Mapeamento do Acaso: fragmentos de cotidiano no
blogessinger.blogspot.com.br
Silvia Maria Alves Jorge1 (UFV)
Juan Filipe Stacul2 (PUC MG/ CAPES)
Resumo:
O presente estudo propõe uma análise sobre as possibilidades de se
compreender o sujeito contemporâneo na produção virtual de Humberto
Gessinger. Para tanto, busca-se uma articulação entre os estudos acerca da
identidade cultural na pós-modernidade, com os estudos sobre texto e
hipertexto. Através de fragmentos extraídos do blog do autor, serão feitas
algumas considerações sobre a sociedade pós-moderna, para, deste modo,
buscar uma tentativa de definição do sujeito na contemporaneidade.
Faremos, assim, uma análise dos escritos de Gessinger, destacando algumas
características do autor relacionadas a estilo, além de aspectos culturais e
de contemporaneidade presentes em suas publicações virtuais.
Palavras-chave: Humberto Gessinger, hipertexto, estilo.
Abstract:
This study presents an analysis of the possibilities of understanding the
contemporary subject in Humberto Gessinger’s virtual production. It seeks
to be a link between the studies of cultural identity in postmodernity, with
studies of text and hypertext. Through fragments extracted from the
author's blog, some considerations are made about the post-modern
society, to thereby attempt to seek a definition of the subject in
contemporary times. We will, therefore, an analysis of the writings of
Gessinger, highlighting some features related to the author's style, and
cultural aspects of contemporary and present in their virtual publications.
Keywords: Humberto Gessinger, hypertext, style.
1
Silvia JORGE, Graduada em Letras
Universidade Federal de Viçosa (UFV)
Departamento de Letras
[email protected]
2
Juan STACUL, Doutorando em Letras
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC MG)
Bolsista CAPES
[email protected]
Universidade Federal de Pernambuco
NEHTE / Programa de Pós Graduação em Letras
CCTE / Programa de Pós Graduação em Ciências da Computação
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“âncora, vela
?qual me leva?
?qual me prende?
mapas e bússola
sorte e acaso
?quem sabe (?) do que depende?”
GESSINGER
Introdução
Humberto Gessinger é um cantor, compositor, escritor e cronista gaúcho,
nascido em Porto Alegre, no dia 24 de dezembro de 1963. Sua imagem é
reconhecida mais facilmente quando relacionada aos Engenheiros do Hawaii,
banda de rock brasileira surgida nos anos 80, com traços de influências do contexto
político. As composições musicais do grupo, críticas e irônicas, questionam o poder
político e dialogam com a rebeldia da juventude ocorrida no final do século XX:
ideais comungados por inúmeras bandas de rock’n roll emergidas no cenário
artístico e cultural pós-ditatorial.
Embora, hoje, o sucesso dos Engenheiros seja inquestionável, no começo da
carreira, o grupo musical não agradava tanto a crítica, que os julgava elitistas em
demasia. As letras de Gessinger continham muitos intertextos e referências a
pensadores como Sartre, Nietsche, Camus, entre outros, o que refletia um gosto
particular pela leitura de grandes filósofos ocidentais e de autores clássicos da
literatura. Isso era visto, em uma época de subversão e (re)construção de valores
culturais e ideológicos, como um diálogo inaceitável com o idealismo burguês, tão
rechaçado por grupos como Barão Vermelho e Titãs.
Depois de quase três décadas de produções significativas, várias formações e
dezoito CDs lançados, a banda tem Gessinger como único integrante fixo, além de
vocalista e autor da maior parte das canções, sendo por isso considerado “a alma e
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a voz dos Engenheiros do Hawaii”. Em todos os seus álbuns, podemos encontrar
músicas que refletem as tensões características da época em que foram lançados.
Em pausa nesta banda, Humberto Gessinger formou com Duca Leindecker –
líder da também gaúcha Cidadão Quem – o Pouca Vogal, um projeto paralelo de
rock ao qual ele se refere frequentemente por power duo.
Atualmente, prestes a completar 50 anos e dando continuidade à sua
carreira musical, Humberto Gessinger (HG – ou Agagê, como também é conhecido)
prepara uma nova turnê pelo país, para divulgar seu novo CD, com canções
inéditas. Além de manter sites na Internet referentes às bandas citadas, o autor
também faz publicações semanais no BloGessinger; um blog com contos, poemas e
textos referentes à sua carreira, família e impressões sobre seu cotidiano e as
relações humanas.
Este blog servirá de base para o presente trabalho, pois sua leitura e análise
permitem uma observação perspicaz
de como foi se estabelecendo uma
reconstrução de sentidos, tanto estética quanto ideológica, a partir da inserção do
formato digital na produção artística do autor aqui mencionado. De um outro lado,
serão analisados os temas das publicações, destacando aqueles relacionados à
contemporaneidade e à forma como Gessinger lida com as definições de identidade
e alteridade, tão problematizadas em uma época de descentralização normativa e
crise de valores totalizantes.
O Mapeamento: Percursos Teórico-Metodológicos
A princípio, deve-se ter em mente que os gêneros não podem ser concebidos
como modelos estanques ou estruturas rígidas, mas como formas culturais e
cognitivas de ação social que se corporificam
na linguagem,
como observa
Marcuschi (2011). Da mesma forma, não se deve desconsiderar o fato de que toda
comunicação realiza-se por meio de textos, e que todo texto se concretiza em um
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determinado gênero. Ciente disso, é possível perceber a importância que os
gêneros desempenham nas interações sociais e a relevância de seu estudo.
Neste sentido, os gêneros textuais são identificados como realizações
linguísticas ligadas à vida cultural e social, com o propósito de cumprir funções em
situações comunicativas. Fenômenos históricos dinâmicos e flexíveis, eles se
propagam de acordo com a variedade de atividades sociais presentes no cotidiano,
podendo-se dizer que a situação de produção de um texto irá determinar em que
gênero ele é realizado. Isso acontece porque os gêneros não são definidos
unicamente por aspectos estruturais da língua, mas encontram-se ligados à
funcionalidade do texto, ou seja, ao seu uso.
Para Marcuschi (2006), os gêneros não são “superestruturas canônicas e
deterministas, mas também não são amorfos e simplesmente determinados por
pressões externas.” (MARCUSCHI, 2006, p. 19). Nas palavras do autor, gêneros são
formações interativas, multimodalizadas e flexíveis de formação social e
de produção de sentidos. Assim, um aspecto importante na análise do
gênero é o fato dele não ser estático nem puro. Quando ensinamos a
operar com um gênero, ensinamos um modo de atuação sócio-discursiva
numa cultura e não um simples modo de produção textual (MARCUSCHI,
2006, p.19).
Existem gêneros que fazem parte de ambientes virtuais, como blogs, chats e
e-mails, entre outros. Eles emergem no contexto da tecnologia digital e são
chamados por Marcuschi (2004) de e-gêneros. O presente estudo irá discutir os
aspectos característicos, de modo mais restrito, do e-gênero blog, ao propor uma
análise dos textos publicados semanalmente no BloGessinger, bem como sua
apresentação e estrutura.
Especificamente digital, um blog típico irá conter textos, imagens e links
para outros blogs, bem como para páginas da web e mídias relacionadas ao tema
que estiver sendo abordado em uma postagem específica.
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O termo original vem da junção da palavra web, usada em referência à rede
mundial de computadores, a Internet, com a palavra log, que significa registro de
atividade, e foi criado, em 1997, por Jorn Barger, como Weblog. A abreviação, por
sua vez, foi feita por Peter Merholz, que desmembrou a palavra Weblog para
formar a frase “we blog” (nós blogamos).
Há vários tipos de blog, entre os quais podemos citar os de gênero, os
corporativos e os pessoais. Os de gênero fornecem comentários ou atualizações
relacionadas a um tema específico, como música, cinema, literatura, educação,
política, entre outros. Já os chamados corporativos ou organizacionais são
utilizados por empresas para divulgar atividades internas e produtos, tendo como
público-alvo seus funcionários, clientes e fornecedores. Além desses, há também os
pessoais, como o BloGessinger, que será analisado nesta pesquisa.
Um blog pessoal é geralmente utilizado por alguém que deseja compartilhar,
na Web, informações e publicações pessoais, que poderão conter reflexões, fatos
ocorridos em sua vida ou relacionados à profissão, além de fotos e outros recursos
usados para ilustrar seu texto. Muitos famosos criam blogs pessoais no sentido de
manter um canal que permita um contato mais próximo com os fãs. A linguagem
utilizada em blogs pessoais é normalmente informal e espontânea, mas também
pode não ser desta maneira, dependendo do perfil do produtor ou da sua
intencionalidade.
Tal ferramenta do mundo virtual é amplamente usada na atualidade e tem
por objetivo interconectar os usuários da Internet. Além da relação texto-leitor, as
interações também são construídas através dos comentários dos internautas,
registrados abaixo do texto originalmente publicado pelo autor do blog, também
chamado blogueiro ou blogger. Neste sentido, ele consegue inserir conteúdo com
informações a respeito de diversos assuntos, de acordo com temas à sua escolha, e
espera, através dos comentários dos leitores, que sejam construídas interações. Ao
conjunto de blogs existentes, dá-se o nome de blogosfera.
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No entanto, para distinguir o blog de outros e-gêneros, é necessário
conhecer sua estrutura, detalhada por Marcuschi (2010). De acordo com o autor,
todo blog tem um cabeçalho, onde é apresentado o nome e um resumo do tema. As
laterais são usadas, em geral, para mostrar o perfil do dono, seus contatos e ainda
arquivos de textos e fotos já publicados, além de endereços e comentários
recomendados pelo blogger. O texto que se apresenta vem acompanhado de
assinatura, data e horários em que foi escrito. O dono do blog também usa atalhos,
os hiperlinks, para que o leitor possa encontrar outros textos com o mesmo tema,
ou aos quais o texto principal faça alusão. Por fim, há um espaço para que o leitor
deixe seu comentário.
O blog pode ser modificado diariamente ou conforme o blogger achar
melhor, e as publicações são chamadas de posts. Tais postagens são organizadas
tradicionalmente de modo cronologicamente inverso na página, ou seja, de
maneira que os textos mais recentes aparecem antes dos mais antigos.
O grande número de informações presentes no mundo contemporâneo, a
efemeridade destas informações, a falta de tempo para selecioná-las de modo
linear, tudo isso favorece, de modo crescente, a escrita e leitura hipertextual
digital. Em relação ao blog, sua popularização também se encontra relacionada à
facilidade de criação, pois existem modelos pré-definidos disponíveis na Internet,
de fácil inserção de informações, e desta forma, o blogger pode, de maneira
simples, garantir a manutenção de seus textos na Web. Soma-se a isto o fato de
que as postagens, edições e atualizações dispensam conhecimento técnico
específico, como a linguagem HTML (Hyper Text Markup Language), a Linguagem
de Marcação de Hipertexto, utilizada em sites e homepages.
Ao Acaso: Passeio pelo BloGessinger
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No que concerne ao BloGessinger, observa-se que a maior parte das
postagens é feita sob o título “P(*)EMAS C(*)M N(*)TAS DE R(*)DAPÉ” e o símbolo
gráfico de referência “(*)” é explicado pelo autor como sendo “uma perda de
tempo ao quadrado”. Quanto a isso, Gessinger comenta:
Poemas seriam perda de tempo? E notas de rodapé? Se ainda vale a
matemática que me ensinaram, dois números negativos multiplicados
resultam num número positivo. Espero que uma perda de tempo ao
quadrado seja um ganho... de tempo (GESSINGER, 2011).
Na verdade, as chamadas notas de rodapé constituem o texto principal e os
poemas, contos e versos são utilizados para ilustrar as publicações ou para
contextualizar os temas que irão ser abordados semanalmente. Interessante notar,
a esse respeito, que a problemática suscitada por Gessinger sobre a relevância da
poesia vem acompanhada de uma constituição formal que se assemelha ao poema
concreto da década de 50, que de certa forma discutia essa mesma questão.
A apresentação do blog é feita a partir das frases: “Textos escritos por
Humberto Gessinger. Postados sempre que a segunda-feira vira terça.”. Quando
questionado sobre quem seriam seus leitores, HG afirma que as pessoas que
acompanham seus posts são as mesmas que já o conheciam como músico, além de
seus fãs, a quem ele chama de forma carinhosa de os “de fé”.
aos de fé que nunca desaparecem
um abraço que se materializa
sempre que a segunda vira terça
(GESSINGER, 2012)
Interessante notar, nesta caracterização dos “de fé”, a ironia da palavra
matéria, utilizada neste contexto, uma vez que esta coloca em questionamento a
dicotomia entre o real e o virtual, apresentando possibilidades de relacionamentos
e de contatos afetivos que transcendem a presença física e propõe formas fluidas
de relações sociais, conforme propõe o sociólogo Zygmunt Bauman, como
discutiremos no próximo capítulo.
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Verifica-se, neste sentido, que a proximidade com o leitor se estabelecerá a
partir da linguagem virtual, intermediadora do contato afetivo. Ou seja, quando o
autor gaúcho publica semanalmente, no BloGessinger, textos construídos de forma
leve e descontraída, ele faz uso de coloquialismos, como tal gênero lhe permite e,
com isso, o leitor pode perceber a presença frequente de traços do regionalismo
sulista, uma marca dessa relação mais informal. A utilização de fotos pessoais, com
sua família, bem como de viagens e turnês com suas bandas, aproximam os “de fé”
do cotidiano de Gessinger, que podem acompanhar relatos referentes tanto ao seu
passado e a fatos do presente, quanto a planos que o autor/compositor vai
traçando em relação à sua carreira literária e musical.
Tenho fãs melhores e em maior número do que mereço. Não entendo como
nem porque, mas agradeço a Deus. Quem começa a trabalhar comigo
sempre se surpreende. Acho sintomática esta surpresa e cumprimento
todos os "de fé" com um piscar de olhos imaginário: nós conhecemos a
força da teia que tecemos. Silenciosamente (GESSINGER, 2011).
Em tom de crônica, HG discorre sobre vários temas do cotidiano, bem ao
estilo “gessingeriano”; não poupa símbolos, referências, intertextualidades e
reflexões sobre a vida e a linguagem, através de jogos de palavras e uso de frases
compostas por versos de suas canções. Este recurso, percebido pelos fãs, também é
usado por estes nos comentários ao final dos posts.
Em alguns registros, observa-se como ele reconstrói, resgata o passado,
mostrando a evolução das coisas e das pessoas, em uma tentativa de compreender
o presente; já em outros, apenas para comparar o presente com o passado. Os
textos publicados vêm sempre acompanhados de uma série de caricaturas de
Gessinger, e os planos de fundo, que
à semelhança de outros blogs, mudam
periodicamente, também são compostos por fotos ou várias outras caricaturas do
autor. Além disso, muitos posts terminam com uma foto simulando um abraço no
leitor, com a legenda: “HG + U = HUG”; ou seja, “HG” de Humberto Gessinger,
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somado a “U” de you (você, em inglês), em referência ao leitor, é igual a “HUG”,
que significa abraço, também em inglês.
Gessinger faz questão de estimular esta interação com os leitores e agradece
a eles sempre que possível, como neste trecho, publicado no dia 29 de novembro
de 2011: “Só queria mesmo agradecer pela interação de vocês com os textos e o
carinho, maior do que mereço. Os comentários sempre enriquecem o post.”. Em
outra publicação, com data de 05 de março de 2012, ele estimula os fãs a
mandarem comentários : “Tá feito o convite para que assistam à twitcam e deixem
seus comentários, sempre enriquecedores.”. O mesmo acontece no texto postado
em 01 de maio de 2012: “Por favor, compartilhem estas (sabedorias)sensações nos
comentários. Aprendo e me divirto muito lendo o que vocês escrevem.”.
Desta forma, através de uma ruptura entre o público e o privado, Agagê
sacia a curiosidade dos leitores, ao explicitar sua vida pessoal: fragmentos de seu
cotidiano. Isso pode ser observado já no primeiro post do blog, quando ele fala
sobre sua saúde: “Dia desses dei à luz um cálculo renal.”. Como uma pequena
crônica e bem ao seu estilo, ele conta ao leitor como foi a cirurgia: “Se os
americanos dizem que seu moderníssimo arsenal bélico tem precisão cirúrgica,
inverto e devolvo a analogia: bombardeamos a pedra no rim num vôo teleguiado.”.
No final do texto, ele declara: “do meu rim, direto para as mãos de um geólogo.
Taí a vida real... taí a a poesia.”.
Um dos temas recorrentes no BloGessinger é a aversão que o autor
apresenta em relação à tendência hegemônica do mundo contemporâneo. No post
4, ele diz: “Hegemonia me irrita. Melhor: me dá sono. Melhor ainda: irrita E dá
sono. Seja nas relações pessoais, nas inovações tecnológicas, na indústria cultural
ou mesmo no futebol.”. Logo depois ele completa: “Fico irritado e com sono
quando, num piscar de olhos, o país inteiro começa a usar palavras em italiano
macarrônico ou termos mal assimilados da cultura indiana por que assim falam
numa novela da rede de TV hegemônica.”.
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Ele critica a artificialismo gerado pela sociedade a partir da tendência de se
seguir um padrão hegemônico: “Parece que as pessoas não estão interessadas na
qualidade do vinho ou no prazer do jantar. Elas querem dizer que tomaram O
MELHOR vinho e jantaram n'O MELHOR restaurante. Querem estar no lado
hegemônico.”.
Em outros textos, Gessinger reforça este pensamento, como mostrado no
post 12, ao declarar sua preferência pela individualidade:
Quando digo que não gosto de ir ao cinema, recebo olhares que misturam
espanto, reprovação e pena. (...) Mais do que questões de gosto pessoal,
me interessa o caráter provocador destas declarações. São pequenos
desafios ao bom-senso-uníssono-ensurdecedor. Valorizo cada vez mais os
pensamentos minoritários, quase idiossincráticos. É preciso preservá-los da
patrola e da patrulha. São como as notas dissonantes que embelezam
tantos acordes. Não podem silenciar (GESSINGER, 2011).
Torna-se evidente, neste fragmento, a importância da seleção lexical para a
constituição de uma proposta crítica estabelecida por Gessinger no momento de
sua
produção.
As
palavras
“espanto”,
“reprovação”
e
“pena”
reforçam
semanticamente a carga negativa atribuída pelo discurso hegemônico com relação
ao que destoa dos padrões vigentes. Com isso, de forma semelhante aos seus pares
musicais, ataca os valores burgueses e propõe uma ruptura radical destas relações
de poder.
A partir do trabalho estilístico executado no post, portanto, ao mesmo
tempo em que propõe uma visão descentralizadora da cultura e incentivadora das
manifestações minoritárias e dos ideais idiossincráticos, Gessinger estabelece um
diálogo com a contracultura e os valores “anarquistas” do rock brasileiro nas
décadas de 80 e 90.
Em relação a esta artificialidade que permeia o mundo contemporâneo, o
blogger a discute em vários posts, como no de número 55, quando ele faz uma
síntese do seu pensamento: “Não sou contra a beleza. Sou contra a nocão [sic] de
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que ela não está na flor e sim no bouquet sem cheiro nem insetos nem vida,
envolto em celofane.” (GESSINGER, 2012).
No sentido de descrever o mundo onde está inserido, Gessinger discute como
a tecnologia se encontra ligada, muitas vezes, ao status que representa e não às
funções que objetiva desempenhar, o que caracteriza a importância da aparência
em detrimento ao conteúdo observada na sociedade atual. Isto pode ser conferido
no post 4, quando, contrário a tal conceito, ele relata:
na sala de embarque do aeroporto, um menininho puxou o pai pelo braço
e, apontando para o meu laptop, disse: "Eu queria um computador
daqueles da maçã. São os melhores do mundo, pai!".
Me deu vontade de dizer: não entra nessa, garoto! O melhor computador é
o de quem tem as melhores ideias (GESSINGER, 2011).
Do ponto de vista estilístico, evidencia-se o uso do diminutivo com valor
afetivo em referência à criança, contrastando com as exigências do capitalismo, da
cultura de massa, que pressupõe a padronização e a frieza das relações humanas.
Da mesma forma, ocorre o uso da gíria “não entra nessa, garoto”, como forma de
subversão da norma padrão, consequentemente, dos valores hegemônicos.
Além dos recursos supracitados, torna-se evidente o uso da oposição entre o
termo “melhor” e “melhores”, o que se constitui, também, como uma crítica a
esses mesmo valores, que pregoam a importância do bem material (computador)
em detrimento dos valores morais e ideológicos (ideias).
Infere-se, neste sentido, como Gessinger sofreu as influências ideológicas do
rock progressivo inglês de Roger Waters, a partir de uma comunhão com os ideais
defendidos em que se propõe “quebrar os muros” institucionais e não ser apenas
mais uma peça, mais um tijolo na parede. O desencantamento de Gessinger sobre o
padronizado e o industrializado se estende para uma crítica de uma cultura
contemporânea digitalizada, no entanto, o faz ciente de seu posicionamento, de
certa forma interno a essas estruturas, ao consumir os bens tecnológicos. Neste
sentido, o objeto da crítica deixa de ser a inserção do indivíduo no sistema
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hegemônico, para instaurar-se como uma crítica à alienação do sujeito dentro da
sociedade “espetacular” contemporânea.
O tema é encontrado em outros
posts, como no número 5, quando Gessinger coloca:
Pela minha natureza cética e por ter acompanhado a digitalização dos
equipamentos de audio [sic], fui imune à histeria que tomou conta de
algumas pessoas quando as mudanças chegaram ao dia a dia do cidadão
comum. Me interesso pelas novidades na medida em que elas podem me
ajudar, mas não fico babando por bits e bytes. Conheço gente que,
literalmente, muda sua visão de mundo de acordo com o software ou
hardware que tem à mão (GESSINGER, 2011).
A esse respeito, acrescenta-se ao posicionamento ideológico de Gessinger
temas característicos da contemporaneidade presentes no blog analisado, é
possível observar a chamada “marketização” como apontado no post 6:
Gosto do cheiro das coisas, mas não dou a mínima pros perfumes que vêm
em vidros, sprays, chicletes e fraldas descartáveis. Desconfio daqueles
anunciados por mulheres maravilhosas e homens sem camisa. Sou cego e
surdo aos apelos das embalagens (que a gente nunca deve ver da forma
mais óbvia) e dos nomes (que a gente nunca deve dizer da forma mais
óbvia) (GESSINGER, 2011).
Tal questão é também exemplificada no post de número 3:
Quando Cauby Peixoto era o cantor mais famoso do rádio brasileiro, ele
frequentemente tinha as roupas rasgadas pelas fãs. O fato de seu
empresário
desfazer as costuras dos ternos para que cedessem mais facilmente não
deslustra o brilho do astro. A singeleza do truque revela bastante a
respeito do marketing da época. Comparado aos dias que correm, parece
canhestro. Mas, ao contrário das aparências, pouco mudou na essência. Por
mais que os profissionais da área inventem novos termos, por mais que se
amplie a escala, segue sendo o mesmo processo. Novos termos, ternos
velhos. Uma navalha ou um canhão, um torpedo ou um beliscão,
propaganda segue sendo a arma do negócio (GESSINGER, 2011).
Um outro tema discutido por Gessinger em suas publicações, diz respeito à
família, como pode se ver no post 69. Muito bem elaborado, no formato de uma
crônica, o texto tem início com uma crítica à sociedade:
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Este será um texto violento. E triste. Já aviso de saída para que os leitores
com coração fraco busquem outras leituras: sites de notícias, por exemplo.
Eu sei, eu sei, a vida está cheia de coisas violentas e tristes... mas fiquem
tranquilos, os sites de notícias tratam de escondê-las sob grossas camadas
de irrelevâncias, nonsense e exageros caricaturais. Celebesteiras e
celebobagens no ar (GESSINGER, 2012).
No texto citado, ele lembra de um episódio acontecido na época do natal,
quando ele resolveu dar de presente um aquário – ao qual ele se refere como
“pequeno oceano”, “pequeno mar enjaulado” e “pequeno lago” –
para seu
sobrinho, na época uma criança.
Houve um natal em que resolvi presentear meu sobrinho com um aquário.
Contato com a natureza, senso de responsabilidade no cuidado dos peixes
e prazer estético ao vê-los, coloridos, flutuar: tudo isso cabe naquela caixa
de vidro cheia de água. Para um tio neo-hippie, parecia um presente bem
mais interessante do que os carrinhos, arminhas e super-heróis de sempre
(GESSINGER, 2012).
De forma envolvente, o leitor acompanha o desenrolar dos fatos, até o
desfecho “trágico”, quando os peixes morrem. E Gessinger termina o post com as
perguntas: “- Qual a moral da história?” e “- Quem disse que toda história tem
moral?”.
Por outro lado, Gessinger dedica o post 26 para contar como são elaborados
os textos que posta em seu blog. Ele se justifica dizendo: “Inspirado pelos leitores
que relatam carinhosamente como, quando e onde leem meus posts, vou tentar
relatar como, quando e onde eu os escrevo.” (GESSINGER, 2011). Os fragmentos a
seguir sintetizam seu processo de construção textual:
As ideias pintam a qualquer hora, em qualquer lugar. Geralmente quando
estou caminhando. Eu as anoto esquematicamente. Geralmente num
smartphone. [...]
Estas anotações são os ingredientes. A escrita, deixo para saborear na
estrada. [...] Os shows são, quase sempre, muito tarde. Sextas e sábados.
No domingo, chego em casa sem ter dormido. [...] Segunda, meus horários
ainda seguem razoáveis. Acordo cedo e releio o texto. Frequentemente o
reescrevo. [...] Nesta hora e meia de caminhada, indo e vindo da quadra, é
possível que pinte alguma ideia ou que eu me arrependa de alguma frase.
Chegando em casa, faço a versão final do post (GESSINGER, 2011).
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Verifica-se, através dessa breve análise de trechos do blog, como se dá a
construção do cotidiano de Gessinger a partir do universo virtual. Diante do
exposto, surge um questionamento: quem seria, afinal, o sujeito Humberto
Gessinger? Como ele se constrói a partir do blog analisado? Até que ponto esta
construção se articula com Gessinger “real”? Como este sujeito se converte numa
síntese, ou numa face do que seria o sujeito contemporâneo ou pós-moderno? Tais
questionamentos não se fecham, mas permitem uma ampla possibilidade de
análises.
Considerações Finais
A partir do exposto, pode-se observar como as mudanças ideológicas
ocorridas na sociedade afetam todas as áreas do conhecimento, como é o caso da
preocupação no que concerne à concepção do sujeito na pós-modernidade. Neste
sentido, a tentativa de definição desta categoria implica em uma análise
interdisciplinar, perpassando os estudos das diferentes áreas, como a sociologia, a
filosofia e a linguagem, conforme foi apresentado e discutido no presente trabalho.
Esta nova concepção de sujeito, compreendida historicamente, não segue
padrões pré-definidos, uma vez que assume diversas identidades, e estas não se
encontram unificadas ao redor de um “eu”. No entanto, como o pós-moderno não
apresenta uma
referência segura, essa descentralização resulta em um
estranhamento perante o mundo, marcado por incertezas e questionamentos, uma
vez que ele se vê transformado e (re)construído em novas identidades.
Por outro lado, há na sociedade uma tendência hegemônica em busca de
sujeitos
concretos,
massificados,
que
almejam
estar
inseridos
em
uma
padronização, ainda que partindo de regras ditadas pelo consumo. No entanto, em
posição contrária é que se situa o verdadeiramente contemporâneo, ao se mostrar
como um sujeito heterogêneo, líquido, em anacronismo com a sociedade, e sendo
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capaz, por este motivo, de perceber a crise de identidade e de valores, onde a
mídia tenta ditar regras e padrões.
Pode-se dizer também que a fragmentação do sujeito contemporâneo condiz
com a fragmentação apresentada pela estrutura hipertextual, e a fluidez da pósmodernidade
torna
o
sujeito
também
líquido.
Assim
como
o
sujeito
contemporâneo, o hipertexto não tem um centro definido, configurando-se como
uma tecnologia adequada às necessidades pós-modernas, à medida que facilita a
escolha dos caminhos que levarão à construção de sentidos de um texto, do qual,
deste modo, o sujeito passa a ter coautoria.
A análise dos textos virtuais postados no blog de Humberto Gessinger leva o
leitor a uma definição acerca de sua representação como um sujeito da pósmodernidade. Através de um estilo próprio, HG se expressa segundo as identidades
que vai assumindo durante a vida, ao mesmo tempo em que levanta
questionamentos e testemunha a sociedade de sua época.
Ao problematizar o sujeito diante dos aspectos contemporâneos, ele
também se problematiza, através da exposição de traços da sua personalidade e do
seu cotidiano, dos seus questionamentos e incertezas, além das vozes que o
influenciam.
No entanto, o mundo virtual, ao intermediar as várias identidades de
Gessinger e do leitor, constrói em ambos apenas imagens de quem seriam, o que
mostra a complexidade de se buscar uma definição para o sujeito pós-moderno.
Desta forma, conclui-se que a análise do sujeito Humberto Gessinger,
realizada neste trabalho, foi feita através de uma representação e não do sujeito
em si. Além disso, a heterogeneidade que caracteriza o sujeito líquido da
contemporaneidade impossibilita uma definição segura, uma vez que ele é
construído não apenas pelas identidades culturais que assume, mas é determinado,
fundamentalmente, pelo momento histórico no qual se encontra inserido, pois este
será o responsável pela construção das identidades.
Universidade Federal de Pernambuco
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