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4.
Fernando Pessoa: um jogador de dados?
veillant
doutant
roulant
brillant et méditant
avant de s’arrêter
à quelque point dernier qui le sacre
Toute Pensée émet un Coup de Dés
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Mallarmé
Fernando Pessoa, em carta a Armando Cortes Rodrigues, datada de
19.01.1915, escreve: “você é, como eu, fundamentalmente um espírito religioso”
e mais adiante refere-se à solidão de se sentir alguém que se “adiantou de mais aos
companheiros de viagem”, a viagem que, segundo diz, acha “tão grave” porque é
uma viagem “entre almas e estrelas, pela floresta dos Pavores... e Deus, fim da
estrada infinita, à espera no silêncio da Sua grandeza” (OPr, p.55 e 56).
Em outra carta versando sobre o mesmo tema, esta, a Adolfo Casais
Monteiro, o poeta expõe a sua crença na possibilidade de três caminhos para o
oculto: “o caminho mágico”, “extremamente perigoso”, o caminho místico,
“incerto e lento” e o “caminho alquímico”. Declara sua preferência pelo terceiro,
o “mais difícil e o mais perfeito de todos, porque envolve uma transmutação da
própria personalidade que a prepara, sem grandes riscos, antes com defesas que
os outros caminhos não têm” (OPr, p.99). Georg Rudolf Lind vê nessa escolha
uma fusão entre as ciências ocultas e a poesia, e cita o comentário de João Gaspar
Simões:
Com firmeza tanto maior escolheu, por isso, o caminho alquímico: a
transformação da personalidade que este caminho lhe prescrevia,
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correspondia à sua tendência para o desdobramento do Eu, e levava-o a uma
fusão muito original de ciências ocultas e poesia. Sagazmente interpreta J. G.
Simões o caminho alquímico do poeta com as palavras: “Ora, quando F.P.
declara que o caminho alquímico” é aquele em que, mercê da transmutação
da personalidade, se prepara a comunicação com o Ente Supremo, muito
bem pode querer justificar a sua concepção da poesia ─ o “fingimento”,
produto de uma decomposição, transmutação, na criação, ou seja, os
heterônimos”.
(Lind, 1970, p.269)
Jogando com o poder sugestivo, a linguagem poética se distancia da
linguagem cujo intuito seja apenas o de comunicação: o poeta é considerado como
o mago, cuja produção intelectual requer toda uma construção que, graças a sua
imaginação e à força mental, tem o poder de enfeitiçar os leitores. Instrumento
desta operação alquímica, as palavras adquirem poderes mágicos e encantatórios,
e é dentro dessa perspectiva que nos aproximamos da poética de Pessoa do mito
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de Orfeu.
Para Mallarmé, “poeta alquimista”, o Simbolismo, é a “explicação órfica
do universo” (Tringali, 1990, p.22), pois “quando lhe perguntaram o que havia
antes de Homero, respondeu: Orfeu. Decorreu a um tempo remoto, a uma figura
mítica, ao símbolo de um canto no qual poesia e pensamento, ciência e mistério
são uma só coisa” (Friedrich, 1978, p.139).
Concebida como criação livre e não como imitação, o orfismo é a arte
concebida sob o espírito da música. Surgida na Grécia antiga, o orfismo é uma das
mais importantes religiões da antiguidade clássica e tem como fundador mítico
Orfeu: “protomúsico e poeta em quem se resumem as qualidades criadoras do
homem, suas potências espirituais, sua capacidade de concitar os elementos em
cuja trama se acha preso” (Cirlot, 1956, p.299).
A revelação do mistério em Pessoa, mediante tais considerações, se
confunde com a própria poesia; partindo de tal reflexão nos aproximaremos dos
sonetos de “Passos da Cruz”, que nos parecem esclarecedores do sentido da
transmutação da personalidade, a fim de alcançar uma outra realidade.
Em 1917, a série desses quatorze sonetos, de impecável construção
formal, é como um hino à sua ligação transcendente, e ao dever à missão que o
poeta em si contém, reconhecendo em Deus a meta. Assim confessa: “Não sou eu
quem descrevo. Eu sou a tela / E oculta mão colora alguém em mim”.
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Emissário de um rei desconhecido,
Eu cumpro informes instruções de além,
E as bruscas frases que a meus lábios vêm
Soam-me a um outro e anômalo sentido...
(OP, p.128)
O poeta, então, é o mensageiro que, ultrapassando os limites da simples
condição humana, tem a poesia como revelação, que lhe permite o acesso a um
conhecimento que possibilitará um novo grau de compreensão da vida e do
mundo. O poeta se via assim numa existência ligada ao divino, ao “além”. E
nesta ligação sente-se como o escolhido para o revelar. E é pela “glória do meu
Rei” que Fernando Pessoa, humildemente, submete e apaga o seu eu efêmero,
para que esse outro, eterno, possa brilhar, em toda a sua força. E é nesta
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submissão que partilhará da divindade. A relação com o seu senhor será, assim,
atingida e vivida individualmente, numa unidade íntima e pessoal, num diálogo e
num destino comum. “Passos da Cruz” nos revelaria o itinerário cumprido pelo
poeta para alcançar o conhecimento, como em qualquer ritual iniciático.
Cabe aqui mencionarmos que, assim como se estabelece no poema o
paralelo entre o poeta e Cristo, os cristãos viam em Orfeu “uma prefiguração de
Cristo, um profeta iluminado que teria participado da revelação mosaica! Só isso
explicaria tanta sabedoria num pagão” (Tringalli, 1990, p.22). Assim, temos aqui
reunidos: Orfeu, Cristo e o poeta, os três: mágicos, profetas, visionários, cuja voz
é capaz de transformar o mundo.
Nas várias referências que Pessoa faz ao mito de Orfeu ao longo da sua
obra, menciona quase que exclusivamente o instante do mergulho na escuridão e
no silêncio ─ descrito na travessia de Orfeu ao inferno, de modo a focalizar,
sobretudo, a ambigüidade do olhar com que, simultaneamente, procura e perde
Eurídice: musa, memória, passado. É um instante pleno de significações, e de
contradições, onde o olhar é levado a ver imagens que interferem na realidade,
como exemplificado no poema “Elegia na sombra”:
[...]
Pesa em nós o passado e o futuro.
Dorme em nós o presente. E a sonhar
A alma encontra sempre o mesmo muro,
E encontra o mesmo muro ao dispertar.
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[...]
Não restituiu Plutão [a ver] o céu
Um herói ou o ânimo que o faz,
Como Eurídice dada à dor de Orfeu;
Ou restituiu e olhamos para trás?
(OP, p.714)
Na trilha de Maurice Blanchot (1987, p.171), vemos “o olhar de Orfeu”
como um rompimento dos limites: quebra a lei que o contém, revê a essência. O
olhar de Orfeu é, assim, o momento extremo da liberdade, momento em que ele se
torna livre dele mesmo, e, acontecimento mais importante, liberta a obra da sua
preocupação, liberta o sagrado contido na obra, dá o sagrado a si mesmo, à
liberdade da sua essência, à sua essência que é liberdade (a inspiração é, por isso, o
dom por excelência). Mas o que é então escrever? O que faz esta mão escrever?
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Escrever é o interminável, o incessante.
Em Fernando Pessoa cada enunciado é um lance, o que lhe dá o poder de
criar um mundo de símbolos. Vivendo tudo no traspasse, na persuasão, no lance
arriscado.
É no interior do horizonte epistemológico de incerteza e descrença que tem
lugar a enunciação pessoana dos princípios diretivos do Sensacionismo, cuja
“atitude fundamental de excessiva atenção às nossas sensações” (OPr, p.430),
como diz Pessoa, procede do Simbolismo francês, o que coloca como questão
para o poeta captar, de maneira simultânea e, portanto, numa única emissão, as
faces observadas do “cubo” das sensações, a fim de reunir, à procura da síntese, o
princípio clássico de unidade e de perfeição estrutural ao princípio romântico da
“preocupação pictoral” e a sensibilidade simpatética ao princípio simbolista da
“minúcia”.
A criação de uma constelação de autores, compondo uma “coterie
inexistente”, sinaliza o direcionamento do discurso poético para as suas próprias
razões intrínsecas: mais que da poetização do ato de fazer poesia, trata-se da
criação de uma verdadeira galeria de “textos-poetas”, cujo significado é autoreflexivo, imanente ao seu próprio ato de estruturar-se, transformando a sua
“existência em existência poética”:
A mitologia não é inofensiva. Assumir por sua conta o mito de Orfeu
significava tomar a sério com todas as conseqüências imprevisíveis o papel
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da poesia no destino humano. Transformar a existência em existência
poética, apoderar-se dos poderes que, sabiamente, talvez, a mitologia confere
apenas a um semideus e tentar dominar com eles as várias faces de um
destino adverso até converter toda a realidade em realidade poética.
(Lourenço, 1974, p.57)
A concepção do mundo como um sistema de relações e reciprocidades que
ocasiona a “destruição criadora” e a “transposição” de Mallarmé alcança em
Pessoa certas posições que se configuram na relação entre poesia e alquimia, que
ao nutrirem-se de substratos míticos, permitem ao poeta atingir dois objetivos
artísticos: rejuvenescer uma forma e, transcendendo o tempo, ascender ao eterno.
E é exatamente pensando nesse poder encantatório das palavras,
transmitido pelo mito de Orfeu, que nos surgiu a idéia para título deste trabalho,
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retirado dos “Apontamentos para uma estética não aristotélica” de Álvaro de
Campos:
[...] o artista não-aristotélico subordina tudo à sua sensibilidade, converte
tudo em substância de sensibilidade, para assim, tornando a sua sensibilidade
abstrata como a inteligência (sem deixar de ser sensibilidade), emissora
como a vontade (sem que seja por isso vontade), se tornar um foco emissor
abstrato sensível que force os outros, queira eles ou não, a sentir o que ele
sentiu, que os domine pela força inexplicável, como o atleta mais forte
domina o mais fraco [...]
(OPr, p.244)
José Gil, em uma conferência em Lisboa, intitulada “Devir-Pessoa”,
lembrando a citação acima, e, comprovando o efeito desejado da obra de Pessoa,
expôs justamente a idéia de “dominação” exercida pela obra de Pessoa: “a sua
obra impõe-se, subjuga, emissor abstracto sensível que força os outros queiram
eles ou não a sentir o que ele sentiu”. Exercendo um domínio “pela força
inexplicável” e uma das explicações, ou, como o autor diz: “raízes desta
subjugação”, é o “facto de o leitor ser chamado a terminar o inacabado”:
Uma das raízes desta subjugação é o facto de o leitor ser chamado "a
terminar o inacabado" que resulta da heteronímia: "Todo o leitor tende a
transformar-se num heterónimo pessoano e a devir Pessoa, a integrar-se na
constelação infinita dos espaços interiores" que o habitam. "O movimento de
atracção resulta em captação, depois em osmose: o leitor é engolido pelos
mundos sem fim da poesia pessoana." Essa operação de osmose implica o
próprio "despojamento" do "eu do leitor". Resultado possível: uma "terrível
alienação da vida própria do leitor" - o leitor acaba devorado.
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Mas há uma outra possibilidade, defende José Gil, a da libertação do leitor
através do poder de vida, da intensidade das sensações, da espontaneidade e
singularidade absolutas que "toda a poesia de Pessoa visa". De onde vem
esse poder de vida? Dos heterónimos: "Cada heterónimo não é só um caso
àparte, é também uma pura espontaneidade”.
Este outro "devir-Pessoa", conclui José Gil, leva o leitor "a tornar-se ele
próprio singular e contaminante".
Em suma: se Pessoa devora, Pessoa também pode libertar.
(Gil, 2003)1
Tal poder é o de Pessoa-Orfeu, que permanecendo para além do tempo,
continua nos encantando com seus versos, convertendo-nos à sua religião: a
poesia. Estigma do homem moderno, que ao recuperar o sagrado torna-se “Deus”
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num século sem deuses:
A obra de Pessoa não é apenas materialmente caótica é
intrinsecamente descentrada, viagem no interior do caos em que nos
tornamos. E, assim, e nessa impossibilidade de se fechar sob si mesma,
porque sem “centro” em torno ao qual se possa dispor, reside acaso não só o
seu fascínio interminável como o seu carácter profético, foi escrita para um
mundo onde o Verbo integraria a sua sombra original. Verbo estilhaçado por
não haver Deus algum para reconstruir os pedaços a mais que há na taça da
Realidade. É o mundo em que estamos e Pessoa o dono dele. Dono em
sonhos, mas há outro senhorio?2
Encarnando um mito exemplar dentro da modernidade poética portuguesa
Pessoa-Orfeu, o poeta-cantor, mágico, que ao som da sua lira e de seu canto feito
poesia criou um novo mundo, todo ele intelectualizado, espiritualizado, em
constante devir e, portanto, nunca concluído, fechado, acabado. Aquele que violou
o proibido e ousou olhar o invisível, e que, em vez de Eurídice, encontrou lá a sua
arte.
Criou, também, seu próprio povoado. Sua existência poética assim o
permitiu, capacitando-o a multiplicar-se. Sob os nomes de Caeiro, Campos, Reis e
Pessoa deu-nos quatro conjuntos de poemas. Em Alberto Caeiro, encontramos a
meta objetivista de colher “a sensação do objeto exterior como objeto”; em Álvaro
de Campos, a meta de colher “a sensação do objeto exterior como sensação”; em
Ricardo Reis, a intelectualização da sensação e a atenção às idéias objetivistas a
ela associadas:
1
2
Citada por Alexandra Lucas Coelho, in Publico (Notícias). Lisboa: 9 de janeiro de 2003.
Lourenço, Eduardo. Ensaio: Pessoa entre os seus. Visão: Lisboa 27 de dezembro de 2001.
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Se Caeiro é o “sensacionista puro e absoluto”, à procura da “sensação
das coisas tais são”, Álvaro de Campos, “filho indisciplinado da sensação”
que é, persegue antes as “coisas tais como são sentidas”. Ricardo Reis, esse,
encontra na disciplina do classicismo um equilíbrio das duas atitudes, que o
seu neopaganismo lhe permitirá encontrar.
(Seabra, 1988, p.211)
A realidade, Pessoa transformou-a num cubo, ao comparar o processo
criador sensacionista, ou num dado, conforme Georg R. Lind. Cada heterônimo
pode ser considerado como uma das faces deste dado e Fernando Pessoa, o seu
jogador, conforme o lance e, dependendo do modo como o dado caia, uma das
faces se imporá, fazendo surgir, para o jogador, o nome do autor do poema.
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O dado, cujo lance é o pensamento, único e primeiro de todo o porvir:
Acaso e Ordem, liberdade e lei, sensibilidade e razão se dialetizam na
ocasião concreta da obra de arte, verbal ou não-verbal, como se conjugados
por um intelletto d’amore (Dante), uma sensibilidade pensante (Fernando
Pessoa). A “constelação” se deixa resgatar do acaso sideral como o cosmo
do caos; qual a vida inscrita no código nucléico do Humanus, enquanto
dure (e ela se reproduz e se prolonga), é resgatada da fatalidade da morte
entrópica.
(Campos, 2002, p.201)
Só nos resta, então, uma tarefa: ser contemporâneo de Pessoa, adentrarmos
no “espaço que o poeta abriu para nós, uma verdadeira filosofia do múltiplo, do
vazio, do infinito” (Badiou, 2002, p.63):
Tem um conteúdo que, pondo em comunicação o pensamento e o acaso, a
recusa do destino e o apelo ao destino, o pensamento que se joga e o jogo
como pensamento, pretende conter numa curta frase o todo do que é
possível. “Todo o pensamento emite um lance de dados”. É a cláusula e é a
abertura, é a invisível passagem em que o movimento em forma de esfera é
incessantemente fim e começo. Tudo acabou e tudo recomeça.
(Blanchot, 1984, p.255)
“Quanto ao mais, nada mais. Cá estamos sempre. Orpheu acabou. Orpheu
continua”. (OPr, p.407)
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