 1
Durante os anos de 1834 a 1851, período em que exerceu o cargo de diretor da
Academia Imperial de Belas-Artes no Rio de Janeiro, Félix-Émile Taunay dedicou-se, com
grande esforço, à constituição de uma estrutura de ensino baseada, sobretudo, em modelos
acadêmicos franceses. Deseja, ao longo destes anos, fundar uma arte de status nacional,
denominada por ele como “escola brasileira”, e estreitar as relações entre o artista, a
sociedade e os órgãos públicos, ampliando os domínios do que era, até então, vinculado de
modo restrito às encomendas do círculo oficial da corte e às instituições oficiais do
governo.
Nesta trajetória, Taunay dedica-se com esforço inegável, ao lado do arquiteto
Grandjean de Montigny, à valorização da arquitetura e do profissional arquiteto formado
*
Este artigo é uma síntese de algumas idéias presentes na tese de doutorado já defendida, acerca da trajetória
de Félix-Émile Taunay como pintor de paisagem e diretor da Academia Imperial de Belas-Artes. Constitui
ainda uma reflexão sobre a temática da recepção da tradição clássica no Brasil, objeto do atual projeto de pósdoutorado desenvolvido na FAU-USP. A tese de doutorado intitula-se Félix-Émile Taunay: Cidade e Natureza no
Brasil, defendida no IFCH-UNICAMP, 2005. O projeto de pós-doutorado intitula-se “A Recepção da
Tradição Clássica no Brasil: A Questão da Arquitetura nos Discursos de Félix-Émile Taunay na Academia
Imperial de Belas -Artes”, em andamento.
** Doutora em História (IFCH-UNICAMP), pós-doutoranda em Fundamentos da Arquitetura e do
Urbanismo (FAU-USP).
1 Ata da Sessão Pública de 19/12/1840, Arquivo do Museu Dom João VI, Escola de Belas-Artes, UFRJ.
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Elaine Dias – Félix-Émile Taunay e a recepção da tradição clássica na AIBA (1834-1851)
pela academia brasileira, dentro dos órgãos públicos nacionais. Quer inserir esse arquiteto
em um espaço tradicionalmente ocupado pelos engenheiros militares. Além disso, Taunay
acredita que cabe à Arquitetura, considerada por ele como a primeira das artes, o
fortalecimento da Academia enquanto instituição produtiva ao governo imperial. Nesse
sentido, junta-se a essa noção o desenvolvimento da cidade do Rio de Janeiro através da
aplicação dos princípios neoclássicos de beleza e harmonia na construção de edifícios e
monumentos públicos, e ainda o planejamento urbano.
Para desenvolver o ensino artístico a partir de regras ligadas à Academia Francesa e
colocar em prática seu plano acerca do desenvolvimento da arquitetura e seu
fortalecimento perante o governo, Taunay enfrentou grandes dificuldades. Os modelos a
serem transpostos, vale dizer o ensino do desenho baseado no modelo vivo, nas aulas de
anatomia e na estatuária antiga, a organização da Pinacoteca e a produção de catálogos, as
exposições gerais, o Prêmio de Viagem, além da busca por empregos aos artistas recémformados, levariam alguns anos para, depois de aprovados, apresentarem resultados
efetivos. Ainda assim, Taunay enfrenta seus percalços, tendo ao seu lado, como bem
indicam os discursos proferidos pelo mesmo nas sessões públicas anuais da Academia de
Belas-Artes, o prestigiado (na França) e isolado (no Brasil) arquiteto, Grandjean de
Montigny.
A herança francesa do ensino artístico brasileiro não se iniciou, no entanto, pelas
mãos de Félix-Émile Taunay. Foi Joachim Le Breton, chefe da posteriormente denominada
Missão Artística Francesa, o idealizador do projeto de uma escola de artes e ofícios baseado
em modelos franceses, ainda em 1815, em Paris. Algumas correspondências trocadas entre
ele e o Ministro dos Negócios do Império, o Cavaleiro de Brito, conservadas atualmente na
Torre do Tombo, em Lisboa, evidenciam as primeiras negociações acerca do projeto. A
idéia inteiramente concebida por Le Breton, como demonstram os documentos, ganha a
confiança do Ministro português, que aprecia o desenvolvimento de um projeto de ensino
relacionado à indústria e à arte, e contribui pessoalmente para a vinda dos artistas ao Rio de
Janeiro. O Cavaleiro de Brito não só estabelece os contatos para a proteção do Rei D. João
VI aos franceses, solicitando esta proteção ao Ministro Conde da Barca, na chegada ao
Brasil, como ainda é o patrocinador da passagem dos artistas e de Le Breton.2
A história da Missão Artística Francesa contada através destes documentos conservados na Torre do
Tombo, em Lisboa, é mais complexa. Os documentos nos indicam o caminho traçado por Le Breton para o
convencimento da corte portuguesa no Brasil, sempre através das relações mantidas ainda em Paris com o
2
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Elaine Dias – Félix-Émile Taunay e a recepção da tradição clássica na AIBA (1834-1851)
Esta é a primeira fonte documental sobre os primórdios da história do ensino artístico
oficial no Brasil. Le Breton e seus artistas chegaram ao Rio de Janeiro em março de 1816.
Alguns meses depois, o mesmo Le Breton apresenta ao protetor Conde da Barca um
criterioso plano de ensino para a fundação de uma Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios.
Jean-Baptiste Debret, em carta enviada a um amigo em Paris em novembro de 18163, relata
os primeiros meses desses artistas aqui no Brasil, a realização do plano de Le Breton e sua
nomeação como diretor da futura escola por D. João VI, além de relatar ao amigo uma
série de intrigas estabelecidas no seio do grupo francês. Esse plano de ensino elaborado por
Le Breton, hoje conservado nos Arquivos do Palácio do Itamaraty no Rio de Janeiro,
constitui uma fonte preciosa para o entendimento dos primeiros passos tomados no Brasil,
no que se refere à tentativa de inauguração do ensino artístico oficial.4
1. O Plano de Ensino de Le Breton.
Le Breton concebe, em seu plano, ao lado da organização acadêmica do ensino das
belas-artes, uma sessão destinada aos ofícios. Ponto central de seu projeto era a fundação
de uma escola do desenho dentro dessa futura instituição, base para qualquer sistema de
ensino artístico. Nesse sentido, Le Breton persegue um modelo didático comum a qualquer
instituição acadêmica, cuja base convertia-se em um criterioso plano de ensino do desenho
a partir dos princípios clássicos centrados no estudo da natureza. Le Breton, no entanto,
tem em mente alguns modelos bem sucedidos de Paris para compor uma produtiva escola
Cavaleiro de Brito, diplomata português. Embora não tenhamos tempo aqui para discutir profundamente esta
questão, convém destacar a importância desses documentos que nos contam uma outra versão da chegada
dos franceses no Brasil. Ver Elaine D IAS, Félix-Émile Taunay: Cidade e Natureza no Brasil, Tese de Doutorado,
IFCH-UNICAMP, 2005; e também o interessante artigo de Robert COUSTET, A Missão Francesa no Brasil.
In Revista de História da Arte e Arqueologia, n. 4, 2000.
3 A carta está conservada na Bibliothèque de l’Institut National d’Histoire de l’Art, Collections Jacques
Doucet, em Paris. Ver também Elaine DIAS, Uma carta de Jean-Baptiste Debret ao “Camarade De La
Fontaine” na Bibliothèque de l’INHA (França): novos relatos para a história da Missão Artística Francesa no
Brasil. In Revista de História da Arte e Arqueologia, n. 5, 2006.
4 O plano de Le Breton foi publicado, em português, por Mário BARATA, Manuscrito Inédito de Lebreton.
Sobre o Estabelecimento de Dupla Escola de Artes no Rio de Janeiro, em 1816. In Revista do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional, n. 14, 1959.
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Elaine Dias – Félix-Émile Taunay e a recepção da tradição clássica na AIBA (1834-1851)
destinada não só às artes mas também aos ofícios. Aproxima-se do modelo de ensino
proposto pela École du Dessin fundada pelo pintor Bachelier em Paris5, em 1763, do qual era,
o próprio Le Breton, membro de seu conselho de provimento como subscritor. A Escola
de Bachelier era uma instituição do século XVIII que se relacionava diretamente a uma
série de instituições francesas originadas ainda no século XVII, sobretudo pelas mãos do
Ministro Colbert, as quais eram voltadas para o desenvolvimento dos ofícios na França.
Ressalta-se ainda que, ao final do século XVIII e início do século XIX, segue-se na Europa
a criação de inúmeras escolas relacionadas às artes e aos ofícios, como em Copenhague,
Estocolmo, Madri e Nápoles, as quais tinham como metodologia primordial, assim como a
escola de Bachelier, o modelo acadêmico francês, isto é, o estudo do desenho. Eram
considerados, assim, os estudos da geometria e da perspectiva, de teorias artísticas dos
grandes mestres e do modelo vivo. Como bem destaca Pevsner, em sua obra sobre as
academias de arte, as escolas de ofícios usavam plenamente o estudo do desenho em sua
metodologia, considerando que “a atividade do artista industrial não era mais do que o
transplante de desenhos aos diferentes materiais com a ajuda de instrumentos”.6
Além do modelo advindo das academias francesas na composição da escola de
ofícios, o qual também compunha toda a parte referente às belas-artes, o plano de Le
Breton apresentava ainda uma eficaz e estratégica aproximação ao modelo preconizado por
Alexander von Humboldt em seu Ensaio sobre a Nova Espanha.7 Em sua obra, Humboldt
relatava a experiência mexicana da Academia de Los Nobles Artes, ulteriormente nomeada
Academia de San Carlos, a qual simbolizava um sólido exemplo americano de
desenvolvimento artístico e institucional. Ainda que Le Breton soubesse que no Brasil não
havia um sistema tradicional tão forte quanto aquele já existente no México, o qual era
ligado à tradição indígena e mestiça de vários séculos, ele procurava mostrar aos ministros
portugueses a importância do desenvolvimento dos ofícios e da indústria num país como o
Brasil, capital americana de um reino europeu, a exemplo do México. A idéia de Le Breton
ligava-se ainda à questão do patriotismo e nacionalismo num reino recém-fundado que,
embora sob o governo de um rei tradicionalmente absolutista, D. João VI, tendiam a se
Cf. Paul MANTZ, L’Enseignement des arts industriels avant la Révolution. In Gazette des Beaux-Arts, Paris,
1865, mars, pp. 229-247.
6 Tradução livre do autor. Nikolaus PEVSNER, Academias de arte: Pasado y presente, Madri, Ediciones Cátedra,
1982, p.121
7 Alexander von HUMBOLDT , Essai Politique sur le Royaume de la Nouvelle Espagne, Paris, F. Schoell, 1811, 5 vol.
5
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Elaine Dias – Félix-Émile Taunay e a recepção da tradição clássica na AIBA (1834-1851)
encaixar com os seus ideais políticos, agora no Brasil, espécie de extensão americana às suas
atuações na França napoleônica. No Rio de Janeiro, ainda que a corte aqui instalada
representasse a Le Breton o oposto de seu pensamento político centralizado na figura de
Napoleão na Europa, parecia entrever no território americano novas possibilidades de
desenvolvimento. Pensava que nesta terra quase ausente de progressos, poderiam ser
aplicados recursos para a formação artística, viabilizando a criação de uma instituição de
artes e ofícios, ao mesmo tempo em que abrigava os artistas exilados da Europa.
Vejamos os fundamentos clássicos de Le Breton na elaboração de seu plano didático.
Em seu programa, concebe a divisão hierárquica da pintura de história e gênero; o exercício
do desenho e a realização de cópias a partir de modelos da estatuária antiga; as classes de
modelo vivo; a organização de modelos de pintura a partir da classificação das telas
presentes na coleção acadêmica em escolas artísticas e seus mestres, com a realização de
cópias pelos alunos para o conhecimento artístico e o aprimoramento da técnica; a
realização de concursos e exposições anuais para a apresentação de projetos e esboços dos
alunos da classe de arquitetura, e o prêmio de viagem de aperfeiçoamento na Itália aos
artistas de maior talento. No âmbito das belas-artes, Le Breton procurava dar continuidade
à doutrina acadêmica européia, a qual incorporava também o estudo dos mestres, o
desenho a partir do antigo e do modelo vivo para o estudo das proporções do corpo
humano, privilegiando a pintura de história como primeiro gênero hierárquico.8 Tópico
proeminente a Le Breton era também a efetiva atuação do artista na sociedade através de
concursos para a realização de monumentos públicos, bustos, decorações e projetos
arquitetônicos, empregando a temática nacional na execução artística, desenvolvendo o
gosto através do contato do público com as artes realizadas em plano urbano. Formaria,
dessa maneira, um corpus artístico nacional, ao mesmo tempo em que daria à sociedade a
notável oportunidade de formação do gosto, possibilitando a constituição de acervos
particulares ou da prática do colecionismo, hábito que se desenvolverá anos depois, ao final
do século XIX.
O projeto didático estaria, portanto, relacionado ao estabelecimento de uma escola
de artes e ofícios, embora seu título incluísse as ciências, a lgo que não era descrito no plano
apresentado ao Conde da Barca. Visava também o surgimento e avanço da “indústria”
através da aplicação do desenho e o progresso das artes. Os planos de Le Breton, ainda que
8
Carl GOLDSTEIN, Teaching Art. Academies and Schools from Vasari to Albers, Cambridge University Press, 1996.
Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 43-58
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Elaine Dias – Félix-Émile Taunay e a recepção da tradição clássica na AIBA (1834-1851)
constituíssem fontes fecundas das primeiras manifestações acadêmicas baseadas em
princípios clássicos no Brasil, nunca foram colocados em prática. Uma série de
documentos compostos por atas acadêmicas, ofícios, cartas, relatórios e, sobretudo, os
trabalhos dos alunos da Academia Imperial de Belas-Artes demonstram que o
desenvolvimento de uma metodologia próxima àquela de Le Breton no que se refere às
belas-artes foi organizado e consolidado anos depois pelas mãos de Félix-Émile Taunay.
2. O sistema de ensino de Félix-Émile Taunay.
Entre os pontos oriundos do programa proposto por Le Breton, como o estudo do
modelo vivo, algo caro a Taunay durante toda a sua gestão, ganhava particular relevância
em seu método didático a questão do aprendizado por meio das escolas artísticas e da
tradução de obras didáticas internacionais, compostas de algumas das principais teorias
acerca do tratamento da arte. Já em 1835, Taunay interessava-se pela formação de um
acervo bibliográfico a ser oferecido aos alunos, inaugurando a Biblioteca da Academia e
ampliando a formação dos artistas, instruindo-os e dando a eles a proximidade às leituras
estrangeiras acerca das principais teorias artísticas presentes na história da arte. Além das
obras elaboradas por Taunay para a metodologia de ensino, fez também algumas doações
de obras teóricas importantes para a formação dos alunos, que igualmente demonstram o
modelo levado a cabo pela Academia, referências estas encontradas nas atas da instituição.
Algumas obras provinham ainda da Biblioteca Pública do Tesouro Nacional, que faziam
parte da coleção em duplicata. Estavam presentes na coleção acadêmica, por exemplo, as
obras de Jacopo Vignola, Sebastiano Serlio e André Félibien, Charles Percier e Pierre
Fontaine, Leon Battista Alberti, a obra Antiquités de la France, o Traité de Construction de
Pierre Bullet publicado em 1688, Aubin-Louis Millin e seu Dictionnaire de Beaux-Arts
publicado em 1806, obras referentes ao ensino da perspectiva, estátuas antigas e coleções
de diversos museus da Europa, entre outras.9 Dessa maneira, ampliavam-se os domínios
teóricos dos seus alunos, oferecendo a eles os princípios clássicos da composição e da
harmonia através dos principais tratados já publicados, seja nos domínios da pintura,
escultura ou arquitetura.
Cf. Guilherme SIMÕES GOMES Jr, Sobre Quadros e Livros. Rotinas Acadêmicas – Paris e Rio de Janeiro. Século XIX,
Tese de Doutorado, ECA-USP, 2004. Ver, sobretudo, o capítulo “Biblioteca”.
9
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Elaine Dias – Félix-Émile Taunay e a recepção da tradição clássica na AIBA (1834-1851)
Por outro lado, Taunay se encarregava de realizar, ele próprio, a tradução e
organização de algumas obras didáticas para os alunos da Academia. A primeira obra
didática traduzida por ele em 1836 reúne as noções de escolas artísticas e teoria. Intitula-se
Arte de Pintar a óleo conforme a prática de Bardwell, baseada sobre o estudo e a imitação dos primeiros
Mestres das escolas Italianas, Inglesa e Flamenga10, fundamentada na 13ª edição londrina (1832) de
The Practice of Painting and Perspective Made Easy, do pintor inglês Thomas Bardwell, publicada
pela primeira vez em 1756. A tradução mostrava aos alunos a maneira de execução das
obras italianas, inglesa e flamenga, que poderiam ser ali mesmo visualizadas em razão do
acervo trazido por Le Breton em 1816 e da coleção real de D. João VI. Desta maneira,
Taunay segue alguns princípios já colocados nos planos de Le Breton de 1816, onde a
importância das escolas artísticas era já indicada no manuscrito dirigido a Barca, ponto
fundamental para a formação dos artistas na Escola que se inauguraria. A obra se uniria a
outra medida então implantada, isto é, a catalogação das obras pertencentes à coleção
acadêmica, também reunidas segundo o método das escolas artísticas, conforme veremos
adiante.
Em 1837, Taunay organiza uma nova obra para os alunos. Desta vez, trata-se de um
compêndio de anatomia organizado a partir da tradução de alguns tratados e obras sobre o
corpo humano. Intitula-se Epítome de Anatomia relativa às Belas-Artes seguido de um compêndio de
fisiologia das paixões e de algumas considerações gerais sobre as proporções com as divisões do corpo
humano; oferecido aos Alunos da Imperial Academia das Belas-Artes do Rio de Janeiro. Demonstra o
conhecimento das teorias artísticas européias e a direção tomada na metodologia de ensino
com a apropriação destas obras, indicando a retomada de uma tradição acadêmica do
século XVII presente na Académie Royale de Peinture et Sculpture. O compêndio foi organizado
a partir da tradução de obras diversas. Apresentava a tradução dos textos de Charles
Lebrun, em sua Conférence sur l’expression générale et particulière, obra editada em 1668, para o
tratamento acurado das expressões humanas; uma longa parte destinada à osteologia e
miologia proveniente da obra Abrégé d’anatomie accomodé aux arts de peinture et de sculpture de
Roger de Piles, publicado em 1667 juntamente com o artista francês François Tortebat;
uma pequena parte da obra de Gérard Audran, Les Proportions du corps humain mesurées sur le
plus belles figures de l’antiquité, publicada na França em 1683, o qual oferecia aos alunos da
Existem dois exemplares desta obra editada em 1836 por Taunay na Seção de Obras Raras da Biblioteca da
Escola de Belas-Artes, UFRJ.
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Elaine Dias – Félix-Émile Taunay e a recepção da tradição clássica na AIBA (1834-1851)
Academia Francesa, precisas distâncias entre as partes do corpo humano11 na criação de
belas figuras comparadas às estátuas antigas12; e ainda a tradução do verbete “Proportions”,
do Dictionnaire des Beaux-Arts de Aubin Louis Millin, publicado em Paris em 1806. A obra
de Taunay destinava-se, portanto, ao aperfeiçoamento do curso de desenho e modelo vivo,
e também às aulas de anatomia que se iniciavam na Academia, demonstrando claramente
os princípios do classicismo tomados na metodologia de ensino, seja através da perfeição
do corpo humano ou destas relações mantidas, nesse mesmo sentido, com a estatuária
antiga.
As aulas de modelo vivo e de anatomia haviam sido aprovada s, respectivamente, em
1834 e 1837, mas seu aperfeiçoamento dar-se-ia somente depois de alguns anos. As aulas
de modelo vivo não seriam, no entanto, uma novidade no ambiente carioca. Manuel Dias
de Oliveira, conhecido como o Brasiliense ou Romano, teria sido o primeiro a implantar a
classe em sua Aula Régia de Desenho e Figura, ainda que de forma precária, conforme nos
relata a historiografia brasileira.13 Entretanto, a oficialidade do estudo na Academia veio
apenas com Taunay que deparava-se, inicialmente, com a falta do profissional de modelo
vivo na corte carioca. Ao mesmo tempo, quando se encontrava alguém que servisse
adequadamente ao trabalho, este permanecia por pouco tempo em razão do precário
pagamento e da falta de experiência para a manutenção de poses e eficácia das aulas,
conforme nos indicam as atas e relatórios escritos por Taunay. Bem diferente da Academia
Francesa, onde os modelos tinham tratamento diferenciado e eram bem pagos pelas
sessões – ressaltando que no século XVIII os modelos eram tidos como petit fonctionnaire da
A esse respeito, Pevsner destaca um fragmento da teoria de Sulzer em Allgemeine Theorie der bildenden Künste
sobre a estrutura acadêmica ao final do século XVIII: “La academia debe estar bien equipada con los objetos
necesarios para el aprendizaje del dibujo. Éstos son básicamente, siempre que haya la suficiente variedad, los
siguientes: Libros de dibujo que muestren, en primer lugar, las partes separadas de las figuras, la forma y la
proporción de las cabezas, de las narices, de las orejas, los labios, los ojos, etc., después, partes más grandes
de figuras y figuras completas. La copia de ellas será la primera tarea de los principiantes; se continuará con
dibujos de figuras tomadas de las más destacadas obras de arte, dibujos correctos de escultura clásica, figuras
escogidas de los grandes mestres, de Rafael, de Miguel Ângel, los Carracci, etc. Al copiar estas figuras, el
estudiante entra en contacto por primera vez con las altas esferas del arte.” Nikolaus PEVSNER, op. cit., p. 121.
12 Carl GOLDSTEIN, op. cit.
13Francisco Marques dos S ANTOS, O ambiente artístico fluminense à chegada da Missão Francesa em 1816.
In Revista do SPHAN, 5, 1941; Manuel Araújo PORTO-ALEGRE, Memória sobre a Antiga Escola de Pintura
Fluminense. In Revista do IHGB, 1841; Adolfo MORALES DE LOS RIOS Filho, O ensino artístico. Subsídio para a
sua Historia. Um capítulo 1816-1889, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1942.
11
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Elaine Dias – Félix-Émile Taunay e a recepção da tradição clássica na AIBA (1834-1851)
corte francesa, com direito a estadia no Louvre –, no Brasil, a situação era quase nula em
termos de direitos.14 A transposição do modelo francês esbarrava numa poderosa barreira
social, encontrando-se em face de uma sociedade que ainda respirava colonialismo. Com a
falta de profissionais, a congregação acadêmica pensava primeiramente na contratação de
um escravo negro para realizar o trabalho, uma vez que os anúncios colocados pela
Academia nos jornais15 não apresentavam nenhuma eficácia. A opção do escravo negro
também se revelou ineficaz. Todos aqueles mencionados nas atas como supostos
pretendentes ao cargo não apareceram nas sessões para a análise dos professores. A
congregação acadêmica volta-se, então, aos brancos. Alguns são dispensados em razão “da
idade e estado de magreza”16, mas outros, mesmo apresentando alguma parte do corpo
“mole e feminina”17, acabaram sendo contratados em razão da urgência para o início do
curso. Passavam-se os anos e trocavam-se os modelos. Do “aguadeiro da Carioca, magro e
de extremidades defeituosas”, contratava-se, em 1840, o “jovem estrangeiro professor de
gymnastica, de formas sem comparação mais belas”.18 Em 1841 era o arqueiro do Paço,
“apesar de não serem as formas de grande caráter” 19, e no ano seguinte, um modelo que
apresentava “robustez, bello desenvolvimento dos músculos superiores do tronco e as
articulações livres e sãs”20 , apresentado pelo professor substituto de arquitetura Job Justino
d’Alcantara.
Apesar das dificuldades, Taunay vencera a questão e as aulas foram iniciadas, sendo
aperfeiçoadas ao longo dos anos. Para o estudo do desenho, além dos tratados organizados,
da classe de modelo vivo e das aulas de anatomia, ampliava-se a coleção de estatuária
Cf. O catálogo da exposição L’art du Nu au XIX e Siècle. Le Photophaphe et son modèle, Paris, Hazan, BNF, 1997.
Os anúncios eram feitos no jornal Correio Oficial: “A Academia das Bellas Artes, para equiparar os meios de
estudo, que ela oferece aos Alunos, como os das demais Academias da Europa, necessita de um homem
Branco, Nacional ou Estrangeiro, robusto e jovem, que sirva de modelo. Quem estiver nas mencionadas
circunstâncias pode-se dirigir á mesma Academia na travessa do Sacramento, das onze horas da manhã até ás
duas da tarde, para tratar do ajuste, que será favorável”. Correio Oficial, n. 79, Rio de Janeiro, 10 de abril de
1834. Este artigo encontra-se na pesquisa de doutorado desenvolvida por Renato Palumbo DÓRIA, Entre o
Belo e o Útil: manuais e práticas do ensino do desenho no Brasil do século XIX, Tese de Doutorado, FAU-USP, 2005.
16 Ata de 6/4/1835. Arquivo do Museu Dom João VI, Escola de Belas-Artes, UFRJ.
17 Ata de 23/7/1835. Idem.
18 Ata de 2/4/1840. Ibidem.
19 Ata de 15/2/1841. Ibidem.
20 Ata de 9/4/1842. Ibidem.
14
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Elaine Dias – Félix-Émile Taunay e a recepção da tradição clássica na AIBA (1834-1851)
antiga, a qual ajudaria sobremaneira o desenvolvimento das artes inteiramente baseado nos
princípios clássicos. Além disso, em seus discursos anuais proferidos no início do ano
letivo e nas sessões públicas de fim de ano, é possível identificarmos também o predomínio
do classicismo não somente na referência a artistas como Rafael, Michelangelo e Canova,
mas também da teoria artística, destacando-se os escritos franceses, ingleses, alemães e
italianos. Taunay faz referência, sobretudo, à obra de J. J. Winckelmann nas discussões
acerca do modelo grego como exemplo de perfeição, das questões geográficas e climáticas
que, segundo Taunay, igualmente eram presentes no Brasil e favoreciam o surgimento de
uma escola artística, a exemplo do que acontecera na Grécia.21
Além da construção de uma metodologia de ensino baseada nas principais obras
didáticas presentes nas academias européias, Taunay apresentava outros meios, também
presentes nestas mesmas instituições, para a formação dos alunos. É conveniente
colocarmos novamente em destaque o plano didático de Le Breton em 1816, o qual já
apresentava em sua proposta a ampliação da formação dos alunos através da cópia das telas
de diversas escolas artísticas européias, posteriormente retomada por Félix-Émile Taunay.
Diz Le Breton a esse respeito: “É portanto necessário reunir quadros de diversas escolas,
telas que possam servir às lições práticas, como demonstração, ao mesmo tempo em que
guiem e mesmo inspirem os professores” . 22
Le Breton e Taunay aproximam-se da noção de escola artística presente nos
escritos de Luigi Lanzi em sua Storia Pittorica della Italia, editada ao final do século XVIII.
Esse era o mesmo princípio tomado para a formação de uma escola artística nacional no
Brasil, portanto, a criação da escola brasileira. Com o escopo de formar um conjunto de
modelos para o aprendizado dos alunos e a partir daí constituir a Pinacoteca da Escola de
Ciências, Artes e Ofícios, Le Breton trouxe consigo sessenta telas, em sua maioria de
discípulos de grandes mestres consagrados, quase todos italianos, compradas em Paris em
1815 do estabelecido marchand Maude Jean Baptiste Meunié. Além das obras vindas com
Le Breton, faziam parte da coleção e se juntavam ao esquema classificatório as obras da
coleção D. João VI, que também permaneciam na Academia para o aprendizado dos
alunos. A análise dos catálogos das exposições gerais da Academia Imperial de Belas-Artes
Cf. J. J. W INCKELMANN, Réflexions sur l’imitation des oeuvres grecques en peinture et en sculpture, Paris, Jacqueline
Chambon, 1991.
22 Plano de ensino de Joachim Le Breton, 1816. Arquivo do Palácio Itamaraty, Rio de Janeiro.
21
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Elaine Dias – Félix-Émile Taunay e a recepção da tradição clássica na AIBA (1834-1851)
realizadas a partir de 1840 permite-nos assimilar o caráter didático desta divisão proposta
por Le Breton, ampliada pela coleção Real e concretizada por Taunay.23
Os catálogos das exposições demonstram que o emprego metodológico das escolas
artísticas apresentou resultados favoráveis. Através deste tipo de classificação, os alunos
tinham, desse modo, contato com os grandes mestres e seus discípulos, o uso da técnica e a
realização de cópias para o aprendizado. As obras eram expostas nas primeiras salas da
exposição para a apreciação do público. As exposições, além das obras originais dos alunos
matriculados, mostravam também as cópias reproduzidas, como pinturas de história e
quadros de temáticas bíblicas pastoris. No Museu D. João VI, no Rio de Janeiro, há ainda
uma série de obras produzidas pelos alunos da Academia desde aquele período, onde
podemos encontrar cópias das telas de Rafael, Charles Le Brun e Domenico Zampieri, e
ainda diversas telas com temas voltados à mitologia e à Antigüidade clássica, à maneira do
neoclassicismo francês, entre outros. As telas trazidas por Le Breton e por D. João,
organizadas, portanto, de acordo com a classificação em escolas artísticas, permitiam ao
aluno o estudo do desenho e da cor. Este reproduzia os originais para o aprendizado da
técnica, inserindo a Academia Imperial de Belas-Artes nos fundamentos da tradição
acadêmica.24 Taunay discute amplamente a questão referente às escolas artísticas em
discurso de 1842, apresentando a importância das escolas florentina, italiana, veneziana, e
outras, e a importância da coleção nacional da Academia. Para Taunay, a coleção seria
futuramente ampliada pelas obras dos alunos, as quais comporiam a “verdadeira escola
brasileira”, a partir dos modelos da estatuária antiga, das aulas de modelo vivo, isto é,
através do aperfeiçoamento do curso do desenho e das cópias das telas que levariam o
aluno à criação de sua própria escola.
Esse conjunto de telas estrangeiras que formavam a Pinacoteca da Academia,
associado às obras didáticas traduzidas e organizadas por Félix-Émile Taunay, cuja
referência é explícita aos manuais de pintura e às escolas artísticas internacionais, e ainda ao
tratamento da figura humana concentrado na fisiologia das paixões elaboradas por Lebrun
e nas proporções de Audran, formava, portanto, um criterioso método de ensino artístico
com ênfase no estudo do modelo vivo e no conhecimento anatômico. As aulas de modelo
A esse respeito, ver Elaine D IAS, Les artistes français au Brésil au XIX e siècle : l’Académie des beaux-arts et
la formation de la collection nationale de peintures de Rio de Janeiro. In Revolution, Politics, War and the
Movement of Art 1789-1848, Collections Art et Societé, Paris, Presses Universitaires de Rennes (no prelo, 2006).
24 Carl GOLDSTEIN, op. cit.
23
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Elaine Dias – Félix-Émile Taunay e a recepção da tradição clássica na AIBA (1834-1851)
vivo, que, como vimos, encontraram imensa dificuldade de consolidação na Academia após
incansável busca de modelos numa sociedade carioca que não contava com esse tipo de
profissão, constituíam um ponto fundamental ao sistema organizado por Taunay. Dessa
maneira, o aluno obteria a base para a produção nas classes de pintura de história, paisagem
e outros gêneros, que culminaria na formação de uma escola artística brasileira e de um
corpus artístico nacional. Os discursos proferidos nas sessões do início do ano letivo e nas
sessões públicas anuais demonstram a preocupação de Taunay na formação dessa base
didática, de modo a frisar anualmente o valor inestimável das belas-artes de acordo com a
tradição clássica, citando em numerosas linhas a importância dos modelos da Grécia e da
Itália, da imitação e observação da natureza, da geometria e do desenho, e das escolas
artísticas que, conjuntamente, contribuiriam para a inauguração de uma “escola brasileira”,
na “eficácia da sua cooperação ativa na produção da glória nacional”.25
Taunay apresenta ainda outras inovações no sistema acadêmico no Brasil, como a
reformulação do sistema de exposições a partir de 1840, onde ele propõe a participação dos
alunos e também de outros artistas do Rio de Janeiro, brasileiros e estrangeiros. De certo
modo, Taunay estimulava a emulação e a qualidade artística dos alunos, assim como
conduziria o desenvolvimento da crítica de arte no Brasil e a formação do gosto na
sociedade. Nessa mesma trajetória, a partir de 1845, a Academia começa a atribuir uma
distinção aos trabalhos dos alunos inscritos, inserindo-os em um concurso acadêmico
interno que designaria a melhor obra. O prêmio seria uma viagem a Roma, com a
finalidade de aperfeiçoar os estudos clássicos. Instituía-se assim, o Prêmio de Viagem26,
inovação de Taunay no Brasil que remete ao Prix de Rome, prêmio instituído na Academia
Francesa ainda no século XVII, onde os artistas laureados passavam uma temporada na
Academia Francesa em Roma. A resolução de Taunay e a aprovação do governo imperial
estimulavam a formação do artista brasileiro nas instituições artísticas européias,
inicialmente na Itália e depois na França, formando-se não só nos principais ateliês da
Europa, mas aproximando-se diretamente das obras que compunham as mais diversas
escolas artísticas. Taunay coloca em prática a medida que, já em 1816, fazia parte da
sistematização didática proposta por Le Breton, segundo o modelo acadêmico francês.
25
26
Ata da Sessão Pública de 19/12/1840. Arquivo do Museu Dom João VI, Escola de Belas-Artes, UFRJ.
Ata de 24/9/1845. Idem.
54
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Elaine Dias – Félix-Émile Taunay e a recepção da tradição clássica na AIBA (1834-1851)
3. Taunay e Grandjean: a Arquitetura aos arquitetos.
O resultado positivo da implantação de todo esse sistema seria, conseqüentemente,
o reconhecimento da Academia enquanto instituição pública de ensino. Para Taunay, esse
reconhecimento dirigia-se a um nobre fim: emprego aos seus artistas bem formados. Essa
busca, no entanto, centrava-se inicialmente na classe de Arquitetura:
devendo notar-se que a arquitetura é um dos objetos que mais interessam o brio nacional: dela
dependem os destinos da fama das sociedades humanas: por seus trabalhos duradouros,
27
quando já quaisquer outros vestígios desaparecerão, far-s e-á a apreciação do passado.
Em seus discursos, Taunay pronunciou e enfatizou, durante mais de dez anos, a
importância da arquitetura e sua base centrada no modelo grego, a insistência no estudo do
desenho e o desenvolvimento da cidade. Para Taunay, o modelo grego era o exemplo
primordial ao planejamento e progresso urbanos, assim como também o era para a
metodologia de ensino na Academia. Utiliza exemplos históricos e considerações estéticas
para promover e exaltar a Arquitetura, não deixando de citar exemplos além daquele da
Grécia. Cita igualmente a Itália e a França como modelos bem-sucedidos de
desenvolvimento da cidade e suas estreitas relações com a arquitetura empregada, sempre
em função do mesmo modelo grego, natural e perfeito. Seus modelos são clássicos. Para a
construção de sua base, Taunay refere-se, em princípio, à teoria albertiana, centrando seus
discursos em seus tratados sobre arquitetura (De re aedificatoria,1452) e pintura (De Pictura,
1436), e por conseqüência a Vitrúvio, na concepção de seu modelo arquitetônico relativo às
proporções e suas comparações com o corpo humano, passando posteriormente às
concepções em torno do modelo grego exaltado por Winckelmann, como citamos
anteriormente. Além disso, considera que no Rio de Janeiro existem condições climáticas e
geográficas favoráveis à exaltação da beleza e, portanto, ao desenvolvimento artístico, a
exemplo dos gregos e seguindo a teoria de Winckelmann. Para Taunay, caberia à
Arquitetura a “introdução dos outros ramos das belas-artes”, isto é, a arquitetura abriria as
portas para que as outras artes se desenvolvessem. Belos edifícios levariam e abrigariam
necessariamente a produção de pinturas e esculturas. Almeja construir belos edifícios e
grandes monumentos públicos na cidade do Rio de Janeiro, fazendo-a progredir nesse
27
Ata da Sessão Pública de 19 de dezembro de 1834. Ibidem.
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Elaine Dias – Félix-Émile Taunay e a recepção da tradição clássica na AIBA (1834-1851)
sentido, desenvolvendo o gosto não só através da cidade como também daqueles que a
freqüentam. A beleza se uniria, assim, à utilidade pública, remontando não só a um
discurso intensamente proferido por Alberti, e posteriormente por Vasari, mas também às
questões comerciais e políticas a ele contemporâneas.
Em princípio, Taunay buscava emprego aos seus arquitetos nas repartições de obras
públicas do governo imperial. A importância de Grandjean de Montigny, nesse sentido, é
notável. Além das classes de arquitetura e pouquíssimos projetos para o governo desde sua
chegada ao Brasil em 1816, Grandjean era um arquiteto isolado. Ainda assim, sua presença
é imperativa nos discursos de Taunay no tocante ao assunto da Arquitetura. Tentava-se
mudar o rumo da arquitetura brasileira através dos artistas ali formados por Grandjean.
Depois de muita insistência, Taunay consegue que alguns projetos da Repartição de Obras
Públicas sejam repassados à Academia. E a aprovação acontece. Taunay recebe os projetos
para a construção de uma Igreja em Maceió em 1838, projeto realizado por Grandjean que
é colocado em prática em 1859; o pedido de análise de três projetos para a realização do
monumento do Ipiranga, que embora seja analisado, acaba não ocorrendo; o reparo do
plano do Chafariz da Carioca, entre outros projetos, todos enviados em 1838 e realizados
por Grandjean. Ao mesmo tempo, o pedido de um lugar aos arquitetos acadêmicos na
Repartição de Obras Públicas foi desejado e requerido durante anos e finalmente
conquistado em 1843. Alguns meses depois desta data, o governo finalmente aprova a
criação de dois lugares para a referida instituição, sendo escolhidos os arquitetos Antonio
Baptista da Rocha e Miguel Francisco de Souza para o preenchimento das vagas, depois de
um concurso realizado na própria Academia.28 Dois anos depois, no entanto, verificava-se
que estes mesmos arquitetos eram “esquecidos” dentro daquela instituição, isto é, nenhum
projeto passava pelas mãos dos arquitetos acadêmicos, para desgosto de Taunay. Novas
reclamações são feitas ao governo, que repassa novos projetos a Academia, porém, sem
avançar em muito a questão relativa aos empregos dos artistas.
A discussão em torno dos projetos a serem realizados pelo governo imperial na
cidade do Rio de Janeiro acaba atingindo um ponto mais espinhoso, qual seja, a disputa
entre engenheiros da Repartição de Obras Públicas, tradicionais em suas funções, e os
arquitetos de Grandjean e Taunay, que tentam mudar o rumo desta história:
28
Os nomes dos dois arquitetos são aprovados pelo governo imperial em 20/07/1844. Ata, ibidem.
56
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Elaine Dias – Félix-Émile Taunay e a recepção da tradição clássica na AIBA (1834-1851)
Possa a construção de tantos palacetes e até de palácios ser entregue a mãos de artistas da
boa e verdadeira escola! Só com tais arquitetos as outras artes liberais poderão medrar achando
localidades preparadas para os seus produtos: a arquitetura paga as suas irmãs com usura o
estro e a animação que delas recebe – Um movimento se prepara a favor das Belas-Artes no
29
Brasil, não desconheçais, srs., quanto convém que lhe não façais falta.
A tentativa de valorização de seus artistas acadêmicos, principalmente os arquitetos
já durava mais de dez anos, com pouco reconhecimento por parte do governo imperial.
Em 1850, no entanto, Taunay perde o fôlego da disputa. Morria o arquiteto Grandjean, e
com ele esvaiam-se todas as esperanças de Taunay para que se efetivassem estas mudanças:
Aqui, porém, os curiosos, debaixo de toda a denominação, se tinham tão completamente
apoderado da arquitetura que um dos maiores arquitetos da Europa existiu no Rio de Janeiro
durante mais de um terço de século, sem poder alcançar outra entrada na sua profissão além da
que foi estritamente necessária para envolvê-lo numa intriga da qual até a sua morte não houve
poder que o desembaraçasse, e com a qual se vê hoje a braços a sua esco la. E a academia,
contudo, não tem existência útil, e portanto duradoura, sem o exercício da arquitetura pelos
arquitetos. A arquitetura ativa é que cumpre pagar na atualidade a pintura e escultura, cujos
30
produtos são valores nacionais a longos prazos.
É sintomático, nesse sentido, o efeito da morte de Grandjean na atuação de FélixÉmile Taunay como diretor da Academia. Depois de dezessete anos à frente da instituição,
responsável por uma série de medidas para o desenvolvimento do ensino artístico a partir
de princípios clássicos, além da persistente tentativa de valorização do artista na sociedade,
Taunay deixa, em 1851, a instituição de artes a qual dedicou boa parte de sua vida. A
segunda metade do século XIX assistiria, no entanto, uma espécie de redenção aos
arquitetos de Grandjean, com os trabalhos de Cypriano Carlos de Assis e Souza e Francisco
Bittencourt da Silva que, nomeados adjuntos da Repartição das Obras Públicas em 1850,
executam os trabalhos do atual Centro Cultural Banco do Brasil, o Educandário Santa
Tereza, a Igreja Matriz de São João Batista e a continuidade das obras da Igreja da
Candelária. Também se destacaram os trabalhos de José Maria Jacintho Rebello, projetista
29
30
Ata de 2/4/1849. Ibidem.
Ata de 20/03/1851. Ibidem. Discurso de abertura do ano escolar e homenagem a Grandjean de Montigny.
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Elaine Dias – Félix-Émile Taunay e a recepção da tradição clássica na AIBA (1834-1851)
do edifício da Procuradoria do Estado, do Palácio do Itamaraty entre 1851 e 1855, da
ampliação da Casa de Misericórdia em 1865, do Palácio Universitário (atual UFRJ) junto a
Domingos José de Souza Monteiro, do Palacete do Conde de Itamaraty, e, finalmente, João
José Alves, responsável pelo atual Centro de Arte Hélio Oiticica, antigo Conservatório de
Música, entre os anos de 1863 e 1872.
4. Conclusões.
O aprimoramento da técnica do desenho, as aulas de modelo vivo, o correto uso da
anatomia e a cópia dos grandes mestres de acordo com as regras artísticas já estabelecidas
nos manuais, dariam ao aluno a concreta possibilidade de tornar-se um artista, indicando a
ele o caminho para uma arte que lhe fosse própria, em estreito diálogo com a cultura de seu
país. Taunay privilegia a instrução teórica com a tradução de obras didáticas, elemento
essencial à Academia Francesa, juntamente aos exercícios da perspectiva e da expressão por
meio das cópias e do modelo vivo, oferecendo os instrumentos para uma futura invenção
brasileira. Torna-se clara a apropriação e a devida adaptação de modelos franceses para a
estruturação da Academia Imperial de Belas-Artes, de modo a ampliar a formação do
artista dentro da instituição a partir da organização de uma base de estudos
fundamentalmente ligada ao modelo acadêmico parisiense. Cria, assim, um sólido sistema
de exposições anuais que se prolonga por todo o século XIX, além de oferecer ao aluno a
complementação de sua formação artística na Europa. Dá à Arquitetura um papel de
destaque, como aquela que abrirá o caminho do progresso às demais artes, tentando, desta
maneira, desenvolver o gosto na cidade do Rio de Janeiro a partir de modelos clássicos e
valorizar o papel do artista na sociedade. Taunay deixa a Academia em 1851, após longos
17 anos de dedicação ao ensino artístico. Embora a história da arte brasileira não tenha
destinado a Taunay um lugar de destaque no século XIX, convém aqui ressaltar sua
importância como propulsor do desenvolvimento acadêmico e o fortalecimento da
Academia enquanto instituição pública que, anos depois, terá, efetivamente, um papel de
amplo destaque na sociedade carioca.
58
Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 43-58
A chegada das óperas de Rossini no Rio de Janeiro.
*
Paulo M. Kühl**
A partir de 1819, quando se tem notícia da primeira apresentação de uma ópera de
Rossini no Rio de Janeiro – Tancredi1 - as obras do compositor passam a dominar a cena
carioca. Obras de outros compositores continuam sendo encenadas, como as de Mayr,
Puccittta, Generali, Gnecco e outros, mas em proporção diferente. Não se trata de um
fenômeno isolado na história da ópera, uma vez que a recepção das obras de Rossini pode
ser vista como uma seqüência de conquistas avassaladoras, e não são poucos os autores que
classificaram o compositor de Pésaro como um Napoleão da ópera, tomando de assalto
todas as terras onde chegava.
Além da sedução do público, as obras de Rossini inseriam-se em um longo
percurso da história da ópera, com suas diversas crises e possibilidades de solução. Assim,
de maneira resumida, podemos afirmar que desde o modelo de ópera séria, concretizado
nas obras de Metastasio, a rígida separação entre recitativo e os numeri chiusi (árias, coros,
duetos) sempre foi um problema para músicos, libretistas e para o público. Para os
*
Este artigo foi originalmente apresentado no XI Congresso da Sociedade Italiana de Musicologia, em Lecce
(Itália), 22 e 23 de outubro de 2004. Faz parte de uma pesquisa mais ampla sobre a ópera no Brasil, que foi
financiad a pela FAPESP.
**
Professor de História da Arte do Instituto de Artes, UNICAMP. Doutor em História Social da Cultura
(FFLCH-USP), Mestre em História da Arte e da Cultura (IFCH-UNICAMP).
1
“As óperas italianas representam-nas de maneira toda especial. Assim, por exemplo, durante minha estada,
foi levada muitas vezes a ópera Tancredo, mas eu mal a reconheci de tão mutilada e estropiada por uma
péssima orquestra.” Cf LEITHOLD, Minha excursão ao Brasil ou Viagem de Berlim ao Rio de Janeiro e volta, Berlim,
Maurer, 1820. In T. von LEITHOLD, & L. von RANGO , Rio de janeiro visto por dois prussianos em 1819, trad.: J. de
S. Leão Filho, São Paulo, Nacional, 1966, p. 14. Apesar de não indicar a data, tendo chegado no Brasil em
07/10/1819 e partido em fevereiro do ano seguinte, supõe-se que esta ópera e as outras mencionadas pelo
autor e por seu sobrinho, L. von Rango, foram apresentadas entre outubro e o final de dezembro de 1819. Na
carta nº 21, do Rio de Janeiro, datada de 21/12/1819, Rango afirma: “Tancredo, um fragmento da Caça de
Henrique IV, o Califa de Bagdad e outras óperas conhecidas são exibidas, mas mutiladas e desfiguradas.” Op. cit.,
p. 145. Para mais detalhes, cf. Paulo M. KÜHL, Cronologia da Ópera no Brasil (Rio de Janeiro – Século XIX),
http://www.iar.unicamp.br/cepab/opera/cronologia.pdf.
Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 59-70
59
Paulo M. Kühl – A chegada das óperas de Rossini no Rio de Janeiro
primeiros, por haver uma evidente ruptura entre o aspecto seco da declamação e as diversas
possibilidades de criação para os números fechados, considerados como os propriamente
musicais. Para os libretistas, um dos principais problemas era conciliar as recomendações
da poética clássica com a estrutura do libreto, com as exigências dos cantores, músicos,
empresários, etc. Desse modo, as três unidades (ação, tempo e lugar) não encontravam uma
clara equivalência no modelo vigente dos libretos, com cesuras marcadas entre a ação (o
recitativo) e os grandes momentos de suspensão (números fechados), em que a música
dominava o espetáculo. Aliás, a concepção da ópera como um grande espetáculo, do qual
participavam as diversas artes, entrava em confronto com a primazia do texto e das regras
poéticas, gerando uma permanente insatisfação por parte dos teóricos. Finalmente, é
importante lembrar que, para o público, a ópera no século XVIII era um espetáculo
geralmente satisfatório. Certamente os recitativos eram considerados tediosos e a longa
alternância entre esses e as árias podia conduzir a algum tipo de insatisfação, resolvida,
contudo, através de diversos expedientes: a conversa, o flerte, o jogo de cartas, a refeição,
tudo dentro do teatro. Sabe-se que este era um dos locais privilegiados da sociabilidade
desde o século XVII; assim, as mais diversas atividades sociais aconteciam enquanto um
espetáculo de ópera era desempenhado.
Na história das insatisfações, diversas tentativas de “reformas” surgiram no século
XVIII, manifestando-se através das variadas crises, especialmente no embate com a ópera
francesa e o crescimento das óperas cômicas. De maneira geral, a ópera séria passou a
assumir algumas características desses dois modelos: o uso de coros de modo mais
consistente, a busca do recitativo accompagnato como alternativa à rígida separação
recitativo/ária, conferindo continuidade (musical e dramática) à ação, o uso dos grupos
finais. Note-se que tais soluções têm caráter diferenciado: se o accompagnato e os coros
podem ser encarados como uma busca de coerência da ação e até mesmo de maior
aderência à poética clássica, os grupos finais, vindos da ópera cômica, rompem com a
possibilidade de compreensão clara do texto. De qualquer modo, percebe-se uma tendência
geral em direção a uma continuidade musical dentro da ação dramática. É necessário
lembrar que não se trata de uma transformação definitiva da ópera séria, e sim, de uma
seqüência de tentativas com uma variedade de resultados. Nunca é demais lembrar que as
óperas “reformadas” de Gluck nem sempre tiveram boa aceitação; do mesmo modo, as
óperas de Mozart com texto de Da Ponte custaram a fixar-se no repertório dos teatros
europeus.
60
Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 59-70
Paulo M. Kühl – A chegada das óperas de Rossini no Rio de Janeiro
Nessa seqüência de transformações, Rossini foi saudado como o portador de uma
excelente solução para os perenes problemas da ópera. A primazia dos cantores ainda
dominava o espetáculo, mas Rossini soube tomar partido do virtuosismo e do estrelismo
para construir uma nova estrutura dramática. Mais do que isso, teria conseguido uma
aproximação entre a música italiana e a germânica, dentro de uma disputa que tenderia a
acentuar-se durante o século XIX, restituindo também à ópera aquilo que era considerado
próprio da música italiana: o caráter melódico. Assim, segundo Carpani, a música de
Rossini retomava a tradição italiana (a melodia), acrescentava a ela o sinfonismo germânico,
insistia na expressividade da palavra, criando então uma música “européia”. Os valores da
música de Rossini seriam na visão de Carpani, segundo P. Gallarati:
a expressividade patética dos saltos de sétima, a ênfase alegre dos intervalos de oitava e de
décima; o modo de conduzir a orquestra, no qual os instrumentos discorrem amavelmente
entre si; o jogo da dinâmica e o espetacular efeito dos crescendo; e, em geral, a força energética
2
que essa música desencadeia.
Contudo, também existiam críticas às diversas reformas do melodrama e nem
sempre a solução encontrada por Rossini era vista como a melhor. C. Ritorni, por exemplo,
nos seus Ammaestramenti, já em 1841, criticava a sinfonia introdutória (que retardaria a
ação), a cavatina, a disparidade entre os cantabili e os recitativos e os finais.3 Além disso, é
importante lembrar que a obra de Rossini, em seu conjunto, também apresenta diversas
transformações, construídas ao longo do tempo e em uma seqüência determinada (veja-se a
tabela no final).
2
P. G ALLARATI, Le Rossiniane di Carpani. In La Recezione di Rossini ieri e oggi. Convegno organizzato con la
colaborazione della Accademia di Santa Cecilia, Fondazione Giorgio Cini, Fondazione Gioacchino Rossini,
Società Italiana di Musicologia. Roma, 18-20 fevereiro de 1993, Roma, Accademia Nazionale dei Lincei, 1994,
p. 77.
3
“Un finale che non è finale, perché posto sempre ammezzo l’azione, il quale corona così l’atto primo da
introdurre nel mezzo di quella un’enorme divisione, e togliere ogn’addentellato per attacare con buona presa il
secondo”. Ammaestramenti alla composizione d’ogni poema e d’ogni opera appartenente alla musica, Milão, Pirola, 1841,
pp. 51-55. Citado em R. DI BENEDETTO, Poetiche e polemiche. In L. BIANCONI & G. PESTELLI (ed.), Storia
dell'opera italiana – 6, Turim, EDT, 1988, pp. 56-57.
Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 59-70
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Paulo M. Kühl – A chegada das óperas de Rossini no Rio de Janeiro
O que nos interessa mais diretamente é a chegada das obras de Rossini no Rio de
Janeiro e a maneira como foram percebidas. Em primeiro lugar, é necessário afirmar que
elas surgem em um contexto completamente diferente daquele para o qual foram
concebidas e compostas: outro público, outras tradições musicais, outros problemas e
outras polêmicas. A ordem em que aparecem também revela um desmembramento de seu
sentido primeiro. Veja-se a lista de obras de Rossini, na seqüência em que estrearam no Rio
de Janeiro na década de 1820 (entre parênteses, a ordem na seqüência original em que
foram criadas): Tancredi (10ª); La Cenerentola (20ª); Aureliano in Palmira (12ª); L'Italiana in
Algeri (11ª); Elisabetta, Regina d'Inghilterra (15ª); Adelaide di Borgogna (23ª); L'inganno felice (4ª); Il
Turco in Italia (13ª); La pietra del paragone (7ª); Adina (5ª); Otello (19ª). Já em um primeiro
exame, é possível perceber que a ordem das apresentações no Rio de Janeiro nada tem a
ver com a original. Ou seja, o conjunto das obras de Rossini apresentadas na cidade
demonstra que elas não eram percebidas como uma progressiva consolidação de
determinadas características formais e sim, como espetáculos variados.
Outro elemento importante nas obras de Rossini são os empréstimos: o compositor
usava sistematicamente trechos de óperas em outras, sem muita distinção entre os gêneros
sério e cômico. A abertura do Aureliano é usada posteriormente na Elisabetta e depois no
Barbeiro. Os exemplos multiplicam-se e, na velhice, o próprio Rossini dizia que “o tempo e
o dinheiro que me davam eram tão homeopáticos, que eu mal tinha tempo para ler a assim
chamada poesia para musicar”.4 Ou seja, o compositor, aparentemente, estava desligado das
questões dramáticas dos libretos e mais preocupado em terminar suas composições. Como
tal questão era percebida no Rio de Janeiro? Na verdade, não temos registros sobre isso.
A dificuldade em encontrar uma crítica especializada sobre as obras também é
reveladora: de um lado, percebe-se um incômodo geral em criticar os espetáculos; de outro,
a impossibilidade de emitir um juízo específico sobre as obras de Rossini. As notícias ou
críticas que se referem ao artista não vão além de qualificá-lo como célebre, insigne, grande,
e sua música, bela, etc., como pode ser visto nos seguintes exemplos:
[...] excelente composição do imortal Rossini, o Barbeiro de Sevilha, encantava os
espectadores [...] (O Espelho, 05/11/1822)
4
Citado em F. PORTINARI, Pari siamo! Io la lingua, egli ha il pugnale. Storia del melodramma ottocentesco attraverso i suoi
libretti, Turim, EDT, 1981, p. 25.
62
Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 59-70
Paulo M. Kühl – A chegada das óperas de Rossini no Rio de Janeiro
Representou a Companhia Italiana a Ópera Séria que tem por título Isabel de Inglaterra, com
música do Pai da harmonia, o imortal Rossini [...] (O Espelho, 06/12/1822)
A chegada de SS. MM. II. foi aplaudida de imensos vivas, tocando a orquestra o Hino
Nacional, ao que se seguiu a representação da peça do insigne Rossini Tancredi [...] (O Spectador
Brasileiro, 23/01/1826)
A música do célebre Rossini continua a encantar o ilustre público, que pela sua atenção e
aplausos se constitui conhecedor dos raros merecimentos deste célebre compositor [...] (O
Spectador Brasileiro, 28/06/1826)
[...] 1o. Ato da Ópera “O Barbeiro de Sevilha”, tão admirada atualmente em todas as cortes da
Europa como uma das mais insignes composições do célebre Rossini. (Diário Fluminense,
09/09/1826).
Não falta também quem diga que o fito de grande parte da companhia cantante é ver se torna
aborrecidos tantas vezes em cena Aureliano em Palmira e Tancredi, único em que por hora entra
Facciotti; se assim é, o que não acredito, perdem o seu tempo aqueles que pretenderem tornar
insulsas as peças do grande Rossini [...] (Diário Fluminense, 08/11/1826)
Em breve serão satisfeitos os desejos dos amadores de música, que tanto ambicionam tornar a
ver em cena a peça de Rossini Cenerentola, música de reconhecido gosto e um dos chefes
d’obra deste insigne professor. (O Spectador Brasileiro, 22/11/1826)
Realizou-se como o anunciamos a abertura do teatro. A primeira representação teve lugar
segunda-feira passada 16 do corrente, quando tivemos a satisfação de examinar a linda
música de Rossini na sua Cenerentola [...]. (O Spectador Brasileiro, 20/04/1827)
A terminologia aponta para uma falta de preparo dos críticos, os quais, em verdade,
faziam a ressalva de que não eram especialistas em música.5 Desse modo, fica patente que o
5
Veja-se, por exemplo, o artigo publicado no Spectador de 19/06/1826, sobre a representação da Adelina, no
qual o autor afirma: “Não dizemos nada da música e do canto dos atores, porque o nosso juízo, nesta matéria,
não seria competente. Augusto de G. S.” Quanto à execução, V. Jacquemont referia-se a uma apresentação
em 1828 da seguinte maneira: “a detestable Italian company, with a still more execrable orchestra, murder
Rossini three times a week”. Letters from India, Londres, 1834, vol. I, pp. 40-41, citado em J. ROSSELLI, The
Opera Business and the Italian Immigrant Community in Latin America, 1820–1930: the Example of Buenos
Aires. In Past and Present, n. 127, 1990, p. 167. Para outras discussões sobre o caráter da crítica, veja-se L. A.
Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 59-70
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Paulo M. Kühl – A chegada das óperas de Rossini no Rio de Janeiro
público percebia a música, a ópera, o drama, etc., como espetáculo e não necessariamente
como um conjunto de soluções para as crises do melodrama italiano. Contudo, o sucesso
de Rossini no Rio de Janeiro também deve ser lido como o reconhecimento de algum fator
de diferenciação, uma vez que o grande escolhido foi justamente o compositor de Pésaro e
não um dos diversos músicos em atividade no período. A polêmica entre os partidários da
música de Marcos Portugal (de matriz italiana) e a germânica e seus “seguidores” (José
Maurício, Neukomm) passa ao largo do nome de Rossini. De algum modo, o compositor
italiano agradava mais do que os outros, o que pode ser auferido no número de
apresentações de suas óperas, até mesmo no período posterior ao incêndio do teatro S.
João, em que as Academias de Música eram apresentadas, em geral, com trechos das óperas
do compositor italiano. Nos jornais também é possível verificar a presença do nome de
Rossini e do prazer suscitado pelas constantes apresentações:
Apesar de termos muitas vezes ouvido dizer que os habitantes desta capital não tinham gosto
pela música e cantoria, o concurso prodigioso que todos os dias de representação notamos é
uma suficiente prova do contrário, e mostra claramente o auge a que está elevado o Imperial
Teatro. Ontem, representou-se “Aureliano” pela décima sexta vez e contudo mereceu
reiterados aplausos do respeitável público. (Spectador, 24/07/1826)
Outra crítica ressente um pouco as diversas repetições de um mesmo espetáculo,
mas, ainda assim, ressalta as qualidades de Rossini:
Não falta também quem diga que o fito de grande parte da companhia cantante é ver se torna
aborrecidos tantas vezes em cena Aureliano em Palmira e Tancredi, único em que por hora entra
Facciotti; se assim é, o que não acredito, perdem o seu tempo aqueles que pretenderem tornar
insulsas as peças do grande Rossini, executadas pelo célebre Facciotti e sua insigne irmã; e se é
possível que as moléstias, fictícias ou verdadeiras, de outros atores nos tragam aqueles sempre
à cena, Deus os conserve assim per omnia secula seculorum. – Um Amador. (Diário Fluminense,
08/11/1826)
A ênfase das críticas está no desempenho dos cantores, enquanto atores, e, mais
raramente, em suas qualidades vocais. Nunca se fala das óperas como um todo, da
GIRON, Minoridade Crítica. A ópera e o teatro nos folhetins da corte – 1826-1861, Rio de Janeiro, Ediouro, São Paulo,
EDUSP, 2004.
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Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 59-70
Paulo M. Kühl – A chegada das óperas de Rossini no Rio de Janeiro
composição musical, nem mesmo da estrutura dramática. Através dos registros escritos, é
difícil estabelecer os motivos de tal predileção, uma vez que os comentários são demasiado
genéricos. Seguindo as idéias de Carpani, o apelo da obra de Rossini viria da melodia fácil e
criativa, da novidade da composição (isto é, da capacidade de criar novas melodias e de
surpreender o público6), da riqueza orquestral e da capacidade expressiva. Na verdade,
todas essas qualidades soam genéricas demais para um leitor moderno, mesmo quando o
autor tenta esclarecer o significado de cada uma delas. Mas, segundo Carpani, Rossini teria
apresentado uma qualidade há muito esperada para resgatar a ópera italiana, sua obra sendo
a manifestação do gênio e da natureza, e daí viria a aceitação universal.7 O próprio autor,
contudo, aponta alguns defeitos do compositor: o abuso da prosódia, a confusão dos
gêneros (cômico e sério), o estrepitar dos instrumentos, a prolixidade, o contra-senso no
colorido das palavras, o excesso de repetições.8 Trata-se em verdade de críticas misturadas a
elogios, já que boa parte dos defeitos estaria ligada às grandes qualidades do compositor.
No Rio de Janeiro, pelo que se conhece, não haveria exatamente uma necessidade
de redenção da ópera italiana; os espetáculos eram bem aceitos e apreciados e a obra de
Rossini talvez tenha significado uma sedução ainda maior para o público. Pela comparação
com as obras apresentadas anteriormente na cidade, durante a década de 1810, é difícil
estabelecer traços gerais distintivos da obra de Rossini além daqueles apontados por
Carpani. Se tomarmos como exemplo o Tancredi, grande sucesso na Europa, e a primeira
ópera de Rossini apresentada no Brasil, temos a seguinte estrutura (com o final de Veneza):
6
G. CARPANI, Le Rossiniane ossia Lettere musico-teatrali [Pádua, Tipografia della Minerva, 1824], Bolonha, Forni,
1969, Carta VII, ed. cit., p. 153.
7
“La musica è fatta per tutti, ma non tutti amano la stessa musica. Eppure si dà una musica che a tutti piace;
dunque essa non è la musica del capriccio, ma quella della natura, e perciò è intesa da tutti, e da tutti bene
accolta, e quindi di tutte la migliore, la vera, la sola sicura. Dire che il mondo intero è in errore in fatto di
sensazioni e di piaceri, è dire che la natura s’inganna, e mal sa che si voglia e c’inspiri”. Carta VII, ed. cit., pp.
148-149.
8
Carta VII, ed. cit., pp. 154-156.
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65
Paulo M. Kühl – A chegada das óperas de Rossini no Rio de Janeiro
Ato I
Sinfonia
1. Coro, Isaura, Argirio, Orbazzano
2. Coro e Cavatina (Amenaide)
3. Recitativo e Cavatina (Tancredi)
4. Accompagnato (Amenaide, Argirio) e ária de Arg.
5. Dueto de Amen. e Tanc.
6. Coro
7. Finale.
Ato II
8. Recit. e Ária (Arg. e coro)
9. Ária de Isaura.
10. Cena e cavatina (Amen.)
11. Dueto (Tanc. e Arg.)
12. Ária (Amen. e Coro)
13. Coro
14. Dueto (Tanc. e Amen.)
15. Ária de Roggero.
16. Grande cena de Tancr.: Cavatina, coro, marcha e ária com coro, segundo finale.
Tal estrutura pode ser encarada como uma duplicação das farsas que o compositor
havia criado em Veneza.9 Ou seja, Rossini traz a agilidade das farsas para uma ópera séria e,
no Rio de Janeiro, isso podia ser percebido como um espetáculo mais econômico, mais
ligeiro e talvez mais prazeroso. Além disso, no dizer de Carpani, no Tancredi “há melodia
[cantilena], e sempre melodia, e melodia bela, e melodia nova, e melodia mágica, e melodia
rara”.10 Certamente tal afirmação deve ser lida na polêmica travada contra a música
germânica, e talvez a “cantilena” tão louvada por Carpani não estivesse totalmente ausente
dos palcos cariocas, uma vez que se via um constante desfilar de óperas italianas. Contudo,
ainda segundo Carpani, faltavam aos compositores mais recentes as qualidades próprias de
Rossini (note-se a equivalência de nomes com o caso brasileiro) :
9
Cf. os verbetes ROSSINI, G. e TANCREDI, no New Grove Dictionary of Opera, Londres, Macmillan, 1997.
Carta IV, ed. cit., p. 74.
10
66
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Paulo M. Kühl – A chegada das óperas de Rossini no Rio de Janeiro
Muitos dos egrégios mestres do século passado não vivem mais; pouquíssimos dos restantes
saudavam a luta teatral. Mudas estavam as cítaras de ouro de Paisiello, de Zingarell, de
Fioravanti, de Salieri, de Paer, de [Marcos] Portugal. Winter, Weigel, Mayer caminhavam
sozinhos entre os veteranos, mas com sorte dúbia, naquele estado em que tantos louros tinham
colhido. Cherubini e Spontini haviam-se tornado franceses e estavam perdidos para a música
italiana. Entre os jovens escritores monstravam-se de mérito um Pavesi, um Farinelli, um
Generalli, um Coccia, um Nicolini, e alguns outros. Eles alimentavam nossas esperanças; mas,
para dizer a verdade, não bastavam para nossas necessidades teatrais. [...] A ossatura, o
andamento, a cor das árias, dos rondós, dos duetos e das peças concertadas eram então as
11
mesmas de quarenta anos antes.
A afirmação pode ser lida apenas como um meio para construir a imagem do
Rossini portador de novidade, em oposição à moribunda tradição italiana, mas pode
igualmente ajudar a compreender a importância das obras do compositor e a maneira como
chegaram ao Brasil. Certamente, Tancredi é a primeira grande obra de Rossini percebida
como tal pelo público italiano, especialmente o de seu período veneziano. No Brasil, a
seqüência de apresentações de suas obras revela um vai-e-vem no tempo, com
apresentação de comédias, de óperas sérias com temas ingleses (tão em moda), e também
das primeiras farsas. Ou seja, ainda que Tancredi possa ter sido percebido como uma
novidade importante, o conjunto da obra do compositor passou a ser encarado como uma
unidade, que não impediu a apresentação de obras de compositores como Puccitta, Mayer,
Mozart, Gnecco, Mosca, Paer, etc.
Grande parte da crítica que se avoluma sobre os espetáculos de ópera aparece na
segunda metade da década de 1820 e os textos nos jornais nesse período constroem
ataques, que são respondidos, criando diversas pequenas polêmicas. Como já foi visto, a
crítica sobre as óperas, em geral, reportava-se ao desempenho dos cantores e da orquestra e
não exatamente às composições e suas qualidades ou defeitos. Os autores das críticas
invocam sua ignorância com relação a assuntos musicais para tratarem especificamente do
desempenho dos cantores, de suas qualidades vocais, da capacidade de comoção e do
desempenho no palco. Pode parecer surpreendente, mas o interesse maior das críticas
estava nos balés, nos dançarinos e nas coreografias.
Uma crítica comum ao teatro São Pedro dizia respeito aos constantes
cancelamentos de espetáculos, por causa de cantores que, supostamente, estariam
11
Carta VII, ed. cit., pp. 137-138.
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Paulo M. Kühl – A chegada das óperas de Rossini no Rio de Janeiro
adoentados e, conseqüentemente, impossibilitados de cantar. Além disso, havia também
queixas quanto ao repertório, restrito e repetitivo; assim, um dos focos principais era contra
a administração do teatro e pouco tratava da qualidade das obras apresentadas. Começa a
surgir algum descontentamento com o repertório do teatro, apontando para a necessidade
de mudanças. Uma correspondência enviada à Gazeta do Brasil e publicada em 30 de junho
de 1827, afirmava:
Priva a sociedade brasileira de um teatro nacional, que tão necessário é à perfeição dos
costumes, tirando por este meio o pão aos nacionais, para dar aos estrangeiros.
[...]
É uma verdade que o Teatro Italiano nunca poderá substituir sem os auxílios poderosos e
infalíveis; porém que necessidade temos nós de teatro italiano, quando não temos um
12
brasileiro?
A insatisfação é então, aqui, de outra ordem: para que tantos gastos com um
repertório estrangeiro de ópera, se não há nenhuma mobilização para a criação de um
teatro brasileiro. Não se trata apenas de uma queixa de um “nacionalista”; é novamente a
contradição entre um país tão necessitado e aquilo que parece supérfluo. Assim, o debate
está fora da esfera artística ou estética, e é trazido para o âmbito social. A falta de um teatro
nacional também era apontada pelo Espelho Diamantino de 01 de outubro de 182713 e será
uma preocupação constante para diversos autores.
Como é possível perceber pelo exposto acima, em certo sentido, no Brasil,
permanece o relativo desinteresse pela reflexão específica sobre música. A ênfase esteve
quase sempre na biografia dos músicos e no relato de seus grande feitos. O que resta, com
segurança, é o sucesso das obras de Rossini, que pode ser verificado na constante
reapresentação de suas óperas, mesmo que em uma seqüência que em nada se relaciona
com as apresentações na Itália.
12
13
Assinado: O autor das cousas antigas.
p. 28.
68
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Óperas de Rossini em seqüência cronológica
(LSC – Lisboa, Teatro São Carlos / PSJ – Porto, Teatro São João)
Título
Estréia
Estréia em Portugal 14
Roma, 18/05/1812
LSC, 1816
Estréia no
Rio de Janeiro
1
Demetrio e Polibio
2
La cambiale di matrimonio
Veneza, 3/11/1810
3
L'equivoco stravagante
Bolonha, 26/10/1811
4
L'inganno felice
Veneza, 8/01/1812
5
Ferrara, ?14/03/1812
6
Ciro in Babilonia,
ossia La caduta di Baldassare
La scala di seta
Veneza, 9/05/1812
LSC, 22/01/1825
7
La pietra del paragone
Milão, 26/09/1812
PSJ, fev. 1821
8
L'occasione fa il ladro
Veneza, 24/11/1812
LSC, 13/05/1824
9
Veneza, 27/01/1813
10
Il signor Bruschino,
ossia Il figlio per azzardo
Tancredi
Veneza, 6/02/1813
LSC, 1815
/1819
11
L'Italiana in Algeri
Veneza, 22/05/1813
LSC, 1815
31/08/1822
12
Aureliano in Palmira
Milão 26/12/1813
LSC, 12/10/1824
13/05/1820
13
Il Turco in Italia
Milão, 14/08/1814
LSC, 10/07/1820
10/07/1825
(final da ópera)
14
Sigismondo
Veneza, 26/12/1814
LSC, 21/07/1823
15
Elisabetta, Regina d'Inghilterra
Nápoles, 4/10/ 1815
LSC, 11/12/1820
16
Torvaldo e Dorliska
Roma, 26/12/1815
LSC, 7/08/1820
17
Il barbiere di Siviglia
Roma, 20/02/1816
LSC, 1819
18
La gazzetta
Nápoles, 26/09/1816
(composta antes de 1809)
LSC, 1817
15/09/1824
01/10/1826
01/12/1822
21/07/1821
14
Cf. D. CRANMER, Opera in Portugal 1793-1828: a study in repertoire and its spread, Ph.D. Dissertation, s/l, 1996,
pp. 549-550.
Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 59-70
69
Paulo M. Kühl – A chegada das óperas de Rossini no Rio de Janeiro
19
Otello, ossia Il moro di Venezia
Nápoles, 4/12/1816
LSC, 1820
12/07/1828
20
La Cenerentola
Roma, 25/011817
LSC, 1819
26/02/1821
21
La gazza ladra
Milão, 31/05/1817
LSC, 1819
03/10/1825
(final da ópera)
22
Armida
Nápoles, 11/11/1817
23
Adelaide di Borgogna
Roma, 27/12/1817
LSC, 25/10/1822
09/01/1823
24
Mosè in Egitto
Nápoles, 5/03/1818
LSC, 26/02/1823
25
Adina
26
Ricciardo e Zoraide
Lisboa, 12/06/1826;
composta em 1818
Nápoles, 3/12/1818
27
Ermione
Nápoles, 27/03/1819
28
Eduardo e Cristina
Veneza, 24/04/1819
LSC, 13/12/1823
29
La donna del lago
Nápoles, 24/10/1819
LSC, 22/01/1822
30
Bianca e Falliero
ossia Il consiglio dei tre
Maometto II
Milão, 26/12/1819
LSC, 03/07/1824
Nápoles, 3/12/1820
LSC, 12/10/1826
31
32
14/02/1828
LSC antes de 1821
Roma, 24/02/1821
LSC, 30/05/1825
33
Matilde di Shabran,
ossia Bellezza, e cuor di ferro
Zelmira
Nápoles, 16/02/1822
LSC, 13/05/1823
34
Semiramide
Veneza, 3/02/1823
LSC, 12/12/1825
35
Il viaggio a Reims,
ossia L'albergo del giglio d'oro
Le Siège de Corinthe
Paris, 19/06/1825
Moïse et Pharaon
[revisão de Mosè in Egitto]
Le Comte Ory
Paris, 26/03/1827
Guillaume Tell
Paris, 3/08/1829
36
[revisão de Maometto II]
37
38
[revisão parcial de Il viaggio a Reims]
39
70
Paris, 9/10/1826
Paris, 20/08/1828
Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 59-70
O Dossiê Neuparth.
Fernando Pereira Binder *
Erdmann Neuparth foi um dos muitos músicos europeus que, no início do século
XIX, se mudaram para o Rio de Janeiro. Estima -se que, nos treze anos de seu reinado,
Dom João tenha contratados pelo menos 137 músicos, incluindo alguns castrati italianos
(HAZAN, 1999, 60).
Erdmann chegou ao Brasil em 1817 como mestre da banda de música formada para
acompanhar a princesa Leopoldina, primeira esposa de Dom Pedro I. Após sua chegada, o
grupo foi convidado por Dom João a permanecer aqui.
Leopoldina veio cercada de um séqüito numeroso, eram cerca de 1220 pessoas,
vacas, bezerros, porcos, ovelhas, galinhas e patos. Para amenizar o tédio da viagem foi
embarcada uma coleção de 600 canários e outros pássaros do Brasil e a banda de Neuparth.
A comitiva era tão grande que o chanceler Metternich teria dito que a Arca de Noé “era um
brinquedo de criança comparado ao navio de carreira João VI.” (WAGNER, BANDEIRA,
2000, vol I, p. 39).
O hábito de ter uma banda de música espalhou-se pela aristocracia da Europa
Central na segundo metade do século XVIII, quando os nobres “de muitos ou poucos
meios, esforçaram-se para ter sua própria pequena banda de música particular para o
entretenimento de sua corte ou simplesmente seu próprio prazer” (CAMUS, 1976, 30).
Existem alguns registros desses conjuntos embarcados nos navios que traziam e levavam a
aristocracia européia do Brasil para a Europa. Em 1808 teria vindo de Portugal junto com
Dom João VI a Banda da Real Armada. Em 1816, no navio que trouxe o Conde de
*
Fernando Pereira Binder é mestrando do Programa de Pós-Graduação em Música do Instituto de Artes da
UNESP, bolsista da FAPESP, e integrante do Grupo de Pesquisa Musicologia Histórica Brasileira.
Atualmente pesquisa a atuação das Bandas de Música no Brasil durante o século XIX, em particular o
processo de organização dos conjuntos musicais militares. É Bacharel em Composição e Regência pelo
mesmo Instituto desde 2002. Foi bolsista da FAPESP e do CNPq desenvolvendo pesquisas no campo da
musicologia histórica. Também atua como editor de música para gravações. Em 2003 foi editor no Projeto
Acervo da Música Brasileira do Museu da Música de Mariana.
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71
Fernando P. Binder – O Dossiê Neuparth
Luxemburgo ao Brasil, embaixador especial de Luís XVIII e encarregado de reestabelecer
os laços diplomáticos da França com Portugal, havia uma banda a bordo, para a qual
Sigismund Neukomm teria composto algumas marchas, uma valsa e outras obras
(AZEVEDO, 1959, 475). A ausência do conjunto numa visita que o conde fizera a Dom
João deixou o monarca português decepcionado (LIMA , 1996, 695).
No ano seguinte pelo menos duas bandas chegaram ao Brasil, ambas na comitiva
que acompanhava a princesa Leopoldina. Uma delas foi a banda de Neuparth, que veio na
fragata Dom João VI, e que chegou ao Brasil em novembro de 1817. A outra veio a bordo
da fragata Áustria, e que chegou aqui quase três meses antes, em 14 de julho de 1817. Nela
vieram os naturalistas Mikan, Spix e Martius e o pintor Thomas Ender, além dos
diplomatas austríacos. Certamente a razão para a banda ter sido embarcada: um príncipe,
quatro condes e dois barões.2 A banda da fragata foi retratada por Ender em duas
aquarelas hoje bastante famosas.
Debret3 e Manuel Araújo Porto Alegre 4 escreverem sobre o conjunto dirigido por
Erdmann, mas foi só em 1900 que Ernesto Vieira relacionou tal conjunto à banda criada
por Dom João em novembro de 1817 como Banda das Reais Cavalariças (VIEIRA, 1899,
117-121). As informações saíram no verbete de seu Dicionário biográfico de músicos portugueses e
foram obtidas na autobiografia que Erdmann escreveu em 1869, aos 85 anos de idade. É de
se suspeitar que Vieira tenha conseguido a autobiografia com Augusto Neuparth, filho de
Erdmann. Músico de renome em Portugal, Augusto pode ter sido professor de Vieira no
Conservatório de Lisboa e seu colega no Teatro São Carlos.
2
Eram eles: príncipe Thurn und Taxis, os condes de Schönfeld, Palfly e Eltz; os barões Neveu von
Windschlag, von Hügel.
3
Na descrição da Prancha 38, Vista do Largo do Palácio no Dia da Aclamação de Dom João VI, Debret cita
uma “orquestra composta unicamente de músicos alemães que acompanharam a princesa durante a travessia”
(DEBRET, 1975 [1834-1939], vol 2, p. 240)
4
“Na fragata que nos trouxe a arquiduquesa, primeira imperatriz do Brasil, veio uma banda de música digna
de acompanhar e suavizar a longa viagem daquela saudosa princesa. José Maurício até então não havia visto
essa precisão mecânica, essa igualdade de execução que é um dos privilégios dos compatriotas de Mozart e
Beethoven, e nem tão pouco conhecia os novos instrumentos que ela trouxe. Tão enamorado ficou de ouvir
aquela banda musical, que para ela improvisou doze divertimentos, que são doze peças de admirável
inspiração. Durante os ensaios destas obras, o povo ia ouvi-los no Largo São Jorge, de fronte à casa de José
Maurício” (PORTO ALEGRE, 1856, 361).
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Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 71-101
Fernando P. Binder – O Dossiê Neuparth
O trecho da autobiografia em que Neuparth relata sua estadia no Brasil, entre os
anos de 1817 e 1821, foi parcialmente publicado duas vezes por Francisco Curt Lange. Ele
soube da existência da obra através do dicionário de Vieira e localizou-a em Portugal em
1961, quando também a teria microfilmado. Em 1962 Lange publica o trecho brasileiro
precedido de uma pequena introdução no Suplemento Literário d’O Estado de São Paulo
(LANGE , 1962, 6). Em 1967, republica-o em alemão na revista Staden-Jahrbuch, do Instituto
Hans Staden de São Paulo (LANGE, 1967, 163-175).
As publicações de Vieira e Curt Lange sobre Neuparth e a Banda das Reais
Cavalariças5 não tiveram maior repercussão na literatura musicológica. Ainda hoje, o
conjunto é conhecido pelas informações dadas por Debret e Porto Alegre. Nem mesmo
Ayres de Andrade, que encontrou no Arquivo Nacional a listagem dos músicos contratados
por Dom João VI (ANDRADE, 1967, vol 1, p. 131), utilizou as informações já publicadas e
sabidas sobre o conjunto.
Não é de se estranhar esse desinteresse pela figura de Neuparth: o seu perfil – um
músico de banda alemão – não se enquadrava bem nos objetos que a historiografia musical
brasileira da década de 1960 estudava: grandes gênios brasileiros, compositores de música
erudita, pretos e mulatos se possível, tais como o padre José Maurício e Lobo de Mesquita.
As próprias palavras do Curt Lange na introdução à autobiografia de Neuparth revelam a
inadequação da autobiografia de Neuparth a esse projeto:
Neuparth interessava-me muito, devido á esperança de encontrar na sua autobiografia, cujas
dimensões desconhecia, uma vivida descrição do Rio musical que atuou, [...].
Quando alguém se dispõe a escrever memórias, muitas vezes esquece da importância para a
História, da menção de muitos fatos que ao autor podem parecer insignificantes. Escreve-se
muito de si e pouco do meio social e artístico do tempo. Isto aconteceu com o filho do ilustre
padre compositor, e, de forma igualmente lamentável, repete-se no caso de Eduardo Neuparth,
homem simples, com uma concepção prática da vida, imposta pelas lutas que teve de sustentar
na sua época como músico e regente. Carecia de condições intelectuais, embora para a sua
memória sejam altamente honrosas as suas qualidades morais.
Porém, frustrou-me a minha esperança de referências sobre a vida musical nos teatros onde
ele teve atuação, ou ainda sobre figuras tão destacadas neste período, como as de Neukomm,
5
Lange apresenta alguns documentos relativos a José Kroner, outro músico da Banda das Reais Cavalariças.
Francisco Curt LANGE, Pesquisas Luso-Brasileiras. In Barroco, Belo Horizonte, Conselho de Extensão da
UFMG, 1980, v. 11, pp. 71-142.
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Fernando P. Binder – O Dossiê Neuparth
os irmãos Portugal, o Pe. José Maurício e outros músicos de importância que a história musical
brasileira desconhece (LANGE, 1962, 6).
Em 2002, soube da existência da autobiografia de Neuparth da mesma maneira que
Lange, através do dicionário de Vieira. No final de 2003 consegui localizar em Lisboa o Sr.
Júlio Neuparth, descendente de Erdmann que estava com autobiografia, agora publicada
integralmente.
Aproveitando a ocasião, incluí outros documentos relativos à Neuparth e às bandas
em que ele tomou parte, os quais, embora não sejam inéditos, encontram-se dispersos em
livros esgotados há muito tempo. São eles: um contrato de Neuparth como mestre de
banda de um regimento militar português e o contrato de Neuparth como músico nas Reais
Cavalariças, publicado por Ernesto Vieira no Dicionário Bibliográfico; alguns documentos
sobre a contratação da banda que acompanhou a princesa Leopoldina publicados por
Ângelo Pereira, o aviso publicado na Gazeta do Rio de Janeiro onde os músicos da banda
tentam localizar o representante do comerciante Henrique Teixeira Sampaio, encarregado
do pagamento dos músicos.
A transcrição documentos que já se encontravam impressos procurou preservar a
ortografia e pontuação registradas nas fontes consultadas. Na transcrição da biografia isso
também foi observado. No entanto algumas intervenções foram realizadas: letras ou
palavras escritas entre as linhas foram incorporadas ao texto corrido. Rasuras realizadas
pela mão de Neuparth não forma transcritas. Estas peculiaridades são pontuais na biografia
e não interferem na compreensão do texto.
Para finalizar gostaria de agradecer ao Sr. Júlio Neuparth pela cordialidade com que
me atendeu e pela autorização dada para a publicação do manuscrito.
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Fernando P. Binder – O Dossiê Neuparth
Bibliografia citada.
ANDRADE, Ayres de, Francisco Manuel da Silva e seu tempo: 1808-1865 uma fase do passado musical do Rio de Janeiro à
luz de novos documentos, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1967. vol. 2 vols.
AZEVEDO , Luis Heitor Correa, Sigimund Neukomm, an Austrian Composer in the New World. InThe Musical
Quartely, vol. 45, n. 4, pp. 473-483, 1959.
CAMUS, Raoul F., Military music of the American Revolution, Chapel Hill, University of North Carolina Press,
1976.
DEBRET, Jean-Baptiste, Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, São Paulo, Brasília, Martins Fontes, INL, 1975,
6.ed.
HAZAN, Marcelo Campos, The sacred works of Francisco Manuel da Silva (1795 -1865), Ph.D. Department of
Musicology - The Catholic University of America. United States, District of Columbia. 1999.
LANGE, Francisco Curt, Erdmann Neuparth, ein deutscher Musiker im Brasilien. In Staden-Jahrbuch, São
Paulo, 15, p. 163-175, 1967.
______, Musico alemão no Brasil de D. João VI. In O Estado de São Paulo, n. 295, 01 set. 1962, Suplemento
literário, p. 6.
LIMA, Oliveira, Dom João VI no Brasil, 3ª ed. Rio de Janeiro, Topbooks, 1996.
PEREIRA, Ângelo, Os filhos de el-rei D. João VI, Lisboa, Empresa Nacional de Publicidade, 1946.
PORTO ALEGRE, Manuel de Araújo, Apontamentos sobre a vida e a obra do Pe. José Maurício Nunes Garcia.
In Revista do Instituo Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, Tomo XIX, n.23, p. 354-369, 1856.
VIEIRA, Ernesto, Dicionário biográfico de músicos portugueses. História e bibliografia da música em português, Lisboa,
Lambertini, 1899. vol. 2.
W AGNER, Robert & B ANDEIRA, Júlio, A Noiva do Príncipe Herdeiro de Portugal Arquiduquesa Leopoldina.
In Viagens ao Brasil nas Aquarelas de Tomas Ender: 1817 – 1818, Petrópolis, Kapa, 2000. vol. 1, pp. 33-40.
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Fernando P. Binder – O Dossiê Neuparth
1. Contrato de Neuparth como mestre de Música do 4.º Regimento de Infantaria de
Linha.
Ernesto Vieira publicou este contrato em seu Dicionário Bibliográfico (VIEIRA , 1899, vol.
II, 119-120). É de se suspeitar que Vieira o tenha conseguido com Augusto Neuparth, filho
de Erdmann, seu colega no Teatro São Carlos, onde Vieira era clarinetista e Augusto,
primeiro fagotista.
Contrato que faz Erdmann Neuparth, Mestre de Musica no 4.º Regimento de
Infantaria de Linha.
1. o – Fico engajado n’este Regimento, como Mestre de Musica, ganhando dezesseis
tostoens por dia, principiando a nove de Maio do presente anno, athe nove do ditto
mez de 1815 devendo receber a dita paga sem diminuição athe o fim do tempo do meu
ajuste.
2. o – Serei somente obrigado a tocar no que pertence ao serviço militar.
3. o – No caso de adoecer ficarei recebendo o meu soldo pelo espaço de um mez.
4. o – O Regimento me fará pagamento de dez em dez dias.
5.º – Caso de eu querer me retirar, ou o Regimento me querer demitir, no enfim do
meu ajuste, haverá um aviso recíproco d’hun mez antes.
6. o – Fico igualmente encarregado de fornecer ao Regimento Música Militar, a qual
farei ensaiar e dar ao publico o mais ameudo que for possivel.
7. o – Serei obrigado a executar as ordens que receber do Comandante do Regimento e
Capitão encarregado da Musica.
8. o – Será de minha obrigação ensinar a tocar qualquer instrumento aos Soldados do
Regimento tirados para Musicos, dando-lhes liçoens e prestando todo o sentido e
cuidado, a fim de os pôr perfeitos. –Quartel em Miret 9 de Maio de 1814. –
(a)Armstrong Tenente Coronel Commandante.
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2. Contratos dos músicos para a banda que acompanharam a princesa Leopoldina.6
Ângelo Pereira (PEREIRA, 1946, 245-247) informa, em nota de rodapé à página 245,
que “Todos os documentos transcritos sobre a comitiva da Arquiduqueza D. Maria
Leopoldina, pertecem à Col. Do Autor”. À mesma página, no corpo do texto ele continua:
“Tivemos a felicidade de adquirir recentemente o processo original, respeitante ao contrato
da banda de música que embarcou na nau ‘D. João VI’, do qual copiamos os principais
documentos”.
Como deixa claro o próprio autor, o texto abaixo não contém todos os
documentos. Por outro lado, ele não relaciona o conteúdo completo do “processo
original”. Aparentemente, faltariam pelo menos três documentos do processo:
1) As ordens dadas por D. João, que se encontra mencionado logo na primeira linha da
primeira carta,
2) A Portaria de 26 de Maio de 1817, expedida ao Marquês de Borba.
3) O Aviso n.º 3 dando ciência ao Henrique Teixeira de Sampaio arcar com as despesas.
Senhor
Continuando a informar a V. Mag. e sobre a execução das Reaes Ordens que V. Mag. e foi
servindo mandar-nos expedir relativamente ao preparo da Esquadra destinada a conduzir a
essa Corte a Senhora Archiduqueza Leopoldina, temos a honra de participar a V. Mag.e
que, fazendo escolher, dos Muzicos que se achavam nesta Capital, os melhores, e mais
proprios para compôrem a Banda de Muzica que V. Mag. e recomenda que se envie a bordo
da – Nao D. João VI – em que deve embarcar Sua Alteza Imperial, fizemos nomear para
este serviço os que constão da Lista que incluza transmittimos à presença de V. Mag.e
debaixo do N.º 1.º, enviando igualmente com o N.º 2 as condições com que elles se ajustarão,
assim como a Portaria em data de 26 do corrente mez que expedimos ao Marquez de Borba
para ser satifeita, do modo que será constante a V. Mag. e pelas mesmas copias, a
importancia da despeza que se fizer com este objecto do Real Serviço de V. Mag. e, o qual
6
Agradeço o colega Adriano Castro Meyer pela indicação do livro e do documento.
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Fernando P. Binder – O Dossiê Neuparth
assentámos por esse mais conveniente incumbir ao Negociante Henrique Teixeira de
Sampaio, a quem por esse motivo fizemos expedir o Avizo constante da copia N. 3.
Têmos mandado fornecer pelo Arsenal Real do Exercito o fardamento que nos pareceo
proprio destinar para os referidos Muzicos, procurando que neste objecto, como em todos os
mais relativos e esta expedição, se observe a decencia que compete ao interessante fim para que
ella sê destina.
A muito Alta e Muito Poderoza Pessoa de Vossa Magestade guarde Deos muitos annos
como desejamos e havemos mister. Lisboa no Palacio do Governo, em 16 de Maio de 1817
./.
Marquez de Borba
Principal Souza
D. Miguel Pereira Forjaz
N.º 1 – Para Henrique da Fonseca de Souza Prego.
Sua Magestade manda remeter a VM. a Relação incluza dos Muzicos que devem embarcar a birdo
da nau D. João Sexto, e juntamente a copia das condiçoens com que eles forão ajustados para esta
viagem, as quaes V. S.ª fará executar na parte que lhe toca.O que participo a V.S.ª para sua
inteligencia.
Deos guarde a VS.ª Palacio do Governo, em 28 de Abril de 1817 D. Miguel Pereira Forjaz.
RELAÇÃO DOS MUZICOS QUE SE ACHÃO
NOMEADOS PARA EMBARCAREM NA NAU D. JOÃO
SEXTO
Director, Erdmann Neuparth,
1.º Clarinete, Gaspar Catelão, 2.º d.º Antonio Bulak, 2.º d.º João Vieira, Flautin Antonio
Joze, D.º Joze Croner, 1.º Trompa, Antonio Carretero, 2.º d.º Joze Romano, 1.º Clarim, Francisco
Roth, 2.º d.º Pedro Tevar, 1.º Fagote, Christiano Florick, 2.º d.º Romao Monteanos, Trompão,
Leopoldo Smith, Bumbo, Joze Mural, Ruffo, Antonio Joaquim, Prateiro, Marçal Joze, D.º Manoel
Ignacio *
* NB. Em lugar deste, vai Luiz Kar. Lourenço Ant.º d’Araujo
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Fernando P. Binder – O Dossiê Neuparth
N.º 2
CONDIÇÕES EM QUE SE AJUSTARAO OS MUZICOS, QUE
DEVEM EMBARCAR A BORDO DA NÃO D. JOAO 6.º
1.ª Vencerá cada Muzico por dia o Ordenado constante da Lista abaixo transcrita, sendo
satisfeito em metal, e desde o dia 1.º de Maio proximo futuro. 2.ª Depois da sua chegada ao
Rio de Janeio será livre a cada hum o ficar na mesma Côrte, ou voltar para Lisboa, como
mais conveniente lhe fôr. 3.ª Aquelle que pretenderem ficar, continuarão a vencer o mesmo
Ordenado, só por mais hum mez, depois de chegarem á sobredita Côrte, em cujo tempo assim
o deverão declarar ao correspondente Negociante Henrique Teixeira de S. Paio, na mesma
Côrte, por meio do Director, para lhe ser suspenso desde então o respectivo vencimento;
ajustando-lhes o mesmo Correspondente, segundo as Instrucções, que tiver recebido, o que
ainda se estiver a dever a cada hum, na conformidade destas Condições. 4.ª Os que porem
quizerem voltar para Lisboa, serão transportados á custa do Estado, vencendo o sobredito
Ordenado até ao dia de sua chegada a este Porto, e sendo promovido o seu transporte pelo
sobredito Correspondente, e com toda a brevidade possível em Navios de Commercio, quando
Sua Magestade lhes não mande facilitar passagem em alguma Embarcação da Côroa. 5.ª
Irão sujeitos immediatamente ao Commandante da Esquadra, sendo considerados como
Muzica particular. 6.ª Dar-se-lhe-há de comer, em quanto estiverem a bordo, pela Ucharia.
7.ª O mesmo Negociante Sampaio satisfará aqui ás Familias de cada hum dos Muzicos,
aquella parte dos seus Ordenados, que elles lhes quizerem deixar para seu sustento, a qual
lhe será depois descontada no seu ajuste de Contas. 8.ª Conceder-se-lhe-há tres Mezes
adiantados dos seus Ordenados, obrigando-se com tudo o Director a responder por elles. 9.ª
Concerder-se-lhe-hão os Uniformes, que houverem de uzar a bordo.
VENCIMENTOS QUE DEVEM TER POR DIA
Hum Director, 1$600 Reis, 1.º Clarinete 1$200, 2.º Clarinete 1$200, 2.º D.º 1$200
Flautim 1$200, D.º 1$200, 1.ª Trompa 1$200, 2.ª D.ª 1$200, 1.º Clarim 1$200, 2.º
Clarim 1$200, 1.º Fagote 1$200, 2.º Fagote 1$200, Trompão 1$200 , Bumbo 600, Rufo
600 Prateiro 480, D.º 480.
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Fernando P. Binder – O Dossiê Neuparth
Palácio do Governo, em 26 de Abril de 1817 D, Miguel Pereira Forjaz – Lourenço
Ant.º d’Araujo.
3. Aviso da Gazeta do Rio de Janeiro, n.º 96, Avisos 29 de novembro de 1817.
Os Musicos, que tiverão a honra de accompanhar, desde a Europa a esta Corte, a S. A. R.
a Serenissima Senhora Princeza Real do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves,
annuncião ao corresppondente de Henrique Teixeira Sampaio, que necessitão falla-lhe, e por
ignorarem o lugar de sua residencia, depois de bastantes indagações, lhe suplicão que se sirva
mandar-lhes as suas ordens á rua do Conde N.o. 59, onde vivem.
4. Portaria contratando Neuparth para a Banda das Reais Cavalariças.
Ernesto Vieira publicou esta portaria em seu Dicionário Bibliográfico.(VIEIRA,
1899, vol. II, 120).
El Rey Nosso Senhor Faz Mercê a Eduardo Neuparth de o tomar por Musico das suas
Reais Cavalariças com a qual ocupação vencerá o ordenado de duzentos sete mil trezentos
noventa e seis reis por anno, com que o escrivão das ditas Cavalariças o lançará em Folha,
com vencimento desde vinte e seis de novembro do corrente anno, e gosará dos privilégios e
izençoens que tem e de que gosão os Musicos das referidas Cavallariças, e isto em quanto e
Mesmo Senhor assim o houver por bem a não mandar o contrário. - Rio de Janeiro em dez
de dezembro de mil oito centos e dezesete.-(a.) Conde de Paraty
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Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 71-101
Fernando P. Binder – O Dossiê Neuparth
5. Biografia de Erdmann Neuparth.
A autobiografia de Neuparth foi registrada em 24 páginas numeradas num pequeno
livro de 14 x 21 cm. Atualmente encontra-se sob a guarda de Júlio Neuparth, que me
forneceu uma cópia, a partir da qual foi realizada a transcrição.
[rosto]
Vida d'Eduardo Neuparth escrito
por sua maõ, ate a idade de 85 annos
[rosto verso]
[p.1]
Nacido no dia 6 de Janeiro 1784 no
Principado Reis Greitz in Voigtlande na Saxoni
a na villa chamada Poelwitz pertencendo ao
Distrito de Zeulenrada. .
Meu Pai chamava-se Michel Neuparth e a
Minha Mae chamava-se Maria Dorothea. Meu Pae era
Lavrador e Proprietario; Eu aprendi a ler e
escrever na Escola que exestia neste tempo na villa,
e depois ocupei-me nas travalhos de Campo com os
meus Paes e o meo Irmão que meu Pai cultivaba. .
Mas como ja de pequeno gostei muito de Musica e tinha
muito vondade de aprender Algum Instrumento, com
prei um Clarinette muito ordinario que tinha somente
duas Chaves, e com este pricipiei a estudar sem mestre
e aprendi a tocar algumas Valzas e Cantigas que eu
ouvi, de que gostei muito, e tomei mais gosto p.ª a
musica, e pedi ao meu Pae, que me mandasse dar
leçoens de Musica, e elle consentio, que eu tomasse leço~
ens
de Rebeca e Clarinetti; não tardou muito tempo que meo
Mestre conheceo, que eu tinho algum geito p.ª a musica
Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 71-101
81
Fernando P. Binder – O Dossiê Neuparth
meteo-me na Cabeça, de deidicar-me a Musica e deixase a
ser Lavrador, Eu gostei e foi pedir ao meu pai que me
deixase apprender Musica com o Musica d e Zeulenvadara
o que meu elle de nem um modo quiz consentir, mas por
fim concentia, e eu entrei de apprendiz, por o tempo
de cinco annos, tinho eu feito entaõ 15 annos. Fiz os meus 5 annos
[p.2]
de aprendiz e o meu tempo estava acavado, então era
prezisso de procurar a minha vida, porque na casa donde eu
aprendi não podia ficar porque não prezisavam de mim, e
p.ª a casa de meu Pai tambem naõ podia ir, porque ja naõ
estava gostumado a travalhar no Campo. . foi então que
achei um lugar na Capella de Principe de Lowenstein de 1. o Cla
rinetti, era no anno 1804, em cuja Capella fiquei ate 1806.
nomes de 9bro quando Napoleon 1. o Entrou na Prussia, e o
Exercito de centro passou por aquella Cidade, e ruinou tudo
como neste tempo se fazia a guera. . O Principe ficou ruinado
e ja naõ podia sustendar a sua casa no mesmo splendor como
d’antes, portanto era necessaria fazer économias e toucou a Musica
de ser despidido. . Era portanto necessario procurar a
vida; tinho eu 22 annos, achei um commodo so p.ª 3 meses
p.ª passar o inverno em Werda, na Saxonia. A primaveira
foi fazer uma viagem p.ª o Sul a Tranconia e achei ocupação
em Marckbreit Sobre o Main, fiquei poco tempo porque la mi
offereceo um Lugar na capella de Principado de Amorbach de
de Clarinetti e Rebeca cujo lugar eu aceitei, mas como o
Mestre da Cappella era muito mal creado, resolvi-me logo
de não ficar muito tempo, e o acasso ajudou-me, porque
encontrei na mesma Capella 3 Companheiros de Capella
de Lowenstein, os meus amigos tambem não esta
vam contendos por o mesmo motivo, nos estivemos
82
Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 71-101
Fernando P. Binder – O Dossiê Neuparth
contratados por um anno; Resolvemos nos a não acabar
o anno e aussensentar-nos sem Licença, nem Passorte
[p.3]
oque fizemos com efeito, com pocos meios de Dinheiro p.ª
fazermos uma viagem de 150 Legoas, não nos faltou po
rem nada, por o caminho arranjamos alguns Concertos que
o producto d’elles chegou-nos p.ª a despeza de Viagem!
Guando chegamos ao fim de nossa viagem, consultamos
entre nos o que haviemos de fazer p.ª o futuro, e resol
vemos a não nos separar e formar uma Banda so de
Instrumentos de vento para harmonias e viajar,
a Banda em poco tempo se completou, consis
tia em 2 Clarinettes, 2 Fagottos, 2 Trompas e um
que tocava Flauta e Oboe, total Sete em todo. .
E como era necessario nomiar um director nomearam
me a mim por esta lugar..Em pocos dias estava todo
prompto, e principiou a nossa viagem, que ao prin
cipio poco ganhamos, mas quando chegamos mais p.ª
Sul principiou a ir melhor, e pode dizer-se que hia bem,
mas levandou-se entre nos uma disunião que frustrou
tudo. Os disunionistas eram 3. et de outra parte era mas
4. Guando chegamos a Freiburgo em Breisgau desfezse
a nossa Banda, e os 3 forem outra vez p.ª sua Caza e
nos ficamos em Freiburgo em cuja cidade estava um Rgto de
guarnição de grande Duque d e Baden, cujo Regto precissava
um Mestre de Musica, e como eu era o director da Banda cha
maram me a mim, por ser o Mestre ganhanto 45. fl. por mes. .
mas eu não quiz desamparar os meus Collegas, propoz ao
Comandante de ficar com os quatro, mas respondeu-me que de
[p.4]
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Fernando P. Binder – O Dossiê Neuparth
boa vontade o faria mas não tendo mais Dinheiro de
que o aquelle que estava distinado p.ª o mestre não
podia despôr de mais nada; Consultamos entre nòs
e resolveimos a ficar todos quatro apor os 45 florins
eu de mestre recebendo 15 fl.os por mes e os compan
heiros a 10 fl: cada um por mes; Era no mes de 10 bro
de 1807. Ganavamos poco de Reg. to, mas os indereses par
ticulares erem muitos, como havia pocos Musicos naquela Ci
dade, chamavaõ nos por toda a parte, estava o
Comandante muito contente, pª ver que seus Musicos
estimados e tinhão muitos intreses, fora que o Rgto
lhes dava. Mas durava poco, porque estivamos sò
8 meses, quando no mes Agosto de 1808. veio Ordem p.ª o
Reg. to Marchar p.ª Strasburgo; Eu estava bastante doente
O Comandante naõ quiz que eu fosse com o Reg. to mas
como coria a voz que o Reg. to ficava de guarnição em
Straburgo não quiz ficar no deposito e foi com elle;
Mas no dia que chegamos a Strasburgo ja la estava
a Ordem de marchar o dia Seguinte p.ª Epagna, não
me sentia com forças de fazer aquella jornada, foi logo
pedir o Comandante que me mandasse passar uma
Guia p.ª ficar no Hospital Militar em Strasburgo, visto
que minhas forças não permediaõ de Seguir o Reg. to
o que logo, Entrei no Hospital no dia 26 de Agosto foi
sempre bem tradado, dive varias Molestias uma atraz
de outra, das quaes estive um paar de vezes a morte, o ultimo
[p.5]
ataque forte, os empregados de hospital furdarão
me o que tinha, O Relogio, o poco Dinheiro que tinha
e uma Sobre casaca, queixei-me ao fisicomor, que
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Fernando P. Binder – O Dossiê Neuparth
me mandanse restuir o que tinhaõ roubado, a
sobrecasaca foi a unica cousa que apareceo o
resto estava perdido, eu estava sem vingtem, resolvi
me então escrever aos meus Paes, que me mandassem
algum dinheiro. Eu conservei ainda o meu uniforme
que estava guartado, com este me remeidiei. .
Por fim melhorei e cheigou o tempo de poder sahir
de Hospital era no dia 26 de Fevereiro de 1809. esteve
6 meses completas. . Agora esteve eu totalmen
te só, não conhecia nemquem, o meu Regto estava na
Espagnha e eu em Strasburgo, eu nao podia fazer
o caminho Sozinho p.ª ajuntar-me com o Regto., sem saver
nem a lingoa Franceza nem a Espagnola, resolveome
então abandonar o Reg. to. .Por acaso havia um
comissinado que procurava Musicos por um Reg. to
Francez que estava tambem em na Espagna que era
119. Regto de Ligne. Contracdei-me como musico por
72. francos por mes. os musicos contractados eram
Sete e o Mestre. o Deposito estava em Dux ao pìe
de Baiona, tinhamos que travessar toda a fran
ça, e gastamos perto de 3 Meses; no Deposito poca
demora divemos, um Destacamento comantado por
um Capitaõ, foi para o Reg. to com cujo destacamento
[p.6]
fomos nos mandado no mesmo tempo, não havia grande
novidade por o caminho que durou bastante tempo, mas em
fim de muitas marchas e contramarchas chegamos ao Rgto.
O Coronel e a Officialidade ficaraõ muito contendo com
a chegada de Musica, mas não durou muito tempo,
porque o mestre era um Bebado, e não tinha nem uma
nota de musica, e não savia arranjar, portanto a nossa mu
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sica era uma boracheira, eu estava enfastiado, poz me a tra
valhar e arrangei p.ª a nossa musica Varias Valzes pas reduble
e Marchas e outras cousas, que nos ensaiamos entre nos sem
que o mestre o soubesse, quando estiverem esaido, eu lhes offereci
o mestre p.ª as tocar en casa de Coronel, mas o mestre não quiz
e ainda se sangou com migo por eu me atrever de arranjar
e ensaiar musica sento elle o mestre; mas nos continuamos
os nossos ensaios como dantes, um dia quando nos estivemos
ensaiando, passou o Coronel e como ouvio Subio, e preguntou
porque não se tocava aquella Musica em sua Casa, eu lhe diz
então, que ja aquella Musica eu avia offerecido ao Mestre mas
que elle não queria que se tocasse; O Coronel ordenou então, que
a noite se havia de tocar aquella Musica em sua cassa com
a mesma Gente e sem o Mestre, o mestre deve ordem
de ficar em sua casa aquella noite, e nunca mas fez servir
no Reg. to ficou doende e em pocas dias moreo; e eu fiquei
entaõ de Mestre, e como tal fiz a guerra Pininsular, o meu
soldo era de 150 fr e dois raçoens e raçaõ por o Cavalho
quando tinha, O meu Reg. to estava neste Tempa na Provinzia
[p.7]
das Montanhas ao peè de Santander. .Entramos nas Astu
rias sem grandas combates chegamos a Capital que he Oviedô
de la foi o Reg. to de guarniçaõ pª a Gigon um pequeno bordo da
mar, a villa forma uma peninsula; estivemos quasi 3 annos,
nunca vi melhor gente que os Asturianos. . Estivemos
muito socegado nas Asturias, quando inesperatamente caio
o Raio sobre a nossa Divisão, Chegou Ordem p.ª nos ajundar
mos nos com o Exercido de Marechal Marmon que estava na
Castilha p.ª atacar o Lord Wellenton o que sucedeo no dia 22 de
Julho de 1812. quando se dèo aquela granda Batalha
chamada das arabilas ao peè de Salamanca, dondo os fran
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Fernando P. Binder – O Dossiê Neuparth
zeses perderam tanta gente e tanta Artilharia. .
a nossa retirada foi sobre Valadolid e Burgos, mas antes de
de chegarmos a Burgos, chegou um Comandante novo ao
Reg. to, quando elle tomou conta de Regto, viu elle que não
podimos fazer serviço porque eramos so. 4. dos 28 que tinhamos
chegado ao Reg. to, mandounos ao Deposido em Dax..
no memso instante sube que o Coronel que foi ferida na ulti
ma Batalha, que estava curado e nomeado subrefeito na
Alsacia e que devia partir em poco tempo p.ª o seu
distino, e como o Reg. to devia 18 meses, eu fui logo
pedir lhe que nos mandasse pagar antes de ausentar
se, o que elle fez, passou logo uma ordem, de se nos pagar
o que devia, o que logo foi feito sem a minima demora;
[p.8]
foi o primeiro Dinheiro que eu Recebi junto e que era meu
erem 2.700 francos por o cambio de hoje 486$000 Rs.
fiquei perto de um anno no deposito para arranjar a
musica ate ao mes de Junho de 1813. Quando o novo Coro
nel foi ao Regto e nos levou comsigo, chegamos ao Re
gimento 15 dias antes de Batalha de Victoria, donde os
Francezes soffrerem esta inorma perta; toda a Artilheria
que tinham, e pode dizer-se que toda a Riqueza de Espaagnha
esteve ali junta não escapou nada, os Portuguezes espagnoes
e Engleses apanharem tudo..tambem eu perti por a terceira
vez tudo quando posuia, ja tinha perdido por duas vezes tudo quando
tinho. .felizmente não tinho trazido o meu Dinheiro que tinho
recebido no deposito, tinha o deixado em frança Deposidada
em casa de um amigo, que me o guardou fielmente. .
A nossa retirada foi athe que passamos a raia
de Espagnha; accampammos nos Pivoneos algums
tres meses, houve varios attaques que sempre forem
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infelizes p.ª os francezos; No principio de 10bro 181[3?]
Ritiremos nôs p.ª Bayona no dia 13. de 10 bro havia um
ataque a Bayona que durou todo o dia, nunca
ouvi uma fusilhada e de Artilheria como na aquel dia.
No dia seguinte, Retiramos sobre o cuminho de Touloces e
ahinda avia um ataque ao pèe de Ortes que se perdeu
e seguia a retirada ate a Toulose sem novidade, ao
pèe de Toulose que foi a ultima Batalha que houve
na Guerra Peninsolar, e seguiuse a Paz. . Depois de
[p.9]
Paz feita o meu Reg. to conservou-se ahinda por aquel
les Sitios, mas o Reg. to ja naõ tinha Dinheiro p.ª pagar
os Soldados nem a Musica ja me devião seis meses e
naõ havia esperanças de receber vingtim, e vi que a
cousa hia de mal p.ª peor, resolvi-me a abandonar
os Francezes, o que fiz; algumas legoas de quel sitio
estava o quarto Reg. to Portuguez que procurava um
Mestre de Musica, deixei então os francezes e foi
offerecer-me, foi logo aceito, e foi feito o contracto
a 1$600 rs por dia, p.ª accompagnar o Reg. to Para
Portugal; era no dia 9 de Maio de 1814. E ja no 14 de
dito mes o Reg. to Marchou p.ª Portugal.. Gastamos
tres meses e quatro dias p.ª o caminho, entramos em
Lisboa no dia 18 de Agosto. .Este tem sido
minha vida ate aos trente annos que tinha então..
Estando em Lisboa, no Reg. to tinha 10 moedas por mez
e entrei logo no Theatro de Rua dos Condes, no qual
continuei a tocar ate 1816. quando entrei no theatro
de San Carlos, mas não estive muito tempo aberto, porque
tinha morido no Rio de Janeiro a Rainha D. Maria 1.ª e fechou
-se o theatro de S. n Carlos e mais todos os outros p.ª um anno.
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Fernando P. Binder – O Dossiê Neuparth
fez nova contracta por mais um anno por 1$400 rs por dia
porque abadia de minha vontade 200 rs por dia. .
Athe aquelle tempo os Musicos de contrada forem
pagos por o Reg. to, cada Official e cada soldade dava
um dia de soldo para pagar a Musica. Havia então
[p.10]
muita ladroeira; com este pé davam licença aos
Soldados e recolhião o prèe e o pão com desculpa que era
p.ª pagar a musica.. Mas o Lord Bresforte, acabou
com esta Ladroeira, Mandou fazer uma Ordem de
Exercito em que determinou, que o Mestre de Musicca não
receberia mais daqui adiante de que 920 Rs por dia e os
Musicos de Contracta 370 Rs. Pruivido aos Com
mandantes debaixa de severas penas não poder tar mas i
nem menos de Sua Algibeira. Ainda hoje existe a mesma
lei Era em 1816. eu fiz entaõ nova contacta comforma
a nova lei por um anno. ate 1817, no mes de Junho, quando
foi nomeado pela Regencia de Reino p.ª Mestre de Musica
da Nau D. J. Sexto que estava p.ª ir p.ª Itália p.ª buscar a
Ima D. Leopoldina ArquiDuqueza de Austria, p.ª a levar p.ª
o Rio de Janeiro p.ª cazar com o Snr D. Pedro. .
Sahimos de bara de Lisboa no dia 2. de Julho 1817. tivemos
uma viagem feliz, gastamos 19. dias p.ª chegar a Livorno o
nosso distino. Esperemos alguns dias até que chegou a
a Princissa, ainda a Princessa se demôrou algums dias antes
de embarcar, porfim embargou e sahimos d e Livorno, tivemos
bom tempo ate perte de estreito de Gibraltar quanto nos
assaltou uma Tempestade foriosa que durou dois dias, por
fim podimos sahir de Estreido felizmente com um tempo exce
lente nossa Direcçaõ foi p.ª a Ilha de Madeira, la ficamos
dois d ias e seguemos o nosso caminho ate ao Rio de Janeiro
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no dia 2. 9bro entremos nos na Barra de Rio. Gastamos quatro meses
[p.11]
Quando a Ima D.ª Leopoldina Desembargou mandou-me
chamar e mandou entregarme 34. Peças nesste tempo de
6$400 rs. . ja quando tocamos a primeira vez em Li
vorno no seo Palacio mandou entregarme 50 Ducatos p.ª
repartir entre todos: Agora nos tinhamos comprido a
nossa obrigaçaõ tinhamos chegado ao Rio de Janeiro com
a I. ma D.ª Leopoldina estava a nossa contracta
acabada faltava so a pagar nos e mandar nos p.ª
Portugal a todos que era a nossa contracta. .
A paga que divemos entanto que servimos na Nào, foi o
Eu com mestre 1$600. por dia os Musicos todos egaes a
1$200 rs por dia e a Caixa Bombo e Pratos a 800 rs por
dia, e muito bem tratado; a Ima D.ª Leopoldina desembargo e nos fi
camos a Bordo a espera, o que avia de acondecer. não tar
dou muito que nos mandarem desembarcar e levaraõnos
a Snr Cristovam p.ª tocar diante delle Rei D. J 6to Agradou
muito a nossa musica a Sua Magesdade. E mandounos pregun
tar p.ª o Conde Paraty se queriamos ficar no Rio, mas de principio
nemquem quiz ficar porque todos querião ir outra vez p.ª Por
tugal. . mas eu entrei a pensar que tanto Estrangeiro era eu
Portugal, como no Brail, e resolveiome a fica r, como os outros
virem que eu ficava, forem ficando tambem fora um que não
qiz ficar. O ordenado era de 207$680 rs. Eu não quiz ficar
de mestre, por causa de alguns desgostos que tinho dido por o
Caminho com algums musicos: como Musico estava muito mas
livre que como mestre, porque tinho Theatro, tinha muitos funçoens
[p.12]
90
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Egrexas; Tinha varios Regimentos p.ª tar musica e ensai
ar, ganhava de cada Regimento 500 rs por dia, não tocava
em nem um delles: Um dia encontrei um Musico de Camera
que eu conhecio muito bem, chamava-se elle Valentim Ziegler
que me parecia triste, eu lhe pergundei o que tinha por estar
assim triste, contou-me entaõ, que tendo comprado por especu
laçaõ uma caixa de Instrumentos musicos, e q.e passou letra
de Campio a tres meses, pensando de fazer algum negocio entre
tanto que coria a Letra, para poder pagar no dia de venci
mento della, mas que a manhã era dia de vencimento
e que elle naõ tinho Dinheiro p.a pagar lha; Eu lhe diz se
não era mas que isto eu lhe podia adiantar o Dinheiro debaixa
de condiçaõ, de que eu ficar em Sociedade com elle, que logo elle
aceitou, e assim foi estabelezido a nossa Sociedade, sem escritura
e outras cautelas nemgumas, si não esta, que elle avia de gi
rar com o negocio, porque eu não tinha tempo por iste
tinha muito que fazer com Theatro. funçoens d Egreja, Regimen
tos e outros funçõens, Assim foi estabelicido a nossa Sociedade
e a Letra que era de 800$000 Rs foi paga, tomamos numa casa
no Rocio, no Rio de Janeiro e donde estabelecemos o nosso
negocio o qual em poco tempo principiou a antar bem, e
continuou a antar bem en todo o tempo que estivemos no Rio.
No anno de 1819. cazeime com Henriqueta Carolina Ziegler
filha de meo Companheiro e Socio de Negoio, fiquei
no Rio ate ao dia 26 d´Abril 1821; Quando D. J. 6. to veio
p. a Portogal com toda a sua familia, menos D. Pedro
[p.13]
e nos mandou que embargasemos com elle em na Nào p. a o acom
panhar p.a Portogal, o meu socio ficou no Rio, p.a no anno
seguinte seguir com o negocio. . A nossa Viagem de Rio p. a Lisboa
foi feliz não aconteceo coussa remarquavle por o Caminho,
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Entramos na Barra de Lisboa no dia 2 de Julho no mesmo
anno. O meu Socio no anno de 1822. veio com todo que existia
no negocio. . Eu cheguei bastante Doende a Lisboa e
no inverno seguinte passei muito mal, a minha mole
stia era Cartialgia, e o Medico me diz que na Botica
naõ avia remedio p .a mim, que erem as Caldas de Rainha
que me haviam de curar, foi as Caldas no anno de 1822, e foi
taõ feliz no 1.o anno que fiquei quasi bom de tudo, mas p.a
ficar mais certa de cura foi mas os dois annos seguintes
e fiquei radicalmente bom. . Em 1823 estabelecemos
o nosso negocio em Lisboa, e fiquei eu encargado de girar
com o negocio, no anno 1824. no mes de 7bro Moreo a
a minha mulher de parto de uma creança morta
esta morta deve consequencias muito tristes p. a mim,
como ella moreo sem filhos vivos, forem os Paes herdeiros
de sua filha, de minha casa pertencia lhes a metade
o que eu possuia, e de Negocio pertencia lhes a metade
como socio, e metade de minha metada como er
deiros de sua filha, portanto tinha o meu socio de ne
gocio tres quartas partes e eu so huma quarta par
te, ficoume de minha parta em Instrumentos o va
lor de 800$ e tantos mil Rs e o que ficou em casa. .
[p.14]
Os nossos partilhos fisemos Amigalvelmente, e fizemos uma
quitação donde elles declararem que estavam satisfeito esta
feito em Tabilhão. . Mas como eu não quiz continuar o
Negocio em Sociedade e apardei-me p.a continuar
sosinho, não gostou elle porque elle queria continuar em soci
edade, o que não me fazia conta, eu queria fazer o meu ne
gocio sosinho, foi este o motivo das perseguiçoens que depois
me fez. com um Processo que demorou 6 annos e me custou-mi
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Fernando P. Binder – O Dossiê Neuparth
mas que um Conto Rs. Por caussa de uma asneira asneira que eu fez
de assingnar um papel que declarava que ficavem os ambos
responsavel um a outro si em caso um ou outro divesemos
esquecido alguma coussa a nosso perjuizo de o poder reclamar
este foi feito ja depois que estivemos apardato um de
outro. . E Sobre este papel elle formou o Prossesso, que perdi.
No anna 1826. cazei-me segunda vez, com Margarida
Boehmler de Reino de Witermberg (Almanha) no anno de
1827 defez s a nossa Banda, Entrei entaõ p. a Musico de
Camera, neste mesmo anno estabeceo o meu negocio na Rua
nova do Almada nõ 47 SobreLojem de donde esteve ate 1854.
dahi se mutou por uma Lojem opce, N ono anno de
1828. Veio D. Miguel por Regente do Reino, todos savem os
acontecimentos dos 5 annos que elle Gouvernou, as calami
nidades que passou Portugal. . A minha segunda
Mulher moreo em em 1831, tembem de consequencias de
um parto e molestia de Figado que padecia, Dive della
tres filhos Augusto. Leopoldina. e um outro Eduardo. e que
[p. 15]
moreo de pequeno. Os meos filhos estavam pequenos
eu não quiz cazar terceira vez fiquei então com a mi
nha cunhada Guilhermina Boehmler, que creou os meus
filhos, e que tem sido sempre boa mae por elles e nunca
dive queixa della e ainda hoja estava na minha casa e com
panhia. .No mes de Julho de 1832. principiou
a Guerra entre D. Pedro e D. Miguel que durou dois an
nos, quando D. Miguel perdeo o Reino e foi banido de Por
tugal; Com a Chegada de D. Pedro a Lisboa, Passamos de
folha de Casa Real, p.a a folha de Thesoiro, e ficamos no The
soiro ate ao anno de 1838. quando passamos outra vez p. a
Caza Real, com a divida de 8 Meses, que o Thesoiro nos
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Fernando P. Binder – O Dossiê Neuparth
ficou devendo. . Depois disto fiserem-se varias
reduçoens, até que afinal fiquemos em 10$000. Rs por o
mes. . Como o meo Negocio hia menos mal
Comprei então uma Guinta e Casas em Sam Bar
tolomeo da Charneca no anno de 1838 chamada dos
Milagres; de qual ahinda hoje sou Donno, tenho ido
todos os annos la p. a passar alguns meses por causa
de minha Sauda p. a mudar de ar, como tambem
a minha Familia. . Eu foi um dos 37 que fun
darem o montepio Philarmonico que se estave
leceo em 1837. e que existe, e de qual hojo sou
Pensinista de 12$000. por mes. . Equalmente sou
um dos fundadores de Montepio de Casa Real
do que existe, p.a secorrer as familias dos empregados
[p. 16]
que morem e deixem Familia. . Um dia lembrei-me
que tinha que reclamar a erança que me deixarem os
meos Paes, O meo Negocio naõ ia mal, ganhava a minha
vida e ficava todos os annos uma pequena quantia. .
E como eu mandava vir Instrumentos tanto da Almanha
como de frança, resolveome entaõ a mandar, vir de Alma
nha um Sortimento de Instrumentos e mandar la pagar
com o Dinheiro que tinho que receber de minha herança
o que me pretencia 800 thaler mas destes fez de presente a meu
Irmão 100 thaler e meo Patrinho 50 thaler. ficarem portan
to liquido de 650 thaler: valor o cambio de hoje 468$000
Recebi total desta quantia em Instrumentos e Musica.
No anno 1832. veio a Cholera assiatica p.a Potugal e
atacou o Porto primeiro donde fez bastantos estragos nas
Tropas de D. Pedro. . Em 1833, na primaveira atacou
Lisboa com muita força, que morrerem diariamente tres
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Fernando P. Binder – O Dossiê Neuparth
centos e mais Pessoas quando estava na sua maior força, durou
quasi todo o veraõ; A segunda vez quando fez o giro de
Globus não chegou a Portugal. A terceira vez em 1856
chegou a Lisboa mas muito benigno atacou poca gente,
Em 1857. chegou a Fevre amarela que era differente de
cholera que atacava mas a gente pouvre, mas a Fevra
amarela atacava tanto o rico como o pouvre moreo
imense gente, de maneira que todos que podiem fugir
p. a fora de Lisboa. .
As Molestias dos Vegitaes e arvores que tem habido em o Tempo q
estou em Portugal..
[p. 17]
A Molestia das Larangeiras que morerem em pocas
annos quasi todos por todo o Reino pocas se salvarem
a oliveiras tambem tiverão a Molestia da ferugem
bastandas annos; Em no anno de 1852 veio a molestia
das Vinhos, Odium Tucheri, que tem feito tantes perdas
a Lavora e ahinde existe haja 17. annos mas com menos
força, e com o remedio de enxofre vae minguando,
A molestia das Batatas que esteve geral em toda a Eu.
ropa. . Eu tenho vivido em uma Epocamuito
Remarcabel e emportante que pode chamar-se a epoca
das Emvençoens e Descubertas, no meu tempo se descubrio
de aproveidar o Vapor p. a fazer andar Navios, e
Locomotivos em Caminhos de ferro. . O aproveidamento
de Gaz p.a Luz: a Chimica que estava na sua infancia
e o que ella é hoje em dia, E a eletricidade p.a
aproveidar p. a Telegraphos emvenção muito moderna
os Instrumentos musicos que erem tão simples no meo
primeiro tempo; e a perfeção em que estão hoje; tanto
os de Latão como os de Madeira e a baratessa que he de
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Fernando P. Binder – O Dossiê Neuparth
admirar. . Emfim eu não tenho bastantes conhecimen
tos para mencionar todos os melhoramentos tanto em
Artes como sciencias e Litradelatura que tem havido
em o tempo de minha Vida. .
Eu estabeleceo o meo Negocio, com forma eu ja diz em
outra parte, no fim de 1824. Com que me ficou de
negocio que tinho com meo Sogro; que foi o valor em
[p. 18]
Instrumentos de 800$600 rs com com 200$ e tantos mil
Rs que me fiquarem de Partilha de minha casa, principiei
o meu negocio Sozinho com o valor de um conto d Rs. A poca a
poco foi me alarganto, como tinho o Theatro de san Carlos e o
meu ordenado, me chegava p. a as despezas de casa, e ainda
mais algums outras despezas: não precissava tirar nada de
negocio, todo que entrava ficava. Mas quando veio D. Miguer
p. a Vice-Rei mudou todo, naõ haia ja Theatro, e eu estava reduzido
a meu Ordenado sò e pocas Funçãos de Igrejas e poco ne
gocio; não pode adiandar poco a nada entre tanto que D.
Miguel Gouvernou, porque não avia Theatros nem diver
timento de qualidade nem um. . em 1831 no mes de April
moreo a minha segunda Mulher, e como havia filhos era ne
sesaria fazer um especio de enventario p. a ver quando avia en
tão de valor em casa, exestia então um Conto e seiscentos
mil rs; Conforme a lei partencia metade e aos meu filhos e
metade a mim: e quando estevem maiores paguei a cada um a sua parte
Mas guando veio o D. Pedro de Porto, e que principiou o
Negocio a ir melhor, porque a maior parte dos Regimentos
que vinhão com elle tinhão falta de Instrumentos e compra
vem, e abriem-se os Theatros, e avia vida nova entre a gente
Eu continuei o meo negocio na mesma Sobrelogem N. o 47
Rua nova do Almada e o meo negocio hia muito bem, tinha
96
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Fernando P. Binder – O Dossiê Neuparth
muitas freguezias das Provincias de Lisboa. . Mas neste
tempo, um certo Joaquim Canongio, abria uma Logem de mu
sica e Instrumentos de Porta de Rua o que não tinha havido athe
[p. 19]
aquel tempo, eu não quiz imidar, aquel e conservei-me
na minha Sobre Lojem, fiando-me na minha freguezia taõ
mal fiz eu, porque de poco a poco as freguezas faltavam
e o negocio diminuia, a cousa era clara, os meus frequezes
a maior parte erem das Provinzias quando vinhaõ pa Lisboa
vinhaõ dirigido a minha caza, mas quando iam procurar a
minha casa passavam adianda de porta, de outra Logem
que era logo o rez entravam e compravam o que queriem, e
e eu perdio o freguez e o negocio, adourei um par de annos, atè que
me resolvi a tomar tambem Lojem de Porta de Rua era em
em 1854[7?] Mas neste tempo era ja muito dificuldoso em achar Lojem
em aquela rua, e para alcançar uma Lojem de uma Portas paguei
quarente moedas p. a o inclino sahir e largar a Lojem. mas
não me repenti de o aver feito; porque hoje la esta uma Lojem
que se pode ver; A Lojem he na mesma Rua nova do
Almada nõ Entreguei a direço~
ens ao meu Filho, o negocio
ia muito bem não dive que rependerme, meo Filho conti
nuou a sua direção ate ao ano de 1859. Quando nos fize
mos huma Escritura de trasspasso ou Venda, por elle negociar
por sua conta, mas com contiçaõ de conservar sempre o
o valor que eu lhe entreguei, p. a poder apresentar a todo o tem
po quando for prezisso, e ficou Hypoticado todo o que ex
iste na Lojem. . E outra escritura que me assegura
certos inderessos que saõ necessarios em no meu es
tada, O motivo porque eu fez esta escritura foi a fal
ta de saude, eu tinho 75 annos naõ me achando ja com
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forças por este travalho sendo achacado como estou
e tempo de descançar dos meus travalhos. .
Eu mandei vir as minhas fazendas tanto d'Almanha como
de Franza e Italia; tive credido de todas estas partes, por
que compri sempre exatamente o que contradei com os
meos correspondentes. . Uma vez tive uma perta de
uma caixa de Instrumentos que viraõ de Itavre em um Navio
francez que era de custo 800$ e tantos mil Rs; o Navio deo
a Costa e se perdeo toda a carga, ou por melher dizer foi Rou
bado toda a carga, eu gustumava sempre segurar em Por
tugal, mas esta vez quando quiz segurar ja estava la a
noticia que o navio tinha dado a Costa, e perdi todo. .
Ressumo d e minhaVida como Musico..
Sahiou de casa de meus Paes aos quinze annos era
no anno de 1799. em o mes de 9.bro para estudar Musica, fez
os meos 5 annos de Estudo de aprendiz, acabou o meu
tempo no mes de Abril de 1804. Sahia entaõ de casa de
meo Mestre, e achei logo um lugar que estava vago na
Capela de Principe de Lowenstein como 1. o Clarinette, servi lhe
dois annos, ate a entrada dos francezes na Prussia em 180[6]
quando o Principe nos despidio de seu Serviço era no mes de 9 bro
foi então contradado como musico por 3 meses em um a
Villa chamada Wertha so p. a passar o inverno. . Na
Primavera de 1807. fez uma Viagem p.a o Sul de Almanha
e achei ocupação em Markbreit sobre o Main, mas
por poco tempo naõ fiquei mas que tres meses, quando eu
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dive noticias, que a poca distancia dali havia um lugar na
Capela de Principe de Amorbach o qual lugar eu aceitei, mas
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tambem por poco tempo, Eu mais tres fomos p.a a Saxonia
p. a arranjar uma Banda de Instrumentos de Vento p. a Harmoni
as p. a viajar, o que consiguimos no tempo de hum mes; Eramos sete
2 Clarinettes. 2. Fagottos. 2 Trompas. e um que tocava
Oboe e Flauta. A nossa viagem durou poca a Banda
desunia-se e acabou. . Entrei de Mestre de Musica no
4 to Regimento de Linha de gran Duque de Baden em 10bro de
1807. o Regto recebeo ordem de marchar p.a Espagna
no mes de Agosto de 1808. Eu estava bastant doente, e quando
chegamos a Strasburgo tinha peorado, pedi ao Coronel p. a
me mandar passar guia p.a Hospital Militar, o que logo me
fez, fiquei 6 meses em [...] no Hospital; quando sahi de
Hospital deixei o Regto, e foi o Contractar-me como musico
em um Regto francez que procurava musicos que estava
em na Espagna. O deposito de dito Regto estava em Dax ao
pèe de Bayona a raia de Espagnha. . Travessamos toda
frança p.a chegarmos o Deposito no qual demoremos poco
tempo, fomos logo mandados com um Destacamento
p. a o Regto que era o 119 de linha, dahi a dois meses
passei a Mestre de musica com soldo de 150 francos por
mes, e neste Qualidade fez toda a Campagnha Penissular
athe a paz em 1814. no mes d'april, não querendo ficar mas
com os francezes, contracteime como mestre de Musica
no Regto nõ 4 de linha Portuguez chamado Gomes Freire;
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com o qual eu entrei em Lisboa no 18 de Agosto 1814.
servi no dito Regimento tres annos, ate que foi nomeado
mestre de musica de Nào D. J. Sexto que ia p.a Livorno p.a
busquar A S.a D,a Leopoldina, Archiduqueza de Austria
p. a A levar p.a o Rio de Janeiro, p.a Cazar com D. Pedro
o Principe Real. A Náo sahiou no dia 2. de Julho de 1817.
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e entramos no Rio de Janeiro no dia 2. de 9 bro no mesmo
anno, gastamos 4 meses exactos. . Como D. J. 6 to gostou
de nosso Musica, ficamos todas na Caza Real com o
ordenado de 207$600 Rs por anno, Eu não quiz ficar de
de Mestre por certos motivos. . Era no mesmo an
no no mes de 10bro; ficamos no Rio de mes de 9 bro
de 1817 ate ao dia 26 d'Abril de 1821 quando D. J. 6to se
resolveo de vir p. a Portugal e nos levou comsigo na
Náo. . Chegamos ao Tejo no dia 2 de Julho
a nossa Bando ficou como estava estava ate ao anno de 1827
quando eu entrei de Musico de Real cammera com
o mesmo ordenado que tinho na Banda: Eu toquei em
varios Theatros quando a minha vista o permitiu.
. Eu sempre deve uma molestia cronica nos Olhos, de
qual eu tenho soffrido muito na minha Vida, este tem sido
a caussa de eu largar o Theatro de S. n Carlos, e despois
os outros. . O meu filho tem feito o serviço de Capela
Real varios annos por mim; Requeri a minha reforma no
Montepio Philarmonico em 1856, e foi reformado no
mesmo anno, com 12$000 rs por mes: Depois deste reforma
[p. 23]
fiquei entaõ despençado de serviço, e haja varios an
nos que ja naõ pego em Instrumento de qualidade algum.
.Resumo das Testas Croadas que eu tenho servida..
1 o Principe de Lobestein. .2.do Principe deAmorbach.
.
3. o AO. Grand de Baden. .4. o A Napoleon 1.o
.
5. o D.a Maria 1. a Portugal.
.6. o A D. João Sexto.
7. a D.n Isabel Maia Regenta.
.8. A D. Miguel.
9. o A. D. o Pedro 4. o. .
.10. o A D.a Maria 2.da.
o
11. D. Fernando. Regente.
.12. A D. Pedro 5.do.
13. o A D. Louis 1.o o que hoje gouverno o Reino.
.
100
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.
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Tenho vivido sempre socegado, nunca me meti
com partido algum, sempre estava pela la li
berdade; nunca foi incomodado por Pessoa al
guma, nemquemse meteo com a minha vida em
todo o tempo que estou em Portugal, que já p.a
mim he segundo Patria adopdiva. .
Eu tenho tres filhos vivos, um filho e duas
filhas, todos tres cazados e estabelecidos e com Familias
já não precisem de mim; O meu filho continua com
o meu Negocio que eu estabelecira em 1824. .
Tenho sido feliz, os filhos naõ me tem dado desgosto.
tem se comportado bem; Particularmente o meu filho
se portou comigo como bom Filho, o que lhe agradezo
e Deus lhe queira remunerar e recompensar nos seus
filhos, que elles lhe fazem o mesmo que elle me fez na
minha avançada aidade.
.
[p.24]
Este tem sido a minha Vida ate as 85 annos que
tenho, Teixo isto escrito por minha mão ao meo
Filho, se elle queiro continuar a fazer como eu a
escrever a sua vida e recomendar ao Seus Filhos
que fazem o mesmo, por em todo o tempo poderem
ver e saver, donde virem e quem erem seus Avos e de
que Naçaõ elles saõ decendentes. . Agora, e que Deos
queiro que os meus decendentes sejem felizes e Hon,
rados.
Escrito no mes de maio de 1869 na aidade de 85 an
nos e 5 meses, com a mão bastante tremula..
Lisboa 7. de maio de 1869.
Eduardo. Neuparth.
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