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UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS – UNISINOS
UNIDADE ACADÊMICA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTU SENSU EM DIREITO
NÍVEL MESTRADO
GABRIELLE TESSER GUGEL
NOVOS CAMINHOS PARA A PROTEÇÃO DO PATRIMÔNIO
HISTÓRICOARQUITETÔNICO:
A NOÇÃO DE RISCO E TEMPO NA PÓS-MODERNIDADE AMBIENTAL
São Leopoldo
2014
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GABRIELLE TESSER GUGEL
NOVOS CAMINHOS PARA A PROTEÇÃO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO
ARQUITETÔNICO:
A noção de risco e tempo na Pós-Modernidade Ambiental
Dissertação apresentada como requisito parcial
para a obtenção do título de Mestre em Direito
Público, pelo Programa de Pós-Graduação em
Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos
- UNISINOS.
Orientador: Wilson Engelmann
São Leopoldo
2014
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G942n
Gugel, Gabrielle Tesser
Novos caminhos para a proteção do patrimônio
histórico arquitetônico: a noção de risco e tempo na pósmodernidade ambiental / Gabrielle Tesser Gugel -- 2014.
127 f. ; 30cm.
Dissertação (mestrado) -- Universidade do Vale do Rio
dos Sinos. Programa de Pós-Graduação em Direito, São
Leopoldo, RS, 2014.
Orientador: Prof. Dr. Wilson Engelmann.
1. Direito. 2. Patrimônio histórico arquitetônico. 3. Teoria
dos sistemas sociais. 4. Memória. 5. Meio ambiente cultural.
I. Título. II. Engelmann, Wilson.
CDU 34
Catalogação na Publicação:
Bibliotecário Eliete Mari Doncato Brasil - CRB 10/1184
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Ao meu tio Ademir José Gugel,
verdadeiro mestre e incentivador deste trabalho,
meus agradecimentos por ter me ensinado a
admiração e respeito pelo patrimônio histórico
arquitetônico.
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AGRADECIMENTOS
Esse é um espaço muito especial na dissertação, pois, é com o maior carinho que
posso agradecer a todas as pessoas que participaram dessa minha trajetória, e de alguma
forma ou outra, contribuíram para a sua construção.
Aos meus pais Adailton João Gugel e Maristela Tesser Gugel, pela paciência,
compreensão e amor dedicados, não só durante o período do Mestrado, mas sim, no decorrer
da vida. Em especial, à minha mãe que aguardava acordada eu chegar à meia noite das aulas
em São Leopoldo.
Aos meus irmãos Maria Eduarda e João Luiz, que apoiaram as minhas escolhas
voltadas para a especialização. Em especial, obrigada por simplesmente existirem e por
transmitirem uma doce leveza a minha vida.
Aos amigos e demais familiares, que compreenderam a minha ausência nas festas de
aniversário e almoços em família. Agradeço por terem torcido por mim e dado o seu apoio de
forma incondicional.
Ao meu orientador Wilson Engelmann, pela confiança prestada ao longo da
dissertação. Agradeço por ter sempre se disponibilizado a me auxiliar nos momentos
solicitados e, principalmente, por ser este profissional exemplar, cuja postura orgulha a nós
alunos em poder compartilhar um pouco do seu conhecimento e tempo.
Aos professores Leonel Severo Rocha e Délton Winter de Carvalho que apresentaram
a teoria sistêmica e me instigaram a produzir esse trabalho voltado para tal linha de pesquisa,
como forma de desvelar os paradoxos que se encontram na proteção ao patrimônio histórico
arquitetônico.
Aos demais mestres do Programa de Pós-Graduação Strictu Sensu em Direito, pelo
conhecimento e discussões proporcionadas em sala de aula, fundamentais para o
desenvolvimento de uma reflexão no pensamento.
Aos colegas que percorreram comigo essa trajetória, compartilhando momentos de
angústia e felicidades. Em particular, não poderia deixar de nominar quem dividiu comigo
inquietações, teóricas e individuais: Marina Sanches Wünsch, Raquel von Hohendorff, Rosa
Galvão, Fernando Hoffmam, Letícia Cancian Selba e Suelen Webber.
As funcionárias da secretaria Vera Loebens e Magdaline Macedo, pela sua eficiência e
objetividade em resolver as demandas trazidas pelos alunos do curso.
A colega e amiga Suélen Farenzena, um agradecimento mais que especial. És uma
pessoa generosa e paciente, por isso, obrigada pela parceria, incentivo, apoio ao longo do
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curso e também no tocante a dissertação. Desejo que sejas muito feliz e tenhas sempre muito
sucesso!
Também não posso deixar de agradecer aos meus colegas profissionais Adriano
Minozzo Borges, Andréa Aldrovandi, Fábio Fernando Martini e Kelly Somensi pela
compreensão e apoio oferecido ao longo do curso. Devido a minha ausência precisaram
assumir mais responsabilidades e remanejar os seus horários a fim de cumprir com os
trabalhos do escritório, por isso, vocês estão guardados no meu coração. Muito obrigada!
Aos queridos Ademir José Gugel, Carolina Elisa Liviera, Giovanni Tesser Cristofoli,
Karen Somensi, Lucas Ducati, Rosa Galvão e Cassiano César Cavalett, pela contribuição na
busca de material bibliográfico. Ao Cassiano, em especial, que em meio a sua viagem de
férias pela Itália conseguiu procurar um livro para mim.
A Associação Caminhos de Pedra, pelo material fornecido para a pesquisa. Além
disso, como cidadã bento gonçalvense agradeço ao trabalho que estão realizando de resgate e
preservação da cultura italiana.
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Nonna Maria Merlo fotografada por turistas na Casa Merlo nos primórdios dos Caminhos de Pedra.
Fonte: Associação Caminhos de Pedra
Nada que tenha um significado mais profundo
deixa de ter certo aspecto utópico. Ele estimula a
perseguição. É próprio do utópico você não
atingi-lo, mas, se não for em busca dele, se você
não quiser sair do convencional, aí então o
marasmo será inevitável.
Aloísio Magalhães
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RESUMO
Na pós-modernidade, a crescente industrialização e a globalização das cidades faz com que o
patrimônio histórico tenha que ceder espaço às novas indústrias e edifícios. As sociedades
caracterizam-se pela significativa complexidade e contingência, o que dificulta a proteção ao
patrimônio cultural. Na medida em que os reflexos da modernidade podem ser observados na
sociedade contemporânea e diante da imprevisibilidade do futuro, a construção social do risco
permite uma maior segurança, tendo em vista que ao invés das decisões políticas serem
pautadas pela ideia de certeza, serão reguladas pela ideia de probabilidade. O presente
trabalho é realizado de acordo com a matriz sistêmica, segundo a qual, a comunicação entre
os sistemas é uma das bases da teoria dos sistemas, especialmente porque são operativamente
fechados e cognitivamente abertos. Entretanto, as ressonâncias dos sistemas da Política e da
Economia, nas decisões provenientes do sistema do Direito, prejudicam a salvaguarda das
construções históricas, na medida em que o Direito toma por base códigos binários de outros
sistemas para promover as suas decisões e não o código direito/não-direito. Como forma de
resolver esse problema, explica-se sobre a importância da memória para planejar o tempo,
uma que vez que cada sistema social possui uma forma diferente de perceber o mundo, e por
corolário, uma consciência diversa sobre o tempo. A construção histórica seria um espaço de
memória e tempo personificado, além disso, a preservação do prédio histórico possibilita que
a cidade cresça de acordo com o seu ritmo, sendo que a sua proteção reflete as esperanças
sociais no tempo da comunidade. As experiências de direito comparado e a valorização do
local revelam a necessidade de uma visão de segundo nível na construção social da cultura
ambiental, em especial o projeto Caminhos de Pedra, realizado em Bento Gonçalves,
apresenta uma nova forma de salvaguarda às construções históricas.
Palavras-chave: Patrimônio histórico arquitetônico. Teoria dos sistemas sociais. Tempo.
Memória. Meio ambiente cultural.
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RIASSUNTO
Nella postmodernità, la crescente industrializzazione e la globalizzazione delle città
determinano che il patrimonio storico architettonico deve cedere suo spazio a nuove industrie
ed edifici. Le società sono caratterizzate da complessità e contingenza significativa,
ostacolando la tutela del patrimonio culturale. In quanto le conseguenze della modernità
possono essere osservati nella società contemporanea e sulla imprevedibilità del futuro, la
costruzione sociale del rischio fornisce una maggiore sicurezza, visto che invece delle
decisioni politiche essere guidati da l'idea di certezza, saranno guidati da idea di probabilità.
Questo lavoro è stato realizzato secondo la matrice sistemica, pertanto, la comunicazione tra i
sistemi è la base della teoria dei sistemi, soprattutto perché loro sono operativamente chiusi e
aperti cognitivamente. Tuttavia, le risonanze dei sistemi di Politica ed Economia, nelle
decisioni del sistema giuridico, pregiudicano la tutela degli edifici storici, perchè il Diritto si
basa su codici binari di altri sistemi per addotare le sue decisioni e non il codice Diritto/ nonDiritto. Al fine di risolvere questo problema si spiega sull'importanza della memoria per la
pianificazione del tempo, poichè, ogni sistema sociale ha un modo diverso di percepire il
mondo, e di conseguenza, una diversa coscienza del tempo. Lo edificio storico sarebbe uno
spazio di memoria e di tempo personificato, oltre a ciò, la conservazione dello patrimonio
storico architettonico possibilita alla città di crescere secondo il suo ritmo, perchè la sua
protezione riflette le speranze sociale nel tempo della comunità. Le esperienze di diritto
comparato e l'apprezzamento del locale rivelano la necessità di una visione del secondo
livello nella costruzione sociale della cultura ambientale, in particolare il progetto Caminhos
de Pedra, realizato a Bento Gonçalves, presenta un nuovo modo per salvaguardare gli edifici
storici.
Parole-chiave: Patrimonio storico architettonico. Teoria dei sistemi social. Tempo. Memoria.
Ambiente culturale.
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SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 11
2 RISCO E CULTURA: OS REFLEXOS DA SOCIEDADE PÓS MODERNA EM
FACE DO PATRIMÔNIO CULTURAL ......................................................................... 15
2.1 OS CAMINHOS DA MODERNIDADE: COMO A PÓS-MODERNIDADE
INFLUENCIA NA NOÇÃO DE TEMPO E O SEU REFLEXO NA PROTEÇÃO DO
PATRIMÔNIO HISTÓRICO ARQUITETÔNICO ............................................................. 16
2.2 A CONSTRUÇÃO SOCIAL DO RISCO E A SUA PERCEPÇÃO PELO SISTEMA
DO DIREITO: AS DIFICULDADES ENTRE AS RESSONÂNCIAS DOS SISTEMAS
DA POLÍTICA E DA ECONOMIA .................................................................................... 49
3 CULTURA E RISCO: COMO BUSCAR NOVOS CAMINHOS PARA A
PROTEÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL NA SOCIEDADE DE RISCO ......... 88
3.1 OS EFEITOS DO TEMPO: A IMPORTÂNCIA DA MEMÓRIA PARA PLANEJAR
O TEMPO E OS DESAFIOS DE PENSAR NA PROTEÇÃO AO PATRIMÔNIO
HISTÓRICO ARQUITETÔNICO ....................................................................................... 89
3.2 A BUSCA POR NOVOS CAMINHOS DE PROTEÇÃO PARA O PATRIMÔNIO
HISTÓRICO: COMO AS EXPERIÊNCIAS DE DIREITO COMPARADO E A
VALORIZAÇÃO DO LOCAL REVELAM A NECESSIDADE DE UMA VISÃO DE
SEGUNDO NÍVEL NA CONSTRUÇÃO SOCIAL DA CULTURA AMBIENTAL ........ 117
4 CONCLUSÃO................................................................................................................... 149
REFERÊNCIAS ................................................................................................................. 155
11
1 INTRODUÇÃO
As construções históricas estão presentes em grande parte das cidades do mundo.
Fazem parte do cotidiano das pessoas, uma vez que inspiram e aquecem a vida, na medida em
que são provas vivas da passagem do tempo e da história das comunidades. A relação que elas
estabelecem perpassa a figura do seu proprietário, eis que interagem com toda a coletividade
da cidade, bem como com os visitantes que buscam conhecer a cultura dos povos que por eles
frequentados.
Por falar em cultura, partindo da perspectiva do multiculturalismo que fundamenta a
diversidade cultural entre os povos, ou seja, o mundo não é formado por uma uniformização
de saberes e experiência, cada cultura apresenta uma forma diversa de reagir às expectativas
sociais. Logo, o multiculturalismo é uma constatação que ajuda a compreender que a
sociedade não é um todo uniformizado, mas sim, um remendo de diversas culturas. Nesse
contexto, o patrimônio cultural de uma cidade, é um dos modos de expressão do povo que ali
habita, visto que cria um espaço onde interagem costumes, símbolos, linguagem, arquitetura.
Como se pode observar uma das formas de expressão cultural é a arquitetura do local,
por meio da qual se observa o patrimônio histórico arquitetônico Essa expressão será
reiteradamente utilizada no presente trabalho, por isso, convém dissecá-la da melhor forma
possível, a fim de que se observe a amplitude do tema. A expressão patrimônio refere-se a um
bem, uma herança que é reconhecida pela sociedade como um monumento de valor. O termo
histórico demonstra que esse valor está relacionado com a história da comunidade, ou seja,
reflete a memória do povo que ali se encontra, bem como demonstra a passagem do tempo e
as transformações sociais ocorridas ao longo dos anos. Referida memória está relacionada aos
acontecimentos e fatos que são responsáveis por cada cultura. E a expressão arquitetônico
refere-se à arquitetura, uma construção edificada pelos seres humanos, ou seja, trata-se de
uma intervenção humana na natureza, formada por diversos materiais, como cal, areia, pedra
madeira, que de diferentes formas, cores e tamanhos demonstram a história social.
A junção desses três fatores ratifica a importância da salvaguarda dessa arquitetura.
Em especial, a noção de que esses bens são recebidos como herança, dentro da perspectiva
temporal da sociedade de risco, fundamenta a ideia de que ao recebê-la, o indivíduo deve
conservá-la e transmiti-la as próximas gerações. Esse caráter intergeracional sintetiza as
perspectivas da proteção com o tempo, tendo em vista que amplia o seu horizonte.
A contínua industrialização e a globalização fazem com que o patrimônio histórico,
inclusive na pós-modernidade, perca o seu sentido de sagrado e seja demolido a fim de
12
permitira construção de novas indústrias e edifícios. O período da Revolução Industrial é
marcado pelo crescimento populacional urbano e desenvolvimento muito rápido da indústria,
o que ocasionou uma cultura de massa, com edifícios, residências e obras criadas de forma
padronizada, logo, há uma grande destruição e desvalorização do patrimônio histórico, que é
visto como algo do passado, impossível de ser modificado. Em tal realidade, constrói-se
socialmente a noção do risco, ou seja, das consequências que a modernidade trouxe para a
preservação do patrimônio cultural. Seja por meio da inconciliável noção de progresso com o
patrimônio histórico, seja devido à globalização e deslocamentos do tempo-espaço, a
salvaguarda encontra cada vez mais impasses que frustram os indivíduos que buscam a sua
proteção.
Desse modo, o problema que a Dissertação pretende responder é o seguinte:
considerando a ocorrência da pós-modernidade e da construção social do risco, bem como o
fato de o Direito, reiteradamente ceder espaço às ressonâncias da Economia, como buscar
novos caminhos para preservar o patrimônio histórico arquitetônico?
A hipótese provisória, que se apresenta neste momento inicial do trabalho, leva em
consideração projetos locais, em cidade do interior do Rio Grande do Sul, onde foi possível
trilhar um caminho que leva à preservação das construções histórias. Tal situação é utilizada
como forma de proteção, e subsídio para um acoplamento estrutural.
Com a inserção do patrimônio histórico arquitetônico na Constituição Federal, o Brasil
considerou-o passível de proteção para as demais gerações. Ao longo dos anos percebeu-se
que a proteção ao patrimônio histórico foi fundamental para a manutenção da cultura de
diversas sociedades, considerando que ela está intimamente ligada às construções
arquitetônicas de uma cidade. Apesar disso, na sociedade de risco, as ressonâncias dos
sistemas da Política e da Economia, nas decisões provenientes do sistema do Direito,
prejudicam a salvaguarda das construções históricas. Isso porque, as decisões jurídicas são
influenciadas pelos demais sistemas sociais, claro que a comunicação entre os sistemas faz
parte da teoria, porém, quando essa comunicação extrapola, corrompe o outro sistema.
Por isso, o caminho a ser trilhado pode parecer difícil e sinuoso, porém, a partir do
pensamento dos autores de matriz sociológica, pretende-se observar até que ponto a percepção
da noção de tempo, memória e história auxilia na proteção das construções históricas, de
modo a desvelar paradoxos.
Um caminho que permita enxergar além da beleza do patrimônio histórico, para
abarcar a totalidade de sua contribuição à cultura. Michel Random conta uma história que
ocorreu no século XIV. Havia dois pintores renomados, um se chamava Chi Sing e o outro
13
Jen Jen Fa, ambos eram considerados ilustres, ninguém conseguia decidir qual era o melhor.
Logo, o Imperador convidou-os para que pintassem um muro no palácio, aquele que vencesse
a disputa ganharia a nomeação como governador de uma província do reino. Assim, foi
colocada uma grande cortina preta entre eles, para que um não pudesse ver o trabalho do
outro. Chi Sing pintou uma paisagem magnífica, o Imperador ao vê-la exclamou: “É
impossível que haja uma obra humana mais bela do que a sua, ó grande mestre. Eu prometi
que aquele que ganhasse essa disputa seria o governador de uma província. Vou nomeá-lo.
Deixe-me apenas dar uma rápida olhada na pintura de Jen Jen Fa”. Ao puxar a cortina, todos
ficaram estupefatos, pois, Jen Jen Fa, apenas tinha polido a parede que se situava em frente a
de Chi Sing, logo, a pintura deste refletia na parede polida por Jen Jen Fa. O Imperador
boquiaberto compreendeu que Jen Jen Fa deu à parede a transparência do espelho, dando à
pintura unidimensional de Chi Sing três dimensões de profundidade. Por isso, o Imperador
declarou Jen Jen Fa vencedor da disputa, oferecendo a ele o posto de governador da província.
Entretanto, o artista recusou e disse: “Não majestade. Obrigado. Não quero nada que um ser
humano possa me dar.” Após, caminhou em direção à parede, adentrou na paisagem, onde
todos viram-no caminhar por entre as árvores, subir a montanha, e quando ele desapareceu
por detrás de uma rocha, o espelho se apagou, consequentemente, a parede voltou a ser o que
era antes, e o artista desapareceu.
É justamente nessa perspectiva de profundidade que o presente trabalho, pretende
abordar a salvaguarda das construções histórias, busca-se olhar além da construção, a fim de
observar as relações que o meio mantém com os sistemas. Nesse sentido, a observação de
segundo nível tenciona enxergar os pontos cegos existentes nos sistemas. Além disso,
necessita-se que o belo sensível aos olhos, perceptível em um primeiro olhar, amplie sua
dimensão, para que a comunicação entre o meio o sistema, faça com que o desaparecimento
do pintor produza o significado de autorreferência e autopoiese sistêmica.
De todo o modo, resta ser observado qual é o tênue limite entre a influência da
globalização e a perda da identidade local, e até que ponto a preservação do patrimônio
histórico permite a manutenção dessa identidade. Partindo da matriz sistêmica, isso é
possibilitado exatamente pelo fechamento operacional e pela abertura cognitiva. Estar aberto
ao novo, sem perder sua essência.
Objetiva-se com o presente trabalho traçar um caminho para a proteção do patrimônio
histórico arquitetônico, através da noção de tempo e memória, perpassando pelas experiências
de direito comparado e pela valorização do local, na pós-modernidade ambiental. Para tanto
necessária uma análise dos efeitos que a sociedade pós-moderna produz quando da
14
salvaguarda do patrimônio cultural, em razão do advento da globalização e industrialização,
bem como das mudanças na noção de tempo-espaço.
A partir da teoria dos sistemas de Niklas Luhmann, propõe-se demonstrar a relação
entre os sistemas do Direito, Economia e Política, os quais refletem diretamente nas decisões
que demandam a proteção das construções históricas, de modo que a estrutura dos sistemas
em uma observação de segundo nível proporcionem uma construção social da cultura.
Por meio da noção de tempo e memória, tendo como base as teorias de autores como
François Ost, Raffaele De Giorgi, Niklas Luhmann, Gunther Teubner, Anthony Giddens,
busca-se entender de que forma a tradição e o patrimônio histórico constroem a identidade
cultural local, uma vez que esta possui relação e necessita encontrar um equilíbrio entre o
crescimento das cidades e a globalização. Além disso, fundamental observar as experiências
de direito comparado e comunidades brasileiras que preservam, ainda que de maneira singela,
o patrimônio histórico arquitetônico, por meio de um estudo transdisciplinar, a fim de integrar
a teoria à efetiva valorização do local.
A Dissertação, conforme referido anteriormente, será desenvolvida a partir do método
sistêmico construtivista. Além disso, a pesquisa será realizada sob uma perspectiva
transdisciplinar, eis que a complexidade de tal tema envolve diversas matérias, não só
jurídicas, mas também relacionadas a arquitetura, urbanismo e história.
Tal análise será aliada à teoria do risco de Ulrich Beck, pois nesse contexto o Direito
enquanto estrutura do sistema social, produz as respostas adequadas de que necessita a
sociedade contemporânea. A análise demanda pesquisa bibliográfica e de legislação
comparada, principalmente com a francesa e italiana que são grandes protetoras do patrimônio
histórico arquitetônico.
Pretende-se, ainda, realizar uma observação de segunda ordem, observação dos
sistemas observadores, baseada na Teoria dos Sistemas Sociais. Outrossim, a pesquisa fundarse-á na interpretação de obras de Sociologia, visto que se enquadra da Linha 2 do Programa
de Pós-Graduação em Direito, leis e demais princípios. Também pesquisas ligadas
diretamente aos periódicos brasileiros e internacionais que abordam sobre a salvaguarda do
patrimônio histórico arquitetônico.
15
2 RISCO E CULTURA: OS REFLEXOS DA SOCIEDADE PÓS MODERNA EM
FACE DO PATRIMÔNIO CULTURAL
É preciso deter o martelo que mutila a face do país. Victor Hugo
Na sociedade pós-moderna o desenvolvimento e avanço tecnológico ocasionados
durante a modernidade nos Estados-nação causam preocupações acerca da influência que
possuem sobre o patrimônio cultural e por consequência também sobre o patrimônio histórico
arquitetônico. Como a perda da tradição pode modificar a identidade nacional de um povo?
Quais os efeitos da sociedade de risco perante o patrimônio histórico arquitetônico? Até que
ponto a globalização indica a perda da noção de cultura do Estado-nação? Como os sistemas
sociais devem operacionalizar a proteção do patrimônio histórico arquitetônico?
Essas e tantas outras perguntas demonstram o receio de que a globalização possa
alterar de maneira significativa e negativa a cultura local e regional. Mas como buscar um
equilíbrio? De pronto, importante ressaltar que não se está acusando a globalização por todas
as mazelas que envolvem o patrimônio histórico arquitetônico. O fato é que a globalização é
um acontecimento moderno, que produz efeitos sobre o patrimônio histórico arquitetônico,
em razão das decisões que são tomadas no âmbito global. Esse fenômeno será melhor
explicado ao longo desta primeira parte, porém a título de elucidação inicial, pode-se dizer
que a globalização é “uma síndrome complexa de processos, em que as redes de atores e as
macroestruturas se interconectam de modo extremamente complicado e dinâmico”1. Há um
processo de ligação e comunicação entre instituições, convenções, empresas, Estados que
ocorre de maneira extremamente rápida. É essa velocidade que parece não acompanhar a da
proteção do patrimônio histórico.
De fato, as nações atualmente consideradas desenvolvidas – de centro -, ao longo de
sua história protecionista ao patrimônio histórico arquitetônico, passaram a preservar os
monumentos históricos e posteriormente as construções históricas, sendo que com o passar do
tempo a preservação foi e permanece uma forma de manter a prosperidade de um Estado
cultivando os referenciais que o justifiquem como nação.
Os referenciais formadores da identidade cultural são aqueles valores processados e
ramificados na cultura de um povo, que demonstram a história, a luta, os acontecimentos, as
diferentes imigrações recebidas ou mesmo a estabilidade e durabilidade de determinada
1
DICKEN, Peter. Mudança global: mapeando as novas fronteiras da economia mundial. 5. ed. Tradução de
Teresa Cristina Felix de Sousa. Porto Alegre: Bookman, 2010. p. 28-29.
16
origem durante gerações. Para Aloísio Magalhães2 “estamos num processo nítido de querer
encontrar nossa identidade política. Como se encontrará? Onde se encontrará? Não há outro
caminho a não ser o conhecimento, a identificação, a consciência coletiva, a mais ampla
possível, dos nossos bens e nossos valores culturais”.
Algumas cidades3 conseguem preservar seu patrimônio histórico arquitetônico,
especialmente as que possuem uma população menor e consciente da importância que as
gerações anteriores deixaram para o local, o que está sendo uma tarefa muito difícil às
metrópoles, onde com os rápidos avanços tecnológicos e populacionais, as construções
históricas perdem totalmente seu espaço e sentido, perante o amontoado de arranha-céus.
2.1 OS CAMINHOS DA MODERNIDADE: COMO A PÓS-MODERNIDADE
INFLUENCIA NA NOÇÃO DE TEMPO E O SEU REFLEXO NA PROTEÇÃO
DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO ARQUITETÔNICO
O ponto decisivo é que o horizonte se obscurece à medida que
os riscos crescem. Ulrich Beck
O termo pós-modernidade ou sociedade contemporânea4 é usualmente utilizado pela
doutrina para caracterizar a sociedade das últimas décadas, como uma espécie de passagem da
sociedade moderna, pois, as teorias, que antes a descreviam tornaram-se ultrapassadas, ou
seja, desgastadas, diante das alterações e avanços proporcionados pela sociedade, gerando
uma insegurança e medo.5 Para Anthony Giddens,6 determinados aspectos sociais sofreram
transições diante da divergência entre as instituições modernas e aquelas que a própria
sociedade construiu nas últimas décadas, entretanto, para o autor ainda não se avançou a pósmodernidade, mas sim a uma insuficiência da modernidade.
2
MAGALHÃES, Aloísio. E triunfo? A questão dos bens culturais no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira;
Brasília: Fundação Nacional Pró-Memória, 1985. p. 41-42.
3
Pode-se citar nesse sentido cidades como Diamantina, Ouro Preto, Garibaldi, Antonio Prado, Santa Tereza (Rio
Grande do Sul), Santa Tereza (Espírito Santo) e Parati.
4
O termo pós-modernidade é explicado por Ulrich Beck (Sociedade de risco: rumo a outra modernidade.
Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: Ed. 34, 2010. p. 11) como um esforço de compreender os
conteúdos que o desenvolvimento histórico da modernidade nas últimas duas, três décadas atribuiu a essa
partícula. Já a nomenclatura “sociedade contemporânea” é utilizada por Raffaele de Giorgi (Direito,
democracia e risco: vínculos com o futuro. Porto Alegre: Safe, 1998. p. 185). Refere Anthony Giddens (As
consequências da modernidade. São Paulo: Editora Universidade Estadual Paulista, 1991. p. 12) que o termo
pós modernidade foi popularizado por Jean-François Lyotard como um “um deslocamento das tentativas de
fundamentar a epistemologia, e da fé no processo planejado humanamente”.
5
DE GIORGI, Raffaele. Direito, democracia e risco: vínculos com o futuro. Porto Alegre: Safe, 1998. p. 185.
6
GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. São Paulo: Editora Universidade Estadual Paulista,
1991. p. 58.
17
Essa insuficiência da modernidade ocorre porque ela não conseguiu cumprir as suas
promessas7, ou então, aquelas eventualmente cumpridas produziram efeitos que ultrapassaram
a capacidade da sociedade em resolver os problemas dali advindos. Além disso, dadas às
consequências modernas, não conseguirá cumpri-las. A modernidade, desde a sua concepção
no século XVI, até a sua efetiva aplicação em meados do século XVIII, apresentou-se como
um projeto audacioso, eis que apresenta um modelo de Estado racional formado com
diferentes ideias e abstração. Concomitante à aplicação da modernidade, emerge o modo de
produção capitalista em grande parte dos países europeus. O desenvolvimento do capitalismo
apresentou um importante reflexo sobre a modernidade, tendo em vista que impulsionou o
processo de industrialização, o que trouxe progresso e avanço ao conhecimento técnicocientífico e outras áreas da indústria. 8
O pensamento moderno contínuo nos séculos XIX e XX seguiu o seu curso em direção
à pós-modernidade. Gianni Vattimo9 questiona-se sobre a postura do pensamento ocidental
em necessitar determinar o contexto histórico que está vivendo, como, atualmente vive-se na
modernidade ou na pós-modernidade? Para o autor tal postura é recorrente do ser humano
devido a sempre presente noção de avanço histórico, transformação, superação, não
estabilidade do ser. Independente da corrente de pensamento que se adote, no presente
trabalho procurar-se-á apresentar como a teoria do risco, consequência do próprio pensamento
moderno, está presente nas decisões que envolvem a proteção do patrimônio histórico
arquitetônico.
Em contraposição à modernidade, o que muda na pós-modernidade é a racionalidade e
a forma como as situações são absorvidas, tendo em vista que o equilíbrio que antes era
percebido, devido a sua clara colocação e função na sociedade, “de uma parte, os
marginalizados, as mulheres, o terceiro mundo, os países em desenvolvimento, o desvio, a
guerra; e de outra parte, o capitalismo, a burguesia, o direito, o Norte, a democracia”10, logo,
as expectativas sociais eram previsíveis e as decisões tomadas de acordo com tal contexto.
7
As promessas advém do projeto da modernidade. Referido projeto “assenta em dois pilares fundamentais, o
pilar da regulação e o pilar da emancipação. São pilares, eles próprios, complexos, cada um constituído por três
princípios. O pilar da regulação é constituído pelo princípio do Estado, cuja articulação se deve principalmente
a Hobbes; pelo princípio do mercado, dominante sobretudo na obra de Locke; e pelo princípio da comunidade,
cuja formulação domina toda a filosofia política de Rousseau. Por sua vez, o pilar da emancipação é
constituído pro três lógicas de racionalidade: a racionalidade estético-expressiva da arte e da literatura; a
racionalidade moral-prática da ética e do direito; e a racionalidade cognitivo-instrumental da ciência e da
técnica” (SANTOS, Boaventura de Souza. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 9. ed.
São Paulo: Cortez, 2003. p. 77).
8
Ibid. p. 77-79.
9
VATTIMO, Gianni. O fim da modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna. São Paulo:
Martins Fontes, 1996. p. VII-VIII.
10
DE GIORGI, Raffaele. Direito, democracia e risco: vínculos com o futuro. Porto Alegre: Safe, 1998. p. 186.
18
Havia um equilíbrio que a sociedade impunha a si mesma, para que pudesse diferenciar-se
funcionalmente. Porém, com os avanços e catástrofes observadas (especialmente, após o
desastre de Chernobyl), os riscos passaram a ser difundidos, não possuem barreiras. Aquela
diferenciação que antes confortava a sociedade não pode mais ser observada, pois todos são
suscetíveis às consequências dali advindas.11
As transformações na sociedade moderna demonstraram um processo descontínuo,
pois, além de estabelecerem uma forma global de abrangência comunicacional, alteraram o
cotidiano dos indivíduos. Assim, foram rompidas as formas clássicas de ordem social, e
juntamente a isso, torna-se difícil a convivência entre o tradicional e o moderno, tanto nas
cidades, quanto no subjetivismo de cada indivíduo. Observa-se que tal descontinuidade é
diversa da história de períodos anteriores, porque a velocidade com que tal processo ocorre é
muito rápida, com o que a tecnologia contribui. O seu alcance envolve todas as pessoas, de
todas as culturas, além da adoção de modelos institucionais diversos daqueles que
anteriormente estavam presentes na história da humanidade.12 Por isso, a proteção do
patrimônio histórico arquitetônico trava uma batalha constante com o avanço tecnológico,13
tendo em vista que essa descontinuidade entre o tradicional e o moderno está presente no
contexto das cidades urbanas, onde as construções históricas cedem espaço aos modernos e
faraônicos edifícios.
Além da mudança na racionalidade outra transformação ocorrida é referida por
Luhmann por meio da noção de risco14: como uma oposição a noção de segurança que se
tinha na modernidade, pois, não é possível haver uma segurança absoluta, sempre pode
11
BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a outra modernidade. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo:
Ed. 34, 2010. p. 7.
12
GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. São Paulo: Universidade Estadual Paulista, 1991. p.
14-16.
13
Ao mesmo em tempo em que o avanço tecnológico traz consigo essa insuficiência social à proteção do
patrimônio histórico, em razão do que será exposto ao longo do presente trabalho, resta ser mencionado que há
tímidos avanços tecnológicos que ajudam na manutenção do patrimônio histórico arquitetônico. Em pesquisas
recentes têm-se utilizado a nanotecnologia para a restauração e conservação de pintura ou de alguma obra
arquitetônica antiga, em especial porque essa tecnologia pode ser adaptada a utilização sobre diferentes
materiais, como papel, pedra, tinta, sem que tais obras originalmente fossem modificadas, ou seja, sem perder
as suas características. (GÓMEZ-VILLALBA, Luz Stella; LÓPEZ-ARCE, Paula; GONZÁLEZ, Rafael Fort;
BUERGO, Mónica Álvarez de. Revista Patrimonio Cultural de España, Madrid, n. 4, p. 47, 2010).
14
Como o presente texto vai tratar acerca do risco, importante que este não seja confundido com o perigo,
conforme explica Luhmann, pois o risco provém da decisão enquanto o perigo de fatores externos: “Con el
objeto de poder hacer justicia a ambos niveles de la observación, daremos otra forma al concepto de riesgo.
Nos serviremos, más concretamente, de la distinción entre riego y peligro. Esta distinción supone (y así se
diferencia precisamente de otras distinciones) que hay uma inseguridad en relación a daños futuros. Se
presentan entonces dos posibilidades. Puede considerarse que el posible daño es una consecuencia de la
decisión, y entonces hablamos de risgo y, más precisamente, del riesgo de la decisión. O bien se juzga que el
posible daño es provocado externamente, es decir, se le atribuye al médio ambiente; y em este caso, hablamos
de peligro.” (LUHMANN, Niklas. Sociología del riesgo. México: Universidad Iberoamericana/Universidad de
Guadalajara, 1992. p. 65).
19
ocorrer algum imprevisto. Sem medo de ser contraditório, observa-se que é justamente a
utilização da noção de risco que permite uma maior segurança, tendo em vista que ao invés de
as decisões políticas serem pautadas pela ideia de certeza, serão pautadas pela ideia de
probabilidade. Por meio do binômio risco-segurança torna-se possível que em um primeiro
momento seja plausível tomar todas as decisões levando em consideração a sua margem de
risco. Isso permite concretizar a noção de risco, bem como analisar de que forma, através dos
séculos, o risco e a segurança estiveram presentes nas suas próprias decisões.15 A noção de
risco está relacionada à decisão, dessa forma, ao se tomar a decisão sobre o tombamento de
um prédio, a fim de conservá-lo, ou destruí-lo para a edificação de um edifício com muitas
salas comerciais que trariam lucratividade econômica, é uma situação de risco, como todas as
decisões que são tomadas pelos governantes.
A análise da segurança é ampliada, pois, percebe-se que a modernidade não conseguiu
conter as indeterminações surgidas com a ocorrência do risco, e mais as demandas sociais
cada vez mais as produzem. A modernidade demonstrou-se uma crescente de situações
paradoxais, mesmo que não queira produzir indeterminações, devido a seu modelo de
produção, continuou a produzi-las; enquanto gerou muita riqueza a parte da população,
determinou que uma grande parcela fosse submetida a situações de extrema miséria; quanto
mais igualdade e participação social eram percebidas nos Estados, ao mesmo tempo acentuouse a desigualdade e diminuição da participação social, esta inclusive pela falta de interesse da
população em vista do descrédito com relação ao sistema político. Percebe-se que as decisões
que foram tomadas poderiam ter sido diferentes, o que poderia não ter produzido todos os
danos ambientais e sociais vivenciados e ampliados pela pós-modernidade. Com a noção de
risco-segurança objetiva-se que essas indeterminações não continuem a ocorrer de modo a
gerar insegurança social. Logo, as decisões pautadas pelo risco determinam vínculos com o
futuro, de modo a minimizar as suas consequências. A noção de risco é justamente o meio da
sociedade para criar vínculos com o futuro, como forma de construir decisões que carreguem
a noção de segurança.16
Por meio da modernidade tardia,17 o desenvolvimento da indústria e a produção em
massa geraram ao invés da distribuição da riqueza (que foi observada a partir da Revolução
15
LUHMANN, Niklas. Sociología del riesgo. México: Universidad Iberoamericana/Universidad de Guadalajara,
1992. p. 62-63.
16
DE GIORGI, Raffaele. Direito, democracia e risco: vínculos com o futuro. Porto Alegre: Safe, 1998. p. 191193.
17
O termo modernidade tardia é comumente utilizado por Beck quando trata da sociedade de risco. Além disso,
é por meio dele que Lenio Streck refere-se aos países periféricos, como o Brasil, visto que os denomina “países
de modernidade tardia”. (STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 165).
20
Industrial, na sociedade moderna), a distribuição de riscos, e isso ocorre devido a dois fatores:
as garantias e regras do Estado Social, bem como o avanço do nível de produção humana e
científica permitem uma diminuição da deficiência material; com a modernização, os riscos e
as catástrofes tomam uma proporção que nunca tinha sido observada. O problema então é
observado a partir de um novo paradigma: dos efeitos sucedidos do desenvolvimento técnicocientífico. A perspectiva observada na sociedade moderna, sobre o problema da utilização da
riqueza material não deixa de existir, muito antes pelo contrário, está presente, porém o seu
paradigma não mais prepondera. O paradigma dominante será o da sociedade de risco,
proveniente de riscos que ela própria produziu.18
As escolhas demandam em risco, seguindo por esse caminho, na modernidade
industrial não há opção entre uma escolha de risco e uma escolha segura, todas demandam em
risco, o que pode ser feito é verificar quais trarão mais vantagens ou mais prejuízos à
sociedade. O principal problema que envolve a comunicação sobre o risco é separar aqueles
que tomam decisões envoltas pelo risco, daqueles que têm interesses nessas decisões. Ou seja,
aqueles que tomam decisões, evolvem-se com o risco, enquanto que aqueles que sofrem as
consequências da decisão estão diante do perigo, visto que o ponto de vista que deve ser
ressaltado é quem possui o poder de decisão. Essa percepção diferencia a linha tênue existente
nessa comunicação. Evidente que não é possível que todos os interessados opinem nessa
decisão, tendo em vista que ela cabe a quem tem poder para isso, além do que nem sempre é
possível prever o alcance da decisão, todos que serão interessados por ela. Porém, se deve
ressaltar que na pós-modernidade cresce nos Estados essa percepção política de consultar a
população, por exemplo, por meio de audiências públicas, para que antes de tomar a decisão,
ouça o máximo possível a opinião de quem será afetado por ela.19 Logo, as decisões que
envolvem a proteção do patrimônio histórico necessitam que a comunidade seja ouvida,
especialmente, o órgão que já atue nessa área, principalmente se essa decisão pretende a
demolição de uma construção histórica, uma vez que após demolida, não há como voltar no
tempo. Toda decisão traz consigo o risco.
Ouvir a opinião de quem será afetado pelo risco demanda a construção dessa ideia
perante a sociedade. A construção social do risco deve ser entendida como a criação da
aceitabilidade social acerca do risco e em informar a população, através de processos
transparentes e participativos, os quais permitam a criação de uma percepção do risco. Isso
18
BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a outra modernidade. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo:
Ed. 34, 2010. p. 23-24.
19
DE GIORGI, Raffaele. Direito, democracia e risco: vínculos com o futuro. Porto Alegre: Safe, 1998. p. 247249.
21
exige que o sistema político e quem detenha o conhecimento científico forneçam informações
e conhecimento acerca das vantagens, inconvenientes e demais características. O
conhecimento não deve ser monopolizado, a sociedade precisa estar informada sobre o risco.
Nesse caso a participação pública é necessária, pois quanto maior a incerteza, mais importante
será a participação da sociedade. Logo, a gestão do risco exige a sua ponderação, tendo em
vista que a presença do risco é inerente à sociedade, de modo que, para que o sistema da
Política, o qual tem a função de tomar decisões coletivamente vinculantes, leve em
consideração a opinião pública, os cidadãos necessitam ter informações corretas e coerentes
sobre o risco, para que não sejam iludidos ou influenciados por um medo que não se adéqua
às suas consequências.20
Por isso, a importância de um equilíbrio entre a racionalidade científica e a social,
pois, as pesquisas científicas ao apontarem as suas conclusões sobre o risco estão sujeitas à
análise valorativa feita pela sociedade. Até porque, mesmo que os cientistas apontem a
ocorrência de certos riscos com alguma certeza, é de se observar que quando se trata de risco
está-se diante de probabilidade, logo, as constatações científicas trazem possibilidades e não
certezas. O sistema da ciência trabalha sob a perspectiva de hipóteses e não de verdades, pois
estas estão no campo da metafísica, do religioso, e consequentemente deixa de ser ciência.
Logo, a racionalidade científica e a racionalidade social, apesar de serem eminentemente
distintas, necessitam uma da outra, pois as pesquisas científicas trabalham com o olhar sob o
futuro social, de possíveis realidades e consequências trazidas à sociedade devido aos riscos
por ela produzidos, ao passo que a coletividade continua a exigir provas concludentes acerca
de danos ou riscos, sendo que a cada prova apresentada, exigem-se outras para ampliar sua
percepção social, destarte “racionalidade científica sem racionalidade social fica vazia,
racionalidade social sem racionalidade científica, cega”.21
O risco é uma construção social e os seus resultados são catastróficos e/ou
preocupantes, assim, os novos riscos ambientais caracterizam-se por serem: globais, que
abrangem grandes regiões do planeta, que se difundem em uma larga escala, apresentando
magnitude nunca antes observada; retardados, demoram gerações, décadas ou séculos para se
concretizar, mas em certo momento, estabilizam-se apresentando dimensões catastróficas,
especialmente em face de sua irreversibilidade e extensão; irreversíveis, são aqueles que
quando se concretizam são imutáveis, ou pelo menos, que enquanto o ser humano existir não
20
ARAGÃO, Alexandra. Princípio da precaução: manual de instruções. Revista do CEDOUA, Coimbra, n. 22,
ano XI, p. 42-44, 2008.
21
BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a outra modernidade. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo:
Ed. 34, 2010. p. 34-36.
22
poderá reverter a situação de risco. Claro que a irreversibilidade em uma primeira análise
passa uma noção negativa, prejudicial, ocorre que a irreversibilidade em si, significa a
impossibilidade de retroceder no tempo, “uma irreversibilidade não é, em si mesma, nem boa
nem má, ela é neutra”. Dentro dessa perspectiva, o oposto de irreversibilidade, não seria a
reversibilidade, mas sim a conservação, a permanência e respeito dos recursos ambientais.
Como exemplo de irreversibilidade, presente em quase todas as nações, tem-se o meio
ambiente cultural, de modo que, o patrimônio artístico, arqueológico, arquitetônico, dentre
outros, provocam a impossibilidade de o ambiente retornar ao seu estado anterior, porém, tal
irreversibilidade é considerada positiva, visto que nesse caso, estão presentes valores que
transformam e identificam um país.22 Por outro lado, utilizando-se o mesmo exemplo do meio
ambiente cultural, quando se destrói uma construção histórica, o risco torna-se irreversível,
tendo em vista que não é possível reconstruir os valores históricos com os quais os indivíduos
identificavam-se.
É possível dividir, para fins de melhor análise, os riscos em antrópicos e naturais. Os
riscos naturais são aqueles que ocorrem com menor frequência e de causas diversas, que
podem ser químicas, biológicas, meteorológicas, dentre outras, enquanto que os antrópicos,
também chamados de tecnológicos, estatisticamente são mais assíduos, difundindo-se tanto no
tempo quanto no espaço. Importante observar que, apesar dessa distinção realizada pela
doutrina, é cada vez mais difícil diferenciar os riscos de origem natural e riscos de origem
humana, tendo em vista que muitas causas naturais acabam por potencializar riscos antrópicos
e vice-versa, o que gera acidentes mistos.23
Os estudos sobre o risco, bem como a insuficiência do sistema político na regulação
das situações que exijam sua preocupação, demandam a observação sobre a capacidade de
lidar com os riscos, quais medidas as populações utilizam para adaptar e prevenir os seus
danos. Um conceito-chave que trazem Jeroen van der Sluijs e Wim Turkenburg é o da
22
ARAGÃO, Alexandra. Princípio da precaução: manual de instruções. Revista do CEDOUA, Coimbra, n. 22,
ano XI, p. 20-23, 2008.
23
Para melhor contextualizar essa situação Alexandra Aragão (Ibid. p. 13) exemplifica fenômenos da natureza
onde causas naturais e antrópicas potencializam a ocorrência de catástrofes: “a) Causas naturais
extraordinárias: Um fenômeno natural nada habitual, que cria riscos tecnológicos. Por exemplo, a passagem de
um furacão escala 5, com ventos superiores a 249 km/h, que está na origem do risco de explosão de uma
fábrica de indústria química no Barreiro. b) Causas naturais invulgares: Um fenômeno natural ordinário, mas
com uma intensidade surpreendente e que, por isso, potencia o risco tecnológico. O exemplo são chuvas
diluvianas em Santarém que põem uma barragem, como a de Castelo de Bode, em risco de ruptura, por falta de
capacidade do descarregador de cheias. c) Causas naturais ordinárias. Um fenômeno natural habitual, com uma
intensidade dentro dos valores normais, mas cujos efeitos danosos são profundamente agravados por fatores
humanos intensificados ao longo do tempo. A melhor ilustração é o risco de inundaçãoe aluamentos da ilha da
Madeira, na sequencia da remoção do coberto vegetal e da impermeabilização progressiva do solo, pela
urbanização excessiva das encostas da ilha”.
23
resiliência, que seria a capacidade de um sistema tolerar uma perturbação sem entrar em
colapso, ou seja, um estado qualitativamente diferente, normalmente indesejado. Nesse
sentido, a resiliência em sistemas sociais inclui a capacidade dos seres humanos para
antecipar e planejar o futuro, a fim de se adaptar às condições de inevitáveis imprevistos, pois
como os seres humanos dependem do meio ambiente para a sobrevivência e as suas ações vão
continuamente impactando os ecossistemas do local, a ponderação acerca da resiliência
considera três perspectivas: quanto de alteração que o sistema pode sofrer e ainda manter os
mesmos controles sobre a função e estrutura; o grau em que o sistema é capaz de autoorganização; e a capacidade para construir e aumentar a capacidade de aprendizagem e
adaptação.24 A noção de resiliência está presente na análise que envolve o risco ambiental,
mas com relação ao patrimônio histórico ainda não é possível determinar como a sociedade se
adaptaria a uma perda de identidade cultural, por isso, que se configura uma situação de risco.
Com o constante desenvolvimento da ciência e ocorrência de novos riscos, a
observação do risco tem em si um elemento futuro, tendo em vista que é preciso antever os
possíveis danos que poderão ocorrer no futuro, mas, que ao mesmo tempo são reais hoje.
Logo, as decisões atinentes ao risco são reais e irreais, pois, algumas consequências dos
riscos são observadas através de danos concretos já visíveis, porém, outras são projeções do
que acontecerá no futuro,25 e justamente por se concentrar no futuro, o risco pode ser que
ocorra, como pode ser que não, desse modo, a organização do presente dependerá da
ponderação acerca do risco, dentro daquela ideia de Luhmann pautada no binômio riscosegurança.
Para explicar essa perspectiva de o futuro apresentar um risco, Luhmann trabalha com
a noção de tempo e de memória. Para isso explica que o tempo é uma forma de diferenciar
entre o antes e o depois, assim, há um movimento, onde o antes é o passado, enquanto o
depois é o futuro. A elaboração do tempo, com a evolução das sociedades, depende de cada
cultura, por exemplo, Luhmann se pergunta se na sociedade moderna a semântica do tempo
não poderia ser medida através da diferença entre a imanência e a transcendência. E para
conseguir trabalhar dentro dessa perspectiva, parte da ideia de que tudo o que acontece, ocorre
simultaneamente, ou seja, o ambiente existe em torno de um sistema e não antes ou depois,
assim o ambiente não pode ficar preso no passado, nem mesmo o presente do sistema se
24
SLUIJS, Jeroen van der; TURKENBURG, Wim. Climate Change and the Precautionary Principle. In:
FISHER, Elizabeth; JONES, Judith; SCHOMBERG René von. Implementing the precautionary principle:
perspectives and prospects. Cheltenham: Edward Elgar, 2006. p. 245-269.
25
BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a outra modernidade. Tradução de Sebastião Nascimento. São
Paulo: Ed. 34, 2010. p. 39-40.
24
voltar em direção ao futuro do entorno, assim existe um sincronismo entre os sistemas em si e
deles para com o ambiente. Logo, é importante que se observe que como os sistemas sociais
são operativamente fechados e cognitivamente abertos, tomam suas decisões conforme o seu
passado. Suas decisões sobre o futuro são sobre o passado. Nesse contexto, a memória quanto
mais complexa (abrangendo diversas possibilidades) for, mais longe poderá antever
inconsistências entre o passado e o futuro, porém ao mesmo tempo, permite a sua
diferenciação.26
Assim, como não se pode conhecer o futuro, tendo em vista sua indeterminação, é
possível aduzi-lo de acordo com a probabilidade, se é mais ou menos provável. Nos séculos
XIX e XX tentava-se quantificar essa probabilidade, através de cálculos, entre sua extensão
temporal e social, a fim de permitir um acordo na tomada de decisão, por meio de leis causais,
planejamento ou desenvolvimento, acreditando-se no progresso ou em conceitos
indeterminados, cujos objetivos eram reformistas ou revolucionários. Todavia, essa
racionalidade encontra barreiras quando se trata de análise de catástrofes envolvendo, por
exemplo, radiação, pois não se sabe quando pode ocorrer uma explosão em uma usina
nuclear, bem como quantas pessoas serão atingidas por essa radiação. 27 Sabe-se, contudo, que
a destruição do patrimônio histórico arquitetônico representa uma perda cultural, sendo que as
suas consequências são observadas a partir da descontinuidade entre a história de um local e o
povo que ali se encontra, criando uma noção de não-identidade, não-pertencimento à
comunidade.
Para entender melhor a noção de história é importante que esta se relacione com a
ideia de tradição, pois conforme explica Anthony Giddens28 na modernidade reflexiva29 “o
passado é honrado e os símbolos valorizados porque contêm e perpetuam a experiência de
gerações”, de modo que a tradição é o “modo de integrar a monitoração da ação com a
organização tempo-espacial da comunidade”. Nesse sentido, a tradição ao mesmo tempo em
que está em constante transformação, na medida em que a sociedade avança temporalmente,
quando uma geração é substituída pela próxima, também é uma forma de paradigma, ao qual
os movimentos sociais necessitam ser comparados, a fim de se determinar, o passado, o
26
LUHMANN, Niklas. Sociología del riesgo. México: Universidad Iberoamericana/Universidad de Guadalajara,
1992. p. 78-79.
27
Ibid. p. 92-93.
28
GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. São Paulo: Universidade Estadual Paulista, 1991. p.
44-45.
29
Esse termo é empregado pelo autor (Ibid. p. 43) para explicar a relação entre a modernidade e a reflexividade,
pois “há um sentido fundamental no qual a reflexividade é uma característica definidora de toda a ação
humana. Todos os seres humanos rotineiramente ‘se mantém em contato’, com as bases do que fazem como
parte integrante do fazer. Denominei isso em outro lugar de ‘monitoração reflexiva da ação’.
25
presente e o futuro. A tradição representa uma posição contrária às reformas sociais, ocorre
que na modernidade, a reflexividade com a constante avalanche de informações, as práticas
sociais não só são alteradas muito depressa, como suas características internas deixam de lhes
constituir, por isso as consequências advêm da própria intervenção na natureza. Esta
abrangendo não só o meio ambiente natural, mas também o patrimônio cultural.
Aliás, a luta travada pelos modernistas30 buscava justamente extinguir os seus laços
com a tradição e avançar as fronteiras do espaço. A tradição somente existia para que fosse
rompida.31 Claro que essas concepções tornam-se mais complexas e contingentes na pósmodernidade, entretanto deve-se ressaltar o papel da tradição para formação da modernidade.
E o papel dela, na pós-modernidade para a proteção do patrimônio histórico arquitetônico,
visto que ele é um dos elementos que remete o indivíduo à história da sua comunidade.
Talvez quando os modernistas defendiam entusiasticamente a modernidade, não
imaginavam as consequências que ela traria para o mundo, pode-se dizer mundo, porque
muitos dos riscos gerados possuem abrangência global. Por isso, a experiência suscitada pela
modernidade refere-se às decisões e avanços tecnológicos tomados ao longo dos anos, a partir
do conhecimento e meios que as pessoas possuíam nessa época. O que não quer dizer que a
experiência advenha somente das decisões tomadas, mas sim, das escolhas que não foram
feitas e que trariam, ou não, um rumo diferente para os acontecimentos. Os atos humanos
estão ligados ao período histórico, ao lugar e ao tempo em que as pessoas estão vivendo.32
Logo, as decisões que são tomadas sobre a proteção do patrimônio histórico vão refletir às
futuras gerações do planeta, assim como a modernidade refletiu na pós-modernidade.
A relevância da tradição é tamanha para a sociedade, que inclusive a origem da
palavra revela um sentido intergeracional para o Direito Romano. A raiz linguística origina-se
da palavra tradere, a qual significava “transmitir, ou dar a coisa a guardar a outra pessoa”. Ela
era utilizada na legislação referente a herança, aquele que recebia o legado da família tinha o
dever de protegê-lo e conservá-lo. Durante a Idade Média, a tradição, da maneira como é vista
na modernidade, não existia, tendo em vista que nesse período tudo era tradição, costume,
30
Os modernistas eram pensadores que adotaram a “perspectiva do modernismo – o movimento intelectual
alimentado pelo nojo e impaciência para com o preguiçoso e indolente passo da mudança que a modernidade
ensinou as pessoas a esperar e prometeu cumprir. O modernismo foi um protesto contra promessas
descumpridas e esperanças frustradas, mas também um testemunho de seriedade com que as promessas e as
esperanças foram tratadas. Os modernistas [...] acreditavam firmemente na natureza de sua época como vetor,
convencidos de que o fluxo do tempo tem uma direção, de que tudo o que vem depois é também (ou tem de
ser, deve ser) melehor, enquanto tudo o que reflui para o passado é também pior – atrasado, retrógrado,
inferior.” (BAUMAN, Zigmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Tradução por Mauro Gama e Cláudia
Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. p. 122-123).
31
Ibid. p. 123-124.
32
Ibid. p. 160-161.
26
religiosidade. Logo, a forma da tradição que é percebida atualmente foi criada pela
modernidade, mas para que determinado fenômeno seja considerado tradição de um local, não
há um necessário limite temporal mínimo. A tradição não se mede pelo tempo, mas sim pela
repetição e pela cerimônia em uma determinada comunidade, grupo social.33 Logo, a história
de uma localidade trará consigo as tradições vivenciadas pelos sistemas sociais.
Ocorre que, com a globalização mudanças significativas e de certo modo semelhantes
estão ocorrendo em nível global perante a tradição. A modernização, o industrialismo, a
inovação científica ao longo do seu desenvolvimento emergiram e reivindicaram o seu espaço
diante da tradição, o que não quer dizer que seja um fato de todo negativo, não se está
criticando tais acontecimentos sociais, tão somente atestando que o conflito seria inevitável.
Observa-se que nos países ocidentais tanto as instituições quanto os indivíduos estão se
libertando do “peso” da tradição. Fala-se em peso no sentido iluminista para a tradição, pois,
conforme se sabe, no século das Luzes os pensadores formularam novas teorias éticas,
estatais, logo, nesse período a tradição no pensamento era um obstáculo a ser ultrapassado e
destruído. Além disso, nos outros países, sociedades que vinham se mantendo tradicionais por
séculos, começaram a abandonar algumas tradições.34
Na modernidade alterou-se a percepção do tempo e do espaço, pois até esse período o
tempo era medido de acordo com o espaço, ou seja, o local, a comunidade. A contagem do
tempo35 realizava-se de conformidade com a cultura local. Na modernidade, e com a invenção
do relógio mecânico, a contagem do tempo passa a ser uniforme, independentemente do local
em que se encontre, dessa forma há uma correlação entre o tempo e a organização social,
observando-se uma padronização de tempo em várias regiões. Nesse contexto “o
‘esvaziamento do tempo’ é em grande parte a pré-condição para o ‘esvaziamento do espaço’ e
tem assim prioridade causal sobre ele”, pois “a coordenação através do tempo é a base do
controle do espaço”, logo, essa expressão espaço vazio seria a separação entre o espaço e o
lugar. O termo lugar não é sinônimo de espaço, pois ele se refere à ideia de localidade,
pertencimento a determinada comunidade, localizada no mapa terrestre. Porém, nas
sociedades pós-modernas, percebe-se uma cisão entre o espaço e o tempo, tendo em vista que
as relações entre os sujeitos ocorrem em diferentes locais do planeta, de modo que o “lugar se
torna cada vez mais fantasmagórico: isto é, os locais são completamente penetrados e
33
GIDDENS, Anthony. O mundo na era da globalização. Tradução por Saul Barata. Lisboa: Editorial Presença,
2006. p. 47; 49.
34
Ibid. p. 50-51.
35
A noção de tempo reflete diretamente na proteção do patrimônio histórico arquitetônico. Uma abordagem
específica sobre essa questão será realizada na segunda parte do trabalho, a partir das ideias de François Ost.
27
moldados em termos de influências sociais bem distantes deles”. Além disso, o espaço vazio
amplia a sua abrangência na pós-modernidade porque diversos fatores ocasionam a perda da
referência entre o local e o espaço, bem como, a substituição de diversas unidades de espaço.
Por isso, essa separação entre o tempo e o espaço ocorrida na pós-modernidade determina a
mudança de muitas práticas locais, pois as instituições são esvaziadas de sua colocação social,
além disso, em razão da rede de comunicação entre o global e o local, há a alteração da
organização social e da própria rotina das pessoas. Isso permite a formação de uma história
comum da humanidade, o que, antes da modernidade não era permitido, tendo em vista que
não era possível essa conexão entre as diferentes regiões do planeta, assim, a separação entre
o tempo e o espaço passa a ser a responsável por uma noção de universalidade de pensamento
e cultura.36 Os espaços vazios encontram-se presentes em todas as cidades.
Com o deslocamento entre global e local, as normas que passam a regular a sociedade
deixam de passar pelo crivo da regionalidade, eis que são eventos globalmente externos que
passam a criar novas estruturas nos Estados. Isso faz com que os Estados deixem de se
considerar particulares, pertencentes a si próprios, mas sim sistemas que se comunicam
globalmente dentro da sociedade mundial. Referida comunicação opera simultaneamente em
uma proporção global, cuja informação é transmitida de modo que não é possível controlá-la,
nesse contexto, a sociedade mundial não se desenvolve de acordo com metas, mas da história
e dos acontecimentos resultantes dessa rede de informações. Em uma sociedade globalizada,
os limites territoriais deixam de ter sentido, tendo em vista que o que importa é a
comunicação entre os sistemas, logo, o território somente vai exercer a diferenciação entre os
segmentos dentro de um sistema funcional. A par de todo esse acontecimento, não se quer
dizer que as diferenças regionais deixem de ter importância, tendo em vista que a
diferenciação funcional entre os sistemas, justamente tem como resultado o apoio às
diferenças regionais. Claro, que essas diferenças regionais em certos momentos podem
apresentar benefícios ou obstáculos para a diferenciação funcional, pois, podem fomentá-la ou
então prejudicar a autopoiese do sistema.37 O equilíbrio não se torna uma demanda simples,
tendo em vista que cada sistema social particular vai lidar de uma maneira diversa com as
peculiaridades regionais, entretanto, deve-se ter em mente que, mesmo diante da globalização,
a diferenciação funcional pode ser um meio para que a tradição cultural seja preservada.
36
GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. São Paulo: Editora Universidade Estadual Paulista,
1991. p. 26-29.
37
LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. Trad. Javier Torres Nafarrate. México: Univerdad
Iberoamericana/Herder, 2007. p. 640-643.
28
Conforme se observa as dicotomias global/local e tempo/espaço são objeto de
discussões na pós-modernidade, a operacionalização das estruturas sociais sofrem influências
desses paradigmas que ao longo dos anos vêm se modificando.
Explica Boaventura de Souza Santos que o problema fundamental do espaço-tempo é
a “crescente e presumivelmente irreversível polarização entre o Norte e o Sul, entre países
centrais e países periféricos no sistema mundial”, o que ocasiona consequências como “a
explosão demográfica, a globalização da economia e a degradação ambiental”. No que
concerne a globalização da economia observa-se ao longo das últimas décadas uma
transferência da zona de produção de empresas multinacionais para a Ásia, seja devido ao seu
aparato científico, ou mesmo, a diminuição dos custos de produção em razão da contratação
de mão de obra com benefícios para as empresas. Outro fator é a preponderância das
multinacionais no mercado global, cujos impactos para o sistema mundial foram a confusão
do sistema financeiro e o desenvolvimento rápido da comunicação em escala global. O Estado
vai perdendo aos poucos algumas características de sua soberania, tendo em vista que a
comunicação internacional (a notícia) e a moeda, passam a sofrer grande influência de blocos
multinacionais que controlam a informação, enquanto que as multinacionais podem criar
disputas entre os Estados, já que elas possuem grande poder econômico. Ainda, há o avanço
da tecnologia em muitas áreas, como a biotecnologia, indústria. Com todos esses avanços
observa-se que nos últimos anos, muitas foram as mudanças proporcionadas pela globalização
econômica, e ao mesmo tempo, muitas foram as desigualdades sociais disso ocasionadas,
inclusive, as desigualdades entre o Norte e o Sul. 38
Do ponto de vista da economia global Manuel Castells39 aponta para três fatores que a
caracterizam e que se mostram importantes para a compreensão da sociedade pós-moderna:
informacional, seria a informação, o poder do conhecimento gerado por empresas, Estados a
fim de criar, produzir, lançar-se no mercado tecnológico; global, ocorre na medida em que a
informação, o consumo atravessam a fronteira dos Estados-nação; rede, porque as
informações são transmitidas por meio de uma rede global. Precisamente, essa rede de
informações torna-se cada vai mais independente e pode aplicar, negociar a partir de seu
conhecimento tecnológico. Essa nova percepção social é possível por meio da comunicação
que ocorre entre os sistemas, evidente que ela é potencializada pela globalização. Essa
38
SANTOS, Boaventura de Souza. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 9. ed. São
Paulo: Cortez, 2003. p. 286; 289-292.
39
CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. Tradução por Roneide Venancio Majer com a colaboração de
Klauss Brandini Gerhardt. São Paulo: Paz e Terra, 2008. v. 1. (A era da informação: economia, sociedade e
cultura) p. 119.
29
comunicação ocorre em escala global e com isso há troca de informações, o que permite e
impulsiona cada vez mais o crescimento das pesquisas voltadas para a área tecnológica. Isso
por sua vez, demanda a produção de novos riscos sociais, cujas decisões vão ser pautadas pelo
binômio acima referido risco-segurança.
Na modernidade reflexiva enquanto a modernidade em si perde sua força, forma-se
um lapso histórico, não devido à queda do governo ou regimes, mas sim diante dos efeitos
colaterais produzidos pela modernização da sociedade industrial. Essa modernização ao
mesmo tempo em que triunfou na sociedade ocidental permitiu a ocorrência de sua própria
ruína, pois “la modernización secuestra, em virtud de la autonomización del processo de
modernización de la sociedad industrial, sus fundamentos y coordenadas”.40 Logo, a
modernização coloca em risco a própria manutenção do patrimônio histórico arquitetônico,
seja em razão da industrialização, seja no caso da ocorrência de catástrofes ou armas de
destruição em massa. Claro que as catástrofes não possuem como alvo específico a destruição
do patrimônio histórico, isso ocorre como consequência de todo o arrasamento que elas
trazem consigo. Como os estragos decorrentes de catástrofes, por via de regra, ocorrem em
grande escala, o patrimônio histórico arquitetônico vai ser um, dentre as outras características
sociais que serão prejudicadas.
Explica Anthony Giddens41 que o industrialismo42 é a utilização de máquinas para a
produção de bens de consumo, onde a máquina assume o principal papel na cadeia de
fabricação. A sociedade é organizada de acordo com a atividade produtiva, dispondo sobre as
máquinas, matéria-prima, os trabalhadores e outros bens. Além da noção presente na
Revolução Industrial, ele é constante no cotidiano das pessoas, desde o transporte, o consumo
de bens, dentre outros fatores. Assim, as sociedades, especialmente as liberais capitalistas,
existentes na modernidade estão fundadas em uma ordem econômica fortemente competitiva,
cuja demanda por novas tecnologias, acarreta uma inovação constante. A ordem econômica é
compreendida separadamente das demais instituições, possuindo, dessa forma, autoridade
sobre elas. A separação entre o Estado-nação e a economia acarreta a prevalência da
40
BECK, Ulrich. Teoria de la modernización reflexiva. In: GIDDENS, Anthony; BAUMAN, Zigmunt;
LUHMANN, Niklas; BECK, Ulrich. Las consecuencias perversas de la modernidad: modernidad,
contingencia y riesgo. Tradução por Celso Sánchez Capdequí. Barcelona: Anthropos, 1996. p. 223-224.
41
GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. São Paulo: Universidade Estadual Paulista, 1991. p.
61-62.
42
Na modernidade, por vezes o industrialismo é confundido com o capitalismo, por isso, como acima foi
explicada a noção de industrialismo, convém definir o capitalismo como “um sistema de produção de
mercadorias, centrado sobre a relação entre a propriedade privada do capital e o trabalho assalariado sem a
posse de propriedade, esta relação formando o eixo principal de um sistema de classes. O empreendimento
capitalista depende da produção para mercados competitivos, os preços sendo sinais para investidores,
produtores e consumidores.” (Ibid. p. 61).
30
propriedade privada, bem como, a necessidade de acumulação de capital. Nesse cenário tornase difícil a proteção das construções históricas, tendo em vista que quando são analisadas sob
a perspectiva da inovação ou mesmo da produção em massa, as barreiras do lucro/prejuízo
financeiro pesam de maneira inversa à preservação. Claro, há a possibilidade da exploração
turística do patrimônio histórico arquitetônico, entretanto, do ponto de vista do industrialismo,
não há uma correlação entre o modo de produção de vida e a salvaguarda, por isso, na
sociedade capitalista pós-moderna é necessária a adoção de valores da tradição, a fim de se
resguardar dos efeitos decorrentes da modernidade.
Ao longo da formação do Estado-nação, este assumiu diferentes configurações,
decorrentes do período histórico e anseios sociais. Para o presente trabalho importa observar
que, a partir da Segunda Guerra Mundial, impulsionado pelos movimentos operários que
lutavam por melhorias nas condições de trabalho, o Estado Mínimo - caracterizado pela
intervenção mínima do Estado no desenvolvimento econômico, o que garantia aos indivíduos
liberdade e igualdade -, predominante no liberalismo econômico, começa a perder força, para
a formação do Walfare state. Este carrega consigo um intervencionismo por parte do Estado,
de modo que passa a prestar uma assistência aos cidadãos, a fim de efetivar as garantias
anunciadas à sociedade. Como decorrência da própria noção do Estado do Bem Estar Social, a
assistência prestada assume o grau de direito necessário à manutenção da dignidade do
cidadão, o qual poderá reivindicar perante o Estado o seu cumprimento, se tal não ocorrer de
maneira voluntária. Com os movimentos democráticos e a constante busca pela efetivação dos
direitos sociais, o Estado do Bem Estar Social agrega novas necessidades, de modo que dá
lugar ao Estado Democrático de Direito. Essas transformações não seguiram uma cartilha,
mas sim são decorrentes da própria sociedade. Ocorre que com as deficiências em sua
estrutura o Estado não consegue, talvez nunca tenha conseguido, proporcionar de maneira
efetiva aos cidadãos, os direitos previstos como fundamentais.43
No final do século XX, tal panorama passa a ser agravado pela globalização, porque as
estruturas que fundamentavam o Estado (povo-território-soberania) ficam perdidas diante da
complexidade de relações e informações transmitidas entre o mundo. A soberania do Estado
especialmente necessita adaptar-se a ordem econômica mundial, e aos organismos
internacionais, ao quais agregam pensamentos de Estados multiculturais e impõem o seu
43
MORAIS, José Luis Bolzan de. As crises do Estado. In: MORAIS, José Luis Bolzan de (Org.). O Estado e
suas crises. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p.16-19.
31
ordenamento e mecanismos.44 Por isso, a industrialização e próprio avanço tecnológico no
Estado são fenômenos modernos cuja influência permeia a proteção do patrimônio histórico,
no sentido de que trazem um clara perspectiva de produção em massa e constantes
modificações na vida do cidadão.
Devido ao avanço tecnológico não se permite mais que a cultura local fique adstrita
somente às pessoas que residem ou visitam determinadas comunidades, já que o acesso é
permitido a todos os locais, o que deve ser visto com certo cuidado, pois a identidade cultural
de cada povo é diversa, gerando certa dificuldade em decifrar como a cultura de cada povo
está sendo vista ou comparada com as demais. Para Renato Ortiz “têm-se a impressão de nos
encontrarmos diante de um mundo esquizofrênico. Por um lado, pós-moderno, multifacetado
ao infinito, por outro uniforme, idêntico em todos os lugares”.45
Essa nova delimitação territorial dos Estados faz com que a cultura, que até então era
definida pelo meio geográfico ao qual estava localizada em determinada comunidade,
ultrapasse suas fronteiras e influencie nas culturas de outros povos. Ainda, com a
miscigenação da cultura, muitas características singulares a determinada sociedade são
perdidas, eis que muitos costumes perpetuados por gerações deixarão de existir, sem sequer
serem registrados.
A efemeridade faz que os acontecimentos ocorram de forma tão rápida que os
indivíduos têm que acelerar o passo para conseguir acompanhar tantas mudanças. Por outro
lado, as construções históricas têm o poder de remeter o ser humano à paz de sentir-se parte
de uma identidade cultural.
A memória perpetuada nas cidades está intimamente ligada às pessoas que a habitam.
Cada qual vivencia a cultura da cidade de forma diferente, todavia, as construções históricas
remetem os indivíduos à memória coletiva do local e identificam a sociedade.
Considerando que o problema da distribuição da riqueza e, consequentemente, da
sociedade de classes continuam presentes na pós-modernidade, a partir da globalização dos
riscos percebe-se que estes causam certo equilíbrio entre as classes. Isso ocorre tendo em vista
que aquele que produziu o risco ou mesmo lucrou com ele em algum momento será atingido
pelo risco, isso é chamado de efeito bumerangue, ou seja, inclusive os ricos estão sujeitos às
consequências de sua produção. Explica Beck que “esse efeito socialmente circular de ameaça
44
ESPINDOLA, Angela Araújo da Silveira. A crise conceitual e a (re)construção interrompida da soberania: o
fim do Estado-Nação? In: MORAIS, José Luis Bolzan de (Org.). O Estado e suas crises. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2005. p. 50; 52.
45
ORTIZ, Renato. Globalização, modernidade e cultura. In: ORTIZ, Vitor; POSSAMAI, Zita Rosane (Org.).
Cidade e memória na globalização. Porto Alegre: Unidade Editorial da Secretaria Municipal da Cultura, 2002.
p. 13.
32
pode ser generalizado: sob uma égide dos riscos da modernização, cedo ou tarde se atinge a
unidade entre o culpado e a vítima”.46 Por isso que o autor fala em equidade entre as classes,
pois, via de regra, na sociedade industrial, os efeitos colaterais eram somente percebidos pelas
camadas mais baixas da população, ou que por suas condições físicas apresentassem maiores
dificuldades. Com isso não se quer dizer que tal diferenciação e distribuição não equânime
tenham deixado de existir, ainda está presente, mas na sociedade de risco essa diferenciação
torna-se difusa, inclusive, mitigando-se aquela observada entre o culpado e a vítima.
Assim, a linha tênue que comporta a decisão que envolve o risco demanda uma
percepção diferente, a depender de quem o observa. Ou seja, o risco é considerado de uma
maneira por quem tem o poder de tomar a decisão e de outra forma por aqueles que são
vítimas ou sofrem os efeitos desse risco, mesmo que estes sequer tenham conhecimento do
processo decisório envolvido. O risco apresenta então uma decisão ciente das possíveis
consequências que dela poderiam advir, esperando evitar o dano, que caso este se concretize
afetará um número determinado, ou não, de pessoas, independente do poder decisor de cada
uma delas.47
Outra característica do risco e que dificulta a sua discussão entre os Estados é sua
invisibilidade, tudo que é feito pela sociedade está envolto por riscos, produzidos
incessantemente por todos, tal característica impede muitas vezes que seja possível indicar o
seu causador e muitas vezes os riscos sequer são percebidos pelos consumidores, ocasionando
uma imputabilidade civilizacional do risco. Com isso, associado à noção de globalização,
surgem novas desigualdades sociais, uma vez que as populações economicamente mais
pobres são mais suscetíveis ao risco, “existe uma sistemática ‘força de atração’ entre pobreza
extrema e riscos extremos”, isso ocorre por diversos motivos, dentre eles se pode destacar
mão de obra barata, legislação trabalhista pouco protetiva, população com pouca instrução.
Isso faz com que empresas que produzem muito risco instalem-se em países em
desenvolvimento, onde tais problemas estão presentes. Dessa forma, “em escala mundial, isto
ocorre de forma particularmente eloquente: miséria material e cegueira diante do risco
coincidem”. A população com baixa instrução não possui meios de perceber o risco, ao passo
que os regulamentos que deveriam proporcionar-lhes proteção e segurança são mal
46
BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a outra modernidade. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo:
Ed. 34, 2010. p. 43-44.
47
LUHMANN, Niklas. Sociología del riesgo. México: Universidad Iberoamericana/Universidad de Guadalajara,
1992. p. 45; 53
33
elaborados, ou sequer existem, e se existem não são aplicados.48 Devido ao efeito bumerangue
os países ricos acabam importando os riscos que produzem nos países em desenvolvimento,
frequentemente explorando o trabalho das camadas mais baixas da sociedade.
É importante que se explique os efeitos que a globalização apresenta na sociedade de
risco perante as tentativas de proteção do patrimônio histórico arquitetônico, por isso, nesse
momento procurar-se-á adentrar de maneira mais profunda sobre de que modo a globalização
é percebida pela sociedade. Pontualmente, torna-se impossível não falar sobre ela na época
pós-moderna. Ora, a todo o momento, os jornais, noticiários, expõem sobre a globalização,
críticos de econômica, sociologia, e outras áreas estudam continuadamente os seus respingos
sobre a sociedade, capitalismo.49 Todas essas informações confundem a sociedade, pois
mesmo que esta não entenda o processo da globalização, reage aos seus efeitos, uma vez que
as mudanças sociais são vivenciadas numa perspectiva global, e isso é intrínseco à própria
globalização.
Para Boaventura de Souza Santos50 “a globalização é o processo pelo qual
determinada condição ou entidade local estende a sua influência a todo o globo e, ao fazê-lo,
desenvolve a capacidade de designar como local outra condição social ou entidade rival”. Por
isso, quando se explicitam os problemas que a globalização acarreta perante a proteção do
patrimônio histórico, como processo de irritação, por um lado há a homogeinização de
culturas, no sentido de ocorrência de uma uniformização do modo de agir em diferentes
culturas. Porém, por outro lado, permite que se rompam barreiras de espaço, para que outros
indivíduos conheçam as diferentes culturas do mundo, o que anteriormente não seria possível,
em virtude de limites geográficos. De todo o modo, é um fenômeno moderno, cuja ocorrência
apresenta-se inevitável.
48
BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a outra modernidade. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo:
Ed. 34, 2010. p. 49-51
49
É possível observar tal situação nas seguintes notícias: ATAÍDE, Maria Elza Miranda. O lado perverso da
globalização na sociedade da informação. Ciência da Informação. v. 26, n. 3. Brasilia, set./dez. 1997;
MANIFESTANTES protestam contra a globalização e ganância em Davos. O Globo. Rio de Janeiro, 25
jan.2014. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/economia/manifestantes-protestam-contra-globalizacaoganancia-em-davos-11404515#ixzz33ofRL7Nh>. Acesso em: 05 jun. 2014; AS 10 cidades com maior
potencial de globalização. O Globo. Seção Infográficos. Rio de Janeiro, [S.d.]. Disponível em:
<http://infograficos.oglobo.globo.com/economia/as-10-cidades-com-maior-potencial-de-globalizacao-1.html>.
Acesso em: 05 jun. 2014; BARROSO, Margarida Martins. Qualidade do trabalho e globalização: notas sobre
os efeitos ambíguos da sociedade do conhecimento no mundo do trabalho. Iberoamérica Social: Revista-red de
estudios sociales. Sevilla, España, 26 mai. 2014. Disponível em: <http://iberoamericasocial.com/qualidadetrabalho-e-globalizacao-notas-sobre-os-efeitos-ambiguos-da-sociedade-conhecimento-mundo-trabalho/>.
Acesso em: 05 jun. 2014.
50
SANTOS, Boaventura de Souza. Por uma concepção multicultural dos direitos humanos. In: BALDI, César
Augusto Baldi (Org.). Direitos humanos na sociedade cosmopolita. Rio de Janeiro, Renovar, 2004. p. 246-249.
34
De todo o modo, resta ser observado, qual é o tênue limite entre a influência da
globalização e a perda da identidade local, e até que ponto a preservação do patrimônio
histórico permite a manutenção dessa identidade. Partindo da matriz sistêmica, isso é
possibilitado exatamente pelo fechamento operacional e pela abertura cognitiva.51 Estar aberto
ao novo, sem perder sua essência.
Aliás, o termo global é utilizado como contrário ao termo local. Na dialética que se
impõe na modernidade, o processo de globalização prescinde do local, apesar de aquele
somente poder ser compreendido a partir da análise das identidades locais, sendo que estas, da
mesma forma, somente são entendidas quando observadas a partir do ponto de vista global,
pois a análise do todo é fundamental para que se observe o diferente.52 Dessa dialética surgem
fenômenos, cuja denominação foi elaborada por Boaventura de Souza Santos como: localismo
globalizado, que ocorre quando um fenômeno local globaliza-se com sucesso, como as redes
de fast food; globalismo localizado são impactos sofridos em razão de valores transnacionais
introduzidos em uma cultura, que desestruturam as condições locais; cosmopolitismo são os
movimentos que lutam contra as exclusões culturais e discriminações trazidas pelo localismo
globalizado e globalismo localizado, seria uma espécie de solidariedade para preservação das
culturas, diante da globalização; temas que envolvam o patrimônio comum da humanidade,
seriam as questões que envolvem toda a humanidades e por isso precisam ser protegidas e
respeitadas.53
Portanto, o receio ocorre no sentido de que a globalização possa alterar de maneira
significativa e negativa a cultura local e regional. Mas como buscar um equilíbrio? Com a
globalização há uma trama de processos sociais e econômicos que estão sendo alterados, de
modo que essa tentativa de cultivo do Estado-nação acarreta o reflorescimento das identidades
culturais locais, uma vez que “os nacionalismos locais florescem como resposta às tendências
globalizantes, porque os velhos Estados-nações estão a ficar mais fracos”, isso ocorre porque
diante dessa complexa trama, o poder que antes os Estados possuíam para influenciar os
eventos, devido da sua soberania, passa a se difundir na sociedade, uma vez que a
globalização permite que os acontecimentos sejam observados em tempo real.54
51
LUHMANN, Niklas. Introdução à Teoria dos Sistemas. Tradução por Ana Cristina Arantes Nasser. 2. ed.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2010. p. 273-274.
52
ARNAUD, André-Jean. O direito entre modernidade e globalização: lições de filosofia do direito e do Estado.
Tradução por Patrice Charles Wuillaume. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 16-17.
53
SANTOS, Boaventura de Souza. Por uma concepção multicultural dos direitos humanos. In: BALDI, César
Augusto Baldi (Org.). Direitos humanos na sociedade cosmopolita. Rio de Janeiro, Renovar, 2004. p. 246-249.
54
GIDDENS, Anthony. O mundo na era da globalização. Tradução por Saul Barata. Lisboa: Editorial Presença,
2006. p. 24.
35
A formação da sociedade capitalista moderna é um dos fatores da globalização. O
capitalismo teve um papel fundamental para a globalização, pois nos países em que as
ressonâncias da Política não eram possíveis, a ordem econômica adentrou nos diferentes
locais do planeta. O sistema colonial imperialista foi um dos responsáveis para essa extensão
econômica, porém a própria economia foi a responsável pelo seu sucesso, pois “no final do
século XX, quando o colonialismo em sua forma original já quase desapareceu, a economia
capitalista mundial continua a envolver grandes desequilíbrios entre o centro, a semiperiferia
e a periferia”, esses três últimos termos referem-se ao fato de que no sistema mundial
moderno é possível encontrar centros políticos, cuja localização é flexível a depender de sua
influência perante os demais Estados-nação. Assim, o sistema capitalista, juntamente com a
formação do Estado-nação é umas das dimensões em que ocorre a globalização, tendo em
vista de atualmente os principais centros de poder são Estados capitalistas, cujo meio de
produção é o capitalismo. Nesse cenário internacional, algumas companhias multinacionais
controlam os meios de produção em diferentes Estados-nação, o que demanda a atividade
econômica a uma perspectiva global, encontrada em várias regiões do planeta.
Independentemente do poder econômico dessas companhias, os Estados-nação possuem a
soberania nos limites do seu território, mesmo que enfraquecida, além de o governo garantir o
controle dos meios de violência. De modo que, mesmo com o abatimento dos Estados-nação,
sua importância política resta garantida, inclusive a das noções nacionalistas, que
independente da globalização, fundamentam a noção de identidade cultural.55
A globalização aliada ao neoliberalismo decorrente do final da Guerra Fria diminuiu o
poder de regulamentação do Estado-nação, em razão da superação das fronteiras nacionais, o
que causa uma modificação e certo desconforto à noção de soberania estatal. A economia e o
mercado passam a substituir o papel do Estado na regulação social, no sentido de que os
ditames econômicos necessitam ser seguidos para que o Estado mantenha-se estável e de
acordo com o esperado pelos demais.56 No entanto, conforme irá se abordar de maneira mais
aprofundada no capítulo seguinte, não faz parte da observação econômica analisar a
concretização ou não dos direitos sociais, tal cabe à Política, logo, mesmo com as mudanças
trazidas pela globalização, deve ser ressaltado que o Estado-nação vai perdendo aos poucos
55
GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. São Paulo: Editora Universidade Estadual Paulista,
1991. p. 74-75.
56
CARVALHO, Thiago Fabres de. A crise política no mal-estar pós-moderno: (di)lemas e desafios dos Estados
democráticos na contemporaneidade. In: MORAIS, José Luis Bolzan de (Org.). O Estado e suas crises. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 281.
36
seu papel político, quando toma suas decisões baseadas na economia, especialmente, aquelas
que são ditadas por organismos externos.
Nesse sentido, Jacques Généreux57 explica que uma das consequências da
globalização é a perda da força política dos Estados para tomar decisões de interesse coletivo.
Isso porque, as decisões políticas barram em três situações: “a impotência e o imobilismo; o
combate na retaguarda, que consiste apenas em atenuar, dentro do possível, a miséria
crescente, com uma magra distribuição de renda; e a adesão deliberada ao dogma
ultraliberal”. As mazelas sociais refletem a conjugação de todos esses fatores, uma vez que o
Estado não consegue responder aos anseios do coletivo social, em razão de que a globalização
e o sistema econômico o atingiram como um trem em movimento. De todo o modo,
importante ressaltar que é função do Estado tomar decisões coletivamente vinculantes, que
tragam consigo uma perspectiva de evolução para a sua população.
Para Gunther Teubner58 a globalização não se produz através das decisões políticas
internacionais, bem como não pode ser equiparada a uma rede global da economia. Para o
autor ela é um processo policêntrico, onde as atividades ultrapassam o limite regional e
constituem setores globais autônomos. Assim, a globalização não representa essencialmente
um capitalismo globalizado, mas sim a concretização em escala mundial da diferenciação
funcional, no sentido sistêmico de diferença entre os sistemas. Essa noção sistêmica amplia o
sentido de globalização, pois demonstra a existência de diferentes centros que se comunicam
em rede, de forma rápida, refletindo em um aumento da complexidade e do desenvolvimento
da ciência.
Os efeitos da globalização não ocorrem somente no sistema econômico, mas sim em
todos os aspectos da vida cotidiana, como culturais, religiosos. Os sistemas sociais
particulares também sofrem reflexos da globalização, principalmente em seus sistemas
funcionais econômicos, uma vez que estes estão se unindo em um “mega sistema mundial”.
Isso determina com o passar do tempo “a transformação de todos os sistemas sociais
particulares num só sistema, em função da fusão de seus subsistemas particulares”. É
justamente essa troca, informacionalização, comunicação dinâmica trazida pela globalização
na modernidade que vem ocasionando essa transformação nos sistemas sociais. O Estadonação ao internalizar essa situação pode esbarrar em um de seus principais fundamentos, a
territorialidade. Com o descompasso da noção de espaço trazida na pós-modernidade, o
57
GÉNÉREUX, Jacques. O horror político: o horror que não é econômico. 3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 2000. p. 12.
58
TEUBNER, Gunther. El derecho como sistema autopoiético de la sociedad global. Edición de Carlos GómezJara Díez. Bogotá: Universidad Externado de Colômbia, 2005, p. 86-87.
37
Estado-nação precisa adaptar-se à flexibilização que é trazida pela globalização. O sistema do
Direito é um dos que reflete fortes irritações trazidas por ela, pois cada Estado-nação prevê
em sua Constituição de que maneira irá internalizar os acordos internacionais globalmente
vinculantes que são firmados.59
Como o sistema social engloba a ideia de subsistemas funcionalmente diferenciados, a
globalização demonstra que cada vez mais a comunicação exige que os sistemas interrelacionem-se, pois a transmissão das informações por meio de uma rede de comunicação
caracteriza uma sociedade globalmente informatizada. Ocorre que os Estados na pósmodernidade encontram-se em um paradoxo de difícil solução, pois, se por um lado há uma
crescente e interrompível demanda pela internalização de informações internacionais
provenientes de outros sistemas sociais, ocasionando uma perda na força dos efeitos da
soberania do sistema político, por outro lado, os Estados-nação precisam de seu poder estatal
para implementar as mudanças trazidas pelas demandas econômicas.60 Essas duas fontes de
pressão ao Estado determinam a mudança do Estado de Direito e a sua tentativa de adaptação
a todas as irritações trazidas pelos diferentes sistemas sociais, assim, a globalização continua
a transformar os Estados, claro que nem todas as mudanças são negativas à proteção do
patrimônio histórico arquitetônico, mas, elas devem ser implantadas de modo a não destruí-lo,
o papel do sistema jurídico é fundamental na sua conservação.
Para Manuel Castells61 “o sistema politico é destituído de poder, embora não de
influência”, logo, essas pressões vivenciadas pelo Estado dificultam que o sistema político
operacionalize-se segundo a sua estrutura, especialmente porque a globalização econômica
toma para si a ideia de poder, no sentido de determinar a operacionalização dos demais
sistemas. Explicar-se-á melhor sobre o poder no próximo capítulo, mas se deve, desde já
ressaltar que ele é fundamental para que a política atenda aos anseios sociais. O que preocupa
é que o poder migra do sistema político para o econômico, e às vezes, até para o jurídico,
tendo em vista que “o poder, contudo, não desaparece. Em uma sociedade informacional, ele
fica fundamentalmente inscrito nos códigos cultuais mediante os quais as pessoas e as
instituições representam a vida e tomam decisões, inclusive políticas.” Por isso, a
diferenciação funcional é importante na sociedade pós-moderna, não se pode admitir que
outros subsistemas sociais passem a operar com o código binário da política, ou pior, que ela
59
CARVALHO, Cristiano. Teoria do sistema jurídico: direito, economia, tributação. São Paulo: Latin, 2005. p.
301-304.
60
CAMPILONGO, Celso Fernandes. O direito na sociedade complexa. São Paulo: Max Limonad, 2000. p. 117;
120-121.
61
CASTELLS, Manuel. Fim do milênio. Tradução por Klauss Brandini Gerhardt e Roneide Venancio Majer.
São Paulo: Paz e Terra, 1999. p. 424. (A era da informação: economia, sociedade e cultura; v. 3)
38
passe a adotar códigos de outros sistemas sociais. Claro que quando ela se mantém inerte
quanto a concretização dos direitos constitucionais, o sistema jurídico necessita
operacionalizar meios para que eles sejam efetivados perante o sistema social. Sem que isso
determine uma corrupção estrutura, uma vez que o sistema jurídico prevê garantias para
impulsionar o cumprimento das normas.
De todo o modo, a globalização permite a interconexão entre os diferentes modos de
vida de cada comunidade, relacionando-se e modificando a intimidade de todas as pessoas,
aliás, o que muitos consideram íntimo foi criado a partir de tal fenômeno. Ela possui
influência com a tradição, e suas consequências estão presentes nela, tendo em vista que
“tradição diz respeito à organização de tempo e, portanto, também de espaço; é o que ocorre
também com a globalização, exceto pelo fato de que uma ocorre no sentido contrário à outra”,
pois a tradição determina o espaço a partir do controle da noção do tempo, por outro lado, a
globalização realizou uma reformulação do espaço, ampliou a possibilidade de comunicação
em rede, assim, não há uma preocupação com o tempo, entretanto o controle ocorre devido a
uma “ação à distância” por parte da globalização. A primeira fase da globalização relacionase à expansão do pensamento ocidental pelos demais Estados, aliás, nenhuma outra cultura
provocou um impacto tamanho quanto a ocidental. Contudo, essa fase imperialista difundiuse, porque a própria globalização tomou seu próprio caminho, assim, não há mais a
preponderância de pensamentos, mas sim a subversão das estruturas sociais.62
Para explicar essa situação de impacto da cultura ocidental no mundo globalizado,
adota-se a ideia criada pelo universalismo do pensamento ocidental como justificativa para
impô-lo sobre outras culturas. Wallerstein63 explica que no ocidente, especialmente na Europa
e países americanos, criou-se a noção de universalismo, o qual tem sido levantado como
justificação para as políticas desses países sobre aqueles considerados não desenvolvidos,
nesse caso fala-se em propagação de valores universais. O autor refere que os líderes apelam
para três justificativas para defender o universalismo: a política seguida pelos líderes do
mundo pan-europeu promove os direitos humanos e a democracia; apesar do
multiculturalismo, a civilização ocidental é considerada superior às demais, bem como
detentora das verdades universais; a última leva em consideração a condição econômica, no
sentido de que não há como agir, senão de acordo com a modelo neoliberal. Por isso
62
GIDDENS, Anthony. A vida em uma sociedade pós-tradicional. In: BECK, Ulrich; GIDDENS, Anthony;
LASH, Scott. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. Tradução por
Magda Lopes. São Paulo: Universidade Estadual Paulista, 1997. p. 118-119.
63
WALLERSTEIN, Immanuel Maurice. O universalismo europeu: a retórica do poder. São Paulo: Boitempo,
2007. p. 26-27.
39
Wallerstein chama o universalismo defendido pelo mundo pan-europeu como universalismo
europeu, pois apesar da fachada bonita que ele aparenta, não passa de uma forma de manter a
hegemonia do pensamento europeu, o sistema de mundo não-democrático e as desigualdades
sociais, defendendo como um caminho contrário o universalismo universal.
Por meio da globalização, a uniformização alcança novas fronteiras, pois a partir dela
o uniforme propaga-se despercebido entre diferenças culturas. Percebe-se que o uniforme
impõe os seus modelos, sem parecer fazê-lo, sendo que não o faz por meio do direito, mas
sim, de diversas mídias, distribuições de livros pelo mundo, telejornais de todos os Estados
que são controlados por grupo de notícias ocidental. De modo que, ao se compreender o
universal como o uniforme, encontramos uma das maiores barreiras no diálogo
intercultultural, mas também a sua utilidade, para criticar a universalidade distorcida que o
mundo pan-europeu defende, pois “perdemos ao mesmo tempo o que constitui a ajuda – que
não seja apenas preservadora ou museológica – da diversidade das culturas; bem como o
plano – que não seja apenas de imitação ou de assimilação – no qual elas poderiam se
encontrar”.64
Com efeito, a universalização apresenta as características do pensamento moderno
europeu, visto que intenta tornar digna a vida das pessoas em proporções globais, representa a
velha ideia de tornar o mundo melhor. Entretanto, a par da universalização, o fenômeno da
globalização também se manifestou de maneira concreta na modernidade, de modo que ao
invés de tornar a vida das pessoas melhor, como pretendia a universalização, acentuaram-se
os efeitos em escala global da modernidade, não permitindo que os Estados-nação
efetivamente tomassem medidas que dignificassem a vida das pessoas nos diferentes Estados
do planeta, como pretendiam. Isso porque, com o descompasso da noção de tempo e espaço, a
globalização perde o sentido das transformações (no sentido moderno de superação) que as
pessoas gostariam de fazer globalmente, mas sim, demonstra que o que está acontecendo
atualmente reflete a todos, 65 desde aqueles que perdem seus empregos na Europa e América,
devido a expansão das multinacionais na Ásia, até aqueles que vivem em comunidades
afastadas (ou que assim eram, geograficamente) e possuem acesso a informação e interação
mundial devido a rede de comunicação.
64
JULLIEN, François. O diálogo entre culturas: do universal ao multiculturalismo. Tradução por André Telles.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009. p. 32-34.
65
BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999. p. 6768.
40
No campo do Direito, a pós-modernidade ao enfraquecer o Estado-Nação amplia a
ocorrência de movimentos sociais civis, nesse contexto André-Jean Arnaud66 aponta para a
ocorrência de três efeitos: superação de dialéticas presentes na ordem jurídica construídas pela
sociedade moderna, como universalismo/unidade, sociedade civil/Estado; crise do Estado, em
razão do enfraquecimento das instituições modernas, o que demanda a insuficiência da ordem
jurídica ocidental moderna, para resolver os conflitos sociais; a correlação entre o pensamento
pós-moderno e a globalização. O Direito pós-moderno apresenta, assim, uma nova visão e
modo de perceber a sociedade, adotando ao invés de postura de segurança, a de risco, da
mesma forma ao invés de um universalismo, um relativismo cultural.
Dentro do pensamento filosófico encontram-se três correntes relativistas que rechaçam
a perspectiva universal: o relativismo antropológico, o relativismo epistemológico e o
relativismo cultural. O relativismo antropológico aporta-se na ideia de que a sociedade é
multicultural, cujos códigos morais e jurídicos são diferentes, por isso não há como se
prescrever um conjunto de valores e regras que sejam universais. Apesar, dessa justificativa
antropológica, é importante observar que mesmo com o pluralismo cultural existem
necessidades humanas que são comuns em todas as culturas, como o sentimento de afeição, a
necessidade de reconhecimento, de cooperação, a compaixão, logo, tais necessidades seriam
universais. O pluralismo cultural revela que as próprias culturas/sociedades têm posições
conflitantes em relação aos preceitos religiosos e culturais considerados oficiais no seu
ordenamento interno. Isso porque, as culturas não são sistemas fechados, muito antes, pelo
contrário, são influenciáveis, tanto por fatores externos (outras culturas), quanto internos
(forças sociais divergentes da oficial). Por isso, nessa perspectiva antropológica, além do
multiculturalismo, o pluralismo cultural observa que todas as culturas são pluralistas,
apresentado diversas interpretações às práticas culturais. O relativismo epistemológico propõe
que dentro dessa perspectiva de multiculturalismo não é possível formular um discurso ético
que perpasse todas as culturas. Por fim, o relativismo cultural determina que as características
que diferenciam uma cultura de outra, são fundamentais para assegurar o modo com que os
valores serão protegidos pelos direitos humanos.67
Especialmente no campo da antropologia é possível observar e compreender o
comportamento de cada cultura, dentro de cada contexto social e comunitário, por isso as
concepções de correto e incorreto não são as mesmas em todas as culturas, inclusive para
66
ARNAUD, André-Jean. O direito entre modernidade e globalização: lições de filosofia do direito e do Estado.
Tradução por Patrice Charles Wuillaume. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 201-202.
67
BARRETO, Vicente de Paulo. O fetiche dos direitos humanos e outros temas. São Paulo: Lumen Juris, 2010.
p. 240-241.
41
James Rachels “se assumirmos que nossas ideias éticas serão compartilhadas por todas as
pessoas em todos os tempos, estaremos sendo ingênuos”68. É justamente por isso, que a
postura ética diante do relativismo cultural demanda analisar detalhadamente os costumes,
sistema de crenças e a moralidade de cada cultura, bem como se tal moralidade pode ser
considerada objetivamente plausível. Não se pode ser ingênuo diante do relativismo cultural,
pois é fato que ele existe, basta observar os diversos sistemas de crenças que estão presentes
em cada cultura.
Quando se fala em relativismo cultural, no presente trabalho, importante esclarecer
que não se está discutindo a seara de que ele deve prevalecer, ou então que o universalismo
deve combater o relativismo cultural. O relativismo importa porque, como uma das
características da modernidade foi o pensamento universal, na pós-modernidade o Direito
reflete um meio para que cada cultura cogite sobre os riscos e a insegurança e como enfrentálos. O relativismo ocorre porque a sociedade é multicultural, mas como tal, sofrerá as
influências da globalização, porque esta compreende um todo global.
O multiculturalismo aborda, antes de tudo, uma política do reconhecimento. A partir
do século XVIII, o pensamento filosófico passou a apontar que o reconhecimento está
intimamente ligado à noção de identidade, melhor dizendo, o modo de cada ser humano
sentir-se como tal, enquanto ser integrante de determinada cultura. Com a perspectiva do
reconhecimento, observa-se que as pessoas podem reconhecer ou não a identidade de outro
grupo, julgá-lo correto ou incorreto. Ocorre que, por exemplo, quando um grupo dominador
julga incorreto o sistema de crenças e a dignidade do grupo dominado, não os respeita,
enquanto que o grupo dominado, ao ser depreciado, altera o julgamento sobre si mesmo, passa
a sentir-se, consequentemente inferior (deixa de acreditar na sua própria dignidade) e
consequentemente, subjuga-se ou revolta-se contra aquele.69
Desse modo, Taylor70 observa dois níveis para o discurso do reconhecimento, o
primeiro é o nível individual, de uma pessoa reconhecer a sua identidade como um ser que faz
parte e interage com a sociedade. O segundo nível diz respeito a uma política do
reconhecimento, no âmbito do poder público, a qual se fundamentou na concepção de
proteção da dignidade para todos os cidadãos. Para o autor essa política está relacionada a
proteção da diferença, com consequente manutenção do multiculturalismo. A política do
68
RACHELS, James. Os elementos da filosofia moral. Tradução por Roberto Cavallari Filho. Barueri: Manole,
2006. p. 17-18.
69
TAYLOR, Charles. A política do reconhecimento. In: TAYLOR, Charles et al. Multiculturalismo:
examinando a política de reconhecimento. Lisboa: Instituto Piaget, Minigráfica, 1998. p. 45-46.
70
Ibid. p. 57-58.
42
reconhecimento iguala quando diferencia. Claro que devido a homogeneização da cultura, a
identidade local passa por sérios conflitos em razão da globalização, especialmente com a
importação de fatores de outros países.
A cultura na modernidade realiza uma reflexividade quando faz uma auto-análise, bem
como ao aceitar a existência de outras culturas, “es decir, la contigencia de que determinados
items sean específicos de formas de vida concreta.”71 Desse modo, a cultura depende que cada
sistema social organize a sua existência de acordo com a sua ordem normativa e política. A
contingência é característica da sociedade moderna e abriga a dependência que os sistemas
sociais possuem com a sua operação interna para que se mantenha a cultura. De modo que as
normas, valores, decisões tomadas pelos sistemas sociais necessitam estar de acordo com a
cultura do Estado-nação, do contrário não se respeitaria nem a contingência, nem mesmo as
outras culturas, em razão do crescimento dos pensamentos universais.
Explica Stuart Hall72 que a crise de identidade vivida pelo sujeito na pós-modernidade
ocorre porque anteriormente a sua identidade era estável, una, entretanto, atualmente se torna
um emaranhado de várias identidades culturais, as quais muitas vezes são contrárias entre si.
Tal processo demanda das mudanças ocorridas nas estruturas sociais, impulsionadas pela
globalização, ou seja, foram justamente as transformações modernas que desprenderam o
indivíduo da estabilidade propiciada pela tradição e estruturas sociais.
A identidade cultural está intimamente ligada à cultura local do indivíduo. As culturas
nacionais “são compostas não apenas de instituições culturais, mas também de símbolos e
representações. Uma cultura nacional é um discurso – um modo de construir sentido que
influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos”.
Logo, as culturas nacionais dão o sentido a uma nação, a qual o indivíduo pode identificar-se
construindo, assim, a sua identidade.73 O patrimônio histórico arquitetônico é um dos
símbolos de identidade cultural, eis que remete o individuo a história da nação e da
comunidade que a formou.
A expressão cultura emerge como um conjunto de características históricas, costumes,
construções, vestimentas que são peculiares a determinado grupo de indivíduos. Decorre da
cultura que o homem traz a forma com que ele verá o mundo, podendo depreciar o que não é
71
LUHMANN, Niklas. La contignencia como atributo de la sociedad moderna. In: GIDDENS, Anthony;
BAUMAN, Zigmunt; LUHMANN, Niklas; BECK, Ulrich. Las consecuencias perversas de la modernidad:
modernidad, contingencia y riesgo. Tradução por Celso Sánchez Capdequí. Barcelona: Anthropos, 1996. p.
173.
72
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução por Tadeu Silva, Guaracira Lopes Louro.
7. ed. Rio de janeiro: DP&A, 2002. p. 12; 25.
73
Ibid. p. 50-51.
43
normal onde vive. Dessa forma, a cultura é um meio de diversificar um grupo de pessoas das
demais sociedades, especialmente através do tempo e da educação costumeira que é passada
pelas gerações. Transparece ainda, ao analisar-se a cultura, uma espécie de união que está
presente entre os indivíduos na qual ela se manifesta, sendo que com essa união a sociedade
visa caminhar em direção ao futuro, mas para que isso aconteça não pode olvidar o âmago
cultural que prescinde aos anseios sociais. Para os fins do presente trabalho, o que deve ser
ressaltado é que a cultura decorre da história e organização de cada Estado-nação, a qual será
responsável por criar a identidade cultural que lhe é própria e determina a ocorrência do
multiculturalismo no mundo. Desse modo, em cada Estado há um tratamento diferente à
proteção do patrimônio histórico, bem como, uma maior ou menor valorização do meio
ambiente cultural.
Para Edgar Morin, cultura é “um sistema que faz comunicar – em forma dialética –
uma experiência existencial e um saber constituído”. Significa dizer que o saber relacionado
entre os indivíduos somente pode ser entendido por aqueles que possuem o código, aqueles
que compõem determinada cultura. Esse saber permite desenvolver e perpetuar as práticas
sociais, e como consequência, organiza a sociedade. Logo, a experiência pode ser entendida
como uma formulação da existência, sendo que ao mesmo tempo fornece a essa categoria os
parâmetros que asseguram a conduta social. Essa definição do autor pode ser aplicada a toda
análise que se faz sobre a cultura, desde a mais restrita, àquela voltada ao parâmetro global,
pois, permite entender de que forma a experiência cultural apresenta uma relação com o povo
onde está inserida. 74
A cultura é formadora do modo de pensar, relacionar, agir e preservar ou não a história
de um local, criando a noção de valor, com a qual cada indivíduo olhará de forma diferente
um patrimônio histórico.75 Inclusive, com o olhar aguçado sobre a cultura regional pode-se
visualizá-la nas construções histórico arquitetônicas de uma determinada sociedade. Uma das
formas de exteriorização da cultura local é justamente através do seu patrimônio histórico.
74
MORIN, Edgar. Cultura de massas do século XX: necrose. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001.
(O espírito do tempo; v. 2) p. 77-78.
75
A cultura, o modo de agir diferenciado e local ocorre porque o indivíduo não pode ver, senão o que seu
território mental ou conceitual permite que veja, dessa forma, “o homem sempre olhou a realidade através de
diferentes perspectivas. Exceto quando se tratava de pensamentos provenientes de sabedorias e de tradições
milenares possuidoras de uma estabilidade que permitia a tradução dos conceitos na vida espiritual, social,
econômica e cultural. O pensamento moderno passou pelas mutações, pela aceleração do tempo, e os
paradigmas ou dogmas, ou até mesmo as modas da atualidade, substituem o pensamento e são,
provisoriamente, o palco de violentos confrontos.” (RANDOM, Michel. O Território do Olhar. In: CETRANS.
Educação e transdisciplinaridade, II. São Paulo: TRIOM, 2002. p. 35)
44
Para Tomaso Montanari76 o patrimônio histórico, como igrejas, praças, palácios
cívicos foi construído para pertencer a todos, “la loro funzione era permettere ai cittadini di
incontrarsi su um piano di parità”, o patrimônio histórico é um meio de formar a identidade
cultural, bem como a ideia de comunidade. O que permite que se enraízem na população as
noções de política e democracia.77 Nesse sentido, na cidade de Bento Gonçalves, um local que
pode ser citado para explicitar a noção de comunidade, é o prédio da Prefeitura Municipal
localizado na Via del Vino, uma vez que além de ser histórico, nesse local, o poder público
municipal seguidamente promove eventos, como feiras, cinema ao livre. Abaixo uma
fotografia:
Figura 1 – Via del Vino e sede da Prefeitura Municipal de Bento Gonçalves
Fonte: Imprensa Prefeitura de Bento Gonçalves78
Uma valorização da nacionalidade aliada à consciência da importância do que os
antepassados construíram são formas de que valores democráticos e de identidade nacional
continuem presentes, ainda que a globalização opere os seus efeitos. É necessário que não se
76
MONTANARI, Tomaso. Le pietre e il popolo: restituire al cittadini l’arte e la storia dele città italiane. Roma:
Minimum fax, 2013. p. 10.
77
O sentido de democracia permite que a população exija o cumprimento dos seus direitos individuais, conforme
Explica Alain Touraine (O que é a democracia? Petrópolis, RJ: Vozes, 1996. p. 24-26): “a democracia não é
somente um conjunto de garantias institucionais, ou seja, uma liberdade negativa. É a luta de sujeitos,
impregnados de sua cultura e liberdade, contra a lógica dominadora dos sistemas [...] O regime democrático é a
forma de vida que dá maior liberdade ao maior número de pessoas, que protege e reconhece a maior
diversidade possível. [...] O que define a democracia não é, portanto, somente um conjunto de garantias
institucionais ou o reimo da maioria, mas antes de tudo o respeito pelos projetos individuais e coletivos, que
combinam a afirmação de uma liberdade pessoal com o direito de identificação com uma coletividade social,
nacional ou religiosa particular. A democracia não se apóia somente nas lesias, mas sobretudo em uma cultura
política.”
78
PORTAL Adesso. Seção Geral. Disponível em: <http://www.portaladesso.com.br/noticia/623/natal-bentoapresentacoes-diarias-na-via-del-vino.html>. Acesso em: 01 jun. 2014.
45
siga ao pé da letra o que foi dito ou feito por gerações anteriores, até porque nem tudo foi
realizado de maneira correta, por isso existe a teoria da evolução, todavia o conhecimento
dessa história é forma de aproximação que caracteriza a identidade cultural nacional.
Mesmo que exista uma única construção histórica ou um conjunto de edifícios
históricos, esses locais contêm o cerne de muitos acontecimentos, bem como os motivos de
determinados costumes. Os referenciais formadores da identidade cultural são aqueles valores
processados e ramificados na cultura de um povo, que demonstram a história, a luta, os
acontecimentos, as diferentes imigrações recebidas ou mesmo a estabilidade e durabilidade de
determinada origem durante gerações.
Em uma visão sistêmica sobre a cultura aponta Niklas Luhmman79 que no século
XVIII a noção de cultura, para acompanhar a modernidade, toma uma nova forma, tendo em
vista que passa da noção de individualidade para uma auto-observação pelo indivíduo da sua
própria particularidade, assim, ele pega para si a cultura da forma que ela nele se adéque. A
cultura é uma definição analisada no sistema. Demonstra uma determinada representação de
mundo, sem excluir as demais, tendo em vista que as demais manifestações culturais podem
caracterizar-se de modo diferenciado. Cada manifestação cultural implica a sua comparação
com as outras e o relativismo histórico, a fim de que determinada cultura encontre-se dentro
dessa conjuntura. Logo, diante dessa relatividade cultural, esperava-se que a observação das
diversas culturas determinasse a ocorrência de implicações concordantes entre elas. Mas essa
comparação e a retomada histórica durante a modernidade não trouxe tais resultados e a
retrospectiva histórica foi abandonada. O que não quer dizer que o conceito de cultura foi
abandonado, mas sim que ele permanece discutível.
Ainda, a cultura é uma forma encontrada pela modernidade para discernir sobre o que
é ou não verdade, pois com ela se mantêm firmadas as operações sociais dentro de uma
perspectiva temporal, a perspectiva da modernidade. Portanto, elaboram-se respostas para
abranger a complexidade do sistema social: “são respostas que se mantêm contrafaticamente e
fazem com que a complexidade do mundo não apareça”.80
Como a globalização representa um descompasso entre a noção de tempo-espaço isso
acaba por afetar as identidades culturais, uma vez que a cultura nacional, como sistema de
representação do local, ordena-se de acordo com tal noção, por exemplo, um brasileiro
79
LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. Trad. Javier Torres Nafarrate. México: Univerdad
Iberoamericana/Herder, 2007. p. 698-699.
80
ROCHA, Leonel Severo. Observações sobre a observação Luhmanniana. In: ROCHA, Leonel Severo; KING,
Michael; SCHWARTZ, Germano. A verdade sobre a autopoiese no direito. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2009. p. 22.
46
possuiria identidade nacional voltada ao Brasil, a partir dos valores da nação brasileira.
81
Convém destacar que referido exemplo, não é mais tão simples, em razão dos fatores
ingressam midiaticamente a cultura brasileira. A importação de valores, hábitos, gostos,
vestimentas ocasiona uma troca entre as culturas, o que fragmenta a velha ideia de identidade
cultural una. Apesar do que foi dito, merece ser observado que a globalização não traz apenas
efeitos negativos sobre o sujeito, mas sim, uma abertura do conhecimento e a velocidade de
transformações. O que tem que ser observado é até que ponto a perda da identidade cultural
leva o sujeito a não defender a proteção do patrimônio histórico arquitetônico, devido a todos
os fatores anteriormente apontados. Pois, uma noção muito fechada sobre a cultura
demandaria em desprezo e perseguição com aquilo que não se encaixa em referida cultura.
Logo, ao mesmo tempo em que determinada localidade abre-se para o global necessita
proteger a sua história.
Na pós-modernidade, com a “ampla desestruturação das organizações, deslegitimação
das instituições enfraquecimento de importantes movimentos sociais e expressões culturais
efêmeras”, a identidade é apontada pela doutrina como um dos modos a fim de possibilitar
que o indivíduo encontre um significado. Em uma sociedade de rede, que se caracteriza pela
transferência de informação, a identidade permite que as pessoas ajam de acordo com o que
elas são ou acreditam que sejam ao menos.82 Em uma sociedade de rede, o patrimônio
histórico não pode ser esquecido, tendo em vista que é um dos meios de conectar o indivíduo
a noção de identidade.
Na concepção das identidades territoriais, observa Manuel Castells83 um
desaparecimento da comunidade, especialmente em razão da urbanização e suburbanização,
além desses fatores o próprio descompasso tempo-espaço ocasiona essa falta de ânsia
comunitária. Para o autor, o retorno da noção de comunidade precisa de mobilização social,
que os indivíduos da comunidade estejam engajados em movimentos, em consequência
refletirão em prol da própria comunidade. Os movimentos sociais foram justamente os meios
encontrados pelos indivíduos para que manifestassem o seu descontentamento diante das
ocorrências da modernidade e pós-modernidade, do informacionalismo, capitalismo, enfim,
aos fenômenos que estavam aos poucos ocasionando a perda da identidade cultural local. Eles
81
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução por Tadeu Silva, Guaracira Lopes Louro.
7. ed. Rio de janeiro: DP&A, 2002. p. 70.
82
CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. Tradução por Roneide Venancio Majer com a colaboração de
Klauss Brandini Gerhardt. São Paulo: Paz e Terra, 2008. v. 1. (A era da informação: economia, sociedade e
cultura) p. 41.
83
Id. O poder da identidade. Tradução por Klauss Brandini Gerhardt. 3. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002. v. 2.
(A era da informação: economia, sociedade e cultura) p. 78-80.
47
promovem uma luta pela preservação da história da comunidade, representando um novo
significado histórico, uma vez que a história que é reconhecida pela comunidade fica
protegida.
Não são somente as percepções da identidade que são afetadas pela pós-modernidade,
o próprio relativismo importa uma diferença na percepção sobre o tempo, pois a modernidade
“dissolvia o tempo num perpétuo presente, sem passado nem futuro, visto que os princípios
inscritos no coração do indivíduo são eternos.” Logo, na visão pós-moderna, as leis não são
elaboradas para que durem para sempre, mas sim, devem ser interpretadas como uma
construção legislativa que deve atender aos anseios de cada comunidade, a depender da
realidade social, já que a globalização, apesar de apresentar efeitos globais, demanda que as
consequências sejam diversas em cada sociedade.84 Por exemplo, existem cidades onde a
proteção do patrimônio histórico está arraigada na vontade dos indivíduos, logo, a legislação
não necessita ser tão rígida, porém nas cidades onde a consciência sobre a salvaguarda não é
efetiva, o Poder Público necessita intervir com mais vigor.
Talvez a noção de consciência e preocupação com a proteção do patrimônio histórico
seja um meio para que se altere o contexto em que tal preservação vem ocorrendo. Na
sociedade de risco a consciência individual toma uma nova dimensão, pois o próprio agir
humano redefiniu a sua responsabilidade ética. Como muitas das consequências e riscos
vivenciados pela sociedade decorrem de atos humanos no planeta, da produção industrial e do
desenvolvimento tecnológico, o agir humano toma uma nova perspectiva ética. Situações que
anteriormente eram percebidas como exteriores à vontade humana, onde a sociedade limitavase a aceitar as consequências de forma passiva, geralmente reportando-se a noção de destino,
no novo contexto social, os riscos são, ao menos indiretamente, decorrentes da existência
humana. É “como se as fronteiras do natural e do artifício se tivessem progressivamente
esbatido, e que tudo ou quase tudo do clima à diversidade biológica, estivesse, a partir de
agora, em nosso poder”, ao mesmo tempo em que está em nosso poder, também está presente
o dever de proteção. Assim, muitos atos que anteriormente eram socialmente aceitos, não
passam mais pelo crivo social, em razão de suas consequências para o planeta, o que cria uma
imputabilidade ética a partir de um vínculo observado entre: um ato de um cidadão em
particular que ganha uma proporção gigantesca, difundindo o risco de maneira global, e pior,
por vezes riscos invisíveis e difusos; uma conexão entre o local e os efeitos para as presentes e
futuras gerações; analisar se o agente possuía conhecimento anterior acerca dos efeitos
84
ARNAUD, André-Jean. O direito entre modernidade e globalização: lições de filosofia do direito e do Estado.
Tradução por Patrice Charles Wuillaume. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 210-211.
48
negativos do risco. Evidente que ocorre um alargamento nos padrões de responsabilidade,
sendo que os juristas têm presente que a noção de responsabilidade, seja partilhada ou
objetiva, progressivamente ampliou o seu conceito para abarcar situação que envolvem a
noção do risco.85
A responsabilidade pelo risco ganha outra dimensão, em primeiro lugar, passa-se a
imputar efetivamente quando da ocorrência do risco, sem que se necessite de um dano,
outrossim, a imputabilidade ganha uma noção ética, pois o agir humano não mais pode ser
inconsequente, justamente essa inconsequência deu vazão a sociedade de risco, de modo que a
punição a quem não age eticamente é justificada em prol da defesa do meio ambiente para as
presentes e futuras gerações. Aliás, especialmente quando há a noção de que o agir social trará
consequências irreversíveis à sociedade sem que saiba a sua efetiva magnitude.
Nesse contexto de uma sociedade complexa, ao se preocupar com a gestão do risco, a
ecologia “faz perguntas profundas a respeito dos próprios fundamentos da nossa visão de
mundo e do nosso modo de vida modernos, científicos, industriais, orientados para o
crescimento e materialistas”, uma vez que na visão ecológica “nossos relacionamentos uns
com os outros, com as gerações futuras e com a teia da vida da qual somos parte”,86 é essa
ideia de intergeracionalidade que vai fazer com que a sociedade reflita acerca do risco sob a
óptica da preocupação com o futuro. Portanto, dentro dessa perspectiva de que o risco impera
na sociedade reflexiva, o Direito necessita atentar à probabilidade de que a destruição do
patrimônio histórico arquitetônico possa representar um risco de perda de identidade cultural.
85
OST, François. A natureza à margem da lei: ecologia à prova do direito. Lisboa: Instituto Piaget, 1995. p. 304305.
86
CAPRA, Fritof. A teia da vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. Tradução de Newton
Roberval Eichemberg. 14. ed. São Paulo: Cultrix, 2008. p. 26.
49
2.2 A CONSTRUÇÃO SOCIAL DO RISCO E A SUA PERCEPÇÃO PELO SISTEMA
DO DIREITO: AS DIFICULDADES ENTRE AS RESSONÂNCIAS DOS
SISTEMAS DA POLÍTICA E DA ECONOMIA
A sociedade não é nem insensível nem mais importante do que o
ambiente que a circunda. É diferente. Sem sistemas biológicos e
psíquicos ou sem a natureza a sociedade não existiria. Celso
Fernandes Campilongo
Pontualmente, o patrimônio histórico está inserido no patrimônio cultural
constitucionalmente preservado. Tal noção integra o meio ambiente cultural, o qual é
formado,87 nas palavras de José Afonso da Silva pelo “patrimônio histórico, artístico,
arqueológico, paisagístico, turístico, que, embora artificial, em regra como obra do Homem,
difere do anterior [o autor refere-se ao meio ambiente artificial] (que também é cultural) pelo
sentido de valor especial que adquiriu ou de que se impregnou”.88
O sistema do Direito deve proteger esses bens históricos que compõem as cidades. Se
a legislação brasileira não basta para protegê-los – e de fato não basta, visto que a cada dia são
demolidas construções históricas em face da omissão do Estado – há de se buscar novos
caminhos para a sua proteção, nesse sentido explica Délton Winter de Carvalho89 que “o
sentido jurídico de meio ambiente decorre das construções internas ao Direito em observação
ao seu meio envolvente (extra-sistêmico) e às relações homem-natureza”, de modo que
quando o Direito estabelece uma visão de meio ambiente e patrimônio histórico “torna
possíveis as tomadas de decisões e a operacionalidade do sistema em relações pertinentes aos
problemas ambientais”.
87
“Do ângulo da nossa sistemática constitucional, foi a partir da Carta Política de 1934 (arts. 148 a 158), que se
estabeleceram princípios e formas constitucionais específicas sobre a cultura, embora, é claro, existissem
disposições legais dispersas, na legislação ordinária, acerca da matéria. Inicialmente, os assuntos relacionados
à cultura eram tratados pelos órgãos federais, estaduais e municipais, incumbidos das tarefas educacionais, ou
seja, Ministério da Educação e Cultura, bem como Secretarias de Educação e Cultura, quer no âmbito estadual,
quer municipal. Posteriormente, desdobrou-se o Ministério da Educação e Cultura em Ministério da Educação
e Ministério da Cultura, o mesmo ocorrendo com as respectivas Secretarias, no âmbito estadual e municipal.
Dispôs a Constituição federal de 1969 que o ‘amparo à cultura é dever do Estado’ (art. 180). A nova Carta
Política estabeleceu disposições análogas a respeito (art. 215, §§ 1º e 2º). Especificou-se ainda que constituem
patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em
conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da
sociedade brasileira, incluídos aqueles mencionados no texto constitucional (art. 216, I a V)”. (SOARES,
Orlando. Comentários à Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 05.10.1988. Rio de
Janeiro: Forense, 1996-1997. p. 682)
88
SILVA, José Afonso da. Direito ambiental constitucional. 6. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2007. p. 21.
89
CARVALHO, Délton Winter de. A formação sistêmica do sentido jurídico de meio ambiente. Revista de
Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito. São Leopoldo, p. 31, jan./jun. 2009.
50
Conforme se percebe o sistema do Direito90, possui um meio para decodificar o
patrimônio histórico arquitetônico em seu próprio sistema, além de garantir a sua proteção
constitucionalmente. Isso porque cada operação de um sistema precisa estar centrada nos seus
pressupostos, os quais posteriormente não poderão ser colocados a prova, sob pena de o
sistema perder-se em si mesmo. Ao mesmo tempo em que o sistema possui as suas premissas,
mantém a possibilidade de operar com outras premissas que não fazem parte do seu sistema,
desde que isso seja internalizado de acordo com sistema do Direito e que não o corrompa.91
Porém, a proteção que tanto se espera está longe de acontecer, pois as cidades não
conseguem preservar o patrimônio que ali se encontra, uma vez que ao invés de resguardar
suas origens, identidade, aprovam leis ou medidas que beneficiam a construção de edifícios,
ou mesmo a demolição de imóveis antiquíssimos, ocorrendo a adoção do código do sistema
da Economia92, no lugar da manutenção do funcionamento interno do sistema do Direito. Do
mesmo modo, quando o sistema da Política necessita tomar decisões coletivamente
vinculantes sobre a proteção esbarra nas mesmas dificuldades enfrentadas pelo Direito. Para
tentar contextualizar tal situação utiliza-se o seguinte exemplo hipotético, os proprietários de
um imóvel, onde está construído uma casa histórica resolvem empreender no local um
shopping center. A construção histórica está obviamente ali edificada há anos, mas o Poder
Público não promoveu o seu tombamento. Na concepção do Município o imóvel não foi
tombado porque a construção de um edifício comercial traria lucro para a cidade, ao invés que
a sua preservação traria prejuízos, eis que demanda a manutenção e restauração do edifício de
tempos em tempos. Assim, o Ministério Público ou o órgão municipal de proteção do
patrimônio histórico ingressa com uma medida para impedir a sua demolição, entretanto o
julgador, apesar da normativa constitucional e legislação esparsa determinarem a proteção do
patrimônio histórico, autoriza a sua demolição porque a obra não estava tombada,
90
Quando se refere a sistema do Direito é importante que se explique a extensão do sistema do Direito,
conforme explica Giancarlo Corsi (GLU: glosario sobre la leoria social de Niklas Luhmann. Tradução por
Miguel Romero Perez e Carlos Víllalobos. México: Anthropos, ITESO, Universidad Iberoamericana, 1996. p.
54), na Teoria dos sistemas sociais: “El derecho es un sistema funcionalmente diferenciado de la sociedad
moderna [véase diferenciación de la sociedad], cuya función es mantener estables las expectativas [véase
expectativas] aun en caso de que resulte vanas. Dichas expectativas son normas que permanecen estables
independientemente de su eventual violación.”
91
LUHMANN, Niklas. A restituição do décimo segundo camelo: do sentido de uma análise sociológica do
direito. In: ARNAUD, André-Jean; LOPES JR., Dalmir (Org.). Niklas Luhmann: do sistema social à sociologia
jurídica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 34-35.
92
Refere Délton Winter de Carvalho (A formação sistêmica do sentido jurídico de meio ambiente. Revista de
Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito. São Leopoldo, p. 29, jan./jun. 2009.) sobre a
complexidade envolvendo os sistemas do Direito, Economia e Política: “A complexidade que envolve as
questões ambientais é potencializada em razão de o sistema social operar em uma unidade de reprodução
(comunicação) diversa daquela que constitui a unidade do ambiente ecológico-ambiental (vida). Portanto, os
sistemas sociais (Direito, Economia e Política) podem apenas produzir uma observação de seu meio envolvente
(seja ele social ou extra-social)”.
51
provavelmente porque não se reconhecia nela o valor histórico e cultural e analisando-se o
custo benefício seria mais benéfico ao proprietário a venda do terreno, permitindo a
construção do shopping center.
A comunicação entre os sistemas é uma das bases da teoria dos sistemas,
especialmente porque são operativamente fechados e cognitivamente abertos. No caso da
Política e do Direito observa-se que ao fim e ao cabo a Política tem a função de criar o
Direito, desde que ela o faça de acordo com ele, uma vez que a legislação promulgada tem por
base uma decisão política, “considera-se a introdução de novo direito ou a modificação do
antigo como contingência; contudo, absorve-se essa contingência em um sistema funcional
diferente: na política”. O sistema da Política, entretanto, limita-se em seguir as regras que o
Direito determina para que seja criado, do mesmo modo ele somente pode ser modificado
dentro das restrições que lhe são impostas.93 Por isso, a comunicação entre os sistemas sociais
é fundamental para que se mantenham operando e estabilizem a sua estrutura. Aliás, conforme
foi referido no capítulo anterior, a comunicação é a forma com que as informações são
transmitidas na sociedade em rede, de maneira global.
Nesse sentido, no Estado de Direito, enquanto os subsistemas sociais comunicam-se,
ele depende do Direto, tanto para elaborar as suas normas, quanto para atuar por meio dos
seus órgãos e agentes. O Estado depende do Direito para que exerça as suas funções. Disso
decorre que o Estado somente pode agir de acordo com o Direito, os atos dos governantes não
podem ser contrários à legislação, sob pena de que o Poder Judiciário os anule. Assim, se por
um lado o sistema político possui o poder e a função de elaborar as leis, por outro lado,
depende do Direito para elaborá-las, tendo em vista que elas não poderão ser contrárias a
forma e garantias fundamentais já previstas, “o Estado de direito é informado e conformado
por princípios radicados na consciência jurídica geral dotados de valor ou bondade
intrínsecos”. Leis que são contrárias às garantias fundamentais previstas do Estado não
seguem o Estado de Direito, e, portanto sofrem uma regulação pelo sistema jurídico. 94
No capítulo anterior chamou-se a atenção ao fato de que na modernidade há uma
grande tendência a formação de pensamentos universais, como forma, às vezes, de
uniformização das culturas. Ao tratar do Estado de Direito, Canotilho95 questiona-se se ele
seria uma criação da política ocidental e até que ponto poderia ser tratado com caráter de
93
LUHMANN, Niklas. A restituição do décimo segundo camelo: do sentido de uma análise sociológica do
direito. In: ARNAUD, André-Jean; LOPES JR., Dalmir (Org.). Niklas Luhmann: do sistema social à sociologia
jurídica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 39.
94
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estado de Direito. Lisboa: Gradiva, 1999. p. 49-51.
95
Ibid. p. 19-21.
52
universalidade. Para o autor o “Estado de direito perfilar-se-ia, assim, como um paradigma
jurídico-político da cultura ocidental e do Estado liberal do Ocidente”, isso porque foi no
Ocidente que o Estado de Direito conjugou os seguintes fundamentos: “governo de leis (e não
de homens!) gerais e racionais, organização do poder segundo o princípio da divisão de
poderes, primado do legislador, garantia de tribunais independentes, reconhecimento de
direitos, liberdades e garantias, pluralismo político”, além é claro, do “funcionamento do
sistema organizatório estadual subordinado aos princípios da responsabilidade e do controlo,
exercício do poder estadual através de instrumentos jurídicos constitucionalmente
determinados”. Entretanto, assim, como anteriormente não foi possível manter essa ideia de
universalidade, da mesma forma, o Estado de direito, apesar de efetivamente constituir-se
uma forma de pensamento ocidental carregado de valores e princípios de justiça e de paz,
apresenta uma forma de pensamento eficaz, que ao mesmo tempo exige a série de
pressupostos acima referidos para que seja possível de concretização. Assim, comparações
com outros Estados tendem a simplificação de ideologias, onde a análise do sistema político e
jurídico interno torna-se muito vaga. Cada Estado deverá regular-se conforme a comunicação
entre seus sistemas, de modo que a sua operação seja fechada e ao mesmo tempo
cognitivamente aberta.
Tendo por base que se considera a sociedade96 como um sistema, onde operam os
sistemas funcionais, dentre eles o do Direito. O que o determina é a diferença entre ele e o
entorno97. O sistema apresenta um fechamento operativo para que construa sua própria
complexidade, assim, suas operações remetem a sua própria rede de operações, produzindo o
96
Para explicar a sociedade mundial como um sistema Niklas Luhmann (Sistemas sociales: lineamentos par a
uma teoria general. Tradução por Silvia Pappe e Brunhilde Erker. México: Alianza, Universidad
Iberoamericana, 1991. p. 409) assim refere “la sociedad a pesar y gracias precisamente a su autocerradura, es
un sistema en el entorno. Es un sistema com límites constituidos por la sociedad misma, que separan la
comunicación de todos los datos y acontecimientos no comunicacionales, es decir, no pueden fijarse ni
territorialmente ni grupos de personas. En la medida en que se aclara este principio de los límites
autoconstituidos, la sociedad entra en un proceso de diferenciación. Sus resultados se vuelven independientes
de las características naturales de su procedência, montañas, mares, etcétera; y como resultado de la evolución
finalmente sólo hay uma sociedad: la sociedad mundial, que incluye toda la comunicación y sólo esta, y que así
limites completamente claros.”
97
Explica Giancarlo Corsi (GLU: glosario sobre la leoria social de Niklas Luhmann. Tradução por Miguel
Romero Perez e Carlos Víllalobos. México: Anthropos, ITESO, Universidad Iberoamericana, 1996. p. 149)
sobre o entorno e sua diferença em relação ao sistema: “el entorno, por otra parte, nunca es "en sí" entorno,
sino siempre es entorno de un sistema del cual constituye lo "externo" (todo lo demás). Dado un sistema, todo
lo que no entra a e nél pertenece globalmente al entorno, que por lo tanto es distinto para cada sistema. El
entorno está constituido en efecto de manera residual por las operaciones de un sistema (como "correlato en
negativo": entra en todo lo que no pertenece al sistema), y de suyo no es un sistema: no dispone de operaciones
propias ni de una propia capacidad de actuar. La atribución [véase atribución] al entorno es una estrategia
interna del sistema para la gestión de la propia complejidad. El entorno no está, como el sistema, demarcado
por límites, sino por horizontes que no pueden nunca ser nascendidos en cuanto que se expanden con el
crecimiento de la complejidad del sistema: el horizonte se retira en la medida en que nos acercamos a él”.
53
sentido para si mesmo. Entretanto a abertura cognitiva ocorre na medida em que o sistema
não se torna incomunicável com o seu entorno, uma vez que existem relações entre eles, por
isso o sistema necessita do seu entorno. Claro que as informações que vem do entorno ficam
sujeitas a clausura operativa do sistema.98 A complexidade, antes referida, “no es uma
operación: no es algo que um sistema ejecute ni que suceda en él, sino que es um concepto de
observación y de descripción – incluída la autoobservación y la autodescripción”,99 seria o
“excesso de possibilidades” ,100 as diversas relações possíveis que podem ser feitas entre os
sistemas.
No sistema do Direito, enquanto autopoiético,101 as comunicações jurídicas têm
sempre duas funções “ser factores de producción y ser conservadores de las estructuras”, por
isso não se pode dizer que as normas são de uma qualidade distinta das comunicações. As
comunicações devem respaldar e serem respaldadas pelo Direito. Por isso os sistemas
autopoiéticos são sistemas históricos e remontam ao estado anterior ao que tenham criado,
“toda repetición es custión de uma fijación artifical”. Outrossim, a história liga-se ao sistema
autopoético porque as suas estruturas são consequência de suas operações e com isso evoluem
“em dirección de la bifurnación e la diversificación”, mas as transformações do sistema
funcional não podem ocorrer em desconexão com o meio social, mas sim de acordo com uma
forma organizada.102 Por esse motivo, as sentenças, enfim, decisões jurídicas, devem seguir as
operações e estrutura do sistema do Direito, o julgador na medida em que decide conforme o
sistema do Direito deve permitir que a sua observação seja pautada de acordo com as
operações e estruturas jurídicas, evitando que seja corrompido por influências econômicas e
políticas, cuja observação não se conduz da mesma forma que aquela jurídica. No caso antes
citado da construção histórica, onde não houve o tombamento do imóvel e ela foi destruída
para a edificação de um shopping center, o julgador deixou de atentar-se ao que dispõe a
proteção constitucional ao patrimônio histórico arquitetônico.
98
LUHMMAN, Niklas. El derecho de la sociedad. Tradução por Javier Torres Nafarrate. México: Universidad
Iberoamericana, 2002. p. 97-99.
99
Id. La sociedad de la sociedad. Trad. Javier Torres Nafarrate. México: Univerdad Iberoamericana/Herder,
2007. p. 101.
100
ROCHA, Leonel Severo. Observações sobre a observação Luhmanniana. In: ROCHA, Leonel Severo; KING,
Michael; SCHWARTZ, Germano. A verdade sobre a autopoiese no direito. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2009. p. 22.
101
Explica Leonel Severo Rocha (Ibid. p. 20), a partir das observações de Luhmman que “os sistemas
autopoiéticos são sistemas que conseguem partir da criação de um espaço próprio de sentido e se
autorreproduzem a partir de um código e de uma programação própria”.
102
LUHMMAN, Niklas. El derecho de la sociedad. Tradução por Javier Torres Nafarrate. México: Universidad
Iberoamericana, 2002. p 105.
54
Logo, de forma objetiva explica Campilongo103 que a “função do direito resume-se à
garantia e confirmação de expectativas de direito”. Parece uma tarefa fácil, mas não é. A
corrupção dos sistemas que se explicará melhor a seguir, continuamente dificulta que o
sistema jurídico preserve a sua estrutura quando da decisão. Além disso, contingência e
complexidade provenientes da modernidade, trazem cada vez mais situações onde o sistema
jurídico necessita decidir para proteger a Constituição. O sistema do direito exerce o papel de
assegurar que os direitos previstos na Carta Magna sejam observados por todos os indivíduos.
Essas decisões são possíveis a partir das premissas formadas pelo sistema político, desse
modo, observa-se a relação de interdependência entre esses dois sistemas. A autopoiese
regula, então, o próprio papel do direito na organização da sociedade, tendo em vista que os
efeitos da decisão jurídica podem irritar sobre vários subsistemas sociais.
Com as transformações sociais e mundiais provocadas pela globalização econômica,
observa-se que o Direito perde a sua forma tradicional de organização, enquanto que a política
deixa de ter um sentido de nacionalidade, passando a ser internacional, ou, ao menos,
regional. Os avanços científicos e tecnológicos recentes demandam uma normatização que
não é alcançada pelo Direito, seja devido ao próprio desconhecimento científico quanto a
pesquisa, seja devido ao célere desenvolvimento tecnológico. Assim, a construção jurídica
descentraliza-se do Estado e passa a ser realizada por acoplamentos estruturais entre outros
subsistemas sociais. Criam-se diversas constituições políticas parciais, acoplando o “direito
mundial a outros subsistemas globais”, voltados especialmente ao direito internacional
público, uma vez que a nível global não existe uma Carta Constitucional, como ocorre com a
Constituição Federal Brasileira, a qual é considerada a lei nacional suprema e apresenta um
acoplamento entre a política e direito.104 A estrutura do Direito ganha ares de direito privado,
voltado para a regulação de empresas multinacionais, com processos internacionais de
homogeneização de sistemas organizacionais, logo, “as fontes dominantes do direito
encontram-se agora na periferia do direito, nas fronteiras com outros setores da sociedade
mundial”, ou seja, “os processos dominantes de formação do direito transferem-se de seus
centros, politicamente institucionalizados no Estado nacional (legislativo e justiça), para a
periferia do direito, para as fronteiras do direito com outros subsistemas globais”. Há um
aumento gradativo de tribunais de arbitragem, voltados para a resolução de conflitos
específicos de setores econômicos, bem como de empresas de advocacia e resolução de
103
CAMPILONGO, Celso Fernandes. O direito na sociedade complexa. São Paulo: Max Limonad, 2000. P. 8586.
104
TEUBNER, Gunther. Direito, sistema e policontexturalidade. Tradução por Jürgem Volker Dittberner.
Piracicaba: UNIMEP, 2005. p. 108-109.
55
conflitos jurídicos a nível global, voltados para uma formação do direito no âmbito
mundial.105
Por um lado, o Estado recebe a comunicação e interliga-se em rede com outros
Estados, necessitando muitas vezes reformular sua legislação interna, por meio do sistema
jurídico para que se adeque às forças internacionais. De outro modo, o Estado luta para
manter a sua soberania e a identidade nacional dos cidadãos. Nesse contexto a proteção do
patrimônio histórico é fundamental para a manutenção da cultura local do sentido da nação.
O surgimento da modernidade ocasionou que os Estados modernos produzissem cada
vez mais uma diferenciação funcional, ela é necessária a fim de que a teoria dos sistemas
sociais possa ser aplicada de maneira satisfatória, uma vez que a complexidade demanda que
os sistemas sociais produzam a si próprios. A globalização, desmaterialização das fronteiras e
ideia de sociedade interligada por meio da comunicação, permite a operacionalização dos
sistemas. Por outro lado, não há como esquecer que em Estados da África, América Latina,
Ásia, Europa Oriental a diferenciação funcional e outros requisitos para a teoria dos sistemas
não são observados, de modo que o Direito confunde-se com a moral,106 religião, Política,
logo, o Direito não consegue produzir as suas decisões e regular a sociedade como se espera.
A expectativa social abarca um Direito que solucione os conflitos de acordo com o seu
código, mas isso é improvável quando a diferenciação funcional não é observada.107
Na pós-modernidade, a globalização amplia a forma organizacional do Direito, que
reflete obviamente no dia-a-dia jurídico dos Estados nacionais, tendo em vista que absorvem
as influências em nível internacional. Especialmente com a noção de sociedade de risco, esse
105
106
107
TEUBNER, Gunther. Direito, sistema e policontexturalidade. Tradução por Jürgem Volker Dittberner.
Piracicaba: UNIMEP, 2005. p. 110.
Importante esclarecer que o Direito, e mesmo outros sistemas sociais, não se confundem com a moral,
conforme explica Giancarlo Corsi (GLU: glosario sobre la leoria social de Niklas Luhmann. Tradução por
Miguel Romero Perez e Carlos Víllalobos. México: Anthropos, ITESO, Universidad Iberoamericana, 1996.
p. 113). “La moral es, por tanto, un fenómeno que no se localiza en un subsistema específico, pero puede
presentarse en cualquier ámbito de la sociedad: se pueden aducir motivaciones morales para contrastarla
búsqueda científica en ciertos ámbitos, como por ejemplo la eugenética; las carreras políticas pueden
truncarse por aiestiones del orden moral, como muestra la facilidad de producir escándalos típica del sistema
político; y etcétera. La moral, en otras palabras no es un fenómeno de tal manera improbable que exija la
diferenciación de un sistema parcial o bien apoyos simbólicos que motiven un sentido moral: es suficiente
con que sea posible orientarse a personas en cuanto interlocutores, situación que se presenta ya con la sola
doble contingencia. Por las características tipicas déla diferenciación funcional, los sistemas parciales son
fundamentalmente amorales: sus códigos no son congruentes con el de la moral. Lo verdadero no puede ser
connotado como algo bueno , ni tampoco lo no verdadero como algo malo; así como el que es sujeto a
sanciones moral es no puede y no debe tener automáticamente errores desde el punto de vista jurídico . La
moral tiene más bien el efecto de reducir la comunicación a polémicas y conflictos que pueden obstaculizarla
reproducción normal de las operaciones en los sistemas parciales de la sociedad.”
NEVES, Marcelo. E se faltar o décimo segundo camelo? do direito expropriador ao direito invadido. In:
ARNAUD, André-Jean; LOPES JR., Dalmir (Org.). Niklas Luhmann: do sistema social à sociologia jurídica.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 146-147.
56
direito globalmente produzido objetiva decisões jurídicas céleres e específicas que atendam as
demandas sociais por resolução de conflitos.
Conforme se observa, na sociedade de risco a preocupação pela salvaguarda do
patrimônio histórico decorre das consequências que a sua destruição trará para a comunidade,
especialmente no tocante a noção de identidade cultural. A percepção social do risco
construiu na doutrina um forte aparato para que o sistema do Direito internalizasse essa noção
em suas decisões, porém encontra óbice quando da aplicação perante os Tribunais, os quais
em última instância são os personagens que resolvem os conflitos que envolvem a proteção do
meio ambiente cultural diante do risco ambiental.108 Isso porque, a decisão no processo vai
depender da análise da prova pelo julgador.
Para melhor contextualizar o tratamento do Judiciário perante o risco ambiental,
necessário um resgate histórico, pois os riscos ambientais, decorrentes do avanço tecnológico
e industrial não eram motivo de preocupação, eis que o progresso científico e
desenvolvimento econômico não eram objeto do Direito. Assim, em um primeiro momento o
Direito somente se atentaria aos danos efetivamente concretizados. Com a gradativa
destruição ambiental (abrangendo tanto o meio ambiente natural, quanto o cultural) e tímida
formação da noção de risco ambiental, as decisões judiciais passaram a contemplar os riscos,
porém somente quanto ligados a um dano, o risco como forma de apontar para o causador do
dano. Em um terceiro momento, dentro do conceito de pós-modernidade, passa-se à efetiva
preocupação com os riscos produzidos pelo avanço tecnológico e especialmente com a sua
complexidade e magnitude, de modo que eles realmente começam a fundamentar decisões
jurídicas, sem que para tanto tenha que haver um dano concreto.109 Conforme se observa,
108
Na segunda parte do trabalho serão examinados casos concretos, de todo o modo, atente-se para a referida
decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, no julgamento da Apelação nº 597034537,
rel. Leo Lima: “ACAO CIVIL PUBLICA, PRECEDIDA DE CAUTELAR INOMINADA. DEMOLICAO
DE PREDIO. PATRIMONIO CULTURAL. NULIDADE DA SENTENCA. INOCORRE NULIDADE DA
SENTENCA, POR JULGAMENTO ANTECIPADO, SE AS PROVAS TESTEMUNHAL E PERICIAL,
PRETENDIDAS PELO MINISTERIO PUBLICO AUTOR, MOSTRAM-SE DESNECESSARIAS ANTE A
PROVA DOCUMENTAL CONSTANTE DOS AUTOS, SUFICIENTE PARA FORMAR O
CONVENCIMENTO DO JULGADOR. PREDIO COM DEMOLICAO BEM AUTORIZADA PELA
MUNICIPALIDADE, UMA VEZ QUE, EMBORA ANTIGO, NAO CHEGA A CARACTERIZAR
PATRIMONIO CULTURAL. TANTO QUE NEM RESTOU CLASSIFICADO, EM RELACAO ANEXA A
LEI MUNICIPAL, COMO EDIFICACAO DE INTERESSE SOCIO-CULTURAL E, ASSIM, ALVO DE
PRESERVACAO. ADIANTADO ESTADO DE DEMOLICAO DO PREDIO, QUANDO DO
CUMPRIMENTO DA CAUTELA LIMINAR. COMPARECIMENTO ESPONTANEO DOS
PROPRIETARIOS DO IMOVEL NAO CITADOS E QUE SUPRE A EVENTUAL FALTA DE CITACAO.
INEXISTENCIA DE CARENCIA DA ACAO POR IMPOSSIBILIDADE JURIDICA DO PEDIDO.
APELACAO DESPROVIDA.” (RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do
Sul. Apelação cível nº 597034537. Relator: Leo Lima. Porto Alegre, 05 de outubro de 1998.)
109
Dentro dessa perspectiva de responsabilização sem ocorrer dano concreto, Wilson Engelmann, Isabel Cristina
Porto Borges e Taís Ferraz Gomes (Responsabilidade civil e nanotecnologias. São Paulo: Atlas, 2014. p.
100-101) tratam sobre a desnecessidade de verificação do dano para a ocorrência do ilícito civil, ou seja, “O
57
diante desses três momentos, o Poder Judiciário tratava somente dos chamados riscos
concretos, onde em matéria de responsabilidade civil, o risco é critério de imputação para a
punição do causador de danos concretizados. Todavia, conforme se observa no terceiro
momento da aplicação do risco, a partir do perspectiva da sociedade de risco, não se pode
pensar somente na proteção a partir do dano, mas sim levar em consideração que o risco cria
vínculos com as próximas gerações, dessa forma, deve ser realizada a gestão do risco abstrato,
para prevenir a ocorrência de danos, ou mesmo de novos riscos, visto que há um dever de
preservação em prol das gerações vindouras, uma vez que hoje a sociedade lida com
problemas que não sabe nada sobre eles.110
Dentro dessa perspectiva da gestão do risco, a Constituição Federal prevê no seu artigo
225, o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, como bem de uso
comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à
coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
Outrossim, ratifica-se a proteção ao patrimônio histórico arquitetônico no artigo 216, da
Constituição Federal, que estabeleceu que o patrimônio cultural brasileiro é formado pelos
bens de natureza material e imaterial, tanto individualmente quanto em conjunto, portadores
de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade
brasileira, dentre os quais elencou, em um rol exemplificativo, os seguintes bens: as formas de
expressão; os modos de criar, fazer e viver; as criações científicas, artísticas e tecnológicas; as
obras, objetos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais e;
os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico,
paleontológico e científico.
O artigo 215 da Carta Magna, em consonância ao acima citado, estabelece que o
Estado deve apoiar e incentivar a valorização e a difusão das manifestações culturais devendo
estabelecer-se o Plano Nacional de Cultura, o qual visando ao desenvolvimento cultural do
surgimento constante de novos danos, além do crescente número de vítimas, contribuiu para a evolução da
responsabilidade civil, como referido anteriormente, da noção de culpa do responsável para uma
responsabilidade sem culpa, através da qual o agente assume o risco do que causar a terceiros. Porém com o
passar dos anos, e na tentativa de atender às exigências cada vez mais complexas da sociedade, até mesmo a
teoria do risco passou a ser insuficiente ao ressarcimento das vítimas, uma vez que exigia a prova do dano e
do nexo causal, o que muitas vezes se tornava difícil de provar. [...] Fato incontroverso, até então, dizia
respeito à necessidade de configuração de um dano ao surgimento do dever de indenizar. Sem o dano não
haveria motivos para se falar em responsabilidade civil. Porém impõe-se a necessidade de ajustar a definição
de um ato ilícito às alterações verificadas na sociedade através de métodos hermenêuticos, mediante a criação
de outros mecanismos que permitam uma reação de maneira mais imediata às novas exigências”.
110
CARVALHO, Délton Winter de. A tutela constitucional do risco ambiental. In: LEITE, José Rubens Morato;
FERREIRA, Heline Sivini; BORATTI, Larissa Verri. Estado de direito ambiental: tendências. 2. ed. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2010. p. 263-264.
58
país e à integração das ações do poder público conduzem à defesa e valorização do patrimônio
cultural brasileiro.
Recentemente, por meio da Lei nº 12.343, de 2 de dezembro de 2010111 foi instituído o
Plano Nacional de Cultura, com duração para os próximos dez anos. O artigo 1º, da referida
Lei enumera os princípios do Plano, dentre eles consta no inciso VI, o direito à memória e às
tradições e no inciso VII, a valorização da cultura como vetor do desenvolvimento
sustentável. Do mesmo modo, o artigo 2º estabelece os seus objetivos, como o de proteger e
promover o patrimônio histórico e artístico, material e imaterial (inciso II) e estimular o
pensamento crítico e reflexivo em torno dos valores simbólicos (inciso VII). Ele não
apresenta muitas medidas específicas para a viabilização da proteção ao patrimônio histórico,
mas uma das metas interessantes propostas foi a criação, em parceria com bancos públicos e
bancos de fomento de linhas de crédito subsidiado para o financiamento da requalificação de
imóveis públicos e privados situados em sítios históricos.
Além da proteção constitucional ao patrimônio histórico arquitetônico, conforme
apontado acima, na legislação esparsa, a principal fonte legislativa dos processos que
envolvem o tombamento e a proteção do patrimônio histórico foi outorgada pelo então
presidente Getúlio Vargas, através do Decreto-Lei nº 25, de 30 de novembro de 1937, o qual,
mesmo proveniente da época ditatorial, alcançou de forma clara a regulamentação da proteção
do patrimônio histórico.112 O referido Decreto-Lei definiu os bens culturais, além de trazer
importantes regulamentações, como a inalienabilidade do bem tombado, além da
possibilidade de o tombamento ser feito de forma compulsória, caso o proprietário não o faça
voluntariamente.
Após esse Decreto-Lei, outras leis de caráter nacional foram promulgadas, dentre elas
e os decretos citam-se: o Código Penal, de 07 de dezembro de 1940, que trouxe a sanção113
em desfavor de quem atentasse contra o patrimônio histórico; o Decreto-Lei nº 3.365, de
1941, atualizou o conceito de patrimônio cultural contido no texto original do Decreto-Lei nº
111
112
113
BRASIL. Lei nº 12.343, de 2 de dezembro de 2010. Institui o Plano Nacional de Cultura - PNC, cria o
Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais - SNIIC e dá outras providências. Diário Oficial
[da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 03 dez. 2010. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12343.htm>. Acesso em 21 jun. 2014.
SECRETARIA DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL. Proteção e Revitalização do
Patrimônio Cultural no Brasil: uma trajetória. IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional, Brasília, ago. 1980. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/portal/baixaFcdAnexo.do?id=531>.
Acesso em: 26 mai. 2014. p. 14.
O Artigo 165 do Código Penal prescreve que destruir, inutilizar ou deteriorar coisa tombada pela autoridade
competente em virtude de valor artístico, arqueológico ou histórico: Pena - detenção, de seis meses a dois
anos, e multa. (BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial [da]
República Federativa do Brasil, Rio de Janeiro, RJ, 31 dez. 1940. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm>. Acesso em: 15 jan. 2014).
59
25, de 1937, além de regulamentar acerca de desapropriação dos imóveis; em 1941, foi
promulgado o Decreto-Lei nº 3.866,114 que atribuía ao Presidente a competência para cancelar
tombamentos de bens pertencentes ao poder público (União, Estados e Municípios) e ao
particular.
O Estado de Direito ao prever referida noção de proteção ambiental e cultural em sua
Constituição demonstra que essa norma é essencial para a sociedade, sendo que ao prevê-lo na
sua lei maior, tanto o legislador, quanto a comunidade possuem o dever de respeitá-lo, pois é
fundamental à vida em sociedade. Logo, considerando a sua dimensão de fundamentalidade,
bem como a positivação da norma, embasam a noção de que os direitos legitimam a atuação
do Estado e são forma de Justiça social.115 Isso ocorre porque a justiça social promove a
noção de que a proteção do patrimônio cultural engloba a todos os indivíduos da cidade, tanto
no sentido de que a norma deve ser aplicada por todos, quanto no sentido de que os benefícios
da proteção cultural serão vivenciados por todos, na medida em que se possibilita a
manutenção da identidade cultural local.
Explica José Joaquim Canotilho116 que o Estado de Direito deve ser um Estado
ambiental o que é observado a partir de duas dimensões jurídico-políticas, a primeira é que o
Estado, juntamente com outras nações, cidadãos e comunidade científica deve elaborar e
incentivar políticas públicas pautadas na sustentabilidade. A outra dimensão configura-se no
dever de a sociedade civil e os órgãos estatais tomarem medidas concretas para
responsabilizar o poder público pela preservação em prol das futuras gerações. A gestão do
risco nesse caso ganha aspectos intergeracionais, tendo em vista que o que se busca é evitar
riscos vindouros. Tomam-se decisões no presente, para que as futuras gerações possam
usufruir de um meio ambiente ecologicamente equilibrado, no qual o patrimônio histórico
arquitetônico esteja inserido e possa trazer às presentes e futuras gerações o resgate da
memória e identidade cultural que fazem parte de determinada comunidade. Dessa forma, o
114
115
116
Dispõe o Artigo único do Decreto Decreto-Lei nº 3.866/1941 que o Presidente da República, atendendo a
motivos de interesse público, poderá determinar, de ofício ou em grau de recurso, interposto pôr qualquer
legítimo interessado, seja cancelado o tombamento de bens pertencentes à União, aos Estados, aos
municípios ou a pessoas naturais ou jurídicas de direito privado, feito no Serviço do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional, de acordo com o decreto-lei nº 25, de 30 de novembro de 1937. (BRASIL. Decreto-Lei nº
3.866. Decreto-Lei nº 3.866, de 29 de novembro de 1941. Dispõe sobre o tombamento de bens no Serviço do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Rio de
Janeiro, RJ, 31 dez. 1941. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/19371946/Del3866.htm>. Acesso em: 15 jan. 2014.)
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estado de direito. Lisboa: Gradiva, 1999. p. 56.
Ibid. p. 44-45.
60
Estado de Direito Ambiental deve construir regras e princípios,117 bem como possuir uma
vigilância sobre a sociedade para que a sustentabilidade seja efetiva, porém tudo deve ser feito
“sem postergação das regras básicas da juridicidade estatal”. Exige-se, ainda, que o Estado de
direito ambiental promova a justiça ambiental, uma igualdade entre a comunidade. Mesmo
uma lei, se violar um Estado de Justiça Ambiental, pode-se fazer uma reflexão sobre ela,
entendendo que ela cria uma desigualdade ambiental, especialmente em razão do dever de
proteção ambiental ser norma fundamental e legitimador de um Estado de Direito.
Há uma convergência entre o aumento dos desafios tecnológicos advindos da
sociedade de risco e a extensão do texto constitucional. A Constituição Federal passa a
abranger uma maior gama de direitos como à sadia qualidade de vida, ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado, à cultura. Isso ocorre, em consonância com o que explica José
Joaquim Canotilho, que a Constituição é a norma fundamental não somente do Estado de
Direito, mas também da sociedade, a qual legitima o poder dos governantes a partir do texto
pátrio.118
No Estado de Direito Ambiental a juridicização dos problemas ambientais permite que
ao se juridicizar o problema ele passe de ambiental para jurídico, o qual deverá refletir uma
decisão de acordo com o Direito. Isso, obviamente, aumenta a complexidade do Direito,
porque este vai ter que operar de acordo com a sua estrutura sobre objeto que não faz parte da
sua estrutura. De modo que a decisão jurídica precisa estar consciente que mesmo que seja
juridicamente coerente e siga os parâmetros legais os seus efeitos colaterais refletem no
contexto policontextural, complexidade e sociedade de risco fazem parte do sistema mundial.
Isso implica em três efeitos: “a decisão jurídica não tem acesso à ‘realidade’ policontextural
envolvida na decisão”; os riscos e perigos, conforme já explicado no capítulo anterior, não
podem ser previstos a curto prazo, claro que como os riscos demandam do próprio ato
humano sua probabilidade torna-se efetiva, enquanto com o perigo isso não ocorre; “a
resposta caótica do ambiente sociológico às interveniências produzidas por decisões jurídicas
deste tipo serão inevitavelmente falsificadas por esquemas de observação [...] que poderão,
117
118
Sobre a diferença entre regras e princípios Wilson Engelmann e Viviane Saraiva Machado (Do princípio da
precaução à precaução como princípio: construindo as bases para as nanotecnologias compatíveis com o
meio ambiente. Revista de Direito Ambiental, ano 18, v. 69, jan./mar. 2013. p. 29) explicam que “há uma
diferença substancial entre regras e princípios: aquelas representam ‘mandatos definitivos’, ou seja, se a
situação fática se abriga nos termos da sua redação, ela – a regra – dita as consequências. Já os princípios
representam ‘mandatos de otimização’, a sua aplicação está circunscrita à realização da melhor solução
possível para o caso concreto , a qual é construída a partir das contribuições oriundas de diversos sistemas, e
não apenas do jurídico”.
LOUREIRO, João. Da sociedade técnica de massas à sociedade de risco: prevenção, precaução e
tecnociência – algumas questões jusplubicistas. In: Boletim da Faculdade de Direito – Studia Jurídica.
Coimbra: Coimbra, v. 61, p. 818-820, 2000.
61
apesar de contingencialmente desastrosas, ser observadas como progresso”. Em tal contexto
resta ao Direito operar seletivamente para reduzir a complexidade do ambiente, de modo que
a decisão jurídica abarque na medida do possível o maior número de possibilidades, terá que
juridicizar os problemas ecológicos. Essa juridicização permite que o Direito por meio do seu
sistema binário: Direito/não Direito; produza sentido, sendo que a comunicação jurídica terá
como estrutura o próprio Direito.119
A tutela jurisdicional, visando promover uma justiça intergeracional vai proferir
decisões constitucionalmente amparadas que protejam as presentes e futuras gerações, de
modo a considerar ilícitos os riscos produzidos atualmente. Dentro dessa perspectiva a
ponderação judicial acerca do risco, se determinada atividade excede os limites socialmente
aceitáveis, vai depender de uma racionalização sobre a incerteza diante do futuro, bem como
da análise da probabilidade, verossimilhança e magnitude do risco. Inclusive, a análise desses
critérios de gravidade potencial do projeto vai ocorrer por meio da prova pericial técnica
realizada durante o processo, as quais vão abarcar as características anteriormente
especificadas, como a extensão, a magnitude, a complexidade, a probabilidade, a duração, a
frequencia, a reversibilidade e a natureza transfronteiriça do impacto. De qualquer forma, o
julgador ao declarar que determinada atividade é ilícita em razão de produzir determinado
risco, pode impor determinada obrigação da fazer ou de não-fazer, a qual deverá ter relação
direta com o risco que está em discussão.120
Fica claro que a proteção ao meio ambiente cultural decorre da diminuição dos efeitos
nocivos produzidos pelos seres humanos, pautada por um meio-termo entre a salvaguarda dos
equilíbrios naturais e a proteção dos interesses humanos, entretanto o que muitas vezes se
observa é que o agir humano opõe os equilíbrios naturais aos seus interesses, sem perceber
que a manutenção dos interesses humanos é passível ao equilíbrio natural. Ambas devem
podem e devem coexistir, sem que sejam deturpadas mutuamente. Dentro da perspectiva do
dever de manutenção do meio ambiente ecologicamente equilibrado para as presentes e
futuras gerações, impõe-se a lógica de que se determinada proteção é justa de maneira
intergeracional, certamente também o será para a geração presente que habita o planeta.121 De
maneira que a responsabilização diante do risco é permitida e se justifica, sendo que a decisão
119
120
121
ROCHA, Lonel Severo; CARVALHO, Délton Winter de. Policontexturalidade jurídica e estado ambiental.
In: ROCHA, Leonel Severo (Coo.). Direito ambiental e autopoiese. Curitiba: Juruá, 2012. p. 30-31.
CARVALHO, Délton Winter. A genealogia do ilícito civil e a formação de uma regulação de risco pela
responsabilidade civil ambiental. Revista de Direito Ambiental. n. 65, ano 17, São Paulo: RT, p. 93-94,
jan./mar. 2012.
OST, François. A natureza à margem da lei: ecologia à prova do direito. Lisboa: Instituto Piaget, 1995. p.
310-311.
62
judicial, por evidência, estará em consonância com o que determina o texto constitucional,
haja vista que os respeito às formas de vida existentes no planeta, por vezes demanda a
abstenção de provas cientificamente concludentes, tendo em vista que o agir ético determina
que a responsabilidade diante do risco atinja uma conotação pautada na verossimilhança. O
risco de que uma comunidade esqueça permanentemente a sua identidade cultural.
A responsabilização, como o próprio nome revela gera que um certo agente responda
por determinada situação, tendo em vista que na sociedade de risco o Poder Judiciário possui
o dever de salvaguarda em face da vulnerabilidade ambiental, diante da proteção
constitucionalmente amparada. A decisão judicial que vai determinar a responsabilização não
é vista como arbitrária, uma vez que o agir humano é responsável pelos atos por ele
produzidos. Logo, a partir do momento que não respeita o texto constitucional, deverá arcar
com as respectivas consequências. Nesse caso, a gravidade dos riscos é tamanha que a
atividade que os causa fica sujeita a responsabilidade, pois o que está em discussão é “o risco
criado num horizonte futuro indeterminado e a respeito de uma categoria abstrata de pessoas”,
uma vez que sem a proteção a tais valores ambientais, a sua manutenção no planeta não está
assegurada diante da existência humana, inclusive, François Ost chama esse dever de proteção
de missão, visto que é uma obrigação que está diante da fragilidade do meio ambiente.122
A ponderação acerca de vantagens e inconvenientes é necessária porque as situações
de risco geralmente envolvem grandes empresas e atividades muito lucrativas, sendo que os
efeitos colaterais, suas consequências, além de serem difusas, serão percebidas somente pelas
futuras gerações, logo, enquanto o lucro é percebido no presente, os seus efeitos, somente no
futuro. Isso prejudica a ponderação, pois o decisor precisa enxergar o futuro, para dentro
dessa perspectiva, construir o seu presente, levando em consideração, inclusive, a ideia trazida
por Luhmann de risco-segurança. Assim, para que essa ponderação seja possível, somente um
processo pluridisciplinar123 que envolva tanto critérios jurídicos, quanto científicos, já
mencionados anteriormente na análise do risco, permite que as decisões sejam pautadas por
princípios da transparência e contraditório. Esse processo, que leva em conta aspectos sociais,
ambientais e econômicos, ao ser transparente permite que a sociedade, em especial a
122
123
OST, François. A natureza à margem da lei: ecologia à prova do direito. Lisboa: Instituto Piaget, 1995. p.
307-309.
A pluridisciplinaridade diz respeito ao estudo de um objeto de uma mesma e única disciplina por várias
disciplinas ao mesmo tempo, ela se diferencia de outros métodos de ensino, como a disciplinaridade,
interdisciplinaridade, etc. (NICOLESCU, Basarab. Um novo tipo de conhecimento: transdisciplinaridade. In:
CETRANS. Educação e transdisciplinaridade. São Paulo: TRIOM, 1999. p. 10).
63
população que será afetada pelo risco, tome conhecimento e possa opinar e participar dessa
tomada de decisão.124
Para Carla Amado Gomes,125 a decisão que envolve o risco segue cinco princípios. O
primeiro é o princípio da participação que, conforme já exposto acima, expõe a necessidade
de ouvir a população, àqueles que sofrerão os impactos da decisão, como forma de conhecer
as suas dúvidas e anseios, de modo que previamente à decisão, seja realizada uma discussão
pública, principalmente, devido a incerteza que permeia o risco. O segundo é o princípio da
proporcionalidade, no sentido de que as medidas direcionadas a minimizar os efeitos do risco
devem ser proporcionais a proteção buscada, isso demanda um constante conhecimento
técnico, para que se definam as melhores alternativas para cada caso. O princípio da
fundamentação determina que o Poder Público exponha por quais motivos tomou
determinada medida, ou mesmo, de que forma valorou cada possibilidade de incerteza. O
quarto seria o princípio da adaptabilidade, este se refere a constante adaptação da gestão do
risco às atuais tecnologias, bem como a mutabilidade da medida empregada a minimizar o
risco, a depender de como determinada situação vai se alterando. Por fim, há o princípio da
supervisão, ele decorre da incerteza diante do risco, logo, há necessidade de uma constante
supervisão com base em dados científicos, a fim de que se observe se há um aumento ou não
na probabilidade de determinado risco concretizar-se.
A avaliação da prova no processo judicial vai depender de um acoplamento estrutural
entre a ciência e o Direito, pois o julgador terá que analisar sob a perspectiva do Direito as
informações técnicas produzidas pelos estudos científicos. Logo, é fundamental dentro do
processo, a prova pericial e por isso ela gera certos conflitos quando de sua ponderação pelo
julgador, uma vez que este na qualidade de observador deve aplicá-la dentro dos limites do
Direito. Esse diálogo entre os sistemas do direito e da ciência não vincula a decisão do juiz ao
laudo pericial, eis que conforme determina o sistema processual civil brasileiro, no seu artigo
436, o juiz não está adstrito ao laudo pericial, podendo formar a sua convicção com outros
elementos ou fatos provados nos autos. É claro que a prova pericial, em razão do seu cunho
técnico e científico, observa ou não a existência de um risco, porém quando o julgador
necessita formar a sua convicção, ao analisar dentro do sistema do Direito referida prova, está
124
ARAGÃO, Alexandra. Princípio da precaução: manual de instruções. Revista do CEDOUA, Coimbra, n. 22,
ano XI, p. 38-39, 2008.
125
GOMES, Carla Amado. Subsídios para um quadro principiológico dos procedimentos de avaliação e gestão
do risco ambiental. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito, São Leopoldo,
jul./dez., p. 146-149, 2011.
64
permitido a adotar postura diversa daquela indicada pelo perito.126 Importante observar, que
quando se fala que a prova pericial é fundamental, deve-se considerar que determinados
riscos, diante de sua incerteza não permitem a produção de prova pericial, contudo, essa “nãoprova” também é uma prova, pois demonstra a insegurança e a difusão do risco, de modo que
havendo uma verossimilhança (através, por exemplo, de indícios ou de riscos já observados,
os quais podem desencadear outros riscos indiretos) para a possível ocorrência do risco, a
tutela jurisdicional, vai se fundamentar nessa “não-prova” para aplicar uma medida em prol
do patrimônio ambiental protegido.
Esse filtro que o Direito esboça para analisar a prova pericial traz os critérios
valorativos substanciais e procedimentais, nos quais o julgador irá se amparar para observar a
tecnicidade, haja vista que o Direito está observando outro sistema, fazendo uma construção
racional de algo que não é jurídico. Sobre como analisar o laudo pericial utilizam-se os
critérios substanciais que vão demonstrar se há coesão no mesmo, bem como se é possível
atribuir-lhe veracidade científica analisando especialmente a metodologia127 aplicada.128 De
outro modo, os critérios procedimentais, como o próprio nome revela referem-se ao resguardo
do procedimento de análise do laudo, se foi respeitado o devido processo legal e análise
científica proba para elucidação dos fatos e convencimento do juízo, devendo observar nesse
caso o disposto no artigo 5º, incisos LIV e LV,129 da Constituição Federal. Referidos critérios
permitirão que o julgador, quando da ponderação da prova pericial, faça-o de acordo com a
credibilidade atestada pela prova pericial.130
126
CARVALHO, Délton Winter de. Dano ambiental futuro: a responsabilização civil pelo risco ambiental. Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 2008. p. 106-107.
127
Délton Winter de Carvalho (A construção probatória para a declaração jurisdicional da ilicitude dos riscos
ambientais. Revista da AJURIS, Porto Alegre, ano 38, n. 123, p. 42-44, set. 2011) traz critérios de como
realizar a análise do laudo pericial: em primeiro lugar a metodologia aplicada, de modo a observar se a teoria
ou técnica éa capaz de submissão a verificação científica, se foi submetida a revisão científica e objeto de
publicação publicizada para poder ter críticas, se tem conhecimento do nível de incerteza ou erros em
potencial, bem como dos padrões para controlá-los, se há amplo reconhecimento perante a comunidade
científica; o credenciamento do laboratório utilizado para a análise; a formação técnica do perito, tendo em
vista que o perito tem que ser da área da perícia, muitas vezes eles vão além da sua área de conhecimento; a
adoção de normas técnicas vigentes acerca de metodologias a serem utilizadas para a realização de avaliações
de impactos ambientais; independência e transparência dos pareceres científicos são critérios determinantes
para análise da maior ou menor credibilidade científica de uma prova desta natureza; e maior proximidade
temporal da análise técnica em relação ao evento gerador do impacto ambiental ou da geração do risco.
128
Ibid. p. 41-42.
129
Prevê a Constituição Federal nos referidos incisos: Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de
qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do
direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] LIV - ninguém
será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal; LV - aos litigantes, em processo
judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os
meios e recursos a ela inerentes; (BRASIL. Constituição (1988). Brasília: Senado Federal, 1988).
130
CARVALHO, Délton Winter de. A construção probatória para a declaração jurisdicional da ilicitude dos
riscos ambientais. Revista da AJURIS, Porto Alegre, ano 38, n. 123, p. 43-44, set. 2011.
65
Logo, os juízes decidem formas de controlar/criar o futuro, cabendo-lhes analisar o
caso concreto para ponderar acerca de qual medida melhor se adéqua proporcionalmente à
preservação do meio ambiente equilibrado, para as presentes e futuras gerações (percepção de
intergeracionalidade). Ainda, deverão ater-se aos comandos constitucionais e processuais para
realização do devido processo legal, uma vez que a noção de risco não pode violar o Estado
de Direito Ambiental, mas ao contrário, permitir a sua concretização.
Se por um lado observa-se que o sistema da Política produz mecanismos para a
proteção do meio ambiente, no caso do patrimônio histórico legislação específica, bem como
à autonomia e dinâmica aos órgãos do Governo (como o Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional – Iphan, em nível nacional, e o Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico do Estado, que atua no Estado do Rio Grande do Sul) que tratam do tombamento e
proteção das construções históricas, levando em consideração a operacionalização da Política
através da sua estrutura, sem a complexidade ocasionada pelas irritações econômicas. Por
outro lado, apesar de toda a legislação produzida, os sistemas do Direito e Economia não
conseguem no mesmo ritmo abarcar essas reivindicações sociais. Conforme explicado acima,
a internalização no Direito do conceito risco e juridicização dos problemas ambientais, são
meios para que tal sistema operacionalize os problemas ambientais. No campo da Economia a
resistência a proteção ambiental, e, mais especificamente, do patrimônio histórico ocorre
porque seu paradigma ainda está “centralizado na dominação e na transformação da natureza
em escala massiva”.131 A comunicação entre os sistemas da Política, Economia e Direito
reflete diretamente na preservação do patrimônio histórico. Claro que cada sistema vai operar
de acordo com o seu código interno. Quando se trata decisões sobre o meio ambiente a
comunicação entre os sistemas é importante a fim de que as decisões estejam pautadas pela
noção do risco.
O sistema jurídico é visto como um sistema de segundo grau que vai operar de acordo
com o código legal/ilegal, comunicando-se de acordo com os atos internos, que lhe são
próprios. Essa comunicação demanda expectativas jurídicas que se determinam de acordo
com os limites estabelecidos pelo próprio sistema. Ele produz atos jurídicos a partir de atos
jurídicos, os quais seguem o processo interno de operacionalização do sistema. Devido as
operações é construída uma realidade jurídica que o envolve, entretanto o sistema está sujeito
às interferências do mundo que o envolve, mas as operações ficam restritas a realidade
jurídica. Tal processo ocorre com os demais sistemas, como o da Política e da Economia,
131
ROCHA, Lonel Severo; CARVALHO, Délton Winter de. Policontexturalidade jurídica e estado ambiental.
In: ROCHA, Leonel Severo (Coo.). Direito ambiental e autopoiese. Curitiba: Juruá, 2012. p. 27-28.
66
conforme já referido anteriormente, o que demonstra a necessidade da comunicação entre os
sistemas para as decisões que envolvem a matéria ambiental.132
Umas das dificuldades do sistema jurídico é a implementação das suas decisões na
sociedade. Apesar de operacionalizadas nos conformes com a produção jurídica, via de regra
tais decisões serão aplicadas dentro de outros sistemas. Isso pode ocorrer em um caso
específico, bem como produzir efeitos sobre a coletividade social. Gunther Teubner relaciona
os problemas que são enfrentados: “1) clausura autopoiética do direito; 2) clausura
autopoiética do subsistema social regulado; 3) pretensões intervencionistas por parte de um
sistema político também ele autopoieticamente fechado.” Ocorre que, como o sistema político
utiliza o Direito como uma forma de controle social, precisa-se que as decisões jurídicas
efetivamente interfiram na realidade social.133
O sistema da Política possui a função de tomar decisões coletivamente vinculantes.
Para que isso ocorra, opera sob o efeito do poder, “el código del poder (superiores/inferiores)
permite la reproducción de la comunicación política”, efetivamente é o poder do governante
sobre os seus governados que vai possibilitar as operações políticas. Importante esclarecer que
o sistema politico não se confunde com o Estado, pois este se trata de um sistema de decisões
limitado por um território. O sistema político mundial constitui-se nos diferentes sistemas
adotados pelos Estados-nação, os quais vão formar o sistema político de acordo com as suas
necessidades políticas. Além do Estado, existem outras organizações políticas que não
produzem decisões coletivamente vinculantes, mas que são importantes para o Estado. O
sistema político diferencia-se segundo o esquema centro/periferia, nesse contexto o centro
seria o Estado e a periferia as demais organizações políticas, cuja distinção possibilita a
complexidade do sistema.134 No âmbito central do sistema, as decisões que envolvem a
defesa do patrimônio histórico são realizadas a partir da Secretaria/Ministério de Cultura e de
Turismo dos órgãos federados, além dos órgãos que trabalham especificamente para a
proteção do patrimônio histórico.
No Brasil, em 1935 durante o Primeiro Congresso Brasileiro de Proteção à Natureza
foi aprovada a criação de um serviço especializado na proteção do patrimônio cultural, no
qual estava incluso o patrimônio histórico arquitetônico, qual seja, o Serviço do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (Sphan). Ele passou a contar então com Rodrigo Melo Franco
132
TEUBNER, Gunther. O Direito como sistema autopoiético. Tradução por José Engrácia Antunes. Lisboa:
Calouste, 1993. p. 140-141.
133
Ibid. p. 142-143.
134
CORSI, Giancarlo. GLU: glosario sobre la leoria social de Niklas Luhmann. Tradução por Miguel Romero
Perez e Carlos Víllalobos. México: Anthropos, ITESO, Universidad Iberoamericana, 1996. p. 128; 130.
67
de Andrade como Diretor, sendo que como primeira tarefa elaborou o anteprojeto de lei para a
preservação do patrimônio histórico
por meio do tombamento. Referido anteprojeto é
proveniente do primeiro projeto redigido por Mario de Andrade, sendo que em 15 de outubro
de 1936 foi apresentado ao Congresso Nacional, o qual posteriormente foi outorgado pelo
presidente Getúlio Vargas, por meio do Decreto-Lei nº 25, de 30 de novembro de 1937.
Nesse período o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional foi
oficializado, pois como tinha sido criado para experimentação, em 13 de janeiro de 1937 já
possuía aprovação para o seu funcionamento, permanecendo vinculado ao Ministério da
Educação.135 Com a criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, além da
aprovação do Decreto-Lei nº 25, os agentes contratados para a tarefa de preservar o
patrimônio cultural focam sua proteção aos edifícios históricos, especialmente devido à
rapidez com que vinham sendo demolidos ou reformados.
O Sphan passou por muitas modificações, pois alguns anos após a sua criação deixou
de ser ministerial e passou a ser regido por Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional. Durante a administração do arquiteto Renato Soeiro, que ocorreu de 1967 a 1979, o
DPHAN passa através do Decreto-Lei nº 66.967, de 1970 a ser denominado Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, denominação que permanece até hoje. Tal instituto
é o responsável a nível nacional pela proteção do patrimônio cultural, nos termos do que
dispõe o Decreto-Lei nº. 25, de 1937. Logo, no sistema político o Iphan vai operacionalizar as
decisões que envolvem a proteção do patrimônio histórico arquitetônico.
A figura do tombamento136 prevista no Decreto-Lei nº. 25, de 1937 é necessária para
que o sistema político, que possui a competência para tombar o bem, cumpra o preceito
constitucional de proteção ao patrimônio histórico arquitetônico, pois o tombamento é a forma
imposta pela legislação: onde presentes os motivos para que se tombe determinada construção
histórica, haverá a administração do interesse público da nação. Assim, o tombamento ocorre
135
SECRETARIA DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL. Proteção e Revitalização do
Patrimônio Cultural no Brasil: uma trajetória. IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional, Brasília, ago. 1980. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/portal/montarPaginaSecao
.do?id=17579&sigla=Institucional&retorno=paginaInstitucional>. Acesso em: 22 abr. 2014. p. 14.
136
Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda (Comentários a Constituição de 1967. v. 6. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1967. p. 371) traz que as raízes do vocábulo tombar (do latim tumulus, elevação da terra, donde
tombo por tômoro, talvez por haver marcos com alteamentos dos limites das terras) tem o significado de
lançar em livro de tombo, e nada tem com tombar (do velho alto alemão tonôn, provavelmente formado no
espanhol, passando ao português e ao inglês). O tombamento é apenas, a inscrição do tombo, tal como
acontecia com os bens da Coroa. A expressão tombamento possui origem no Código de Processo Civil
português, datado do ano de 1876, sendo que a palavra tombar era utilizada, “como sinônimo de demarcação
[...] Posteriormente, preceitos do Código Administrativo de 1940 assimilaram, definitivamente, o termo na
sinonímia de cadastro, uma vez que, usualmente, já se designava por tombo o registro, o arquivo e a
catalogação de documentos públicos ou históricos, razão pelo qual se chama Torre do Tombo o atual
Arquivo Nacional Português.”
68
quando o patrimônio histórico arquitetônico é levado a registro, em um dos quatro livros
trazidos pelo Decreto-Lei que se encontram junto ao Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional, para que a proteção recaia sobre estas construções históricas. O rol
expresso para o Livro Tombo está descrito no artigo 4º, do referido Decreto-Lei, onde
totalizam quatro livros, quais sejam: Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e
Paisagístico; Livro do Tombo Histórico; Livro do Tombo das Belas Artes; e Livro do Tombo
das Artes Aplicadas. Ressalta-se que o Decreto nº 3.551, de 4 de Agosto de 2000, a fim de
regulamentar o patrimônio cultural imaterial inseriu outros quatro livros destinados ao
tombamento desse patrimônio, os quais são: Livro de Registro dos Saberes, Livro de Registro
das Celebrações, Livro de Registro das Formas de Expressão e Livro de Registro dos Lugares.
Além do tombamento, prevê o § 1º, do artigo 216, da Carta Magna, que a proteção
pode ocorrer por meio do inventário do bem, contudo, apesar da previsão constitucional, o
inventário carece de lei que regulamente como se dá o seu procedimento ou que mencione
qual a sua implicação jurídica, ao passo que os efeitos jurídicos do tombamento estão
expressos no Decreto-Lei nº 25, de 1937.
A concretização da política no Estado moderno foi a liberdade e a propriedade
privada, o Estado permitiu que os cidadãos se desenvolvessem como melhor lhes aprouvesse.
O Estado passa a ser visto como uma função da sociedade, imperioso para a manutenção da
liberdade dos cidadãos. Assim, como o Estado detém os meios de força e poder para garantir
a liberdade dos cidadãos, necessário que o Estado seja controlado pelo governo, o qual é
formado pelos seus cidadãos. Independentemente se a forma de governo for monárquico ou
republicano, o governo é controlado pelos governados e limitado quanto ao uso força.137 Em
razão do poder com que a Política opera o controle realizado pelos governados dá-se sob a
observação de governante.
Importante observar que no Estado de Direito o poder do governante precisa observar
o código lícito/ilícito do sistema jurídico. Tal código permite que as decisões tomadas pelos
governantes não sejam influenciadas por particularismos e fatores do meio ambiente social,
cujas ressonâncias não pertencem ao sistema político, visto que suas decisões terão
consequências sobre a coletividade da sociedade. Logo, todas as decisões tomadas pelo
sistema político deverão atentar às normas jurídicas, não no sentido de que o sistema jurídico
se sobreponha ao sistema político, mas sim de que a concretização do Estado do Direito
demanda uma política atenta à preservação da ordem jurídica. A ordem jurídica constitucional
137
ARENDT, Hannah. A promessa da política. Tradução por Pedro Jorgensen Jr. Rio de Janeiro: DIFEL, 2008.
p. 200-201.
69
além de garantir prerrogativas ao Estado e aos cidadãos, também lhes impõe deveres, os quais
devem ser respeitados por todos, o que demonstra que o Direito toma para si a função do
controle de poder do Estado, mesmo que referido poder seja exercido pelos governantes, o
Direito vai operacionalizar a estrutura para que não extrapole os fundamentos e anseios
sociais.138
A comunicação entre o sistema político e jurídico apresenta um paradoxo, pois quanto
mais independentes são entre si, mais dependem um do outro. A explicação desse paradoxo
necessita que o sistema político, por meio dos embates entre o governo/oposição,
minoria/maioria, característicos do sistema democrático, tome as decisões coletivamente
vinculantes e produza as prerrogativas para que o sistema jurídico decida. Enquanto que o
sistema jurídico, por outo lado, legitima o sistema político, aplicando as leis que são
promulgadas, bem como legitimando o poder de polícia do Estado. Com a modernidade, o
governo passa a adotar o sistema democrático, além da vinculação a Constituição, o que é um
dos fundamentos do Estado de direito. A Constituição é justamente um meio de estabilizar os
direitos e garantias que são fundamentais aos cidadãos, demandando que o Estado os respeite.
Assim, a democracia somente é possível a partir da separação entre os sistemas jurídico e
político, uma vez que as decisões tomadas por cada sistema devem estar de acordo com a sua
estrutura.
139
Dada a complexidade que as decisões trazem consigo, os reflexos entre os
sistemas decorrem da própria demanda social, porém, deve-se atentar para que o sistema
jurídico não tome para si a função de decidir sobre questões políticas e vice-versa.
De qualquer modo, como o sistema da Política tem a função de reproduzir decisões
coletivamente vinculantes, a sua relação com a proteção do patrimônio histórico é de suma
importância, uma vez que tal decisão poderá determinar que se destrua ou se conserve
determinada construção histórica e isso afeta a comunidade porque após a demolição é
fisicamente impossível voltar no tempo, e o patrimônio histórico ficará somente na memória
daqueles que puderam interagir com ele.
A conservação ou restauração do patrimônio tombado, conforme prevê o próprio
Decreto-Lei nº 25, de 1937, será realizada a expensas da União, quando o proprietário do bem
não tiver condições de fazê-lo. Inclusive, caso o proprietário não comunicar a necessidade dos
serviços poderá ser penalizado se ocorrer algum dano no bem. Caso o bem seja dilapidado,
cabe ao Poder Público restaurá-lo, se for inerte na sua conservação, ou o particular se o fizer
138
NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil – O Estado Democrático de Direito a partir e
além de Luhmann e Habermas. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 89; 91.
139
CAMPILONGO, Celso Fernandes. O direito na sociedade complexa. São Paulo: Max Limonad, 2000. p. 82.
70
de má-fé. Assim, é clara a responsabilidade pelo dano feito ao patrimônio público. O Poder
Público possui a prerrogativa de proteger o patrimônio histórico arquitetônico para concluir o
tombamento ou inventário. Todavia, muitas vezes é omisso, o que acarreta a perda de diversas
construções históricas. Para evitar essa situação, há a possibilidade de ingressar-se com uma
ação civil pública, ação popular ou ações coletivas140 para que se tombe e preserve o bem.
Aliás, a ação popular está prevista no artigo 5º, inciso LXXIII, da Constituição
Federal, garantindo que todo cidadão poderá propor a referida ação com o intuito de anular o
ato lesivo ao patrimônio histórico e cultural. Nessa situação o sistema político vai intervir no
processo de tombamento, pois vai julgar, após a realização de perícias, a necessidade ou não
do Estado preservar o bem, antes que o patrimônio histórico arquitetônico pereça. Essa perícia
toma por base a comunicação entre o sistema da ciência e do direito, conforme anteriormente
referido. Inclusive, decisão141 da Quarta Câmara Cível do Egrégio Tribunal de Justiça do Rio
Grande do Sul declarou que o Município deve preservar a Capela de São Roque, localizada no
município de Caxias do Sul, através do tombamento definitivo. Nesse caso, o sistema jurídico
promoveu uma irritação no sistema político, visto que a declaração de valor cultural,
histórico, ambiental e arquitetônico do bem fez com que referida irritação fosse codificada
pelo Município de Caxias do Sul e operacionalizado o tombamento do bem.
140
141
As ações coletivas apresentam uma forma efetiva para a proteção do patrimônio histórico arquitetônico,
conforme explica Carlos Alberto Lunelli (A proteção do meio ambiente urbano e do patrimônio cultural por
meio das ações coletivas: a experiência jurisdicional brasileira. Revista Jurídica do CESUCA. v.1, n. 2, p. 24,
dez./2013.) “principalmente através das chamadas ações coletivas , a tutela judicial do meio ambiente
ganhou evidência e relevância com o passar dos anos. É que o legislador ordinário, antes da promulgação da
Constituição Federal de 1988, já observou a importância e o destaque que tal direito demandava para ser
corretamente respeitado. Dessa forma, as ações coletivas são a força instrumental para a realização
processual da proteção do meio ambiente, e, no Brasil, ganhou ainda mais evidência com a introdução no
ordenamento jurídico da Lei da Ação Civil Pública”.
Atente-se para a referida decisão do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, na
Apelação Cível nº 70006812093, rel. Des. João Carlos Branco Cardoso: AÇÃO CIVIL PÚBLICA CAPELA DE SÃO ROQUE, DISTRITO DE FAZENDA SOUZA, MUNICÍPIO DE CAXIAS DO SUL VALOR CULTURAL, HISTÓRICO, AMBIENTAL E ARQUITETÔNICO DO BEM - RISCO DE
DEMOLIÇÃO - AÇÃO OBJETIVANDO VER DECLARADOS TAIS VALORES EM RELAÇÃO AO
IMÓVEL DETERMINANDO-SE AOS RESPONSÁVEIS PELA MANUTENÇÃO O DEVER DE
PRESERVÁ-LO E RESTAURÁ-LO - MUNICÍPIO QUE NÃO VINHA ADOTANDO AS NECESSÁRIAS
PROVIDÊNCIAS PARA O TOMBAMENTO DO BEM - ACORDO FORMALIZADO ENTRE O
MINISTÉRIO PÚBLICO E OS DEMAIS RÉUS, EXCLUÍDO O MUNICÍPIO QUE PERMANECEU
INTEGRANDO A LIDE - FATO SUPERVENIENTE DECORRENTE DA DECLARAÇÃO DO
TOMBAMENTO DEFINITIVO DA CAPELA DE SÃO ROQUE PELA COMISSÃO ESPECÍFICA E
PERMANENTE PARA PROTEÇÃO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E CULTURAL DE CAXIAS DO
SUL - APLICAÇÃO DO ART. 462 DO CPC - RECURSO PREJUDICADO. Agravo retido do município
desprovido. Agravo retido dos demais réus e apelo prejudicados. (RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de
Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação cível nº 70006812093. Apelante: Município de Caxias do
Sul e outros. Apelado: Ministério Público. Interessado: Domingos Vanazzi e outros. Relator: Des. João
Carlos Branco Cardoso. Porto Alegre, 09 de junho de 2004).
71
No caso do sistema da Economia as operações são feitas pelo meio de comunicação
chamado dinheiro.142 Um dos problemas da economia é que ela opera sob uma escassez de
bens, visto que a produção é limitada pelo próprio mercado, logo, os bens não estão acessíveis
de maneira ilimitada, assim, o dinheiro vai estabelecer quem pode ou não adquirir
determinada propriedade. A codificação da propriedade, ou seja, o fato de o indivíduo ser o
proprietário da coisa porque se comunicou por meio do dinheiro, vai definir quem tem os bens
e que não os tem. Da mesma forma, a circulação desses bens é possível através do dinheiro.143
Conforme se observa o dinheiro é meio de suma importância para o sistema da economia,
uma vez que permite a sua operacionalização.
Explica Adam Smith que ao longo dos anos o escambo deu origem a utilização do
dinheiro, assim, “em todas as nações civilizadas o dinheiro se transformou no instrumento
universal de comércio, através do qual são compradas e vendidas — ou trocadas entre si —
mercadorias de todos os tipos”, por meio dessas operações a propriedade sobre os bens
também se altera, visto que para aquele que pagou o valor em dinheiro, a propriedade lhe é
transferida. Essa troca de mercadorias é perfectibilizada a partir do valor de troca das
mercadorias. O valor de um bem é medido por meio de sua utilidade ou do poder de compra,
a utilidade do bem refere-se ao valor de uso, enquanto que o poder de compra, ao valor de
troca. De todo o modo, referidos valores vão depender da limitação e produção do bem na
natureza.144
O dinheiro torna-se objeto de desejo para todas as pessoas, como é universal e
monetariza o valor das coisas, acaba por ocasionar a perda de individualidade de valorização
dos bens. Esse desejo uniformiza as coisas: “as coisas perderam, de fato, a aspereza dos perfis
individuais que lhes eram próprios. Elas foram uniformizadas e descaracterizadas pelo
dinheiro”.145 É o que ocorre com o patrimônio histórico arquitetônico porque quando o
observador (sistema psíquico ou social) deixa de atribuir à construção a noção de história,
cultura, identidade nacional, perde-se a individualização desse bem e as características que lhe
142
Convém mencionar a função do dinheiro como meio de comunicação generalizado simbolicamente, ou seja,
assim como o poder, a verdade científica, o amor, a arte, os valores “son estructuras particulares que
aseguran probabilidades de éxito a la comunicación, porque transforman en probable el hecho improbable de
que una selección de Alter sea aceptada por Ego” (CORSI, Giancarlo. GLU: glosario sobre la leoria social de
Niklas Luhmann. Tradução por Miguel Romero Perez e Carlos Víllalobos. México: Anthropos, ITESO,
Universidad Iberoamericana, 1996. p. 66; 106).
143
Ibid. p. 69-70.
144
SMITH, Adam. A riqueza das nações: investigação sobre sua natureza e suas causas. São Paulo: Editora
Nova Cultural, 1996. v. 1. p. 85.
145
CLAM, Jean. Monetarização, generalização da cobiça paradoxo do direito. In: ARNAUD, André-Jean;
LOPES JR., Dalmir (Org.). Niklas Luhmann: do sistema social à sociologia jurídica. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2004. p. 224-225.
72
são próprias devido a história que está relacionada à construção. Por que ela tem esse formato
e material? A que família pertenceu? Qual é o significado dessa família para a formação da
comunidade? E para a formação da nação? A visão através da óptica do dinheiro não
relaciona todas essas questões, muito antes pelo contrário, apaga-as, justamente porque não
importam para ele, a monetarização traz consigo o desejo pelo dinheiro: o ponto de
observação seria se a conservação ou a demolição do patrimônio histórico trará um superávit
ou prejuízo.
Com a noção de pós-modernidade observa-se que a economia capitalista ao longo dos
anos não teve considerações com o meio ambiente, seu desenvolvimento foi voltado para as
operações internas, o mercado. Buscou-se uma ampliação da produção nas organizações
econômicas, sem que com isso se atentasse ao patrimônio histórico arquitetônico. É
característico do sistema econômico internalizar o lucro obtido pela sua operacionalização e
distribuir os prejuízos/custos, logo, o lucro é proporcionado a uma pequena parte da
população, enquanto que os custos são absorvidos pelas camadas pais pobres da população.
Conforme foi explicado anteriormente, na sociedade de risco, e por isso essa concepção é
fundamental para uma análise pós-moderna, o efeito bumerangue faz com que aqueles que
lucram com a atividade econômica também sejam atingidos pelos efeitos do risco produzido.
Sob esse enfoque há uma distribuição mais equânime dos custos de produção econômica. Isso
ocorre porque o sistema econômico precisa de lucro para a manutenção das suas operações,
logo cria na sociedade expectativas voltadas ao consumo, faz com que sejam produzidas
necessidades na população, somente satisfeitas com a compra do produto, fazendo com que a
operacionalização mantenha-se constante e atenda aos seus propósitos. De todo o modo, as
ressonâncias entre o Direito e a Econômica podem gerar tanto conflitos construtivos, quanto
destrutivos ao meio ambiente, em especial o meio ambiente cultural, por isso o Direito,
enquanto sistema regulador necessita preservar o seu código interno e pautar pela proteção do
patrimônio histórico.146
Pois bem, como o dinheiro é o que movimenta a economia, para que ela integralize a
proteção do patrimônio histórico necessita abrir-se às ressonâncias dessa proteção ambiental,
codificando-a de acordo com o seu sistema. A proteção dependerá do lucro obtido com ela. A
geração de lucro com o patrimônio histórico é possível, conforme se tem observado nas
cidades que investem em atrativos turísticos. Como a observação econômica opera pelo lucro,
146
FLORES, Luis Gustavo Gomes. Decisão jurídica e sistema econômico na perspectiva de uma reflexão
ecológica. In: ROCHA, Leonel Severo (Coo.). Direito ambiental e autopoiese. Curitiba: Juruá, 2012. p. 119120.
73
a crítica que faz Montanari a tal realidade social é quando os valores cívicos e culturais do
patrimônio histórico são deixados de lado para que ele seja tratado somente com fonte de
riqueza. As cidades viram grandes parques turísticos, as igrejas, parques que outrora
representavam os anseios democráticos da população passam a ser um local visitado mediante
pagamento pelo turista, cujo valor obtido ao final gerará lucro para o Estado.147
O Estatuto da Cidade (Lei nº. 10.257, de 10 de julho de 2001) seguindo as disposições
constantes na Constituição Federal dispôs no seu artigo 2º, inciso XII que política urbana tem
por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade
urbana, tendo como uma das diretrizes a proteção, preservação e recuperação do meio
ambiente natural e construído, do patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico e
arqueológico. Referido Estatuto prevê ainda o direito de preferência ao Poder Público na
aquisição de imóvel urbano entre particulares, quando necessitar de área para a proteção de
interesse histórico, cultural ou paisagístico.
Sob uma perspectiva econômica, conforme acima mencionado, a fim de resgatar o
patrimônio histórico arquitetônico surge o turismo,148 o qual possui amplitude global e está
presente em todas as cidades,149 haja vista que com a rotina e o modo de vida que o ser
humano apresenta, está cada vez mais difícil morar em cidades grandes, pois carregam
consigo um ônus desgastante. Essa realidade faz com que as cidades menores, ou mesmo as
que preservam as suas edificações históricas, sejam o destino dos visitantes, em especial para
descanso.
Percebe-se desse modo que o turista muitas vezes é colocado como o núcleo de
interesse nas cidades, criando-se para ele uma aparelhagem que garanta sua agradável estadia,
ocorre que se tratando de patrimônio histórico arquitetônico, deve-se ter ciência que em
primeiro plano está a proteção do edifício histórico, cabendo ao turista uma atitude de
contribuição da sua preservação.
Tal problema configura a necessidade do Poder Público gerir a disponibilização, bem
como a visitação do patrimônio histórico, de modo que a preservação mantenha-se mesmo
147
MONTANARI, Tomaso. Le pietre e il popolo: restituire al cittadini l’arte e la storia dele città italiane. Roma:
Minimum fax, 2013. p. 11.
148
Maria Cristina Rocha Simão (Preservação do patrimônio cultural em cidades. Belo Horizonte: Autêntica,
2001. p. 64) traz a dificuldade que existe para conceituar-se o “turismo”, tendo em vista que é caracterizado
como um fenômeno social que traz consigo uma série de efeitos sobre o meio ambiente, de caráter
econômico, social, cultural, ecológico e político.
149
Foi no século XIX que se começou a fomentar as viagens com o intuito de trazer visitantes para conhecer o
patrimônio histórico, principalmente de origem grega e clássica, o que consequentemente vai consolidar a
indústria do turismo, já que no ano de 1907 funda-se a 1ª agência de turismo, que vai proporcionar viagens
em excursão (CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. Tradução de Luciano Vieira Machado. 3. ed.
São Paulo: Estação Liberdade: UNESP, 2006. p. 172).
74
com toda a exposição a que será colocado. James Martson Fitch150 chama essa situação de a
quarta dimensão da preservação, pois, “as relações entre o observador e o observado são
diferentes das relações originais de usuário e objeto de uso”. O processo de exibição,
visualização do patrimônio histórico é característica da cultura contemporânea e “responde à
necessidade das pessoas restabelecerem algum contato vivencial com a evidência material de
seu próprio passado”. Mas, esse patrimônio ao ser aberto a exposição e receber pessoas fica
sujeito a degradação, de modo que o turismo deve também tomar as medidas para preservá-lo
de sua própria ação.
Além disso, a utilização turística do patrimônio histórico deve ocorrer de forma
cuidadosa, pois em virtude do fomento econômico que traz para a cidade ou mesmo Estado
onde está inserido, não se pode olvidar que as construções históricas dependem do contexto
onde estão. Precisa haver o cuidado para que a população local não altere o seu modo de vida
conforme a indústria turística o necessite, mas ao contrário, que permaneça com as tradições
perpetuadas por gerações, as quais já são modificadas na pós-modernidade conforme
explicado anteriormente. Essa situação da alteração da comunidade local demonstra
precisamente a irritação do sistema da Economia perante o sistema social. Deve-se atentar em
até que ponto as ressonâncias advindas do sistema econômico acabam por corromper os
demais sistemas. Importante esclarecer que é normal dar a uma construção histórica uma
utilização diversa para a qual foi construída. O problema ocorre quando a comunidade perde a
sua identidade e torna-se uma empresa preocupada unicamente na exploração turística.
A técnica de utilização do patrimônio histórico para finalidade diversa, e nesse caso
turística, é chamada por Françoise Choay151 de transformação da construção histórica,
contudo, alerta quanto a destinação que lhe é dada, pois,
“a transformação, embora
pertinente, louvável e interessante em si mesma, de habitações antigas em alojamentos de uso
social, levou, em algumas cidades francesas, a verdadeiros massacres (externos e internos)”
porque quem o fez não tinha o conhecimento técnico necessário, conclui com a seguinte
indagação “era preciso transformar o frágil hotel Salé em Museu Picasso, por onde desfilam
centenas de milhares de visitantes e que já precisou de duas restaurações?”.
A conservação da forma referida pela autora, cumpre unicamente ao poder estético
do patrimônio histórico arquitetônico, já que conservado somente para embelezar a cidade,
deixando-se de lado a questão da preservação da cultura, a qual anda, ou ao menos assim
150
151
FITCH, James Marston. Preservação do patrimônio arquitetônico. Texto em Português editado por Sylvia
Ficher. São Paulo: FAUUSP, 1981. p. 61.
CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. Tradução de Luciano Vieira Machado. 3. ed. São Paulo:
Estação Liberdade: UNESP, 2006. p. 221.
75
deveria, lado a lado com a conservação das construções históricas. Por isso, é preciso
enxergar além da beleza, procurar o que os olhos não veem de plano.
Com o crescente aumento populacional, de fato, o patrimônio histórico arquitetônico
deve ser reutilizado152. Entretanto, o Poder Público ao autorizar a reutilização da construção
histórica deve agir com precaução para que casos como o citado anteriormente por Françoise
Choay não ocorram, pelo simples motivo que agem contra tudo o que a preservação do
patrimônio histórico arquitetônico ensina, o que se está preservando não são somente pedras e
cimento, mas sim, cultura e história.
Cumpre observar que Ana Lúcia Meira153 expõe que a intervenção do Poder Público
sobre a
edificação
poderá ocorrer de três
formas:
mutiladora,
recicladora ou
compatibilizadora. A intervenção mutiladora é a mais destrutiva, pois conserva somente a
fachada ou fração da edificação, perdendo-se o volume e a tipologia originais.
Já a
recicladora busca que o Poder Público intervenha sobre o patrimônio arquitetônico
preservando os parâmetros externos, bem como o volume original, sendo que internamente é
completamente modificado, inclusive sua tipologia. Ao passo que as intervenções
compatibilizadoras, ajustam a construção aos usos contemporâneos que permitem preservar
grande parte dos elementos originais. A intervenção mutiladora, como o próprio nome induz,
é a mais prejudicial ao patrimônio histórico, porque, via de regra, mantém-se a fachada e
constrói-se um edifício com o que restou da construção, ora, nesse caso, claramente o sistema
econômico sobrepôs-se aos demais, visto que nem o sistema da Política, muito menos o do
Direito, protegeram de forma eficaz o patrimônio histórico.
Pode-se dizer que a preservação do patrimônio histórico é considerada uma batalha,
seja pela fiscalização feita pelo Poder Público municipal – ou, nesse caso, a falta dela – em
detrimento a especulação imobiliária, ou mesmo quando na ausência da presença ativa do
Poder Público, as movimentações são realizadas pelos Conselhos do Patrimônio Histórico,
órgãos que são responsáveis pela sua defesa.
Entre a transformação da construção histórica e o acesso em massa ao seu interior
estimulado pelo turismo há uma linha delicada entre a preservação e a deterioração do
patrimônio histórico arquitetônico, por isso a indústria turística ao fomentar o acesso de
152
153
A reutilização, conforme explica Françoise Choay (Ibid. p. 219), consiste em reintegrar um edifício
desativado a um uso normal, subtraí-lo a um destino de museu, valorizando o patrimônio, contudo se deve
levar em conta o estado material do edifício, bem como um avaliação do fluxo dos usuários potenciais.
MEIRA, Ana Lucia Goelzer. O passado no futuro da cidade: políticas públicas e participação dos cidadãos
na preservação do patrimônio cultural de Porto Alegre. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004. p. 94.
76
visitantes aos locais tombados ou inventariados deve fornecer toda a proteção necessária a
conservação do bem.
A exploração turística por vezes pode ser considerada uma fonte de renda em muitas
cidades que conservam e restauram o seu patrimônio histórico arquitetônico, pois, além das
obras que permanecem preservadas, a população local consegue manter o seu modo de vida
típico, para passar isso ao visitante que ali chega.
Ora, um turista que mora em uma cidade repleta de edifícios e arranha-céus, não vai
visitar outra cidade para ver mais arranha-céus, ao contrário vai justamente para conhecer a
cultura desse povo, suas peculiaridades, construções típicas, monumentos, obras artísticas e
arquitetônicas e, também, interagir com essa nova cultura.
Sobre a relação entre o Direito e a Economia, e, a partir daí, com a propriedade resta
importante tecer algumas considerações. A propriedade é um instituto antigo,154 que remonta
ao período anterior a Cristo. Desde então, sua noção sofre modificações, adequando-se a
cultura temporal e realidade social de cada época, como no direito romano, onde houve a
instituição da propriedade privada, aliás, pode-se referir que, “los conceptos de propriedad de
las modernas codificaciones se remontan – a través del eslabón intermedio de la doctrina
romanística – al Derecho romano justinianeo, y si no em todos sus rasgos, si por lo menos en
lo esencial al clásico”.155 Para o Direito, a propriedade cria um conjunto de direitos, uma vez
que o proprietário do bem possui a liberdade de usá-lo como melhor lhe aprouver, sendo que
o Direito protege a sua propriedade de terceiros que porventura venham a interferir ou
ameaçar esse direito.156
Entretanto, não há mais o que se falar em propriedade que somente seja utilizada pelos
interesses de seu proprietário, mas sim na configuração da propriedade como um bem de
influência coletiva, já que o seu uso indiscriminado gera consequências perante toda a
sociedade. Esse novo paradigma encontra-se amparado pela Constituição Federal de 1988,
que prevê no seu artigo 5º, inciso XXIII que a propriedade deve atender a sua função social.157
154
155
156
157
Conforme Cássia Celina Paulo Moreira da Costa (A constitucionalização do direito de propriedade privada.
Rio de Janeiro: América Jurídica, 2003. p. 125) a origem da palavra propriedade é apresentada por duas
correntes: de um lado os doutrinadores sustentam que é oriunda do latim proprietas, o qual derivou de
apropriação de determinado bem corpóreo; outros estudiosos acretivam advir de domare, que designa
sujeitação ou dominação, correlacionando-se a domus (casa), cujo chefe era denominado dominus. O que
demonstra o poder exercido sobre todas as coisas sujeitas ao respectivo dono seria o domínio.
GÓMES, Jesús Miguel Lobato. Propriedad privada del suelo y derecho a edificar. Madrid, Editorial
Montecorvo, 1989. p. 33.
COOTER, Robert; ULEN, Thomas. Direito & economia. Tradução por Luis Marcos Sander e Francisco
Araújo da Costa. Porto Alegre: Bookman, 2010. p. 92.
Nesse sentido de forma exemplar o Desembargador Relator da Câmara Reservada ao Meio Ambiente do
Tribunal de Justiça de São Paulo, quando do julgamento da Apelação nº 0128961-87.2006.8.26.0053 referiu
77
Da mesma forma, considerando a proteção ao patrimônio histórico arquitetônico trazida pela
Constituição de 1988, o direito de propriedade exercido pelo proprietário do bem é restrito em
virtude da preservação que o texto constitucional estabelece para a cultura. Nesse sentido,
esclarece Carlos Frederico Marés de Souza Filho158 que uma casa “que cumpra sua função
social por servir de residência, quando tombada como patrimônio cultural, passa a ter também
a função social de preservar a memória e evocar uma manifestação cultural, isto é, agrega a
função social da propriedade”. Assim, o tombamento limita a utilização da propriedade, tendo
em vista que o proprietário deve conservar o prédio histórico, sendo permitidas alterações,
desde que não desvirtuem a construção.
A comunicação entre o Direito e a Economia pode se dar pelo código pagamento/não
pagamento, logo, uma vez percebida a intervenção que o tombamento, em consonância com a
função social, exerce sobre o direito de propriedade, cumpre ser analisada a questão do direito
à indenização do proprietário quando do tombamento do bem. O direito à indenização que
seria assistido ao proprietário do imóvel devido a limitações sofridas, em virtude do
tombamento do patrimônio histórico arquitetônico, deve ser analisado com cuidado,
considerando a amplitude que possui.
Para Cooter e Ulen159 quando há a violação ao direito de propriedade o principal
remédio jurídico é a indenização, ou seja, o pagamento, ressarcimento ao proprietário pelo
fato de não poder utilizar a propriedade que lhe pertenceria. Em especial, quando o bem é
desapropriado pelo Poder Público, em razão do poder estatal de tomar para si determinado
bem privado, a indenização pecuniária revela-se a medida adequada para compensar o
proprietário.
A princípio, ao bem tombado não cabe indenização porque as limitações160 que são
impostas pelo tombamento ao bem garantem a sua função social, pois, “o tombamento não
158
159
160
de forma taxativa sobre a função social da propriedade e a importância histórica da construção “É a cupidez,
a escassa erudição, o parco espírito cívico, o nenhum orgulho pela História, o descompromisso em relação ao
futuro, que encontram terreno fértil para invocar dogmas superados. Quais os da propriedade como direito
absoluto, sobre o qual esquecem, propositadamente recai uma hipoteca social. Toda propriedade deve
cumprir a sua função social. E a função social de um prédio histórico é servir de testemunha para o porvir.”
(SÃO PAULO. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apelante: Shabatino Simhon. Apelada:
Prefeitura Municipal de São Paulo. Relator: Renato Nalini. São Paulo, 29 de março de 2012. Disponível em:
<https://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/get Arquivo.do?cdAcordao=5794857&cdForo=0>. Acesso em: 28 jun. 2014.)
SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. Bens culturais e sua proteção jurídica. 3. ed. rev. e ampl.
Curitiba: Juruá, 2009. p. 27.
COOTER, Robert; ULEN, Thomas. Direito & economia. Tradução por Luis Marcos Sander e Francisco
Araújo da Costa. Porto Alegre: Bookman, 2010. p. 112; 188-189.
O sentido das limitações aqui mencionadas refere-se às limitações administrativas decorrentes do poder
soberano que o Estado detém perante a população que nele habita, “gerando para os proprietários obrigações
positivas ou negativas, com o fim de condicionar o exercício do direito de propriedade ao bem-estar local.
[...] O tombamento tem em comum com a limitação administrativa o fato de ser imposto em benefício de
78
limita o uso atual da propriedade, apenas proíbe a demolição das construções, limitando a
possibilidade futura de construção para novo uso, portanto, não violando o direito atual, mas
suma expectativa de direito futuro”.161 Além disso, as construções históricas carregam a
identidade cultural de uma sociedade, proteção garantida pelo texto constitucional, para que
um povo preserve a sua história.
Assim, não há o que ser indenizado, já que não houve prejuízo para o proprietário, no
momento do tombamento. Isso poderia ocorrer futuramente, caso quisesse desfazer-se do
bem. O fato de o tombamento causar limitações ao bem, não justifica o pagamento, já que em
muitos casos, o tombamento acaba trazendo uma valorização imobiliária ao bem, que passa a
ser sinônimo de história no local.162 Acerca do valor econômico do bem tombado expõe Maria
Cecília Londres Fonseca163 que “com o tombamento, o bem não perde o valor econômico que
lhe é próprio, enquanto coisa, passível de apropriação individual”, tendo em vista que sobre
ele a propriedade ganha dois nuances: “a propriedade da coisa, alienável, determinada por seu
valor econômico, e a propriedade dos valores culturais nela identificados que, através do
tombamento, passa a ser alheia ao proprietário da coisa: é propriedade da nação, da sociedade
sob a tutela do Estado”.
Ocorre que, se essas limitações ou medidas necessárias a manter o bem forem muito
onerosas, caracterizando a impossibilidade de o particular utilizar a construção histórica,
poderá ser configurada a desapropriação em virtude da utilidade pública do bem, já que o
artigo 5º, alínea k, do Decreto-Lei nº 3.365/1934 considera como caso de utilidade pública a
salvaguarda de monumentos históricos e artísticos, tanto os isolados ou integrados em
conjuntos urbanos ou rurais.
interesse público; porém dela difere por individualizar imóvel.” (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito
administrativo. 21.ed. São Paulo: Atlas, 2008. p. 123; 137)
161
SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. Bens culturais e sua proteção jurídica. 3. ed. rev. e ampl.
Curitiba: Juruá, 2009. p. 98.
162
Explica Carlos Fernando de Moura Delphim (Análise da paisagem cultural da região de Bento Gonçalves:
impacto cultural e proposta de gestão. Brasília: [S.ed.], 2013. p. 37) sobre a valorização imobiliária que
“cidades sem qualquer outro significado excepcional além daquele que foi reconhecido pelo tombamento,
pelo Iphan, como Tiradentes e Taraty, situam-se entre os municípios de mais elevado valor de solo urbano no
país. O reconhecimento e a divulgação do significado histórico e artístico de um sítio ou paisagem, urbano ou
rural, ao contrário de desvalorizar, tende a aumentar a cotação de seus imóveis. Foi o que aconteceu com um
projeto de revitalização do Morro da Conceição no Rio de Janeiro. Situado em área central da cidade, em
apenas um ano, uma casa que custava setenta mil reais passou a custar dez vezes mais, simplesmente porque
se passou a divulgar a importância do local. Promoveram-se atividades turísticas, estimularam os moradores
a abrirem suas portas vendendo trabalhos artísticos por ele produzidos. Hoje, esse local que há pouco exibia
as marcas de um processo de degradação aparentemente irreversível, ganhou uma nova e rendosa vocação.
Passou a receber turistas e visitantes, atraindo até cantores de fama internacional que vêm para gravar clipes
tendo como fundo a peculiar paisagem urbana”.
163
FONSECA, Maria Cecília Londres. O patrimônio em processo: trajetória da política federal de preservação
no Brasil. Rio de Janeiro: URFJ, IPHAN, 1997. p. 35.
79
Logo, caso configurada desapropriação da construção histórica, o proprietário deverá
ser indenizado, conforme já exposto pelos autores acima, tendo em vista a garantia do texto
constitucional, decorrente dessa forma de intervenção na propriedade. Além disso, a
preservação do patrimônio histórico arquitetônico, não pode caracterizar uma apreensão do
bem pela Administração Pública, em total negligência do proprietário.
No mais, caso o proprietário do bem tombado não possua recursos para efetuar obras
de conservação e reparação no patrimônio histórico arquitetônico, não terá direito à
indenização, mas deverá levar o fato ao conhecimento do Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional, antes que a construção histórica pereça. Se não o fizer será condenado a
pagar o dobro da quantia em que for avaliado o dano sofrido pela mesma coisa, no teor do
artigo 19 do Decreto-Lei nº 25/1937.
O Poder Público, sendo informado da necessidade das obras, deverá executá-las, no
prazo de seis meses, à custa da União, caso o bem tenha sido tombado por este ente federado.
Se permanecer inerte, o proprietário poderá solicitar a desapropriação do patrimônio histórico
arquitetônico tombado.
Portanto, sob o aspecto do dinheiro, no sentido sistêmico do termo, que conforme já
mencionado é um meio de comunicação genericamente simbolizado, a indenização nos casos
de desapropriação são reflexos do acomplamento estrutural do sistema econômico junto ao
sistema jurídico, como medida de indenizar o proprietário pela perda do bem.
Ao observar a produção específica dos três sistemas envolvidos na dificuldade para a
implementação das decisões jurídicas na sociedade, bem como que a intervenção direta de um
sistema em outro, não se coaduna com a própria teoria dos sistemas sociais e autopoiese,
Gunther Teubner164 explica que somente poderão ser realizadas intervenções indiretas, nas
seguintes formas: “observação sistêmica mútua, articulação pela interferência e comunicação
pela organização.” No primeiro caso, essa observação sistêmica ocorre na medida em que
determinado regulamento jurídico que influencie em outro sistema será internalizado por ele
de acordo com o seu código interno, o problema ocorre quando o Direito internaliza conceitos
que não são próprios do seu sistema e altera concepções de sua estrutura, por isso para que o
direito regule os outros sistemas sociais necessita regular a si mesmo.
A segunda forma de intervenção seria a articulação pela interferência, nesse caso todo
o ato jurídico é um ato de comunicação social formado por “unidade de informação,
expressão e compreensão”, mas apresenta dois circuitos comunicativos, por um lado a
164
TEUBNER, Gunther. O Direito como sistema autopoiético. Tradução por José Engrácia Antunes. Lisboa:
Calouste, 1993. p. 155; 164-165.
80
informação é transmitida pelo código legal/ilegal, por outro o fluxo de informação do sistema
jurídico comporta os critérios que são utilizados pela sociedade, ações que produzem
mudanças no sistema do Direito. Logo, “podíamos dizer que o elemento da expressão da
comunicação é o mesmo na sociedade e direito, ao passo que os elementos de compreensão e
informação comunicativas variam consoante o sistema ao qual vai referida a expressão”. A
interferência mútua entre os sistemas torna possível a observação entre eles e a ligação entre o
sistema e o mundo da vida. O Direito pode sofrer interferências do sistema da economia, o
que é possível a partir da forma da abertura cognitiva, desde que atente ao seu código interno,
bem como não passe a adotar a óptica do mercado/produção, mas sim, que traga para si as
comunicações que auxiliem a aplicação dos atos regulatórios por ele produzidos e dotados de
sentido jurídico. 165
Por fim, a comunicação pela organização, decorre do fato de os principais sistemas
sociais, como direito, política, economia e social não possuírem formas de ação coletiva, eis
que os seus atos referem-se às operações realizadas dentro do próprio sistema. Possuem,
assim, mecanismos de organização formal que atribui poderes aos seus atos, sobre os seus
membros em razão de uma retórica política, “essas organizações formais, enquanto actores
colectivos, podem assim comunicar através das fronteiras dos subsistemas funcionais, mas
apenas sob condição de ser construído um sistema de comunicações intersistémicas”. Por
assim dizer, a organização formal faz parte da estrutura autopoiética operativamente fechada e
por meio da comunicação vai realizar a inter-relação dos sistemas.166
Com essas observações realizadas por Gunther Teubner verifica-se que é possível a
regulação social pelo sistema do Direito, ainda que de maneira indireta, devido a cláusula
operacional e organização dos sistemas sociais. Impõe-se a comunicação e a intervenção do
Direito por meio da organização porque na matéria de risco e direito ambiental, a preocupação
está na sua preservação para as futuras gerações.167 Por isso, a manutenção da organização do
Direito, que trata na sua legislação pátria da proteção ao patrimônio histórico arquitetônico
possibilita que os demais sistemas sejam regulados por essas normas de maneira
sistemicamente adequada.
Essa é uma batalha que o Direito precisa continuar lutando, pois, as discussões que
envolvem o sistema econômico e poder da política tendem a beneficiar as corporações e
165
TEUBNER, Gunther. O Direito como sistema autopoiético. Tradução por José Engrácia Antunes. Lisboa:
Calouste, 1993. p. 176-177; 187.
166
Ibid. p. 191-192.
167
WEYERMÜLLER, André Rafael. Teoria dos sistemas e energia Eólica: construindo a superação das
improbabilidades comunicativas entre direito e economia. In: ROCHA, Leonel Severo (Coo.). Direito
ambiental e autopoiese. Curitiba: Juruá, 2012. p. 87-88.
81
grupos econômicos voltados ao capital, que não estão interessados na proteção do patrimônio
histórico, exceto se por ventura determinada construção histórica permitir o ganho de capital.
O que nem sempre acontece, tendo em vista que, por via de regra, a transformação da
construção histórica em dinheiro, por meio da exploração turística, demanda investimento e
um aparato para manutenção e divulgação do bem, nesse contexto, em uma análise econômica
a curto prazo, realmente a construção de um edifício comercial no local torna-se mais
lucrativo. Mas, nessa situação o Direito precisa intervir, tendo em vista que está sob
observação a preservação da identidade e do meio ambiente cultural, assim, o direito pode
“flexionar suas codificações de maneira a inibir os derivados (dérives) da politização e de
empoderamento corporativo”, permitindo assim a concretização das normas constitucionais
características do Estado-nação.168
Diante da irreversibilidade que a demolição da construção histórica representa para a
sociedade, na medida em que, após destruída, não é possível construí-la novamente com os
mesmos valores e matérias inerentes à antiga construção. Para Cass Sustein,169 a importância
da irreversibilidade deve ser tomada a partir de duas concepções distintas. De um lado há a
análise da ideia de valor da opção e quanto recurso despender para buscar maiores
informações sobre o risco. Isso porque, quando se está diante do risco de irreversibilidade não
se lida com uma linha linear, mas se criam várias irreversibilidades advindas de uma causa,
por isso, tem-se que racionalizar com dados científicos, pautados no Estado de Direito. A
segunda concepção trata do fato de que está se discutindo a perda de bens que são
incomensuráveis, não são substituíveis. Dessa forma, para que o sistema econômico
internalize sobre a proteção ao patrimônio histórico arquitetônico precisa levar em conta essa
segunda concepção de irreversibilidade.
Como forma de mensurar a sua proteção, o autor realiza uma avaliação econômica
sobre o bem ser preservado. Sugere a noção de valor da existência, pagar para preservar uma
área que não será explorada. Em outras palavras, dar montante em dinheiro para salvar uma
área intocada. Um projeto de impacto ambiental precisa conter esse valor, especialmente
porque os sistemas estão lidando com uma perda irreversível, e quando paira a incerteza sobre
o tempo, magnitude e probabilidade da perda, necessita haver a noção de que essa situação
gera um pagamento para manter a flexibilidade para o futuro. Logo, a irreversibilidade pode
168
169
CLAM, Jean. Monetarização, generalização da cobiça paradoxo do direito. In: ARNAUD, André-Jean;
LOPES JR., Dalmir (Org.). Niklas Luhmann: do sistema social à sociologia jurídica. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2004. p 236-239.
SUSTEIN, Cass. Irreversibility.Law, Probability and Risk. v. 9, 3-4, set./dz., .London: Oxford University
Press, p. 230, 2010.
82
ser entendida em termos econômicos, por meio do sistema econômico no código
pagamento/não-pagamento, determinando-se um valor de preservar a flexibilidade para um
futuro incerto.170
No sistema econômico, quanto maior o grau de complexidade “graças à divisão de
trabalho, livre comércio e razoável desregulamentação” melhor tal sistema poderá se autoregular sem ficar sujeito a frequentes ressonâncias do Direito. A complexidade do sistema
econômico faz com que suas operações fiquem adstritas a comunicação de sua estrutura, a
qual encontra os mecanismos para comportar as expectativas sociais. A regulação jurídica
geralmente dá-se por meio de obrigações trabalhistas, tributárias, congelamento de preços, e
para o descumprimento de tal norma, o Direito impõe uma penalização ao infrator. O sistema
da economia internaliza essa ressonância no sentido de custo de negócio, por isso, pode ser
que opte por cumprir ou não as determinações jurídicas, caso não cumpra fica sujeito às
penalizações. Porém, essas penalizações já estão computadas no custo, por isso, às vezes é
mais benéfico ao sistema econômico continuar a descumprir a regulamentação do que
efetivamente cumpri-la.171 No caso da proteção do patrimônio histórico, a normativa
constitucional e legislativa demanda uma ressonância em toda a sociedade, porém, seguindo a
linha de pensamento sistêmica já exposta, na análise do sistema econômico, por vezes é
vantajoso demolir a construção e pagar uma indenização, para que no local construa-se um
edifício, do que efetivamente protegê-la em prol das presentes e futuras gerações.
Quando se fala na diferença entre legislação e decisão judicial cria-se a falsa premissa
de que a legislação cria um Direito genérico, enquanto que a decisão judicial refere-se ao caso
em concreto, ao caso em análise no Poder Judicial. O que comumente não se menciona é que
a decisão do juiz também formula regras gerais, pois ao proferir uma decisão o julgador
vincula-se a ela, visto que se ocorrerem casos iguais, deverá determinar a mesma decisão.
Assim, em ambos os casos há uma generalização, logo, a diferenciação normativa do sistema
do Direito irá ocorrer ao tipo de tratamento aplicado a uma situação genérica. A relevância da
decisão judicial é observada porque ao contrário do legislador, o juiz se vincula com a decisão
proferida, ora, a partir do momento que o seu entendimento seguiu determinada linha,
generalizou-se, de modo a determinar a maneira como se darão as suas próximas decisões.
Nesse contexto, a produção de novo direito vai depender de situações controversas novas,
tendo em vista que casos idênticos deverão ser decididos de acordo com as decisões já
170
SUSTEIN, Cass. Irreversibility.Law, Probability and Risk. v. 9, 3-4, set./dz., .London: Oxford University
Press, p. 230-231; 237, 2010.
171
CARVALHO, Cristiano. Teoria do sistema jurídico: direito, economia, tributação. São Pauli: Latin, 2005. p.
264-266.
83
proferidas anteriormente. A produção de inovação judicial não advém de um processo
institucionalizado, mas sim das modificações que são elaboradas para a concretização de uma
decisão em um conflito decisório, tais modificações posteriormente, deverão tornar-se parte
do próprio direito normativo, “essa limitação do juiz está intimamente ligada ao fato de que
ele lida com situações onde já ocorrem frustações; de que ele trata do processamento de
frustações, para o qual são essenciais um rígido referencial para as decisões e a manutenção
das normas decisórias”. Cabe, portanto, ao legislativo incorporar as modificações na
legislação, pois, no positivismo “o direito só pode ser institucionalizado enquanto variável,
quando sua variação submetida a processos de assimilação de aprendizado”.172
O fato é que sob o contexto pós-moderno da globalização parece que se torna
impossível ao Estado de Direito livrar-se das amarras do sistema econômico, pois como se
amplia em nível regional e global a comunicação entre os sistemas, ele acaba por realizar
reflexos significativos no ordenamento jurídico dos Estados-nação. Na sociedade mundial a
comunicação deixa de ser limitada pelas fronteiras territoriais e identidades culturais, por isso
a sociedade não é mais vinculada apenas ao ente estatal, mas faz parte da rede de informações
que a influencia. Entretanto, isso ocasiona problemas para o Estado de Direito, tendo em vista
que a sociedade mundial se reproduz com base no sistema econômico, “o código ‘ter/não-ter’
configura-se como o mais forte e, por reproduzir-se regularmente além de fronteiras, torna o
sistema econômico relativamente ‘intocável’ pelos Estados enquanto sistemas jurídicopolíticos diferenciados segmentariamente em territórios”. Logo, as decisões em nível de
sistema político e jurídico encontram dificuldades em impor-se no Estado Democrático de
Direito, o que ocasiona uma limitação a concretização do Estado. Os códigos binários da
política e do Direito encontram-se enfraquecidos pelo do sistema econômico. Outrossim, o
grau de influência do código binário econômico vai depender da solidez do Estado
Democrático de Direito, quanto mais efetivos forem os direitos e garantias proporcionados a
sociedade, menor será a influência dele, e consequentemente, permitindo a concretização da
soberania do Estado.173
Comumente se segue a tendência de atribuir ao sistema econômico e o liberalismo
adotado pelos Estados ocidentais as responsabilidades pelas mazelas sociais e inobservância
dos direitos fundamentais, ou mesmo, pela falta de preservação ao patrimônio histórico
172
173
LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito II. Tradução por Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1985. p. 34-37.
NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil – O Estado Democrático de Direito a partir e
além de Luhmann e Habermas. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 216-219.
84
arquitetônico, entretanto Jacques Généreux174 elabora a teoria de que esse horror não é
econômico, mas sim político, é de responsabilidade do sistema político. Para explicar tal
teoria separa o horror político em três graus. O primeiro grau seria o fato de que a pobreza e
desemprego não são acasos, mas sim decorrem das decisões políticas e ações (ou mesmo
omissões) dos governantes. Disso decorre que a desculpa fornecida pelos Governos de que o
Estado sofreria pressões externas, o que impediria ações políticas voltadas às minorias, não se
sustenta a uma análise profunda, pois, apesar da constante comunicação entre os Estados, este
não está impedido de promover ações políticas que atendam à população e diminuam as
desigualdades sociais, na realidade, as camadas menos favorecidas da população foram as que
mais se prejudicaram a partir dos anos 70, visto que pouco tiveram uma contraprestação do
Estado para a concretização das garantias fundamentais. O segundo horror seria o resultado
indireto do processo democrático. Como os candidatos precisam competir entre si para
conquistar os eleitores, e por conseguinte, assumir o seu assento no Poder Legislativo e
Executivo, isso faz com que a principal preocupação dos políticos seja a sua chegada e
manutenção no poder, o sucesso nas urnas. De modo que os governantes criam estratégias
para que a população acredite no seu discurso e não necessariamente executam o que
prometem. O terceiro horror seria a gradativa perda de interesse da sociedade no discurso
político e no interesse pela concretização do bem comum pelo Poder Publico. Com isso há a
predominância de uma democracia sem voz, onde as pessoas não reivindicam ou cobram dos
políticos, exatamente devido a essa falta de credibilidade. Ao mesmo tempo em que a
população se cala, abre-se espaço para grupos políticos que bradam discursos xenofóbicos,
racistas, passem a ganhar adeptos ao seu discurso, o problema é que este não atenta ao bem
comum e nem mesmo aos princípios democráticos do Estado.
Esses horrores trazidos pelo autor ajudam a entender os problemas enfrentados pelo
sistema político e também, como às vezes o observador é tentado a acreditar que o sistema
econômico é sozinho a fonte de corrupção dos demais sistemas, quando na verdade, todos os
sistemas sociais podem promover ineficiências internas, necessitando de um contínuo cuidado
para que não se corrompam.
Por isso, a importância em estabelecer a comunicação entre esses sistemas sociais, sem
que um se sobreponha sobre o outro. Para Marcelo Neves a alopoiese do sistema jurídico
ocorre quando ele dá preferência ao código binário dos outros sistemas, ocorre que, além
disso, existem fatores que quebram com o fechamento operativo do sistema jurídico, como
174
GÉNÉREUX, Jacques. O horror político: o horror que não é econômico. 3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 2000. p. 49-50; 78; 103.
85
interesses privados sobre o interesse público, favores familiares, são fatores externos ao
sistema jurídico, que não conseguem ser codificados pelo sistema, mas que determinam que
decisões jurídicas sejam proferidas sem a observância do código interno. Trata-se de uma
corrupção sistêmica, onde o direito fica sem conseguir desviar-se das irritações externas ao
sistema, as quais ocasionam a quebra da sua estrutura. Há uma “tendência à generalização em
experiências jurídicas típicas da modernidade periférica, atingindo o próprio da diferenciação
funcional e resultando na alopoiese do direito”175 Essa corrupção explica o porquê de muitas
decisões jurídicas não pautarem pela proteção constitucional do patrimônio histórico, mas
sim, sofrerem influências de outros códigos, o que determina que o sistema jurídico deixe de
proteger a própria ideia de Estado de Direito desenvolvida por Canotilho.
A corrupção dos sistemas apresenta-se quando o sistema do Direito não consegue
proteger os seus bens, constitucionalmente previstos, como o meio ambiente cultural, em
razão de interesses e irritações econômicas. Nesse contexto, o subsistema do Direito
Ambiental vê-se pequeno diante de toda a força do sistema econômico, ocasionando que as
decisões jurídicas pautem pela adoção de outros códigos binários, o que, obviamente, dificulta
as operações que envolvam matérias de Direito Ambiental. Logo, a principal questão que traz
desconforto ao sistema não é a produção legislativa, uma vez que as leis para proteção do
patrimônio histórico arquitetônico existem e são bem amplas quanto à conservação da
identidade cultural, além de o próprio sistema político possuir em sua estrutura órgãos
responsáveis pela defesa e conservação das construções, o que efetivamente dificulta a
operacionalização do sistema seria uma espécie de abertura operacional que torna as decisões
jurídicas “menos jurídicas” e mais políticas ou econômicas.176
Essa corrupção pode ocorrer em todos os sistemas sociais, claro que no que concerne a
proteção do patrimônio histórico arquitetônico tornam-se prejudiciais as ocorrentes nos
sistemas político e jurídico, visto que estes possuem os meios e poder para efetivar a
preservação perante a sociedade. Cada vez mais são observadas na mídia situações em para
obtenção de lucro a empresas privadas, multinacionais, apadrinhamentos políticos, o Poder
Público deixa de observar a estrutura dos sistemas, operacionalizando as suas decisões como
modo de burlar o tratamento jurídico e político que seria adequado, o que acaba
“privilegiando facções da sociedade, afrouxando a relativa autonomia do aparato estatal e
175
176
NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil – O Estado Democrático de Direito a partir e
além de Luhmann e Habermas. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 239-241.
DUARTE, Francisco Carlos; CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart; BAGGENSTOSS, Grazielly
Alessandra. A coerência do sistema jurídico em Luhmann com vistas ao fortalecimento do direito do meio
ambiente: uma proposta ao fechamento operacional e à abertura cognitiva da decisão judicial. In: ROCHA,
Leonel Severo (Coo.). Direito ambiental e autopoiese. Curitiba: Juruá, 2012. p. 254-255.
86
privatizando, de modo cada vez mais seletivo, os resultados dos investimentos do Estado”. E
o pior é que a legislação elaborada pelo sistema politico é projetada de modo a favorecer as
grandes empresas e dificultar cada vez mais a concretização dos direitos sociais. Mascara-se
sob o caráter de legalidade, legislação que não atende aos interesses da sociedade, mas sim de
uma pequena parcela da população, cujos interesses não são a concretização do Estado do
Direito, mas sim, benefícios específicos ao seu negócio.177 Nem toda legislação produzida, ao
menos se espera que não, apresenta-se corrupta estruturalmente, entretanto, a ocorrência de tal
fenômeno na pós-modernidade dificulta de sobremaneira a diferenciação funcional, autoreferência e autopoiese dos subsistemas sociais. E por consequência, a estabilidade da teoria
dos sistemas.
Na diferenciação funcional entre os sistemas a teoria do risco é essencial para a sua
auto-reprodução, uma vez que como os sistemas operam de modo fechado, abrindo-se apenas
cognitivamente para o ambiente, a noção de risco possibilita o controle do ambiente, pois o
sistema opera em condições de incerteza. Operar sob a condição de incerteza permite o
controle pelos sistemas sociais sobre si mesmo. Importante observar que o risco em si, não se
trata de um sistema social, mas consiste em uma comunicação social utilizada como meio de
controle da contingência pelos sistemas, mas não pode ser confundido com eles, porque,
enquanto o Direito prevê as próprias perspectivas com o futuro, o risco trabalha com a ideia
de incerteza e de probabilidade/improbabilidade. Da mesma forma, o sistema econômico
tem por objetivo o acesso aos bens e a propriedade, o que não tem influencia sobre o risco,
entretanto, observa-se que é possível que o sistema econômico monetarize o risco,
transforme-o em dinheiro, a fim de verificar os lucros e o benefício sob essa perspectiva.
Assim, as decisões que são tomadas pelos sistemas sociais tomam o cuidado de analisar os
possíveis danos decorrentes do risco dali advindo. Portanto, torna-se necessária “uma
contínua repolitização dos riscos, e como se sabe, para a política é arriscada tanto a situação
em que se decide, como a situação em que não se decide.” Especialmente porque a função da
política é tomar decisões coletivamente vinculantes, que ao fim e ao cabo vão refletir sobre
todos, ou ao menos, boa parte dos governados. 178
Por isso, entender a teoria dos sistemas sociais é fundamental para que se apreenda a
sociedade, bem como se trabalhe por uma construção plena do Estado. A comunicação entre
os sistemas é fundamental para a própria existência da sociedade, uma vez que faz com que os
177
178
CAMPILONGO, Celso Fernandes. O direito na sociedade complexa. São Paulo: Max Limonad, 2000. p. 58.
DE GIORGI, Raffaele. Direito, democracia e risco: vínculos com o futuro. Porto Alegre: Safe, 1998. p. 197198.
87
sistemas sofram transformações e evoluam dentro de seus próprios códigos internos, ao
mesmo tempo em que se mantém estável a ordem social. Nesse contexto o patrimônio
histórico arquitetônico deve ser protegido e todos os órgãos federados precisam atentar para
isso, pois se está tratando da identidade cultural de um Estado.
88
3 CULTURA E RISCO: COMO BUSCAR NOVOS CAMINHOS PARA A PROTEÇÃO
DO PATRIMÔNIO CULTURAL NA SOCIEDADE DE RISCO
O espaço da cidade é o espaço do mundo. A cidade inclui o
mundo. Raffaele de Giorgi
Antes de conjeturar sobre a importância da memória para planejar o tempo, bem como
sobre a influência desses dois aspectos para a proteção do patrimônio histórico arquitetônico,
é importante trazer o questionamento se tais aspectos efetivamente se tratam de um tema, ou
seja, se há realmente qualquer ligação entre tais suposições. Em um primeiro plano, a noção
de que o patrimônio histórico arquitetônico advém do tempo, da trajetória e da significação de
sua construção, o próprio termo histórico, remete ao passado, a um tempo que passou, foi
vivido na comunidade onde a construção histórica está inserida.
Em segundo plano, a memória, a tradição, fazem parte da dinâmica social dos Estados,
estes, enquanto sistemas sociais baseiam-se no contexto social previsto. Logo, parece que
abordar a memória do patrimônio histórico se trata de uma redundância, entretanto, diante das
alterações da sociedade em relação ao tempo, a memória está sendo continuadamente
esquecida. O esquecimento paira perante os Estados complexos. Os sistemas sociais
confundem-se diante da decisão que envolve a salvaguarda das construções históricas.
Logo, o presente tema, não só é possível, como apresenta uma forma de se pensar na
proteção, diante da sociedade de risco. O então presidente Jucelino Kubitschek, apesar de
parecer contraditório citá-lo no presente trabalho, uma vez que realizou um projeto homérico
e moderno, quando da construção da Capital Federal, o que se faz em razão da pertinência de
sua colocação, em um de seus discursos, referiu certa vez que é comum os povos jovens,
como o Brasil, não ter apreço pela história:
É comum aos povos jovens o desapreço pelas lições da História. A seiva
poderosa de vida que trazem no organismo moço não lhes deixa vagares para a
contemplação das paisagens que os ancestrais teceram. Ante o esplendor da vida,
fitam, impacientes, as perspectivas do futuro. Não se demoram na contemplação dos
poentes por mais belos que se apresentem. Anseiam apenas pelas radiosas luzes que
anunciam as alvoradas, esquecendo-se, porém, de que, na beleza das tradições,
reside a substância indispensável à estruturação do caráter, tanto de povos como de
indivíduos.179
179
KUBITSCHEK, Jucelino apud PIRES, Maria Coeli Simões. Da proteção ao patrimônio cultural: o
tombamento como principal instituto. Belo Horizonte: Del Rey, 1994. p. 31.
89
Pois bem, ao ser considerado um país do Novo Mundo, o Brasil não teve prontamente
a dimensão preservacionista que ocorreu durante séculos na Europa: em muitos países de
centro há uma cultura em prol do patrimônio histórico arquitetônico, ao passo que no Brasil,
seja por falta de recursos, ou por se considerar um país jovem, conforme referido acima por
Kubitschek, onde a cultura não estava ainda sedimentada, a primeira lei infraconstitucional
nacional protecionista foi promulgada somente em 1933.
Igualmente, a legislação criou formas e institutos para viabilizar a salvaguarda não só
das construções históricas, também do patrimônio cultural como um todo, o qual se ampliou
devido à evolução legislativa, especialmente com a promulgação da Constituição Federal de
1988.
Dentre os institutos criados, o tombamento, em conjunto com o inventário de fato são
as melhores formas de proteger-se um patrimônio histórico arquitetônico, já que o ato de
tombar significa inscrever o edifício no Livro de Tombo específico, transformando-o
juridicamente como intangível. Porém, é necessário que a população veja a importância do ato
de preservar o patrimônio. Não basta o Poder Público, por meio dos sistemas sociais,
conforme já referido no presente trbalho, preservá-lo se a população não vê o valor desse ato,
é preciso expressar-se na sociedade, como valor intrínseco, a conservação da cultura local ou
mesmo mundial.
3.1 OS EFEITOS DO TEMPO: A IMPORTÂNCIA DA MEMÓRIA PARA PLANEJAR
O TEMPO E OS DESAFIOS DE PENSAR NA PROTEÇÃO AO PATRIMÔNIO
HISTÓRICO ARQUITETÔNICO
Somos tempo personificado, e também o são as nossas
sociedades formadas pela história. Manuel Castells
Na primeira parte do trabalho especificou-se sobre os efeitos que a pós-modernidade e
a globalização possuem sobre a noção de tempo, bem como o descompasso entre o tempo e o
lugar. Diante disso, como preservar a memória e proteger o patrimônio cultural? A noção de
tempo desenvolve-se de maneira a formar a história e sentimento de pertencer a uma
comunidade. De modo que, no presente capítulo tem-se por bem analisar como o tempo é
entendido pela teoria dos sistemas, bem como de que forma apreender a importância do tempo
para a compreensão do patrimônio histórico arquitetônico.
90
Ao olhar para uma construção histórica, cada sistema psíquico cria uma noção e ideias
diversas sobre ela, a depender de sua realidade e valores, entretanto, é certo que o pensamento
de que é uma construção antiga paira em cada uma delas. Essa ideia de antiguidade remete ao
fato de que esse prédio já pertence ao lugar, antes mesmo de o indivíduo ter nascido. A sua
existência é anterior a do sistema que o observa. A construção fez parte da história de tantos
indivíduos, e continua fazendo-o, está em voga, por exemplo, celebrar o matrimônio em casas
históricas. Como não respeitar um patrimônio que agrega valores e faz parte da sociedade
antes mesmo do indivíduo pós-moderno?
Conforme refere Leonel Severo Rocha180 o tempo na teoria dos sistemas consiste na
observação da realidade a partir da diferença entre o passado e o futuro. Tal noção está
contextualizada em determinado espaço, sociedade, Constituição. Contudo, na sociedade pósmoderna observa-se o rompimento das noções tradicionais de tempo e espaço, assim, o modo
como o sistema social do Direito, o qual necessita manter estáveis as expectativas sociais, irá
responder as complexas demandas sociais - no presente trabalho especificamente aquelas que
demandem a tutela do patrimônio histórico -, depende diretamente da análise da noção de
tempo, inserto na sociedade de risco.
A noção de tempo e sua percepção pela sociedade modificaram-se consideravelmente
ao longo dos séculos. A consciência do tempo que atualmente se percebe na sociedade jamais
tinha sido observada anteriormente. Na percepção mitológica, durante a Antiguidade, o tempo
não existia como abstração, era visto como um objeto, pertencente ao plano sensível. Logo,
presente, passado e futuro confundiam-se na medida em que a consciência tomava somente os
fatos cujo passado e futuro fossem próximos, acontecimentos de perspectiva ao futuro distante
eram transportados para a noção de mito, lenda. O tempo tinha uma conotação decisiva e de
tamanha força, pois, regulava a vida dos homens e dos deuses; ele “pode ser bom ou mau;
favorável a certas formas de atividade e nefasto a outras; existe um tempo sagrado, o da festa,
do sacrifício e da reprodução do mito conexo com a volta do tempo ‘original’ e que coloca o
tempo profano ‘fora do circuito’”. A consciência do tempo era cíclica,181 baseava-se, em
180
ROCHA, Leonel Severo. Tempo e diritto: dal normativismo all’autopoiesi. In: BARRETO, Vicente de Paulo;
et. al. Statto e diritti nell’età della globalizzazione. Salermo: Brunolibri, 2010. p. 37-38
181
Somente com a consciência linear do tempo é possível perceber a separação entre passado, presente e futuro.
Sobre a diferença entre tempo linear e circular explica Luiz Rohden (O tempo no tempo e na constituição da
metafísica movente. Síntese Revista de Filosofia. Belo Horizonte, v. 33, n. 105, p. 58, 2006.) “no curso da
história, o tempo foi concebido basicamente sob a forma circular ou linear. Encontramos nas civilizações
cosmovitalistas e helênica a concepção circular de tempo. Na concepção egípcia ‘o mundo foi criado de uma
vez só, de forma permanente, incluído o Egito, ostentando desde a criação o mesmo aspecto imutável. As
mudanças eram entendidas como simples e irrelevantes aparências, ou como cíclicas, com o eterno retorno
do mesmo’; no caso da Grécia, ‘anto Platão como Aristóteles concebiam o tempo como coexistente com o
mundo, e este, sujeito a um processo cíclico’. Nas civilizações escatológicas, como a persa, a judaica e a
91
especial, nas estações, e trazia consigo o ritmo da vida em sociedade. O homem não se
preocupava tanto com o futuro, porque este nada mais era do que uma repetição do que já
havia acontecido. Assim, não havia espaço para independência e personalidade, por outro
lado, pairava um conformismo e aceitação do tradicional.182
Além disso, o tempo apresentava uma forte correlação com o espaço, tendo em vista
que como o passado, futuro e presente são vistos como um único plano, em uma espécie de
simultaneidade: “o tempo é vivido da mesma maneira que o espaço e o presente não está
separado do bloco temporal formado pelo passado e pelo futuro. O homem antigo vê o
passado e o presente estendendo-se em torno dele, interpenetrando-se e explicando-se um ao
outro”. Logo, o passado nunca termina, não se afastando do presente, da realidade. O que
justifica o culto aos mitos, aos rituais, os quais dominavam o presente. Ao passo que o futuro
ficava a critério das adivinhações, dos mitos, da vontade dos deuses. Isso traz um grande valor
ao destino, visto que não era possível combatê-lo, nada cabendo ao homem, a não ser
resignar-se. Essa resignação originava-se em especial no fato de que não havia abstração da
percepção do tempo, mas sim, uma repetição de gerações que se sucediam em torno de um
tempo circular.183
A interpretação linear do tempo formulou-se na região europeia, e foi em tal
consciência que posteriormente a modernidade pode balizar-se para formular suas
concepções, baseando-se na separação da história em períodos. O tempo linear adveio do
rompimento pelo cristianismo da consciência do tempo então percebida pelos pagãos. O
cristianismo foi o responsável em promover uma divisão escatológica do tempo, visto que
pautou em expô-lo como um processo, iniciado com o Antigo Testamento, o qual veio a
culminar no Novo Testamento. O conceito de tempo é diferente do de eternidade que
cristã, o tempo foi compreendido de forma linear, ou seja, ‘como algo que teve um começo absoluto com a
criação do mundo e terá um fim absoluto, com o seu fim’, visão que foi incorporada também pelo islamismo
com a noção de juízo final. Para estas civilizações a história é constituída pela luta entre o bem e o mal, Deus
e o demônio que terminaria, na consumação dos tempos, ‘com a vitória do bem’. A perspectiva linear da
‘história e do tempo persistirá até nossos dias, passando, de uma versão profundamente religiosa [...] para
uma visão profana [...]. O evolucionismo darwiniano e, de um modo geral, o cientificismo do século XIX,
inclusive em sua versão marxista, imprimirão um sentido puramente imanentista à concepção linear da
história’. Contudo, Nietzsche, com sua concepção de morte de Deus e do eterno retorno, propôs um ‘novo
entendimento circular do tempo’ e, contemporaneamente, ‘as teorias cosmológicas de G. Gamov e W.
Bonnor sustentam a tese de um infinito processo circular de explosão (o Big Bang), expansão (inflation),
reconcentração (big crunsh) e nova explosão do cosmo’. Enfim, de uma forma ou de outra, as concepções de
tempo linear ou cíclica, se encontram presentes e constituem nossa forma de agir, de pensar e de filosofar. À
luz do que foi dito, podemos compreender os efeitos dessas concepções tanto em relação à morte do modelo
metafísico, impulsionado pela perspectiva de tempo linear, quanto em relação à possibilidade de reformulá-lo
segundo uma concepção cíclica e linear de temporalidade”.
182
GOUREVITCH, A. Y. O tempo como problema de história cultural. In: RICOUER, Paul (Org.) As Culturas e
o tempo: estudos reunidos pela Unesco. Petrópolis: Vozes; São Paulo: USP, 1975. p. 265-266.
183
Ibid. p. 266-267.
92
antigamente também englobava o tempo terreno. Logo, na doutrina cristã, o cristão passava o
tempo terreno agindo de forma a aspirar a sua garantia de vida eterna, no plano divino. Além
disso, houve a divisão do tempo em duas épocas, quais sejam, antes e depois ao nascimento
de Cristo.
Essa nova formatação do tempo fundamentou-se em três acontecimentos “o
princípio, o apogeu e o fim do gênero humano”. Dessa forma, a visão cristã não se
preocupava unicamente com o passado ou com o futuro, mas sim com ambos ao mesmo
tempo: no passado enquanto tragédia e ensinamentos produzidos no Antigo Testamento, e
futuro, na medida em que a vivência terrena e presente garantiriam uma eternidade, cujo gozo
se daria de forma boa ou sofrida. O fim do gênero humano achava-se escrito nas profecias e
aguardava o retorno de Cristo à Terra a fim de que ocorresse o juízo final. Pelo que se percebe
a consciência do futuro, possuía uma preocupação constante com ele, e mais, tinha-se certeza
de que o futuro iria ocorrer e dependia unicamente da forma como o homem se portasse em
sua vivência terrena.184
Uma das grandes modificações no entendimento sobre a noção de tempo, surgiu com a
modernidade e a noção de sujeito trazida por Descartes.185 Trata-se de uma ruptura por meio
da qual é possível entender a modernidade e o papel do Direito. A modernidade cria a noção
de sujeito, o qual, na realidade cria a modernidade. É com a modernidade que se altera o
espaço da experiência e a forma como o tempo histórico até então era demarcado, pois no
medievo, com o predomínio do pensamento cristão, e o assujeitamento do sujeito à razão
divina, a realidade da sociedade ficava adstrita a uma dupla tensão no presente “de um lado, o
passado que condiciona a vida a partir de seu caráter pedagógico; de outro, o futuro que se
mantém obscuro pelo temor/ certeza da chegada do juízo final.” Assim, nesse período, tinhase a noção de que os erros do passado deveriam ser evitados. As pessoas agiam de modo a
prevenir eventos, cujos resultados já se conheciam, ao passo que o futuro não era conhecido,
184
GOUREVITCH, A. Y. O tempo como problema de história cultural. In: RICOUER, Paul (Org.) As Culturas e
o tempo: estudos reunidos pela Unesco. Petrópolis: Vozes; São Paulo: USP, 1975. p. 271-272.
185
Não cabe nesse momento um estudo sobre o sujeito trazido por Descartes, entretanto, na sua teoria o filósofo
observa que diante de uma realidade que foi colocada em dúvida, percebe que é apenas o sujeito (que diz eu
penso) que vai continuar isento de críticas Ao considerar que tudo era falso, chega à conclusão de que ele, o
ser pensante, precisava ser alguma coisa. Logo, adota como primeiro princípio de sua teoria filosófica a
máxima do penso, logo existo, visto que considerou uma verdade bastante abalizada e correta, podendo ser
livre de todas as críticas daqueles céticos diante de sua teoria. Descartes foi bem feliz na sua formulação
subjetivista, uma vez que ao notar que em penso, logo existo, não há nada que comprove que ele diz a
verdade, tão somente que para pensar é preciso existir, vai estabelecer como regra geral que apenas as coisas
que se idealiza de maneira clara e distinta é que são verdadeiras, a dificuldade que resta é distinguir de
maneira correta quais são as coisas que se concebe distintamente. A consequência do argumento do cogito
(penso, logo existo) foi o solipsismo cartesiano, onde há isolamento do eu em relação a todo o mundo
externo, bem como ao próprio corpo, que também se considera externo ao eu. Esse solipsismo apresenta uma
certeza tão forte porque é carregada de subjetivismo. (DESCARTES, René. Discurso de método. Tradução de
Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1996. p. 38-39)
93
de modo que era sujeito a ideias proféticas. Porém, com o passar dos séculos percebeu-se que
mesmo com todas as guerras, tidas como juízo final, que assolavam a Europa, a sociedade
continuava a reerguer-se. Outro fator que comunga em tal período foi que o liberalismo
econômico trouxe consigo as ideias de desenvolvimento e contínua melhora tecnológica.
Dessa forma, a soma desses fatores, faz com que ocorra uma ruptura na modernidade, pois,
surge a noção de contingência decorrente dos acontecimentos catastróficos acima citados,
assim, como o futuro é visto com esperança de desenvolvimento.186 Tal mudança de
pensamento foi fundamental, para o estudo do tempo, uma vez que influencia diretamente
sobre a forma como era percebido durante a modernidade,187 em especial, no que concerne ao
deslocamento da percepção sobre tempo e espaço propiciados pela própria alteração na ideia
de comunidade/localidade.
Essa mudança no pensamento trouxe consequências que hoje são aprofundadas no
estudo da teoria do risco. A partir do século XVI, como o futuro deixou de ser percebido
como juízo final, ele passa a ser observado como possibilidades finitas, a serem concretizadas
de acordo com um grau de probabilidade. A ponderação sobre os acontecimentos futuros teve
grande impacto na política, pois, lhe coube avaliar sobre o que de melhor e pior poderia
acontecer, a fim de prever meios para diminuir tais impactos quando efetivamente
ocorressem. Além disso, os governantes poderiam se preparar para o que não era esperado,
tendo em vista que em muitas oportunidades, as possibilidades previstas não eram alcançadas,
mas sim, outras situações que precisavam de uma resposta imediata do Estado. As predições
ponderadas, em razão de sua influência no cenário político, passam a alterar as situações
experimentadas pelos indivíduos, sendo consideradas o momento da consciência política.
Dessa forma, o tempo começa a ser percebido de acordo com essas predições, como parte de
um inesperado previsto. A predição produz o tempo e o projeta de acordo com o que ela
determina. Isso é fundamental para a percepção do tempo, tendo em vista que diferencia a
predição da profecia, na medida em que essa no momento em que não se concretiza, pode ser
adiada para o futuro, sendo que a concretização dos eventos proféticos é somente uma
confirmação daquilo previsto. De outro modo, a predição, na medida em que se baseia em um
186
187
STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do
Direito. 10. ed. rev., atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p. 171-172.
Niklas Luhmann (The future cannot begin: temporal structures in modern society. Social Research, 43:1,
Spring, 1976. p. 132) explica que há controvérsias sobre a data exata dessa concepção moderna sobre o
futuro. Segundo ele, parte da doutrina pensa que essa concepção advém do século XVII, outros da segunda
metade do século. Esta segunda opinião parece ser orientada para o fato de que a segunda metade o século
XVIII muda as suas expectativas sobre os próximos eventos a partir de um pessimismo para uma visão
otimista, de decadência moral para o progresso.
94
campo de possibilidade, quando não se concretiza, não pode ser repetida, ou prolongada, pois,
se mantém fiel às considerações iniciais que a formaram.188
No século XIX alterou-se a forma de se perceber a história. Nesse período, a Europa
encontrava-se em um forte movimento cientificista, a história deveria ser analisada, medida,
contada de acordo com a considerada verdade real. Essa verdade decorria do método
científico, dessa forma, o historiador poderia diferenciar povos superiores de inferiores,
civilizações progressivas de retrógadas, comparando-os com a história europeia, considerada
como parâmetro universal: “as nações europeias são apresentadas como a incontestável
expressão superior do Espírito universal. Elas realizaram suas determinações mais avançadas
e livres, mais civilizadas. Elas são espírito-atualizadas.” Esse discurso europeu foi utilizado
para justificar tanto o predomínio da história civilizacional europeia, quanto o seu movimento
expansionista sobre os outros Estados do Ocidente e do Oriente, pois, atos de violência eram
explicados a partir desse método de superioridade.189 Logo, durante a modernidade, o tempo
era medido, contado a partir da história europeia, de modo a analisar quão avançado estava
cada Estado.
Além disso, Reinhart Kosellek foi bem feliz em explicar a influência da noção de
progresso perante a valorização da história e a percepção do tempo. O progresso na
modernidade distanciou o espaço da experiência da expectativa do futuro, ou seja, a sociedade
deixou de abrigar-se no que o passado havia construído para o presente, para poder
desenvolver a ciência e tecnologia, na medida em que estas eram consideradas suficientes
para o futuro. Por corolário, aquela noção antes explicada de predições sobre as possiblidades
futuras, deixa de ser influente, pois, as expectativas então criadas eram da construção de um
futuro novo, o qual não deve basear-se nesse passado constitutivo da experiência, mas sim, na
ciência. Assim, “um futuro portador de progresso modifica também o valor histórico do
passado”, a história precisava ser analisada de forma crítica a fim de avançar junto com o
progresso.190 O autor ao trazer a ideia da modificação do valor histórico do passado ajuda a
compreender como o patrimônio histórico é observado e entendido pela sociedade. Trata-se
de uma construção que não espelha o progresso, muito antes pelo contrário, apresenta o
passado, logo, não possui serventia para o desenvolvimento da nação. Isso justificaria
facilmente, por exemplo, a sua demolição para a instalação de uma indústria. Talvez a
188
189
190
KOSELLEK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Tradução por
Wilma Patrícia Mass e Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto, PUC-Rio, 2006. p. 31-32.
REIS, José Carlos. História & teoria: historicismo, modernidade, temporalidade e verdade. Rio de janeiro:
FGV, 2003. p. 39-40
KOSELLEK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Tradução por
Wilma Patrícia Mass e Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto, PUC-Rio, 2006. p. 318-319.
95
percepção dessa situação ajude a clarear os pontos cegos explicados por Luhmann, em uma
observação sistêmica de segunda ordem.
Cada sistema social possui uma forma diferente de perceber o mundo, e por corolário,
uma consciência diversa sobre o tempo. Seja na sociedade brasileira, judaica, chinesa, grega,
o modo como o tempo é percebido depende da cultura ali localizada.191 Na modernidade o
homem vive de acordo com o tempo, planeja o futuro, predetermina qual o tempo que demora
a chegar a um local. O tempo e o espaço ocupam continuadamente a forma de vida do
indivíduo. Ocorre que o homem moderno, assujeitador do tempo, viu-se subjugado por ele. A
velocidade de informações e a noção de irreversibilidade estão cada vez mais presentes na
consciência individual. O ritmo da vida mudou. Quando o controle do tempo pelo homem – o
tempo da natureza, clima, ciclos foi substituído pelo artificial – passou a ser exigido pela vida
em sociedade, gradualmente o tempo foi se enxugando. Os empresários controlam o tempo de
trabalho de seus funcionários, o quais regulam a sua rotina de acordo com o horário da
empresa; os comerciantes necessitam que as encomendas cheguem ao consumidor
rapidamente. São criados os relógios para o controle do tempo, os quais são instalados nas
torres das igrejas e passam a reger gradualmente o ritmo de todos da cidade.192
A adoção de um instrumento para a medição do tempo foi fundamental ao gradativo
abandono europeu do mundo sub specie aeternitatis, fundado na ideia de eternidade,
desenvolvido durante séculos pela Igreja, com a consequente adoção de uma percepção sub
specie temporis, o controle do homem pelo tempo. Por meio dos relógios, houve uma
uniformização da contagem do tempo, de forma equânime para todos. Não haveria um tempo
qualitativo, de acordo com a postura boa ou má na Terra, mas sim um tempo igual para todos.
O tempo pode ser isolado e mensurado, e ao contrário das concepções anteriores, o presente
passa a ter grande relevância, visto que não é somente um ponto de passagem entre o passado
e futuro, ou mesmo, uma continuidade do passado, mas sim um momento que pode e deve ser
aproveitado, cabendo aos indivíduos empenharem-se e organizarem-se para poder aproveitar
todos os minutos do seu tempo.193 Há uma passagem no livro Alice no País das Maravilhas,
de Lewis Carroll, onde a Rainha de Copas grita em face do Chapeleiro: “Ele está matando o
191
Nesse sentido Carol Ezzell (Tempo e cultura. Scientific American Brasil. Edição Especial. São Paulo, n. 21,
[S.d.], p.43) exemplifica que algumas culturas ainda não fazem “distinções claras entre o passado, o presente
e o futuro. Os aborígenes australianos, por exemplo, acreditam que seus antepassados saíram engatinhando
de dentro da Terra durante o Tempo do Sonho. Seus ancestrais criaram a existência com seu canto, enquanto
davam nomes a todas as coisas, o que fazia com que elas passassem a existir. Até hoje uma entidade não
existe, a menos que um aborígene a ‘cante’”.
192
GOUREVITCH, A. Y. O tempo como problema de história cultural. In: RICOUER, Paul (Org.) As Culturas e
o tempo: estudos reunidos pela Unesco. Petrópolis: Vozes; São Paulo: USP, 1975. p. 263-264; 280.
193
Ibid. p. 281-282.
96
Tempo! Cortem a cabeça dele!”,194 isso retrata o que Gourevitch refere sobre o tempo, na
modernidade não existe a prerrogativa de “perder” tempo, este deve ser aproveitado ao
máximo, o que justificou o desenvolvimento do industrialismo decorrente desse período.
No livro de Lewis Carroll, o tempo é escrito com letra maiúscula e tratado como uma
pessoa, eis que o Chapeleiro refere que “se você conhecesse o Tempo como eu conheço não
falaria em desperdiçá-lo, como se fosse uma coisa. É um senhor.”, com o qual se poderia
negociar, “ele não suporta ser batido. Agora, se você mantivesse boas relações com o Tempo,
ele faria quase tudo o que você quisesse com o relógio”.195 Claro, que estas passagens podem
remeter a diversas conotações, tendo-se em conta o ano em que o livro foi escrito (1865), de
todo o modo, o livro de Carroll é precioso para demonstrar a percepção da sociedade com o
tempo, e o modo como ela é controlada por ele, mesmo que o faça de forma sutil.
Na pós-modernidade, a noção de tempo altera-se em razão da própria tecnologia da
informação explicada por Manuel Castells, isso porque as transformações sociais e cultuais
ocorridas a partir da modernidade ocasionaram um domínio do tempo e do espaço. No caso da
sociedade em rede observa-se uma apropriação, mistura e fragmentação do tempo proveniente
de diferentes contextos sociais e espaciais, por exemplo, o indivíduo apropria-se da noção de
tempo vivida e experimentada por outra cultura, inclusive devido ao próprio avanço
tecnológico, tendo em vista que os acontecimentos e manifestações culturais são ao mesmo
tempo visualizados por indivíduos ao redor do mundo, e no exato momento em que eles
ocorrem. Essas transformações ocasionam o que o autor chama de tempo intemporal, ou seja,
“a forma dominante emergente do tempo social a sociedade em rede porque o espaço de
fluxos não anula a existência de lugares”. Claro que o capitalismo e as ideias de liberdade e
restrição ligadas ao dinheiro tiveram uma grande influência nessa transformação, uma vez que
as diversas culturas tiveram que se adaptar a forma de vida e produção, e mesmo horários das
indústrias. Tudo isso, somada a comunicação da sociedade em rede, determinou o surgimento
dessa nova concepção de tempo.196
Na realidade, o tempo está presente em todas as situações da vida, como o espaço de
tempo que um indivíduo demora a se locomover de um ponto a outro, ou mesmo, aquele que
a notícia demora a percorrer o território global; a eterna questão de quanto tempo de vida resta
para cada pessoa; o tempo que se leva para terminar determinada tarefa; há quanto tempo
194
CARROLL, Lewis. Alice no país das maravilhas. Tradução por Charles Lutwidge Dogson. Porto Alegre:
L&PM, 2010. p. 96.
195
Ibid. p. 94-95.
196
CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. Tradução por Roneide Venancio Majer com a colaboração de
Klauss Brandini Gerhardt. São Paulo: Paz e Terra, 2008. (A era da informação: economia, sociedade e
cultura; v. 1). p. 523; 526-527.
97
determinada cultura manifesta-se em determinado território; e a questão mais interessa nesse
trabalho, há quanto tempo está construído determinado edifício histórico, e, ainda, quem o
construiu e qual o papel dessas pessoas antigamente e, por corolário, seus reflexos nos dias de
hoje. Por que esse tempo interessa à sociedade?
Diante dos eventos sociais ocorridos em cada sociedade, cuja comunicação ocorre em
rede, o tempo intemporal apresenta-se como uma desconexão entre os diferentes sistemas
sociais, há uma importação de tempos diversos daqueles vivenciados pelo sistema. Essa
espécie de tempo encontra-se sobre o nível do espaço de fluxos, ou seja, a rede de
informações simultânea e dinâmica que possibilita uma difusão de diferentes lógicas sociais,
por outro lado, o tempo comumente entendido como biológico estrutura e mantem estável a
sociedade e seus segmentos. Logo, nessa segunda conjuntura o tempo é determinado de
acordo com o espaço, este vai estabelecer de que maneira corre o tempo no sistema social, o
espaço determina a vida das pessoas e o indivíduo, isso, inclusive, foi trabalhado no primeiro
capítulo, quando se tratou sobre a cultura. Enquanto isso, a intemporalidade caminha por um
emaranhado de situações, conflitos e crenças que permanecem em constante comunicação.
Desse contexto surge a noção de progresso e desenvolvimento político e social, tendo em
vista, que se espera que em um espaço de tempo as sociedades superem suas mazelas
sociais.197 A noção de progresso/desenvolvimento formulada por um indivíduo, quando vai
analisar outra cultura, advém justamente da comparação entre duas situações sociais e do
tempo vivido em cada uma delas, tempo no sentido de qual momento histórico estão vivendo
os Estados.
O decurso do tempo e a relação entre passado, presente e futuro refletem a percepção
social. Nos anos sessenta a consciência temporal determinava que tanto o passado, quanto o
presente eram conhecidos, enquanto que o futuro trazia consigo as perspectivas de
desenvolvimento e progresso tecnológico, científico e industrial. Tinha-se a forte noção de
que o século XXI seria próspero, em razão de poder usufruir das benesses decorrentes do
século anterior.198 Entretanto, tais perspectivas não se concretizaram, muito antes, pelo
contrário, na pós-modernidade muitos são os problemas sociais enfrentados pelo indivíduo
decorrentes do século XX.
Por isso, Edgar Morin traça a ideia de que se deveria construir um devir histórico,
onde a concepção simplista daria lugar a concepção complexa. Isso ocorre porque a
197
CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. Tradução por Roneide Venancio Majer com a colaboração de
Klauss Brandini Gerhardt. São Paulo: Paz e Terra, 2008. v. 1. (A era da informação: economia, sociedade e
cultura). p. 557; 559.
198
MORIN, Edgar. As grandes questões do nosso tempo. 6. ed. Lisboa: Notícias, 1999. p. 233.
98
percepção simplista, em uma visão linear do tempo, predominante nos países ocidentais,
entende que o passado e presente são conhecidos, sendo que o futuro é previsível. Porém,
apesar da obviedade que tal concepção provoca, ela não é possível, visto que a relação entre o
presente, passado e futuro não é observada dessa forma. Pelo contrário, concorda-se que o
passado influencia e colabora com o presente, entretanto, este, por meio dos seus
conhecimentos também contribui com o passado e o transforma. Nesse caso, o passado é
formado a partir do presente, o qual, a partir de um olhar histórico, seleciona os fatos que são
relevantes para a construção do presente. O passado provém e adquire sentido somente em
uma análise posterior (no presente) da ocorrência dos fatos, o que lhe dará um sentido
histórico. “Daí uma racionalização incessante e inconsciente que oculta os acasos sob as
necessidades, transforma o imprevisto em provável e aniquila o possível não realizado sob a
inevitabilidade do sucedido”.199 O autor é muito feliz na explicação que projetou sobre o
tempo, visto que o olhar histórico é crítico e como tem por base compilar os fatos relevantes
para a história de uma nação, dessa forma, acontecimentos que façam parte da memória
coletiva ou pessoal, mas que não são vistos no presente como fundamentais, poderão ser
apagados da história.
Com essa inter-relação denota-se que o conhecimento presente depende do passado, o
qual depende do presente, desse modo irreal acreditar que pelo fato de estar no presente, o
indivíduo o conhece. E pior, se não se conhece nem o presente, o que se dirá do futuro? Por
isso, o conhecimento humano sobre o futuro torna-se uma tarefa árdua, porém, para que ele
ocorra é necessário que o presente se desenvolva a fim de que se determine futuro, sendo que
as decisões tomadas no presente serão realizadas tendo em vista os efeitos futuros buscados.
Assim, percebe-se que o tempo não transcorre de forma linear. Não é somente o futuro que
decorre do presente, mas também este depende do futuro.200 Conforme se percebe a percepção
sobre o tempo está intimamente relacionada com a consciência social sobre ele.
Explica Luhmann que a teoria do observador é o que permite entender a noção de
temporalidade, pois o tempo é uma dimensão que permite o sentido as coisas. A fim de
demonstrar como isso ocorre, delimita a discussão em três eixos: “1) tradição ontológica do
Ocidente; 2) a discussão semântica sobre a formação social do tempo; 3) as teorias que
estabelecem a dependência entre consciência do tempo e estruturas de linguagem.”.201
199
MORIN, Edgar. As grandes questões do nosso tempo. 6. ed. Lisboa: Notícias, 1999. p. 233-234.
Ibid. p. 234-235.
201
LUHMANN, Niklas. Introdução à teoria dos sistemas. Tradução por Ana Cristina Arantes Nasser. 2. ed.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2010. p. 205-206; 226-227.
200
99
Referidos eixos auxiliam a compreender a complexidade da noção de tempo que absorve a
proteção ao patrimônio histórico arquitetônico.
No primeiro eixo que trata da tradição metafísica, o tempo era entendido como ser,202
possuidor de essência. Enquanto ser, o tempo trazia consigo a ideia de movimento, processo,
tendo em vista que o tempo fluía, assim, como um rio, cujas águas nunca permanecem as
mesmas, em razão da corrente, o tempo da mesma forma, movimenta-se e percorre o seu
caminho em todo o mundo. Dessa forma, nesse primeiro eixo o tempo é observado a partir da
perspectiva movimento/imobilidade, e não sob o aspecto de passado/futuro, como ocorre na
modernidade.203
O segundo eixo trata da formação semântica sobre o tempo. Logo, a construção
histórica de cada cultura diferencia-se das demais. Observa-se que as culturas possuem uma
consciência linear ou circular do tempo. Alguns povos apresentam uma mescla entre essas
consciências, como os gregos, onde apesar da predominância de uma consciência circular, em
alguns momentos, houve um tempo linear. Essa forma de diferenciação do tempo não é mais
possível, em razão da diversidade cultural em cada Estado. Ao pensar no tempo tem-se essa
impressão de que ele é algo estável, na medida em que está em constante movimento,
entretanto, tal é uma visão totalmente cultural, não é possível predeterminar que outras
culturas tenham a mesma ideia. De todo o modo, a noção de movimento e linearidade, foi
importante para a formação histórica da Europa, pois, foi através de movimentos marcantes na
história europeia que puderam propor marcos para a divisão universal do tempo em períodos,
os quais, foram e ainda são utilizados como parâmetros mundiais ocidentais.204
202
Explica Aristóteles que o ser pode ser entendido de diversas maneiras, mas estes diferentes sentidos se
referem a uma só coisa, ou seja, uma mesma natureza, sendo que não existe entre eles apenas uma
similaridade de nome, por exemplo, pela palavra são entende-se tudo aquilo que se refere a saúde, aquilo que
a conserva, que a produz, aquilo de que ela é um sinal e quem a recebe; pela palavra medicinal pode-se
entender tudo o que se relaciona com a medicina, o que é próprio dela, ou finalmente o que é sua obra; da
mesma forma o ser tem muitos significados, mas todas se referem a um princípio único, a sua ideia de
substância. Tal coisa se chama ser, porque é uma essência. Nesse sentido, a essência não é o ser, mas sim, ela
é ele no ser. Logo, a metafísica seria uma ciência que estuda igualmente os seres enquanto seres. Tendo em
vista que cada ciência possui um objeto que lhe é próprio, na metafísica, o seu objeto de análise é o motivo
da existência das demais coisas, necessita Aristóteles ao determinar a essência como objeto, estabelecer os
princípios e as causas essenciais. Assim, “um hombre, ser hombre y hombre, significan la misma cosa; nada
se altera la expression.: el hombre es, por esta duplicación: el hombre es hombre o el hombre es um
hombre”, isso porque o ser não se separa da unidade, ou melhor, do individual, o mesmo acontece com a
essência. (ARISTÓTELES. Metafísica. Madrid: Espasa Calpe, 1999. p. 102-103.)
203
LUHMANN, Niklas. Introdução à teoria dos sistemas. Tradução por Ana Cristina Arantes Nasser. 2. ed.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2010. p. 206-207.
204
Ibid. p. 209-210.
100
Por fim, o terceiro eixo, que hoje também não representa a visão sistêmica e social do
tempo, seria a sua vinculação à linguagem.205 Essa tese é amplamente refutada porque, por
exemplo, as línguas indo-germâmicas não possuem um modo para expressar o futuro, o
indefinido, são tempos verbais que não existiam na sua estrutura. Existem tribos que não
possuem estruturas temporais na sua fala, assim, como existem outras que não têm a
diferenciação entre masculino/feminino em suas palavras. Por isso, mesmo que todos os
povos, culturas, possuam uma consciência sobre o tempo, ao menos por meio de
acontecimentos marcantes no contexto social, determinar o tempo, a partir da linguagem, não
se demonstra uma maneira segura, e sequer possível.206
Dessa forma, tendo em mente os três eixos acima expostos, Luhmann207 apresenta a
noção de que o tempo advém da observação realizada pelo observador, logo, “o tempo: a) é
uma operação que se realizada de maneira concreta; e b) por ser uma observação, consiste na
utilização de uma distinção”. O tempo, enquanto operação advém de todas as observações de
um observador que sejam simultâneas, presentes, porque o sistema social está em constante
comunicação e repasse de informações. Referidas observações além da simultaneidade
possibilitam a distinção, de modo que o sistema distingue-se do seu entorno. Nessa
conjuntura, quando se aplicam as expressões passado e futuro, rompe-se com a
simultaneidade, pois, o discurso abre-se àquilo que não é atual, ocasionando um aumento da
complexidade. O passado e o futuro são simultâneos, porque um depende do outro, o passado
somente existe porque dele decorreu um futuro, e essa distinção é fundamental para a
observação sobre o tempo, uma vez que a distinção entre ambos permite que a observação
seja temporalmente identificável, visto que as operações dos sistemas dão-se no presente.
O passado refere-se a um tempo projetado que se agrega em um futuro cogitado. Logo,
a decisão observa ao passado, como se este tivesse alternativas a escolher, enquanto que ao
futuro, apesar de projetar, não é possível saber quais serão os reflexos e concretizações, uma
205
No campo da linguagem importante observar que Nietzsche apresenta grades críticas ao que se entende sobre
ela. Ele refere que ela se interpõe entre o pensamento e o real, pois dá forma ao modo que as pessoas pensam
aquilo que é pensado. Observa que a linguagem possui concepções e conceitos históricos que podem levar ao
erro, ao engano, contudo acredita não existir uma solução para tal problema, uma vez que uma nova
linguagem estaria sujeita as mesmas dificuldades. Em sua crítica afirma que “a crença da gramática, no
sujeito e no objeto linguístico, e nas palavras de atividade, subjugou até agora os metafísicos: esta crença eu
ensino a abjurar”, sendo que como a linguagem é exterior ao pensamento formaria um empecilho, já que na
realidade não se pensa em palavras, porque “quem pensa em palavras [...] não pensa as coisas, os objetos, não
pensa objetivamente”, de modo que pensar seria um luta contra a linguagem, pois “estamos habituados, onde
as palavras nos faltam, a não pensar com rigor, porque é penoso continuar a pensar com rigor: e outras vezes
conclui-se automaticamente que onde termina o reino das palavras aí termina o reino da existência”.
(BRAIDA, Celso R. Filosofia e linguagem. Florianópolis: Rocca Brayde, 2011. p. 62-65)
206
LUHMANN, Niklas. Introdução à teoria dos sistemas. Tradução por Ana Cristina Arantes Nasser. 2. ed.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2010. p. 210-211.
207
Ibid. p. 211-214.
101
vez que somente no presente futuro, será possível tal averiguação. Cada decisão inicia uma
história na complexidade. O tempo no presente acontece de forma simultânea, pois, é o
espaço onde as diferenças entre o passado e o futuro ocorrem. É característica da modernidade
determinar o presente como um tempo efêmero, passageiro, ao contrário das concepções
antigas que o tinham como algo duradouro.208 Essa efemeridade do presente reflete na
preservação do patrimônio histórico, tendo em vista que a torna fundamental à transmissão de
cultura às futuras gerações.
Dessa forma, a própria evolução sociocultural altera a concepção do tempo. O futuro,
ao contrário da concepção antiga e medieval, perde a sua noção de contínuo retorno ao
passado, para que seja definido como um futuro aberto. Logo, existe, de um lado, um passado
histórico quase infindo, estruturado e limitado apenas pelos interesses reais, uma vez que
conforme já explicado por Morin, o presente escreve o passado, e por outro lado, há um futuro
aberto, onde o presente se torna o ponto de mudança do processo do tempo do passado para o
futuro. Visando reduzir a complexidade que envolve o futuro, a teoria sistêmica seria uma
estrutura para abarcar essa realidade, assim, enquanto a estrutura do sistema é concebida a
partir da diferença entre sistema e ambiente, no que concerne ao tempo, a diferença de sistema
e ambiente significa que nenhum sistema complexo possui um meio instantâneo entre a
experiência e reação imediatos, visto que é necessário o tempo para que as relações operem. A
contínua comunicação entre os sistemas sociais, dá-se sob a condição de contemporaneidade,
no presente, conforme explicado acima, de modo que continuamente são construídos novos
futuros e novos passados, futuros estes abertos .209
Assim, nessa estrutura do tempo o futuro vai influenciar as decisões realizadas no
presente, tendo em vista que para os sistemas sociais ele é o horizonte das operações. As
decisões e operações que são realizadas no presente trazem consigo as expectativas a serem
concretizadas no futuro.210 Por isso, Raffaele de Giorgi refere que na modernidade a
208
LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. Trad. Javier Torres Nafarrate. México: Univerdad
Iberoamericana/Herder, 2007. p. 800-801; 805.
209
Id. The future cannot begin: temporal structures in modern society . Social Research, 43:1, Spring, 1976. p.
131; 133; 149-150.
210
BORA, Alfons. Capacidade de lidar com o futuro e responsabilidade por inovações – para trato social com a
temporalidade complexa. In: SCHWARTZ, Germano (Org.). Juridicização das esferas sociais e
fragmentação do direito na sociedade contemporânea. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. p. 133.
Além disso, Leonel Severo Rocha (A construção do tempo pelo direito. In: ROCHA, Leonel Severo;
STRECK, Lênio Luiz (Org.). Anuário do programa de pós graduação em Direito Mestrado e Doutorado.
São Leopoldo: UNISINOS, Centro de Ciências Jurídicas, 2003. p. 319) refere que a tomada de decisão
necessita de mecanismos efetivos: “o Tempo que é o Tempo do Direito na teoria de Ost e de Luhmann, talvez
amanhã não seja o Tempo do Direito, porque o Tempo está escapando de nossas mãos. É preciso de que
tenham mecanismos efetivos de tomada de decisões para poder produzir futuro. O grande problema quando
não se controla o Tempo é que os riscos de ampliação da complexidade de ampliam, ou seja, as decisões
102
percepção de construção de um futuro ocorre na medida em que, enquanto o passado não seria
possível de modificação, o futuro será construído a partir das decisões do presente. O passado
e futuro são formas do tempo que efetivamente existem e influenciam nas decisões que são
realizadas no presente.211
François Ost212 explica que as sociedades configuram-se “órfãs de história” no sentido
de que a história, o passado deixa de ser observado, na medida em que é considerado acabado.
Vive-se somente pelo presente, pelos instantes que saciam as necessidades do agora, sem que
haja uma contemplação sobre o futuro, e deste como um projeto dependente dos ensinamentos
passados. A memória fica esquecida, as tradições não conseguem fazer parte da sociedade,
elas “se ressecam e alimentam apenas na melhor das hipóteses um discurso erudito e na pior,
uma nostalgia reacionária; amputadas das aspirações do próprio presente, as projeções de
futuro procedem apenas da ficção científica ou de utopias incapazes de concretização”. Nesse
contexto, o tempo continua a transcorrer, entretanto, a memória fica esquecida, preguiçosa,
porque a sociedade não elabora uma reflexão sobre o passado, ao mesmo tempo em que não
pratica uma tomada consciente das consequências que suas ações trarão para o futuro, ou
mesmo, uma constante observação (que deve continuamente ser realizada pelas gerações) do
que o passado tem a demonstrar para o futuro que se aproxima, no sentido de que os atos
sociais são os responsáveis pelo presente aguardado no futuro.
Esse pode ser um dos paradoxos para a proteção do patrimônio histórico arquitetônico,
tendo em vista que se por um lado há essa perda da memória e desinteresse em relação ao
passado, é justamente a proteção das construções históricas, mesmo com essa falta de
interesse social, que pode trazer a manutenção da história e da sociedade e um resgate ao que
o passado pode ensinar, para então permitir uma precaução e projeção do futuro. O
patrimônio é considerado histórico em razão da sua significância para a história de
determinada comunidade. Um povo sem memória é um povo sem história.
Uma questão que merece ser resgatada nesse momento, a qual já foi explicitada na
primeira parte do trabalho, é a ideia de risco-segurança, bem como a noção trazida por
Luhmann, de que a par das incertezas proporcionadas pelo futuro, está o fato de que as
decisões tomadas no presente vinculam o futuro, enquanto que se abre a possibilidade de
analisar o que é mais ou menos provável que aconteça. Logo, as ponderações e análises sobre
jurídicas não poderão resolver os problemas que nós pretendemos enfrentar, perdendo o controle dos
processos de desinstitucionalização e reinstitucionalização da socidade”.
211
DE GIORGI, Raffaele. Direito, democracia e risco: vínculos com o futuro. Porto Alegre: Safe, 1998. p. 151153.
212
OST, François. O tempo do direito. Tradução por Élcio Fernandes. Bauru, SP: Edusc, 2005. p. 27-29.
103
o risco tratam-se de um “programa de reducción al mínimo del arrepentimiento; em todo caso,
de uma posición inconsistente em el curso del tempo: primero así, lurgo de otro modo. De
qualquer manera, entonces, se trata de un cálculo temporal”.213 Torna-se um cálculo temporal
porque as possiblidades dependem do passar do tempo para que ocorram. Somente o tempo,
que pode ser curto ou longo, poderá trazer as consequências para as decisões tomadas no
passado.
Explica Hannan Arendt sobre a importância da tradição na sociedade, e critica a sua
ausência “parece não haver nenhuma continuidade consciente no tempo, e portanto,
humanamente falando, nem passado nem futuro, mas tão-somente a sempiterna mudança do
mundo e o ciclo biológico das criaturas que nele vivem”. A tradição abrange um conjunto de
informações que são transmitidas e aplicadas pelas pessoas em uma sociedade, da mesma
forma permite a continuidade do pensamento e a concretização das expectativas desejadas por
aqueles que antecederam o presente. A par da tradição e do tempo histórico que permeia a
sociedade, o homem, tomando em conta que está inserido sob uma perspectiva de tempoespaço, somente consegue tornar-se atemporal por meio da atividade do pensamento. Este
permite que o homem perceba o vazio temporal entre o passado e o futuro e se esforce a cada
geração por caminhos para preencher esse vazio, preencher o presente. Tal noção de vazio
temporal, entretanto, não é facilmente verificável, tendo em vista que a tradição do
pensamento não a contemplava, foi somente com a modernidade que este vazio tornou-se
palpável e o pensamento político percebeu que independente de passado e futuro, o presente
deve resolver os problemas políticos.214 A abordagem da autora baseia-se em especial sobre o
sistema político, de todo o modo, a importância que atribui à tradição, justifica que a
sociedade necessita dela.
Na modernidade, os museus, os monumentos, a história da nação, eram elementos que
vinculavam a sociedade à sua própria história e ao ideário nacional. Entretanto, no século XX,
diante das promessas da modernidade que não se cumpriram, guerras mundiais, ditaduras,
monumentos e locais que trazem recordações da destruição causada pelos seres humanos,
tem-se observado um crescente esquecimento dos acontecimentos ocorridos nesse século, na
medida em que as memórias não são agradáveis. Por isso, prejudica-se a continuidade
temporal, na medida em que as sociedades se ignoram merecedoras de um legado a dar
andamento. O passado se torna fragmentado, tendo em vista as tentativas de recriá-lo, de
213
214
LUHMANN, Niklas. Sociología del riesgo. México: Universidad Iberoamericana/Universidad de
Guadalajara, 1992. P. 53-54.
ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 2000. p. 31; 39-40.
104
forma menos negativa. Há um distanciamento das sociedades com a sua história, visto que se
perde a noção de pertencimento a uma identidade, pois, o cidadão não se sente confortável
com a memória e história criada pelo Estado.215 As construções históricas passam a ser
observadas pela sociedade não como um local de cultura e identidade, mas sim como um
passado do qual não se quer lembrar.
A memória que diante da complexidade permite a tomada de decisões advém das
operações de determinada cultura ou sociedade. A história cria-se levando em consideração a
transformação ocorrida em torno daquilo que é preservado, assim, a história é a transformação
do espaço “ao redor da conservação, neste caso, de vivência e de coerência com o meio. E
isso ocorre no intervalo de tempo em que os sistemas vivos e o meio mudam de modo
coerente, conjuntamente.”216 A história está sempre presente nas decisões, da mesma forma, a
memória, que permite a observação de incongruências entre passado e futuro. Ambas
permeiam as decisões que envolvem o risco, pois apesar de as decisões abarcadas pelo risco
preverem sobre o futuro, tais decisões por si só não são futurísticas, e sim construções do
tempo que levam em consideração a história.
Outro fator interessante sobre o tempo, e que explica como o patrimônio histórico
arquitetônico integra o ambiente social, é o fato de que o tempo em cada indivíduo difere do
tempo que o cerca, cada um possui um ciclo diferenciado, em velocidades específicas. E isso
difere em cada sociedade, pois os grupos sociais não caminham todos da mesma forma e no
mesmo ritmo, em cada lugar há uma celeridade diferente de tempo, isso, inclusive,
influenciado pelo próprio conhecimento científico e tecnológico. Causa preocupação que
atualmente o tempo esteja cada vez mais fragmentado, pois, ao invés de situações de
“comunhão coletiva” cada vez mais o tempo não exerce a sua função de “integrador social”.
Por isso, François Ost refere que tanto os grupos sociais, quanto os indivíduos, necessitam do
direito a seu tempo, poder avançar de acordo com o seu ritmo e tomar, não caminhos
impostos, mas sim, caminhos que decorram do seu próprio tempo. Assim, cada grupo poderia
escolher uma forma de reconstruir o passado, de acordo com a sua experiência e projetar o
futuro, por meio de suas esperanças.217 Talvez seja o fato de o tempo do indivíduo ser
diferente daquele do meio, que torna a construção histórica um espaço de memória e tempo
personificado, pois, o tempo ali presente remete à memória social, e por consequência,
215
RILLA, José. Memorias y patrimonios del pasado reciente: olvido, desvanecimiento e instauración en
montevideo. Revista Memória em Rede, Pelotas, v.3, n.9, p. 8-9, jul./dez. 2013.
216
MATURANA, Humberto. Transdisciplinaridade e cognição. In: MELLO, Maria; BARROS, Vitória;
SOMMERMANN, Américo (Org.). Educação e transdisciplinaridade. Brasília: UNESCO/ São Paulo:
TRIOM, 2000. p. 84.
217
OST, François. O tempo do direito. Tradução por Élcio Fernandes. Bauru, SP: Edusc, 2005. p. 34-36.
105
influencia no tempo de cada indivíduo. E não só isso, a preservação do prédio histórico
possibilita que a cidade cresça de acordo com o seu ritmo, sendo que a sua proteção reflete as
esperanças sociais no tempo da comunidade.
A memória é, então, o que permite às tradições permanecerem vivas na atualidade.
François Ost tem observado uma decadência na memória, pois os indivíduos não a
acompanham. Segundo o autor dois são os fatores que levam a tal realidade: excesso e
propagação instantânea midiática, que não se coadunam com a narração dos acontecimentos
de forma coerente através do tempo; desaparecimento de uma memória coletiva, em razão da
constante divisão dos grupos sociais, pois os indivíduos passam a fazer parte de outros
grupos, sem que consigam agregar a identidade mobilizadora local.218 Em especial, essa
segunda realidade ocorre em todas as cidades do mundo, pois o deslocamento de pessoas, o
desaparecimento simbólico das fronteiras, são característicos de cidades que se encontram em
constante movimento. Apesar disso, a memória coletiva resta prejudicada em razão da pouca
integração dos indivíduos pertencentes à comunidade.
O papel da tradição, sob a perspectiva da temporalidade, seria ligar o passado com o
presente, porque permite que os indivíduos mantenham práticas sociais que remetem ao
passado histórico. Representa transformações sociais que foram ocorrendo e solidificando-se
ao longo dos anos. Isso faz com que o passado reflita no presente e futuro, ou mesmo, que o
passado interaja com o presente, na medida em que o primeiro se torna o segundo. Por isso, a
tradição representa uma continuidade na forma como as coisas são realizadas e também uma
aceitação social, uma vez que as práticas permanecem ocorrendo, em razão do seu
reconhecimento social.219 Referida tradição integra a cultura da comunidade, logo, um dos
meios de manutenção da tradição seria a preservação do patrimônio histórico arquitetônico.
Este foi construído de acordo com a comunidade que faz parte da história local, concebido por
indivíduos que não pertencem somente ao passado, mas que estão vivos no presente, porque
se materializam na forma como as presentes gerações agem e remetem à identidade cultural
que formou a comunidade.
Ao abordar o tema da memória Raffaele de Giorgi220 se questiona se locais e
monumentos socialmente identificados como “lugar de memória”, como igrejas, estátuas, ao
invés de assim serem identificados, na realidade, seriam lugares de esquecimento. Para
resolver tal impasse refere que vai depender da observação do observador, o caminho a seguir
218
OST, François. O tempo do direito. Tradução por Élcio Fernandes. Bauru, SP: Edusc, 2005. p. 54-55.
Ibid. p. 61-62.
220
DE GIORGI, Raffaele. Direito, tempo e memória. Tradução por Guilherme Leite Gonçalves. São Paulo:
Quartier Latin, 2006. p. 49; 52.
219
106
traz consigo a conotação dada pelo indivíduo, ou conjunto de indivíduos que formam uma
comunidade. Porém, é um erro estender a memória de um indivíduo à memória coletiva, ou
melhor, pressupor que essa memória pertence àquela coletiva. Assim, a memória é
apresentada pela sociedade como um princípio explicativo, inventado por ela, e pelo
indivíduo para justificar seus atos, sem que tenha que continuadamente explicá-los.
No âmbito da teoria dos sistemas, a memória está presente nos sistemas sociais, uma
vez que é responsável pelo contínuo funcionamento das operações dos sistemas, ela permeia a
comunicação que ocorre em tais operações, “a memória permite um exame contínuo e
consistente das operações dos sistemas. A temporalidade do sistema é produzida através da
memória”, logo, como o tempo advém da memória, este faz com que as operações do sistema
produzam sentido a partir da noção de que fazem parte de determinado sistema. Por exemplo,
por meio do tempo, é possível que as operações do Direito sejam determinadas pelo sistema
jurídico e decorrem de si mesma. A partir da temporalidade observa-se que tal sistema ao
longo dos anos produziu suas operações e determinou de que maneira elas deveriam ocorrer,
além disso, o próprio sistema cria mecanismos para que alterações sejam realizadas, logo,
produzindo mais Direito. Assim, a memória faz com que o sistema opere no presente, nesse
sentido, “a atemporalidade das operações é interrompida e esta interrupção constitui o
tempo”. Logo, a memória é fundamental para a diferenciação do sistema, ou melhor, se
distingue o que deve ser mantido, lembrado, daquilo que não mais interessa para a
continuidade das operações, “o sistema opera como um sistema histórico, ou seja, como um
sistema determinado estruturalmente, um sistema que inventa continuamente sua própria
história. Com o presente, o sistema constitui não apenas o tempo, mas também a sua história”.
Claro que o fechamento operacional e a abertura cognitiva do sistema permite que essa
comunicação e contínuas alterações sejam realizadas e produzam a história do próprio
sistema.221
Nesse sentido, como teoria da evolução, o sistema pode mudar suas próprias
estruturas, por meio de suas operações. Para entender como essa operacionalização ocorre,
prescinde de singelas observações e explicações sobre a continuidade e descontinuidades do
sistema, mas sim, de entendê-lo partindo das influências duradouras ou de rupturas marcantes,
bem como compreender a construção das distinções em um sistema em constante evolução,
por que elas ocorrem de uma ou de outra forma. Para isso, é necessário considerar o sistema
capaz de produzir distinções em si mesmo, transformando-se, sendo que a partir da dimensão
221
DE GIORGI, Raffaele. Direito, tempo e memória. Tradução por Guilherme Leite Gonçalves. São Paulo:
Quartier Latin, 2006. p. 58-59.
107
do tempo, conforme já explicado anteriormente, o sistema pode produzir a diferença,
abarcando a complexidade, construindo e reduzindo sua própria estrutura. Logo, para essas
operações o sistema possui um mecanismo chamado de memória. Esta serve para que o
sistema possa realizar situações históricas no presente, ou mesmo realizá-las de forma
diferente, em comparação aos seus estados anteriores, para assim processar distinções. Assim,
a memória não apresenta uma ideia de retorno ao passado, na medida em que é uma função
continuadamente utilizada pelo sistema para verificar a consistência das suas operações e do
que constrói como realidade. A partir dela, o sistema pode garantir os limites para comprovar
a sua consistência e também liberar a sua capacidade para irritações, processando informações
advindas do meio. Dessa forma, a memória apresenta a função de “esquecer”, evitando que o
sistema bloqueie a si próprio.222
Sem o esquecimento produzido pela memória, não seria possível a aprendizagem e a
evolução. Porém, a identidade cria uma situação diferenciada para a memória, pois, de certo
modo a alivia e apenas em casos excêntricos, como quando há a configuração de uma
identidade, surgem no sistema objetos que possuem valores próprios e específicos, por meio
dos quais ele observa a estabilidade e mudança. E é nesses casos que a memória inibe o
esquecer. 223
A memória enlaça e distingue passado e futuro, pois as operações são realizadas no
presente, o que produz as distinções. Cabe observar que a memória não se liga somente com o
passado, mas também observa horizontes com o futuro. A memória não é o sistema em si,
uma vez que para que a memória opere é necessário que o sistema já esteja em andamento,
além disso, o passado recordado pela memória não é aquele do sistema, visto que um
observador externo pode construir um passado distinto para o sistema, ou mesmo,
compreender como uma ficção o passado do sistema.
Nessas condições, para a teoria
sistêmica, a memória possui uma percepção mais complexa, pois, vai além da ideia de
memória coletiva, por compreender que esta se limita ao fato de os sistemas sociais
recordarem os mesmos fatos quando expostos a idênticas situações. A memória social se
configura como uma realização da própria recursividade das operações comunicativas, como
toda a operação produz sentido, disso ela se reproduz. “Esse constante reimpregnar de sentido
comunicativamente útil (com su olvido correspondiente) pressupone uma cooperación de
sistemas de consciencia, pero es independiente de lo que recuerdan individuos particulares y
222
LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. Trad. Javier Torres Nafarrate. México: Univerdad
Iberoamericana/Herder, 2007. p. 456-457.
223
Ibid. p. 458-459.
108
de como refrescan su própria memoria cuando cooperan en la comunicación”. Os indivíduos
têm a sua disposição temas idênticos com recordações diferentes, logo, não é recomendável
que influam na comunicação com tais dados. Todavia, se não existissem memórias
conscientes, a memória social não funcionaria, mas se observa que a memória social não se
produz a partir da memória dos sistemas conscientes, ela se auto reproduz de acordo com as
estruturas do próprio sistema.224
Além disso, Luhmann explica que toda sociedade possui uma memória autoproduzida
que intervém em suas operações. Por exemplo, nas sociedades que não possuíam escrita, a
memória estava relacionada a objetos, como casas, caminhos, ferramentas, por meio dos quais
os indivíduos aceitavam a realidade presente, sem levantar muitos questionamentos. Essa
forma de memória é mais antiga que a memória escrita, a qual se desenvolveu nas sociedades
recentes. Assim, a memória escrita é suficiente para disponibilizar modos repetitivos de ação,
mas ela somente complementa a memória dos objetos, de forma móvel, na medida em que
pode ser transportada com o indivíduo. Mas, ambas as sociedades, com e sem escrita, não
compreenderam a sua dependência com a memória autoproduzida. Apenas, na modernidade,
pode ser distinguida a memória social das demais funções, na qual ganha o aspecto de
necessidade de transmissão e mantença, mesmo que de momento não seja utilizada. Sob a
perspectiva que deve existir uma cultura desde o início da formação humana, mesmo que com
o transcurso da evolução seja produzida a diferença entre o sistema cultural e o sistema social,
a cultura, por si só, parece fraca para explicar essa relação, por isso, a noção de uma teoria da
memória ajuda compreender a memória social, enquanto cultura. Logo, a sociedade cria um
conceito de cultura para designar a sua memória.225
Uma das constantes críticas sofridas por quem defende a proteção do patrimônio
histórico arquitetônico é de que se estaria impedindo o progresso da cidade, porque a
construção de prédios, indústrias, seria uma forma de manifestar o crescimento e prosperidade
da cidade. Entretanto, deve-se atentar que a memória decorre da própria evolução da cidade e
representa a sua própria evolução, sendo que o presente somente pode ser observado quando
se torna passado, o observador não consegue observar o presente, enquanto presente, mas sim,
quando deixa de sê-lo, por isso a memória alcança o presente do sistema, já que permite a sua
temporalização. Explica Raffaele de Giorgi226 que “aquilo que se pode observar são os
224
LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. Trad. Javier Torres Nafarrate. México: Univerdad
Iberoamericana/Herder, 2007. p. 460-462.
225
Ibid. p. 46-464.
226
DE GIORGI, Raffaele. Direito, tempo e memória. Tradução por Guilherme Leite Gonçalves. São Paulo:
Quartier Latin, 2006. p. 62.
109
próprios valores (Eingenwerte), os próprios estados, os próprios conceitos, ou seja, aquelas
aquisições evolutivas que constituem fósseis guias, sedimentos que a memória trata como
tema no seu contínuo oscilar entre esquecer e recordar”. Logo, a evolução faz parte do
sistema, e o patrimônio histórico arquitetônico faz parte da evolução, uma vez que representa
um lugar onde memória da cidade pode recordar sobre sua identidade e prosperidade.
Além disso, os arquitetos modernos e os proprietários das construções históricas
dificilmente são favoráveis a sua preservação. Os primeiros porque há uma limitação no seu
campo de trabalho, já que não lhe é permitido destruir o patrimônio histórico, enquanto que
seus predecessores tiveram essa liberdade, tanto que foi devido a estes que as construções
encontram-se presentes na sociedade.227 Já os segundos devido à limitação financeira trazida
pelo imóvel protegido, que possui importantes restrições para a sua modificação, além de que,
como não é permitida a sua destruição opõe-se à especulação imobiliária.
Os argumentos trazidos por essas duas categorias são relevantes, haja vista que
demonstram o problema vivenciado por elas. Com relação aos arquitetos são possuidores do
direito de construir, ao mesmo tempo em que as construções de gerações anteriores têm de
permanecer erguidas, na medida em que temporalizam a existência da cidade, logo, para
Françoise Choay228 há um impasse entre o trabalho e a memória, pois, “esse trabalho,
retomado a cada geração, devendo sempre ser levado adiante, não é outro senão o da
competência de edificar. A sacralidade de que seu desempenho é investido marca, sem
ambiguidade, sua vocação antropogenética”, da mesma forma, não é viável construir novos
prédios com uma arquitetura clássica ou antiga, a fim de que se mantenha uma mesma
arquitetura, pois, “a memória (viva) requerida pelo conjunto da herança arquitetônica antiga,
sem especificação, já não visa reforçar a identidade particular de uma comunidade humana
particular, como faziam os monumentos intencionais, mas uma identidade genérica”. Dessa
maneira, a proteção do patrimônio histórico deve ser analisada sob o aspecto proposto no
227
228
Importante referir que para Nestor Torelly Martins (A preservação cultural através de uma prática de ensino.
In: POSENATO, Júlio (Org.). Antônio Prado: cidade histórica. Porto Alegre: Posenato Arte & Cultura, 1989.
p. 59) a preservação cultural deve ser incluída nos cursos superiores, especialmente os de arquitetura, pois,
segundo o autor, a partir do conhecimento por parte do acadêmico das formas e técnicas do edificar no
passado, pode-se elaborar uma consciência preservacionista no próprio acadêmico. Ainda elenca como
resultados práticos alcançados pela prática do ensino nas Universidades: o surgimento de interesse por parte
do aluno em aprofundar o conhecimento sobre as justificas daquela produção arquitetônica; aprendizado de
uma metodologia de análise validade para qualquer período da arquitetura brasileira; elaboração de um
consenso entre os alunos sobre a importância da permanência daqueles testemunhos arquitetônicos;
promoção da sensibilização da comunidade, que viu origens valorizadas pela universidade; e elaboração de
relatórios que integrando o acervo da faculdade serve em muitas ocasiões para informar os pesquisadores que
forem atuar naquele contexto.
CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. Tradução de Luciano Vieira Machado. 3. ed. São Paulo:
Estação Liberdade: UNESP, 2006. p. 254.
110
presente trabalho, para que se possa compreender a amplitude da sua função perante a
sociedade.
Para Pierre Nora229 as discussões e pesquisas envolvendo a memória, a busca pela
memória, a sua salvaguarda da memória decorrem do fato de que ela não mais existe. A
tradição perde o seu espaço, e a história parece que se acelera, porque o passado rapidamente
é enterrado, as sociedades preocupam-se somente com o presente e perdem o seu vínculo com
o passado. Os fenômenos da massificação, mundialização, já estudados na primeira parte do
trabalho, propiciam essas mudanças. Para o autor, vive-se um período marcado por vários
fins: “fim das sociedades-memória, como todas aquelas que asseguravam a conservação e a
transmissão dos valores, igreja, família ou Estado”, há também o “fim das ideologiasmemórias, como todas aquelas que asseguravam a passagem regular do passado para o futuro,
ou indicavam o que se deveria reter do passado para preparar o futuro; quer se trate da reação,
do processo ou mesmo da revolução”. Assim, a percepção da história, antes proveniente da
memória da herança deixada pelos antecessores, substitui-se por uma história marcada pela
efemeridade. Esta advinda de toda a homogeneização e fenômenos modernos que provocaram
mudanças no elo existente entre as gerações. Uma das grandes formas de transmissão da
história foi o meio oral, os avós contavam a história da sua família aos filhos, netos, e assim
por diante. Pergunta-se, quem hoje ainda conversa sobre a história com os seus avós? Como a
memória de uma cidade pode perpetuar-se se os cidadãos não conhecem o seu passado? Nesse
contexto, qual é o papel do patrimônio histórico arquitetônico?
Muitas são as perguntas, mesmo que não pareçam capciosas, as suas respostas nem
sempre são claras. Se o fossem, não haveria necessidade de propor o presente tema de estudo,
visto que a própria sociedade daria conta da proteção às construções históricas e melhor,
buscaria meios para a preservação da sua memória.
A visão do patrimônio arquitetônico como histórico só pode ser realizada depois que
este é construído. Ora, não possível edificar-se uma construção arquitetônica com o objetivo
que seja classificada como bem histórico da humanidade, o patrimônio histórico arquitetônico
é produto do tempo e da permanência dos valores que nele estão incutidos.
O patrimônio histórico arquitetônico está presente em todos os continentes, de acordo
com a forma cultural predominante em cada local, mesmo que com o progresso tenha perdido
229
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História. Revista do Programa
de Estudos Pós-graduados em História e do Departamento de História da PUC/SP, São Paulo, n.10, p. 7-8,
dez. 1993.
111
muito de sua importância, devido à falta de planejamento urbano, para dar espaço a edifícios
ou conjuntos habitacionais, a fim de abarcar o grande contingente populacional.
Não se pode olvidar, todavia que os efeitos do tempo causam uma grande deterioração
a esse patrimônio, especialmente devido à má conservação que é exercida tanto pelo órgão
público, quanto pelo particular detentor do bem. A restauração do patrimônio histórico
arquitetônico foi um importante passo para a sua preservação. Tanto a restauração, quanto as
intervenções que visam à preservação do patrimônio histórico arquitetônico conseguem
protegê-lo da ação do tempo.
O mesmo se passa com a revitalização de cidades ou bairros, pois ao restaurar-se e
tornar habitável um espaço amplo, faz com que se preserve a memória coletiva, dos fatos e
modo de vida de toda uma comunidade, o que contribui para a aceitação da população que ali
reside. Isso influi diretamente na questão da identidade cultural, sendo que, “além da questão
identitária, a recuperação da memória leva ao conhecimento do patrimônio e este, à sua
valorização por parte dos próprios habitantes do local”, espera-se que nesse caso, a
comunidade não destrua o prédio, pois, “dificilmente será alvo de um ato de vandalismo, por
exemplo, por parte de alguém que conhece seu significado, que conhece o que ele representa
para a sua própria história como cidadão, simplesmente porque se identificará com aquele
monumento ou prédio”.230
Os termos memória e história, apesar de parecerem sinônimos, não o são, muito antes
pelo contrário, apresentam perspectivas de formação diferenciadas. A memória é viva, atual,
está em constante transformação, pois, depende dos indivíduos e está sujeita tanto a
lembrança, quanto ao esquecimento. Por outro lado, a história apresenta-se como uma
reformulação daquilo que não existe mais, já aconteceu. Logo, enquanto a memória é sempre
atual, a história refere-se ao passado. Enquanto a memória contém lembranças particulares e
coletivas, afetivas, outras que causam um pouco de dúvida, porque não se está tão certo de
como os fatos ocorreram, de outro modo, a história depende de um discurso, uma análise
intelectual que condense os fatos considerados relevantes. Outra importante diferença reside
no fato de que a memória pertence tanto ao grupo, quanto ao individual, ela remete as pessoas
ao sagrado, unindo-as, já a história carrega uma conotação de universal, pois, é ambígua, uma
vez que não pertence a nenhuma sociedade em específico, mas sim ao mundo, à história do
mundo, por isso, o seu caráter de universalidade. Além disso, a memória “se enraíza no
concreto, no espaço, no gesto, na imagem, no objeto. A história só se liga às continuidades
230
BARRETTO, Margarita. Turismo e legado cultural: as possibilidades do planejamento. Campinas, SP:
Papirus, 2000. p. 47.
112
temporais, às evoluções e às relações das coisas. A memória é um absoluto e a história só
conhece o relativo”.231 Essa noção de que a memória remete ao concreto, ao lugar, permite a
observação de que o patrimônio histórico arquitetônico pode ser definido como um lugar de
memória.
Para Maurice Halbwachs232 a memória coletiva refere-se e perdura em um grupo de
indivíduos, enquanto este mantiver a lembrança de determinado fato. Enquanto coletiva, ela
não possui a mesma intensidade em cada indivíduo, visto que cada qual irá ressaltar pontos de
vista diversos sobre os acontecimentos. Essas diferenças fazem parte da sociedade e decorrem
do que cada indivíduo possui como um sistema psíquico capaz de produzir suas operações e
informações. De qualquer forma, a memória coletiva subsiste e apesar de produzir efeitos nas
memórias individuais, estas não se confundem com aquela, tendo em vista que a memória
coletiva mantém-se de acordo com suas próprias informações, advindas do conjunto de
pessoas, além disso, quando impressões pessoais adentram na memória coletiva, elas perdem
tal status para pertencer ao conjunto.
Assim como a memória e a história não são sinônimos, a memória coletiva se
diferencia da história, tanto que a expressão “memória histórica” é conflitiva, visto que
abrange dois termos que não se associam em vários sentidos. A história é uma reunião de
fatos voltada às escolas, a fim de que se apreendam eventos que foram marcantes para
determinada sociedade. Faz-se uma compilação do passado de acordo com as necessidades e
conforme a corrente política dominante, assim, exaltam-se determinados fatos, ao passo que
outros são renegados ao esquecimento. Isso faz parte do ideário político. Logo, quando há
uma perda da tradição, esvai-se a memória social, restando à história a tarefa de manter o
passado no presente. Além disso, a memória coletiva faz parte da consciência do povo que a
mantém, em razão de que traz consigo fatos passados que permanecem continuadamente
vivos perante os indivíduos. Dessa forma, a memória coletiva tem uma colocação diante de
um grupo social. Permanece nos limites do grupo que mantém a consciência do passado, por
si só, ela não necessita se espalhar por todo o mundo, mas tão somente avivar àqueles que
fazem parte desse passado. Por outro lado, a história possui o sentido de difusão e, tendo em
mente a consciência linear do tempo, costuma separar os fatos em períodos, a fim de criar um
sentido esquematizado ao discurso proposto.233 Logo, apesar da importância da história para a
231
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História. Revista do Programa
de Estudos Pós-graduados em História e do Departamento de História da PUC/SP, São Paulo, n.10, p. 9, dez.
1993.
232
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990. p. 34; 36.
233
Ibid. p. 55- 56.
113
sociedade, é fundamental que perceba a diferença entre ela e a memória, uma vez que é essa
última que vai embasar a proteção do patrimônio histórico arquitetônico.
Luhmann explica que a história mundial “tiene sentido como autoselección del ser”, a
partir da sua seletividade, pois, a história apresenta a evolução social do sistema, na medida
em que a própria sociedade a constrói. Ela não possui um caráter político (determinado pela
relação política), mas científico. A seletividade é necessária para a relação entre as estruturas
sociais e os horizontes temporais. Para aqueles que participam do sistema há a norma que
conjetura a existência de uma identidade pertencente à comunidade, o que consequentemente
revela uma memória partilhada em comum pelos indivíduos. Assim, a história do sistema é
pressuposto para a seletividade das ações e eventos subsequentes. Por corolário, a história do
sistema não pode ser substituída pela história objetiva mundial, porque, aquela foi vivida,
rememorada e é condição fundamental para a compreensão do sistema.234 Conforme se
observa, o autor demonstra qual a relação da história com a teoria sistêmica, remetendo a
noção de identidade para justificar como ocorrem as relações no sistema social.
Partindo da ideia de que história reflete na estrutura do sistema, visto que se pressupõe
a ocorrência tanto do esquecer, quanto da memória no processo de experiência. Os
acontecimentos vividos foram experimentados pelo sistema social, por isso, sua estrutura
reflete a história, entretanto, “ya no se emplea más la historia como estructura sistémica
determinadora de sentido, como ocorre em los sistemas simples, sino que logra un
alejamiento respecto de ella a través de una relación de construcción y de reducción de
complejidad”. Por isso, importante ressaltar que a teoria sistêmica é caracterizada por
Luhmann como uma forma de neutralizar o passado, sem que tal signifique um esquecimento
da história, mas sim “la producción de relaciones indirectas, ambivalentes em cuyo marco la
selectividad de los contecimientos temporales pude adquirir uma interpretación diferente”.235
Assim, a teoria sistêmica não é contrária à história, mas apresenta uma nova interpretação aos
fatos ocorridos no passado, tendo em vista que a precupação histórica dá-se com relação ao
futuro, com a complexidade do sistema e os reflexos da decisão no futuro. Justamente por
isso, a decisão que envolve a proteção ao patrimônio histórico determina as consequências
que a sua demolição trará tanto às presentes, quanto as futuras gerações, no que concerce a
identidade cultural.
234
LUHMANN, Niklas. Tiempo del mundo e historia sistémica. Tradução por Célso Sanchez. Inguruak:
Soziologia eta zientzia politikoaren euskal aldizkaria: Revista Vasca de Sociología y Ciencia Política, n. 23,
p. 18-19; 21-22, 1999.
235
Ibid. p. 47; 51.
114
Da mesma forma que a noção de tempo alterou-se ao longo da história, a memória
transformou-se de acordo com a forma de composição social.236 A partir da década de 1950, a
memória tem se tornado informatizada, pois, surge uma memória eletrônica, capaz de
armazenar infinitas informações, visto que sua capacidade abrange a velocidade e agilidade
com que a informação pode ser buscada. Essa informatização é criada pelo indivíduo, decorre
da própria sociedade, e traz a possibilidade de que as memórias possam ser realizadas em
meio eletrônico. Inclusive, atualmente existem livros que são publicados somente na forma de
ebooks, demonstrando a forte influência que a tecnologia apresenta para a memória.237
Quando se refere ao patrimônio histórico arquitetônico, os meios eletrônicos não representam
uma forma de preservação, tendo em vista que de nada adianta possuir uma imagem ou
gravação em vídeo de uma casa histórica armazenada em uma memória eletrônica, caso tal
construção venha a ser demolida. O patrimônio histórico arquitetônico faz parte da memória
viva da cidade e para que cumpra a sua função de memória necessita estar construído e fazer
parte do dia-a-dia dos cidadãos.
A construção da memória individual e social, coletiva, decorre da relação entre a
memória e o esquecimento. Ao longo do tempo, na memória social existe uma série de
acontecimentos que são esquecidos, pessoas que foram importantes em determinado período,
mas que atualmente ninguém se lembra, ao passo que há acontecimentos e personagens que
são continuamente rememorados, que permanecem vivos na memória social. Dessa relação,
considerando a memória coletiva, ganham um papel importante as expressões simbólicas,
caracterizadas pela construção de monumentos, cuja função é continuamente rememorar fatos
marcantes para determinada sociedade, de modo a construir uma identidade cultural.238 Falase em formação de identidade, porque a partir do momento que a memória coletiva decide
construir um monumento para a recordação de determinado fato, faz com que tal memória não
se transforme em esquecimento, logo, determina que a memória irá continuadamente ligar-se
a tal recordação, o que cria uma identidade.
236
Jacques Le Goff. (História e memória. Tradução por Bernardo Leitão. Campinas, SP: UNICAMP, 1990.
(Coleção Repertórios). p. 427 ) separa o estudo da memória em cinco fases, a primeira seria “a memória
étnica nas sociedades sem escrita, ditas ‘selvagens’”; a segunda, “o desenvolvimento da memória, da
oralidade à escrita, da Pré-história à Antiguidade”; a terceira, “a memória medieval, em equilíbrio entre o
oral e o escrito”; a quarta seria “os progressos da memória escrita, do século XVI aos nossos dias”; e por fim,
a quinta “os desenvolvimentos atuais da memória”. Para aprofundar os estudos nesse tema, no livro História
e memória o autor disseca de maneira objetiva cada uma dessas fases.
237
Ibid. p. 467-469.
238
ANSALDI, Waldo. La memoria, el olvido y el poder. In: ORTIZ, Vitor; POSSAMAI, Zita Rosane (Org.).
Cidade e memória na globalização. Porto Alegre: Unidade Editorial da Secretaria Municipal da Cultura,
2002. p. 30-31.
115
Mas, tendo em vista a necessidade de perdão, para esquecer o passado, conforme
leciona François Ost,239 como escolher o que se deve esquecer e o que se deve guardar na
memória? Diante desse dilema o autor traz à baila as noções de identidade narrativa e
identidade argumentativa. A primeira identidade relaciona-se a referência ao passado, sem
trazer consigo uma conotação universal, ao passo que a segunda, refere-se a uma identidade
universal, que não possua uma substancial referência com o passado. Ocorre que ambas não
são suficientes para resgatar a memória, uma vez que a identidade narrativa possui grande
dificuldade em reconhecer o outro e inseri-lo no contexto social, da mesma forma, a memória
argumentativa, sob o título de universal, não promove o resgate do singular. Assim, o perdão
ao passado, não exige um rompimento com a tradição, mas sim a sua revisão, a fim de que o
passado, a história permaneça presente e interagindo com novas decisões que abranjam o
risco.
As construções arquitetônicas espelham a memória das pessoas que viveram numa
determinada cidade, ou seja, seus costumes, crenças, limitações. Assim ao demolir uma casa
histórica, não se está derrubando somente tijolos e cal, mas sim, a memória de um povo.
Aliás, “puede decirse que en la cuestión de los monumentos y edificios y en la de cuánto y
cómo una sociedad trata su arquitectura, hay una relación de memoria y olvido del proprio
pasado de una sociedad.”240 Muitas construções ou monumentos são edificados em
homenagem ou mesmo para recordação de determinado fato ou acontecimento, seja ele de
pesar ou não para a sociedade, porém se percebe que com o passar dos anos a memória ainda
flui nessas edificações, fazendo com que não caia no esquecimento a história da própria
humanidade, há uma constante interação entre o patrimônio histórico e os indivíduos.241
239
OST, François. O tempo do direito. Tradução por Élcio Fernandes. Bauru, SP: Edusc, 2005. p. 150-151.
ANSALDI, Waldo. La memoria, el olvido y el poder. In: ORTIZ, Vitor; POSSAMAI, Zita Rosane (Org.).
Cidade e memória na globalização. Porto Alegre: Unidade Editorial da Secretaria Municipal da Cultura,
2002. p. 40.
241
As construções históricas não são preservadas devido a sua beleza estética, mas sim devido a sua interação
com a memória e a vida das pessoas que compõem as culturas locais, a fim de explicar melhor tal dimensão
interessante referir o que Michel Random (Transdiciplinaridade e o belo. In: BARROS, Vitória;
SOMMERMANN, Américo (Org.). Educação e transdisciplinaridade. Brasília: UNESCO/ São Paulo:
TRIOM, 2000. p. 122-123) explana ao tratar sobre as dimensões invisíveis e o conceito de beleza explica a
interação entre o indivíduo e a beleza do lugar que o cerca: “quando olhamos um jardim chinês ou japonês
ocorre algo muito interessante no que diz respeito às relações do espaço. No jardim chinês, o espaço não é
considerado como uma coisa estática, mas como uma coisa vibratória. Entre a árvore, a rocha e o caminho há
espaços e esses espaços têm uma história. Quando o pintor ocidental atual vai até uma paisagem ele coloca
seu cavalete ali e começa a pintar a paisagem. Mas o que fazia um pintor chinês? O pintor chinês não levava
nada. Ficava diante da paisagem um dia, dez dias ou três semanas, até que tivesse integrado os ritmos, os
sensações, a geomancia. Cada rocha, cada espaço da paisagem tinha veias, tinha espaços vibratórios que
tinham um sentido. O pintor chinês impregnava-se com essa contemplação e depois, quando sentia ter a visão
do quadro, voltava para o seu ateliê e não pintava a paisagem tal qual viu, mas tal qual as harmonias da
paisagem foram traduzidas e sentidas por ele”.
240
116
Com relação aos monumentos, como estátuas, marcos, a sua função caracteriza-se em
não somente informar sobre um acontecimento ou determinada pessoa que faz parte da
história de um local, mas sim ser um espaço de memória viva, um meio de comunicação entre
as pessoas e a memória coletiva. Assim, os monumentos além de permitirem essa conexão
entre memória e individuo, são uma forma de ressaltar os fatos que historicamente
selecionados são importantes para a formação da identidade cultural. “O monumento
assegura, acalma, tranquiliza, conjurando o ser do tempo. Ele constitui uma garantia das
origens e dissipa a inquietação gerada pela incerteza dos começos”. Independente do formato
que o monumento possua, uma vez que irá variar a depender da cidade, acontecimento a ser
lembrado, recurso financeiro investido na sua construção; a sua conotação social e cultural é
universal, eis que participam da memória coletiva.242 Entretanto, na modernidade muitos dos
monumentos têm perdido essa função de significação, parecendo vazios, visto que a
sociedade onde estão inseridos não lhes mantém viva a memória. Ou mesmo sua construção
lhes parece supérflua.
Assim, ao invés da construção de monumentos, as cidades têm se utilizado de
monumentos históricos. Construções que não foram edificadas com o objetivo de rememorar
determinado acontecimento, mas que com o passar do tempo adquiriram tal status. Conforme
se percebe, o monumento em si é pensando a priori, enquanto que o monumento histórico a
poteriori, visto que o historiador, no futuro (momento posterior a sua construção) se atentará
ao seu valor enquanto testemunha da memória e história de determinada sociedade. Inclusive,
ao monumento histórico pode-se atribuir duas percepções diversas: enquanto objeto do saber
histórico, integra-se na noção linear do tempo, mantendo viva a memória coletiva; ou se
relaciona enquanto obra de arte, em razão de sua conotação artística, nesse sentido não possui
uma conotação de memória, mas sim faz parte do presente, nesse caso, sob essa outra
sensibilidade. De todo o modo, tanto os monumentos, quanto os monumentos históricos
apresentam dificuldades quanto a sua conservação. A falta de manutenção, e desapego da
sociedade com relação a sua importância histórica têm determinado a sua destruição, a qual
pode ocorrer de maneira deliberada, por parte do sistema político, ou por negligência, na
medida em que o esquecimento social quanto ao monumento torna a sua preservação cada vez
mais rara.243 Sabe-se que o esquecimento faz parte da vida em sociedade, assim como o faz a
memória, porém a sua influência sobre o patrimônio histórico é tamanha, na medida em que
242
CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. Tradução de Luciano Vieira Machado. 3. ed. São Paulo:
Estação Liberdade: UNESP, 2006. p. 18.
243
Ibid. p. 25-26.
117
determina a sua não-proteção, não-conservação, não-restauração, situações estas que fazem
ruir a tradição histórica e a identidade cultural da comunidade. É de se atentar que referidas
perdas não ocorrem de súbito, e nem por vontade externa, ou forças da natureza (apesar,
destas efetivamente possuírem efeitos negativos sobre a conservação de uma construção
histórica), mas decorrem das decisões tomadas pela sociedade, sob determinado contexto,
cujos riscos dar-se-ão de maneira implícita e gradativa.
Portanto, a memória para a proteção do patrimônio histórico arquitetônico representa
união de um grupo, e demanda uma volta ao sagrado, à origem do elo entre as pessoas que
pertencem a uma comunidade. Utilizando-se da memória, a cidade produz continuamente a
sua identidade, e por corolário, produz sua diferença, no sentido sistêmico deste termo. A
memória da cidade necessita ser preservada, por ser condição fundamental de transmissão da
cultura, pois esta não age sozinha para que se ramifique nos cidadãos, ou mesmo nos
visitantes a preservação do patrimônio histórico arquitetônico, atua diretamente na
manutenção da história da cidade no decorrer do tempo.
3.2 A BUSCA POR NOVOS CAMINHOS DE PROTEÇÃO PARA O PATRIMÔNIO
HISTÓRICO: COMO AS EXPERIÊNCIAS DE DIREITO COMPARADO E A
VALORIZAÇÃO DO LOCAL REVELAM A NECESSIDADE DE UMA VISÃO
DE
SEGUNDO
NÍVEL
NA
CONSTRUÇÃO
SOCIAL
DA
CULTURA
AMBIENTAL
O passado, quando não mais ilumina o futuro, deixa o espírito
andando nas trevas. Tocqueville
O patrimônio histórico arquitetônico encanta quem vive, ou quem visita cidades que
conservam a cultura originária do local. As cidades por si só não podem mais ser
caracterizadas como pequenos vilarejos ou comunidades, com a complexidade de relações
entre as pessoas que as habitam, também complexos ficaram os limites de sua urbanização.
Não é possível delimitá-las apenas territorialmente, haja vista a inserção de culturas
exógenas244, porém se pode dizer que a cidade está presente na relação que os seus habitantes
244
Essa introdução de culturas de outros países é um problema preocupante em muitas sociedades, especialmente
naquelas cuja história escrita não é datada há tempos ou então devido à riqueza econômica que as outras
culturas parecem possuir, pois, conforme explica Aloísio Magalhães: “quando se observa o alto índice da
absorção de valores estranhos à nossa identidade cultural, atingindo de maneira avassaladora os meios de
comunicação de massa e até mesmo, o que me parece mais grave, segmentos de nosso pensamente
118
possuem de identificação cultural com ela. O Município que conserva o seu patrimônio
histórico arquitetônico proporciona o bem estar para o seu morador, pois mesmo que ele viaje
ou se mude, ao retornar para o seu local de origem identificar-se-á com a sua identidade
cultural, sentindo-se pertencente a algo.
No Brasil, existem instituições que são responsáveis pela defesa e preservação do
patrimônio histórico arquitetônico. A nível nacional encontra-se o Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional, porém, tal não é suficiente para impedir que as construções
históricas sejam demolidas no calar da noite, ou então, que mesmo após um processo judicial,
que se alonga por anos (o que acaba determinando a deterioração da construção histórica),
ressonâncias dos sistemas econômico e político prevaleçam nas decisões que são tomadas
pelo sistema do Direito.
No plano internacional, preocupadas com a salvaguarda do patrimônio cultural,
durante o século XX, diversas nações participaram das Convenções Internacionais245 voltadas
para a sua proteção, redigindo-se Cartas Patrimoniais, nas quais ratificavam a preocupação
com a destruição dos monumentos, bem como o seu compromisso em preservar o patrimônio
cultural. A expressão patrimônio cultural foi ampliando-se durante as Convenções
Internacionais. Em 1931, foi realizada a Carta de Atenas, como primeira referência mundial
sobre o patrimônio cultural, fornecendo os primeiros princípios para a sua proteção e
restauração.
Por meio do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (Icomos), em 1964, na
Carta de Veneza, redigiu-se de forma enfática a definição de monumento histórico, o qual
compreendia, “a criação arquitetônica isolada, bem como o sítio urbano ou rural que dá
testemunho de uma civilização particular, de uma evolução significativa ou de um
acontecimento histórico”, a proteção foi ainda estendida “não só às grandes criações, mas
também às obras modestas, que tenham adquirido, com o tempo, uma significação cultural”.
A Carta de Veneza regulamentou a forma de conservação do monumento, a qual deveria ser
permanente, colocou limites na restauração dos monumentos, pois se as técnicas tradicionais
245
intelectual. Às grandes interpretações da evolução do pensamento brasileiro procura-se opor noções de
descontinuidade, abandonando-se o sentindo de processo e de continuidade cultural” (MAGALHÃES,
Aloísio. E triunfo? A questão dos bens culturais no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; Brasília:
Fundação Nacional Pró-Memória, 1985. p. 45).
Refere Françoise Choay (A alegoria do patrimônio. Tradução de Luciano Vieira Machado. 3. ed. São Paulo:
Estação Liberdade: UNESP, 2006. p. 14) que na primeira Convenção Internacional para a Conservação de
Monumentos Históricos, a qual ocorreu em Atenas em 1931, só participaram Estados Europeus. Já na
Convenção de Veneza, em 1964, houve a participação de três países não europeus: Tunísia, México e Peru.
Ao passo que em 1979, oitenta e cinco países dos cinco continentes haviam assinado a Convenção do
Patrimônio Mundial.
119
de restauração mostrassem-se inadequadas, deveriam ser utilizadas técnicas modernas, haja
vista que a restauração deve considerar o material original e o monumento fidedigno.246
Posteriormente, em 1968, com a participação da Organização das Nações Unidas,
percebeu-se que a noção de patrimônio cultural formulada pela Carta de Veneza, era muito
limitada, já que salvaguardava somente os monumentos históricos, assim, formulou-se o
documento intitulado Recomendações de Paris, o qual ampliou a definição de patrimônio
cultural aos bens móveis e imóveis, neles incluídas as construções históricas e o entorno a ela
pertencentes. Esse mesmo documento trouxe diversas medidas para a preservação do
patrimônio cultural, dentre as quais, a necessidade de cada Estado possuir uma legislação
nacional voltada ao salvamento desse patrimônio, o financiamento a ser utilizado na
preservação do patrimônio, através dos setores público e privado, as sanções a quem atentasse
contra o patrimônio preservado.247
Apesar do avanço ocorrido nesses quatro anos, tal definição de patrimônio cultural
não contemplava a preservação do patrimônio natural, que estava sendo alterado e destruído
devido ao crescimento social e econômico das nações, já que passou a ser objeto de
preocupação mundial.
O meio ambiente é formado tanto pelo meio ambiente natural, representado, por
exemplo, pelas formações geológicas, flora, fauna, quanto pelo meio ambiente cultural,
presente nas manifestações de valor evidente realizadas pelo homem, conforme já referido na
primeira parte do presente trabalho. Desse modo, em 1972, a Organização das Nações Unidas
para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco), formulou a Convenção de Paris, ampliando a
proteção ao patrimônio cultural, dividindo-o em patrimônio cultural e patrimônio natural.248
246
OLIVEIRA, Rogério Pinto Dias de (Coord.). Manuais do patrimônio histórico edificado da UFRGS: cartas
patrimoniais e legislação. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2007. p. 31.
247
Ibid. p. 35.
248
Assim refere a Convenção: “Para os fins da presente convenção serão considerados como patrimônio cultural:
- os monumentos: obras arquitetônicas, de escultura ou de pintura monumentais, elementos ou estruturas de
natureza arqueológica, inscrições, cavernas e grupos de elementos que tenham um valor universal
excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência; - os conjuntos: grupos de construções
isoladas ou reunidas que, em virtude de sua arquitetura, unidade ou integração na paisagem, tenham um valor
universal excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência; - os lugares notáveis: obras do
homem ou obras conjugadas do homem e da natureza, bem como as zonas, inclusive lugares arqueológicos,
que tenham valor universal excepcional do pinto de vista histórico, estético, etnológico ou antropológico. [...]
Para os fins da presente convenção serão considerados como patrimônio natural: - os monumentos naturais
constituídos por formações físicas e biológicas ou por grupos de tais formações, que tenham valor universal
excepcional do ponto de vista estético ou cientifico; - as formações geológicas e fisiológicas e as áreas
nitidamente delimitadas que constituam o habitat de espécies animais e vegetais ameaçadas e que tenham
valor universal excepcional do ponto de vista estético ou científico; - os lugares notáveis naturais ou as zonas
naturais estritamente delimitadas, que tenham valor universal excepcional do ponto de vista da ciência e da
conservação ou da beleza natural”. (Ibid. p. 40).
120
Seja como for, novamente quatro anos após a Convenção de Paris, a Organização das
Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco) reuniu-se e formulou a Carta de
Nairóbi, fomentada pela perda de identidade que estava acontecendo nos Estados, devido a
sua uniformização e esquecimento da personalidade cultural. Foi ímpar a definição de
conjunto histórico ou tradicional como as construções edificadas em meio urbano ou rural,
cujo valor cultural seja reconhecido. Esses conjuntos abrangiam “os sítios pré-históricos, as
cidades históricas, os bairros urbanos antigos, as aldeias e lugarejos, assim como os conjuntos
monumentais homogêneos, ficando entendido que estes últimos deverão, em regra, ser
conservados em sua integridade”. A Carta de Nairóbi também inspirada com as crescentes
construções desenvolvidas nos conjuntos urbanos, somadas à destruição de muitos
monumentos, visualizou a necessidade de os arquitetos aliarem as construções modernas com
o patrimônio cultural já existente nas cidades, ressaltando a peculiaridade regional que o
patrimônio cultural proporciona ao estar harmonizado com as demais construções
modernas.249
O patrimônio cultural até então era formado somente pelos bens tangíveis, ou seja,
aqueles que fossem materiais, palpáveis. Foi em 1985, com a Declaração do México,
realizada por meio do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (Icomos), que
passaram a integrar o patrimônio cultural, os valores culturais imateriais. De acordo com a
Declaração do México o patrimônio cultural “compreende as obras de seus artistas, arquitetos,
músicos, escritores e sábios, assim como as criações anônimas surgidas da alma popular e
conjunto de valores que dão sentido à vida.”250 Cristalina a importância que passou a possuir
perante as nações o patrimônio cultural imaterial, já que com a crescente globalização
acelerou-se a importação de hábitos e costumes de outros países, o que acabou por destruir ou
mesmo modificar a cultura que durante gerações foi o centro de tradições ramificadas em
cada sociedade. A Declaração do México apresentou que a educação cultural e o apreço pela
língua nacional devem ser enraizados, pois não se pode permitir a ruína da identidade cultural.
No Brasil, o patrimônio imaterial não encontrava guarida, tanto que muitas expressões
populares estavam desaparecendo, ao passo que as Cartas Internacionais e o Decreto-Lei nº
25, de 30 de novembro de 1937 já previam a proteção do patrimônio cultural material. Assim,
em 1995, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) elaborou a Carta de
Brasília, abrangendo os países integrantes do Cone Sul, considerando as diferenças culturais
249
OLIVEIRA, Rogério Pinto Dias de (Coord.). Manuais do patrimônio histórico edificado da UFRGS: cartas
patrimoniais e legislação. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2007. p. 43-44.
250
Ibid. p. 48.
121
encontradas nesses países da América Latina, tendo em vista que sofreram diversas
influências, provenientes das populações que já se encontravam em solo americano, quando
da colonização, a cultura colonialista europeia, os valores e costumes trazidos pelos escravos
durante o período da Escravidão, além das culturas trazidas pelos diversos imigrantes que
vieram para o continente americano. A fim de resguardar a identidade cultural, a qual é
continuadamente mutável, propôs-se a importância de investigar e discutir acerca de quão
importante é determinado bem cultural, já que “especialmente a que diz respeito à arquitetura
vernácula251 e tradicional, é constituída por materiais efêmeros por natureza, como a terra, os
elementos vegetais, a madeira etc. nestes casos, a renovação de práticas evolutivas, em
continuidade cultural, como a substituição de alguns dos elementos através de técnicas
tradicionais, resulta em uma resposta autêntica”.252
No ano de 2003, verificou-se necessária a salvaguarda conjunta entre o patrimônio
cultural imaterial, o patrimônio cultural material e o patrimônio natural, logo, a Organização
das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura, elaborou as Recomendações de Paris,
trazidas em especial para proteção do patrimônio cultural imaterial, tendo abrangido a sua
amplitude às “práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas – junto com os
instrumentos, objetos, artefatos e lugares que lhe são associados – que as comunidades, os
grupos e, em alguns casos os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio
cultural.”, nesse sentido, o patrimônio cultural imaterial engloba “a) tradições e expressões
orais, incluindo o idioma como veículo do patrimônio cultural imaterial; b) expressões
artísticas; c) celebrações, práticas sociais, rituais e atos festivos; d) conhecimentos e práticas,
relacionados à natureza e ao universo; e) técnicas artesanais e tradicionais”.253
Assim, a defesa ao patrimônio cultural imaterial considerou também que como os
movimentos sociais estão em constante interação com as influências sociais, fazendo surgir
diversas culturas, que presentes durante gerações, identificam e relacionam determinada
sociedade à sua forma de viver. A inserção do patrimônio cultural imaterial como bem
inerente de proteção reflete o desenvolvimento que a proteção cultural apresentou no século
XXI, já que inadmissível que com a complexidade da sociedade atual a definição de
251
Júlio Posenato (Arquitetura da imigração italiana no Rio Grande do Sul. Porto Alegre, EST/EDUCS, 1983.
p. 556) explica que a arquitetura vernacular difere da erudita (monumentos criados para acompanhar
acontecimentos históricos) por desprezar o trabalho de técnico especializado como criados. Ainda, pode-se
dizer que para a realização das grandes obras (arquitetura erudita) ocorreu a divisão social no trabalho: o
criador e o realizador não pertencem a mesma classe social, ao contrário do que se passou com as
construções da arquitetura vernacular.
252
OLIVEIRA, Rogério Pinto Dias de (Coord.). Manuais do patrimônio histórico edificado da UFRGS: cartas
patrimoniais e legislação. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2007. p. 52.
253
Ibid. p. 56.
122
patrimônio imaterial continuasse a ser a proposta na década de 1980. Tais referências
demonstram a diferente interpretação que foi dada ao patrimônio cultural com o passar dos
anos, eis que a inserção de diferentes noções e formas de preservação faz com que o
patrimônio cultural estenda sua conservação a um grande número de manifestações culturais.
Principalmente porque a noção de patrimônio cultural não é estável, ao contrário, está
sempre em constante evolução, assim, como os indivíduos, que são verdadeiramente os
construtores do patrimônio cultural, logo, ele não deve ficar adstrito a tudo o que já foi
catalogado ou escrito, mas sim ser constantemente ampliado. Nestas condições, o patrimônio
histórico arquitetônico integra o patrimônio cultural, sendo que aquele pode ser entendido
como uma construção ou um conjunto de construções arquitetônicas que revelem uma
manifestação do local onde se encontram, perpassando a noção geográfica do território de um
país. Para Françoise Choay254 o patrimônio histórico “designa um bem destinado ao usufruto
de uma comunidade que se ampliou a dimensões planetárias, constituído pela acumulação
contínua de uma diversidade de objetos que se congregam por seu passado comum”.
A proteção ao patrimônio histórico arquitetônico tornou-se parte da percepção pública
depois de uma longa caminhada. A legislação efetiva que buscava a proteção ao patrimônio
histórico arquitetônico foi promulgada no século XIX, na França, por exemplo, a primeira lei
em 1887, cuja regulamentação provisória ocorreu em 1889, e somente em 1913 houve sua
regulamentação definitiva, entretanto o texto legislativo apresenta diversos óbices como
“morosidade da burocracia; redução progressiva do papel ativo, estimulante e anticonformista
dos voluntários substituídos por funcionários [...], enfim, fraqueza maior, o vazio doutrinal
que constitui o contexto administrativo, técnico e jurídico dos procedimentos”.255 Do mesmo
modo, na Itália, nesse período são editadas as legislações protecionistas, nesse sentido
colaciona Adriano La Regina256, algumas ainda estão em vigor, uma vez que a “classe
dirigente da Unificação era austera e seus políticos, zelosos guardas dos dinheiros públicos, o
que auxiliou a apressar a legislação específica sobre o patrimônio cultural (então chamado
‘histórico e artístico’)”.
A restauração do patrimônio ganha força, todavia como foi o início da caminhada
legislativa, muitas restaurações são feitas de forma grotesca ou destruindo partes do edifício
254
CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. Tradução de Luciano Vieira Machado. 3. ed. São Paulo:
Estação Liberdade: UNESP, 2006. p. 11.
255
Ibid. p. 148-149.
256
LA REGINA, Adriano. Preservação e revitalização do patrimônio cultural na Itália. Texto em Português
editado por Marlene Suano. São Paulo: FAUUSP, 1982. p. 8.
123
histórico. Dessa forma, criam-se escolas para que os arquitetos257 aprendam a utilizar a arte da
restauração. Constrói-se nesse período o entendimento de que o patrimônio histórico
arquitetônico não pertence ao presente. A época atual, mas às próximas gerações, sendo um
dever, perante elas, conservá-lo. Além disso, muitos arquitetos e pensadores vão criar
diferentes teorias acerca da restauração do patrimônio, do que deve ser preservado e do que
não é considerado histórico, o que firmou, duas percepções distintas para a política de
preservação, a primeira seria o “modelo anglo-saxônico, com o apoio de associações civis,
voltado para o culto ao passado e para a valoração ético-estética dos monumentos”, por outro
lado, “o modelo francês, estatal e centralizador, que se desenvolveu em torno da noção de
patrimônio, de forma planificada e regulamentada, visando ao atendimento de interesses
políticos do Estado”.258 Em grande parte da Europa e no Brasil adotou-se o modelo francês.
Foi no início do século XX que a legislação sobre o patrimônio histórico arquitetônico
em toda a Itália foi reformulada, pois até essa data, as leis promulgadas no século XIX eram a
única forma de proteção, dessa forma “ratificou-se o princípio do interesse público sobre as
coisas objeto de tal lei [lei de 1902], independentemente da propriedade, com disposições
aplicando-se ‘aos monumentos, aos imóveis e aos objetos móveis de antiguidade ou de arte’
desde que não de autores vivos ou com menos de 50 anos de fabricação”. Referida legislação
foi alterada em 1939, esta alteração garantiu que o Estado deveria auxiliar em até a metade
das despesas, quando o proprietário privado não possuir condições de fazê-lo na totalidade.259
Tal auxílio é fundamental, tendo em vista que o restauro das construções históricas
geralmente demanda um investimento considerável. Seguindo essa normativa, o artigo 19, §
1º do Decreto-Lei nº 25, de 30 de novembro de 1937 prevê que se o proprietário de coisa
tombada, não dispuser de recursos para proceder às obras de conservação e reparação que a
mesma requerer, deve levar ao conhecimento do Iphan a necessidade das mencionadas obras,
sob pena de multa. Recebida a comunicação, e consideradas necessárias as obras, o diretor do
Iphan mandará executá-las, a expensas da União, devendo as mesmas ser iniciadas dentro do
prazo de seis meses, ou providenciará para que seja feita a desapropriação da coisa. Visando
257
Júlio Posenato (Arquitetura da imigração italiana no Espírito Santo. Porto Alegre: Posenato Arte & Cultura,
1997. p. 544) menciona que no tocante ao ensino universitário, seja de educação, Sociologia, história ou
arquitetura, etc., nenhum estudante deveria receber o diploma sem ter participado de um projeto de pesquisa
no âmbito do patrimônio cultural. Afirma ainda, que além de ser vital em sua formação profissional, a
experiência de pesquisar infunde no estudante o interesse pelo patrimônio e a disposição de, já como
profissional, participar ativamente na sua defesa e valorização.
258
FONSECA, Maria Cecília Londres. O patrimônio em processo: trajetória da política federal de preservação
no Brasil. Rio de Janeiro: URFJ, IPHAN, 1997. p. 62.
259
LA REGINA, Adriano. Preservação e revitalização do patrimônio cultural na Itália. Texto em Português
editado por Marlene Suano. São Paulo: FAUUSP, 1982. p. 9; 14.
124
valorizar o patrimônio histórico, a Lei nº 8.313, de 1991, que instituiu o Programa Nacional
de Apoio à Cultura, além de captar e destinar recursos para a conservação e restauração de
bens tombados pelo Poder Público, previu o auxílio em até oitenta por cento dos projetos que
intentem a restauração e conservação do patrimônio cultural.
Pode ser realizado também o tombamento internacional do patrimônio histórico sendo
que, como o ato de tombar um bem é exercício da soberania de cada nação, essa espécie de
tombamento tem a função de reforçar a importância mundial da conservação de determinado
patrimônio, já que o bem fica inscrito junto a Organização das Nações Unidas para a
Educação, Ciência e Cultura (Unesco), onde será denominado patrimônio da humanidade.
Os bens culturais são incluídos na Lista do Patrimônio Mundial, a qual é elaborada
pelo Comitê do Patrimônio Mundial. O Brasil já ratificou a Convenção em 01 de setembro de
1977, para proteção do seu patrimônio cultural, dentre os bens que estão arrolados na lista do
Patrimônio Mundial, ressaltam-se “o Centro Histórico de Olinda (PE); as Missões Jesuíticas
dos Guaranis (RS), em conjunto com a Argentina; a cidade de Ouro Preto (MG); o santuário
de Bom Jesus de Congonhas (MG); o Centro Histórico de Salvador (BH); o Plano Piloto de
Brasília (DF), este o mais jovem de todos os bens integrantes da lista; o Parque Nacional do
Iguaçu (PR), também em conjunto com a Argentina e muitos outros”. Cumpre observar que,
mesmo estando inscrito como patrimônio mundial na Unesco, a proteção do patrimônio
histórico arquitetônico é ônus de cada Estado, devendo promover o cuidado para que ele não
se deteriore. De todo o modo, a Unesco criou o Fundo do Patrimônio Mundial, por meio do
qual arrecada verbas para promover restauro em bens considerados patrimônio mundial. 260
Assim, a proteção ao patrimônio histórico arquitetônico encontra fundamento na
legislação e o sistema político possui a discricionariedade de fazê-lo por meio do
procedimento do tombamento. A par disso por que a proteção não ocorre? Há seguidamente
uma inércia de todos os envolvidos na situação, inércia do sistema Político que não tomba a
construção, inércia da comunidade que não o exige, inércia do proprietário no restauro do
bem, o qual vai se deteriorando até que seja “passível” de demolição. Esse conjunto de
inércias torna-se visível quando do julgamento pelo sistema jurídico de ações que envolvam a
proteção das construções históricas, tendo em vista que se houve necessidade do Direito
intervir no tombamento de um bem, significa que o sistema político não o fez.
260
SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. Bens culturais e sua proteção jurídica. 3. ed. rev. e ampl.
Curitiba: Juruá, 2009. p. 138-139.
125
A Sexta Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo,
quando do julgamento do Agravo de Instrumento nº. 323.210-5/2-00,261 realizado em ação
cautelar preparatória movida pelo Ministério Público de São Paulo, em face do proprietário do
prédio histórico e das empresas que estavam promovendo a sua demolição, cassou a liminar
concedida em Primeiro Grau que havia determinado a cessação imediata da demolição dos
prédios que constituem o conjunto fabril da Cerâmica São Luiz Ltda., de Ribeirão Preto, e a
preservação de todo material que resultou da parcial demolição do prédio para ser utilizado na
futura restauração.
Nesse caso, o Município de Ribeirão Preto havia expedido alvará autorizando a
demolição, sendo que não havia processo de tombamento. A construção tinha sido
parcialmente demolida, de modo que o Desembargador referiu que não haveria mais falar-se
do periculum in mora consistente na destruição de um bem que constitui patrimônio histórico
da cidade de Ribeirão Preto. Esse é o primeiro ponto que merece ser rebatido, visto que
mesmo com o fato de parte do imóvel ter sido demolida, permanecia o receio de que o
restante também o fosse. O Ministério Público havia juntado laudo que referiu expressamente
sobre a possibilidade técnica da reconstrução, ressaltando sobre o valor histórico e
arquitetônico do imóvel em questão para o Município. Porém, o Desembargador Relator,
tomou por bem basear sua decisão na manifestação do Município que havia requerido “a
suspensão da liminar, assegura inexistir qualquer requisito a justificar a preservação do
imóvel e afirma que à cidade e aos munícipes interessa a concretização do empreendimento
que será levantado no local. Fornece dados e cifras econômicas.” Por isso, a Câmara concluiu
que haveria maior prejuízo na
manutenção da liminar de cessação da obra, do que a
demolição do prédio.
Tal decisão demonstra que tanto o sistema jurídico quanto o político tomaram sua
decisão baseando-se no código econômico, no sentido da corrupção estrutural, conforme já
explicado no capítulo anterior. Pois, ao invés de determinar a reconstrução da parte que havia
sido demolida, atentou-se aos reflexos econômicos que a demolição da obra traria à cidade.
No tocante, ao fato que o imóvel não estava tombado, diante da previsão constitucional sobre
o patrimônio histórico cultural, poderia a própria Câmara ter declarado o valor histórico,
cultural e arquitetônico do referido edifício.
261
SÃO PAULO. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Agravo de Instrumento nº. 323.210-5/2-00.
Agravante: Cerâmica São Luiz Ltda. e outros. Agravado: Ministério Público. Relator: Hamid Bdine. São
Paulo,
03
de
outubro
de
2003.
Disponível
em:
<https://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/getArquivo.do?cdAcordao=1978024&cdFor o=0>. Acesso em: 28 jun. 2014.
126
Da mesma forma, a Vigésima Segunda Câmara do Tribunal de Justiça do Estado do
Rio Grande do Sul tem sustentado o entendimento que a inexistência de tombado do imóvel,
não obrigada o seu proprietário a conservá-lo, mesmo que no processo judicial esteja
demonstrado que a construção agrega uma importância histórica. Em fevereiro de 2014,
quando do julgamento da apelação nº. 70056617780, foi reformada a sentença de primeiro
grau que havia condenado os proprietários da Casa Franzoloso, localizada no perímetro
urbano de Bento Gonçalves, Rio Grande do Sul, a efetuar a reposição do imóvel, nos termos
do inventário que havia sido realizado pelo Município. Aduz a Câmara que como não houve
tombamento da construção, não existiria nem impedimento à sua demolição, e, nem obrigação
de sua preservação. Importante observar que a construção constava no inventário realizado
pelo Município, sendo que no curso do processo a perícia apontou que a construção “possui
arquitetura utilizada pelos imigrantes italianos que fixaram residência nesta cidade, bem como
a forma de construção utilizada no início do século passado”.262 Referido entendimento
também pode ser observado no julgamento das apelações cíveis nº. 70053815205263 e
70045575982, 264 julgados na mesma Câmara Cível. Dessa forma, a posição do julgador seria
de que o tombamento é necessário para que o Poder Público, e a sociedade em geral exijam
do proprietário a preservação.
Ao contrário do entendimento das Câmaras acima referidas, a Quarta Câmara Cível do
Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, quando do julgamento do Agravo de
Instrumento nº. 70054416391, aplicando o que dispõe a Constituição Federal, no artigo 216,
firmou o entendimento que mesmo que o tombamento não tenha sido realizado pelo Poder
Público “inexiste impedimento de que a tutela se dê mediante intervenção do Poder
Judiciário, até que se investigue se o bem realmente possui valor histórico-culturalpaisagístico para o Município de São Leopoldo”. A Relatora ainda reiterou a importância da
construção histórica datada da “segunda metade do século XIX ou primeira metade do século
XX”, visto que abriga “referência à identidade e à memória de grupo modelador da sociedade
brasileira, in casu, a colonização alemã.”265 Aliás, é interessante que a decisão proferida por
262
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação nº. 70056617780.
Apelantes: Darcy Milani e Dione Milani. Apelado: Município de Bento Gonçalves. Relatora: Denise Oliveira
Cezar. Porto Alegre, 27 de fevereiro de 2014.
263
Id. Apelação nº. 70053815205. Apelante: Município de Novo Hamburgo. Apelados: João Carlos Hartz e
Marlene Amália Hartz. Relatora: Maria Isabel de Azevedo Souza. Porto Alegre, 13 de junho de 2013.
264
Id. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação nº. 70045575982. Apelante: MG Indústria
e Comércio S.A. Apelado: Município de Novo Hamburgo. Relatora: Maria Isabel de Azevedo Souza. Porto
Alegre, 22 de março de 2012.
265
Id. Apelação nº. 70054416391. Agravante: Central S.A. Transportes Rodoviários e Turismo. Agravado:
Ministério Publico. Relator: Eduardo Uhlein. Porto Alegre, 24 de julho de 2013.
127
essa Câmara contemplou a noção de identidade e memória, de modo que aborda com maior
profundidade a complexidade da proteção ao patrimônio histórico.
Ainda, com relação à cidade de Bento Gonçalves, Carlos Fernando de Moura
Delphim, Coordenador-Geral de Patrimônio Natural do Departamento de Patrimônio Material
e Fiscalização do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional aponta que a sua
paisagem cultural sofre com impactos negativos provenientes pelo Poder Púbico, Religião, e
sociedade por meio dos empresários. Com relação aos impactos do Poder Público Municipal
refere que apesar de o Plano Diretor conter disposições para a proteção do patrimônio
histórico arquitetônico, a política municipal com o intuito de favorecer interesses de
empresários e empreendedores, até mesmo quando do patrocínio para campanha nas eleições,
por meio do prefeito e vereadores, encaminha propostas e projetos de lei que burlam o Plano
Diretor, no intuito de alterar a zona técnica definida como patrimônio cultural, ou como zona
rural. Propõe-se, dessa forma, uma lei que permite a realização de condomínios e loteamentos
em zonas rurais, até então proibidos, loteamentos que não trazem benefício à coletividade,
somente a um seleto grupo de indivíduos. E após, para justificar essa situação, ampliam a
zona urbana, ou então, revogam a referida lei, mas, preservam os projetos e obras que tenham
sido encaminhados até a data da revogação.266
Os reflexos negativos decorrentes da atividade empresarial decorrem da instalação de
indústrias no entorno do patrimônio histórico, o que a depender da intensidade dos resíduos
expelidos pode afastar a comunidade e visitantes do contato com a construção histórica. Outra
situação é a construção de loteamentos em zona rural,267 descaracterizando a paisagem das
videiras, compelindo os agricultores a venderem seus imóveis para a realização do
empreendimento.268 Cabe mencionar novamente a relevância do planejamento em uma
cidade, o crescimento urbano decorre da sociedade. As cidades expandem-se vertical e
horizontalmente, e isso ocorre sem um estudo prévio e delimitações concretas à construção
por parte do sistema político, de modo que o sistema que deveria tomar as decisões
coletivamente vinculantes, a fim de regular a vida dos cidadãos, mantém-se inerte, e isso
reflete cabalmente na destruição das casas históricas.
266
DELPHIM, Carlos Fernando de Moura. Análise da paisagem cultural da região de Bento Gonçalves: impacto
cultural e proposta de gestão. Brasília: [S.ed.], 2013. p. 34.
267
Sobre a proteção da zona rural, foi fundado em 1974, em Caxias do Sul, um projeto chamado Elementos
Culturais das Antigas Colônias Italianas na Região Nordeste do Rio Grande do Sul. Para conhecer os
trabalhos realizados pelo projeto consultar o seguinte livro: RIBEIRO, Cleodes Maria Piazza Júlio;
POZENATO, José Clemente (Org.). Cultura, imigração e memória: percursos & horizontes. Caxias do Sul:
EDUCS, 2004.
268
DELPHIM, Carlos Fernando de Moura. Análise da paisagem cultural da região de Bento Gonçalves: impacto
cultural e proposta de gestão. Brasília: [S.ed.], 2013. p. 40; 43.
128
Os impactos ao patrimônio histórico arquitetônico provocados pelo sistema religioso
decorrem da demolição de igrejas antigas, para em seu lugar realizar um estacionamento;
realocação de campanários para os fundos da igreja, ao invés de permanecerem em frente a
ela; destruição de muros e túmulos antigos, para construção de outros de alvenaria;
substituição das antigas telhas de cerâmica das igrejas por outras mais modernas.269
Para entender como essas situações ocorrem, e outras que atentam contra o patrimônio
histórico arquitetônico, é necessária uma observação de segundo nível, conforme expõe
Luhmann, a fim que se possam superar os pontos cegos, visto que o observador não vê que
não está vendo. De início é importante que se distinga observação e observador, observação
trata-se da operação, enquanto que o observador configura-se em um sistema que se usa das
operações de observar, a fim de promover uma diferenciação com o meio. Referida distinção
entre operação e observação ocorre por meio de um sistema, sendo ela uma consequência
positiva do sistema. Desse modo, para que o observador possa observar as operações, ele
próprio precisa ser uma operação, uma vez que ele está inserido dentro do mundo que está
observando. Por ser uma operação, o observador se constrói no momento em que realiza as
vinculações entre as operações. Assim, para criar a unidade da observação, o sistema precisa
produzir a diferença, visto que a operação de observar alguma coisa difere da observação que
se está observando, assim a unidade fica sujeita ao ponto cego, já que não é possível observar
a totalidade.270 O que justifica a complexidade do sistema, mas também instiga que as
observações necessitam contemplá-la.
O observador como um sistema constrói um limite para a observação, tendo em vista
que possui um sistema que o diferencia do meio. Essa diferenciação torna-o igual a si próprio,
na medida em que a observação será realizada de acordo com os limites impostos pelo próprio
sistema do observador. Outros sistemas podem observar o observador, mas não podem
interferir na observação, uma vez que esta é realizada somente pelo observador em questão.
Por meio da diferenciação o observador não pode estar em dois lados ao mesmo tempo, a
operação não se encontra em dois pontos de tempo simultaneamente. Nesse sentido, a
observação de segunda ordem seria a observação efetuada sobre um observador. Consiste em
focar a distinção realizada por um observador, “a tentativa de observar aquilo que o
observador não pode ver, devido à localização”. A observação de segunda ordem tem como
consequência uma redução de complexidade, tendo em vista que baseia sua observação,
269
DELPHIM, Carlos Fernando de Moura. Análise da paisagem cultural da região de Bento Gonçalves: impacto
cultural e proposta de gestão. Brasília: [S.ed.], 2013. p. 48.
270
LUHMANN, Niklas. Introdução à teoria dos sistemas. Tradução por Ana Cristina Arantes Nasser. 2. ed.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2010. p. 154-156.
129
naquela proveniente do observador e não na totalidade do mundo. Porém, essa redução de
complexidade, ao fim e ao cabo, a amplia, quando o observador de segunda ordem volta aos
esquemas de diferenças realizados pelo observador anterior. Em tal contexto, toda observação
dá-se em maneira contingente, tendo em vista que o que foi realizado, imaginado, poderia ter
sido realizado de uma maneira diversa, o mundo pode ser reconstruído de uma maneira
diversa, em razão do excesso de possibilidades.271 Assim, a observação atinente à proteção
do patrimônio histórico arquitetônico deve levar conta o risco, o tempo e a memória, para que
ela possa ser ampliada de acordo com a complexidade que compõe os sistemas sociais. Da
mesma forma, as observações realizadas pelos sistemas podem ser revistas a fim de abarcar a
complexidade, não há necessidade de manter-se rígida àquela observação inicial. O Direito,
por exemplo, quando está diante de um processo que trata de um risco, pode produzir uma
decisão que abarque esse risco como prova, sem necessitar de um dano concreto. No caso do
patrimônio histórico arquitetônico, não se sabe se a sua demolição irá efetivamente ocasionar
uma perda de referência local, por isso, é um risco, e como tal, deve embasar as decisões não
só jurídicas, mas também políticas e econômicas.
Muitas são as cidades que promovem formas de gestão urbana para a proteção do
patrimônio histórico arquitetônico. Gustavo Aller explica que a beleza arquitetônica da cidade
de Montevideo foi construída nos séculos XIX e XX, cujos traços marcantes provêm dos
imigrantes franceses e italianos. Estes foram responsáveis não somente em povoar a cidade,
mas influenciaram consideravelmente sua cultura. Assim, a base conceitual para o sistema de
proteção de Montevideo parte da ideia de que a cidade não se constitui como um simples
amontoado de edifícios construídos dentro de seu território, mas sim um todo organizado,
onde se integram as características urbanas e ambientais. Essas características são
indissociáveis da cidade, visto que a formam. Dessa forma, cada árvore, casa histórica, praça,
igreja, possui uma identidade que lhe é própria, mas que juntas compõem a identidade local, e
por corolário, constroem uma configuração urbana. Essa identidade é composta pelos valores
ambientais e visuais, por isso, a proteção ao patrimônio histórico encontra sua guarida,
quando se está diante da noção de identidade cultural, eis que é uma das formas de sua
exteriorização. Nesse contexto, cada construção nova realizada em Montevideo é analisada
cuidadosamente, visto que fará parte da configuração urbana e não deverá desconstituir a
271
LUHMANN, Niklas. Introdução à teoria dos sistemas. Tradução por Ana Cristina Arantes Nasser. 2. ed.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2010. p. 157; 168.
130
identidade. O que não quer dizer que exista um congelamento nas construções, mas sim que
há um planejamento, a fim de que ocorra um melhor aproveitamento da malha urbana.272
Assim, Montevideo criou quatro instrumentos para a gestão do patrimônio, são eles:
incentivos fiscais, código punitivo, convênio de patrocínio e negociação. Os incentivos fiscais
referem-se à exoneração quanto aos impostos e imposições administrativas. O código punitivo
trata-se de sanções àqueles que não protegem as construções históricas. O convênio de
patrocínio configura-se no investimento privado na restauração do patrimônio, em troca de
divulgação e disponibilização de espaço para publicidade. Por fim, a negociação refere-se à
intervenção do Poder Público junto ao privado, para que este promova a conservação do
patrimônio quando a situação o permitir. Infelizmente, nem todos esses mecanismos já
possuem aplicabilidade, visto que estão contemplados na proposta realizada pelo Sistema de
Protección Patrimonial de Montevideo, de todo o modo, configuram como se intenta formar a
operacionalização desse sistema.273 Alguns desses mecanismos são também adotados por
cidades brasileiras, mas não há uma uniformização, pois, depende do planejamento específico
de que cada Administração Municipal.
A salvaguarda enfrenta óbices perante o meio social, tendo em vista que diversas
vezes registra certo descrédito perante o tombamento, especialmente por acreditar ser motivo
de limitação da propriedade, ou mesmo achar a construção muito antiga, no sentido pejorativo
do termo. A partir dessa constatação, Júlio Posenato refere que deve ser solidificada a ideia de
que a preservação seria uma honra e não uma limitação ao direito de propriedade, os bens
tombados “com plena concordância dos proprietários, concedendo a eles e aos antigos
proprietários e construtores uma distinção pública e afixando aos prédios uma placa alusiva à
honraria, a comunidade passará tomar a iniciativa de propor seus próprios imóveis aos
vínculos de proteção” de modo que “todos cobiçarão para si e seus antepassados um diploma
de honra e uma medalha ‘de ouro’”.274
Essa forma de reconhecimento do patrimônio histórico sugerida por Júlio Posenato é
aplicada em Buenos Aires. Como forma de gestão para a proteção do patrimônio histórico
arquitetônico foi criado em 1994, por meio da Ordenanza 48.093, um instrumento voltado à
proteção de locais que constituem a identidade cultural portenha, chamado de Sitio de Interés
Cultural. A inclusão nessa categoria pode ser promovida pelo Executivo, bem como por
272
ALLER, Gustavo. Protección patrimonial em Montevideo: una experiência de gestion urbana. In: ORTIZ,
Vitor; POSSAMAI, Zita Rosane (Org.). Cidade e memória na globalização. Porto Alegre: Unidade Editorial
da Secretaria Municipal da Cultura, 2002. p. 94-95.
273
Ibid. p. 105.
274
POSENATO, Júlio. Arquitetura da imigração italiana no Espírito Santo. Porto Alegre: Posenato Arte &
Cultura, 1997. p. 534.
131
qualquer pessoa, após a aprovação do pedido, é realizada uma cerimônia para a entrega de
uma placa identificando o local como Sitio de Interés Cultural, explicando também a história
do ponto. Além disso, é realizada uma grande publicidade, no sentido de que são divulgados
catálogos e textos, para promoção cultural e turística do local. Três são as possibilidades de
inscrição como um sítio definidas pela Ondenanza: “onde tenham nascido, vivido ou falecido
pessoas de destaque no campo da cultura; lugares que são partes inseparáveis da cidade, como
cinemas, cafés, teatros, templos; e construções com características arquitetônicas que
mereçam ser destacadas”.275 Essa valorização por parte do Estado a quem preserva o
patrimônio histórico arquitetônico é fundamental para que se conquiste o proprietário do
imóvel, além disso, ao fazer a cerimônia sobre a construção histórica se reconhece que ela
constitui identidade cultural, portanto, ratificando a sua função social perante a cidade. A
salvaguarda das construções históricas enfrenta muitos desafios nas cidades. Em especial, o
crescimento urbano, sem o planejamento da cidade, dificulta ainda mais a proteção das
construções históricas.
Pois bem, para que se entenda tal panorama, cumpre seja explicada a falta de
organização com que as cidades brasileiras foram edificadas. Explica Günter Weimer276 que
quando da colonização da América do Sul pelos espanhóis e portugueses observou-se uma
diferença em cada urbanização, pois a colonização espanhola procurou fazer de sua colônia
uma extensão do Império que possuía na Europa. Logo, sua malha urbana foi construída de
forma simétrica, as cidades tinham um planejamento de crescimento, além de serem
construídas em lugares onde o calor tropical fosse amenizado.
Inversamente, a colonização portuguesa sobre o Brasil, teve como objetivo somente a
exploração das riquezas minerais encontradas, dessa forma, os portugueses estabeleciam-se
nas regiões costeiras, onde se facilitava o comércio, as pessoas que quisessem estabelecer
residência não tinham acesso facilitado à parte oeste do país. As cidades não tiveram um
prévio planejamento, ao contrário, cresceram conforme os moradores iam adequando-se,
assim a característica das cidades portuguesas “seria a liberdade com que haviam sido
traçadas: as ruas se amoldavam à topografia segundo a importância dos diversos prédios que
iam sendo construídos em função das necessidades higiênicas e organizacionais do espaço.”.
Somente com a descoberta de riquezas minerais no interior do país, o Governo português
275
276
SIQUEIRA NETO, Moysés M. Perspectivas patrimoniais: teoria, legislação e prática na representação da
cultura e da memória entre Pernambuco e Buenos Aires. Revista Memória em Rede, Pelotas, v.2, n.4, p. 157,
dez. 2010/mar. 2011..
WEIMER, Günter. A arquitetura. 3. ed. Porto Alegre: Universidade/UFRGS, 1999. (Síntese rio-grandense;
12-13). p. 53.
132
começou a preocupar-se em habitar as demais regiões, ordenando, por exemplo, que fossem
colonizadas algumas áreas no sul do Brasil. O aumento de interesse sobre o Brasil,
configurando também um acréscimo populacional, além do medo de perder território, fez com
que os portugueses enviassem para ordenar as cidades, arquitetos militares, os quais passaram
a remodelar a malha urbana, inclusive no Rio Grande do Sul.277
Apesar das dificuldades encontradas para que os arquitetos conseguissem executar
uma cidade organizada, “a partir de então todas as cidades passaram a receber um ‘plano
diretor’ que ordenava a sua implantação e a sua expansão”. Posteriormente, com a chegada de
imigrantes, especialmente europeus, devido ao fracasso mundial da exploração da mão de
obra escrava, como força de trabalho, ou mesmo para povoar regiões não tão ricas para o
Governo, a maioria das cidades que surgia seguia um tracejado arquitetônico,
impossibilitando que outras formas de construções trazidas pelos imigrantes pudessem ser
implantadas em território nacional. Dessa forma, buscou-se implantar um crescimento
equânime nas cidades brasileiras, principalmente nas metrópoles. Já nas cidades do interior,
pode-se perceber, através da arquitetura urbana, as diferentes culturas que ali se
desenvolveram. 278
Para a salvaguarda do patrimônio histórico arquitetônico é fundamental inseri-lo no
conjunto urbano, ou melhor, fazer com que o conjunto urbano adéque-se a sua existência. De
início o urbanismo surgiu para promover à estética, o embelezamento das cidades, contudo
esse referencial está ultrapassado, pois o urbanismo hoje age de forma efetiva na organização
e funcionalidade das cidades, além de equilibrar o meio ambiente e os cidadãos. Convém
ressaltar que o urbanismo ocorre tanto na zona urbana propriamente dita da cidade, quanto nas
áreas rurais, haja vista que busca o bem-estar constitucionalmente balizado para todas as
pessoas residentes e influenciadas pela organização social, a qual quando realizada em
conjunto entre o sistema político e os munícipes proporciona a preservação do patrimônio
histórico arquitetônico, além de qualidade de vida.
Como decorrência do planejamento urbano, o sistema político deve determinar
limitações às pessoas, especialmente para a possibilidade de construção, sendo que como as
medidas de proteção às construções históricas geram, conforme já mencionado, limitações
sobre o seu entorno, havendo a necessidade de a vizinhança respeitar essa peculiaridade, nem
toda atividade ou construção será permitida próximo ao patrimônio histórico arquitetônico.
277
WEIMER, Günter. A arquitetura. 3. ed. Porto Alegre: Universidade/UFRGS, 1999. (Síntese rio-grandense;
12-13). p. 53-54.
278
Ibid. p. 58-60.
133
A fim de prover o desenvolvimento da política urbana, o Estatuto da Cidade trouxe em
seu artigo 4º, inciso III, alínea “a”, a regulamentação do instrumento de planejamento
municipal o Plano Diretor, além de prescrever como meio jurídico para a configuração do
referido desenvolvimento, as limitações administrativas e o tombamento de imóveis. O
referido Estatuto veio para disciplinar as questões previstas nos artigos 182 e 183 da
Constituição Federal,279 portanto o Plano Diretor configura-se a principal lei de nível
municipal que vai organizar a malha urbana, bem como conter as diretrizes de proteção ao
patrimônio histórico arquitetônico.
Note-se que o Estatuto da Cidade traz as especificações urbanísticas, que devem ser
seguidas por todos os entes federados, e em especial os Municípios, já que disciplina diversos
requisitos que os planos municipais devem contemplar. Todavia, o citado Diploma limita-se a
tratar os temas municipais de forma genérica, cabendo a toda lei municipal adequar as normas
gerais a sua realidade urbana, haja vista as diversidades existentes em cada cidade. O Plano
Diretor não pode ser considerado como uma simples planta da cidade, indicando o conjunto
urbano já existente, ao contrário tem voz ativa organizando a cidade e restringindo a
urbanização descontrolada, tratando, assim, de todos os assuntos essenciais para o município,
dentre os quais a proteção ao patrimônio histórico arquitetônico.280
Igualmente, para que o planejamento do Município concretize-se é necessário que suas
diretivas estejam prescritas em planos, como o Plano Diretor, Plano Plurianual, Lei de
Diretrizes Orçamentárias, Lei do Orçamento Anual, Planos de Desenvolvimento Econômico e
Social, dentre outros. Todavia, nem todo Município tem a obrigação de aprovar o Plano
Diretor, como cidades pequenas, que não possuem uma rede urbana complexa, ou a maioria
279
Prescreve o artigo 182 da Constituição Federal, acerca do Plano Diretor: Art. 182. A política de
desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei,
tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de
seus habitantes. § 1º - O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais
de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana. § 2º - A
propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da
cidade expressas no plano diretor. § 3º - As desapropriações de imóveis urbanos serão feitas com prévia e
justa indenização em dinheiro. (BRASIL. Constituição (1988). Brasília: Senado Federal, 1988).
280
Para José Afonso da Silva (Direito urbanístico brasileiro. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros Editores,
2000. p. 95) a concepção de Plano Diretor passou pelas seguintes fases: “(1) inicialmente, preocupava-se com
o desenho da cidade; sua elaboração significava a aprovação de um traçado das ruas e o estabelecimento dos
lugares onde os edifícios públicos deveriam decorar a cidade; o valor fundamental a realizar e a preservar era
o da estética urbana; (2) depois, dedicava-se a estabelecer a distribuição das edificações no território,
atendendo a funções econômicas e arquitetônicas; (3) mais tarde desenvolve0se a concepção do plano direito
de desenvolvimento integrado como instrumento do processo de planejamento municipal destinado a
alcançar objetivos integrados nos campos físico, econômico, social e administrativo; (4) atualmente, com a
Constituição de 1988, assume o plano diretor a função de instrumento básico da política urbana do
Município, que tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das unções sociais da cidade e garantir o
bem-estar da comunidade local (art. 182).”
134
de seus habitantes reside em áreas rurais, dessa forma, o artigo 41, do Estatuto da Cidade281
traz quais entes municipais devem elaborar o plano. Também, diversas são as causas que
inviabilizam ou dificultam o planejamento urbano nos Municípios, como “a carência de meios
técnicos de sustentação, de recursos financeiros e de recursos humanos, bem assim certo
temor do prefeito e da Câmara que o processo de planejamento substitua sua capacidade de
decisão política e de comando administrativo”.282
Além da legislação municipal protetiva, considerando o dever que o sistema político
possui de preservar o patrimônio histórico arquitetônico que se encontra no seu território,
torna-se mister que crie órgãos administrativos que fiscalizem e organizem como se dará a sua
preservação, limitando as construções ou serviços que venham a agredir a construção
histórica, inclusive, fiscalizando a observância do Plano Diretor.
O planejamento urbano tornou-se essencial para que a cidade permaneça ativa e viável
de comportar o crescente número da população, bem como da indústria, analisando se a
cidade tem condições para crescer e o que pode ser feito nela e no patrimônio histórico
arquitetônico. Ademais, cabe ao sistema político a organização do seu território, devendo
dispor de todo o aparelho técnico urbanístico para tanto, fazendo com que os planos
proporcionem o desenvolvimento equilibrado do coletivo, tendo como contrapartida um nível
ínfimo ou mesmo pequeno de dispensação por parte do munícipe.
Todos os edifícios históricos edificados nas cidades não devem ser vistos como um
entrave ao planejamento, ou ao crescimento da cidade, deve-se aprender a utilizar esses
pontos como positivos, engrandecendo sua visibilidade sempre que possível e inserindo-os no
planejamento. Um bom planejamento municipal sabe aliar crescimento urbano com a
conservação dos bens arquitetônicos, já que o desenvolvimento de uma localidade não deve
olvidar construções que espelham a memória de fatos que foram importantes para a formação
do povo que ali se encontra.
281
282
Especifica o artigo 41 da Lei nº 10.257/2001: Art. 41. O plano diretor é obrigatório para cidades: I – com
mais de vinte mil habitantes; II – integrantes de regiões metropolitanas e aglomerações urbanas; III – onde o
Poder Público municipal pretenda utilizar os instrumentos previstos no § 4o do art. 182 da Constituição
Federal; IV – integrantes de áreas de especial interesse turístico; V – inseridas na área de influência de
empreendimentos ou atividades com significativo impacto ambiental de âmbito regional ou nacional. § 1º No
caso da realização de empreendimentos ou atividades enquadrados no inciso V do caput, os recursos técnicos
e financeiros para a elaboração do plano diretor estarão inseridos entre as medidas de compensação adotadas.
§ 2º No caso de cidades com mais de quinhentos mil habitantes, deverá ser elaborado um plano de transporte
urbano integrado, compatível com o plano diretor ou nele inserido. (BRASIL. Lei nº. 10.257, de 10 de julho
de 2001. Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política
urbana e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 17 set.
2001. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10257.htm>. Acesso em: 06 jul.
2014).
SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros Editores,
2000. p. 97.
135
Poucas são as iniciativas de conservação do patrimônio histórico arquitetônico,
especialmente quando não advindas do Poder Público. Uma interessante, e que se pretende
utilizar no presente trabalho a fim de demonstrar a possibilidade da tutela do patrimônio
histórico, como forma de manutenção da identidade de uma comunidade, é o projeto
Caminhos de Pedra,283 localizado no distrito de São Pedro, no Município de Bento
Gonçalves. Nesse local, através de um plano de proteção, educou-se os moradores para que
protegessem as casas históricas construídas pelos seus antepassados, bem como, na maneira
correta de lidar com os visitantes que vão até as casas históricas recordar a memória, a história
da comunidade de povoou Bento Gonçalves, e que ainda habita, por meio de seus
descendentes.
Para compreender a importância da valorização do local, no presente caso da cultura
italiana na cidade de Bento Gonçalves, é preciso primeiramente explicar como ela se insere,
bem como quais são os seus traços arquitetônicos que formam o patrimônio histórico.
Em 24 de maio de 1870 foi criada pelo Dr. João Sertório, Presidente da Província
Imperial de São Pedro do Rio Grande do Sul, a Colônia Dona Isabel. Antes desse nome, o
local era chamado de “Região da Cruzinha” em razão de uma simples cruz de madeira que foi
erguida devido à morte de um tropeiro que passava pela região. Essa colônia posteriormente
veio a denominar-se Bento Gonçalves. Os primeiros imigrantes que oficialmente chegaram a
colônia foram 40 famílias da Província de Treviso, na Região Trentina da Itália, na data de 24
de dezembro de 1875. A partir dessa data a cidade efetivamente começou a crescer, sendo
povoada por imigrantes italianos de diversas regiões da Itália, além de outras etnias, como
alemã, austríaca, polonesa, porém estas de forma menos expressiva.284
A partir da chegada dos imigrantes, eles eram distribuídos entre as quatorze linhas que
formavam a colônia: Linha Estrada Geral, Palmeiro, Jansen, Leopoldina, Eulália, Faria
Lemos, Jacinto, Silva Pinto, Armênio, Zemith, Paulina, Alcântara, Fernandes Lima e
Argemiro. A Linha Palmeiro possuía uma extensão de 28 quilômetros, possuindo 200 lotes,
cada um com 48,4 ha. O nome da linha provém de uma homenagem ao Major Engenheiro
José Maria da Fontoura Palmeiro, responsável do Governo Imperial pela respectiva condução
283
284
PREFEITURA DE BENTO GONÇALVES. Bento Gonçalves: história e memória Distrito de São Pedro.
Bento Gonçalves, Tipograf, [S.d.].
DECÓ, Ermínio Dall’Agnol. Linha Palmeiro: microrregião de colonização italiana. Canoas: La Salle, 1994.
p. 17.
136
das terras.285 Na referida Linha, posteriormente foi criado pela Lei Municipal nº. 1074, de 22
de dezembro de 1981, o Distrito de São Pedro, do Município de Bento Gonçalves.286
Para Carlos Fernando de Moura Delphim, a colônia formada pelos imigrantes
“apresenta grande afinidade com o conceito utilizado pela ecologia para definir uma colônia
de organismos vivos: compõe-se igualmente de seres que convivem em grupos, que interagem
entre si e que acabam de comportamento de uma forma para todos”. O espírito do local traz
consigo o fato de que foi formado por famílias que saíram do país onde moravam, deixando
seus bens e laços afetivos na Itália, em busca de novas oportunidades no Brasil. Trouxeram
consigo, o modo de vida, a tradição e a memória, a qual foi transmitida aos seus descendentes.
No caso do território ocupado pelos italianos em Bento Gonçalves e na região da serra
gaúcha, o autor considera como uma reforma agrária com sucesso.287 Refere-se a reforma
agrária, porque o Governo Imperial, ao receber os imigrantes encaminhou-os para os lotes
criados em diversas cidades, dentre elas Bento Gonçalves, a fim de povoá-las e iniciar o
cultivo,288 uma área que não era habitada, não possuía produção agrícola, foi mapeada, divida
e encaminhada aos imigrantes que chegavam ao Brasil.
285
ZARDO, Maria de Fátima Dill Silveira. Barracão: um pedaço esquecido da história. Caxias do Sul: EDUCS,
1995. p. 12
286
Referida Lei criou o 7º Distrito de Dona Isabel, delimitando a sua área, entretanto, tal nomenclatura não
agradou aos moradores da linha, que organizaram um abaixo assinado requerendo a alteração para o nome de
“Distrito de São Pedro”. Atendendo ao pedido da comunidade, foi promulgada em 17 de agosto de 1983, a
Lei Municipal nº. 1128, que assim refere: “Lei Municipal nº 1128, de 17 de agosto de 1983. Altera a
denominação do 7º Distrito. Engenheiro Agrônomo, Ormuz de Freitas Rivaldo, Prefeito Municipal de Bento
Gonçalves, faço saber que a Câmara Municipal aprovou e eu sanciono a seguinte lei: Art. 1º - O Distrito de
Dona Isabel, criado e denominado pela Lei Municipal nº 1074, de 22 de dezembro de 1981, passa a
denominar-se Distrito de São Pedro. Art. 2º - Esta lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas
as disposições em contrário. Gabinete do Prefeito Municipal de Bento Gonçalves, aos dezessete dias do mês
de agosto de mil novecentos e oitenta e três.” (PREFEITURA DE BENTO GONÇALVES. Bento Gonçalves:
história e memória Distrito de São Pedro. Bento Gonçalves, Tipograf, [S.d.]. p. 26.).
287
DELPHIM, Carlos Fernando de Moura. Análise da paisagem cultural da região de Bento Gonçalves: impacto
cultural e proposta de gestão. Brasília: [S.ed.], 2013. p. 7-9.
288
O termo assinado pelos imigrantes, durante o período republicano, para receberem o lote, era firmado em
duas vias, uma em português e outra em italiano. Assim referia: “Ao Sr. ... fica pelo presente designado o lote
de terras, mencionado na plana da Colônia, distrito.., com o número.., e tendo a área de... pouco mais ou
menos, a fim de adquirí-lo como propriedade sua, sob a condição de cultura e morada habitual e efetiva,
sujeito às obrigações inerentes a compra do mesmo lote, que são as seguintes:
1. Recebendo o comprador o lote medido e demarcado na frente e em parte dos fundos, deve tratar da
conservação dos marcos, não deixando que sejam deslocados e substituindo por outros os que tiverem sido
destruídos por fogo ou outro acidente. No caso de desaparecerem ou de serem deslocados os mesmos marcos,
a despesa da nova medição e demarcação, se for necessária, correrá unicamente por conta do comprador, ou
se confinarem dois ou mais lotes, se dividirá proporcionalmente entre os respectivos donos.
2. Até seis meses depois desta designação deve estar roçada e plantada uma área de mil braças quadradas,
pelo menos e, construída uma casa, que tenha pelo menos, quatrocentos palmos quadrados, para sua
habitação permanente e de sua família. A inobservância desta obrigação importará a perda das benfeitorias
que tiver feito, assim como das prestações que tiver pago, podendo ser o lote designado vendido pelo diretor,
salvos somente os casos de força maior e enfermidade prolongada e provada, em que será concedida ao
comprador uma moratória de 2 a 6 meses, sendo as questões, que entre ele e o mesmo diretor se suscitarem,
decididas por árbitros escolhidos entre os que tiverem, pelo menos, três anos de residência fixa na colônia.
137
As construções que foram edificadas pelos imigrantes tiveram por base pedra e
madeira. A pedra em razão de ser tradição no norte da Itália. Já a madeira, pelo fato de a
região ser abundante em araucárias, considerada uma variedade de boa qualidade para a
construção, uma vez que possui o tronco linear, não possui galhos (com exceção da copa). De
todo o modo, as casas construídas em madeira tinham uma arquitetura semelhante às de
pedra.289 Júlio Posenato considera a arquitetura dos imigrantes italianos como a melhor
popular brasileira, pois, nasceu de forma espontânea, do povo que instalou no Brasil, e
utilizou-se de materiais que estavam disponíveis (pedras e madeira), possuindo, ainda, o
melhor aproveitamento de recurso e energias naturais. Essa arquitetura ocorreu sem auxílio de
arquitetos, e como eram agricultores sem recursos financeiros expressivos, a força de trabalho
proveio do seu suor, não houve a utilização de mão de obra escrava, como ocorreu em outras
regiões brasileiras.290
3. O comprador obterá o título definitivo de propriedade do lote designado depois de ter pago integralmente a
sua importância saldado tudo quanto dever a Fazenda Nacional, e provado que, por si ou por pessoa de sua
confiança, tenha tido no mesmo lote um ano, pelo menos, de residência habitual e cultura efetiva.
4. Somente são dispensados da obrigação de morada e de cultura efetiva os lotes de menor superficie nos
distritos urbanos, concedidos para qualquer fim de reconhecida utilidade. Se não forem convenientemente
aproveitados por espaço de dois anos, pelo menos, cairão em comisso, salvo o juízo arbitral.
5. Os caminhos rurais terão garantia, não se podendo plantar árvores, senão à distância de uma braça pelo
menos da estrada. Para a abertura de novas estradas desapropriar-se-a espaço necessário, sendo indenizados
os seus proprietários tanto das benfeitorias que nele existam, mediante juízo arbitral, como do terreno, cujo
preço será o da primitiva compra durante o primeiro quinquênio, contando da data desta.
6. Devem ser imediata e inteiramente removidas as árvores, que nas derrubadas caírem sobre os caminhos a
fim de conservar-se desembaraçado o trânsito, observando-se a este respeito quanto se acha previsto nas
posturas das Câmaras Municipais.
7. Para as pontes e outras obras públicas se poderá tirar gratuitamente da parte inculta dos lotes madeira,
pedra e outros materiais, havendo indenização, determinada por árbitros, quando aí resultar prejuízo
permanente.
8. Na demarcação dos fundos dos lotes devem os seus donos e os vizinhos confinantes abrir as picadas, cuja
conservação fica a seu cargo sendo por eles roçadas e limpas anualmente e conservado os competentes
marcos, como ficou declarado.
9. O preço deste lote é de... réis por..., será pago pelo comprador pela forma determinada no respectivo
regulamento, de que se lhe deu conhecimento. Enquanto não se realizar o pagamento da sua importância,
bem como de todas as quantias que o comprador deve ao Estado, ficará o mesmo lote hipotecado não só pelo
referido pagamento, como pelas multas, em que o proprietário incorrer por infração das posturas relativas à
conservação dos caminhos.
10.Os direitos conferidos por esta designação, aproveitam somente a pessoa ou família em cujo beneficio é
expedida, ou aos seus descendentes e herdeiros com a precisa capacidade para cumprirem com os deveres
acima preceituados e especialmente com a constante cultura e habitação e com a conservação das estradas.
Para transferência destes direitos por venda ou qualquer outro modo, deve preceder a aprovação do
Governador do Estado sobre informação do Diretor." Documento de 20I 06/1897, Cartório Civil e Crime,
Maço 08, APRGS.” (PREFEITURA DE BENTO GONÇALVES. Bento Gonçalves: história e memória
Distrito de São Pedro. Bento Gonçalves, Tipograf, [S.d.]. p. 14).
289
WEIMER, Günter. Arquitetura popular dos imigrantes: um estudo comparativo. In: RIBEIRO, Cleodes Maria
Piazza Júlio; POZENATO, José Clemente (Org.). Cultura, imigração e memória: percursos & horizontes.
Caxias do Sul: EDUCS, 2004. p. 113-114.
290
POSENATO, Júlio. Arquitetura da imigração italiana no Rio Grande do Sul. Porto Alegre, EST/EDUCS,
1983. p. 68-70.
138
Assim, por ser um povo fortemente religioso e ligado à vida familiar, as principais
construções são a casa e a igreja. Esta é centro da comunidade, o local onde as famílias se
encontram. As casas, primeiramente eram construídas em madeira, para após, conforme se
prosperava, a construção com rocha basáltica. Muito tempo depois houve a construção de
residências com tijolo. Importante observar que para a época, as edificações em madeira e
pedra não eram motivos orgulho, pois, demonstravam as dificuldades vividas pelos
imigrantes,291 por isso, posteriormente muitas casas foram embaçadas ou pintadas, perdendo
as suas características originárias. As casas de pedra representavam a falta de condições
financeira da família. “Mais comoventes são as edificações feitas com blocos de duríssimas
rochas basálticas em junta seca. Casas que aparentam ser eternas, de tão sólidas e ligadas a
terra”.292 Algumas construções que haviam sido embaçadas foram recuperadas pelo projeto
Caminhos de Pedra, como a casa onde atualmente está instalado o restaurante Nona Ludia.
Essa residência foi construída aproximadamente em 1880 pelo imigrante Giuseppe
Dall'Acqua, tendo como primeiro proprietário Francesco Macalós. Em 1930 foi rebocada,
sendo restaurada pelo projeto em 1994, conforme pode ser observado nas imagens abaixo:293
Figura 2 – Restaurante Nona Ludia antes da restauração.
Fonte: Associação Caminhos de Pedra
291
Explica Tarcísio Vasco Michelon (CAMINHOS de Pedra: tempo e memória da Linha Palmeiro. Dirigido por
Pedro Zimmermann. Bento Gonçalves: OKNA Produções, Display Cultural, [S.d.]. 1 DVD (52 min.), son.,
color. min. 28:58) que “as casas de pedra na década de 40, 50, passaram a representar uma vergonha e por
isso, os agricultores rebocavam as casas [...] pra adquirir status de uma casa da cidade, uma cidade de gente
rica”.
292
DELPHIM, Carlos Fernando de Moura. Análise da paisagem cultural da região de Bento Gonçalves: impacto
cultural e proposta de gestão. Brasília: [S.ed.], 2013. p. 15-16.
293
ASSOCIAÇÃO Caminhos de Pedra. Seção Pontos para visitação. Disponível em:
<http://www.caminhosdepedra.org.br/pt/?pg=pontos-para-visitacao#anc>. Acesso em: 28 jun. 2014.
139
Figura 3 - Restaurante Nona Ludia após a restauração.
Fonte: Associação Caminhos de Pedra
A arquitetura realizada pelos imigrantes italianos surpreende os arquitetos pela
qualidade da construção, apesar do pouco recurso financeiro, por isso, Júlio Posenato
considera a melhor arquitetura popular brasileira. São três os aspectos que explicam essa
ideia: materiais disponíveis no lote, habilidade artesanal italiana e ideologia de trabalho e
fascínio pela posse da terra. Os materiais disponíveis eram o barro, a pedra e a madeira,
sendo que eles não tinham custo aos proprietários, pois, eram retirados do próprio lote,
independente do material escolhido, os indivíduos empregavam o esforço para rachar e serrar
a madeira, bem como extrair as pedras, ou mesmo construir os tijolos domésticos. A
habilidade artesanal refere-se o fato de que foram construídas por imigrantes que atuavam
como pedreiros, carpinteiros, ferreiros na Itália,294 e aqui no Brasil demonstraram possuir uma
percepção técnica mais aprimorada que os construtores luso-brasileiros, tendo em vista que
não ocorreu “a participação de engenheiros e arquitetos, mas, considerando os recursos
disponíveis, o ofício do artesão em madeira mostrou-se do padrão mais elevado: a capacidade
de improvisar, manifestada na surpreendente criatividade de soluções revela o domínio
completo da arte”. Além disso, esses construtores italianos realizavam a obra com o auxílio da
família, recebendo uma remuneração escassa, sendo que o restante do seu tempo era ocupado
com a agricultura. Com relação ao terceiro aspecto da ideologia de trabalho e fascínio pela
294
No caso dos Caminhos de Pedra, explica Tarcísio Vasco Michelon “A riqueza dessa região, ela tava muito
ligada a uma tradição lá da Itália, que são os colonizadores dessa Linha Palmeiro, eles são em 90% oriundos
da Província de Belluno, que é uma província nos Alpes. Então é uma gente muito habilidosa no trabalho
com o ferro, em moinhos, na madeira, na construção.” (CAMINHOS de Pedra: tempo e memória da Linha
Palmeiro. Dirigido por Pedro Zimmermann. Bento Gonçalves: OKNA Produções, Display Cultural, [S.d.]. 1
DVD (52 min.), son., color. min. 28:08).
140
posse da terra refere-se ao fato de que quando comparados com os imigrantes portugueses,
mesmo que as propriedades tivessem os mesmos materiais, as construções dos italianos
apresentavam maior porte e qualidade, além do fato de que os italianos tiveram que pagar
pelas suas terras, ao passo que outras etnias receberam-nas por doação do Governo.295
Cabe mencionar que, devido as dificuldades enfrentadas pelos imigrantes italianos,296
uma das primeiras formas de moradia em seus lotes foi em troncos ocos de árvores
conhecidas como maria-mole.297 No Restaurante Nona Ludia, localizado no roteiro Caminhos
de Pedra, ainda existe um exemplar da espécie que é preservado:
Figura 4 – Exemplar de maria-mole
Fonte: Rodrigo Ferri Parisotto298
Além disso, Júlio Posenato ao analisar as construções históricas destaca que a
arquitetura da imigração teve quatro períodos sucessivos: construções provisórias, primitivo,
apogeu e tardio. O primeiro período denominado de construções provisórias caracteriza-se
aos abrigos, cabanas, construídos nos lotes em que os imigrantes fixavam a sua residência,
295
296
297
298
POSENATO, Júlio. Arquitetura da imigração italiana no Rio Grande do Sul. Porto Alegre, EST/EDUCS,
1983. p. 98-102.
Para apontar o desconforto e dificuldades enfrentadas, Júlio Posenato (Ibid. p. 76) cita o relato do imigrante
Ângelo Dall’Acqua “Nos primeiros dias, olhavamo-nos uns aos outros perplexos, sem poder falar. Quantas
vezes afogávamos a nossa dor, a nossa tristeza no pranto em comum, procurando consolo no nosso trabalho.
Quantas vezes preferimos a morte àquele estado de vida selvagem! Quantas vezes, desencorajados, nos
ajoelhamos diante de uma árvore e, entre soluços e lágrias, suplicávamos a proteção do Altíssimo e da
Virgem Maria, reazando o Santo Rosário com fervorosa devoção”.
PREFEITURA DE BENTO GONÇALVES. Bento Gonçalves: história e memória Distrito de São Pedro.
Bento Gonçalves, Tipograf, [S.d.]. p. 94.
PARISOTTO, Rodrigo Ferri. Disponível em: <http://www.nonaludia.com.br/album_interno.php?id_
galeria=6>. Acesso em: 28 jun. 2014.
141
sem qualquer conforto, eis que visavam estabelecer uma primeira moradia.
O segundo
período chamado de primitivo são casas construídas de madeira e/ou pedra, cuja área
construtiva se ampliou com relação às construções provisórias, mas ainda assim menor
daquelas construídas no período seguinte. Geralmente possuíam um porão construído de
pedra e o primeiro pavimento em madeira; os materiais utilizados provinham do próprio lote;
as janelas não tinham vidro.299
O terceiro período conhecido como apogeu refere-se a construções realizadas pelos
imigrantes aproximadamente após vinte anos de ocupação da terra, tendo em vista que após os
primeiros anos de privações, em razão da produção agrícola constituíram certa fartura e eram
autossuficientes na produção. Grande parte das construções que permanece erguida decorre
desse período. Suas características construtivas possuem “três ou quatro pavimentos e telhado
em quatro ou duas águas e cobertura em tabuinhas, telhas de barro ou ferro galvanizado, têm a
cozinha separada ou anexa, como volume menor. As janelas só eventualmente são
envidraçadas”. O autor refere que essas residências apresentam dois critérios que as
identificam “expressão austera – os elementos construtivos limitados ao essencial, sem
ornamentação, e linguagem decorativa - riqueza de ornamentos singelos. Evidentemente, esta
ornamentação aparece com graus diferentes de intensidade, predominando porém a expressão
austera”. Por fim, no período tardio a arquitetura modifica-se em razão da utilização de mão
de obra especializada na construção, a técnica mecânico industrial, além disso, houve a
diminuição do tamanho da construção, visto que esta não era realizada com uma caráter de
autoafirmação e tomada de posse, mas sim, seus espaços eram remanejados de acordo com as
necessidades para depósito dos equipamentos. Os materiais construtivos eram adquiridos nas
indústrias, não eram mais retirados do lote; as janelas eram envidraçadas; o sótão que nas
construções anteriores era construído com a finalidade de secagem dos cereais, passou a ser
utilizado como dormitório.300
A Casa Merlin é maior casa de pedra da região, possui “43 aberturas, 3 pavimentos e
um total de 400 m² de área construída.”, foi construída pelo imigrante Pietro Merlin. Havia
sido rebocada nos anos de 60, mas foi restaurada por Alcides Merlin e pelo projeto Caminhos
de Pedra. Abaixo uma imagem externa da construção, onde é possível observar de forma
cristalina os três pavimentos da construção:301
299
POSENATO, Júlio. Arquitetura da imigração italiana no Rio Grande do Sul. Porto Alegre, EST/EDUCS,
1983. p. 75-78.
300
Ibid. p. 81; 82; 89-90.
301
ASSOCIAÇÃO Caminhos de Pedra. Seção Pontos para observação. Disponível em:
<http://www.caminhosdepedra.org.br/pt/?pg=pontos-para-observacao#anc>. Disponível em 01 jul. 2014.
142
Figura 5 – Casa Merlin
Fonte: Associação Caminhos de Pedra
O projeto Caminhos de Pedra foi criado pelo engenheiro Tarcísio Vasco Michelon e
pelo arquiteto Júlio Posenato, em 1987 a partir de um levantamento arquitetônico. O roteiro
abrange a comunidade de Linha Palmeiro e Linha Salgado e foi criado para resgatar e
preservar a cultura dos imigrantes italianos que povoaram a região. A escolha desse lugar
deve-se ao grande acervo de construções antigas, que ainda eram conservadas, entretanto,
sofriam devido a “decadência e abandono por que vinha passando desde a década de 1970
com a mudança de traçado da rodovia que ligava Porto Alegre ao norte do estado”. de início
quatro casas foram restauradas e outras tiveram reparações para poder receber aos visitantes.
Em 1992, o local recebeu os primeiros turistas provenientes do Estado de São Paulo, e
gradativamente cresceu em número de visitação e de construções que aderiram ao roteiro. Em
1997 foi criada a Associação Caminhos de Pedra, que elaborou um projeto para o resgate “de
todo o patrimônio cultural, não só o arquitetônico, envolvendo língua, folclore, arte,
habilidades manuais, etc.”. O Conselho Estadual de Cultura aprovou em 10 de agosto de 1998
o referido projeto, possibilitando a captação de recursos das empresas locais por meio da Lei
de Incentivo à Cultura do Estado do Rio Grande do Sul. Em 10 de junho de 2009, a Lei
Estadual nº. 13.177 declarou o roteiro Caminhos de Pedra integrante do patrimônio histórico e
cultural do Estado.302
Uma das construções históricas que recebeu o primeiro grupo de turistas em 1992 foi a
Casa Righesso. Ela foi construída em 1889 “com pedras de basalto irregular de cor preta,
302
ASSOCIAÇÃO
Caminhos
de
Pedra.
Seção
Histórico.
Disponível
em:
<http://www.caminhosdepedra.org.br/imgs/pontos_visitacao/vis_righesso02.jpg> Acesso em 05 jul. 2014.
143
unidas entre si com uma mistura de feno, palha de trigo e estrume de vaca”. No ano de 1902,
ela foi adquirida por Ângelo Righesso, e posteriormente pela família Merlo, que por anos
recebeu os turistas e comunidade em geral, os quais vinham conhecer a casa e o casal Avelino
e Maria Merlo que ali residiam. Inclusive, na foto que consta no epílogo deste trabalho
aparece em destaque a sra. Maria Merlo. Em 2007 o imóvel foi readquirido por Orlando
Righesso, neto do antigo proprietário. A partir de 2009 a construção foi restaurada, anos mais
tarde passou a abrigar uma salumeria e no sótão um pequeno memorial sobre a história da
casa. Abaixo uma imagem da construção, sendo que é possível observar que no caminho que
leva até a casa encontram-se os marcos construídos de pedra, o que inspirou o nome do
projeto:303
Figura 6 – Casa Righesso
Fonte: Associação Caminhos de Pedra
Esse projeto trouxe crescimento cultural e econômico aos moradores do Distrito de
São Pedro, conta Tarcísio Vasco Michelon que “os próprios turistas ao visitarem, por
exemplo, a Ferraria dos Ferri, pediam às pessoas, aos Ferri que não modificassem aquele
quadro, que aquilo era lindo”. Mas a comunidade não tinha essa visão, porque estavam
inseridos na realidade de que isso era comum, e mantinham aquela vergonha pelas
construções históricas, “as pessoas da comunidade ficavam extasiadas, porque os turistas
achavam aquilo tudo, muito lindo e pra eles aquilo não tinha a menor graça, porque era o diaa-dia deles”. Dessa forma, “em parte, a decadência econômica se transformou, depois de três
303
ASSOCIAÇÃO
Caminhos
de
Pedra.
Seção
Histórico.
Disponível
em:
<http://www.caminhosdepedra.org.br/imgs/pontos_visitacao/vis_righesso02.jpg> Acesso em 05 jul. 2014.
144
ou quatro décadas, na grande oportunidade deles de recuperação financeira, por ter sido
mantido esse patrimônio”.304
A Ferraria referida por Michelon iniciou suas atividades em 1923 por Adolpho Ferri, e
produzia equipamentos que eram comercializados na região. Atualmente está desativada,
tendo me vista que o seu produto foi substituído por empresas mais modernas, entretanto,
configura-se em um importante ponto de reunião dos habitantes.305 Sua preservação pode ser
verificada na foto abaixo:
Figura 7 – Ferraria da Família Ferri
Fonte: Associação Caminhos de Pedra
Por isso, para garantir a proteção do patrimônio histórico arquitetônico é fundamental
que o sistema social interaja na escolha ou mesmo participe de Conselhos do Patrimônio, a
fim de que não ocorra somente a ouvida do sistema político, mas sim dos próprios cidadãos
que serão influenciados pelas obras históricas preservadas. Com esse esforço, partindo de toda
a população, é possível que se invista tanto na proteção, quanto na viabilidade da exploração
turística do bem preservado, fazendo com que venham ações que o tornem sustentável, ou
pelo menos, integrante da sociedade. A importância de torná-lo sustentável está presente, em
virtude de que a construção histórica é antiga e não possui todos os aparatos exigidos pela
legislação atual que o tornem não poluidor, como, saneamento básico, logo, precisa ser
adaptada às novas exigências.
304
305
CAMINHOS de Pedra: tempo e memória da Linha Palmeiro. Dirigido por Pedro Zimmermann. Bento
Gonçalves: OKNA Produções, Display Cultural, [S.d.]. 1 DVD (52 min.), son., color. min. 29:22.
ASSOCIAÇÃO Caminhos de Pedra. Seção Pontos para visitação. Disponível em:
<http://www.caminhosdepedra.org.br/imgs/pontos_observacao/obs_ferraria_ferri02.jpg>. Acesso em: 28 jun.
2014.
145
A historiadora Terciane Ângela Luchese explica que os reflexos do projeto cultural
não agregam somente ao turista, mas sim, a manutenção e preservação da cultura italiana “não
se traz apenas o turista, se traz um conjunto de revitalizações que não se pode visualizar
apenas olhando para a arquitetura, mas no conjunto de relações sociais, e subjetivamente tem
uma perspectiva das pessoas terem descoberto uma relação de orgulho.” Há o reconhecimento
e identidade cultural de descendente italiano preservada pela população, “nós somos
descendentes, daqui a pouco a gente fala dialeto, ou a gente até se interessa em aprender um
outro idioma, mas isso não é vergonha, isso é uma vantagem no mundo globalizado”.306
Para Inês Strapazzon o projeto trouxe uma modificação no pensamento das pessoas
que possuem construções históricas, visto que “hoje tu vê que é uma coisa bonita, que eles
deixaram pra nós, a gente tem que dar valor ao que os nossos antepassados deixaram, que se
eles construíram isso com esforço, por que não dar valor pra isso? E com o passar do tempo a
gente se aceita melhor, e a gente aceita os nossos antepassados melhor também”.307 A
percepção dos proprietários de edifícios históricos, modificou-se, no sentido de valorizar o
trabalho realizado pelos seus antepassados. Essa é a noção que, tanto sistemas psíquicos,
quanto os demais sistemas sociais precisam observar. A família Strapazzon conserva a casa
que foi de seus antepassados, construída por volta de 1880, pelo imigrante Giovanni
Strapazzon. A construção foi adaptada para ser uma cantina, sendo rodeada pelos parreirais
cultivados pela família, conforme se observa na foto a seguir:308
Figura 8 – Cantina Strapazzon
Fonte: Associação Caminhos de Pedra
306
CAMINHOS de Pedra: tempo e memória da Linha Palmeiro. Dirigido por Pedro Zimmermann. Bento
Gonçalves: OKNA Produções, Display Cultural, [S.d.]. 1 DVD (52 min.), son., color. min. 37:07.
307
Ibid. min. 47:32.
308
ASSOCIAÇÃO Caminhos de Pedra. Seção Pontos para visitação. Disponível em:
<http://www.caminhosdepedra.org.br/pt/?pg=pontos-para-visitacao#anc>. Acesso em: 28 jun. 2014.
146
Conforme se percebe, paradoxalmente, a impulsão do turismo pode fazer com que os
próprios cidadãos criem orgulho e identifiquem-se com o seu patrimônio histórico
arquitetônico, pois os que desconhecem a história local passarão a conhecê-la, ao passo que
aqueles que agem com descrédito com relação a necessidade da proteção buscarão entendê-la.
Explica Maria Cristina Rocha Simão309 que “o turismo pode consolidar-se como canal de
aproximação entre as pessoas e meio de enriquecimento cultural, condicionado ao
reconhecimento da cultura autóctone e sua integração da forma mais adequada na oferta
turística”. Essa situação pode ser observada na cidade de Diamantina, Minas Gerais, em
entrevista realizada com o então prefeito João Antunes, este informou que a cidade ao receber
o título de Patrimônio Cultural da Humanidade teve o seu turismo impulsionado, mas junto
com ele houve um resgate cultural, pois, a postura dos jovens modificou-se, uma vez que
passaram a se interessar com relação a história da cidade, das ruas, das músicas locais, o que
não acontecia.
310
A necessidade de que as novas gerações se interessem pela conservação do
patrimônio histórico arquitetônico decorre da perpetuação da memória, ou seja, para que a
história e a tradição não sejam esquecidas.
Realmente, pelo que se denota do projeto Caminhos de Pedra, a partir do turismo
houve uma redescoberta do papel da imigração italiana na identidade cultural dos moradores
do Distrito de São Pedro, e da cidade como um todo. Os moradores da localidade detiveram o
martelo que estava demolindo sua memória edificada.
Com isso, cria-se a possibilidade de que os moradores reutilizem o seu patrimônio
para uma atividade econômica que lhes permita a manutenção da construção. A presença do
patrimônio histórico arquitetônico no cotidiano das pessoas é outra forma de preservá-lo, com
a destinação de sua utilização para teatros, escolas, museus, dentre outros, faz com que se
habituem a utilizá-lo, percebendo a beleza de sua preservação. Como é o caso da Pousada
Cantelli, recentemente restaurada e inaugurada nos Caminhos de Pedra. A casa foi construía
em 1978 pela família de Sebastiano de Marchi, sendo utilizada como residência. Após, foi
usada como estrebaria, oficina de carroças, depósito, até que recentemente abriga a pousada.
Na imagem abaixo, é possível visualizar a construção após o restauro:311
309
SIMÃO, Maria Cristina Rocha. Preservação do patrimônio cultural em cidades. Belo Horizonte: Autêntica,
2001. (Coleção Turismo, Cultura e Lazer; 3). p. 74.
310
DIAMANTINA: patrimônio da humanidade. Curitiba: Posigraf, Hoje em dia, fev. 2000. p. 4-5.
311
ASSOCIAÇÃO Caminhos de Pedra. Seção Pontos para visitação. Disponível em:
<http://www.caminhosdepedra.org.br/pt/?pg=pontos-para-visitacao#anc>. Acesso em: 04 jul. 2014.
147
Figura 9 – Pousada Cantelli
Fonte: Associação Caminhos de Pedra
Assim, a preservação do patrimônio histórico dentro desse contexto social não é vista
como algo obsoleto, ou mesmo supérfluo, mas sim socialmente educativo, tanto para o
morador, quanto para o visitante. A apreciação da construção histórica pode ser considerada
subjetiva, contudo não se pode olvidar a importância como meio de preservação da memória
coletiva.
A importância e o diferencial desse exemplo para a proteção do patrimônio histórico
arquitetônico vêm dos reflexos do projeto Caminhos de Pedra, como forma de evolução
social, que decorre do fato de que os moradores do Distrito de São Pedro passaram a preservar
as construções históricas, sem que as mesmas estivessem tombadas.
As casas que são preservadas não estão tombadas pela Administração Pública, não
recebem auxílio de custos ou isenção de impostos. Os recursos captados para o restauro e
conservação das construções provêm de projetos voltados às leis de incentivo a cultura,
encaminhados pela Associação Caminhos de Pedra, pelos próprios proprietários. Além disso,
o turismo é fonte de renda para o Distrito, mas o que deve ser ressaltado é o interesse dos
proprietários na conservação.
É possível encontrar novos caminhos para a proteção do patrimônio histórico. Em São
Pedro, a própria comunidade tomou essa iniciativa. Os sistemas sociais do Direito, Política e
Economia, por meio de suas operações, já explicadas no segundo capítulo da primeira parte
deste trabalho, codificam de forma diferente o patrimônio histórico em seu sistema. A
comunicação entre eles é possível a partir da interferência e da abertura cognitiva. O Direito
148
vai se manifestar sobre a proteção do patrimônio histórico, desde que a comunidade, grosso
modo, lhe traga algum caso concreto para julgamento.
O sistema da Política possui as prerrogativas e os meios administrativos para preservar
as construções históricas, mas em muitos casos, não o faz. De modo que, quando a proteção
nasce no seio da comunidade, como é o caso dos Caminhos de Pedra, cria ressonâncias no
referido sistema, e faz com que a observação política absorva uma série de fatores que
fundamentam a preservação. A decisão política passa a levar em consideração a proteção que
já é desenvolvida pela comunidade, bem como procura concretizar o processo de tombamento
da construção, que já é preservada pela comunidade. É uma forma de evolução sistêmica.
O sistema econômico pode operacionalizar a proteção, a partir do turismo, uma vez
que é uma forma de o dinheiro se manifestar nas construções históricas. Prédios que até então
somente estavam deteriorando, com a exploração da indústria turística, passam a gerar cada
vez mais dinheiro. Talvez não seja possível a exploração turística de todo o patrimônio
histórico arquitetônico, entretanto, o turismo em si, é uma das chaves para que o sistema
econômico também operacionalize a sua proteção.
149
4 CONCLUSÃO
A observação da sociedade, enquanto construção delineada por sua estrutura, traz a
percepção de que existem vários pontos cegos, os quais não permitem observar a totalidade da
complexidade atinente à sociedade pós-moderna. Essa limitação decorre do fato de que cada
sistema social realiza a sua observação em conformidade com a sua estrutura, mas a sociedade
é formada por um todo integrado, cujos sistemas realizam operações de comunicação. Nesse
contexto, a observação que envolve a proteção do patrimônio histórico arquitetônico demanda
tanto uma característica transdisciplinar, quanto acoplamentos estruturais.
Na sociedade contemporânea, as consequências que a modernidade trouxe para a
preservação do patrimônio exigem que o Direito inclua em sua decisão uma análise sobre a
construção social do risco. Este advém da modernidade, tendo em vista que o progresso
impulsionou a industrialização e o avanço tecnológico, assim, o indivíduo cria
continuadamente riscos, na medida em que não é possível de antemão conhecer a amplitude e
a magnitude das decisões. Aliás, as decisões em si carregam o risco, pois, como o futuro é
incerto, elas serão produzidas sob o binômio risco-segurança. A utilização da noção de risco
permite uma maior segurança, tendo em vista que ao invés de as decisões políticas e jurídicas
serem pautadas pela ideia de certeza, serão pautadas pela de probabilidade. Além da
probabilidade, necessária uma ponderação sobre o risco, a fim de avaliar a complexidade que
ele envolve.
A modernidade promoveu uma descontinuidade entre o espaço e o lugar. Com a
uniformização da contagem do tempo foi possível a sua padronização em várias regiões.
Observa-se assim, a mudança de muitas práticas locais, pois as instituições são esvaziadas de
sua colocação social, além disso, em razão da rede de comunicação entre o global e o local, há
a alteração da organização social e da própria rotina das pessoas. Assim, regiões que tinham
pouco acesso, devido a sua localização geográfica, passam a adotar e reproduzir uma
universalidade de pensamento e cultural.
Os receios são que essa universalidade promova uma uniformização das diferentes
culturas. O multiculturalismo é uma constatação social, as culturas são diferentes, e com isso
a forma como observam o tempo e preservam a sua memória também diferem. O patrimônio
histórico arquitetônico é um dos reflexos do multiculturalismo, visto que é construído de
acordo com a tradição do local. Outro ponto importante é o reconhecimento das construções
que os antepassados desenvolveram no local, isso em virtude dos momentos históricos por
150
eles vivenciados que hoje refletem não só na identidade cultural, mas também no modo de
formação da tradição.
Considerando que o patrimônio histórico arquitetônico integra o patrimônio cultural,
este teve a sua noção ampliada e construída através das Cartas Internacionais. Referidas
convenções tratam do que deve ser preservado e como deve ocorrer a restauração, permitiu
que a sua proteção ocorresse em conjunto com outros bens culturais de cada cidade, como o
patrimônio cultural imaterial, o que largamente influenciou a manutenção da identidade
cultural de cada comunidade.
Além da proteção internacional, o Brasil prevê meios constitucionais e na legislação
esparsa para a preservação das construções históricas. Nesse sentido, o tombamento e
inventário são as melhores formas de proteger o patrimônio histórico arquitetônico, tendo em
vista que possuem a regulamentação especifica no Decreto-Lei nº 25, de 1937. Além disso, o
sistema político possui órgãos especializados na salvaguarda, a nível federal e estadual.
Apesar disso, os sistemas sociais promovem a proteção de maneira insuficiente,
devido a sua própria reflexividade, uma vez que as construções continuam a ser demolidas.
No tocante ao sistema jurídico, isto é influenciado pela corrupção sistêmica proveniente da
utilização do código binário dos outros sistemas. Isso porque, o sistema jurídico prevê meios
em sua legislação para efetivar a preservação buscada. Quando ele se omite, não segue a sua
estrutura.
Ao sistema político cabe a discricionariedade de tombar ou não uma construção
histórica, bem com exigir meios para que o proprietário a preserve. Quando esse sistema
permanece inerte, o Direito, por meio de sua regulação interna pode promover essa proteção e
declarar a condição de bem constitucionalmente preservado.
Tal postura decorre do Estado de Direito Ambiental proposto por Canotilho, onde a
juridicização dos problemas ambientais permite que ao se juridicizar o problema ele passe de
ambiental para um jurídico, o qual deverá refletir uma decisão de acordo com o Direito, este
sistema produz decisões que afetam tanto as parte em litígio, quando a coletividade, este
último é o caso da decisão que envolve o meio ambiente cultural. De modo que a decisão
jurídica sofre os efeitos da complexidade da sociedade de risco.
Ambos esses sistemas sofrem constantes irritações do sistema econômico, eis que este
opera sobre o meio de comunicação generalizado chamado dinheiro. Por isso, sua observação
sobre o patrimônio histórico arquitetônico não leva em conta a noção de história, cultura,
identidade nacional, mas sim se a sua conservação ou a demolição do patrimônio histórico
trará um superávit ou prejuízo.
151
As ressonâncias entre o Direito e a Econômica podem gerar tanto conflitos
construtivos, quanto destrutivos ao meio ambiente, em especial o meio ambiente cultural, por
isso o Direito, enquanto sistema regulador necessita preservar o seu código interno e pautar
pela proteção do patrimônio histórico. Logo, quando uma decisão jurídica se produz a partir
da análise de prejuízo e não daquela condizente com a Constituição Federal, sobre o valor do
patrimônio histórico, ela está corrompida.
Assim, sob uma perspectiva econômica, a fim de resgatar o patrimônio histórico
arquitetônico, pode ser verificada a existência do turismo, o qual no âmbito de proteção atua
como meio de incentivar as cidades a preservarem suas edificações históricas, uma vez que é
fonte geradora de renda. Atente-se que o turismo possui vários problemas que são decorrentes
do meio como ocorre a visitação, ou mesmo da descaracterização da população local para
adequar-se aos anseios turísticos. Dessa forma, mesmo que o turismo seja uma fonte de renda
às pessoas que preservam o seu patrimônio histórico arquitetônico, indiretamente promove a
diversidade cultural. Por isso, a proteção deve assegurar a manutenção da identidade cultural.
Na relação entre o Direito e a Economia, é possível perceber que não há mais como
conceber-se uma propriedade ilimitada, a qual sirva somente ao seu proprietário, haja vista
que a propriedade está inserida numa sociedade e sua utilização não pode prejudicar aos
demais cidadãos. Assim, a inserção da função social no direito de propriedade foi um marco
para que o Poder Público pudesse influir na propriedade em prol da população.
Igualmente, a função social da propriedade perante o patrimônio histórico
arquitetônico encontra guarida quando da sua proteção, pois visando a função social é
possível impor ao proprietário a proteção do bem, quando há sua recusa, uma vez que o
patrimônio histórico não pertence só a ele, mas sim a toda a sociedade, haja vista, que a
memória cultural é direito de todos.
Nesse contexto, as limitativas ao direito de propriedade são fundamentais para a
preservação das edificações históricas, uma vez que especialmente quando há o tombamento
ou o inventário, o proprietário tem o dever de proteger o bem, sob pena de arcar com o ônus
pelo descumprimento. Mesmo que o proprietário não tenha condições financeiras de restaurar
o bem deve solicitar que o Poder Público promova a restauração, o que não pode ocorrer é
que o bem se deteriore em virtude da inércia tanto de um quanto do outro.
Sabe-se que a demolição da construção histórica é irreversível, na medida em que,
após destruída, não é possível construí-la novamente com os mesmos valores e materiais
inerentes à antiga construção. Por isso, Cass Sustein elabora uma interessante forma para
avaliá-la sob a perspectiva econômica, pois, se está discutindo a perda de bens que são
152
incomensuráveis, ou seja, não são substituíveis. Dessa forma, para que o sistema econômico
internalize sobre a proteção ao patrimônio histórico arquitetônico precisa levar em conta essa
concepção de irreversibilidade. Com isso, torna-se viável o cálculo de um valor da existência,
pagar para preservar uma área que não será explorada, dar valor em dinheiro para salvar uma
área intocada.
Para compreender o vazio histórico que alcança a sociedade e determina a inexistência
de proteção, foi fundamental uma análise sobre as mudanças ocorridas na percepção do tempo
social. Isso porque, as relações entre passado, presente e futuro, importam para preservação
do patrimônio, na medida em que para a teoria do risco, a percepção temporal tem a noção de
que a decisão tomada no presente possui vínculos com o futuro. Assim, a decisão que
determina a demolição da construção histórica, faz com que ela deixe de existir e gerações
futuras, não poderão interagir com ela. O que pode ocasionar o risco que a identidade cultural
se perca, diante da descontinuidade entre o tempo e o espaço.
Para a teoria sistêmica, todas as observações de um observador são simultâneas,
presentes, porque o sistema social está em constante comunicação e repasse de informações.
O passado e o futuro são simultâneos, porque um depende do outro, o passado somente existe
porque dele decorreu um futuro, e essa distinção é fundamental para a observação sobre o
tempo, uma vez que a distinção entre ambos permite que a observação seja temporalmente
identificável, já que as operações dos sistemas dão-se no presente. Assim, mesmo que a
memória seja esquecida, observa-se que o tempo continua a transcorrer, cada vez mais
acelerado. O esquecimento faz parte do sistema, este seleciona o que deve ou não ser
lembrado. A memória é fundamental para tal operacionalização.
Pode-se observar o papel da modernidade para que a memória fosse se apagando. Isso
porque, as suas promessas buscavam a construção de um mundo novo, logo, seus atos não
poderiam ficar restritos e limitados pelo passado ou pela tradição. Assim, o que é realizado no
passado deixa de ter valor. Isso, consequentemente, reflete na falta de proteção ao patrimônio
histórico arquitetônico ocorrida durante a modernidade, pois, já que ele promove as
recordações de um tempo passado que não precisa ser lembrado, e das frustações que a pósmodernidade deixou evidentes.
De todo o modo, a memória é fundamental para a continuidade e preservação dos
sistemas sociais, tendo em vista que ela intervém nas operações deles. A contínua
comunicação sistêmica exige que o sistema se atenha a memória das suas estruturas. Sendo
que para Luhmann, o conceito de cultura foi criado a partir da memória, como uma forma de
explicar a evolução humana.
153
A importância da memória sobre a proteção do patrimônio histórico arquitetônico,
ocorre porque ela representa a união de um grupo, e demanda uma volta ao sagrado, à origem
do elo entre as pessoas que pertencem a uma comunidade. Utilizando-se da memória, a cidade
produz continuamente a sua identidade, e por consequência, produz sua diferença, no sentido
sistêmico deste termo. A memória da cidade necessita ser preservada, por ser condição
fundamental de transmissão da cultura, na qual o patrimônio histórico arquitetônico influi.
É de suma vitalidade que o patrimônio histórico arquitetônico não seja visto como um
atraso para o desenvolvimento das cidades, eis que promove a manutenção da identidade
cultural. Necessita-se seja alterada a forma como as edificações históricas são percebidas para
a população local, pois é vital para a manutenção da identidade cultural, que se mantenha o
equilíbrio entre o patrimônio histórico arquitetônico e as demais características presentes na
cidade.
Assim, o problema realizado no início da dissertação, sobre como buscar por novos
caminhos para a proteção patrimônio histórico revela que cidades têm conseguido melhorar a
relação entre os cidadãos e as construções históricas, por meio de cerimônias que valorizem o
proprietário do bem. Além disso, o planejamento municipal, por ser de iniciativa do Poder
Público em consonância com os munícipes permite formas de preservação e de inserção dos
edifícios históricos no cotidiano das pessoas e em roteiros turísticos.
A maioria das cidades brasileiras não teve sua edificação planejada pelo órgão
público, com exceção das cidades maiores, como as capitais dos Estados, mas cresceram de
forma desordenada, sem que se pensasse no seu futuro. Em virtude disso o planejamento
tornou-se vital para todas as cidades, para que o caos em que está a malha urbana seja
solucionado, ou ao menos minimizado, sem que se perca o patrimônio histórico ali edificado.
Até porque o planejamento além de ser preceito constitucional, foi regulamentado pelo
Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001), o qual implementou não só o planejamento
municipal, mas sim a figura do Plano Diretor, como outro meio importante para garantir o
crescimento das cidades em consonância com um ambiente equilibrado e saudável, tanto para
os munícipes, quanto para os visitantes.
Pois, como enxergar além da beleza da construção, ou mesmo como desvelar os
paradoxos que a envolvem? A hipótese pode ser confirmada, visto que o projeto Caminhos de
Pedra, referido no presente trabalho, surgiu como iniciativa do meio social e não do sistema
político, comprovou que é possível aliar a preservação do patrimônio histórico arquitetônico.
O resgate histórico aproximou os indivíduos da identidade cultural italiana que povoou a
cidade de Bento Gonçalves. O que merece ser ressaltado é que a preservação do acervo
154
arquitetônico do Distrito de São Pedro ocorre sem que as construções estejam tombadas, por
isso, revela-se positivo e aponta os caminhos que precisam ser trilhados pelas demais cidades
brasileiras.
Pode-se dizer que a sociedade temporalmente identificada, não possui mais tempo a
perder, ou promove de forma efetiva a proteção do patrimônio histórico arquitetônico, haja
vista que o tempo e os seus efeitos são fisicamente prejudiciais para a manutenção do bem,
pois, sem uma proteção e restauração o bem se deteriora, ou então a sua memória transformarse-á em pó.
155
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Gabrielle Tesser Gugel