UNIVERSIDADE ESTÁCIO DE SÁ
ANA ALICE DE CARLI
BEM DE FAMÍLIA DO FIADOR E O DIREITO HUMANO
FUNDAMENTAL À MORADIA
Rio de Janeiro
2008
2
ANA ALICE DE CARLI
BEM DE FAMÍLIA DO FIADOR E O DIREITO HUMANO FUNDAMENTAL À
MORADIA
Dissertação apresentada como requisito
parcial para a obtenção do título de Mestre
em Direito Público e Evolução Social, na
Linha de Pesquisa Direitos Fundamentais e
Novos Direitos, pela Universidade Estácio
de Sá.
Orientador: Prof. Dr. Luiz Edson Fachin
Rio de Janeiro
2008
3
VICE-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA
A Dissertação
BEM DE FAMÍLIA DO FIADOR E O DIREITO HUMANO FUNDAMENTAL À
MORADIA
Elaborada por
ANA ALICE DE CARLI
Aprovada por todos os membros da BANCA EXAMINADORA:
Presidente: Prof. Dr. Luiz Edson Fachin
Universidade Estácio de Sá
Profa. Dra. Maria Celina Bodin de Moraes
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC
Profa. Dra. Edna Raquel Rodrigues Santos Hogeman
Universidade Estácio de Sá
Rio de Janeiro, --------/--------/2008.
4
AGRADECIMENTOS
Agradeço ao Senhor Jesus Cristo, por capacitar-me
a chegar até aqui.
Agradeço
ao
meu
marido
Leonardo,
pela
compreensão e dedicação incomensuráveis.
Agradeço a querida professora Maria Teresinha
Pereira e Silva, pela enorme ajuda.
Agradeço ao ilustre professor, meu orientador, Luiz
Edson
Fachin
intelectual.
pela
impagável
contribuição
5
“A pessoa prevalece sobre qualquer valor
patrimonial”.
Pietro Perlingieri
6
RESUMO
O presente trabalho – o qual vincula-se à Linha de Pesquisa
Direitos Fundamentais e Novos Direitos, do Curso de Mestrado em Direito
Público e Evolução Social da Universidade Estácio de Sá - objetiva demonstrar
que o bem de família do fiador proprietário de único bem imóvel não pode ser
objeto de constrição judicial, na medida em que tal significante tem como
função essencial garantir o patrimônio mínimo, o qual, por sua vez, encontra
sua ratio na dignidade da pessoa humana. Nesse contexto, sustenta-se que o
direito humano fundamental à moradia consagra mais do que o simples acesso
a um teto que sirva à habitação, pois, de fato, é pressuposto e instrumento
necessário à realização de outros valores e direitos humanos fundamentais.
Com esse fundamento, propugna-se uma nova hermenêutica, em que todas as
normas infraconstitucionais, bem como as relações jurídicas - públicas ou
privadas - sejam interpretadas e caracterizadas à luz da Constituição,
considerando, ainda, a pessoa como alguém que extrapola a condição de ser
abstrato, o que implica ser a constitucionalidade da norma inserta no inciso VII,
do art. 3º, da Lei 8.009/90, que prevê a penhora do bem de família do fiador,
condicionada à existência de outro bem, que não aquele que serve de abrigo
ao garantidor e sua família. Analisa-se, ainda, a jurisprudência dos Tribunais de
Justiça estaduais, do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal
Federal no que concerne à (i)legitimidade da mencionada regra à luz da
Constituição de 1988.
PALAVRAS-CHAVE: Direito à Moradia, Bem de Família, Fiador, Patrimônio
Mínimo, Dignidade Humana.
7
SUMMARY
The present work, tied with the Line of Research Right Basic and
New Rights, in the Master’s degree in Public Law and Social Evolution of the
University Estácio de Sá, objectives to demonstrate that homestead of the
guarantor who owns the only one property cannot be object of judicial
constriction, in the measure where such significant and has as function
essential to guarantee the minimum patrimony, which, in turn, finds its ratio in
the dignity of the person human being. In this context, it is supported that the
basic human right to the housing more than consecrates what the simple
access to a ceiling that serves to the habitation, therefore, in fact, it is estimated
and necessary instrument to the accomplishment of other values and basic
human rights. Still, a new hermeneutics is advocated, where all the
constitutional rules, as well as the legal relationships - public or private - are
interpreted and characterized to the light of the Constitution considering the
person as somebody who surpasses the condition of being abstract. In this
context, it is important to analyze the constitutionality of the rule in the
subsection VII, of the article 3º, of the Law 8,009/90, that allows attachment the
homestead of the guarantor, since the existence of another good, not that one
that serves of shelter to the guarantor and his family. It is analyzed, yet, the
jurisprudence of the Supremo Tribunal Federal, the Superior Tribunal de Justiça
and the Regional Courts. It concerns about de legality of the mentioned rule to
the light of the Constitution of 1988.
KEYWORDS: Habitation right, Homestead, Guarantor, Minimum Patrimony,
Dignity Human being.
8
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 9
TÍTULO I - A MORADIA COMO EXPRESSÃO DO SER........................................ 15
Capítulo I - DO TETO À REALIZAÇÃO DA ALMA ............................................ 15
I.1. A Questão Habitacional no Brasil.................................................................. 18
I. 2. Espaço Urbano como Locus de Exercício da Cidadania ................................ 30
I.3. Patrimônio Mínimo, garantia do mínimo existencial...................................... 42
I.4. Bem de Família e a Ressignificação do Instituto Família ............................... 51
Capítulo II - DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS ..................................... 62
II.1. Principais Aspectos...................................................................................... 62
II. 2. O Direito de Propriedade e sua dúplice dimensão: autônoma e acessória..... 72
II. 3. Da Eficácia dos Direitos Humanos Fundamentais ...................................... 89
TÍTULO II - A RESSIGNIFICAÇÃO DO TER ........................................................ 100
Capítulo I – DO BEM DE FAMÍLIA DO FIADOR .............................................. 100
I. 1. A Função Social dos Contratos................................................................... 100
I. 2. Alguns Aspectos do Contrato de Fiança ..................................................... 106
I. 3. Da Impenhorabilidade do Bem de Família.................................................. 115
I. 4. Da Constitucionalidade Condicionada do Art. 3º, inciso VII da Lei 8.009/90 –
Lei do Bem de Família. ..................................................................................... 119
Capítulo II - EXAME CRÍTICO DA JURISPRUDÊNCIA ACERCA DA PENHORA
DO BEM DE FAMÍLIA DO FIADOR...................................................................... 138
II. 1. Breves Considerações ............................................................................... 138
II. 2. Tribunais de Justiça Estaduais................................................................... 144
II. 3. Superior Tribunal de Justiça...................................................................... 152
II. 4. Supremo Tribunal Federal......................................................................... 158
CONCLUSÃO.......................................................................................................... 164
REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 170
9
INTRODUÇÃO
Nas
últimas
décadas,
em
especial
nos
países
em
desenvolvimento, o problema do acesso à moradia tem-se agravado,
provocando intensos debates entre estudiosos de diferentes áreas, como
filósofos1, sociólogos2, arquitetos 3, antropólogos urbanistas4, geógrafos5, e
como não se pode esquecer, pensadores do Direito6. No mesmo grupo
merecem referência
políticos7 e
governantes8 comprometidos com
a
problemática social, representantes de organizações internacionais9 e de
entidades nacionais10 criadas por diferentes segmentos da sociedade, de um
modo geral. No Brasil, como de resto em outros países, o problema do deficit
habitacional não é novidade; já no século XX a crise no setor de moradia
assumia dimensões muito elevadas: calcula-se que, atualmente, cerca de 51
milhões de pessoas vivem em favelas11 no território brasileiro, sem falar na
população de rua, os denominados sem-teto.
De fato, o germe do problema da habitação no Brasil já podia ser
detectado no final do século XIX e início do século XX, se agravando a partir da
década de 40, período em que era evidente o acentuado descontrole do
espaço urbano, com crescente número de cortiços e outras habitações
1
BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Tradução Regina Lyra. Nova edição. Rio de Janeiro: Editora
Campus, 2004.
2
CORDEIRO, Simone Lucena. Moradia Popular na Cidade de São Paulo: (1930-1940) – Projetos e
Ambições. São Paulo: disponível em: < http. www.historica.arquivoestado.sp.gov.br>. Pesquisa realizada
em 10/05/2007.
3
BONDUKI, Nabil. Origens da Habitação Social no Brasil: Arquitetura Moderna, Lei do Inquilinato e
Difusão da Casa Própria. 3. ed. São Paulo: Editora Estação Liberdade, 2002.
4
DAVIS, Mike. Planeta Favela. Tradução Beatriz Medina. São Paulo: Boitempo Editorial, 2006
5
RODRIGUES, Arlete Moysés. Moradia nas Cidades Brasileiras: Habitação e Especulação, o Direito à
Moradia, os Movimentos Populares. São Paulo: Editora Contexto, 2001.
6
LIRA, Ricardo Pereira. Direito Urbanístico, Estatuto da Cidade e Regularização Fundiária. In:
COUTINHO, Ronaldo; BONIZZATO, Luigi ( coordenadores ). Direito da Cidade: Novas Concepções
sobre as Relações Jurídicas no Espaço Social Urbano. Rio de Janeiro: Editora Lumen Júris. 2007; AINA,
Eliane M. Barreiros. O Fiador e o Direito à Moradia: Direito Fundamental à Moradia frente à situação do
fiador proprietário de bem de família. 2.ed. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Juris, 2004; SAULE JUNIOR,
Nelson. A Proteção Jurídica da Moradia nos Assentamentos Irregulares. Porto Alegre: Editora
Sergio Antonio Fabris, 2004 etc.
7
ARRUDA, Inácio. A Questão Urbana e o Futuro das Cidades: rumo à nova cidade. Brasília:
Disponível em: <http://www.camara.gov.br?inacioarruda>. Pesquisa realizada em 10/05/2007.
8
BRASIL. Ministério das Cidades. Site < http://www.cidades.gov.br> Ver ainda, FINEP. Programa de
Tecnologia de Habitação. Rio de Janeiro: Site < http://www.finep.gov.br/programas/habitare.asp>
Pesquisa realizada em 10/05/2007.
9
ORGANIZAÇÀO DAS NAÇÕES UNIDAS – UNHABITAT. Site <http://www.unhabitat.org>
10
ORGANIZAÇÃO
NÃO
GOVERNAMENTAL
MORADIA
E
CIDADANIA.
Brasília:
Site:
http://www.moradiaecidadania.org.br/missão.php.
11
DAVIS. Op. Cit. p.34.
10
coletivas, onde as pessoas viviam sem estrutura adequada, sem privacidade, e
expostas a todo tipo de perigo de ordem física ou moral. Diante de tal dilema, a
possibilidade de acesso `a moradia passou a ser tratada pelo Poder Público
não apenas como concretização do direito de habitação, mas, sobretudo, como
forma de garantir a ordem, a moral e os bons costumes, pontua Nabil
Bonduki12. Vale dizer que, por muito tempo, a moradia não era considerada
matéria de interesse público, sendo a intervenção do Estado nesse setor
despicienda, conforme será explicitado no item 1, do capítulo I, do Título I,
deste trabalho.
A essencialidade do direito à moradia para o desenvolvimento
humano não pode ser rechaçada em função de divergências doutrinárias13 e
até jurisprudenciais14 quanto à sua natureza jurídica - se integra ou não o rol de
direitos fundamentais -, porquanto tal direito é pressuposto para a realização de
outros valores fundamentais, tais como: a vida, a privacidade, a saúde, o
acesso a oportunidades de trabalho e ao exercício da cidadania. Nessa linha
de pensamento, Marcio Cammarosano15 assevera que “(...) falar em habitação,
moradia, casa, lar, é falar em necessidade vital básica do ser humano”, e
Eliane Maria Barreiros Aina16, por sua vez, apregoa que “a moradia é uma
necessidade premente de todo o ser humano. Todos precisamos de um local
12
BONDUKI, Nabil. Origens da Habitação Social no Brasil – Arquitetura Moderna, Lei do Inquilinato e
Difusão da Casa Própria. 3. ed. São Paulo: Estação Liberdade, 2002. p. 70-75.
13
Para Ricardo Pereira Lira o direito `a moradia consubstancia um direito fundamental, ver LIRA, Ricardo
Pereira. Direito Urbanístico, Estatuto da Cidade e Regularização Fundiária. In: COUTINHO, Ronaldo;
BONIZZATO, Luigi (coordenadores). Direito da Cidade: Novas Concepções sobre as Relações Jurídicas
no Espaço Social Urbano. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 13. Ricardo Lobo Torres, a seu turno,
preleciona que os direitos sociais e econômicos “extremam-se da problemática dos direitos fundamentais
porque dependem da concessão do legislador (...). Revestem eles, na Constituição, a forma de princípios
de justiça, de norma programáticas”. Ensina, ainda, o autor, que a Suprema Corte dos Estados Unidos só
reconhece a fundamentalidade dos referidos direitos no que toca ao mínimo existencial. Ver TORRES,
Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. Rio de Janeiro:
Renovar, 2000. p. 154-156.
14
Conforme se depreende de algumas decisões, como por exemplo, a exarada em sede de recurso de
Agravo de instrumento, em que o 2º Tribunal de Alçada Civil de São Paulo, ao tratar da possibilidade ou
não da penhora do bem do fiador, em contrato de locação, defendeu a validade da norma do art. 3º, inciso
VII, da Lei 8.009/90, que prevê a penhora do referido bem, por entender que o direito à moradia, previsto
no art. 6º da Carta de 1988, é norma meramente programática ( In: AgI. 870.236/00/3 – Rel. Juiz Carlos
Giarusso Santos). Frise-se, entretanto, que a norma programática, malgrado ser um comando para o
Poder Público, quando traz ínsito um direito fundamental, como a moradia, ela deve ser bússola para os
órgãos do Estado e para os particulares, no sentido de que suas ações não podem violá-lo.
15
CAMMAROSANO, Márcio. Fundamentos Constitucionais do Estatuto da Cidade ( arts. 182 e 183 da
Constituição Federal ). In: DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ, Sérgio (coordenadores). Estatuto da
Cidade: Comentários à Lei Federal 10.257/2001. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 25.
16
AINA, Eliane Maria Barreiros. O Fiador e o Direito à Moradia: Direito Fundamental à Moradia Frente à
Situação do Fiador proprietário de Bem de Família. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 86-87.
11
para nos abrigarmos das intempéries, descansarmos de nossa labuta,
abrigarmos nossa família (...)”.
Interessante observar que, quando se pensa em direito à moradia,
é comum fazer-se uma conexão com o direito de propriedade, posto ser este,
sob o aspecto instrumental, o meio de se atingir a plenitude do direito à
moradia, conquanto existam outros institutos que também viabilizam o acesso
à habitação, como por exemplo, o comodato, a concessão de direito real de
uso, a posse e a locação.
Nesse contexto, encaixa-se o objeto do presente trabalho, o qual
tem como escopo a defesa do bem de família do fiador, proprietário de único
bem imóvel que, num ato de liberalidade ( generosidade ) assume o encargo
de garantidor em contrato de locação. Em conseqüência, não raro, se vê
muitas vezes envolvido em processo de execução, por meio do qual seu abrigo
seguro e sagrado é objeto de constrição judicial para pagamento de débitos de
aluguéis não quitados pelo seu afiançado ( o locatário ).
Nessa perspectiva, não se pode esquecer que, atualmente, o bem
de família possui íntima conexão com a idéia de patrimônio mínimo e com o
direito humano fundamental `a moradia, ambos corolários da dignidade da
pessoa humana. De modo que, propugna-se uma nova interpretação da norma
inserta no art. 3º, inciso VII, da Lei 8.009/90, que admite a penhora do único
bem do fiador, para que a mesma possa ser válida e legítima à luz da Carta de
1988.
Para realizar tal mister adotar-se-á o método de pesquisa críticodialético. Como fontes de pesquisa, merecem relevo: a normativa constitucional
( consubstanciada na Constituição Federal de 1988 ) e a infraconstitucional, a
doutrina multidisciplinar nacional e estrangeira, e, basicamente, a jurisprudência
dos Tribunais de Justiça brasileiros: o Supremo Tribunal Federal, o Superior
Tribunal de Justiça, e os Tribunais Estaduais.
Quanto à relevância do tema, é indiscutível a sua importância,
tanto do ponto de vista jurídico quanto econômico-sociológico, porquanto o
acesso à moradia é um problema real e constante no cotidiano brasileiro, o que
torna imperioso o desenvolvimento de trabalhos acadêmicos com o objetivo de
estudar caminhos viáveis para dar concretude ao direito humano fundamental
12
ao teto. No caso presente, considera-se crucial problematizar a questão da
penhora do bem de família do fiador, proprietário de único bem imóvel.
Nessa ordem de raciocínio, o trabalho será dividido em dois
títulos, seguidos, cada qual, por 2 capítulos e algumas seções, que variam em
número, de acordo com o tema em tela.
Ab initio, objetiva-se estudar no Título I, “A moradia como
expressão do ser”, nos capítulos, “Do teto à realização da alma”, e “Direitos
humanos fundamentais”, alguns aspectos relevantes da questão habitacional
no Brasil e sua imbricação com o espaço urbano, o mínimo existencial e a
garantia do patrimônio mínimo, este consubstanciado no bem de família. Visase, ainda, a examinar alguns pontos importantes dos direitos humanos
fundamentais, entre eles, a sua real aplicação nos planos social e jurídico, bem
como introduzir a idéia da dúplice face do direito de propriedade, o qual se
subdivide em direito humano fundamental autônomo e direito fundamental
acessório.
Frise-se que o direito de propriedade acessória contempla a via
instrumental de concretização do direito humano fundamental à moradia, o qual
corporifica mais do que o adjetivo de direito social, visto que é pressuposto
para a efetividade de outros valores essenciais, que norteiam o universo do
homem como ser-pessoa e ser-cidadão.
Nesse
cenário,
tem-se
como
norte
a
doutrina
da
constitucionalização do Direito, a qual proporciona novo olhar para as normas
jurídicas a partir dos valores insculpidos na Constituição, como por exemplo, os
direitos humanos fundamentais, os quais impõem mudanças paradigmáticas,
como a encampada pela idéia de “repersonalização” do Direito Privado, que, no
dizer de Luiz Edson Fachin17, “a pessoa e suas necessidades fundamentais,
tais como a habitação minimamente digna” ocupam o epicentro das relações
sociais. Essa tendência do direito contemporâneo encontra guarida na
Constituição, que, por sua vez, é a fonte de legitimação de todos os sistemas18.
É cediço que não dá mais para olhar as diferentes realidades e tentar
17
FACHIIN, ( 2003). Op. Cit. p. 78.
Cf. SCHUARTZ, Luis Fernando. Norma, Contingência e Racionalidade. Rio de Janeiro: Editora
Renovar, 2005. Ao desenvolver seu estudo sobre a Teoria dos Sistemas Sociais, de Niklas Luhmann, o
autor menciona que para Luhmann, o processo autopoiético dos sistemas precisa do apoio do ambiente,
sob pena de fracassar a reprodução. p.89.
18
13
amalgamá-las ao ordenamento jurídico posto, sem dar relevo à existência de
mudanças conceituais nas relações contratuais, patrimoniais, e familiares19.
No Título II, “A ressignificação do ter”, a seu turno, pretende-se,
sempre com amparo na idéia de constitucionalização do Direito, discorrer
acerca da funcionalização dos contratos como premissa para a abordagem de
alguns aspectos do contrato de fiança em locação, bem como elucidar o tema
da impenhorabilidade do bem de família, com a defesa da constitucionalidade
condicionada à existência de outro bem de propriedade do garantidor ( além do
seu bem de família ), do art. 3º, inciso VII, da Lei 8.009/90 ( Lei do bem de
família ), introduzido pela Lei 8.245/91 ( Lei do inquilinato ), que prevê a
penhora do bem de família do fiador. Na seqüência analisa-se a jurisprudência
dos Tribunais brasileiros no que pertine à (im)possibilidade da penhora do
único bem do fiador.
Cumpre realçar que o caminho aqui escolhido, isto é, os temas
apontados servem de respaldo à análise e à defesa que se perseguirá no
desenvolver deste trabalho, que é o caráter fundamental e meta-jurídico do
direito à moradia, como pressuposto para defesa da legitimidade da
interpretação que afasta a norma que permite a penhora do único bem do
fiador, em sede de locação, tendo como norma-fundamento a dignidade da
pessoa humana.
Nessa toada, visa-se, nos capítulos, “Do bem de família do fiador”
e do “Exame crítico da Jurisprudência acerca da penhora do único bem do
fiador”, a demonstrar que, na atualidade, não cabe mais interpretar o Direito à
luz da normativa-positivista clássica, calcada em máximas como a pacta sunt
servanda20 e a plena autonomia da vontade21, tendo em vista os novos padrões
19
FACHIN, ( 2003 ). Op. Cit. p. 227. O autor menciona, a título de ilustração, a união estável ( nãomatrimonial ), que se impôs perante a jurisprudência, a lei e a regra, acabando por sensibilizar o
constituinte, consoante ao disposto no art. 226, par. 3º, que prevê a união estável como entidade familiar.
Ver também do autor, a obra “Virada de Copérnico: um convite `a reflexão sobre o Direito Civil brasileiro
contemporâneo”. In: FACHIN, Luiz Edson ( coordenador ). Repensando Fundamentos do Direito Civil
Brasileiro Contemporâneo. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2000. Vaticina o autor que a releitura
dos pilares do Direito Privado ( o contrato, o patrimônio e família ) é essencial para que se possa superar
o sistema clássico individualista.
20
Preleciona Sylvio Capanema de Souza que tal máxima está subsumida no princípio da força obrigatória
dos contratos, também denominado de Princípio da imutabilidade dos contratos, segundo o qual as
partes, uma vez terem pactuado, tal avença se torna “lei” entre elas. In: SOUZA, Capanema. ContratosEstudo das Principais Alterações Introduzidas pelo Novo Código Civil. Coletânea de Textos Cepad. Rio
de Janeiro: Editora Espaço Jurídico, 2005.
21
Cf. lições de Caio Mário da Silva Pereira, o principio da autonomia da vontade se revela como “a
faculdade que têm as pessoas de concluir livremente os seus contratos”, mas, adverte o autor, que tal
princípio deve ser relativizado diante de premissas de ordem pública. Ainda, vale trazer à lume a
14
de valores consagrados na Carta de 1988, como a função social dos contratos,
incorporada pelo Código Civil de 2002, consoante o art. 42122; a dignidade da
pessoa humana, alçada, pelo Constituinte de 1988, a princípio norteador de
todo o sistema normativo; e os limites impostos pelos direitos humanos
fundamentais.
Nessa linha de pensamento, a regra, segundo a qual o único bem
do garantidor, em contrato de locação, pode ser objeto de penhora, somente
merece acolhida pela Carta de 1988 se interpretada conforme os ditames das
normas constitucionais e dos direitos humanos fundamentais.
Sem o propósito de esgotar todas as questões que envolvem o
dilema da penhora do bem do fiador, objetiva-se, ainda, no capítulo II, analisar
a jurisprudência dos Tribunais brasileiros, bem como - embora pareça
ambicioso -, a) revigorar, sob o ponto de vista científico, a tese da
fundamentalidade do direito à moradia e da garantia do patrimônio mínimo; b)
sustentar a tese da instrumentalidade do direito de propriedade23 quando dá
concretude ao direito à moradia; c) buscar fundamentos legais e doutrinários
para viabilizar o direito à moradia como desdobramento do direito ao mínimo
existencial; e d) defender a tese da constitucionalidade condicionada da norma
insculpida no art. 3°, inciso VII, da Lei 8.009/90, que prevê a penhora do bem
do fiador, em contrato de locação, rechaçando o argumento conseqüencialista
econômico de que tal restrição visa a garantir o acesso à locação, e por
conseguinte, o direito à moradia.
concepção do autor para normas de ordem pública, as quais seriam “as regras que o legislador erige e
cânones basilares as estrutura social, política e econômica da Nação”. In: PEREIRA, Caio Mário da Silva.
Instituições de Direito Civil. Vol. III. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 9-11.
22
Art. 421. “a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”.
23
A tese ora sustentada, a qual se pretende desenvolver de forma plena em estudo futuro, é resultante da
combinação: 1) da tese do patrimônio mínimo, capitaneada por Luiz Edson Fachin; 2) da ratio subjacente
ao voto do Ministro do Supremo Tribunal Federal Carlos Ayres Britto, no julgamento do Recurso
Extraordinário nº 407.688/SP, julgado em 02/02/2006, que analisou a constitucionalidade da norma
inserta no art. 3º, inciso VII, da Lei 8.009/90; e 3) da contraposição aos argumentos apresentados pelo
também Ministro da Suprema Corte brasileira Cezar Peluso no julgamento supra mencionado.
15
TÍTULO I - A MORADIA COMO EXPRESSÃO DO SER
Capítulo I - DO TETO À REALIZAÇÃO DA ALMA
“Eu quero uma casa para poder viver!”. Este foi o desabafo em
forma de apelo de moradora de uma favela carioca, após ver sua casa
totalmente destruída, por conta de confronto entre a polícia civil e alguns
traficantes24.
De fato, não há como dissociar a moradia da personalidade do
indivíduo, pois, além de servir de abrigo, a ela estão atrelados outros
significantes, como a vida e a dignidade humana. Nesse sentido, Michelle
Perrot, citada por Luiz Edson Fachin, professa que “a casa é, cada vez mais, o
centro da existência. O lar oferece, num mundo duro, um abrigo, uma proteção,
um pouco de calor humano”25.
Sonhar com uma casa equipada com o essencial e um espaço
razoável para que os ocupantes exerçam o direito à privacidade e um mínimo
de conforto, à primeira vista parece óbvio. Ocorre que a realidade concreta
confirmada por eloqüentes dados estatísticos têm demonstrado significativo
abismo entre o ideal platônico26 de casa e o que o mundo da vida apresenta.
Estima-se que, só no Brasil, o deficit habitacional chega a oito milhões, com
maior concentração nas regiões sudeste e nordeste do país, superando os
70% do total, conforme se infere do gráfico elaborado pela Fundação João
Pinheiro27:
24
TV GLOBO. Reportagem sobre o confronto entre policiais civis e traficantes no Morro da Coréia no Rio
de Janeiro. Programa FANTÁSTICO, exibido em 24.out.2007.
25
FACHIN, Luiz Edson. Teoria Crítica do Direito Civil à Luz do Novo Código Civil Brasileiro. 2. ed.
Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2003. p. 267.
26
WERLANG, Sérgio Ribeiro da Costa. Descoberta da Liberdade. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004.
p. 69-70. Para Platão “assim como os substantivos comuns concretos, como cavalo, mesa etc., também
os substantivos comuns abstratos, como as noções éticas e morais, teriam sua existência no plano ideal”.
27
FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO. Déficit Habitacional no Brasil. Disponível em: < www.fjp.gov.br>.
Pesquisa realizada em 12/11/2007.
16
A solução do problema do deficit habitacional no Brasil requer
estudo multidisciplinar, com a união de esforços de vários segmentos da
sociedade: do governo, abrangendo os três Poderes, Executivo, Legislativo e
Judiciário;
e
engenheiros,
da
iniciativa
advogados,
privada,
envolvendo
economistas28,
arquitetos,
professores,
urbanistas,
donas-de-casa
e
trabalhadores em geral.
A despeito de pensamentos contrários29, o direito à moradia
enfeixa mais do que um direito social, posto ser pressuposto para a realização
de vários outros valores, tais como: a vida, a segurança, a saúde ( física e
mental ), o trabalho, a educação, o pleno desenvolvimento e a cidadania, além
de constituir um dos corolários da dignidade da pessoa humana, esta como
28
GRAGNANI, José Antonio. A jóia da Coroa: o Brasil precisa atingir um patamar de evolução favorável
no mercado imobiliário. Jornal O VALOR, São Paulo, 19. jul. 2007. p. A18. Segundo estudos
desenvolvidos pelo economista, o mercado de financiamento imobiliário no Brasil, apesar de recente
evolução, ainda é muito pequeno, correspondendo a 2% do PIB, enquanto países como: o Chile ( o setor
é responsável por 17% do PIB ) o México ( 11 % ), a Argentina ( 4% ), sem considerar a grande potência
americana, cujo porcentual de investimento imobiliário chega a 79%. Sabe-se, entretanto, que os Estados
Unidos estão tendo problemas nesse segmento, mas, apesar de instigante a abordagem do tema, não há
espaço neste trabalho para desenvolver tal estudo.
29
Cf. Jorge Miranda, “a efetivação do direito à educação e à cultura destina-se a fazer que todos passem
a usufruir da liberdade de criação e fruição cultural e da liberdade de aprender e ensinar, em igualdade”.
In: MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo IV. Direitos Fundamentais. 3. ed. rev. e
atual. Portugal: Editora Coimbra, 2000. p. 433. Ainda, como aluna da disciplina Teoria da Constituição,
ministrada pelo mestre português, no Curso de Mestrado em Direito Público e Evolução Social da
Universidade Estácio de Sá/RJ, em 23/10/2007, ao me posicionar no sentido de que o direito à moradia
seria pressuposto para a concretização de todos os demais direitos, considerando que é no seio da
família e no conforto do lar que as pessoas têm condições adequadas para se desenvolver, indaguei ao
professor qual era a sua opinião a respeito desse posicionamento. O eminente professor sustentou ser o
direito à educação pressuposto para a realização dos demais direitos.
17
norma propulsora de todos os sistemas sociais30 ( normativo, econômico,
social).
Nesse diapasão, posicionaram-se os autores da proposta que
culminou com a edição da Emenda Constitucional nº 26 de 2000, que
consagrou no art. 6º, da Carta de 1988, o direito humano fundamental à
moradia. Para ilustrar, vale transcrever parte da Justificativa da referida
proposta, publicada pela Comissão de Constituição e Justiça e de Redação31:
A questão do direito à moradia tem sido objeto de aceso e
polarizado debate social, tanto em nível nacional como
internacional. Fóruns, entidades de classe, entidades
governamentais e não-governamentais têm-se reunido nesses
dois últimos anos com vistas ao maior encontro de todos os
tempos sobre a terra: a Conferência Habitat II, convocada pela
Organização das Nações Unidas (ONU) (...).
As atuais condições de moradia de milhões de brasileiros
chegam a ser deprimentes e configuram verdadeira ‘chaga
social’ para grande parte das metrópoles do país. Faz-se,
portanto, urgente que se dê início a um processo de
reconhecimento da moradia como célula básica, a partir da
qual se desenvolvem os demais direitos do cidadão, já
reconhecidos por nossa Carta Magna: a saúde, o trabalho, a
segurança, o lazer, entre outros. Sem a moradia o indivíduo
perde a identidade indispensável ao desenvolvimento de suas
atividades, enquanto ente social e produtivo se empobrece e se
marginaliza. Com ele se empobrece, invariavelmente a Nação.
( grifo nosso )
Nesse contexto, a moradia, embora seja comumente alçada ao
patamar de direito social, na verdade, consubstancia atributo essencial da
personalidade, pois é no locus doméstico que as pessoas desenvolvem seu
caráter, dão seus primeiros passos rumo ao processo de crescimento
espiritual, físico e intelectual. Enfim, é, primeiramente, no espaço do lar,
concretizado num teto com paredes, portas, janelas e banheiro, que o indivíduo
se sente protegido e seguro para iniciar o aprendizado da vida em relação. Em
30
SCHUARTS, Luis Fernando. Norma, Contingência e Racionalidade: Estudos Preparatórios para
uma Teoria da Decisão Jurídica. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2005. p. 109-110. Colhendo as lições
de Niklas Luhmann, o autor ensina que para o referido pensador “consciências e sociedades são tipos
inconfundíveis de sistemas autopoiéticos, o que significa que um só pode ser concebido como ambiente
do outro e vice-versa”.
31
BRASIL. Poder Legislativo. Comissão de Constituição e Justiça e de Redação. Diário da Câmara dos
Deputados, Brasília, DF., 15/12/98, p. 29022/29023. Disponível em < www.senado.gov.br>. Pesquisa
realizada em 09/11/2007. Vale dizer, à época da apresentação da proposta da referida emenda
constitucional, o Brasil havia sido convidado para a relatoria da Agenda Habitat, no grupo de trabalho
sobre habitação, na Conferência Habitat II, organizada pela Organização das Nações Unidas ( ONU ).
18
síntese, a capacidade de enfrentar o “mundo da vida”32 com segurança,
autoconfiança e dignidade, pressupõe a existência de uma moradia com
qualidade33.
A moradia, apesar de atrelar-se naturalmente ao processo de
desenvolvimento do ser humano, por muito tempo no território brasileiro foi
tratada como coisa de “outra ordem”34, situando-se fora do espectro de
proteção estatal. Essa lacuna contribuiu para deflagrar e agravar o problema
da habitação, já perceptível no século XIX por meio do descompasso entre a
necessidade de moradia e o acesso a ela. Até meados do referido período, o
Estado se abstinha de intervir no setor, por considerar a matéria de interesse
meramente privado. Dessa forma, o direito humano fundamental à moradia foi
duplamente violado: de um lado, pelo próprio Poder Público, ao não
desenvolver políticas referentes ao setor, tampouco envidando esforços para
controlá-lo; e de outro lado, pelos particulares, especialmente, os proprietários
de imóveis para locação, que no afã de auferir vantagens pecuniárias, não se
preocupavam em construir ou manter de forma adequada os seus imóveis.
I.1. A Questão Habitacional no Brasil
Como se apresentará ao longo da presente seção, o período
compreendido entre o final do século XIX e início do século XX marca o
incremento do problema da habitação no Brasil, por conta de diversos fatores,
em particular35: o grande número de estrangeiros que chegavam ao país, em
função das conseqüências da segunda guerra mundial; o intenso e
desordenado crescimento das cidades, resultante do êxodo rural para os
centros urbanos, onde os trabalhadores buscavam oportunidades de trabalho,
estimulados pelo início do processo de industrialização e expansão do
32
A expressão “mundo da vida” empregada no texto, com inspiração em Jürgen Habermas, tem o sentido
de “fatos reais da vida”. Ver HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-Metafísico: Estudos Filosóficos. 2
ed. Tradução Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Editora Tempo Brasileiro, 2002. p. 88- 100. Para
o filósofo, “o mundo da vida estrutura-se através das tradições culturais, de ordens institucionais e de
identidades criadas através de processo de socialização”.
33
Entende-se por moradia com qualidade aquela em que há espaço adequado para seus ocupantes,
ventilação, estrutura básica de saneamento de água e esgoto e com acesso fácil aos meios de transporte.
34
FACHIN ( 2003 ). p. 89. Professa o autor: “O sujeito não ‘é’ em si, mas ‘tem’ para si titularidades. É
menos pessoa real e concreta ( cujas necessidades fundamentais como moradia, educação e
alimentação não se reputam direitos subjetivos porque são demandas de ‘outra ordem’ ), e é mais um
‘indivíduo patrimonial’”.
35
BONDUKI, Nabil. Origens da Habitação Social no Brasil – Arquitetura Moderna, Lei do Inquilinato e
Difusão da Casa Própria. 3. ed. São Paulo: Editora Estação Liberdade, 2002. p. 17-27.
19
comércio. Também merece registro a escassez e o alto custo do material de
construção, em paralelo à presença mínima do Estado neste setor, entregue “à
mão invisível” do mercado36.
O Estado passou verdadeiramente a tratar da questão da
moradia, como problema de interesse público, quando, em decorrência das
péssimas condições de habitação, vieram à lume os problemas de saúde
pública, demandando medidas urgentes37, o que ocorreu timidamente, com a
realização de obras de saneamento, e depois, com a edição do Decreto nº
4.403/1921, que disciplinou as relações jurídicas locatícias.
Devido à insuficiência dessas medidas, alguns segmentos da
sociedade defendiam a intervenção do Poder Público, não somente para cuidar
da questão da higiene sanitária, mas também como forma de facilitar o acesso
à moradia. A partir de 1930, o acesso à casa própria transformou-se num
objetivo do Estado. Neste período promoveram-se inúmeros seminários para
analisar o problema do deficit habitacional: “possibilitar a aquisição da casa
própria pelos trabalhadores tornou-se, então, uma obsessão para quase todos
que debatiam o assunto”, esclarece Nabil Bonduki38.
Clélio Campolina Diniz39 contribui para elucidar a compreensão
do problema em tela, quando expõe dados significativos acerca da densidade
demográfica no Brasil e acrescenta que o crescimento da população ocorreu
de várias maneiras, diferenciando-se de região para região, especialmente em
razão do fenômeno migratório. A economia nos estados de São Paulo e Rio de
36
VASCONCELLOS, Marco A. S. e GARCIA, Manuel E. Fundamentos de Economia. 2. ed. São Paulo:
Editora Saraiva. 2006. Os autores mencionam Adam Smith, segundo o qual o mercado deve ser
conduzido pelos fatores econômicos, e o Estado deve se abster de interferir na economia, deixando que
“a mão invisível” do mercado se encarregue de harmonizar as relações econômicas. Ele defendia a livre
iniciativa. p. 17.
37
BONDUKI. Op. Cit. “(...) a despeito dos discursos higienistas contra a precariedade das moradias
associando-se aos surtos epidêmicos, o Estado limitou-se `a propositura de medidas de caráter legislativo
e, no âmbito da polícia sanitária, a reprimir as situações mais calamitosas.” p. 77.
38
Idem. Ibidem. Segundo o autor, em 1931,o Instituto de Engenharia organizou o primeiro Congresso de
Habitação. Já em 1941, o Instituto de Organização Racional do Trabalho passou a realizar as
denominadas “Jornadas de Habitação Econômica”, as quais eram prestigiadas por profissionais de
diversas áreas como: advogados, urbanistas, sociólogos, engenheiros, empresários etc. p. 73 et seq.
39
DINIZ, Clélio Campolina. A Nova Geografia Econômica do Brasil: Condicionantes e Implicações.
Resultado do trabalho de pesquisa desenvolvido pelo Centro de Desenvolvimento Regional, da
UFMG/Faculdade de Ciências Econômicas, com o apoio do Ministério da integração Social, do PRONEX
e da FINEP. Cf. o autor: a)” entre 1940 e 1996 o grau de urbanização ( percentual de pessoas vivendo
nas cidades ) subiu de 31% para 78%, variando entre os estados, sendo que em alguns o grau de
urbanização superava 90% ( 95% para São Paulo e 93% para o Rio de Janeiro), enquanto em outros
estados o percentual variava em torno de 50%);b) entre 1960 e 1996, o número de municípios dobrou,
subindo de 2.766 para 5.509.”
20
Janeiro, por exemplo, evoluiu significativamente, em particular, a partir do
século XIX, aumentando ainda mais o grau das desigualdades econômicas e
sociais em relação aos outros estados. Somente a partir do final dos anos 60,
iniciou-se um processo de desconcentração industrial dos referidos estados
para as demais regiões do país; no entanto, este movimento não foi suficiente
para o desenvolvimento das áreas mais pobres, pois as indústrias de grande
porte permaneceram no Sul e Sudeste do país. Para o Nordeste, transferiramse apenas as indústrias têxteis e de calçados40.
Ainda segundo interpretação do mencionado pesquisador,
somente com políticas sérias como: “adaptação da tecnologia de acordo com
as características e potencialidades de cada região, e definição de uma política
urbana e sua articulação com os demais instrumentos existentes” pode-se
pensar em desenvolvimento sustentável e justo. Nesse ponto, é inegável a
importância do papel do Estado na concretização de uma sociedade justa e
solidária, como proclama o art.3°, inciso I, da Carta Constitucional de 198841.
A despeito de algumas iniciativas no sentido de amenizar o
problema da moradia, a crise acentuou-se no decorrer do século XX,
porquanto persistiram os mesmos fatores que desencadearam a situação de
caos, somados a outros tantos, tais como: baixo incentivo e financiamento da
casa própria; a pobreza somada aos baixos salários dos trabalhadores; o
crescimento desenfreado e desestruturado das cidades; a péssima estrutura
das habitações e a exploração imobiliária, cujo objetivo de tal segmento era
essencialmente auferir lucro, construindo casas precárias, com material barato
e de qualidade duvidosa.
Diante dessa realidade, alguns investidores passaram a aplicar
seus recursos no setor imobiliário, que propiciava a realização de lucros
significativos, uma vez que a demanda por moradia era intensa e constante.
Desta forma, surgiram inicialmente as chamadas casas de cômodos42, logo
depois os cortiços-pátio, os quais eram, em regra, construídos precariamente
40
Em que pese tais pólos industriais não terem vantagem comparativa em relação às indústrias de
grande porte, elas contribuíram, ainda que pouco, para o desenvolvimento econômico do nordeste, haja
vista o crescimento das grandes metrópoles nessa região como Recife e Fortaleza.
41
Com efeito, no Brasil adotou-se a federação como forma de Estado, composta pela União, os Estados,
o Distrito Federal e os Municípios, consoante o disposto no art. 18 da Carta Política vigente, sendo todos
autônomos , independentes, e responsáveis pela construção de uma sociedade justa e solidária.
42
BONDUKI. Op. Cit. p. 23. Decorriam da transformação de antigos sobrados em cortiços, de forma muito
precária, para alojar várias famílias.
21
em um quintal, ou em prédio já edificado onde funcionava algum tipo de
comércio43.
Nesse triste cenário, em que a grande massa trabalhadora e suas
famílias viviam de forma degradante, em condições insalubres, sem estrutura
básica, o Estado passou a se preocupar, vez que o problema não se restringia
apenas à falta de moradia - que era considerada fora da esfera da ação
estatal -, mas se refletia também nas questões problemáticas na área da saúde
pública. Vale dizer que o medo de possíveis surtos epidêmicos e seus
respectivos reflexos na economia levou o Poder Público a preocupar-se com o
controle do espaço urbano.
Conforme lição ilustrativa de Nabil Bonduki44, isso ocorreu
basicamente de três formas: “controle sanitário das habitações; edição de
legislação e códigos de posturas; e a participação direta em obras de
saneamento das baixadas, urbanização da área central e implantação de água
e esgoto”. Tais iniciativas eram vistas pelo administrador público como garantia
de se manter a ordem e o equilíbrio social.
Ainda consoante análise do referido autor45, não obstante a
posição dos higienistas de combater as habitações coletivas, sob o argumento
de que a “superlotação, o uso comum de sanitários e a ausência de
saneamento criavam condições para a propagação de doenças contagiosas”,
tais imóveis não podiam ser destruídos, pois isso geraria um problema ainda
maior: deixar ao desabrigo numeroso grupo de trabalhadores de baixa renda.
Nesse paradoxo entre norma e contingência, os proprietários-locadores se
aproveitavam da situação e continuavam construindo casas de baixo custo e
desprovidas de infra-estrutura básica: de fato havia dois cenários distintos; de
43
Idem. Ibidem. p. 23-25. Segundo o autor, tal modalidade de moradia, se é que se pode chamar de
moradia, era construída “quase sempre em um quintal e em um prédio onde há estabelecida uma venda
ou tasca qualquer. Um portão lateral da entrada por estreito e comprido corredor para um pátio com 3 a 4
metros de largo nos casos mais favorecidos. Para este pátio, ou área livre, se abrem as portas e janelas
de pequenas casas enfileiradas, com o mesmo aspecto, a mesma construção(...). Raramente cada
casinha tem mais de 3 metros de largura, 5 a 6 metros de fundo e altura de 3 metros a 3, 5 metros, com
capacidade para quatro pessoas(...) O cômodo de dormir, aposento que ocupa o centro da construção,
não tem luz nem ventilação nem capacidade para a gente que o ocupa à noite(...) São estas casinhas, em
geral, assoalhadas”.
44
BONDUKI. Op. Cit. p. 28-29. Assevera o autor que “no que diz respeito ao controle sanitário, essas
medidas foram marcadas por uma concepção que identificava na cidade e nas moradias as causas das
doenças, as quais seriam extirpadas por meio da regulamentação do espaço urbano e do comportamento
de seus moradores”.
45
Idem. Ibidem. p. 39. Diz o pesquisador que, “embora existam inúmeras referências `a demolição de
habitações tidas como insalubres, nunca o poder público pôde levar a lei ao pé da letra pois isto
significaria deixar ao desabrigo parte dos trabalhadores urbanos”.
22
um lado, o homem com poucos recursos que ansiava por um teto para morar, e
de outro, o capitalista que buscava precipuamente auferir lucro com o
empreendimento imobiliário, sem se preocupar com possíveis seqüelas
decorrentes das más construções.
A fiscalização sanitária manteve-se ativa até meados de 1920,
criando óbices às construções que fugiam aos padrões estabelecidos; porém
sem força para erradicar o problema das construções precárias.
Nesse
período, a aquisição da casa própria pelos trabalhadores era um sonho de
difícil concretização, porquanto o Estado – repise-se - se mostrava ausente no
tocante ao setor, controlado pelo mercado de investidores imobiliários.
De
parte do ente governamental, não havia financiamento ou outra forma de
incentivo à construção de casas pelos próprios trabalhadores (fenômeno
chamado de autoconstrução, que foi amplamente difundido na década de
40 )46.
Na década de 1930 o país foi submetido à ditadura de Getulio
Vargas, período marcado, entre outros fatores de cunho sócio-políticos, pela
expansão de loteamentos clandestinos. O tema “moradia” exsurgiu como
preocupação de interesse público, não apenas no tocante ao aspecto sanitário,
mas também com o intuito ideológico de promover melhores condições de vida
aos trabalhadores, que vivendo bem produziriam melhor. A habitação - não
definida como objeto de cunho social, mas econômico – representava “um
elemento na formação ideológica, política e moral do trabalhador, e, portanto,
decisiva na criação do ‘homem-novo’ e do trabalhador-padrão que o regime
(ditadorial) queria forjar como principal base de sustentação política”, como
elucida Nabil Bonduki.47. O pensamento dominante era o de que o trabalhador,
ao ter acesso à própria casa, se sentiria progredindo e, por conseqüência, teria
maior estímulo para o trabalho.
Nesse contexto, começaram os debates multidisciplinares, com a
participação de diversos atores da sociedade, como advogados, urbanistas,
sociólogos, economistas, demógrafos, empresários, geógrafos e intelectuais da
literatura, que procuravam medidas para resolver o problema da habitação, que
se agrava progressivamente. Em 1931, ocorreu o primeiro Congresso de
46
47
BONDUKI. Op. Cit. p. 39-40.
Idem. Ibidem. p. 73-74.
23
Habitação,
organizado
denominadas
“Jornadas
pelo
de
Instituto
de
Habitação
Engenharia,
Econômica”.
seguido
Nesse
pelas
período,
profissionais da arquitetura e engenharia, inspirados nos debates ocorridos no
segundo Congresso Internacional de Arquitetos Modernos, realizado em
Frankfurt, em 1929, passaram a pesquisar maneiras de baratear a construção
de casas populares, para os trabalhadores de baixa renda. Entre as principais
idéias estava a propositura de possíveis alterações na legislação edilícia,
porquanto as regras vigentes dificultavam a produção em massa dessas
casas48.
No que se refere ao incentivo à construção da casa própria,
merecem destaque os Institutos de Aposentadoria e Pensões, que, malgrado
terem financiado apenas a construção das casas de seus associados, foram os
precursores da iniciativa de minorar a crise da habitação, seguidos pela
Fundação Casa Popular, instituída no governo Dutra, em 1º de maio de 194649.
Ressalte-se que, entre 1937 a 1964, as referidas entidades deram conta de
construir e financiar aproximadamente 143 mil unidades habitacionais
populares50, as quais, em termos proporcionais à demanda, não representaram
significativo avanço, embora não se possa ignorar o esforço empregado.
A moradia era reconhecida como o locus privado e seguro das
pessoas, em prol do bom desenvolvimento familiar; instituição a quem se
atribuía a função de “reproduzir a ordem e a moral estabelecidas (pelo regime
vigente)”51, significando a célula estruturante do indivíduo52. Desta forma, o
acesso à habitação passou a ser peça de oratória recorrente no Estado Novo:
o discurso da valorização do trabalhador era bandeira para veicular suposta
política de proteção às pessoas. Dentre as políticas públicas desenvolvidas por
Getúlio Vargas para amenizar o problema da habitação, destaca-se a
48
BONDUKI. Op. Cit. p. 73-75.
Idem. Ibidem. p. 122-127. Segundo o autor, cabia à Fundação Casa Popular financiar a infra-estrutura
básica de água e esgoto; as construções de casas para trabalhadores de baixa renda; estudar métodos
para baratear a construção etc. Aponta , ainda, o autor que, embora criada para resolver a questão
habitacional, a referida fundação “transformou-se num órgão dominado por práticas venais e pressões
políticas rasteiras”.
50
RODRIGUES, Arlete Moysés. Moradia nas Cidades Brasileiras: habitação e especulação, o direito à
moradia, os movimentos populares. São Paulo: Editora Contexto, 2001. p. 56.
51
BONDUKI. Op. Cit. p. 82-84.
52
É de se verificar que a Carta de 1937 dedicava especial atenção à família, conforme se depreende do
art. 124, in verbis: “ a família, constituída pelo casamento indissolúvel, está sob a proteção especial do
Estado. Às famílias numerosas serão atribuídos compensações na proporção de seus encargos”. A
despeito de tal previsão constitucional, a realidade concreta era bem diferente.
49
24
denominada Lei do Inquilinato (Decreto-Lei nº 4.598/42), que determinou o
congelamento dos aluguéis, impediu a cobrança de qualquer tributo ou luvas
do locatário em relação aos imóveis locados, e previa, ainda, o crime contra a
economia popular, na hipótese de inobservância das referidas regras53.
Todavia, a Lei do Inquilinato, que, supostamente, pretendia tutelar
os interesses dos locatários, provocou outras graves seqüelas, como os
despejos em massa54. Os locadores, inconformados com o congelamento dos
aluguéis, ao vencer o contrato de locação, solicitavam o imóvel, para depois
locá-lo a outra pessoa, por valor maior.
Frente ao dilema, o então Presidente Eurico Gaspar Dutra decidiu
modificar o diploma normativo sobre locação, para tanto, quis ouvir a
sociedade, que, nesse mister, contribuiu com mais de mil sugestões, desde a
possibilidade de revogação das regras em vigor, até a drástica medida de
seqüestro dos imóveis desocupados por período superior a 60 dias55. Nessa
batalha, apesar de, aparentemente, ter como prejudicados apenas os menos
capacitados economicamente, os problemas sociais decorrentes do deficit
habitacional geravam, ainda que por via oblíqua, prejuízos para todo o corpo
social, pois a miséria, a exclusão social, a insegurança e a violência, somados
às questões urbanísticas, atingiam todas as esferas sociais, ou seja, a crise
habitacional tinha conseqüências de diversas ordens, atingindo pobres e ricos.
53
BONDUKI. Op. Cit. p. 83; 209; 214-216. Cumpre frisar que, até 1940, a exploração imobiliária era muito
forte, a maioria das pessoas pagava aluguel e os proprietários dos imóveis visavam, essencialmente, a
auferir os rendimentos oriundos dos contratos de locação; não se preocupando com a manutenção das
moradias. Estima-se que, só em São Paulo, cerca de 70 % das moradias eram para aluguel. Tal situação
exigiu a intervenção do Estado, que, na gestão do ex-presidente Getúlio Vargas, assumiu feição de
caráter social, pois envolvia o bem estar do trabalhador. Preleciona o autor que, “ até a década de 30, era
raro que operários e trabalhadores de baixa renda fossem donos de suas moradias – e mesmo grande
parte da classe média ocupava casas de aluguel. Como o Estado não se imiscuía na provisão de
moradias subsidiadas, não havendo linhas de financiamento nem esquemas que facilitassem a
construção de casas na periferia dos núcleos urbanos pelos próprios trabalhadores ( ... ), era muito difícil
para qualquer assalariado adquirir um bem cujo valor absoluto ultrapassava em muito seus rendimentos
mensais e sua capacidade de poupança.”
54
Idem. Ibidem. p.259-264. Os trabalhadores e suas famílias, por conta dos despejos em massa,
encontraram nas favelas e nos loteamentos clandestinos uma saída para o seu problema de moradia.
55
Idem. Ibidem. p. 254-264. Aponta Nabil Bonduki que “sem poder aumentar o aluguel legalmente do
inquilino, os locadores tentavam usar violência ou coerção para, numa nova locação, se beneficiar de um
mercado desfavorável para os inquilinos. Os locadores passaram a cobrar luvas para alugar imóveis
residenciais, uma prática até então restrita aos aluguéis comerciais (...). Somente quem tivesse alguma
capacidade de poupança conseguia alugar um imóvel, o que excluía trabalhadores pauperizados e
migrantes recentes”.
25
Depois de constantes alterações, o Decreto-Lei 4.598/4256 foi
revogado pelo Decreto-Lei 9.669/46, o qual passou a regular a matéria de
forma totalmente inovadora. Entre as novas regras, cumpre, de pronto,
destacar, por exemplo: a admissão de aumento dos aluguéis em percentuais
que variavam de 15 a 20%; a extensão da possibilidade de requerimento de
despejo ao locador, vez que, no diploma anterior, somente o proprietário tinha
legitimidade para fazê-lo; e o afastamento da regra que tratava como crime
contra a economia popular57 violação às normas locatícias.
As sucessivas mudanças normativas seguiram-se, até chegar a
atual Lei 8.245/91, a qual prevê, entre as garantias do contrato de locação, a
fiança, que será objeto de estudo no Título II, deste trabalho.
Apesar das medidas adotadas pelo governo federal, a década de
40 foi marcada pelo aumento da complexa crise habitacional, causada por
diversos fatores, tais como: os nefastos efeitos da Segunda Guerra Mundial; a
escassez e o alto preço de mercadorias; e o elevado contingente de imigrantes
estrangeiros que desembarcavam no território brasileiro, à procura de um “novo
mundo” para viver, trabalhar e se desenvolver.
Seguramente, diante da exacerbada demanda por um teto e da
sua pouca oferta, o acesso à moradia tornou-se um desafio a ser enfrentado
por significativo número de pessoas. Na ânsia de encontrar um lugar para
morar, o trabalhador procurou o caminho dos lotes irregulares e, de forma
autônoma, passou ele próprio, com a ajuda da família e de amigos, a construir
a sua casa - era o fenômeno da auto-construção surgindo de forma acentuada
– método, aliás, ainda muito utilizado na atualidade.
Ao analisar o problema, Nabil Bonduki58 explicita que:
56
No período de 1943 a 1945 vários diplomas normativos modificaram o Decreto- Lei 4.598/42: 1)
Decreto-Lei 1.593/43 estendeu as regras vigentes a todos tipo de locação, antes somente para locação
residencial, e definiu os casos de despejo ( dentre eles,a possibilidade de o locador solicitar o bem para
realizar obra de proporções maiores); 2) Decreto-Lei 6.739/44 limitou os aluguéis de móveis a 30% do
valor total da locação e permitia a avaliação periódica do imóvel para fins de redução do aluguel e limitava
o prazo de desocupação dos imóveis para locação por período superior a 60 dias; e 3) Decreto-Lei
7.466/45 não trouxe significativas alterações.
57
BONDUKI. Op. Cit. p. 214-215. Segundo o autor, logo após a edição do Decreto-Lei 9.666/46, o
governo publicou o Decreto-Lei 9.840/46 prevendo as hipóteses de crime contra a economia popular,
dentre as quais estavam as regras de locação. Ressalte-se, entretanto, que “esse enquadramento
mostrou-se inócuo, porque as penas frente aos delitos cometidos eram de tal gravidade que os Tribunais
foram levados a surpreendentes absolvições”.
58
Idem. Ibidem. p.288-289.
26
a omissão do Poder Público na expansão dos loteamentos
clandestinos fazia parte de uma estratégia para facilitar a
construção da casa pelo próprio morador que, embora não
tivesse sido planejada, foi se definindo na prática como um modo
de viabilizar uma solução habitacional ‘popular’, barata,
segregada, compatível com a baixa remuneração dos
trabalhadores e que, ainda, lhes desse a sensação, falsa ou
verdadeira, de realizar o sonho de se tornarem proprietários(...).
À época, os loteadores, investidores no mercado imobiliário,
descontentes com as regras de locação, resolveram apostar na venda de lotes
de baixo custo na periferia, para pagamento em prestações, amparados na
legislação federal, o Decreto-Lei nº 58, de 10 de dezembro de 1937, que, em
muitos aspectos foi omisso, especialmente ao não prever qualquer instrumento
de controle de ordem urbana, ou sanção na hipótese de descumprimento de
alguma formalidade exigida no diploma legal. Nesse sentido, preleciona, ainda,
o mencionado autor59:
Admitir a clandestinidade como regra significava dar total
liberdade ao loteador, que agia apenas em função do mercado,
ou seja, do preço adequado à sua clientela. O padrão dos
loteamentos, portanto, variava bastante. O certo é que, para os
trabalhadores de baixa renda, sempre haveria um grande
estoque de terrenos em loteamentos nos quais pouco ou nada
fora investido.
Havia, na realidade em tela, um quadro com duas paisagens
distintas: de um lado, a cidade formal e legal, para aqueles que detinham poder
de compra para adquirir bens imóveis em áreas consideradas nobres, com total
infra-estrutura de água, esgoto, vias públicas e transporte; de outro lado, a
cidade informal, ilegal, criada por aqueles que pouco ou nada tinham, como
ensina Luiz Edson Fachin60.
Apesar dos percalços encontrados ao longo do difícil caminho
percorrido pela população em termos de enfrentamento da questão
habitacional no Brasil, é possível encontrar sementes positivas, como, as já
mencionadas, construções realizadas pelos Institutos de Aposentadoria e
59
BONDUKI. Op. Cit. p. 288-290.
FACHIN, Luiz Edson.
Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo.
Renovar, 2006. p. 278.
60
2 ed. Rio de Janeiro: Editora
27
Pensão ( IAPS ) e pela Fundação Casa Popular, nas décadas de 1930 e 1940.
É oportuno, destacar, entrementes, que as soluções encontradas não têm sido
eficientes para sanar o problema: o panorama é o de cidades excludentes e
meio-ambiente em processo constante de deterioração, em particular, pela
ausência de políticas de ordenação urbana e de adoção de regras edilícias
específicas para moradores de baixa renda.
Nessa trilha, em 1964, o governo federal criou o Banco Nacional
da Habitação, por meio da Lei 4.380/64, a qual instituiu o Sistema Financeiro
da Habitação, com vistas a fomentar o acesso à casa própria e possibilitar que
as classes economicamente marginalizadas tivessem acesso a financiamentos
com juros mais baixos.61 Tal diploma legal sofreu diversas alterações e,
atualmente, no Brasil, existem vários sistemas de financiamento imobiliário, o
Sistema Financeiro de Habitação, que passou a ser administrado pela Caixa
Econômica Federal, empresa pública federal, após a extinção do Banco
Nacional de Habitação; o Sistema Financeiro Imobiliário, criado pela Lei
9.514/97, que prevê a alienação fiduciária em garantia de coisa imóvel,
podendo ser contratada por pessoa física ou jurídica;62 o Sistema de
Arrendamento Residencial, Lei 10.188/2001, alterada pela Medida Provisória n°
350 de 22 de janeiro de 200763, que acrescentou mais uma modalidade de
arrendamento; e o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social64,
61
SOUZA. Op. Cit. pp.53-54
GODOY, Luciano de Souza. O Direito à Moradia e o Contrato de Mútuo Imobiliário. Rio de Janeiro:
Editora Renovar, 2006.pp.138-141.
63
Ver Medida Provisória n° 350/2007, “ art. 1°. Fica instituído o Programa de Arrendamento Residencial
para atendimento da necessidade de moradia da população de baixa renda, nas seguintes modalidades:
I. arrendamento residencial com opção de compra; II. alienação”.
64
Cf. OSÓRIO, Letícia. Texto elaborado por delegação do Fórum Nacional de Reforma Urbana.
Disponível em: <www.fna.org.br/textos>. Pesquisa realizada em 12/12/2007. “Em maio de 2002 foi
instituído o Programa de Subsídio à Habitação de Interesse Social, com o objetivo de complementar, no
ato da contratação, a capacidade financeira do proponente para pagamento do preço do imóvel ou o valor
necessário para assegurar o equilíbrio econômico-financeiro das operações realizadas por instituições
financeiras (relativas às despesas de contratação, administração e cobrança e aos custos de alocação,
remuneração ou perda de capital). Os recursos são oriundos do Tesouro Nacional e o empréstimo deverá
comprometer até 20% da renda familiar bruta do beneficiário, com taxas de juros de 6% ao ano. O
programa prevê a complementação da capacidade financeira do proponente que recebe renda mensal
máxima de R$ 580,00. Apesar de ser um programa importante para garantir moradia às famílias de baixa
renda, os seus resultados ainda não podem ser avaliados porque recém foi iniciada a habilitação dos
agentes financeiros aos recursos disponíveis”. Com efeito, de acordo com dados do Ministério das
Cidades, no estado do Rio de Janeiro, 46 municípios já aderiram ao Programa Nacional de Habitação de
Interesse Social, instituído pela Lei 11.124/2005, entre eles estão os municípios de: Mesquita 24/11/2006;
Niterói 27/11/2006; Petrópolis 29/11/2006; Nova Friburgo 20/11/2006; Nova Iguaçu 23/1/2007; Porto Real
18/12/2006; Rio das Ostras 26/1/2007.
62
28
previsto no diploma legal 11.124/200565, cujo principal objetivo “é viabilizar à
população de baixa renda o acesso à terra urbanizada e à habitação digna e
sustentável”, nos termos do art. 2° da referida lei.
Atualmente, primeira década do século XXI, o governo federal
tem-se empenhado para, se não erradicar, pelo menos amenizar o dilema do
deficit habitacional. Para tanto, o Ministério das Cidades, por meio da
Secretaria Nacional de Habitação, promove a Campanha “Direito à Moradia”,
com vistas a incentivar os governos estaduais e municipais, bem como as
organizações da sociedade civil para o incremento e a estruturação do Sistema
Nacional de Habitação de Interesse Social - SNHIS e do Fundo Nacional de
Habitação de Interesse Social – FNHIS66.
Cumpre destacar que a iniciativa privada também tem se
mobilizado para incentivar o acesso à moradia, não obstante o móvel, na
maioria dos casos, ser basicamente a busca de novos investimentos67, sem a
preocupação de dar vida à função social do contrato e da apropriação.
Ressalte-se, todavia, que o incremento do crédito para a compra da tão
sonhada casa própria constitui estímulo para que se caminhe em direção ao
final da crise habitacional, o que propiciará a realização do direito humano
fundamental à moradia e de outros valores a ele correlacionados, como a
dignidade humana.
Nesse contexto, importante realçar que o direito à moradia, no
âmbito internacional, já há muito foi alçado ao status de direito humano, natural
65
A Lei nº 11.124/05 é uma conquista da cidadania popular, pois, trata-se do primeiro projeto de lei de
iniciativa popular aprovado no Congresso Nacional. O grande desafio posto pelo novel está na
determinação de que estados e municípios criem os fundos de habitação de interesse social e seus
conselhos gestores participativos, além de elaborarem os planos de habitação de interesse social.
66
BRASIL. Poder Executivo. Ministério das Cidades. Disponível em: < www.cidades.gov.br>. Pesquisa
realizada em 30/09/2007.
67
DURÃO, Vera Saavedra. Segmentos de pessoa física e habitação devem elevar o volume para 40,7%
do PIB no final de 2009: Crédito continuará em alta, diz BNDES. Jornal O VALOR, São Paulo, 28/29/30
set.2007. p. C1. Conforme relata a jornalista, um estudo desenvolvido pelo BNDES, estima um acentuado
aumento da procura pelo crédito imobiliário nos próximos dois anos, elevando o PIB de 33% para 40,7%
até o final de 2009. No mesmo sentido, CARVALHO, Maria Christina; TRAVAGLINI, Fernando.
Financiamento Imobiliário, instituições adotam modelo inovador, inspirados no crédito consignado: bancos
pequenos acirram competição. Jornal O VALOR. São Paulo, 27, set. 2007, p. C1. Segundo apontam os
jornalistas, as instituições financeiras buscam a garantia de seu crédito utilizando o sistema de alienação
fiduciária, regulada pela Lei 9.514/97, e não o regime de hipoteca. A vantagem da alienação fiduciária em
relação `a hipoteca é que, aquela, por ser proprietário ( propriedade resolúvel ) do bem o credor, a
retomada, na hipótese de inadimplemento do devedor, se dá por meio de ação possessória. Ao passo
que, com relação à hipoteca, o credor terá que deflagrar um processo de execução, uma vez não paga a
dívida, o bem irá à hasta pública.
29
e decorrente da dignidade da pessoa, como se depreende, por exemplo, da
Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, que em seu inciso
XXV, item I, assim dispõe: “Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz
de assegurar a si e a sua família saúde, bem estar, (...) habitação.”
No território brasileiro, a Constituição “cidadã” de 1988, como a
denominou o ex-deputado Ulisses Guimarães (Presidente da Assembléia
Nacional Constituinte), a despeito de ser um marco no constitucionalismo
brasileiro no tocante aos direitos humanos fundamentais, somente agasalhou,
de forma expressa e autônoma, o direito à moradia após doze anos de sua
edição,68 em 2000, por meio da Emenda Constitucional número 26: malgrado,
já era possível enxergá-lo no texto constitucional vigente no art. 7°, inciso IV,
que trata do salário-mínimo, como fator necessário para atender às
necessidades básicas do trabalhador, entre elas a moradia; no art. 183, que
prevê o usucapião urbano, hoje regulamentado pela Lei 10.257/2001- Estatuto
da Cidade; e no art. 191, que consagra o usucapião rural.
Não obstante a Carta de 1988 inserir o direito humano
fundamental à moradia no rol dos direitos sociais, defende-se, neste trabalho, a
tese de que tal direito não se subsume, exclusivamente, a essa espécie, tendo
em vista ser pressuposto para a realização de muitos outros direitos e valores,
como, à guisa de exemplo, pode-se destacar: a dignidade da pessoa humana,
esta elevada à condição de diretriz de todos os sistemas sociais (normativo,
econômico, social entre outros); a vida69; a segurança; a saúde; a educação; a
cidadania; o lazer e o pleno desenvolvimento. Nesse sentido, conforme já
mencionado na parte introdutória deste capítulo, se posicionaram os autores da
proposta de emenda constitucional que culminou com a edição da já referida
Emenda Constitucional nº 26 de 2000, a qual consagrou no art. 6º da Carta de
1988, o direito humano fundamental à moradia70. Não resta dúvida que tal valor
68
Na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, o direito à moradia está previsto no capítulo
II, destinado aos Direitos Sociais, dentro do Título II referente aos Direitos e Garantias Fundamentais.
69
FACHIN, Luiz Edson. Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora
Renovar, 2006. p. 1. No tocante à existência plena, o ser humano, além dos direitos inerentes à sua
condição, deve ter direito a um patrimônio mínimo “mensurado consoante parâmetros elementares de
uma vida digna e do qual não pode ser expropriado ou desapossado”, ensina o autor.
70
SOUZA, Sérgio Iglesias Nunes de. Direito à Moradia e de Habitação. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2004. pp.159-163. Para o autor, há distinção entre moradia e habitação, pois, enquanto a
moradia consiste em um bem irrenunciável da pessoa natural; a habitação, por sua vez, seria o exercício
efetivo da moradia. Embora respeitável tal posição, esta não encontra eco na doutrina pátria e nem nos
documentos estrangeiros, que, normalmente, se referem à habitação como sinônimo de moradia. No
Brasil, a título de exemplo, vale mencionar Silvio de Salvo Venosa. In: Direito Civil: Parte Geral. Vol. 1.
30
é, ao mesmo tempo, direito e garantia, visto que, o indivíduo, além de ter o
direito subjetivo à moradia, ele deve ter a garantia de poder exercer tal direito,
sob pena de violação de outros valores, consoante já por diversas vezes aqui
esposado.
Na realidade, ao se sustentar a fundamentalidade do direito à
moradia como requisito necessário à realização de outros valores se está a
defender uma vida digna em uma cidade sustentável, razão pela qual no
próximo tópico analisar-se-á o espaço urbano, tendo em vista a conexão do
mesmo com o tema da habitação.
I. 2. Espaço Urbano como Locus de Exercício da Cidadania
A complexidade tem sido a tônica norteadora das sociedades em
geral e, por conseguinte, das relações interpessoais, o que, por si, demanda
análise multidisciplinar das questões sociais. Nesse contexto, o espaço urbano
é um dos elementos que compõem o conjunto de complexidades,
ultrapassando o mero limite geográfico, alcançando indubitavelmente o
desenvolvimento
sócio-econômico-cultural
de
uma
comunidade.
A
complexidade, portanto, é dado de realidade que caracteriza as sociedades
modernas, o que exige, cada vez mais, a presença de regras, com padrões
pré-estabelecidos pela própria coletividade, a fim de garantir um razoável bemestar para todos, e é nesse ponto que o direito à liberdade no espaço urbano
encontra seus limites.
Ao pensar em liberdade, torna-se imperioso trazer à luz a
contribuição
filosófica
de
John
Locke,
cujas
idéias
influenciaram
significativamente as revoluções americana e francesa, as quais também foram
inspiradas pelo pensamento dos filósofos iluministas Voltaire e Montesquieu.
Para John Locke71 “o objetivo capital e principal da união dos homens em
comunidades sociais e de sua submissão a governos é a preservação de sua
São Paulo: Editora Atlas, 2001, p. 187 et seq.; no direito comparado, pode-se citar a Declaração sobre
Assentamentos Humanos de Vancouver de 1976, adotada pela primeira Conferência das Nações Unidas
sobre assentamentos humanos. Entende-se também que a distinção proposta pelo autor não tem
relevância, especialmente pelo fato de que moradia e habitação não se dissociam, por isso, usar-se-á
neste trabalho as duas palavras como sinônimas.
71
LOCKE, John. Segundo Tratado Sobre o Governo Civil e Outros Escritos. Tradução Magda Lopes
e Marisa Lobo da Costa. 3. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2001. p. 156 et seq. Para este pensador, os
homens necessitavam de leis para disciplinar suas condutas e de juizes imparciais para dirimir possíveis
conflitos.
31
propriedade” que, para ele, abrange a vida, a liberdade e os bens do indivíduo.
Nesse diapasão, Ricardo Lobo Torres72 esclarece que a liberdade representa
um “valor fundamental da pessoa humana e um dado existencial”, e está
intimamente ligado aos direitos naturais, que são, além de inalienáveis, como
afirmou John Locke, imprescritíveis, permanentes, preexistentes à Carta
Constitucional, e oponíveis a todos.
Com viés econômico, e partindo da idéia de desenvolvimento,
Amartya Sen73 aborda a liberdade sob variadas perspectivas, que denomina de
“liberdades
instrumentais”,
quais
sejam:
“as
liberdades
políticas”,
consubstanciadas nos direitos civis e políticos; isto é, no efetivo exercício de
cidadania; “as facilidades econômicas”, configuradas nas possibilidades
econômicas das pessoas; “as oportunidades sociais” vinculadas ao ideal de
vida digna; “as garantias de transparência”, vinculadas ao princípio da
confiança e da boa-fé; e “a segurança”, cuja ratio subjacente é proteger as
pessoas da “miséria abjeta”, ensina o mencionado autor.
Por seu turno, José Afonso da Silva74, ao discorrer sobre o tema,
preleciona que a liberdade pode ser analisada sob dois aspectos: o subjetivo,
que seria a liberdade interna, relacionada à manifestação intrínseca de vontade
da pessoa; isto é, o livre arbítrio; e o aspecto objetivo, consistente na liberdade
de exteriorização da vontade para o mundo real, o que, por sua vez, é
compatível com a idéia de liberdade para fazer o que se quer. É nesse ponto
que repousam os limites normativos à liberdade, a fim de garantir a harmonia
social.
Como visto, a liberdade está longe de ser um conceito unívoco e
estático; primeiramente, por seu escopo histórico, que varia no tempo e no
espaço, e depois, porque o próprio processo hermenêutico permite diferentes
concepções de liberdade: todavia, um elemento comum une as diversas
72
TORRES, Ricardo Lobo. A Metamorfose dos Direitos Sociais em Mínimo Existencial. In: SARLET, Ingo
Wolfgang (organizador). Direitos Fundamentais Sociais: Estudos de Direito Constitucional, Internacional
e Comparado.” Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 01-38.
73
SEN, Amartya. Desenvolvimento como Liberdade. Tradução Laura Teixeira Motta. Revisão Técnica
Ricardo Doninelli Mendes. 6ª reimpressão. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2007. p.18-31.
74
SILVA, José Afonsa da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 17. ed. rev. e atual. São Paulo:
Editora Malheiros, 1999. p.234 et seq.
32
proposições: a conexão com os direitos humanos fundamentais.
Nessa linha
argumentativa, John Rawls75 ensina que:
First of all, it is important to recognize that the basic liberties must
be assessed as whole, as one system. That is, the worth of one
liberty normally depends upon the specification of other liberties,
and this must taken into account in framing a constitution and in
legislation generally76.
É notável a defesa do autor, no sentido de que o papel da
liberdade, dentro de um sistema, deve respeitar os limites delineados pela
Constituição e pelas normas infraconstitucionais em geral. Tais limites, no
entanto, devem estar em sintonia com os direitos humanos fundamentais e
com o princípio da dignidade da pessoa humana, pois, do contrário, admitir-seia um estado de direito que privilegia a lei, independentemente de seu
conteúdo.
Na concepção de liberdade, expressão natural do ser humano,
encontra respaldo a noção de desenvolvimento urbano que, se não gerenciado
pelo Poder Público, pode trazer conseqüências prejudiciais para a sociedade.
Aliás, tais conseqüências já são claramente observáveis no cotidiano do
homem urbano, como por exemplo: falta de estrutura básica de água e esgoto,
especialmente nas áreas em que residem comunidades de baixa renda;
ausência de regras específicas para facilitar a construção de casas para a
população pobre; o uso descontrolado do espaço urbano; e a deficiência nos
serviços de transporte coletivo. Nessa toada, Amartya Sen77 anuncia:
o desenvolvimento requer que se removam as principais fontes
de privação de liberdade: pobreza e tirania, carência de
oportunidades econômicas e destituição social sistemática,
negligência dos serviços públicos e intolerância ou interferência
excessiva de Estados repressivos (...).
Às vezes a ausência de liberdades substantivas relaciona-se
diretamente com a pobreza econômica, que rouba das pessoas
a liberdade de saciar a fome, de obter uma nutrição satisfatória
ou remédios para doenças tratáveis, a oportunidade de vestir-se
75
RAWLS, John. A Theory of Justice. Cambridge: The Belknap Press of Harvard University Press, 1971.
p.203.
76
Tradução livre: “Inicialmente, é importante reconhecer que as liberdades essenciais devem ser
analisadas a partir do sistema normativo como um todo. Isto é, o valor de uma liberdade depende, em
regra, da análise de outras liberdades, considerando a normativa constitucional e infraconstitucional”.
77
SEN. Op. Cit. p. 18.
33
ou morar de modo apropriado, de ter acesso a água tratada ou
saneamento básico.
Na linha de raciocínio do mencionado economista constata-se
que a cidade informal resulta de vários fatores, dentre os quais destacam-se, a
miséria, que dilacera a dignidade das pessoas, e o conjunto de normas
restritivas impostas pelo Poder Público municipal para a construção de
moradias.
Não se está, obviamente, advogando a ausência de regras
edilícias; sobretudo, porque elas são necessárias para uma cidade sustentável;
o que se defende, na verdade, é a criação de normas mais acessíveis para o
cidadão de baixa renda, que não tem condições de preencher as exigências
da lei municipal, vez que é comum, como já dito, a autoconstrução78; ou seja, a
própria pessoa constrói a sua casa, o que, normalmente, ocorre nos fins de
semana, com a ajuda da família, de parentes e amigos, em terrenos que,
muitas vezes, não há título de propriedade reconhecido, embora, não raro, já
exista o direito subjetivo à propriedade, por conta do usucapião.
Sem dúvidas, o regramento, a despeito de ser condição sine qua
non para a manutenção da ordem urbana e para a construção de uma cidade
sustentável, não pode servir de instrumento de exclusão social, afastando o
direito à cidade formal àqueles que não têm condições de preencher o que
exige a lei municipal.
É cediço que a vida urbana socialmente aceita; isto é, aquela em
que existe um consenso quanto ao respeito às regras impostas, implica certas
restrições ao direito de liberdade dos cidadãos, disso todos têm consciência, ou
pelo menos, supõe-se que tenham. A despeito dessa premissa, muitas vezes
as regras impostas são inobservadas, como é o caso das construções
irregulares, incluindo aí, as favelas, mas não podem ser refutados fatores
sociais e fundamentais, como: a sobrevivência, a segurança e a vida digna,
que se impõem diante da abstração da lei. Afinal, um teto para servir de abrigo
78
BONDUKI. Op.Cit. O autor relata que na década de 40, o auto-empreendimento, isto é, a construção da
casa pelo próprio trabalhador, decorreu especialmente em razão de alguns fatores: 1) o problema do
déficit habitacional somado às péssimas condições dos cortiços oferecidos para locação; 2) grande oferta
de lotes baratos, malgrado distantes do ambiente laboral, e sem uma infra-estrutura urbana básica; 3) o
pagamento era feito em diversas parcelas; e 4) não havia fiscalização municipal, logo não havia exigência
de projeto de construção, de planta etc. p. 287.
34
é necessidade natural do ser humano, além de ser pressuposto para o seu
pleno desenvolvimento.
Nesse diapasão, segue o pensamento de Ricardo Pereira Lira79,
que, há muito, estuda as questões urbanísticas, merecendo destaque sua
contribuição, no período da elaboração da Constituição de 1988, com a
apresentação de algumas sugestões, entre elas:
a) a idéia de que o direito de propriedade deve ser garantido
pela Constituição, mas seu conteúdo limitado pela justiça
social; e
b) a inclusão do direito à moradia digna no rol dos direitos
individuais ou entre os direitos sociais.
Segundo entendimento do mencionado pensador80, a propriedade
urbanística deve ser analisada a partir da imbricação com o espaço urbano,
partindo-se do pressuposto de que o “urbanismo é uma função pública e não
um conjunto de faculdades privadas”. Ele sugere ainda a criação de novos
institutos jurídicos, a fim de que seja possível desvincular o direito de
propriedade do direito de construir; proibir a especulação imobiliária; e viabilizar
a titulação e urbanização de favelas e loteamentos irregulares.
De fato, o tema “espaço urbano” tem mobilizado diversos
segmentos da sociedade brasileira e, à guisa de exemplo, vale mencionar os
cursos de pós-graduação em Direito da Cidade, promovidos pela Universidade
Estadual do Estado do Rio de Janeiro81, e o Programa de Gestão Urbana,
desenvolvido pelo Banco Mundial desde 199682 o qual representa passo
importante no sentido de colaborar com os países em desenvolvimento, a fim
de buscar soluções para combater a pobreza.
79
LIRA, Ricardo Pereira. O Uso Social da Terra, Sugestões à Constituinte. Revista de Direito da
Procuradoria Geral do Estado. Rio de Janeiro, n. 38, p. 6-12, 1986.
80
LIRA. Op. Cit. ( 1986 ). Na época da elaboração da Constituição, o autor constatou que a Itália tinha a
legislação mais avançada sobre o uso do espaço urbano. Consoante o disposto na Lei 10/77, o direito de
parcelar e construir na Itália “deixou de ser um direito subjetivo do dono do solo ao qual corresponde um
dever jurídico da Administração Municipal. O direito de parcelar e construir não existe mais
endogenamente posto dentro da senhoria, inerente ao direito de propriedade, como simples manifestação
do exercício deste. Ele surge exogenamente, de fora para dentro, separado do direito de propriedade,
como concessão da municipalidade”. Ainda, segundo Achille Cutrera, citado pelo autor, “a possibilidade
de fruir o terreno para fins edilícios é atribuída ao proprietário da área por ato administrativo”. p. 7.
81
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO ( UERJ ). Departamento de Pós-graduação.
Disponível em: < http://www.uerj.br> . Pesquisa realizada em 13/05/2007.
82
BANCO MUNDIAL. Opciones para políticas y programas de reducción de la pobreza urbana.
Washington.DC.U.S.A. Editora Cpyright Clearance Center, Suite 910, Massachutts, 1923.
35
Vale ressaltar que o referido programa visa a elaborar e promover
políticas e instrumentos eficazes, como garantir a função social da terra; criar
infra-estrutura básica de água e esgoto; garantir um meio ambiente saudável;
além de fazer parcerias com organismos nacionais, regionais e internacionais,
para que haja troca de informações e experiências. O documento em exame
serve como referência aos municípios, na busca de soluções próprias no
combate e controle da pobreza urbana83. É fato, entretanto, que a execução de
programas desse tipo exige do governo local a superação de alguns
obstáculos, como: falta de vontade política; inexistência de projetos sobre
habitação e saneamento, bem como a carência de pessoal tecnicamente
preparado para elaborar os referidos projetos84. Não resta dúvida de que, para
desenvolver programas de habitação e infra-estrutura de saneamento básico, é
essencial a presença de profissionais qualificados. Na realidade, para
desempenhar de forma eficiente seu papel, o governo municipal precisa da
cooperação dos demais entes políticos e da participação da sociedade85,
concretizando, assim, o princípio da solidariedade.
Por falar em solidariedade, é imperioso reconhecer que, à época
da preparação da Carta Constitucional de 1988, a sociedade, mobilizada com
as questões urbanísticas e habitacionais, encaminhou uma série de sugestões
à Constituinte. Nesse diapasão, Miguel Lanzelloti Baldez86, na defesa da união
de forças como energia vital na luta pela reforma urbana, argumentava que os
trabalhadores, unidos por meio de associações de moradores, deveriam
participar “permanentemente das discussões e decisões relativas à definição e
construção da cidade”. Ainda, durante o processo de elaboração da
Constituição, o mencionado autor propugnava a soberania popular87 em
83
Os destinatários do programa são: os governantes, as sedes regionais do Programa de Gestão Urbana
e os organismos nacionais, regionais e internacionais.
84
DOCA, Geraldo. Procuram-se Projetos. Jornal O GLOBO, Rio de Janeiro: Tiragem de 11 de fevereiro
de 2007. O artigo traz dados preocupantes, como a falta de projetos na área de habitação e saneamento
básico, e aponta, consoante informações do Ministério do Planejamento, “dos cerca de 5.600 municípios
brasileiros, apenas 300 já apresentaram projetos ao governo federal para obter financiamento na área da
habitação e saneamento(... )”. p.33.
85
WERNECK, Augusto. Função Social da Cidade. Plano Diretor e Favela. A Regulação Setorial nas
Comunidades Populares e a Gestão Democrática das Cidades. In: COUTINHO, Ronaldo; BONIZZATO,
Luigi. ( Coordenadores ). Direito da Cidade: Novas Concepções sobre as Relações Jurídicas no Espaço
Social Urbano. Rio de Janeiro: Editora Lumen Júris, 2007.
86
BALDEZ, Miguel Lanzelloti. Solo Urbano; reforma, propostas para a Constituinte. Revista de Direito
da Procuradoria Geral do Estado. Rio de Janeiro, n. 38, p. 104-115. 1986.
87
Idem. Ibidem. Para o autor a soberania popular consagra a idéia de conjunto de mecanismos idôneos a
garantir a participação direta e permanente das organizações populares em todos os âmbitos do Estado.
p. 116.
36
substituição à soberania nacional, a instituição do usucapião especial urbano e
o reconhecimento da legitimação das associações para representarem em
juízo os interesses das comunidades.
Segundo alguns autores88, a Constituição de 1988 simboliza o
marco do Direito Urbanístico e Ambiental, porquanto estabelece um rol de
princípios e diretrizes que orientam os entes federados e a sociedade em geral,
no sentido de proteger o espaço urbano e o meio ambiente. Foi também a
Carta Maior que elevou os Municípios à categoria de entes da federação, ao
lado dos Estados e do Distrito Federal, alargando o rol de competências
materiais daqueles entes, razão suficiente para justificar o papel dos governos
municipais à frente dos programas sociais. Em primeiro lugar, porque o
governo municipal está mais próximo do povo, podendo, por meio de
plebiscitos e referendos, ouvir os seus outorgantes ( os cidadãos ) sobre os
assuntos de interesse comum ligados à comunidade; em segundo lugar, é na
cidade que ocorrem as prestações cotidianas de serviços, como a manutenção
das vias públicas, dos parques, o provimento de serviços de água e esgoto, de
saúde, educação, ordenamento de trânsito, segurança e assistência social.
A esse respeito, não há dúvida de que o governo municipal está
mais próximo da população, o que facilita sobremaneira diagnosticar e resolver
os problemas sociais89.
Outro objeto de preocupação da sociedade e das autoridades
públicas diz respeito à questão da violência urbana, e a indagação que surge é
acerca dos motivos pelos quais, no Brasil, a segurança pública é da
competência da União e dos Estados-membros, restando às municipalidades
apenas a proteção de seus bens, consoante o disposto no art. 144, par. 8°, da
Carta Constitucional de 1988. Ora, o combate e o controle da violência deveria
88
JARDIM, Zélia Leocádia da Trindade. Regulamentação da Política Urbana e Garantia do Direito à
Cidade. In: COUTINHO, Ronaldo; BONIZZATO, Luigi. Direito da Cidade: Novas Concepções sobre as
Relações Jurídicas no Espaço Social Urbano. Riio de Janeiro: Editora Lumen Júris, 2007.
89
GOMES, ALINE ; AMATO, GIAN. Baderna Permitida. Revista Zona Sul. Rio de Janeiro: Editora O
GLOBO, 24/08/2006. p. 21-24. O artigo, que parece servir também como um desabafo dos autores, aponta
as irregularidades cometidas, ou seja, abissais violações ao direito de liberdade no espaço urbano. “A
certeza da impunidade permite que cerca de 30 mil vans e kombis ilegais circulem pela cidade”,
asseveram os autores. Não se pode, todavia, olvidar que a oferta de trabalho no mercado formal está cada
vez mais escassa, o que tem obrigado as pessoas a procurar o trabalho autônomo, como o serviço de
transporte coletivo, mas o que a sociedade não pode aceitar é o exercício irregular e irresponsável de tal
oficio. Deve o Poder Público Municipal coibir situações como a mencionada, exercer o seu poder de
polícia, por meio de suas normas jurídicas. Afinal, o direito à liberdade no espaço urbano deve ter como
parâmetro as regras impostas a todos, sob pena de se voltar ao estado de natureza.
37
ser um poder-dever de todos os entes da federação e, no que toca ao espaço
urbano, a presença dos Municípios, em termos de segurança, deveria ser mais
incisiva.
Aliás, a questão da segurança poderia ser elevada a uma das
prioridades estratégicas do governo local, com a colaboração dos governos
regional
e federal.
Poder-se-ia
pensar, inclusive,
na
viabilização
de
desenvolvimento de um sistema integrado de combate à violência, associandose vários municípios pequenos de determinada região, irmanados na busca de
determinado conjunto de metas de interesse social.
Nesse sentido, cabe avaliar a possibilidade de alinhar novas
funções às já existentes do governo local, como: prover policiamento visível,
que ofereça não apenas a sensação de segurança à população, mas,
efetivamente, garantir a segurança de todos; regularização fundiária dos
assentamentos informais, com adesão de regras edilícias e urbanísticas
especiais90, somada a políticas efetivas de infra-estrutura de água, esgoto e
transporte. Na realidade, a regularização constitui passo decisivo na inclusão
da cidade informal à cidade formal, reconhecendo aos cidadãos de baixa (ou
nenhuma) renda o direito à cidade e à moradia segura e digna.
A questão do saneamento básico de água e esgoto merece
algumas considerações, a começar pela antiga e constante discussão acerca
de quem detém (no Brasil) a competência para prestar os referidos serviços91.
Vale a pena refletir sobre o entendimento de Diogo de Figueiredo Moreira
Neto92 que, com base no texto constitucional vigente, preleciona:
90
BRASIL. Lei 10.257 de 10 de julho de 2001. Estatuto da Cidade. Diário Oficial da União de 11. jul.
2001. Cumpre destacar o art. 2º do referido estatuto, o qual dispõe acerca das diretrizes gerais da política
urbana e, no inciso XV, assim prescreve: “simplificação da legislação de parcelamento, uso e ocupação
do solo e das normas edilícias, com vistas a permitir a redução dos custos e o aumento da oferta dos
lotes e unidades habitacionais”.
91
Em recente trabalho legislativo perdeu-se a oportunidade de extirpar as dúvidas e as controvérsias
acerca da competência dos serviços de saneamento básico, a Lei 11.445, de 05 de janeiro de 2007,
estabelece as diretrizes nacionais para o saneamento básico, mas silencia quanto à competência,
referindo-se apenas, em seu artigo 8° “ aos titulares dos serviços públicos de saneamento básico”, não
os discrimina, todavia.
92
DE FIGUEIREDO, Diogo Moreira Neto. Mutações do Direito Administrativo. 2. ed. Rio de Janeiro:
Editora Renovar, 2001; p. 241-246. Para o autor, a distinção entre o que vem a ser de interesse local e
de interesse comum não é fácil de se desenhar, gerando um problema que atinge o próprio pacto
federativo, pois a repartição de competência no tocante ao abastecimento de água, e mesmo o serviço de
esgoto não está clara na Carta Política de 1988. Com efeito, em sua obra, o doutrinador, com base no
trabalho de Hely Lopes Meirelles, traz contribuições de outros administrativistas, no sentido de
caracterizar o interesse local, verbi gratia: ‘Para o clássico Black, o interesse local se refere aos negócios
internos das cidades e vilas ( internal affairs osf towns and counties ); para Bonnard, o peculiar interesse
é o que se pode isolar, individualizar-se e diferençar-se dos de outras localidades; para Borsi, é o que não
transcende os limites territoriais do Município; e para Jellinek é o interesse próprio da localidade, oriundo
38
Enquanto elemento primário do saneamento básico, a
Constituição: a) atribui competência à União para estabelecer
diretrizes em âmbito nacional (art. 21, XX); b) atribui
implicitamente competência aos Municípios para prestar
serviços de água onde prevaleça o interesse local (art. 30, V );
e c) atribui competência aos Estados para definir regiões
metropolitanas, as aglomerações urbanas e as microrregiões,
nas quais deva prevalecer o interesse comum sobre o local
( art. 25, § 3° ).
Nessa linha de pensamento, é importante a noção de que os
Municípios dispõem de melhores condições para prestar determinados
serviços, vez que sua máquina administrativa, além de estar mais próxima do
cidadão, é menor, em comparação à estrutura dos Estados ou da União. Não
é redundante assinalar a necessidade de modificar o quadro centralizador que
emoldura a sociedade brasileira, eis que é preciso olhar para os Municípios
como verdadeiros entes da federação, afinal não é esta a forma de Estado
criada pelo Constituinte originário? Não se pode mais tratá-los como simples
apêndice do Estado-membro; há, obviamente, modificações importantes a
serem feitas, a começar pelas regras que disciplinam a criação de um
Município, porquanto os critérios vigentes não são suficientes para determinar
a autonomia de um novo ente municipal que, não raro, já nasce dependendo,
quase que totalmente, do Estado-membro ao qual está vinculado, e da União,
pois a receita própria é ínfima.
É certo que a conscientização dos cidadãos - como membros da
estrutura social- de que o Estado só existe em razão deles e que a efetividade
de suas relações de vizinhança.’ No tocante ao interesse comum, assevera Diogo de Figueiredo: “ o
interesse comum é aquele que transcende o município e passa a ser considerado estadual, e deve
apresentar aspectos antípodas ( opostos ) em relação ao interesse local, exempli gratia: a) apresenta
predominância regional; b) se externaliza às cidades; c) não está territorialmente limitado ao município; d)
transcende as relações de vizinhança; e) é simultaneamente oposto a local e nacional;f)está estabilizado
por uma definição legal específica. Esta última característica marca positivamente a distinção: se, de um
lado, o interesse local vem a ser uma cláusula geral, sujeita à dinâmica dos fatos, por outro lado, o
interesse comum se apresenta estabilizado por uma cláusula legal específica que o define (as leis
complementares instituidoras das regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões)”.
39
dos direitos humanos fundamentais depende da sua participação nos atos de
gestão da coisa pública, é vital para se buscar a desejada paz e justiça social.
Cumpre lembrar, ainda, que a cidadania - que não se resume ao direito de
votar e de ser eleito - precisa ser exercitada de forma concreta e real; com esse
intuito, a Constituição Federal de 1988 prevê alguns instrumentos aos quais a
sociedade pode lançar mão, tais como: o direito de representação, consistente
no “direito-dever” dos cidadãos de comunicar ao Poder Público qualquer
irregularidade de que tenham conhecimento, nos termos do art. 74, § 2°; a
ação popular, prevista no art. 5°, inciso LXXIII; 3) a ação civil pública,
proclamada no art. 129, inciso III; o direito de petição, de que trata o art. 5°,
inciso XXIV, alínea a; e o mandado de segurança, insculpido no art. 5°, inciso
LXX.
Além dos referidos mecanismos de tutela, incontestavelmente,
merece menção o Estatuto da Cidade, consubstanciado na Lei 10.257/2001, o
qual consagra outros importantes instrumentos para a realização de uma
política urbana, bem como para a efetividade do direito humano fundamental à
moradia. A título de ilustração, merecem relevo: a gestão democrática da
cidade93; o direito de superfície94; o direito de preempção95; a outorga onerosa
do direito de construir96, também denominado de solo criado; a operação
urbana consorciada97; o estudo de impacto de vizinhança98; a transferência do
direito de construir99; a utilização compulsória da propriedade100; a usucapião
especial101 e a desapropriação por interesse social102.
93
BUCCI, Maria Paula Dallari. Gestão Democrática da Cidade. In: DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ,
Sérgio (coordenadores). Estatuto da Cidade: Comentários à Lei Federal 10.257/2001. 2. ed. São Paulo:
Editora Malheiros, 2006. p.335 et seq.
94
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito de Superfície. In: DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ, Sérgio
(coordenadores). Estatuto da Cidade: Comentários à Lei Federal 10.257/2001. 2. ed. São Paulo: Editora
Malheiros, 2006. p. 172-191.
95
GASPARINI, Diógenes. Direito de Preempção. In; DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ, Sérgio
(coordenadores). Estatuto da Cidade: Comentários à Lei Federal 10.257/2001. 2. ed. São Paulo: Editora
Malheiros, 2006. p. 192-221.
96
MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Outorga Onerosa do Direito de Construir. In: DALLARI,
Adilson Abreu; FERRAZ, Sérgio (coordenadores). Estatuto da Cidade: Comentários à Lei Federal
10.257/2001. 2. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2006. p. 222 et seq.
97
LOMAR, Paulo José Villela. Operação Urbana Consorciada. In: DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ,
Sérgio (coordenadores). Estatuto da Cidade: Comentários à Lei Federal 10.257/2001. 2. ed. São Paulo:
Editora Malheiros, 2006. p. 247-288.
98
SOARES, Lucéia Martins. Estudo de Impacto de Vizinhança. In: DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ,
Sérgio (coordenadores). Estatuto da Cidade: Comentários à Lei Federal 10.257/2001. 2. ed. São Paulo:
Editora Malheiros, 2006. p. 300-316.
99
MONTEIRO, Yara Darcy Police; SILVEIRA, Egle Monteiro da. Transferência do Direito de Construir. In:
DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ, Sérgio (coordenadores). Estatuto da Cidade: Comentários à Lei
Federal 10.257/2001. 2. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2006. Segundo os autores, o referido instituto
está intrinsecamente relacionado a outro instituto, o solo criado ( este concebido em razão da
40
Maria Sylvia Zanella Di Pietro103 acrescenta a concessão de uso
especial para fins de moradia que, não obstante constar do Projeto de Lei do
Estatuto da Cidade, a mesma foi objeto de veto pelo chefe do Poder Executivo.
Somente mais tarde, por meio da Medida Provisória 2.220, de 4 de setembro
de 2001, o governo federal reconheceu a importância do instituto como mais
um instrumento idôneo à disposição do Poder Público para resolver o problema
de moradores de favelas e de loteamentos clandestinos.
Vale destacar que a referida “Lei da Cidade” é fruto de muitos
debates e discussões, com a colaboração do mundo acadêmico e da
população; e, indubitavelmente, uma conquista da sociedade, que se
empenhou para torná-lo uma realidade.
Nesse sentido, assevera Mariana
Moreira104: “caberá, entretanto, aos Municípios a imensa tarefa de tornar
realidade os postulados inscritos no Estatuto da Cidade, a fim de que todos
tenham direito às cidades com qualidade de vida”.
A Constituição republicana de 1988 contempla, no título da
Ordem Econômica e Financeira, um capítulo para a Política Urbana e aponta o
necessidade de racionalizar o espaço urbano e o uso do solo, bem como em decorrência do surgimento
do modelo de construção vertical, os edifícios com várias unidades autônomas) .p. 289-297.
100
BOQUIMPANI, Eduardo Gonçalves. Utilização Compulsória da Propriedade Urbana. In: COUTINHO,
Ronaldo; BONIZZATO, Luigi. Direito da Cidade: Novas Concepções sobre as Relações Jurídicas no
Espaço Social Urbano. Riio de Janeiro: Editora Lumen Júris, 2007. p. 179-228.
101
FERRAZ, Sérgio. Usucapião Especial. In: DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ, Sérgio (coordenadores).
Estatuto da Cidade: Comentários à Lei Federal 10.257/2001. 2. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2006.
p. 138-148.
102
BEZNOS, Clóvis. Desapropriação em Nome da Política Urbana. In: DALLARI, Adilson Abreu;
FERRAZ, Sérgio (coordenadores). Estatuto da Cidade: Comentários à Lei Federal 10.257/2001. 2. ed.
São Paulo: Editora Malheiros, 2006. Conforme se infere do art. 8º do Estatuto da Cidade, a
desapropriação por descumprimento da função social tem natureza de sanção. p. 118-128.
103
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Concessão de Uso Especial para Fins de Moradia ( Medida
Provisória 2.220 de 4.9.2001). In: DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ, Sérgio (coordenadores). Estatuto
da Cidade: Comentários à Lei Federal 10.257/2001. 2. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2006. p. 150171. Vale destacar que, entre as razões do veto estava a de que o projeto não ressalvou os
imóveis públicos afetados ao uso comum do povo; as áreas de interesse da defesa nacional;
de preservação ambiental; e as destinadas às obras públicas; que não poderiam ser objeto do
referido instituto. A autora conceitua o instituto como “ato administrativo vinculado pelo qual o Poder
Publico reconhece, gratuitamente, o direito real de uso de imóvel público de até duzentos e cinqüenta
metros quadrados àquele que, em 30.6.2001, o possuía por cinco anos, ininterruptamente e sem
oposição, para sua moradia ou de sua família”.
104
MOREIRA, Mariana. A História do Estatuto da Cidade. In: DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ, Sérgio
(coordenadores). Estatuto da Cidade: Comentários à Lei Federal 10.257/2001. 2. ed. São Paulo: Editora
Malheiros, 2006. p. 36-43. A autora faz um breve histórico acerca do caminho trilhado para se chegar à
Lei 10.257/2001, e preleciona que, inicialmente, fora elaborado o Projeto de Lei 775/1983, de iniciativa do
Poder Executivo federal, no qual se buscou conceituar a função social da propriedade e dispunha sobre
normas de política urbana. Com o advento da Constituição Federal de 1988, o referido projeto não seguiu
em frente, tendo sido retirado pelo Poder Executivo em 1995. Ressalte-se que no interstício entre 1989 e
1990 ( PL. 2.191/89 e PL. 5.788/90 ), outros dois projetos foram apresentados para tratar da mesma
matéria ( política urbana). Somente depois de uma década e de inúmeros substitutivos, o Projeto de Lei
5.788/1990 foi aprovado em 2001 e transformado na Lei 10.257/2001- o denominado Estatuto da Cidade.
41
Plano Diretor, como pressuposto necessário para o planejamento do espaço
urbano e caracterizador da função social da propriedade.
Nesses termos,
ensina Jacintho Arruda Câmara105:
o Estatuto da Cidade, ao definir as regras gerais de utilização
de vários outros instrumentos de implementação de uma
política urbana (...) vinculou a aplicação destes à existência de
um plano diretor. Isto pode ser notado nos diversos
dispositivos que mencionaram o plano diretor como uma
espécie de ato-condição para a implementação dos referidos
instrumentos.
No contexto do direito contemporâneo brasileiro, em que a
Constituição é o ápice valorativo de todo o ordenamento jurídico, o referido
diploma legal representa “um dos pilares do direito urbanístico”106; bem como
desempenha as relevantes funções de regulamentar o capítulo constitucional
que consagra a política urbana107; e a de delinear firmes ações para melhoria
do espaço urbano, com vistas a alcançar a cidade sustentável e a justiça
social108. Nesse sentido, não é demais ressaltar que os referidos instrumentos
políticos e jurídicos, albergados no Estatuto da Cidade, somente deixarão de
ser simples previsões legislativas, quando implementados por meio de políticas
sérias, e, a reboque disso, acrescente-se o fato de que tais institutos são
mecanismos úteis para a efetivação do direito humano fundamental à moradia.
Com a concretização dos ideais de política urbana e de inclusão
social, previstos na “Lei da Cidade”, é possível sonhar com uma nova
configuração do quadro das grandes cidades brasileiras. Nesse sonho, que se
almeja se torne realidade, enxerga-se várias vias de acesso à moradia digna,
como a realização do mínimo existencial do ser humano.
105
CÂMARA, Jacintho Arruda.
Plano Diretor. In: DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ, Sérgio
(coordenadores). Estatuto da Cidade: Comentários à Lei Federal 10.257/2001. 2. ed. São Paulo: Editora
Malheiros, 2006. p.323.
106
LIRA. ( 2007 ). p. 6.
107
JARDIM. ( 2007 ). p. 99.
108
SUNDFELD, Carlos Ari. O Estatuto da Cidade e suas Diretrizes Gerais. In: DALLARI, Adilson Abreu;
FERRAZ, Sérgio (coordenadores). Estatuto da Cidade: Comentários à Lei Federal 10.257/2001. 2. ed.
São Paulo: Editora Malheiros, 2006. p.52-54.
42
I.3. Patrimônio Mínimo, garantia do mínimo existencial
Cabe, inicialmente, discorrer, ainda que de forma sintética, acerca
do instituto do patrimônio, que impregna decisivamente a noção de patrimônio
mínimo como garantia fundamental. Nesse sentido, Luiz Edson Fachin109
preleciona que a idéia de patrimônio, preconizada no século XIX, visava a
proteger o indivíduo em relação ao Estado, “afirmando-se que toda pessoa tem
patrimônio e que este estaria submetido à sua vontade”. Tal idéia, entretanto,
perdeu espaço e, em razão do desenvolvimento econômico, o instituto do
patrimônio passou a ser também forma de garantia de dívidas, em favor de
credores.
Como quase tudo em Direito, a noção de patrimônio não tem
sentido unívoco, sendo claras as divergências doutrinárias quanto à sua
concepção e aos elementos que a integram. Francisco Amaral110, por exemplo,
define o patrimônio, como uma universalidade de direito, que não se confunde
com “os objetos dos direitos, as prestações, e os bens. Entram, apenas, os
respectivos direitos”. O autor em tela assegura, ainda, que a relevância do
patrimônio encontra amparo em dois aspectos: a) constitui a garantia dos
credores; e b) fixa a universalidade, o conjunto de direitos de uma pessoa no
momento de sua morte, quando se transmite aos respectivos herdeiros.
Além dos referidos aspectos, pode-se acrescentar ao patrimônio
a especial função de assegurar o mínimo existencial de uma pessoa, para que
ela possa desenvolver-se com dignidade e segurança.
Orlando Gomes111, por sua vez, refuta a idéia de patrimônio uno e
indivisível, assim como não o atrela à personalidade do indivíduo. Admite o
autor a existência de pluralidade de patrimônios, com características distintas;
isto é, existiria um patrimônio geral, os patrimônios autônomos e os especiais
109
FACHIN ( 2006 ). p. 42-43.
AMARAL, Francisco. Direito Civil: Introdução. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Renovar, 2000.
p.59-60;330. O autor apresenta duas teorias as quais tentam justificar juridicamente o patrimônio:1.
TEORIA CLÁSSICA OU SUBJETIVA: o patrimônio é uma universalidade de direito, um conjunto unitário
de bens e obrigações, que se apresenta como projeção e continuação da personalidade individual. Sua
marca dominante seria a vinculação subjetiva com a personalidade; e 2. TEORIA MODERNA OU
REALISTA: critica o patrimônio como universalidade, o patrimônio seria apenas ativo, deixando fora as
dívidas. Também não seria unitário e indivisível, mas formado de vários núcleos separados, conjuntos de
bens destinados a fins específicos ( Teoria da Afetação ).
111
GOMES, Orlando. Direitos Reais. 16. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2000. p. 247.
110
43
ou separados112. Já o jurista italiano Pietro Perlingieri113 utiliza a expressão
“situações patrimoniais”, para designar as relações de natureza real e as de
caráter obrigacional, apontando, ainda, para “situações mistas”, que abarcam
aquelas que pressupõem a existência de direito real e de direito obrigacional e
traz como exemplos o arrendamento rural e a locação imobiliária.
É fato que o contínuo devir dos fatos sociais exige do Direito uma
constante releitura dos conceitos estabelecidos para os institutos existentes; no
caso do patrimônio, as divergências semânticas e de conteúdo são
decorrências naturais do processo hermenêutico. Nesse sentido, entende-se
que o significante patrimônio compreende um conjunto de prerrogativas que
integram o locus privado de cada pessoa, podendo tais prerrogativas sofrer
alterações no tempo e no espaço.
Nessa perspectiva, é preciso amoldar a estrutura do Direito a
partir de uma visão antropocêntrica; ou seja, interpretá-lo e aplicá-lo tendo em
conta a figura do homem de carne e osso114 e não apenas mais um dos
elementos essenciais das relações jurídicas. Diante dessa premissa, antes de
adentrar no estudo da natureza jurídica e da importância do patrimônio mínimo
em sede dos direitos humanos fundamentais, impõe-se analisar a pessoa
humana e seu substrato intrínseco, a dignidade.
Nesse sentido, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald115
destacam que a dignidade humana é “o mais precioso valor da ordem jurídica
brasileira,
erigido
como
fundamental
pela
Constituição
de
1988”,
e
complementam: “as normas são feitas para a pessoa e para a sua realização
existencial, devendo garantir um mínimo de direitos fundamentais que sejam
vocacionados, para lhe proporcionar vida com dignidade”.
112
FACHIN, Luiz Edson. Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo. 2 ed. Rio de Janeiro: Renovar,
2006. p. 41-42. Ensina Luiz Edson Fachin que: “é possível distinguir patrimônio de destinação, patrimônio
autônomo e patrimônio separado: no primeiro, uma parte das relações atinentes a uma pessoa constitui
uma distinta unidade jurídica com vistas a uma finalidade específica; no segundo, estar-se-ia diante de
patrimônio pertencente a uma pluralidade de pessoas, em uma organização coletiva, que poderá ou não
constituir pessoa jurídica; o último, diria respeito à herança, que permanece distinta do patrimônio geral
do herdeiro até a apuração dos débitos”.
113
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: Introdução ao Direito Civil Constitucional. 3.ed.
Tradução Maria Cristina De Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 201-202.
114
BARCELLONA, Pietro. El individualismo proprietário. Presentación Mariano Maresca. Traducción
Jesús Ernesto García Rodríguez. Madrid: Editorial Trotta, S.A., 1996, p.17
115
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito Civil: Teoria Geral. 6. ed. Rio de
Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2007. p. 98.
44
Nesse diapasão, Carlos Ayres Britto professa116: “Sem exagero, o
que se transluz da redação inicial da nossa Lex Legum é o decidido empenho
de, nas suas linhas gerais(...) tornar o Direito maior do que a Lei (...)”, ou seja,
dar concretude ao princípio da igualdade substancial, em que, num critério de
silogismo, a premissa maior é o homem concreto e com necessidades
específicas.
Diante de princípios constitucionais, como a dignidade da pessoa
humana, o princípio da solidariedade e a função social da propriedade e dos
contratos, não há mais espaço para a noção clássica de relação jurídica, na
qual a pessoa é tratada de forma genérica e abstrata; ou seja, mais um de seus
elementos, consubstanciando, desta forma, a idéia de “coisificação” do homem,
incansavelmente combatida por Luiz Edson Fachin117.
Essencialmente, quatro princípios são afetos à dignidade humana:
a igualdade118, em seu duplo aspecto formal e material; a liberdade119,
ajustado à idéia de liberdade com justiça social; a solidariedade, que resume o
novo paradigma do direito contemporâneo, a existência humana digna120; e o
princípio do respeito à integridade psicofísica da pessoa121.
Sobre
o
tema,
é
igualmente
oportuno
refletir
sobre
o
entendimento do Ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Ferreira
Mendes122 que, no seu ofício de julgador, assim se pronunciou acerca do
princípio da dignidade humana:
este princípio proíbe a utilização ou transformação do ser
humano em objeto de degradação dos processos e ações
116
BRITTO, Carlos Ayres. A Constituição e o Monitoramento de suas Emendas. Revista Eletrônica do
Estado, Salvador, Instituto de Direito Público da Bahia, nº 1, janeiro, 2004. Disponível em
<http://www.direitodoestado.com.br>. Pesquisa realizada em 28/11/2007.
117
FACHIN, Luiz Edson. Teoria Crítica do Direito Civil à Luz do Novo Código Civil Brasileiro. 2. ed. Rio de
Janeiro: Renovar, 2003.p.89.
118
SOUZA SANTOS 2001 apud MORAES, Maria Celina, 2003, p. 92. No dizer de Boaventura de Souza
Santos “as pessoas e os grupos sociais têm o direito a ser iguais quando a diferença os inferioriza, e o
direito a ser diferente quando a igualdade os descaracteriza”.
119
MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana: Uma leitura Civil-Constitucional dos
Danos Morais. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2003. p. 85;102-103. Diz a autora: “liberdade e autonomia
privada foram, durante muito tempo consideradas, do ponto de vista do Direito Civil, como conceitos
sinônimos (...). Com efeito, ao protagonista do Código Civil, sujeitos de direito e proprietário, cabia
somente velar por seus familiares e por seus bens, apresentando-se desvinculado do tecido social que o
envolvia”.
120
Idem. Ibidem. p. 114. Ensina a autora que “o princípio constitucional da solidariedade identifica-se,
assim, com o conjunto de instrumentos voltados para garantir uma existência digna, comum a todos, em
uma sociedade que se desenvolva como livre e justa, sem excluídos ou marginalizados”.
121
Idem. Ibidem. p. 85.
122
BRASIL. Poder Judiciário. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n° 82.969-4/PR, publicado em
30.09.2003. Disponível em: <http.www.stf.gov.br>. Pesquisa realizada em 14.07.2007.
45
estatais. O Estado está vinculado ao dever de respeito e
proteção do indivíduo contra exposição a ofensas e
humilhações.
Contumaz defensor dos direitos humanos e do princípio da
dignidade humana, Ingo Wolfgang Sarlet123 professa:
onde não houver respeito pela vida e pela integridade física e
moral do ser humano, onde as condições mínimas para uma
existência digna não forem assegurados, onde não houver
limitação do poder, enfim, onde a liberdade e a autonomia, a
igualdade ( em direitos e dignidade ) e os direitos fundamentais
não forem reconhecidos e minimamente assegurados, não
haverá espaço para a dignidade da pessoa humana e esta ( a
pessoa ), por sua vez, poderá não passar de mero objeto de
arbítrio e injustiças.
Como um grito de alerta, as palavras do mencionado autor124
precisam reverberar, não somente num determinado segmento da sociedade,
como na seara jurídica, mas em todo o corpo social, para que se concretize a
tese de que o respeito à dignidade humana constitui pressuposto para a
efetividade dos direitos humanos fundamentais. Com efeito, Béatrice Maurer125
alerta: “é perigoso enclausurar a reflexão sobre a dignidade na busca de uma
simples definição”.
123
SARLET, Ingo Wolfgang. As dimensões da dignidade da pessoa humana: construindo uma
compreensão jurídico-constitucional necessária e possível. In: SARLET, Ingo Wolfgang ( organizador ).
Dimensões da Dignidade: Ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional. Porto Alegre: Editora
Livraria do Advogado, 2005. p. 13 et seq. Para o autor, a dignidade manifesta-se de duas formas: como
expressão da conduta voluntária da pessoa, que se atrela à concepção de autodeterminação; e como
princípio de proteção ( de assistência por parte da sociedade e do Estado ), quando inexiste a aptidão de
manifestação voluntária. E propõe a seguinte conceituação: “qualidade intrínseca e distintiva reconhecida
em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da
comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem
a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir
as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua
participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os
demais seres humanos”.
SARMENTO, Daniel. A Ponderação de Interesses na Constituição Federal. 3ª tiragem. Rio de
Janeiro: Editora Lumen Júris, 2003.
124
SARLET ( 2005 ). p. 28-34. Esclarece o autor que o Tribunal Federal Constitucional da Alemanha já se
manifestou no sentido de que a dignidade da pessoa humana é reconhecida, levando-se em conta os
diferentes contextos. A seu turno, o Tribunal Constitucional da Espanha enxerga a dignidade como “valor
espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e
responsável da própria vida e que leva consigo a pretensão ao respeito por parte dos demais”.
125
MAURER, Béatrice. Notas sobre o respeito da dignidade da pessoa humana…ou pequena fuga
incomplete em torno de um tema central. Tradução de Rita Dostal Zanini. In: SARLET, Ingo Wolfgang
( organizador ). Dimensões da Dignidade: Ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional. Porto
Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005.
46
Traçadas essas breves linhas acerca do instituto do patrimônio e
da dignidade da pessoa humana, pretende-se agora correlacionar os referidos
significantes com o patrimônio mínimo – este verdadeiro instrumento de
garantia para viabilização do mínimo existencial e pressuposto de efetividade
do direito humano fundamental à habitação.
O presente tema encontra embasamento teórico, em especial, na
obra de Luiz Edson Fachin 126, quando trata do Estatuto Jurídico do Patrimônio
Mínimo, na qual o autor defende a tese de que toda a pessoa humana precisa
e deve ser dotada de um mínimo existencial, sendo-lhe garantido um
patrimônio mínimo, “mensurado consoante parâmetros elementares de uma
vida digna e do qual não pode ser expropriada ou desapossada”. Por força
deste
princípio,
afirma
o
autor:
“sustenta-se
existir
essa
imunidade
juridicamente inata ao ser humano, superior aos interesses dos credores”.
Embora possam ser consideradas expressões sinônimas - o
patrimônio mínimo e o mínimo existencial -, considera-se oportuno traçar
considerações sobre a tênue diferença; ou seja, o mínimo existencial
caracteriza direito fundamental a uma vida digna; enquanto o patrimônio
mínimo configura garantia fundamental daquele.
Dito de outra forma, o
patrimônio mínimo representa a efetividade do mencionado mínimo existencial,
que, por sua vez, reúne um conjunto de direitos fundamentais como: direito à
vida, ao desenvolvimento pleno, à saúde, à educação e à moradia digna.
Nesse contexto, o patrimônio mínimo tem como função essencial
garantir, de certa forma, a igualdade material para aqueles que pouco ou nada
têm127. Nessa perspectiva, vale a máxima de que o tratamento dispensado
deve ser adequado à medida das desigualdades para se chegar, pelo menos,
perto da igualdade substancial.
Nessa ordem de idéias, cumpre esclarecer que a Carta
Constitucional de 1988, embora não consagre de forma explícita o direito ao
mínimo existencial, é possível extraí-lo de vários artigos, a começar pelo artigo
3°, que trata dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil,
como a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das
126
FACHIN ( 2006 ). p. 278/289. O autor assevera que, a despeito de inexistir uma definição para o que
seja o patrimônio mínimo, este não está limitado`a existência de um único bem, mas sim de quantos
forem necessários para que a pessoa tenha uma vida digna e segura.
127
Idem. Ibidem. p. 278.
47
desigualdades sociais. Também se pode visualizar tal direito no art. 7º, inciso
IV, que contempla o salário mínimo; nas imunidades tributárias, consoante o
disposto nos artigos 5°, incisos LXXIII, LXXIV; 153, par. 4°, inciso II; e art. 195,
inciso II128 entre outros.
Em sede internacional, o direito ao mínimo existencial encontrase consagrado nas declarações internacionais sobre Direitos Humanos, verbi
gratia, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, que proclama,
em seu artigo 25: “Toda pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para
assegurar a sua saúde, o seu bem estar e o de sua família, especialmente para
a alimentação, o vestuário, a moradia, a assistência médica e para os serviços
sociais necessários”.
Nessa trilha, Luiz Edson Fachin129 vaticina:
As conseqüências advindas da proteção inexpugnável ao
patrimônio mínimo não conduzem, por via oblíqua, a um estatuto
da desigualdade por vantagem exagerada em favor de uma das
partes da relação jurídica. Antes, parte da igualdade ( em sentido
substancial ) para enfrentar, no reconhecimento material das
desigualdades, o respeito `a diferença sem deixar de alavancar
mecanismos protetivos dos que são injustamente ‘menos iguais’.
(...) Contudo, a tutela de um patrimônio mínimo nucleado na
dignidade da pessoa humana, parece-nos bem representar o
novo sentido a ser dado ao patrimônio na perspectiva de um
direito civil repersonalizado – o qual tão-só se legitima a partir do
momento em que observam os valores existenciais e primordiais
da pessoa, que hoje estão em sede constitucional.
Do excerto acima transcrito, é possível extrair algumas assertivas,
como por exemplo: a) o patrimônio mínimo é garantia fundamental ao exercício
da cidadania; b) o patrimônio mínimo dá concretude à igualdade material; c) o
patrimônio em geral deve servir ao seu titular, desde que não reduza à
miserabilidade outrem; e d) no impasse entre um direito de crédito, de natureza
128
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. Rio de
Janeiro: Editora Renovar, 2000. 141-142. O direito ao mínimo existencial também não encontra amparo
expresso nas constituições estrangeiras, com exceção da Carta canadense e da japonesa, onde se infere
a presença de tal direito, explica o autor: “ o art. 36, da Constituição do Canadá, estabelece que o
Parlamento deverá adotar medidas para a) promover a igualdade de chances de todos os canadenses na
procura do seu bem-estar; b) favorecer o desenvolvimento econômico para reduzir a desigualdade de
chances;” e o art. 25, da Carta Política japonesa, dispõe: “ Todos terão direito à manutenção de padrão
mínimo de subsistência cultural e de saúde.”
129
FACHIN ( 2006 ). p. 251.
48
essencialmente patrimonial e o direito à moradia, deve, indubitavelmente,
prosperar este.
Diante dessas premissas, conclui-se que não há mais espaço
para a análise dos interesses particulares descolada do aspecto social: a
complexidade das sociedades do mundo globalizado exige um comportamento
social e solidário das pessoas em geral, pois, do contrário, os danos acabarão
atingindo a todos. Nesse passo, professa Luiz Edson Fachin130: “a pessoa tem
o dever social de colaborar com o bem do qual também participa; ou seja, deve
colaborar com a realização dos demais integrantes da comunidade”.
Ainda, no tocante ao mínimo existencial, merece relevo o
entendimento de Ricardo Lobo Torres131, para quem:
a igualdade de chances ou de oportunidades, que é igualdade
na liberdade, informa a idéia de mínimo existencial, que visa a
garantir as condições iniciais da liberdade. Pela igualdade de
chances garantem-se as condições mínimas para o
florescimento da igualdade social.
Segundo o mencionado autor, em algumas situações, a
intervenção do Estado não é só bem-vinda, como extremamente necessária, a
exemplo do compromisso de eliminar as diferenças decorrentes da
concentração de renda que, no outro pólo, resulta na pobreza, que aflige
milhares de pessoas ao redor do mundo. E descreve o mínimo existencial da
seguinte forma132 :
o mínimo existencial exibe características básicas dos direitos da
liberdade: é pré-constitucional, vez que inerente `a pessoa
humana; constitui direito público subjetivo do cidadão, não sendo
outorgado pela ordem jurídica, mas condicionando-a, tem
validade erga omnes, aproximando-se do conceito e das
conseqüências do estado de necessidade; não se esgota no
elenco do art. 5º da Constituição, nem em catálogo preexistente;
130
FACHIN ( 2006 ). p. 47.
TORRES, Ricardo Lobo. A Metamorfose dos Direitos Sociais em Mínimo Existencial. In: SARLET, Ingo
Wolfgang ( organizador ). Direitos Fundamentais Sociais: Estudos de Direito Constitucional,
Internacional e Comparado. Rio de Janeiro. Ed. Renovar, 2003. p. 01-46.
132
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. Rio de
Janeiro: Editora Renovar, 2000. p. 144-146. Para o autor “a proteção do mínimo existencial no plano
tributário, sendo pré-constitucional como toda e qualquer imunidade, está ancorada na ética e se
fundamenta na liberdade, ou melhor, nas condições iniciais para o exercício da liberdade, na idéia de
felicidade, nos direitos humanos e no princípio da igualdade”.
131
49
é dotado de historicidade, variando de acordo com o contexto
social.
Da concepção de mínimo existencial proposta pelo mencionado
pensador pode-se extrair vários elementos que fundamentam a tese esposada
no presente trabalho, que é a defesa do patrimônio mínimo como pressuposto
de efetividade do direito humano fundamental à moradia, inferindo-se que:
1. A primeira frase do fragmento textual transcrito caracteriza o
mínimo existencial como direito humano fundamental e, como tal, deve-se lutar
por sua efetividade, tanto no plano de políticas públicas, quanto por meio das
atividades legislativa e jurisdicional. Nesse sentido, merece relevo a
contribuição do sociólogo Celso Fernandes Campilongo133, quando afirma que,
“cabe ao Judiciário controlar a constitucionalidade e o caráter democrático das
regulações sociais”, além de outras funções que estimulem o “processo de
afirmação da cidadania e da justiça substantiva”.
2. O segundo elemento apresentado pelo autor, refere-se ao
mínimo existencial como algo ínsito ao ser humano, de onde se pode inferir
que qualquer ato público ou privado, tendente a violar tal direito, deve ser
obstado por meio de medidas administrativas ( no caso do Estado ) ou judiciais,
na hipótese de ambos ( público ou privado ).
3. A idéia de direito público subjetivo é capaz de opor resistência
a qualquer manifestação contrária ao direito ao mínimo existencial, como
também exigir condutas positivas, no sentido de garantir tal direito.
Analogamente ao que ocorre com o mínimo existencial, a garantia
do patrimônio mínimo também não tem previsão expressa no ordenamento
pátrio, conquanto seja possível visualizá-la na Constituição de 1988, quando
consagra como objetivo da República brasileira, a dignidade da pessoa
humana que, no dizer de Daniel Sarmento134, representa o “epicentro
axiológico
da
ordem
constitucional,
irradiando
efeitos
sobre
todo
o
ordenamento jurídico e balizando não apenas os atos estatais, mas também
133
CAMPILONGO, Celso Fernandes. Os Desafios do Judiciário: Um Enquadramento Teórico”. In: FARIA,
José Eduardo ( coordenador ). Direitos Humanos, Direitos Sociais e Justiça. São Paulo: Editora
Malheiros, 2005. p.49.
134
SARMENTO, Daniel. A Ponderação de Interesses na Constituição Federal. 3ª tiragem. Rio de
Janeiro: Lumen Júris, 2003. p. 59-60.
50
toda a miríade de relações privadas que se desenvolvem no seio da sociedade
civil e do mercado”.
Ainda, sem embargo de outras fontes, é possível entrever a
garantia do patrimônio mínimo no art. 548 do Código Civil de 2002, que prevê
norma proibitiva de doação de todos os bens. Esta norma protetiva tem como
ratio essendi a proteção do doador, que, num momento de liberalidade, põe em
risco a própria sobrevivência, ao provocar a situação de miserabilidade
135
.
Outro exemplo é o instituto do bem de família136que, aparentemente, pode
gerar a falsa idéia de que o legislador está a proteger o direito de propriedade,
mas, na realidade, a tutela é do direito humano fundamental à moradia,
porquanto a propriedade, neste caso, constitui via instrumental para a
efetividade daquele direito.
A rigor, cumpre reconhecer a imbricação da propriedade,
consubstanciada no bem de família, com a garantia de um patrimônio mínimo e
com o direito à habitação. Nesse passo, Luiz Edson Fachin137 esclarece que
“obter a guarida do patrimônio mínimo em favor dos valores fundamentais da
pessoa é uma maneira de instituir um novo lugar jurídico, espaço de luta
constante entre interesses e pretensões”. Corrobora, ainda, o mencionado
civilista que:
não há, pois, defesa da ilegitimidade do crédito em si mesmo.
Cogita-se, tão-somente, do estabelecimento de limites à
pretensão creditícia e não sua impugnação ontológica. E diante
de um dano injusto, cuja reparação busca o credor em face do
autor do ato, a tutela patrimonial buscará equilíbrio no juízo da
proporcionalidade entre os interesses envolvidos.
Nessa linha de idéias, é preciso repensar não somente a
arquitetura civilística, mas, sobretudo, a forma como as pessoas se relacionam
umas com as outras, especialmente na seara negocial, evitando, com isso,
pretensões desproporcionais. Afinal, quer-se caminhar para um novo tipo de
135
FACHIN ( 2006 ). p. 2
Previsto no CC/02 e na Lei 8.009/90, o qual será melhor esmiuçado em outra seção, ainda neste
capítulo.
137
FACHIN ( 2006 ). p. 220.
136
51
Estado, o Estado Constitucional Humanitário de Direito, conforme lições de
Luiz Flavio Gomes138.
I.4. Bem de Família e a Ressignificação do Instituto Família
Conforme já mencionado no tópico anterior, o bem de família é,
indubitavelmente, um dos instrumentos eficazes utilizados para se garantir o
patrimônio mínimo de uma pessoa. Nesse contexto, sua aplicação prática deve
levar em consideração todas as pessoas indistintamente, invalidando desta
forma qualquer regra que preveja alguma discriminação.
Para melhor entendimento acerca da relevância do mencionado
instituto, cabe analisar alguns aspectos que o norteiam. A começar pela sua
origem.
O instituto do bem de família ( homestead ) surgiu nos Estados
Unidos, especificamente no Estado do Texas, por meio da Lei 26, de 1839,
como forma de incrementar a colonização e garantir o mínimo existencial às
famílias que se arvorassem a ir para lá desenvolver a agricultura, tornando a
terra produtiva139. A propriedade era utilizada como instrumento para a
concretização do direito humano fundamental à moradia e como forma de
subsistência, não podendo ser objeto de qualquer constrição, sendo, portanto,
imune ao instituto da penhora.
Não demorou muito, para que outros países passassem a adotar
institutos semelhantes. O Canadá, por exemplo, em 1878 editou uma lei que
isentava de execuções por dívidas imóveis de valor até dois mil dólares, não
exigindo que o titular do bem fosse chefe de família – tendência, aliás, seguida
atualmente no Brasil, conforme se depreende da ementa de decisão proferida
pelo Superior Tribunal de Justiça140: “ Execução. Bem de Família. Ao imóvel
que serve de morada às embargantes, irmãs e solteiras, estende-se a
impenhorabilidade de que trata a Lei 8.009/90”.
138
GOMES, Luiz Flávio. O Valor Jurídico dos Tratados de Direitos Humanos. São Paulo: Disponível
em: <http://www.blogdolf.com.br.18julho.2007. Pesquisa realizada em 14/09/2007.
139
FACHIN. ( 2006 ). p. 155-156.
140
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Bem de Família. Indicação penhora. Recurso Especial nº
57606/MG. Relator Ministro Fontes de Alencar. Distrito Federal. Julgado em 11 de abril de 1995.
Disponível em <www.stj.gov.br>. Pesquisa realizada em 25/04/2007.
52
Ainda, no direito comparado, é possível verificar o significante
bem de família, a despeito de suas diferentes características, em países como:
Alemanha, Inglaterra, Suíça, Itália, França, Espanha e Portugal.
Como ensina Luiz Edson Fachin141, a Inglaterra, embora não
tenha editado norma específica prevendo o bem de família, criou dois institutos
que traziam em sua essência a garantia de um mínimo existencial, como se
pode depreender de suas palavras textuais, transcritas a seguir:
os allotments ( que consistiam na concessão de terras de no
máximo um acre de terra arável, por meio de um aluguel
perpétuo) e os small-holdings ( os quais correspondiam à
concessão de pequenas propriedades de um a cinqüenta
acres)(...).
O que se pretendia era a proteção da pequena propriedade,
fazendo cessar a despopulação nos campos e nunca a da
família.
Na Alemanha, apesar de várias tentativas para adoção do
referido instituto, somente após a Constituição de Weimar, de 1919, que
propugnava a proteção da propriedade familiar, tendo como corolário a garantia
de habitação a todos os alemães, o legislador infraconstitucional, em 1920,
editou uma lei prevendo o denominado Heimstättenrecht, o qual podia ser
constituído por diversas formas, como por exemplo: sobre imóveis concedidos
pelo Estado; por associações de natureza pública; e por ato de vontade do
proprietário.
A Suíça, por sua vez, prevê três institutos que tutelam a família,
os quais consubstanciam a garantia do patrimônio mínimo dos seus membros,
como explicita Luiz Edson Fachin142:
O primeiro deles, a fundação familiar, consiste na vinculação
de determinados bens a uma finalidade especial, é um
patrimônio destinado a fazer face a despesas com educação,
estabelecimento ou manutenção dos integrantes da família. O
segundo, a comunidade familial, é um patrimônio adquirido por
herança que forma uma comunidade mediante contrato, por
escritura pública, assinado por todos os membros interessados,
que administram com iguais direitos o patrimônio. Não são,
porém, impenhoráveis os bens que integram a comunidade. O
asilo ou abrigo de família, por sua vez, instituído pela vontade
141
142
FACHIN ( 2006 ). p. 154-161.
Idem. Ibidem. p. 158-159.
53
unilateral de seu proprietário sobre bem imóvel destinado a uma
exploração agrícola ou industrial, devendo a família explorá-lo,
ou servir de habitação, devendo a família, neste caso habitá-lo.
Após convocação oficial dos credores, não havendo nenhuma
impugnação de terceiros, há inscrição no Livro de Imóveis,
tornando-se o bem impenhorável. ( grifo nosso ).
A Itália reconheceu o bem de família em 1942, em seu Código
Civil, contemplando-o como patrimônio familiar143. Desta forma, alguns bens
imóveis e títulos de crédito tinham como função específica preservar a família.
A França, já em 1909, previa o referido significante, estando o mesmo afastado
da incidência de penhora. A Espanha, a seu turno, protege o patrimônio
mínimo da família por meio de diversos diplomas legais. Por fim, sem querer
esgotar o tema, cabe fazer menção ao instituto português “casal de família”
instituído em 1920, o qual pode ser constituído por qualquer cidadão português,
independentemente de seu estado civil, que tenha sob seu teto pessoas por ele
mantidas, tais como descendentes, irmãos ou descendentes destes: após a
constituição do bem, o mesmo se torna indivisível e inalienável.
No direito pátrio, o instituto do bem de família surgiu inicialmente
em 1893, no projeto de Código Civil idealizado por Coelho Rodrigues, sendo
denominado de ‘lar de família’, ensina Luiz Edson Fachin144. Embora não tenha
sido o mesmo previamente reconhecido no projeto de Clóvis Beviláqua, foi
incluído posteriormente, em 1912, por meio de uma emenda145. Preleciona,
ainda, o mencionado autor que o bem de família tem como corolário “garantir
um abrigo habitável para a família de forma a ficar isento de execução por
dívidas”. Com efeito, o espectro de proteção abrange todos os bens móveis e
equipamentos que abastecem a casa, inclusive os de uso profissional, bem
como as plantações e benfeitorias realizadas.
A inserção do significante em tela, no sistema normativo civilista
brasileiro ocorreu no Código Civil, de 1916, sendo, aprioristicamente, instituído
143
FACHIN ( 2006 ). p. 159-160.
Idem. Ibidem. p. 132-174.
145
Ressalta Luiz Edson Fachin que, de início, o bem de família foi inserido no Livro das Pessoas, posição
topográfica que ensejou críticas, provocando o seu deslocamento para o Livro que tratava dos bens,
mantendo-se neste espaço até no novo Código Civil. Para alguns autores, como por exemplo, Orlando
Gomes, o bem de família deveria estar inserido no capítulo que cuida do direito de família, vide FACHIN
( 2006 ). p. 133.
144
54
pela vontade das partes e denominado bem de família convencional.
No
Código vigente146, o referido instituto está previsto nos arts. 1.711 usquê 1.722.
Posteriormente,
já
na
década
de
1990,
o
legislador
infraconstitucional editou a Lei 8.009/90, que estabeleceu o bem de família
legal, passando a conviver ao lado do convencional. Ressalte-se, todavia, que
o
mencionado
diploma
impenhorabilidade,
quase
legal
trouxe
todas
de
algumas exceções à
constitucionalidade
regra
da
questionável.
Conquanto seja pertinente a análise de cada uma delas, no presente trabalho,
por conta do tempo e do espaço aqui delimitado, estudar-se-á tão-somente, a
hipótese inserida no art.3º, inciso VII, introduzida pela Lei 8.245/91147, que trata
da penhorabilidade do bem do fiador, decorrente de contrato de locação,
conforme será examinado no Título II, capítulo I, deste trabalho.
Cabe esclarecer que não há consenso doutrinário acerca da
natureza jurídica do bem de família, como pontua Álvaro Villaça de Azevedo148:
a idéia central é a de proteção do ente familiar com o
reconhecimento do valor moradia familiar ( ligado à noção de lar,
proteção de prole, segurança familiar etc.) como sobreposto e
mais relevante aos eventuais interesses de credores consistente
na função de garantia do patrimônio.
Nessa linha de entendimento, assenta-se a idéia de que a família
contemporânea desempenha função estruturante, protetora e unificadora; ou
seja, sua relevância encontra amparo na tese de que constitui mais uma função
social do que uma instituição149. Acrescenta o mencionado autor que o escopo
do bem de família está atrelado à segurança da família, consubstanciada na
proteção de um imóvel, o que, por sua vez, não assegura o teto de todas as
146
O Código Civil brasileiro de 2002 ampliou o rol de legitimados para instituir o bem de família, que no
velho Codex estava restrito ao chefe de família. Avançou o legislador neste sentido, ao permitir a
destinação de parte do patrimônio para instituição de bem de família pelos cônjuges, pelos companheiros
(entidade familiar), pelo separado judicialmente que ficar com a guarda dos filhos, e por terceiro, nos
termos do artigo 1.711 do referido diploma de 2002. O terceiro, a que se refere o parágrafo único do
mencionado dispositivo, poderá instituir o bem de família, por meio de testamento ou doação, para
beneficiar pessoas ligadas pelo vínculo do matrimônio ou por união estável.
147
“Art. 82. O art. 3º da Lei 8.009, de 29 de março de 1990, passa a vigorar acrescido do seguinte inciso
VII. por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação”.
148
AZEVEDO, Alvaro Villaça de. Bem de Família. 4 ed. São Paulo: RT, 1999. p. 127 et seq.
FACHIN, Luiz Edson. Questões do Direito Civil brasileiro contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar,
2008. a. p. 4; 327-329.
149
55
famílias, mas somente daqueles que possuem um imóvel. Concorda-se com o
autor que o manto de proteção do bem de família não agasalha os que não
possuem qualquer bem imóvel, porquanto não é esta a sua ratio, vez que o
referido instituto tem como função garantir o teto daqueles que já conseguiram
conquistar o perseguido sonho da casa própria. Não há como negar,
entretanto, que muitas pessoas ainda estão distantes da concretização do
direito humano fundamental à moradia, por meio da casa própria.
Nessa toada, cabe ressaltar que, embora as diversas formas de
acesso à habitação extrapolem o foco da presente pesquisa, reconhece-se que
o acesso a um teto digno pode ser conquistado por meio de outros
instrumentos, como a locação com regras justas150, a concessão real de uso, o
direito de superfície, o comodato, a posse entre outros. A despeito disso, o que
se advoga é a plenitude do exercício do direito humano fundamental à moradia,
concretizado no direito de propriedade instrumental, consoante será esmiuçado
no capítulo seguinte.
Considerando o exposto, cumpre, ainda que brevemente, tecer
algumas considerações acerca do significante família. Cabe, ab initio, com
amparo na doutrina de Friedrich Engels151, assinalar que a família, assim como
os demais institutos que integram a ordem social, opera com dinamismo -
150
Entende-se como regras justas, aquelas em que há equilíbrio nas obrigações assumidas pelas partes
( locador e locatário ), bem como se coadunam com os diversos contextos em que se inserem.
151
ENGELS, Friedrich. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. 3. ed. Tradução
Ruth M. Klaus. São Paulo: Editora Centauro, 2006. Embora não se pretenda aqui delinear de forma mais
esmiuçada a origem da família, até porque tal estudo demandaria significativo tempo, entende-se
pertinente destacar alguns aspectos do instituto trazidos por Friedrich Engels que, em sua obra, retrata o
trabalho cognitivo sobre o tema de Lewis Henry Morgan, o qual viveu grande parte de sua vida entre os
iroqueses, estabelecidos no estado de Nova York. No mencionado trabalho, o autor apresenta três tipos
de família: a primeira noção consubstanciava-se na consangüínidade; exemplo de tal tipo de família
“seriam descendentes de um casal, em cada uma de cujas gerações sucessivas todos fossem entre si
irmãos e irmãs e, por isso mesmo, maridos e mulheres uns dos outros”. Na fase mencionada, irmãos e
irmãos podiam ter relações carnais, proibindo-se, entretanto, tal feito entre pais e filhos. Já na segunda
fase, denominada de punaluana, tais relações entre irmãos tornaram-se proibidas; começa-se a definir-se
os graus de parentesco. A terceira fase da família, trazida por Lewis Henry Morgan, denomina-se família
sindiásmica, afastava-se do regime de patrimônio por grupos, isto é, “o homem tinha uma mulher entre
suas numerosas esposas, e era para ela o esposo principal entre todos os outros”. Com a família
sindiásmica, o homem passa a viver com uma única mulher. Ressalte-se, entretanto, que, enquanto para
o homem permaneceu o direito a exercer a poligamia e a infidelidade, para a mulher passou-se a exigir a
fidelidade; sendo o adultério punido com rigor. E, por fim, a quarta forma de família, a monogâmica,
embora semelhante à família sindiásmica, ela se diferencia no tocante à solidez dos laços conjugais, que,
na família monogâmica, são mais rígidos, cabendo somente ao homem o direito de rompê-los. A
monogamia “não aparece na história, portanto, absolutamente, como uma reconciliação entre o homem e
a mulher e, menos ainda, como a forma mais elevada de matrimônio. Pelo contrário, ela surge sob a
forma de escravidão de um sexo pelo outro, como proclamação de um conflito entre os sexos, ignorado,
até então, na pré-história”, argumenta Friedrich Engels. p. 33-85.
56
estando sempre sujeita às alterações conceituais e de conteúdo - a fim de se
coadunar com a constante evolução do homem.
Partindo dessa premissa, preceitua Arnoldo Wald152 que a
concepção de família tem sido redesenhada ao longo dos tempos. O autor
exemplifica que, no direito romano a família compreendia “o conjunto de
pessoas que estavam sob a patria potestas do ascendente comum vivo mais
velho”, ou seja, a consangüinidade não era o único elemento caracterizador. O
instituto também era concebido como “uma unidade econômica, religiosa153,
política154 e jurisdicional155”.
Com o tempo, no entanto, o poder do pater foi relativizado, por
conta, em grande parte, da autonomia conferida à mulher e aos filhos e das
limitações impostas pelo Estado. O direito sobre a vida e a morte que o pater
exercia sobre os filhos e a mulher foi extinto e, na hipótese de abuso de poder
do patriarca, os descendentes (alienis juris ) podiam recorrer ao juiz156.
No Direito Canônico157, a família era sacralizada e constituída por
meio do matrimônio indissolúvel, vínculo que unia o homem e a mulher de
forma definitiva. Tal posicionamento não era pacífico no seio da própria Igreja,
malgrado predominante. A influência do catolicismo no tocante ao tema famíliacasamento era muito forte e, durante o período da Idade Média, as regras que
disciplinavam as relações familiares eram exclusivamente as do Direito
Canônico, sendo que, no interregno entre o século X ao século XV
predominava o casamento religioso158.
No final desse período, entretanto, começaram a surgir embates
entre os tribunais civis e religiosos, que divergiam quanto “a certos aspectos
patrimoniais do direito de família e, em seguida, em relação aos seus efeitos”,
assevera Arnoldo Wald. Os protestantes159, a seu turno, não concordavam com
152
WALD, Arnoldo. O Novo Direito de Família. 14. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Saraiva,
2002. Com efeito, a família brasileira recebeu influência de três ordens: do direito romano, canônico e do
germânico. p. 3-33.
153
WALD. Op. Cit. p. 9-10. Diz o autor: “era uma unidade religiosa, pois tinha uma religião própria, a
religião doméstica dos antepassados falecidos”.
154
Idem. Ibidem. Ensina ainda o estudioso: “na primeira fase do Direito Romano, a família era uma
unidade política, constituindo-se o Senado pela reunião dos chefes de família”. p. 9-10.
155
Idem. Ibidem. Vigia a regra que os pais podiam julgar os atos dos seus “protegidos”, decidindo pela
vida ou pela morte dos mesmos. p. 11.
156
Idem. Ibidem. p. 11.
157
Idem. Ibidem. p. 12-15.
158
Idem. Ibidem. p. 13-15.
159
Idem. Ibidem. p. 15. Os protestantes representavam uma nova vertente religiosa, dissidente da
religião católica.
57
a idéia de natureza sagrada do casamento, porquanto o consideravam “um
simples ato da vida civil, um contrato natural”, sendo, desta forma, passível de
dissolução por parte dos cônjuges. Defendiam ainda que o direito de família
deveria ser regulado pelo Estado.
Entrementes, o Direito Canônico regulava plenamente as
relações matrimoniais e, por reflexo, as relações de família. Em algumas
hipóteses era admissível a separação de corpos, desde que previamente
autorizadas pela autoridade eclesiástica e comprovada a ocorrência de uma
das causas previstas, como o adultério e a heresia. Somente a partir do século
XV, a Igreja passou a aceitar a separação consensual, extinguindo o dever de
coabitação, embora mantivesse os deveres de fidelidade e de prestar
assistência.
Em meados do século XVI, a Igreja Católica editou o Concílio de
Trento, com vigência no período de 1542 a 1563, no qual estabeleceu “a
competência exclusiva da Igreja e das autoridades eclesiásticas em tudo que
se relacionasse com o casamento, sua celebração e a declaração de
nulidade”160, reassentando a posição de que o matrimônio tinha caráter
sagrado.
Assim como em muitos contextos, o referido documento
influenciou o direito de família no Brasil, tendo sido adotado por força de lei
publicada em 1603, que determinava sua observância no território pátrio e em
Portugal. Posteriormente, por meio de Decreto, publicado em 3 de novembro
de 1827, ratificou-se a aplicabilidade do Concílio Tridentino em todas as
dioceses no Brasil, seguido pela Consolidação das Leis Civis de Teixeira de
Freitas, a qual se referia ao documento canônico e determinava sanções aos
“casamentos clandestinos”161.
Diante de tal sistema normativo, as pessoas não católicas, que
discordavam das normas impostas, formavam o grupo dos excluídos; problema
somente solucionado com a edição da Lei 1.144, de 1861, que “deu efeitos
civis aos casamentos religiosos realizados pelos não católicos, desde que
estivessem devidamente registrados”.
160
WALD. Op. Cit. p. 15-16. Ensina o autor que o referido documento contribuiu sobremaneira para o
desenvolvimento do direito de família nos países católicos.
161
Idem. Ibidem. p.17-20.
58
Com a Proclamação da República do Brasil, o Estado demarcou
sua área de atuação e afastou da jurisdição eclesiástica162 a disciplina do
casamento, cujas regras passaram a ter natureza estatal.
Com efeito, a
primeira Constituição da República163 proclamou, em seu art. 72, par. 4º, que o
casamento reconhecidamente aceito era o realizado sob a égide das normas
civilistas vigentes.
O Código Civil pátrio de 1916, embora idealizado para regular as
relações sociais existentes na sociedade brasileira, manteve as idéias
conservadoras das Ordenações Filipinas no que diz respeito ao casamento,
adotou as regras canônicas referentes “aos impedimentos dirimentes e
impedientes, às nulidades, e considerou indissolúvel o vínculo matrimonial”164.
A família, como unidade econômica, era protegida pelo regime da comunhão
universal de bens; ou seja, ao casal, conjuntamente, pertenciam todos os bens
que formavam o patrimônio da família, não podendo nenhum deles, por
exemplo, vender bem imóvel sem a autorização do outro.
Como destaca o Deputado Ricardo Fiúza165, enquanto o Código
Civil brasileiro de 1916 - criado num contexto social em que predominava a
atividade agrária e o pensamento patriarcal - contemplava o Direito de Família
no primeiro livro da parte especial; o novo Codex de 2002 - idealizado numa
época de intenso desenvolvimento das atividades econômicas e tecnológicas dedicou o primeiro livro, que no velho Código era da Família, para o Direito das
Obrigações. Acrescenta, ainda,166 que:
a formulação jurídica da família em sua estrutura e perspectiva
institucional, a contemplar as atuais realidades axiológicas,
coloca-se contemporânea de novos significantes sociais que a
torna melhor ponderada pelos seus elementos psicológicos e
afetivos. Essa valoração prestigia as relações familiares,
162
Idem. Ibidem. p. 20. “O Decreto 181 de 24.1.1890, de autoria de Rui Barbosa, em virtude do qual ficou
abolida a jurisdição eclesiástica, considerando-se como único casamento válido o realizado perante as
autoridades civis”.
163
CUNHA, Alexandre Sanches. Todas as Constituições Brasileiras. Ed. com. e atual. Campinas:
Editora Bookseller, 2001. “Art. 72. par. 4º : “A República só reconhece o casamento civil, cuja celebração
será gratuita”. p.71.
164
WALD. Op. Cit. p. 21.
ALVES. Op. Cit. p. 67-68. O Deputado Ricardo Fiúza foi relator-geral, na Câmara dos Deputados, do
Projeto de Lei n 634, que deu origem ao novo Código Civil. Em seu relato afirma que a matéria pertinente
ao direito de família foi objeto de 138 emendas aprovadas, de um total de 332, o que representa um
percentual de 42% das emendas.
165
59
oriundas não apenas do casamento, antes havido como sua
base instituidora, mas, igualmente, de outros modelos
estruturais, seja o decorrente da união estável entre homem e
mulher (art. 226, par. 3º, CF), seja o originário de comunidade
monoparental, formada por qualquer dos pais e seus
ascendentes ( art. 226, par. 4 º ), ambos reconhecidos como
entidades familiares.
Como é cediço, o dinamismo da realidade social rompe barreiras,
contribui para a mudança de paradigmas e acrescenta novos valores, o que
exige dos profissionais do Direito elevada dose de sensibilidade para tratar
adequadamente as questões que circundam as relações sociais e jurídicas,
sem esquecer que o homem, titular de tais relações, é de carne e osso167, e
assim deve ser considerado. Nesse sentido, Pietro Barcellona168 pontua que:
El giro que había que provocar, la ruptura con el pasado,
consistía en llegar a pensar todo el problema de la existencia
social a partir del individuo; pensar el individuo y el orden en una
contextualizad, en una relación de reciprocidad; asumir una
antropología individualista para poner en marcha una nueva
constitución social (…).
El sujeto que, partiendo de una antropología individualista, debe
construir el nuevo orden, el artificio que conserva la vida, debe
ser pensado como un a priori respecto a la individualidad
empírica, respecto a la reacción vital naturalista del hombre
sujeto de necesidad visto como cuerpo, naturaleza, instinto (…).
(…) pero la individualidad singular debe ser mediada con la
instancia de la generalidad universal, que es la única que puede
producir por si misma un orden general.
Das lições do mencionado pensador italiano extrai-se que o
homem abstrato serve como parâmetro para se chegar ao homem empírico;
isto é, ao analisar determinada situação, o aplicador do Direito deve partir do
ideal
do
homem
abstrato,
sem
esquecer
de
chegar
ao
concreto,
contextualizado. Nessa perspectiva, insere-se a análise da família como um
instituto que ultrapassa a idéia clássica de sua composição por pai, mãe e
filhos, para alcançar, também, o indivíduo que vive só.
No contexto contemporâneo, em que se evidenciam valores como
a dignidade humana e a solidariedade, é preciso olhar para a família não
167
BARCELLONA, Pietro. El individualismo proprietário. Presentación Mariano Maresca. Traducción
Jesús Ernesto García Rodríguez. Madrid: Editorial Trotta, S.A., 1996. p.17.
168
Idem. Ibidem. p. 43-45.
60
apenas como instituto, regido por regras e princípios próprios, mas, sobretudo,
como uma função, qual seja a de célula de proteção de pessoas que, num
mesmo habitat, dividem anseios, sonhos e necessidades, ou daquela que, por
circunstâncias várias, vive só. Cabe ressaltar, ainda, que a família também é
decorrência dos fatos sociais, e como tais se modificam de acordo com o
tempo.
Assim considerada a realidade, merece particular realce a
Constituição de 1988, como marco de nova concepção de família, guiada pelo
afeto e pela solidariedade, obtendo, inclusive, capítulo próprio e regras novas,
tais como: o reconhecimento da união estável como entidade familiar, a
igualdade entre os cônjuges; a isonomia entre os filhos havidos dentro ou fora
do casamento; a obrigação dos filhos maiores de amparar os pais nos
momentos necessários, como na velhice e similares.
Nesse processo evolutivo, a família ultrapassou o estágio
hierarquizado do sistema patriarcal, focada no casamento, “nasce a família
constitucional, com a progressiva eliminação da hierarquia, emergindo irrestrita
liberdade de escolha; o casamento fica dissociado da legitimidade dos filhos”,
ensina Luiz Edson Fachin169, que defende a nova face da família, marcada por
valores como a igualdade e o afeto. Aduz, ainda, o pensador mencionado:
sob as relações de afeto, de uma principiologia constitucional
fundada na solidariedade e na cooperação, proclama-se, com
mais assento, a concepção eudemonista da família: não é mais
o indivíduo que existe para a família e para o casamento, mas a
família e o casamento existem para o seu desenvolvimento
pessoal, em busca de sua aspiração à felicidade.
Não há como refutar que, nos tempos atuais, o significante família
está umbilicalmente vinculado ao pleno desenvolvimento de seus membros,
devendo, portanto, cumprir função eminentemente social.
Acrescente-se a
importância do Estado, e por conseqüência, do Direito, no sentido de
harmonizar os ditames legais de amplitude genérica e abstrata à realidade
concreta e real.
169
FACHIN, Luiz Edson. Princípios Constitucionais e Relações Privadas: Questões de Efetividade no
Tríplice Vértice entre o Texto e Contexto. ( no prelo ), 2008. p. 9.
61
Nesse cenário, torna-se ainda mais evidente a premência do
reconhecimento do Direito à Moradia como direito humano fundamental e
essencial à preservação do bem-estar da família e do patrimônio mínimo como
condição necessária para que seus membros possam desfrutar de uma vida
digna.
No capítulo seguinte, no âmbito da análise de alguns aspectos
dos direitos humanos fundamentais, buscar-se-á demonstrar a dupla face do
direito de propriedade, e sua imbricação com o direito humano fundamental `a
moradia.
62
Capítulo II - DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS
II.1. Principais Aspectos
“A base antropológica dos direitos fundamentais não é apenas o
‘homem individual’, mas também o homem inserido em relações sócio-políticas
e sócio-econômicas e em grupos de vária natureza, com funções sociais
diferenciadas”, professa José Joaquim Gomes Canotilho170.
Com fundamento na lição do pensador português e, considerando
os objetivos da pesquisa, neste capítulo, a ênfase recai, em termos gerais, nos
Direitos Humanos Fundamentais, vez que um dos maiores desafios da
sociedade contemporânea é coadunar tais direitos com os interesses público e
privado.
De início, cumpre registrar que, embora pouco se mencione
acerca da Idade Antiga quando se aborda o tema dos direitos humanos
fundamentais, é possível, no entanto, verificar o reconhecimento de alguns
desses direitos nesta fase. A esse respeito é muito elucidativa a análise de
Ingo Wolfgang Sarlet171, quando aponta que tal período, especialmente por
influência da religião e do pensamento filosófico, deu conta de alimentar idéias
que, posteriormente, serviram de base para o jusnaturalismo.
À guisa de ilustração, o referido doutrinador assinala que o Antigo
Testamento, no livro de Gênesis, faz referência ao homem como a imagem de
Deus, de onde se pode extrair a “idéia de que o ser humano representa o ponto
culminante da criação divina”. Ainda, no referido livro sacro, é possível
perceber o direito à vida digna, quando Deus se refere aos recursos naturais
como meio de subsistência do homem172.
170
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional. 4 ed. Coimbra: Livraria Almeida, 1986. p. 447.
SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 7. ed. rev. atual. e ampl. Porto
Alegre: Editora Livraria do Advogado. 2007. p. 45.
172
BIBLIA SAGRADA. Livro de Gênesis. Tradução João Ferreira de Almeida. Brasília: Sociedade Bíblica
do Brasil. 1990. p. 2. Conforme Gênesis, cap. 1, versículo 29, in verbis: “E disse Deus: Eis que vos tenho
dado toda a erva que dá semente, que está sobre a terra; e toda a árvore, em que há fruto de árvore que
dá semente, ser-vos-á para mantimento”.
171
63
A rigor, o pensamento jusnatural obteve fôlego a partir do período
medieval. Nesse sentido, Santo Tomás de Aquino, propugnando o ideal de
justiça como princípio da igualdade, defendia a existência de duas formas de
manifestação do Direito: uma de caráter naturalístico (expressão da natureza
racional do homem) e outra, decorrente do positivismo (qualquer violação ao
direito natural por parte dos governantes gerava o direito de o agredido opôr
resistência)173. Nessa linha de argumentação, louvável foi a contribuição do
Cristianismo, consubstanciada na defesa da igualdade, da fraternidade e da
dignidade humana174.
A travessia da fase medieval para a Idade Moderna ocorreu por
meio de um processo de transformações sócio-econômicas e culturais, sob a
influência de fatores como o acelerado crescimento do comércio marítimo,
seguido pelo desenvolvimento da burguesia e pela reforma protestante. A nova
realidade fez ecoar novos pensamentos, tanto no campo científico quanto no
filosófico, os quais alçaram o homem para o centro das discussões. Nesse
contexto, Almir de Oliveira175 aponta que:
O humanismo renascentista procurou compreendê-lo (o homem)
como um ser dotado de liberdade e dignidade próprias, finito e
histórico, integrado na natureza e na sociedade, apto a conhecer
o universo mediante a observação e a pesquisa, bem como a
transformar o mundo.
O racionalismo, a começar de Descartes, acentuou a valorização
do indivíduo, afirmando a sua independência em relação à
autoridade científica e à filosofia, pela ênfase que deu à
investigação e à meditação.
A Idade Moderna foi marcada por notável ascendência do
pensamento jusnatural176, fonte inspiradora do Movimento Iluminista. Conforme
esclarecimento de Manoel Gonçalves Ferreira Filho177, a laicização do direito
173
SARLET ( 2007.a ). p. 45-46.
OLIVEIRA, Almir de. Curso de Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2000. p. 107-108.
Nesta época, a dignidade humana ganhou destaque em detrimento da regra segundo a qual o Direito era
“ uma dádiva do rei ou do Estado”. Os princípios cristãos de igualdade, fraternidade e solidariedade se
entrelaçavam, formando um imperativo normativo de respeito mútuo entre os homens.
175
Idem. Ibidem. p.111-112. A referida travessia da Idade Média para a Idade Moderna pode ser
demarcada por dois marcos: no período medieval vigia o pensamento teocêntrico, ou seja, as normas
vinham do “Divino”, já a fase moderna consagra a visão antropocêntrica, isto é, o indivíduo exsurge “como
a firmação de suas liberdades e de seus direitos”, afirma o autor.
176
SARLET ( 2007.a ). p. 47. Defensores da tese dos direitos naturais inalienáveis do homem, além de
Hugo Grócio, destacam-se Samuel Pufendorf, John Milton e Thomas Hobbes, aponta o autor.
177
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos Humanos Fundamentais. 8. ed. rev. atual. São
Paulo: Editora Saraiva, 2007.
174
64
natural é contribuição de Hugo Grócio, para quem certos direitos eram
inerentes à pessoa humana, independentemente de seu reconhecimento legal.
Em sentido um pouco diverso, Thomas Hobbes, malgrado defendesse a
existência dos referidos direitos, entendia que sua titularidade só encontrava
legitimidade no estado de natureza. A partir do momento em que o homem
resolveu abandonar tal estágio e optou por submeter-se a entidade estatal, tais
direitos deveriam ser disciplinados pelo soberano178.
No final do século XVIII, com a eclosão da Revolução Francesa,
escreveu-se nova página da história, materializando-se um processo moldado
por movimentos como o Iluminismo e o Renascentismo, sem esquecer a
insatisfação do povo francês com o sistema feudal. Para alguns autores179, tal
revolução representa o início da Idade Contemporânea; para outros180, no
entanto, tal fase tem como marco o período pós-primeira guerra mundial, a
partir do século XIX.
Divergências à parte, a verdade é que os séculos XVIII e XIX
foram marcados pelo individualismo, corolário do pensamento liberal, defendido
por pensadores como John Locke e Immanuel Kant, para os quais os direitos
naturais assumiam feições diversas: enquanto para John Locke181, a vida, a
liberdade e a propriedade compreendiam espécies, do gênero direitos naturais,
para Immanuel Kant182, o direito de liberdade consubstanciava um direito
natural que abarcava todos os demais direitos.
Aos poucos, no entanto, verificou-se que o individualismo per se
já não dava conta de manter o equilíbrio social, pois as desigualdades
materiais eram evidentes, especialmente após a I Guerra Mundial. Esse
processo agravou-se com o surgimento da Revolução Industrial, que ensejou o
aparecimento de situações de conflito, marcadamente pela desarmonia entre
178
SARLET ( 2007.a ). p. 47.
COSTA, Cássia Celina Paulo Moreira da. A Constitucionalização do Direito de Propriedade
Privada. Rio de Janeiro: Editora América Jurídica, 2003. p. 38.
180
Ver OLIVEIRA, Almir de. Ob. Cit. p.120.
181
LOCKE, John. Segundo Tratado Sobre o Governo Civil e Outros Escritos. Tradução Magda Lopes
e Marisa Lobo da Costa. 3. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2001. p. 69.
182
KANT, Immanuel. A Metafísica dos Costumes. Tradução, textos adicionais e notas: Edson Bini. São
Paulo: Editora Edipro, 2003, p. 40. Ensina o filósofo: “a liberdade ( a independência de ser constrangido
pela escolha alheia ), na medida em que pode coexistir com a liberdade de todos os outros de acordo
com uma lei universal, é o único direito original pertencente a todos os homens em virtude da humanidade
destes”.
179
65
as demandas dos trabalhadores por
seus direitos e
os interesses
capitalistas183.
O século XX, em particular, foi marcado por “um construir” e,
paradoxalmente, por “um desconstruir”; isto é, ao mesmo tempo em que
emergiram novos significantes, como o trabalho industrial e o avanço
tecnológico, tornaram-se mais claras as desigualdades materiais, a pobreza e a
exclusão social - fenômenos que, além de vilipendiar a dignidade humana,
violavam os direitos básicos à vida digna, à segurança, à liberdade, ao bem
estar e o direito de sonhar e ser feliz.
Na seara da promoção e positivação dos direitos humanos, podese apontar como marco histórico, a Carta Magna inglesa184, de 1215, a qual
consagrou alguns direitos-garantias como o habeas corpus, o devido processo
legal, a propriedade privada e o princípio da legalidade. Não obstante, a
questionável legitimidade da referida Constituição - pois, na verdade,
consubstanciou apenas a concretização dos interesses da burguesia -, ela
representa um capítulo da história do constitucionalismo inglês.
Outro documento que merece referência é o Código sueco
Magnus Erikson, de 1350, que limitava a conduta do rei, no sentido de que ele
não poderia obstar o livre exercício dos direitos do homem, sem prévio
processo legal, nem permitir a perda dos bens dos cidadãos em desacordo
com o Direito185. Vale mencionar, ainda, a Petition of Rights inglesa, de 1628, e
o Bill of Rights inglês, de1689186.
No século XVIII, três paradigmáticos documentos marcaram a era
dos direitos humanos: a Declaração da Independência dos Estados Unidos da
América, de 1776, que afirmava os ideais de democracia, calcados na vontade
do povo, bem como a natureza inalienável dos direitos humanos; a Declaração
de Direitos de Virgínia, de 1776, que proclamava o direito à liberdade e à
existência de direitos natos; e a Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão francesa, de 1789, que consagrava a liberdade, a igualdade e a
183
OLIVEIRA. Op. Cit. p. 119.
Ver SARLET, Ingo Wolfgang ( 2007.a ), para quem a Magna Carta de 1215, embora seja considerada
“o mais importante documento da época”, a mesma não foi o primeiro diploma a disciplinar a matéria,
pois, já nos séculos XII e XIII existiram “as Cartas de Franquia e os Forais outorgados pelos reis
portugueses e espanhóis”.
185
OLIVEIRA. Ob. Cit. p. 111.
186
FERREIRA FILHO. Op. Cit. p. 12-13. Seguidos pelo Rule of Law , o qual, de certa forma, sintetiza os
textos dos referidos documentos e das decisões dos Tribunais ingleses.
184
66
preservação de certos direitos naturais como: “liberdade, propriedade,
segurança e resistência à opressão etc187”.
Na seqüência, no século XIX, merece destaque a evolução dos
direitos humanos a partir da Constituição mexicana, de 1917 e da Constituição
alemã de Weimar, de 1919, visto que ambas consagraram um capítulo para
agasalhar tais direitos.
A iniciativa foi seguida por diversos Estados. Nesse passo, cabe,
ainda, realçar a importância, em termos de promoção universal188 dos direitos
humanos, a Declaração Universal de Direitos do Homem da ONU, de 1948; a
Carta Internacional Americana de Garantias Sociais, de 1948 (OEA); a
Convenção Européia de Direitos do Homem, de 1950; o Pacto Internacional de
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e o Pacto Internacional de Direitos
Civis e Políticos ( ONU, ambos de 1966 ).
Outro ponto referente aos direitos humanos fundamentais
relaciona-se às suas diversas nomenclaturas ( apresentadas neste trabalho de
forma exemplificativa ), vez que a doutrina é dissonante não somente quanto
aos termos, mas também no tocante ao seu conteúdo. Embora, em regra, a
designação de um instituto não tenha muita importância para demonstrar seu
conteúdo, no que toca aos referidos direitos, os estudiosos do tema têm
apontado nuances que justificam as diferentes expressões propostas189.
Nessa linha de pensamento, cumpre sublinhar a análise de Almir
de Oliveira190, ao ressaltar que a denominação “Direitos do Homem” é a mais
remota, com fundamento na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão
francesa, de 1789, como documento propagador. O referido doutrinador
acrescenta que tal expressão é criticada por alguns estudiosos191, que a
187
OLIVEIRA. Op. Cit. p. 117-118.
Cumpre de pronto destacar que, embora não se objetive, neste trabalho, abordar a discussão acerca
da idéia de universalização dos direitos humanos fundamentais, cabe menção à obra de RUBIO, David
Sánches. Repensar Derechos Humanos: De la anesthesia a la sinestesia. Sevilla. Espanha: Editora
Mad, S.L. 2007, p. 84-100, na qual o autor espanhol aborda o tema a partir de três perspectivas: o poder
e o aparente duplo interesse; a globalização e a universalidade; e a inversão ideológica e negação de
direitos.
189
No presente estudo, optou-se pela expressão “Direitos Humanos Fundamentais”, inspirada na doutrina
de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, a qual consubstancia as idéias de direitos inerentes ao ser humano,
e a sua fundamentalidade corolário da dignidade da pessoa humana. Cf. FERREIRA FILHO, Manoel
Gonçalves. Direitos Humanos Fundamentais. 8. ed. rev. atual. São Paulo: Editora Saraiva, 2007. p.20.
190
OLIVEIRA. Op. Cit. p. 48.
191
Nesse sentido ver PECES-BARBA e TOBEÑAS 1970 apud OLIVEIRA., 2000. p. 48.
188
67
consideram redundante, na medida em que todos os direitos são, ainda que
indiretamente, dirigidos ao homem.
Sob esse enfoque, é pertinente frisar que a Declaração francesa
dos Direitos do Homem e do Cidadão distingue os direitos do homem dos
direitos do cidadão: quando se fala em cidadão, identifica-se aquele sujeito que
faz parte da sociedade, cujas regras norteiam seu comportamento, ao passo
que, quando se faz referência ao homem, confere-se relevo ao indivíduo que
preexiste à sociedade. Com viés jusnaturalista, tal concepção consagra os
direitos do homem como naturais e inalienáveis e os direitos do cidadão como
positivados e garantidos pelo ordenamento jurídico.
“Direitos Humanos” é outra expressão comumente adotada por
vários autores192, bem como pela Declaração Universal dos Direitos Humanos,
de 1948, da ONU. O Constituinte de 1988, a despeito de utilizar a expressão
Direitos e Garantias Fundamentais, no Título II, também emprega o termo
direitos humanos em mais de um momento, conforme se depreende dos
artigos 4º, inciso II, 5º, par. 3º, e 109, inciso V.
José Joaquim Gomes Canotilho193, Ingo Wolfgang Sarlet194 e
Daniel
Sarmento195
manifestam
preferência
pela
expressão
“Direitos
Fundamentais” em comparação com qualquer outra, pois reconhecem que a
fundamentalidade, não apenas adjetiva o substantivo “direito”, mas também
sinaliza maior grau de compromisso por parte do Estado que o positivou.
Vicente de Paulo Barreto196 também adota tal expressão e a desdobra em duas
acepções: “ uma para designar certos direitos que reconhecem e garantem a
192
A título de exemplo tem-se PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Justiça Internacional. São Paulo:
Editora Saraiva, 2006. p. 7. e NASCIMENTO, Rogério José Bento Soares do. Política Criminal e
Direitos Humanos: Papel da Acusação Pública no Processo Penal Democrático. ( no prelo ). O autor
define os direitos humanos como “um conjunto de direitos e garantias atribuíveis à generalidade das
pessoas, pela sua condição humana”.
193
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional. 4. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1986. p. 438439.
194
SARLET ( 2007. a ). p. 33 et seq. O autor conceitua Direitos Fundamentais como “todas aquelas
posições jurídicas concernentes às pessoas, que, do ponto de vista do direito constitucional positivo,
foram, por seu conteúdo e importância ( fundamentalidade em sentido material ), integradas ao texto da
Constituição e, portanto, retiradas da esfera de disponibilidade dos poderes constituído
( fundamentalidade formal ), bem como as que, por seu conteúdo e significado, possam lhes ser
equiparados, agregando-se à Constituição material, tendo, ou não, assento na Constituição formal ( aqui
considerada a abertura material do catálogo )”. O art. 5º, par. 2 º da CR/88, revela a amplitude material
dos direitos humanos fundamentais, agasalhando direitos não positivados, bem como os direitos
espalhados pelo corpo do texto da Constituição e nos Tratados Internacionais.
195
SARMENTO ( 2006 ). p. 3 et seq.
196
BARRETO, Vicente de Paulo. Reflexões Sobre os Direitos Sociais. In: SARLET, Ingo Wolfgang
(organizador). Direitos Fundamentais Sociais: Estudos de Direito Constitucional, Internacional e
Comparado. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2003. p. 123.
68
qualidade de pessoa ao ser humano. É o sentido filosófico da expressão.” A
segunda acepção "corresponde aos direitos humanos positivados”.
Numa
análise crítica ao termo, Almir de Oliveira197 assevera que o mesmo não é
capaz de refletir a realidade, pois o homem não seria o único destinatário de
tais direitos, vez que o Estado também pode ser titular de direitos
fundamentais. De fato, parte respeitável da doutrina constitucionalista198
entende que os direitos fundamentais abarcam os direitos humanos positivados
nas Constituições dos Estados, ao passo que a expressão direitos humanos é
amplamente reconhecida na sociedade internacional.
Segundo o entendimento de Ricardo Lobo Torres199, as
expressões “direitos humanos”, “direitos naturais”, “direitos da liberdade” e
“direitos fundamentais” se equiparam, ainda que seja possível vislumbrar
algumas peculiaridades que as distinguem; o certo é que se referem a direitos
inerentes à essência humana. Argumenta, ainda, o pesquisador em tela, que
os direitos econômicos e sociais não configuram direitos humanos, pois
dependem de prestações positivas do Estado e da vontade do legislador, o que
lhes retira o “traço fundamental dos direitos humanos, que é o valer
independentemente da lei ordinária”.
A Constituição de 1988, malgrado nomear o Título II de “Direitos e
Garantias
Fundamentais”,
conforme
exposto
anteriormente,
utiliza
nomenclaturas variadas ao longo do corpo textual, ao se referir a tais direitos,
conforme se depreende do art. 4º, inciso II; do art. 5º, incisos XLI e LXXI, e par.
3º; art. 7º do ADCT; do art. 34, inciso VII, alínea b; do art. 60, par.4º, inciso IV;
e do art. 109, inciso V200. Segundo lições de Ingo Wolfgang Sarlet201, a
197
OLIVEIRA. Op. Cit. p. 52-53. Pontua, ainda, o autor que existe, desde 1949, na ONU, um projeto de
Declaração de Direitos dos Estados, entre os quais estão: “independência, igualdade jurídica, jurisdição
sobre o seu territótio e legítima defesa”.
198
SARLET ( 2007.a ). p. 38. Nesse sentido, aponta o autor, ressaltando a doutrina de Otfried Höffe, que
a diferença básica entre direitos humanos e direitos fundamentais repousa no fato de que aqueles, apesar
de ínsitos às pessoas, antes de positivados representam ‘apenas uma espécie de moral jurídica
universal’. Os direitos fundamentais, a seu turno, uma vez açambarcados pelo ordenamento jurídico,
passam a integrar a seara jurídica dos membros dos respectivos Estados.
199
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. Rio de
Janeiro: Editora Renovar, 2000. p. 9-11. Ensina o autor que os direitos individuais, expressão consagrada
na França e nos Estados Unidos, pode ser traduzida em direitos humanos ou fundamentais ( esta
comumente usada pelos doutrinadores alemães ), bem como em direitos da liberdade.
200
Para ilustrar: O art. 4º, inciso II, contempla o termo “direitos humanos” como um dos princípios que
norteiam as relações do Brasil com a sociedade internacional; o art. 5º, inciso LXXI, ao tratar do Mandado
de Injunção denomina os direitos humanos fundamentais de “direitos e liberdades constitucionais”; o art.
34, inciso VII, alínea b, ao discriminar os denominados princípios constitucionais sensíveis, utiliza a
expressão “direitos da pessoa humana”; o art. 60, par. 4º, inciso IV, ao cuidar das cláusulas pétreas, os
denomina de “direitos e garantias individuais”; e o art. 109, inciso V-A, ao tratar da competência dos juizes
69
expressão “Direitos e Garantias Fundamentais”, insculpida no Título II, da Carta
de 1988, abarca todas as espécies de direitos fundamentais, desde os
individuais até os sociais e coletivos.
Cabe, ainda, trazer à lume os chamados estágios que os direitos
humanos fundamentais têm percorrido ao longo do seu processo evolutivo,
como ocorre na vida em relação.Tal processo202 deu margem ao surgimento da
construção doutrinária que classifica os direitos em dimensões (ou gerações
para alguns doutrinadores)203.
Classicamente, adotaram-se três dimensões de direitos humanos
fundamentais204, não obstante, alguns doutrinadores205 defenderem maior
número.
A primeira corresponde aos direitos civis e políticos, os quais
surgiram no século XVIII, como direitos de defesa do indivíduo em face do
Estado: os indivíduos exigiam, na verdade, comportamento “negativo” da
autoridade pública.
A segunda geração compreende os direitos econômicos, sociais e
culturais e alcançaram espaço especialmente no século XIX, em particular,
como conseqüência do desenvolvimento industrial e de suas graves mazelas,
advindas das constantes violações aos direitos humanos fundamentais e das
desigualdades sociais.
Nesse contexto, muitos movimentos sociais propugnavam que os
direitos à liberdade e à igualdade, em seu sentido meramente formal, não eram
mais suficientes para garantir a concretização desses e de outros direitos.
Desta forma, passou-se a exigir conduta ativa do Estado; ou seja, o ente
público precisava desenvolver políticas para, senão erradicar, pelo menos
amenizar as injustiças sociais. Abordando o tema, Ingo Wolfgang Sarlet206
federais para processar e julgar as causas que envolvem violação a tais direitos, se refere ao termo
“direitos humanos”.
201
SARLET ( 2007 ). p. 38.
202
Idem. Ibidem. p. 54. O autor critica a expressão “gerações”, pois, segundo ele, dá a equivocada idéia
de que os direitos humanos fundamentais se substituem ao longo do tempo. Face a isso opta pela
denominação “dimensões”, vez que esta dá a idéia de complementariedade, ao revés de substituição,
como a primeira denota.
203
Ver MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 17. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2005. p. 26.
204
SARLET ( 2007.a ). p. 58-60.
205
LIMA NETO, Francisco Vieira.
Direitos Humanos de 4ª Geração. Disponível em:
< www.dhnet.org.br>. Pesquisa realizada em 09/09/2007. Segundo o autor, tal geração compreenderia os
direitos ligados ao patrimônio genético.
206
SARLET ( 2007.a ). p. 58.
70
esclarece que “não se cuida mais, portanto, de liberdade do e perante o
Estado, e sim liberdade por intermédio do Estado”. Saliente-se que os
chamados direitos de segunda dimensão (econômicos, sociais e culturais) não
se circunscrevem às prestações positivas, mas alcançam igualmente as
“liberdades sociais”, como o direito de greve, a liberdade sindical, assevera o
mencionado autor. Segundo suas palavras: “os Direitos Sociais podem ser
considerados uma densificação do princípio da justiça social, além de
corresponderem à reivindicação das classes menos favorecidas”. Argumenta,
ainda, o pensador pátrio207:
Os
direitos
fundamentais
podem
ser
considerados
simultaneamente pressuposto, garantia e instrumento do
princípio democrático da autodeterminação do povo por
intermédio de cada indivíduo, mediante o reconhecimento do
direito de igualdade ( perante a lei e de oportunidades ), de um
espaço de liberdade real, bem como por meio da outorga do
direito à participação ( com liberdade e igualdade ), na
conformação da comunidade e do processo político (...). A
liberdade de participação política do cidadão, como possibilidade
de intervenção no processo decisório e, em decorrência, do
exercício de efetivas atribuições inerentes à soberania ( direito
de voto, igual acesso aos cargos públicos etc ), constitui, a toda
evidência, complemento indispensável das demais liberdades.
Diante dos esclarecimentos do referido autor, é possível concluir
que a democracia participativa, escorada nos Direitos Humanos Fundamentais,
pode ser um próspero caminho no sentido de garantir “voz ativa” não somente
àqueles que já conhecem os meios disponíveis para fazer valer seus direitos,
mas também àquela parcela da população considerada minoria. No entanto,
para que tal assertiva ascenda ao mundo fático requer, além de um Estado
com governantes sérios, a conscientização dos cidadãos de que os Direitos
Humanos Fundamentais não são apenas elucubrações teóricas, mas valores
que dependem, para sua efetividade, da existência de uma sociedade forte,
madura e participativa.
207
SARLET ( 2007.a ). p. 72-73.
71
Daniel Sarmento208 aponta para outra perspectiva dos direitos
humanos fundamentais, quando faz referência a sua dimensão objetiva, no
sentido de ampliar os efeitos dos mesmos. O mencionado autor elucida que:
A dimensão objetiva liga-se a uma perspectiva comunitária dos
direitos humanos, que nos incita a agir em sua defesa, não só
através dos instrumentos processuais pertinentes, mas também
no espaço público, através de mobilizações sociais (...). Afirmase que a dimensão objetiva expande os direitos fundamentais
para o âmbito das relações privadas, permitindo que estes
transcendam o domínio das relações entre cidadão e Estado.
A dimensão objetiva dos direitos humanos fundamentais, a que
alude o mencionado autor, está intrinsecamente ligada ao tipo de Estado que a
sociedade delineia e, por conseguinte, à forma como tais direitos são
efetivamente respeitados e concretizados no plano da realidade. No Estado
liberal, por exemplo, privilegiava-se a liberdade individual; havia uma distância
entre Estado e sociedade209, ao passo que, no Estado Social, com influência da
doutrina social da Igreja Católica, passou-se a admitir a participação do Poder
Público nas “causas privadas”, com o objetivo de amenizar as desigualdades
materiais.
Nesse sentido, vale repisar a importância e o papel impositivo da
Constituição Federal de 1988, uma vez que suas normas devem incidir sobre
todas as demais de caráter infraconstitucional, porquanto, como preleciona
Daniel Sarmento210, “a Constituição representa um limite para o legislador
privado, o que importa na inconstitucionalidade das normas editadas em
contrariedade a ela”, e os direitos humanos fundamentais representam o
balizamento das condutas do Estado e dos particulares.
Nesse contexto, torna-se necessário analisar melhor certas
normas que, diretamente, violam valores e direitos humanos fundamentais,
como é o caso da regra prevista no art. 3º, inciso VII, da Lei 8.009/90, que
admite a penhora do bem de família do fiador, afrontando o direito humano
fundamental à moradia, dentre outros valores, conforme será demonstrado no
Título II, capítulo I, deste trabalho.
208
SARMENTO ( 2006 ) p. 105-140.
Idem. Ibidem. p. 3-17.
210
Idem. Ibidem. p. 77-78.
209
72
Feitas essas breves considerações acerca da teoria dos direitos
humanos fundamentais, analisar-se-á, no próximo tópico, o direito humano
fundamental de propriedade imóvel a partir de sua dupla face.
II. 2. O Direito de Propriedade e sua dúplice dimensão: autônoma e
acessória
Neste tópico objetiva-se analisar alguns aspectos do direito de
propriedade, a fim de compreender a sua dinâmica e a sua inter-relação com o
direito humano fundamental à moradia e com a garantia do patrimônio mínimo,
consubstanciado no bem de família legal.
Para melhor compreensão do instituto da propriedade, far-se-á
rápida incursão no direito romano antigo, nas Idades Média e Moderna, até
chegar a atual fase contemporânea, a qual culmina com a Revolução Francesa
de 1789211.
Cássia Celina Paulo Moreira da Costa212 discorre sobre o tema e
esclarece que a propriedade, no direito romano antigo, se desdobrava em
quatro espécies, num contexto histórico, dividido basicamente em três fases
distintas, assim resumidas:
A primeira compreende o denominado direito antigo ou préclássico, situado nos anos de 754 a.C., aproximadamente, a 149 e 126 a.C.
Nessa etapa, a única espécie de propriedade de que se tem notícia é a
quiritária213, que abarcava tanto o bem móvel, quanto o imóvel. A tutela do
Estado a esta espécie abrangia, inclusive, a imunidade tributária, pois, qualquer
tributo que incidisse sobre ela poderia prejudicar o pater familiae.
A segunda fase do período histórico do direito romano antigo
caracteriza-se como
direito
clássico e compreende
o final da
fase
anteriormente mencionada até o ano 305 d.C. Nesse período, além da
211
COSTA, Cássia Celina Paulo Moreira da. A Constitucionalização do Direito de Propriedade
Privada. Rio de Janeiro: Editora América Jurídica, 2003. p. 29.
212
Idem. Ibidem. p. 5 et seq.
213
Idem. Ibidem. Segundo a autora, a propriedade quiritária decorria do status civitatis, o titular era um
cidadão romano, um pater familiae ( somente os patrícios eram cidadãos romanos). “A aquisição da
propriedade quiritária imóvel ocorreu inicialmente por volta de 500 a.C., por meio da concessão, de
caráter precário, pelo Estado romano, do ager publicus ( terras públicas ).”. Depois dessa concessão, a
transferência só ocorria por herança, não era admitida a convenção. p. 5-6.
73
propriedade quiritária, surgiram três espécies do instituto: a propriedade
bonitária ( também denominada de pretoriana ); a provincial; e a peregrina214.
Por fim, a terceira fase do referido período antigo romano é
denominada de pós-clássica ou romano helênico e é marcada pela unificação
de todas as espécies do instituto, resultando numa única categoria de
propriedade privada, cuja transferência se dava pela traditio e se sujeitava à
cobrança de tributos que sobre ela incidiam, além de algumas restrições
impostas pelo poder público.
Nesse passo, chega-se à Idade Média, período no qual o conceito
de propriedade começou a ser desenhado pelos estudiosos do Direito, com a
Escola dos Glosadores que, malgrado não conseguirem definir a propriedade,
desenvolveram a distinção entre, o que chamavam, dominium proprietatis
(domínio dos proprietários ) e dominium imperii (domínio do príncipe). Ainda, a
idéia de domínio direto e domínio útil surgiu a partir da contribuição dos
pensadores desta escola215.
Na verdade, a primeira definição de propriedade surgiu com a
Escola dos Comentaristas, que influenciou todo o direito do ocidente, como
assevera San Tiago Dantas216, quando aponta o conceito do instituto proposto
por Bártolo: “dominium est ius de re corporalis perfecta disponendi nisi lex
prohibeatur”; isto é, “domínio é o direito de dispor de um modo completo das
coisas corpóreas, salvo naquilo que for proibido por lei”.
Com a superação do modelo medieval e conseqüente influxo do
movimento renascentista ( entre os séculos XV e XVI ), surgiu a Escola do
214
COSTA. Op. Cit. p. 8-9. Diz a autora, “a propriedade bonitária ou pretoriana surgiu quando o pretor
passou a intervir, garantindo proteção àquele que adquiria uma res mancipi, recebendo-a do vendedor
sem o formalismo necessário, mas, tão-somente, por meio da traditio, tradição ( entrega do bem sem
formalidades )”. A provincial, por sua vez, era adstrtita aos bens imóveis localizados nas províncias
romanas, cujo proprietário do solo era o Estado romano. Os particulares, a seu turno, utilizavam a terra
para o plantio, não tendo o domínio sobre ela. Informa a autora, que a situação desses particulares era a
de possuidores. Ainda, a terceira espécie de propriedade exsurgente no período do direito clássico foi a
peregrina, com fulcro no ius gentium, passível de ser adquirida por estrangeiro livre.
215
Idem. Ibidem. p. 104-105 . Ensina a autora que: O domínio direto “ é aquele em que o proprietário não
reconhece um direito acima do seu. Já o domínio útil “é de todo aquele que tem um direito real amplo,
contanto que, acima dele, exista um outro titular, ao qual rende uma vassalagem qualquer”.
216
DANTAS. Op. Cit. p. 109-109. O autor chama a atenção para os elementos que compõem a definição
proposta por Bártolo: “ O primeiro: a coisa corpórea, como objeto necessário do domínio. E essa foi uma
idéia que se estabeleceu definitivamente na doutrina do direito das coisas, só vindo a sofrer contestação
quando, pela concepção da chamada propriedade intelectual; o segundo elemento: é a expressão ius
disponendi, empregada de forma bastante ampla, abrangendo não só os atos que hoje se chamam atos
de disposição, atos que põem fim ao direito, como abrangendo também os atos de simples utilização, o
uso e o gozo. Ele exprimia com ius disponendi toda a senhoria sobre a coisa; e o terceiro elemento:
compreende a expressão nisi lex prohibeatur, que retrata a idéia de que a essência da propriedade não
se compromete com as limitações criadas por lei”.
74
Direito Natural, que absorveu o conceito de propriedade proposto por Bártolo,
incluindo elementos novos, como o poder de reivindicar a coisa. Com efeito, os
pensadores desta escola ( dentre eles está Grotius ) defendiam a idéia de que
a limitação da propriedade não seria de ordem legal, mas de cunho racional,
isto é, “em lugar das limitações legais, para as quais acenava o jurisconsulto
medieval, surge, agora, uma limitação de ordem racionalista: os limites que a
própria razão jurídica impõe àquela faculdade”, leciona San Tiago Dantas217.
Na Idade Moderna, inaugurou-se novo momento, o capitalismo
aflorou com o desenvolvimento industrial e com o surgimento “de impérios
financeiros”218. A época foi marcada também pelo movimento denominado de
Iluminismo, capitaneado por pensadores como o inglês John Locke e o francês
François Marie Voltaire, que defendiam os ideais do individualismo, a
propriedade como direito natural e a liberdade como um atributo da pessoa.
Segundo John Locke219, a noção de propriedade era vista sob
duas perspectivas: na primeira, o instituto consubstanciava-se na vida, na
liberdade e em tudo aquilo que o homem adquirisse com seu trabalho; na
segunda perspectiva, a propriedade consistia em forma de garantia da
liberdade.
Ainda nesse período, merece destaque o pensamento do alemão
Immanuel Kant220que, ao discorrer sobre a propriedade, defendia a idéia de
que a aquisição de um bem no estado de natureza era provisória, somente
adquirindo o caráter da definitividade com a lei, criada pelo Estado. Cumpre
ressaltar que, como John Locke e François M. Voltaire, o mencionado autor
também alçava a propriedade à espécie de direito natural, conquanto
discordava da teoria do trabalho, eis que defendia a idéia de que o referido
instituto dependia do reconhecimento normativo do Estado.
Nessa trilha, chega-se à última parte do marco proposto para o
presente estudo, a Revolução Francesa de 1789, cujos efeitos se espraiaram
217
DANTAS. Op. Cit. p. 110-111. Aponta o autor que a época era do individualismo jurídico, em que a
autonomia da vontade imperava, e o sujeito titular do direito de propriedade era o único competente para
determinar a limitação sobre a coisa, por meio do critério da racionalidade.
218
COSTA. Op. Cit. p. 21-22.
219
LOCKE, John. Segundo Tratado Sobre o Governo Civil e Outros Escritos. Tradução Magda Lopes
e Marisa Lobo da Costa. 3. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2001. p.96.
220
KANT, Immanuel. A Metafísica dos Costumes. Tradução, textos adicionais e notas Edson Bini. São
Paulo: Editora Edipro, 2003. p. 109-115.
75
para além do território francês, influenciando muitos ordenamentos jurídicos e
diversos segmentos da sociedade, alcançando, inclusive, o instituto da
propriedade, que passou a ter caráter absoluto e sacramental,221 além dos
atributos de inviolabilidade, exclusividade e perpetuidade, conforme se
depreende da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789,
seguida pelo Código Civil de Napoleão, de 1804.
Silvio Rodrigues222 elucida que a Revolução Francesa deu novo
sentido à propriedade, desgarrando-se “da concepção medieval, dentro da qual
o domínio se encontrava repartido entre várias pessoas, sob o nome de
domínio iminente do Estado, domínio direto do senhor e domínio útil do
vassalo”; adotando a idéia unitária de propriedade, mais ajustada à concepção
romana, “em que o proprietário é considerado senhor único e exclusivo de sua
terra”.
Algumas teorias tentam explicar a natureza do direito de
propriedade. Cássia Celina Paulo Moreira da Costa223 aponta as principais
abordagens teóricas, como se explicita a seguir:
Teoria da Ocupação, sustentada por Grócio, é a que defende o
modo de aquisição do domínio ser sempre originário, por
conceber que a legitimidade do domínio estaria sempre nas
mãos daquele que, em primeiro lugar ocupasse materialmente o
bem(...);
Teoria do Trabalho, defendida por John Locke: (...) não se
justifica o domínio dos bens pelo homem em razão da sua
simples apropriação, mas pelo exercício da transformação ou
elaboração da matéria bruta;
Teoria da Especificação, muitas vezes tratada pelos
doutrinadores civilistas como sinônima da do trabalho, a
propriedade se justifica na obtenção de espécie nova pelo
especificador, quando em utilização de matéria-prima alheia;
Teoria da Natureza Humana, propagada por Planiol, Ripert, e
Gustavo Tepedino, (...) embasa-se na defesa de ser a
propriedade característica natural do homem, a tal ponto que
vem a ser supedâneo a sua existência e, ainda, pressuposto de
sua liberdade;
221
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito de Superfície. In: DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ, Sérgio
(coordenadores). Estatuto da Cidade: Comentários à Lei Federal 10.257/2001. 2. ed. São Paulo: Editora
Malheiros, 2006. O móvel dos cidadãos franceses era a garantia da liberdade e da igualdade dos
homens, e para isso era necessário que a propriedade assumisse feições extremadas. p. 172 et seq.
222
RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: Direito das Coisas. Vol. 5. 28. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora
Saraiva, 2003. p.79-80.
223
COSTA. Op. Cit. p.60-62.
76
Teoria Individualista ou da Personalidade, estatui a necessidade
da constante utilização da propriedade (...). Para mantença da
propriedade, tal teoria impunha a necessidade do
estabelecimento dum estado de espírito, o que os romanos
denominavam affectio ou projeção da extensão da personalidade
do proprietário no bem de sua propriedade;
Teoria Positivista ou da Lei, promovida por Montesquieu,
Hobbes, Mirabeau, Benjamin Constant e Bentham, alicerça-se
no entendimento de que a lei é o direito legislado, o fundamento
de existência da propriedade; e a
Teoria da Função Social, defendida por Josserand, Duguit,
Proudhon e outros, posiciona-se no sentido de que a
propriedade não é um direito, mas sim uma função voltada a
atender aos anseios públicos e coletivos.
É louvável a contribuição de cada uma das mencionadas escolas,
dentro de seu contexto. Entretanto, o direito contemporâneo, alicerçado na
visão constitucionalista, que, entre outros princípios preconiza a dignidade da
pessoa humana, apóia-se na Teoria da Função Social, como justificação e
limite para a propriedade privada. Segundo essa orientação, o caráter absoluto
da propriedade, como decorrência do individualismo extremado, aos poucos,
foi relativizado, especialmente, a partir da Constituição alemã de Weimar, de
1919, a qual passou a proclamar uma ordem econômica e social, que atrelava
a propriedade à finalidade social224.
Na verdade, o conceito de propriedade225 vem se transmudando
ao longo do tempo, e de acordo com o espaço, influenciado por fatores de
diversas ordens226, tais como: a filosófica, a econômica, a sociológica227, a
224
FACHIN, Luiz Edson. A Função Social da Posse e a Propriedade Contemporânea: uma perspectiva
da usucapião imobiliária rural. Porto Alegre: Editora Sergio Antonio Fabris, 1988. p. 14-20.
225
TORRES, Marcos A. de Azevedo. A Propriedade e a Posse: um confronto em torno da Função
Social. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. Na perspectiva da pluralidade das formas de propriedade,
argumenta o autor: “para bem compreender a questão relativa à funcionalização do direito de
propriedade, deve ser considerado como premissa metodológica que não se pode mais ter como
paradigma um conceito unitário que regule o direito de propriedade sobre os diversos bens que lhe
servem de objeto”. De fato, a multiplicidade de institutos proprietários decorre da própria dinâmica do
instituto, levando a considerar a variedade de bens disponíveis, com pluralidade de fins, tais como: a
propriedade intelectual; a propriedade imóvel; os bens móveis consumíveis; e a propriedade industrial.
Face a essa realidade, a propriedade precisa ser analisada em consonância com sua finalidade e o
contexto no qual está inserida.
226
BEZNOS, Clóvis. Desapropriação em Nome da Política Urbana. In: DALLARI, Adilson Abreu;
FERRAZ, Sérgio (coordenadores). Estatuto da Cidade: Comentários à Lei Federal 10.257/2001. 2. ed.
São Paulo: Editora Malheiros, 2006. p. 118.
227
CONSTRUTORA NORBERTO ODEBRECT. As interconexões bioceânicas da integração regional.
Revista DEP. Brasilia: nº 5, p. 193-198, jan. a mar. 2007. No ano de 2000 reuniram-se em Brasília
alguns chefes de Estado, com o propósito de desenvolver projetos de infra-estrutura regional Sulamericana. Nesta época, a construtora brasileira Odebrecht passou a desenvolver três dos projetos
apresentados. Entre eles, estava a construção de moderna rodovia no território peruano próximo a divisa
77
política e até a religiosa. É nesse complexo contexto que a teoria da função
social da propriedade exsurge como novo paradigma à concepção tradicional
de propriedade, calcada no ideário individualista e absoluto. Luiz Edson
Fachin228 trata do tema e assinala que “o grau de complexidade hoje alcançado
pelo
instituto
da
propriedade
deriva
indisfarçavelmente
do
grau
de
complexidade das relações sociais”.
Nessa ordem de valores, exige-se da propriedade contemporânea
uma utilidade a partir de seu significado, seja como direito instrumental para
garantir a efetividade do direito humano fundamental à moradia, seja como
função social, norma diretriz da conduta de seus titulares. Dito de outra forma,
a propriedade deve, sempre, visar aos fins sociais, tanto do titular, quanto da
coletividade, naquilo que lhe for cabível. Nesse diapasão, José Afonso da
Silva229 ensina que “a função social é elemento da estrutura e do regime
jurídico da propriedade; é, pois, princípio ordenador da propriedade privada;
incide no conteúdo do direito de propriedade; impõe-lhe novo conceito” e
acrescenta que a “função social da propriedade não se confunde com os
sistemas de limitação da propriedade”, na medida em que as limitações são
externas e decorrem do próprio exercício do instituto.
É interessante ressaltar que a concepção de função social
atrelada ao direito de propriedade não é tão nova como pode parecer. Lèon
Duguit230, influenciado pelas idéias de Augusto Comte, já em 1850 propugnava
a propriedade não como direito, mas como função social, conforme se
depreende do fragmento textual abaixo transcrito:
Pero la propriedad no es un derecho; es una función social. El
proprietario, es decir, el poseedor de una riqueza, tiene, por el
hecho de poseer esta riqueza, una función social que cumplir;
mientras cumple esta misión sus actos de proprietario están
protegidos. Si no la cumple o la cumple mal, si por ejemplo no
com o Brasil ( Rodovia Inter-oceânica Sul ) . Obras deste tipo sempre enfrentam desafios e obstáculos de
diversas ordens. No caso em tela não foi diferente, a começar por peculiar questão, envolvendo o direito
de propriedade. Conforme se extrai de excerto do artigo aqui mencionado: “ (...) Ali ( Ccatca e Ocongate )
vivem comunidades que cultivam hábitos, tradições e rituais anteriores à chegada dos colonizadores
espanhóis. Falam o quíchua, a língua geral do antigo império inca, e acreditam, como seus ancestrais,
que não é a terra que pertence ao morador, e, sim, o contrário- por isso, julgam necessário fazer-lhe
oferendas para retribuir o que lhes concede. Montanhas, por exemplo, são sagradas, e escavá-las para
tirar pedras que se destinem à obra pode ser interpretado como a invasão de uma catedral”.
228
FACHIN. ( 1988 ). p.18.
229
SILVA. Op. Cit. p. 276-285.
230
DUGUIT, Lèon. Las Transformaciones Generales del Derecho Privado, desde el Código de
Napoleón. 2. ed. Tradução Carlos G. Posada. Espanha: Livraria Espanola y Estranjera, 1920. p. 35-40.
78
cultiva su tierra o deja arruinarse su casa, la intervención de los
gobernantes es legítima para obligarle a cumprir su función
social de proprietario, que consiste en assegurar el empleo de
las riquezas que posee conforme a su destino.
No entendimento do referido pensador, a propriedade, em si, não
traduz direito subjetivo; na verdade, constitui função-dever, o que exige do
proprietário o cumprimento de certos deveres, no sentido de dar ao bem
finalidade compatível com o princípio do desenvolvimento econômico-social.
Nessa linha de preleção, merece ainda relevo a contribuição bem
mais recente de Eros Roberto Grau231, que distingue a propriedade com
conteúdo de função social, da propriedade dotada de função individual. Nessa
linha de compreensão, a propriedade prevista no art. 5°, inciso XXII, da Carta
Magna de 1988, tem status de direito individual e seu conteúdo é de função
individual, ao passo que a propriedade de que trata o inciso subseqüente do
artigo supracitado, não se confunde com a anterior, vez que, nesse caso, o
constituinte lhe confere função social, da mesma forma que o faz no art. 170,
inciso III, quando erige a propriedade à condição de princípio da ordem
econômica. Conforme palavras textuais do magistrado: “o princípio da função
social impõe ao proprietário – ou a quem detém o poder de controle, na
empresa – o dever de exercê-lo em benefício de outrem e não, apenas, de não
exercer em prejuízo de outrem”232, e acrescenta:
enquanto instrumento a garantir a subsistência individual e
familiar – a dignidade da pessoa humana, pois- a propriedade
consiste em um direito individual e, iniludivelmente, cumpre
função individual (...). A essa propriedade não é imputável
função social; apenas os abusos cometidos no seu exercício
encontram limitação, adequada, nas disposições que
implementam o chamado poder de polícia estatal.
Das lições do mencionado jurista, é possível enxergar com
bastante nitidez a propriedade a partir de duas perspectivas: da função social;
isto é, quando o titular a utiliza em seu benefício e no da coletividade, para fins,
portanto, não egoísticos; por outro lado, com caráter individual, quando serve
231
GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. 8. ed. rev. atual. São Paulo:
Editora Malheiros, 2003. p. 209-211.
232
Idem. Ibidem. Cumpre destacar, ainda, que para Eros Roberto Grau, a função social da propriedade se
desdobra em obrigação de fazer e de não fazer. p. 213.
79
de base para suprir as necessidades essenciais do titular e de sua família,
como o bem imóvel ( consubstanciado no bem de família ), que lhes servirá de
habitação.
Pietro Perlingieri233, a seu turno, defende a função social da
propriedade como fundamento para a elaboração de normas restritivas a seu
uso, conforme se extrai de sua doutrina:
em um sistema inspirado na solidariedade política, econômica e
social e ao pleno desenvolvimento da pessoa, o conteúdo da
função social assume um papel de tipo promocional, no sentido
de que a disciplina das formas de propriedade e as suas
interpretações deveriam ser atuadas para garantir e promover os
valores sobre os quais se funda o ordenamento.
Nesse universo de considerações, destaca-se o princípio da
função
social
como
vetor
axiológico
do
regime
patrimonial
e,
concomitantemente, como regra direcionadora para os proprietários e para o
poder público. Desta feita, aos titulares do direito de propriedade cabe o dever
de exercê-lo sem abusos e visando ao bem coletivo. O Estado, a seu turno,
deve utilizar a referida norma-princípio como meio de controle do espaço
urbano e como diretriz para imposições de limites de seu uso.
Nessa toada, Francisco Amaral234 aponta que, na sociedade
contemporânea
- onde
o “social”
ganha
espaço em detrimento
do
individualismo, e o Estado intervém de maneira mais acentuada na economia,
como meio de garantir certo equilíbrio nas relações sociais - expressões como
a “função social da propriedade” e o “abuso de direito”235 caracterizam a ponte
que separa o Estado Liberal do Estado Social. Na verdade, a noção de direito
de propriedade, com amparo na Revolução Francesa, de 1789, e sedimentada
na Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão e no Código
Civil francês, de 1804 ( o qual influenciou muitos ordenamentos jurídicos,
233
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: Introdução ao Direito Civil Constitucional. 3.ed.
Tradução Maria Cristina De Cicco. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2007. p. 226-230. Segundo o autor, a
função social da propriedade também se realiza na “casa de habitação e nos bens que ela contém, na
oficina artesã e na propriedade do pequeno produtor”.
234
AMARAL, Francisco. Direito Civil: Introdução. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Renovar, 2000.
p. 144-145.
235
AMARAL. Op. Cit. . 140. Diz o autor: “o abuso de direito resulta da concepção segundo a qual os
direitos subjetivos não podem ser exercidos de modo a prejudicar terceiros”. Tal teoria aplica-se tanto aos
direitos patrimoniais quanto aos extrapatrimoniais. O autor exemplifica estes últimos, com o exercício do
poder familiar.
80
inclusive o brasileiro), está perdendo lastro para uma nova concepção de
direito de propriedade, calcado na função social.
Nesse contexto, cumpre ainda acentuar que a Constituição
Federal de 1988 reconhece como direito humano fundamental, tanto o direito
de propriedade quanto o direito à moradia: o primeiro previsto no art. 5º e no
art. 170, enquanto o segundo está, expressamente, consagrado no art. 6º. No
que toca à dimensão materialmente constitucional do direito de propriedade,
algumas considerações merecem ser tecidas.
Vale repisar que a propriedade contemporânea traz em seu
conteúdo a função social, o que a distancia da idéia clássica de propriedade
como instrumento de realização exclusiva do seu titular. Novos paradigmas,
como a dignidade da pessoa humana, a repersonalização do Direito (não
apenas do Direito Civil, mas de todo o sistema jurídico) e o princípio da
solidariedade, demarcam o referido direito, não apenas como privilégio de o
proprietário usar, gozar e dispor do bem, da maneira que lhe aprouver; ou seja,
tal instituto, hoje, deve, além de atender às necessidades de seu titular,
observar os interesses da coletividade. É preciso, de pronto, reconhecer a
necessidade de, num processo contínuo de hermenêutica, interpretar os
institutos jurídicos a partir da análise da realidade fática, sob pena de se criar
um hiato entre o Direito e a Justiça236.
Nessa linha de intelecção defende-se que a propriedade imóvel
exsurge como direito humano materialmente constitucional, quando preenche
alguns pressupostos, tais como: 1. cumpre a sua função social, consoante já
dito; e 2. serve como instrumento de concretização do direito humano
fundamental à moradia. É sobre este segundo aspecto que se dedica atenção
na análise a seguir.
Primeiramente, cabem algumas linhas acerca da ponderação de
interesses, ou harmonização de aparente conflito entre direitos, bem como da
idéia de fundamentalidade, a partir de seus diversos graus. Como ensina
236
NASCIMENTO, Rogério José Bento Soares do. Notas de aula. Disciplina Teoria da Constituição do
Curso de Mestrado de Direito Público e Evolução Social. Dia 20/04/2007. UNESA. O professor aponta
que a justiça pode ser vista sob vários aspectos: 1. absoluto; 2. relativo; 3. material ( intrínseco ); e 4)
procedimental ( extrínseco ). Ele coloca a seguinte questão: O que se entende por justiça? Seria um
atributo da pessoa, ou existe fora da pessoa? No Ocidente predomina a idéia de justiça como um
atributo( ligado à virtude ) da pessoa, trata-se da “disposição de fazer o bem”. Ressalte-se, entretanto,
que a expressão “ injustiças sociais “está atrelada à idéia de desigualdade material.
81
Robert Alexy237 a compreensão do método de ponderação exige análise em
três planos distintos, que o autor denomina de “estágios”:
O primeiro estágio envolve estabelecer o grau de não-satisfação
de, ou interferência em, um primeiro princípio. Esse estágio é
seguido por um segundo em que é estabelecida a importância
de se satisfazer o princípio concorrente. Finalmente, no terceiro
estágio é estabelecido se a importância de se satisfazer o último
princípio justifica a interferência ou não-satisfação do primeiro.
Nessa linha de pensamento, o mencionado autor238 apresenta
como exemplo um caso decidido na Corte Constitucional Federal alemã, no
qual se considerou que:
a obrigação dos produtores de tabaco de colocar, na embalagem
dos seus produtos, alertas de saúde a respeito dos perigos de
fumar como uma interferência relativamente leve ou reduzida na
liberdade de exercício de profissão. Em contrapartida, uma total
proibição de todos os produtos seria considerada uma
interferência séria em tal liberdade.
Essa decisão sugere analogia com o problema do fiador que,
diante da inadimplência do locatário, se vê ameaçado de perder o único imóvel
que serve de abrigo para si e sua família. Neste caso, é de se questionar, até
que ponto a interferência do direito de crédito do locador no direito humano
fundamental à moradia é aceitável e razoável, vez que se trata, como se
posicionou a Suprema Corte alemã, de interferência séria, a ponto de deixar ao
desabrigo aquele que, num ato de solidariedade assumiu a posição de garante
de uma locação. Nesse contexto, é inegável que a propriedade imóvel,
subsumida no bem de família do fiador, não é direito fundamental autônomo,
mas direito acessório, que viabiliza direito fundamental e essencial para o ser
humano, que é o direito a um teto.
Desta forma, não é o direito de propriedade de per se que está
sendo imunizado da penhora, mas o direito de propriedade instrumental que
237
ALEXY, Robert. Ponderação, Jurisdição Constitucional e Representação Popular. Tradução Thomas
da Rosa de Bustamante. In: DE SOUZA NETO, Cláudio Pereira e SARMENTO, Daniel ( coordenadores ).
A Constitucionalização do Direito; Fundamentos Teóricos e Aplicações Específicas. Rio de Janeiro:
Editora Lúmen, 2007. p. 295-304. Contrariando a visão de Jürgen Habermas, citado pelo autor, para
quem a ponderação não tem fundamento racional objetivo, apenas leva a um resultado sem elementos
justificadores.
238
ALEXY. Op. Cit. p. 297.
82
concretiza o direito humano fundamental à moradia. Nessa toada, professa o
Ministro do Supremo Tribunal Federal Carlos Ayres Brito239, em sede de
Recurso Extraordinário: “entendo que aquele que conseguiu realizar o sonho
da casa própria, esse anseio profundo de conseguir o seu pedaço de chão no
mundo, que é a casa própria, não pode decair nem por vontade própria”. Para
o mencionado julgador, a moradia, como meio de suprir necessidade essencial,
é indisponível, não podendo sofrer restrição judicial em razão de contrato de
fiança.
A princípio, quando se enfrenta o problema da fiança em locação,
a prática tem demonstrado que a discussão gira em torno do direito de crédito
do locador e do direito de propriedade do fiador, o que parece um equívoco,
pois a propriedade, neste caso, é mero instrumento de realização do direito à
moradia, natural emanação do direito da personalidade. O conflito de
interesses revela valores axiologicamente distintos: de um lado, tem-se o
direito de crédito, que pode ser cobrado por meios diversos; de outro, situa-se
o direito essencial para a efetivação de outros valores, que é o direito humano
fundamental à moradia. Diante dessa situação, idôneo parece ser o método de
ponderação, tal como defendido por Robert Alexy240, para se analisar o grau de
essencialidade de cada interesse em jogo.
Nesse contexto, sem a pretensão de esquadrinhar o tema da
fundamentalidade, cuidar-se-á de estudá-la para melhor cotejá-la com o
fenômeno da essencialidade em sede de direitos humanos fundamentais. Ingo
Wolfgang Sarlet241 preleciona que a fundamentalidade se subdivide em formal
e material. A primeira está diretamente relacionada com o direito constitucional
positivo, seguida por algumas premissas, tais como: a) os direitos humanos
fundamentais ocupam o cume do sistema normativo – são o que alguns
autores denominam de direitos supralegais; b) tais direitos são prescrições que
demandam limitações de ordem formal e material no tocante às reformas
constitucionais; e c) os direitos humanos fundamentais consubstanciam normas
239
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 407.688-8-SP. Diário da Justiça de 06
out. 2006. Fiador. Locação. Ação de Despejo. Disponível em: <www.stf.gov.br>. Pesquisa realizada em
27/03/ 2007.
240
ALEXY. Op. Cit. p.295-310.
241
SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 7. ed. rev. atual. e ampl. Porto
Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2007.a. p. 88-89.
83
de aplicação imediata e vinculativa, conforme se depreende do art. 5º, par. 1º,
da Carta de 1988.
A fundamentalidade sob o aspecto material, a seu turno, “decorre
da circunstância de serem os direitos fundamentais elemento constitutivo da
Constituição material, contendo decisões fundamentais sobre a estrutura
básica do Estado e da sociedade”, preleciona Ingo Wolfgang Sarlet242. Nesta
seara, seguindo as lições do mencionado autor gaúcho, visualiza-se, por força
do art. 5º, par. 2º, da CR/88, duas vertentes de direitos fundamentais: “a)
direitos formal e materialmente fundamentais (ancorados na Constituição
formal); e b) direitos materialmente fundamentais (sem assento no texto
constitucional)”.
Marcelo Leonardo Tavares243 pontua que, enquanto a teoria
liberal244 vê os direitos fundamentais “como direitos de liberdade do indivíduo
em face do Estado”, a teoria de direitos fundamentais do Estado Social
“pretende superar o conceito de liberdade meramente formal para alcançar a
liberdade real e os direitos fundamentais deixam de ter caráter meramente
negativo para passarem a ser integrados por pretensões positivas a
prestações”.
Para este autor, os direitos fundamentais sociais comportam duas
vertentes: os direitos sociais materialmente fundamentais e os direitos sociais
não dotados de fundamentalidade, consoante suas palavras245:
242
SARLET ( 2007.a ). p. 88-98. Ensina o autor que a fundamentalidade pode variar de Estado para
Estado, isto é, o que é fundamental para uma Organização Política pode não sê-lo para outra. Defende,
no entanto, a existência de valores universais, como a vida, a liberdade, a igualdade e a dignidade
humana; os quais ainda podem ser axiologicamente ponderados de forma distinta, dependendo do
espaço cultural e temporal.
243
TAVARES, Marcelo Leonardo. A Constitucionalização do Direito Previdenciário. In: DE SOUZA NETO,
Cláudio Pereira; Daniel Sarmento ( coordenadores ) A Constitucionalização do Direito: Fundamentos
Teóricos e Aplicações Específicas. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007. p. 946-947.
244
RAMOS, Carmem Lúcia Silveira. A Constitucionalização do Direito Privado e a Sociedade sem
Fronteiras. In: FACHIN, Luiz Edson ( coordenador ). Repensando Fundamentos do Direito Civil
Brasileiro Contemporâneo. Rio de Janeiro: Editora Renovar. 2. ed. 2000. Para a autora, a Teoria Liberal
baseia-se na idéia de igualdade fundada na pessoa em abstrato, “partindo de um elemento meramente
formal, baseado na autonomia da vontade e na iniciativa privada”, e acrescenta “ (...) o Estado de Direito
Liberal ignorou as desigualdades econômicas e sociais, considerando todos os indivíduos formalmente
iguais perante a lei, parificação esta que só acentuou a concentração do poder econômico capitalista,
aumentando o desnível social cada vez mais, na esteira do desenvolvimento tecnológico e produtivo”. p.
5-6. Vale ainda destacar que o Código Civil pátrio de 1916 adotou a referida teoria, que também não foi
afastada pelo novo Codex, malgrado este ter absorvido alguns valores constitucionais, como a função
social da propriedade e do contrato, os princípios da boa-fé e da probidade.
245
TAVARES. Op. Cit. p. 952-953.
84
Quando os direitos sociais são necessários para uma existência
digna do homem, acabam por assumir uma função fundamental
e passam a ser intitulados direitos sociais ao mínimo
existencial246, enquanto para além deles há os direitos sociais
formais. Com isso, está-se a afirmar que existem direitos sociais
fundamentais, intimamente vinculados ao valor da dignidade,
porquanto não pode haver liberdade e dignidade na miséria e na
ignorância, e outros direitos sociais, não dotados de
fundamentalidade, que devem ser providos pelo Estado na
medida do possível. Os direitos sociais materialmente
fundamentais devem ser incluídos na leitura que resulta da
interpretação do dispositivo constitucional, para que possam
merecer proteção como cláusula pétrea ou de imutabilidade
constitucional.
Em que pese a respeitável visão do mencionado autor, ousa-se
discordar em parte, pois o caráter fundamental é atributo de todos os direitos
humanos, além de, no caso do sistema brasileiro, o Constituinte de 1988 não
ter feito qualquer distinção, consagrando todos os direitos (inclusive os sociais)
como direitos fundamentais, consoante o título II, “Dos Direitos e Garantias
Fundamentais”.
Ressalte-se, entretanto, que alguns direitos são mais essenciais
do que outros, por exemplo: há de se considerar que, sem alimento, não se
tem saúde e a vida é curta; sem educação, nos dias atuais, não se consegue
trabalho, não se alcança um desenvolvimento digno e a auto-estima tende a
desaparecer; e sem um teto para morar, a pessoa pode sofrer abalos na sua
estrutura psíquica, em seu paradigma de valores, além da tendência de ser
tratada socialmente como marginal. Não obstante, o Código Civil brasileiro
reconhecer como domicílio onde quer que a pessoa se encontre, tal norma não
reflete os fatos reais da vida, vez que uma pessoa sem moradia é, muitas
vezes, tratada como “ninguém” pela sociedade, além de ter sua dignidade
vilipendiada por conta disso.
Nesse
contexto,
é
imperioso
cotejar
o
fenômeno
da
fundamentalidade com o aspecto da essencialidade. Para tal mister, cumpre
246
SARLET, Ingo Wolfgang. Mínimo Existencial e Direito Privado: Apontamentos sobre Algumas
Dimensões da Possível Eficácia dos Direitos Fundamentais Sociais das Relações Jurídico-Privadas. In:
DE SOUZA NETO, Cláudio Pereira e Daniel Sarmento. A Constitucionalização do Direito:
Fundamentos Teóricos e Aplicações Específicas. Rio de Janeiro: Editora Lumen Júris, 2007. p. 336-337.
Preleciona o autor que, a despeito de inexistir norma constitucional expressa contemplando o direito ao
mínimo existencial “os próprios direitos sociais específicos ( como a assistência social, a saúde, a
moradia, a previdência social, o salário mínimo dos trabalhadores, entre outros ) acabaram por alcançar
algumas dimensões do mínimo existencial (...)”.
85
ressaltar que a análise da essencialidade pressupõe a existência de um caso
concreto. Imagine-se, por exemplo, um conflito entre dois interesses: de um
lado, está em jogo o direito humano fundamental à moradia, e de outro, o
direito humano fundamental de propriedade, consubstanciado num crédito.
Percebe-se, de antemão, tratar-se de dois direitos reconhecidos pela Carta de
1988 como fundamentais- pelo menos sob o aspecto formal -, pois, como já
visto alhures, para ser materialmente constitucional o direito de propriedade
precisa observar alguns pressupostos como a sua função social e seu caráter
instrumental.
A solução da questão em tela depende necessariamente da
análise do elemento da essencialidade, cabendo ao aplicador do Direito, fazer
a seguinte indagação: se algum dos direitos em jogo sofrer intervenção séria,
qual deles trará mais danos à vida e à dignidade do indivíduo? Dependendo do
tipo de Estado ou de sociedade que se tem, ter-se-á uma escolha, que poderá
ser justa ou injusta. Se for um Estado Social, que visa à tutela da dignidade da
pessoa e à preservação do mínimo existencial, dar-se-á prevalência ao direito
humano fundamental à moradia - vez tratar-se de direito vital para a efetividade
de outros direitos, como a vida digna, a educação, a saúde, o pleno
desenvolvimento entre outros. Por outro lado, se for um Estado liberal,
individualista, de cunho primordialmente patrimonial, privilegiar-se-á o direito de
crédito - que poderia ser cobrado por outros meios -, em detrimento do direito
ao teto.
Na realidade, a essencialidade serve como parâmetro de
mensuração da fundamentalidade a partir da análise de um caso concreto.
Posto de outra forma, quando estiverem em colisão dois direitos materialmente
fundamentais, dever-se-á considerar as circunstâncias da situação, as pessoas
envolvidas, bem como o grau de interferência no núcleo de cada interesse em
jogo. Trata-se da eficácia dos direitos humanos fundamentais, tanto no plano
vertical, quanto no horizontal, tema que será objeto do próximo tópico.
Nesse passo, cabe agora analisar o direito de propriedade a partir
de sua dúplice face; isto é, de um lado tem-se o direito de propriedade
autônomo,
e
de
outro,
afigura-se
o
direito
de
propriedade
instrumental/acessório, o qual consubstancia o instrumento por meio do qual se
86
concretiza de forma plena o direito humano fundamental à moradia247. No
tocante a este aspecto, para melhor esclarecer o que se sustenta utilizar-se-á
como técnica didática os seguintes exemplos hipotéticos:
Caso 1. João é proprietário de único bem em que habita com
sua família e foi fiador de um amigo, num contrato de locação;
Caso 2. Pedro tem dois imóveis, em um ele reside com a família
e o outro é apenas acervo do seu patrimônio.
Diante das referidas proposições, privilegia-se a seguinte linha de
raciocínio: no primeiro caso, em que o indivíduo possui apenas um imóvel este consubstanciado em bem de família - o direito de propriedade se subsume
no direito humano fundamental à moradia; isto é, não é o direito de propriedade
de per se que prepondera em relação a um possível direito de crédito, pois
neste caso, o direito de propriedade constitui mero instrumento para dar
efetividade ao direito fundamental de habitação. Desta feita, o direito de
propriedade, neste primeiro exemplo, tem caráter meramente instrumental248,
não podendo ser objeto de constrição em razão de obrigação decorrente de
fiação. Tal assertiva encontra fundamento, tanto no próprio direito humano
fundamental à moradia, quanto na garantia do patrimônio mínimo249, porquanto
a propriedade nessa hipótese está dando vida, tornando real e concreto o
sonho da casa própria; ela está servindo de ferramenta para se atingir o que
Amartya Sen250 denomina de “segurança protetora”, tipo de liberdade
instrumental, por meio da qual as pessoas contam com mecanismos de tutela
contra a miséria e outras formas de injustiça social. Em síntese, a propriedade,
247
Conforme já mencionado no capítulo introdutório, a tese da instrumentalidade do direito de
propriedade, a qual neste trabalho serve de base argumentativa, será melhor esmiuçada em trabalho
acadêmico futuro.
248
O Ministro do Supremo Tribunal Federal Cezar Peluso que, nos debates em sede de Recurso
Extraordinário nº 407.688-8, no qual discutia-se a possibilidade ou não de penhora do bem de família do
fiador, criticou a posição dos Ministros Eros Grau e Carlos Ayres Britto, que sustentavam a
impenhorabilidade do referido bem, sob o argumento de mera prevalência do direito de propriedade, não
identificou ou não conferiu a devida relevância ao que ora se sustenta, como o caráter instrumental do
direito de propriedade: isto é, não se sustenta que o direito de propriedade deve prevalecer diante do
direito de crédito, mas sim que o direito de propriedade, nesta hipótese, é apenas um veículo para a
efetividade do direito humano fundamental à moradia. A análise da jurisprudência dos Tribunais
brasileiros será enfrentada no Título II, do Capítulo II, deste trabalho.
249
FACHIN. (2006). p. 114.
250
SEN. Op. Cit. p. 56-58.
87
neste caso, é a ponte que liga o bem material (o imóvel) ao bem imaterial (o
direito humano fundamental `a moradia).
Por outro lado, no tocante à segunda hipótese, em que a pessoa
é proprietária de dois imóveis, tem-se a seguinte situação: a) um bem garante o
seu patrimônio existencial; isto é, está coberto pelo instituto do bem de família,
dá concretude ao direito humano fundamental à moradia, não podendo, assim
como no primeiro caso, ser objeto de constrição judicial por dívida civil ou por
cumprimento de obrigação decorrente de fiança, e b) o outro bem, por seu
turno, corresponde ao seu patrimônio exógeno; isto é, está fora da esfera
mínima da existência digna, não está sob o manto da proteção do bem de
família, podendo, portanto, ser objeto de penhora.
Como se verifica, neste segundo exemplo, há duas situações
distintas: na primeira, em que o imóvel serve de abrigo ao proprietário e sua
família - consagrando o bem de família - inadmissível será qualquer forma de
constrição, em particular, quando resultar de obrigação decorrente de contrato
de fiança, em relação locatícia, porquanto o bem em questão, além de
consagrar de forma absoluta o direito humano fundamental à moradia, constitui
direito fundamental, axiologicamente superior ao direito de crédito, o qual pode
ser garantido por outros meios legais. Cumpre repisar que, neste caso a
propriedade é via instrumental para a concretização de direito imanente à
personalidade da pessoa, que é o direito à habitação, não podendo ser objeto
de execução e nem se comparar de forma isonômica ao direito de crédito. Já
na segunda situação, o imóvel não utilizado para moradia do proprietário
constitui o seu patrimônio excedente, podendo ser objeto de penhora sem
qualquer problema, tendo em vista não traduzir, nem consubstanciar, o direito
humano fundamental à moradia.
De fato, a realidade contemporânea exige da propriedade privada
a observância da sua função social, a fim de que sua utilidade e finalidade
vinculem-se ao interesse do particular, mas também com o propósito de
atender ao bem comum. É nesse sentido que se interpreta o disposto no par.
1º, do art. 1.228, do Código Civil pátrio de 2002251, o qual delineia o regime
251
BRASIL. Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da República
Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF., 11 de janeiro de 2002. Assim dispõe o par. 1º, do
art. 1.228, in verbis: “ o direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades
econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei
88
jurídico da propriedade imobiliária com valores constitucionais condicionadores
do instituto ao bem estar coletivo.
Ainda, nessa toada, Amartya Sen252 alerta para os desafios que o
capitalismo precisa enfrentar e esclarece:
(...). Conceber o capitalismo como um sistema de pura
maximização de lucros baseado na propriedade individual de
capital é deixar de fora boa parte do que permitiu tamanho
sucesso do sistema no aumento da produção e geração de
renda (...).
(...)Temos de entender que o sistema ético subjacente ao
capitalismo envolve muito mais do que santificar a ganância e
admirar a cupidez.
O mencionado autor, a despeito de reconhecer os méritos do
capitalismo, admite que a ética desse modelo econômico não conseguiu
harmonizar a busca do lucro com questões sociais como: a pobreza
(decorrente de vários fatores, dentre eles, a desigualdade econômica ) e a
proteção do meio ambiente. No estado de natureza, em que a noção de
capitalismo ainda estava longe de ser caracterizada como o é hoje, o homem
buscava na floresta bens para a sua subsistência e vivia basicamente do que
plantava e da caça e pesca. Ainda na perspectiva capitalista ortodoxa, John
Locke253 defendia ser a propriedade direito natural que prescinde de qualquer
previsão legislativa, com base no seguinte argumento:
Quando Deus deu o mundo em comum a toda a humanidade,
também ordenou que o homem trabalhasse (...). Deus e sua
razão ordenaram-lhe que submetesse a terra, isto é, que a
melhorasse para beneficiar sua vida, e, assim fazendo, ele
estava investindo em uma coisa que lhe pertencia: seu trabalho.
Aquele que, em obediência a este comando divino se tornava
senhor de uma parcela de terra, a cultivava e a semeava,
acrescentava-lhe algo que era sua propriedade, que ninguém
podia reivindicar nem tomar dele sem injustiça.
Do pensamento do referido filósofo, pode-se extrair elementos
que, muito mais tarde, evoluíram significativamente e embasaram o usucapião
especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico,
bem como evitada a poluição do ar e das águas”.
252
SEN. Op. Cit. p. 302-305.
253
LOCKE. Op. Cit. p. 101.
89
pro labore, previsto nos arts. 191 da Carta Constitucional brasileira de 1988;
1.239 do Código Civil pátrio de 2002, e 9 do Estatuto da Cidade. Sobre esse
tema, merece reflexão a doutrina de Sérgio Ferraz254, que destaca a iniciativa
do constituinte originário no sentido de estender o instituto do usucapião
especial rural para a cidade.
Nesse contexto, cumpre realçar que, viver consubstancia-se em
um conjunto de verbos como: amar, odiar, crescer, caminhar, sonhar, comer,
desenvolver, trabalhar e, dentre tantos outros, ter aptidão para adquirir bens. É
neste aspecto que a propriedade adquire relevo; afinal, o homem necessita de
alguns bens essenciais para sobreviver, como o alimento e um teto para morar.
O bem de família surgiu como um dos meios de garantir que a propriedade seja
mais do que um direito fundamental individual, para, sobretudo, transformar-se
em instrumento de efetividade ao pleno exercício do direito humano
fundamental à moradia do titular e de sua família.
II. 3. Da Eficácia dos Direitos Humanos Fundamentais
“Tan grande es el abismo entre lo que se dice y lo que se hace
sobre derechos humanos que, cuando ambos van caminando por la calle y se
cruzan en una esquina, pasan de largo sin saludarse porque no se conocen”.
Com estas palavras, inspirado nas lições de Eduardo Galeano, o filósofo
espanhol David Sánchez Rubio255 inicia sua obra crítica sobre a Teoria dos
Direitos Humanos, na qual chama a atenção para o paradoxo que existe entre
o discurso e o que se realiza em termos de proteção aos referidos direitos.
Para o autor, difundir uma cultura de consciência no sentido de proteger os
direitos humanos fundamentais é deveras importante, mas não é, entretanto,
suficiente; é preciso despertar na sociedade a idéia de que tais direitos fazem
parte da realidade concreta de cada membro, que não são meras elucubrações
teóricas, pois, conclui: “cuanto mayor sea esa cultura sobre derechos humanos,
menores serán lãs demandas que tengan que pasar por los tribunales”.
254
FERRAZ. Op. Cit. 140-141.
RUBIO, David Sánches. Repensar Derechos Humanos: De la anesthesia a la sinestesia. Sevilla.
Espanha: Editora Mad, S.L. 2007. p. 11-16.
255
90
Nesse contexto, é inquestionável que um dos maiores desafios da
Teoria dos Direitos Humanos Fundamentais está no aspecto de sua
efetividade256,
alguns
mais
outros
menos,
mas
todos
carecem
de
concretização. Assim, reconhece-se que a proteção e a implementação dos
mesmos não é tarefa fácil, nem simples, em particular, de boa parte dos
direitos humanos fundamentais de segunda e terceira dimensões; o que exige
do Estado e dos cidadãos esforço contínuo nesse sentido257, conforme elucida
Ingo Wolfgang Sarlet258:
cremos que o mais importante segue sendo a adoção de uma
postura ativa e responsável, governantes e governados, no que
concerne à afirmação e à efetivação dos direitos fundamentais
de todas as dimensões, numa ambiência necessariamente
heterogênea e multicultural, pois apenas assim estar-se-ía
dando os passos indispensáveis à afirmação de um direito
constitucional genuinamente ‘altruísta’ e ‘fraterno’”.
A idéia de democracia associada aos direitos humanos
fundamentais, apregoada pelo mencionado autor, também é defendida Norberto
Bobbio259, que professa: “sem direitos do homem reconhecidos e protegidos não
há democracia; sem democracia não existem condições mínimas para a solução
pacífica de conflitos”. Para este pensador, o problema central não está mais na
fundamentação dos direitos do homem, mas em sua tutela; a questão é de
natureza jurídico-política e não filosófica, e complementa260:
256
Embora não seja o objetivo deste trabalho descer a minúcias a discussão em torno dos termos eficácia
e efetividade, cabem algumas considerações acerca do tema, considerando sua relevância,
especialmente, no presente tópico. Nesse sentido, louvável é a contribuição de José Afonso da Silva que,
com base nas lições de Hans Kelsen, coloca em planos distintos a vigência e a eficácia das normas. A
vigência correlaciona-se com a existência da norma no mundo jurídico, por meio da promulgação e
publicação. A eficácia a seu turno, se subdivide em eficácia jurídica e eficácia social, esta, para alguns
autores, como Luis Roberto Barros, seria também denominada de efetividade, e corresponde à sua real
aptidão de produzir seus efeitos no mundo dos fatos, concreto, ou seja, segundo Hans Kelsen, a norma
vincula-se à idéia do “ser”. Por outro lado, a eficácia jurídica resulta da aptidão da norma de produzir
seus efeitos no mundo jurídico, isto é, pertence à seara do “dever-ser”. Ver: SILVA, José Afonso da.
Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 6. ed. 2ª tiragem. São Paulo: Editora Malheiros, 2003 e
BARROSO, Luis Roberto, O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas: limites e
possibilidades da Constituição Brasileira. 6 ed. atual. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2002.
257
SARLET, Ingo Wolfgang. Os Direitos Fundamentais Sociais na Constituição de 1988. In: SARLET,
Ingo Wolfgang ( organizador ). O Direito Público em Tempos de Crise: Estudos em homenagem a Ruy
Ruben Ruschel. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 1999. p. 129-173. Diz o autor: “o problema da
eficácia engloba a eficácia jurídica ( e, portanto, a aplicabilidade ) e a eficácia social. Ambas, inobstante
situadas em planos distintos ( o dever ser e o do ser ), servem à realização integral do Direito, e nesta
linha de raciocínio, dos direitos fundamentais”.
258
SARLET ( 2007.a ). p. 68.
259
BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Tradução: Regina Lyra. Rio de Janeiro: Editora Campus,
2004. p. 21-45.
260
Idem. Ibidem. 22-45.
91
não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual é
a sua natureza jurídica e seu fundamento, se são direitos
naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas sim qual é o
modo mais seguro para garanti-los, para impedir que, apesar
das solenes declarações, eles sejam continuamente violados.
Seguindo essa linha de raciocínio, o referido autor italiano ensina
que os organismos internacionais têm a função de apresentar diretrizes aos
Estados: o que ele chama de vis directiva, mas não possuem o poder de
imposição, a vis coactiva. Em sua análise, ressalta que tais diretrizes só serão
eficazes; isto é, só atingirão suas finalidades quando houver verdadeiramente
interesse por parte dos Estados no sentido de proteger os direitos humanos
fundamentais e alerta:
o desprezo pelos direitos do homem no plano interno e o
escasso respeito à autoridade internacional no plano externo
marcham juntos. Quanto mais um governo for autoritário em
relação à liberdade de seus cidadãos, tanto mais será libertário
em face da autoridade internacional.
A despeito das limitações do poder de atuação dos organismos
internacionais, cumpre reconhecer que eles têm sido importantes atores na
defesa e proteção dos direitos humanos fundamentais, especialmente no que
toca à promoção, ao controle e à garantia261. Ocorre que, como assinalado
por Norberto Bobbio, tais entidades carecem de poder imperativo, atuando
mais na seara moral.
De fato, a efetividade dos direitos humanos fundamentais
encontra óbices de variada natureza, a “incredulidade” é um exemplo deles,
porque muitas pessoas já não têm mais esperança de ver seus direitos
reconhecidos; não confiam na tutela do Estado. Nesse sentido, David Sánchez
Rubio262 argumenta:
261
BOBBIO. Op. Cit. p.58-59. A promoção consubstancia-se nas cartas de direitos; o controle
compreende os relatórios que os Estados-membros assumem apresentar, no qual apontam as medidas
adotadas no tocante à proteção dos direitos humanos fundamentais e; por fim, a garantia seria o meio
pelo qual a Comunidade Internacional vai tutelar os direitos, trata-se de uma tutela de natureza
jurisdicional de âmbito internacional. Aduz o autor: “só é possível falar legitimamente de tutela
internacional dos direitos do homem quando uma jurisdição internacional conseguir impor-se e superporse às jurisdições nacionais”.
262
RUBIO. Op. Cit. p. 12-16.
92
(...) mucha gente desenganada que, com toda razón del mundo,
no tiene ninguna esperanza de que lês sean reconocidos sus
derechos. Por experiencia, no confian en la autoridad, ni en los
estados (…). En definitiva, parece como si existiera una cultura
de impotencia y excesivamente conformista que, bajo la excusa
de ese abismo entre lo dicho y lo echo, adopta la actitud de
seguir dejando las cosas como están.
O referido filósofo defende a idéia de se mudar a concepção de
que os direitos humanos fundamentais são tutelados apenas pela esfera
jurídica, posto ser possível buscar também a sua efetividade no âmbito
doméstico, no mercado de trabalho e nos demais segmentos da sociedade263.
Há certo dogma de que cabe aos profissionais do Direito, - incluindo aí,
legisladores, magistrados, advogados e administradores públicos-, afirmar os
direitos humanos fundamentais, revelando uma “cultura simplista, deficiente,
insuficiente e estreita dos direitos humanos”, vaticina o mencionado autor.
Vale realçar que o homem é um ser social por natureza, nesse
diapasão são as lições de Almir de Oliveira264:
Não se pode viver senão em sociedade, o que implica a
existência de uma organização em que ocorrem direitos, cujo
acatamento se impõe como condição da harmonia entre os seus
membros e como imperativo da sobrevivência do corpo social.
Tal linha de pensamento implica reconhecer a relevante função
do Direito, como conjunto de normas disciplinadoras das relações sociais, o
qual é de vital importância para dar sustentação à sociedade, desde que tais
normas estejam em sintonia com os valores apregoados no contexto histórico
em que elas incidem265. Ainda, com base nessa premissa, constata-se que há
muitos desafios a superar até que se chegue ao outro lado da travessia. A
chegada representa a conscientização, tanto por parte do Estado quanto por
263
RUBIO. Op. Cit. p. 15. Professa o pensador: “resulta decisivo descubrir que, realmente, son nuestras
relaciones y práticas o tramas sociales tanto jurídicas como no jurídicas las que, en cada momento y en
todo lugar, nos dan la justa medida de si hacemos o no hacemos derechos humanos, de si estamos
construyendo procesos de relaciones bajo dinámicas de reconocimiento, respeto e inclusión o bajo
dinámicas de imperio, dominación y exclusión”.
264
OLIVEIRA. Op. Cit. p. 1-2.
265
FACHIN, Luiz Edson. Princípios Constitucionais e Relações Privadas: Questões de Efetividade no
Tríplice Vértice entre o Texto e Contexto. 2088.b. ( no prelo ). p. 10. Segundo o autor, existe um abismo
entre o sujeito abstrato, idealizado pela ordem jurídica, e o “sujeito-cidadão”, de carne e osso, consciente
de seus direitos, e respeitado como pessoa humana. Aduz, ainda, o autor: “O contraste entre a
racionalidade da codificação, fundada na abstração, e os direitos fundamentais, que podem permitir uma
abertura para valores não sistêmicos, se reflete na aplicação do direito às situações concretas”.
93
todos os segmentos da sociedade, de que os direitos humanos fundamentais,
para que exsurjam ao mundo real, precisam ser vistos como pressupostos para
a realização de valores como a liberdade, a igualdade substancial e a
erradicação da pobreza e da discriminação racial e sócio-econômica. Desta
forma, é possível sonhar com uma vida digna, segura e feliz. Nesse sentido,
vale trazer à luz o pensamento de Clèmerson Merlin Clève266:
não basta afirmar juridicamente a liberdade. A sua concretização
pressupõe a capacidade de fruí-la. O direito de livre expressão
pressupõe a capacidade de exteriorização e de organização dos
recursos intelectuais; o direito à inviolabilidade de domicílio
pressupõe a prévia existência de uma casa, de uma morada, de
um domicílio. O direito à educação desafia a existência de
determinados meios ( alimentação, transporte ) sem os quais,
ainda que oferecidos gratuitamente pelo Estado, pouco
significará.
Nesse
contexto,
merece
destaque
a
doutrina
da
267
constitucionalização do direito privado
, a qual busca problematizar a questão
da efetividade dos direitos humanos fundamentais nas relações interprivadas.
No Brasil, a Carta de 1988 marca, de forma inequívoca, a passagem de
simples Estado de Direito para a categoria de Estado Constitucional
Democrático de Direito.
Nesse cenário, Daniel Sarmento aponta que a
268
Constituição de 1988
266
:
CLÈVE, Clèmerson Merlin. A Fiscalização Abstrata da Constitucionalidade no Direito Brasileiro.
2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.
267
Esse processo de constitucionalização do sistema normativo, amparado, em particular, nos direitos
humanos fundamentais, é o que a doutrina chama de filtragem constitucional. Nesse sentido, ver
BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 5. ed. rev. atual. e ampl. São
Paulo: Editora Saraiva, 2003, p. 340. Das lições do referido autor, contempla-se a concepção de que
filtragem constitucional “consiste em que toda a ordem jurídica deve ser lida e apreendida sob a lente da
Constituição, de modo a realizar os valores nela consagrados. A constitucionalização do direito
infraconstitucional não identifica apenas a inclusão na Lei Maior de normas próprias de outros domínios,
mas, sobretudo, a reinterpretação de seus institutos sob uma ótica constitucional”. Ver, ainda, FACHIN,
Luiz Edson. Teoria Crítica do Direito Civil à Luz do Novo Código Civil Brasileiro. 2. ed. Rio de
Janeiro: Editora Renovar. 2003; TEPEDINO, Gustavo. “Crise de Fontes Normativas e Técnica Legislativa
na Parte Geral do Código Civil de 2002”. In: TEPEDINO, Gustavo( coordenador ). A Parte Geral do
Novo Código Civil: Estudos na Perspectiva Civil- Constitucional. Rio de Janeiro: Editora Renovar. 2.
ed. 2003. p.XV; e BARROSO, Luis Roberto. “Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito ( O
Triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil )”. In: DE SOUZA NETO, Cláudio Pereira e Daniel
Sarmento ( coordenadores ) A Constitucionalização do Direito: Fundamentos Teóricos e Aplicações
Específicas. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007.
268
SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2006. p. 124-125.
94
(...) conferiu absoluta centralidade e primazia aos direitos
fundamentais e está fortemente impregnada por valores
solidarísticos, de marcada inspiração humanitária. Assim, toda a
legislação infraconstitucional
( civil, penal, processual,
econômica etc. ), muitas vezes editada em contexto axiológico
diverso, mais individualista ou mais totalitário, terá de ser
revisitada pelo operador do direito, a partir de uma nova
perspectiva, centrada na Constituição e em especial nos direitos
fundamentais que esta consagra.
Nessa toada, defende-se que a Constituição se faça Constituição
no seio da sociedade; ou seja, que haja “vontade de Constituição”, como
ensina Konrad Hesse269. Tal documento deve ser a norma-diretriz para todas
as relações jurídicas privadas e públicas, bem como um veículo de promoção e
garantia de efetividade dos direitos humanos fundamentais. Desta forma, a
erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais serão mais do
que meras proposições constitucionais de caráter formal, consubstanciando-se,
sobretudo, realizações possíveis no mundo real.
Caminhar com a Constituição significa avançar para concretizar
valores nela consagrados, buscando no seu texto a garantia de um ideal de
justiça e solidariedade. Nesse passo, Luiz Edson Fachin270 aponta para a
importância do aspecto prospectivo da Constituição, consistente num ato
contínuo de “ressignificar os sentidos dos diversos significantes que compõem
o discurso jurídico normativo, doutrinário e jurisprudencial, especialmente no
que concerne à tríplice base fundante do governo jurídico das relações sociais,
isto é, propriedade, contrato e família”.
É cediço, entretanto, que esse caminhar exige superar óbices de
variadas naturezas. Nesse sentido, o referido autor271apresenta um rol de
obstáculos a serem enfrentados pelo Direito Civil brasileiro contemporâneo.
Apenas a título de ilustração, destacam-se: 1. sair do enclausuramento do
Código272,
269
com a
aceitação de
outras fontes reguladoras (como
a
HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Tradução Gilmar Ferreira Mendes. Porto
Alegre: Editora Sergio Antonio Fabris, 1991. p. 19. Para o autor: “A Constituição converter-se-á em força
ativa se fizerem-se presentes, na consciência geral – particularmente, na consciência dos principais
responsáveis pela ordem constitucional -, não só a vontade de poder ( wille zur macht ), mas também a
vontade de Constituição ( wille zur verfassung )”.
270
FACHIN, Luiz Edson. Questões do Direito Civil brasileiro contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar,
2008.a. p. 7-8.
271
Idem. Ibidem. p.12-14.
272
Cabe frisar, todavia, que, assim como o autor, não se ignora a utilidade do sistema de codificação
como um fato histórico, e como forma de organização das normas. O que a contemporaneidade do Direito
exige é uma releitura de seu escopo normativo, interpretativo e de aplicação.
95
jurisprudência e a doutrina); 2. olhar para o Direito como fenômeno em
constante movimento; 3. interpretar o novo Código Civil brasileiro a partir dos
valores insculpidos na Carta de 1988; 4. abrir mão do silogismo prático, onde
só cabe a técnica pura e simples da subsunção do fato à norma; 5. buscar
desatar os nós da complexidade a partir de uma hermenêutica baseada na
realidade concreta; e 6. enxergar o fenômeno da Constitucionalização do
Direito para além do aspecto meramente formal, isto é, olhar para a
Constituição como instrumento concreto para a efetividade dos direitos
humanos fundamentais273.
Cabe realçar que a construção teórica da constitucionalização do
Direito é decorrência de um processo gradual de maturação de idéias
divergentes que convergem quanto à sua importância, fundada na força
normativa das normas constitucionais; força esta que veio, ao longo do século
XX, sendo arregimentada com o surgimento de instrumentos de controle de
constitucionalidade.
De fato, a Constituição contemporânea contempla mais do que
uma carta de normas de organização do Estado e de alguns direitos
individuais, ela representa a fonte de validade de todo o ordenamento jurídico
de uma Nação. Impõe-se, com isso, a necessidade de se interpretar as normas
de Direito - de natureza pública ou privada - à luz do seu texto, afastando de
imediato qualquer regra que viole os direitos humanos fundamentais, em
particular, aqueles essenciais à realização de uma vida digna e com qualidade,
como o direito humano fundamental à moradia.
Nesse
contexto,
Daniel
Sarmento274
argumenta
que
a
Constituição incide sobre as normas de direito privado a partir de variadas
formas, como por exemplo:

273
a Constituição representa um limite para o legislador
privado, o que importa na inconstitucionalidade das
normas editadas em contrariedade a ela (...);
SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora
Lumen Júris, 2006. p. 50-51. Ensina o constitucionalista que, por muito tempo, os direitos humanos,
contemplados nas Cartas Constitucionais, eram considerados apenas sob o aspecto moral; ou seja, não
tinham força normativa para impor limites subjetivos: a eficácia jurídica se perfazia quando tais direitos
eram contemplados em leis infraconstitucionais.
274
Idem. Ibidem. p. 56-57.
96
A
partir

(...) diante da crise do Estado Social e do retorno aos
valores individualistas de antanho, propugnado pelo
pensamento neo-liberal hoje hegemônico, há o risco de
retrocessos na legislação privada, em contrariedade à
dimensão social e solidária da Carta de 88. Em ambas as
hipóteses, o papel da Constituição como limite ao
legislador será vital para num caso afirmar, e no outro
preservar, os avanços proporcionados pela ordem
constitucional na disciplina das relações privadas.

A Constituição também projeta relevantes efeitos
hermenêuticos, pois condiciona e inspira a exegese das
normas privadas, que deve orientar-se para a proteção e
promoção dos valores constitucionais centrados na
dignidade da pessoa humana.
dessas
premissas,
verifica-se
que
o
Direito
contemporâneo exige dos profissionais do Direito permanente exercício de
hermenêutica, não somente no tocante à legislação infraconstitucional, mas
também das próprias normas constitucionais, a fim de harmonizá-las com as
constantes mudanças sócio-culturais e econômicas.
Ainda, seguindo a linha de preleção de Daniel Sarmento275,
assenta-se a teoria da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, a qual na
verdade, segundo o autor, não traz novidade, visto que nos séculos XVII e
XVIII - período do apregoado contratualismo de vertente naturalista -, defendiase a posição de que a ratio da fundação do Estado276 relacionava-se à idéia da
necessidade de o homem ter seus direitos tutelados em face de seus próprios
semelhantes, vez que o estado de natureza não lhe conferia esta segurança.
Tal concepção, no entanto, transmudou-se ao longo dos séculos
XIX e XX, com o surgimento de novas idéias, calcadas no individualismo
extremado e nos direitos de liberdade, os quais exigiam a abstenção do Poder
Público nos assuntos privados: nascia o Estado Liberal clássico, decorrência
275
SARMENTO ( 2006 ). p. 129.
RIBEIRO, Renato Janine. O Medo e a Esperança. 13. ed. In: WEFFORT, Francisco C. ( organizador ).
Os Clássicos da Política. São Paulo: Editora Ática, 2000. pp. 57-59. Conforme já defendia Thomas
Hobbes, os homens estavam sempre em estado de guerra, sendo a figura do Estado fundamental para
controlar e coibir tal situação. Ao contrário de Aristóteles, que sustentava a idéia de que o homem é um
animal social, Hobbes defendia a posição de que o homem, por viver em constante guerra, necessita de
regras que o discipline, sob pena de destruir a si próprio e os outros. O filósofo parecia não ter ilusão de
que o estado de natureza em que se encontrava o homem lhe permitia tudo, conforme se depreende de
parte do texto, do capítulo XIV, do Leviatã: “o direito de natureza, a que os autores geralmente chamam
jus naturale, é a liberdade que cada homem possui de usar seu próprio poder, da maneira que quiser para
a preservação de sua própria natureza, ou seja, de sua vida; e conseqüentemente de fazer tudo aquilo
que seu próprio julgamento e razão lhe indiquem como meios adequados a esse fim”.
276
97
da Revolução Francesa, de 1789, que passou a privilegiar os direitos civis dos
cidadãos, alçando como norma-governo das relações privadas, o Código Civil
de Napoleão, de 1804: este simbolizou o início do movimento da codificação. O
qual assentava-se na racionalidade defendida pelo Iluminismo. Nesse contexto,
ensina Daniel Sarmento277:
A consagração política do princípio da igualdade, com a abolição
dos privilégios estamentais, exigia a existência de um direito
único para todas as pessoas, que deveria primar pela
generalidade e abstração, e regular, de modo completo e
exaustivo, as relações sociais.
(...) Os Códigos encampavam assim os interesses da burguesia,
protegendo a propriedade e a autonomia contratual, e conferindo
segurança ao tráfico jurídico, essencial para o desenvolvimento
do capitalismo.
Os Códigos, na verdade, representavam um quadro do mundo
cotidiano, no qual se pretendia emoldurar “todos os aspectos da vida humana,
do nascimento ao óbito”, revela o mencionado constitucionalista278. Segundo
tal concepção, o que não estivesse contemplado no diploma legal não era
reconhecido pelo Direito. A suposta vontade do legislador afastava qualquer
possibilidade do exercício de interpretação e de aplicação de princípios.
Vale lembrar, ainda, que no Estado Liberal era cristalina a
separação entre o Direito Público e o Direito Privado. Desse modo, a
Constituição consubstanciava a normativa que disciplinava a conduta dos
cidadãos perante o Estado; ou seja, concretizava normas de Direito Público.
Por outro lado, o Código Civil era responsável pela regulação das relações
privadas, em que imperava a autonomia da vontade e privilegiava a
titularidade, em detrimento de valores como a solidariedade e a igualdade
material.
Nesse constante devir dos fatos sociais, o século XX marcou a
passagem do Estado Liberal para o Estado Social, por meio do qual buscou-se
aproximar o Direito da realidade concreta, crivada pelas desigualdades que
aumentavam. Diante desse processo de transformações, a Constituição
277
SARMENTO ( 2006 ). p. 67-69. Na fase do Estado Liberal, vivia-se uma “‘sociedade de Direito
Privado’, na qual cabia ao Código delimitar a esfera da liberdade privada dos indivíduos, nas relações que
estes mantinham no mercado”, ensina o autor.
278
Idem. Ibidem. p. 75.
98
passou a ocupar significativo espaço no sistema normativo, regulando as
relações de caráter econômico e privado, “convertendo-se em centro unificador
do ordenamento civil”, professa Daniel Sarmento279.
Nessa
toada,
as
normas
constitucionais
passaram
a
desempenhar importantes papéis, tais como: limitar o exercício da atividade
legislativa privada, revelando a inconstitucionalidade das regras editadas em
desarmonia com elas; e condicionar a interpretação das normas de caráter
privado, as quais deviam guiar-se no sentido da realização e tutela da
dignidade da pessoa humana280. Para corroborar, cumpre trazer à baila as
lições de José Afonso da Silva281 para quem “todas as normas constitucionais
são dotadas de eficácia jurídica e imediatamente aplicáveis nos limites dessa
eficácia”.
Embora muito se discuta sobre a constitucionalização do Direito,
a realidade tem demonstrado que há, ainda, longo caminho a ser trilhado no
sentido de alcançar a efetiva observância das normas constitucionais, em
especial àquelas que consagram direitos humanos fundamentais. Nesse
sentido, Ingo Wolfgang Sarlet282 leciona que tais direitos se fundam a partir de
dúplice perspectiva283: subjetiva e objetiva. O aspecto subjetivo284 relaciona-se
à idéia de efetividade desses direitos em sede judicial.
No
tocante
ao
prisma
objetivo
dos
direitos
humanos
fundamentais, malgrado já ser possível encontrar estudos em torno do assunto
no “primeiro pós-guerra”, somente a partir da Constituição alemã, de 1949, tal
perspectiva superou a indiferença e exsurgiu no mundo jurídico. Para ilustrar o
tema, Ingo Wolfgang Sarlet285 aponta o caso Lüth - decidido pela Corte Federal
Constitucional Alemã, em 1958 -, no qual se defendeu a tese de que os direitos
279
SARMENTO ( 2006 ). p. 71.
Idem. Ibidem. p.75-78.
281
SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 6. ed. 2ª tiragem. São Paulo:
Editora Malheiros, 2003. p. 262.
282
SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 7. ed. rev. atual. e ampl. Porto
Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2007.a. p.180.
283
Alguns autores preferem a expressão dimensão ao invés de perspectiva. Cf. SARMENTO, Daniel
( 2006 ). Para este autor "a dimensão objetiva liga-se a uma perspectiva comunitária dos direitos
humanos, que nos incita a agir em sua defesa, não só através dos instrumentos processuais pertinentes,
mas também no espaço público, através de mobilizações sociais (...)”. p. 107-108; 123-124.
284
Cumpre, de pronto, ressaltar que, a despeito das diversas concepções existentes de direito subjetivo,
no presente trabalho, a perspectiva adotada vincula-se à idéia de “poder de exigir ou pretender
comportamentos ou de produzir autonomamente efeitos jurídicos”, conforme preleciona José Carlos Vieira
de Andrade. In: ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituição
Portuguesa de 1976. Coimbra: Livraria Almedina, 1987. p. 163.
285
SARLET ( 2007.a ). p. 168
280
99
humanos
fundamentais
enfeixavam
um
rol
de
valores
básicos,
consubstanciando “fins diretivos de ação positiva dos poderes públicos, e não
apenas garantias negativas dos interesses individuais”, conclui o mencionado
autor.
Nessa linha de preleção, Daniel Sarmento286expõe que:
a dimensão objetiva dos direitos fundamentais prende-se ao
reconhecimento de que neles estão contidos os valores mais
importantes de uma comunidade política. Estes valores, através
dos princípios constitucionais que os consagram, penetram por
todo ordenamento jurídico, modelando suas normas e institutos,
e impondo ao Estado deveres de proteção. Assim, não basta
que o Estado se abstenha de violar os direitos humanos. É
preciso que ele aja concretamente para protegê-los de
agressões e ameaças de terceiros, inclusive daquelas
provenientes dos atores privados.
Nesse contexto, nunca é demais ressaltar que a Constituição
brasileira de 1988 traz em seu bojo um pacto de proteção dos direitos humanos
fundamentais,
porquanto
além
de
promovê-los
e
dar-lhes
dimensão
fundamental, garante a sua aplicabilidade imediata, consoante a regra
esculpida no art. 5 , par. 1, do referido diploma. Ainda, prevê, de forma
expressa, alguns instrumentos que podem garantir a efetividade dos mesmos.
Como ilustração, pode-se destacar: o mandado de segurança (individual e
coletivo); o mandado de injunção; o habeas corpus; o habeas data; e a ação
popular. Ressalte-se, entretanto, que, a despeito da relevância dos
mencionados remédios constitucionais, eles de per se não são suficientes para
impedir os abusos e as violações dos direitos humanos fundamentais, é
preciso, como já dito alhures, que todo o corpo social se motive acerca da
importância de se garantir tais direitos. Cumpre repisar que os direitos
humanos fundamentais não estão dissociados do cotidiano das pessoas, ao
contrário, eles integram a personalidade; a vida delas.
286
SARMENTO ( 2006 ). p. 140.
100
TÍTULO II - A RESSIGNIFICAÇÃO DO TER
Capítulo I – DO BEM DE FAMÍLIA DO FIADOR
I. 1. A Função Social dos Contratos
O Estado Social e a idéia de desigualdade material, ao passo do
século XX, abalaram as velhas estruturas do sistema clássico privado,
exsurgindo novo horizonte. Nesse sentido, ensina Luís Roberto Barroso287:
O direito civil começa a superar o individualismo exarcerbado,
deixando de ser o reino soberano da autonomia da vontade. Em
nome da solidariedade social e da função social de instituições
como a propriedade e o contrato. O Estado começa a interferir
nas relações entre particulares, mediante a introdução de
normas de ordem pública (…). É a fase do dirigismo contratual
que consolida a publicização do direito privado.
Tratando do assunto, Luiz Edson Fachin288 argumenta: “quem
contrata, não contrata mais apenas com quem contrata, e quem contrata não
contrata mais apenas o que contrata; há uma transformação subjetiva e
objetiva nos negócios jurídicos”289. Qualquer interpretação das normas jurídicas
deve levar em conta a realidade concreta, no sentido de harmonizar o “deverser” da norma com o “ser-real” da vida: “uma lei se faz código no cotidiano
concreto da força construtiva dos fatos, à luz de uma interpretação conforme os
princípios, ética e valores constitucionais”, apregoa o civilista290.
Nessa linha de intelecção, Joaquim Falcão291professa:
287
BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito ( O Triunfo tardio
do Direito Constitucional no Brasil ). In: DE SOUZA NETO, Cláudio Pereira e Daniel Sarmento
( coordenadores ). A Constitucionalização do Direito: Fundamentos Teóricos e Aplicações Específicas.
Rio de Janeiro: Editora Lúmen, 2007. p. 231.
288
FACHIN ( 2008.a). p. 3.
289
Idem Ibidem. p. 3.
290
Idem Ibidem. p. 4.
291
FALCÃO, Joaquim. Amostragem e leis experimentais. Revista Conjuntura Econômica. Rio de
Janeiro: Fundação Getulio Vargas. Vol. 61, nº 09, set. 2007. p. 41.
101
(...) em vários países da Europa, por exemplo,
Legislativo utiliza técnicas de avaliação ex post
da eficiência da legislação, isto é, métodos
repercussões jurídicas e sociais das leis em
detectar necessidades de ajustes e mudanças.
o próprio Poder
da efetividade e
de análise das
vigor, a fim de
Nesse contexto, a autonomia privada que, por muito tempo, foi
alçada ao patamar de princípio regedor das relações privadas, só merece
proteção se estiver envolvida sob o manto de “um valor constitucional”,
assevera Gustavo Tepedino292, apontando, ainda, que os institutos basilares do
Direito Privado: o contrato, a propriedade e a família, face ao processo de
constitucionalização das normas, estão recebendo nova carga valorativa como:
irradiação dos princípios constitucionais nos espaços de
liberdade individual (...). Afinal, o Código Civil é o que a ordem
pública constitucional permite que possa sê-lo. E a solução
interpretativa do caso concreto só se afigura legítima se
compatível com a legalidade constitucional.
Nessa linha de pensamento, Renan Lotufo293 preleciona:
com o advento da nossa Constituição de 1988, ocorreu um
choque de perplexidade na doutrina e na jurisprudência, por
passar a mesma a disciplinar diretamente matérias que até
então eram de exclusivo tratamento pela lei ordinária, muito
particularmente por tratar de matéria, até então, objeto de
regulação exclusiva do Código Civil.
Por seu turno, Luis Renato Ferreira da Silva294 afirma que a
constitucionalização do Direito Civil deve ser analisada sob duas perspectivas:
a formal e a material. A primeira relaciona-se com o fato de que a Constituição
passou a tratar de temas que antes eram da órbita privada; a segunda
292
TEPEDINO. Op. Cit. p.309-311. Diz, ainda, o autor: “a noção de autonomia da vontade, como
concebida nas codificações do século XIX, dá lugar à autonomia privada alterada substancialmente nos
aspectos subjetivo ( pessoa concreta), objetivo ( novos interesses existenciais se sobrepõem aos
interesses patrimoniais que caracterizavam os bens jurídicos no passado), e formal ( relacionado à prática
dos atos)”.
293
LOTUFO, Renan. Da Oportunidade da Codificação Civil e a Constituição. In: SARLET, Ingo Wolfgang
(organizador). O Novo Código Civil e a Constituição. 2. ed. rev. e ampl. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2006. p. 24. É possível destacar como exemplo de matérias, que antes eram afetas à seara
privada, o direito de família, hoje, consagrado no art. 226 da Carta Constitucional de 1988.
294
SILVA, Luis Renato Ferreira da. A Função Social do Contrato no Novo Código Civil de 2002. In:
SARLET, Ingo Wolfgang (organizador). O Novo Código Civil e a Constituição. 2. ed. rev. e ampl. Porto
Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2006. p. 147-148.
102
perspectiva, a material, vincula-se à idéia de que a Carta Constitucional é o
vértice legitimador de todas as regras de Direito Civil.
Nessa ordem de idéias, Maria Cristina Cereser Pezzella295
assinala:
a reflexão que se constrói ao pensar e repensar o direito exige,
dos que a ele se dedicam, um esforço contínuo e constante. Seu
nascimento e renascimento é um fruto que só pode ser colhido
quando os fatos sociais incidem sobre a relação jurídica, e,
assim, comportam um nexo indissociado com a realidade e os
conceitos jurídicos abstratamente construídos pela mente atenta
aos fatos da vida.
A visão clássica de Direito Civil, como conjunto de normas
privadas criadas para disciplinar as relações particulares, está passando por
um processo de superação, que, à luz da Constituição de 1988, dá lugar à
interpenetração do direito público no direito privado,296 desafiando a tese
dicotômica direito público-direito privado.
Com efeito, Luiz Edson Fachin297 critica o sistema privado
clássico, o qual privilegia aquele “que tem bens, patrimônio sob si, compra,
vende, pode testar, e até contrai núpcias”, enquanto o outro que nada possui
(de cunho econômico) não é visto pelo sistema, que é montado para
resguardar o “sujeito dos bens”. Aduz ainda que “a reelaboração de uma teoria
do Direito Civil há de ter como ponto de partida mais que sua utilidade e, como
perspectiva, a reordenação dos fundamentos do sistema jurídico à luz de outro
projeto sócio-econômico e político”. Nesse diapasão, Eduardo Kraemer298
argumenta que a interpretação e aplicação do Código Civil, sob a ótica
constitucional, representa significativo avanço para a efetivação do exercício da
cidadania, e elucida que “não mais se mostra possível que a apropriação seja
concebida meramente como instrumento individualista”.
295
PEZZELLA, Maria Cristina Cereser. Código Civil em Perspectiva Histórica. In: SARLET, Ingo
Wolfgang (organizador). O Novo Código Civil e a Constituição. 2. ed. rev. e ampl. Porto Alegre: Editora
Livraria do Advogado, 2006. p.45.
296
FACHIN ( 2003 ). p. 25 et seq.
297
Idem. Ibidem. p. 216.
298
KRAEMER, Eduardo. Algumas anotações sobre os Direitos Reais no novo Código Civil. In: SARLET,
Ingo Wolfgang (organizador). O Novo Código Civil e a Constituição. 2. ed. rev. e ampl. Porto Alegre:
Editora Livraria do Advogado, 2006. p. 219-223. Diz o autor: “a propriedade e a posse, na nova
codificação, estão funcionalizadas. O exercício de ambas deve expressar e concretizar valores sociais”.
Ensina ainda o autor; “ não há condições de interpretar os direitos reais com o conteúdo absoluto como
qual foi concebido quando da entrada em vigor do Código de Clóvis”.
103
Nesse viés humanista do Direito, Jones Figueiredo Alves e Mário
Luiz Delgado299defendem que, além da função social, outros princípios
norteiam a nova ordem jurídica civilista, e destacam: o princípio da eticidade,
que visa a corrigir o caráter individualista do atual Código; o princípio da
socialidade300, segundo o qual o interesse privado deve se coadunar com o
interesse social; o princípio do equilíbrio econômico dos contratos, que dá
embasamento aos institutos da lesão, do estado de perigo e a resolução por
onerosidade excessiva; e por fim, o princípio judicialista, que resume a idéia de
que a atuação do juiz deve adequar-se ao ordenamento jurídico e aos valores
sociais.
Nesse cenário, preleciona Pietro Perlingieri301: “quanto mais o
dado normativo souber se adequar à realidade social, tanto mais a realidade se
apresentará de forma homogênea e unitária”. A reboque do pensamento do
mencionado autor italiano, cabe refletir acerca da necessidade de harmonizar
as regras contratuais que disciplinam as relações locatícias e as acessórias
destas, as de garantia, no sentido de se evitar discrepâncias como as que dão
prevalência ao direito de crédito, em detrimento do direito de moradia da
pessoa que serviu de garante de uma locação.
Vale repisar que a idéia de “coisificação” do homem tem sido
combatida por alguns autores, dentre eles Luiz Edson Fachin302, que vaticina:
“não raro, nos elementos da relação jurídica coloca-se o sujeito, e aí se revela
claramente que a pessoa não precede ao conceito jurídico de si próprio, ou
seja, só é pessoa quem o Direito define como tal”. Conforme preceitua o
mencionado civilista, a tendência contemporânea é no sentido de afastar as
concepções abstratas e genéricas, não somente no tocante aos titulares de
direitos, mas também no que pertine aos objetos303 que integram as relações
jurídicas. O elemento diferenciador desses vínculos jurídicos passa a ser a
299
ALVES, Jones Figueiredo; DELGADO, Mário Luiz. Novo Código Civil Confrontado com o Código
Civil de 1916. 2. ed. rev. ampl. São Paulo: Editora Método, 2002. p. 46-49.
300
Idem. Ibidem. p. 48. Os autores ilustram o ideal deste princípio com a previsão do desapossamento
social, previsto no art. 1.228, par. 4 do CC/02.
301
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: Introdução ao Direito Civil Constitucional. 3. ed.
Tradução Maria Cristina De Cicco. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2007. p. 31. O autor critica a idéia de
propriedade meramente formal e diz: “a propriedade privada não pode ser esvaziada de qualquer
conteúdo e reduzida à categoria de propriedade formal, como um título de nobreza”.
302
FACHIN ( 2003 ). p. 89.
303
Idem. Ibidem. p. 94 . Elucida o autor: “o objeto não é mais algo em si; passa a ter função”.
104
conduta dos envolvidos; isto é, a forma de agir baseada em valores como a
boa-fé, a confiança, e a solidariedade.
Nessa perspectiva, a funcionalização dos contratos impõe às
relações jurídicas limites norteados pelos direitos humanos fundamentais.
Afinal, não se pode esquecer que tais relações decorrem da convivência mútua
dos homens, e do espírito de cooperação que deve existir entre eles. Diante
de tal afirmação, é possível reconhecer que a noção clássica de relação
jurídica - na qual o homem é visto a partir de sua existência genérica e
abstrata, e não como um ser humano com carências e necessidades
específicas, sem maiores considerações de ordem social, cultural ou
econômica -, passa por um processo de releitura constitucional.
As mudanças de paradigmas requerem paciência e vontade por
parte daqueles que aplicam o Direito, porquanto se desvencilhar de um sistema
que prevaleceu por muito tempo não é tarefa simples. É cediço que, no Estado
liberal clássico, fruto da Revolução Francesa de 1789, a autonomia da vontade,
consubstanciada no contrato, imperava soberana, sendo um dos pilares do
direito privado. Nessa ordem, Sylvio Capanema de Souza304preleciona:
Para fortalecer o contrato, libertando-o da interferência do
Estado, a doutrina francesa criou dois grandes pilares de
sustentação da Teoria Geral dos Contratos. O primeiro deles, o
princípio da autonomia da vontade ou princípio da liberdade de
contratar. A função do Estado seria a de garantir que as partes
fossem livres para contratar (...). O outro pilar de sustentação
(...) era o princípio da força obrigatória dos contratos, também
conhecido como princípio da imutabilidade dos contratos.
Alinhados ao individualismo exacerbado do século XIX, os
referidos princípios foram, no entanto, aos poucos sendo relativizados diante
da constatação de que eles, de per se, não garantiam a igualdade dos
contratantes, a qual não se consubstanciava apenas no fator econômico, mas
304
SOUZA, Capanema. Contratos- Estudo das Principais Alterações Introduzidas pelo Novo Código Civil.
Coletânea de Textos Cepad. Rio de Janeiro: Editora Espaço Jurídico, 2005. p. 7-12. O autor chama a
atenção para a pertinente distinção entre liberdade de contratar e de liberdade contratual. Aquela diz
respeito à liberdade de celebrar ou não um contrato. Enquanto a liberdade contratual refere-se à liberdade
de praticar atos negociais nos limites legais e de acordo com a função social do contrato. Ensina, ainda,
no que toca ao princípio da imutabilidade dos contratos, que o mesmo consagra a máxima romana pacta
sunt servanda.
105
também em premissas de natureza técnica, cultural e intelectual, ensina o
mencionado autor305.
Diante dessa realidade, o Estado passou a intervir na seara
privada, com o objetivo de buscar a igualdade material. Desta feita, o princípio
da autonomia da vontade encontrou limites306 no denominado dirigismo
contratual307.
Ressalta, ainda, Sylvio Capanema de Souza
308
que a máxima
romana pacta sunt servanda - por muito tempo utilizada no direito brasileiro também teve sua força atenuada diante do surgimento de institutos como o da
lesão, do estado de perigo e da resolução do contrato por onerosidade
excessiva309, todos previstos no Novo Código Civil, e corolários dos princípios
da função social do contrato e da dignidade da pessoa humana.
Nesse contexto, cabe frisar que, numa relação contratual,
subsumida num tipo de contrato, deve-se primar pela justiça, consubstanciada
na máxima de agir conforme os ditames da lealdade, da eticidade, da
probidade, da solidariedade e da igualdade substancial. Desta forma, a relação
jurídico-contratual não só estará cumprindo a sua função social310, como
também colocando o homem de carne e osso no centro desta relação: trata-se
da consagração da dignidade humana.
305
SOUZA, Capanema. Op. Cit. p. 9.
À guisa de exemplo, cumpre destacar as restrições impostas às possíveis cláusulas tendentes a
beneficiar exageradamente uma das partes da relação contratual em detrimento da outra, mais fraca ou
menos experiente. Desta forma, a visão egoísta e individualista que permeava as relações privadas do
século XIX tem sido contestada diante dos novos paradigmas construídos pela própria sociedade,
trazidos pela Constituição de 1988, e desenvolvidos pela doutrina e jurisprudência, que buscam
humanizar o Direito.
307
SOUZA, Capanema. Ob. Cit. p. 10-11.
308
Idem. Ibidem. p. 9-11. Destaca o autor que, já em 1940, Caio Mário da Silva Pereira escreveu um livro
sobre a lesão em sede de direito civil, no qual criticava a ausência do instituto no Código Civil de 1916.
309
NEVARES, Ana Luiza Maia. O Erro, o dolo, a lesão e o estado de perigo no Código Civil de 2002. In:
TEPEDINO, Gustavo. A Parte Geral do Novo Código Civil: Estudos na Perspectiva CivilConstitucional. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2003. O instituto da lesão, previsto no art. 157,
CC/02, vincula-se à idéia de eqüidade e de justiça contratual. O estado de perigo, embora também
vincule-se à idéia de justiça, está umbilicalmente atrelado à proteção daquele que, num momento trágico
precisa tomar uma decisão que poderá prejudicá-lo mais tarde. p. 280-298. No tocante à resolução por
excessiva onerosidade, Caio Mário da Silva Pereira. In: Instituições de Direito Civil. Vol. III. 10. ed. Rio de
Janeiro: Editora Forense, 2000, p. 98, preleciona que “ultrapassado um grau de razoabilidade, que o jogo
da concorrência livre tolera, e, é atingido o plano de desequilíbrio, não pode omitir-se o homem do direito,
e deixar que em nome da ordem jurídica e por amor ao princípio da obrigatoriedade do contrato um dos
contratantes leve o outro à ruína completa”.
310
SILVA, Luis Renato Ferreira da. A Função Social do Contrato no Novo Código Civil de 2002. In:
SARLET, Ingo Wolfgang (organizador). O Novo Código Civil e a Constituição. 2. ed. rev. e ampl. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 156. Apregoa o autor que “(...) o contrato atende o interesse dos
contratantes, mas extrapola a esses interesses na medida em que atinge toda a cadeia econômica em
que se insere”.
306
106
Na esteira desse entendimento, reconhece-se que, na hipótese
de conflito entre o direito humano fundamental à moradia do fiador e o direito
de crédito do locador – por exemplo, é indiscutível que deve preponderar
aquele, visto garantir, não apenas o teto do fiador e de sua família – que já
seria motivo suficiente para prevalecer face ao direito de crédito – mas
preserva outros valores como a dignidade humana. Nesse sentido, preceitua
Sylvio Capanema de Souza311 que a função social do contrato, sob a ótica
sociológica, consiste “em colocar o contrato a serviço da construção da
dignidade do homem, da eliminação da miséria, das desigualdades sociais, e
da melhor distribuição de renda”.
Na verdade, as idéias de humanização do Direito, embora ainda
distantes da realidade fática, mas insistentemente defendidas no plano ideal,
por doutrinadores312 que colocam o ser humano no centro das relações
jurídicas, têm contribuído, sobremaneira, para a evolução das regras civilistas,
bem como para a positivação infraconstitucional de princípios como a função
social dos contratos e a boa-fé objetiva313.
Nesse contexto, insere-se o contrato de fiança, sobre o qual
deitar-se-á algumas considerações, levando-se em conta a sua origem,
natureza jurídica e utilidade na perspectiva sócio-jurídica.
I. 2. Alguns Aspectos do Contrato de Fiança
“Quem fica por fiador certamente sofrerá, mas o que aborrece a
fiança estará seguro”, com estas palavras, o Rei Salomão instruiu seus súditos
acerca da fiança. Conforme se extrai das Escrituras Sagradas, no Livro de
Provérbios314, já era possível visualizar o instituto da fiança na Antigüidade,
tendo como referência, inclusive, a Bíblia Sagrada.
311
SOUZA, Capanema. p. 13.
Nesse sentido, ver FACHIN, Luiz Edson. Teoria Crítica do Direito Civil à Luz do Novo Código Civil
Brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2003; TEPEDINO, Gustavo. Normas Constitucionais e
Direito Civil na Construção Unitária do Ordenamento. In: DE SOUZA NETO, Cláudio Pereira e Daniel
Sarmento ( coordenadores ). A Constitucionalização do Direito: Fundamentos Teóricos e Aplicações
Específicas. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007; e MEIRELLES, Jussara. O Ser e o Ter na
Codificação Civil brasileira: sujeito virtual à clausura patrimonial. In: FACHIN, Luiz Edson ( coordenador ).
Repensando Fundamentos do Direito Civil Brasileiro Contemporâneo. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora
Renovar, 2000. pp.89-92.
313
SOUZA, Capanema. Op. Cit. p. 15. Segundo o autor, o CDC ( Código de Defesa do Consumidor )
contempla o princípio da boa-fé objetiva nas quatro fases negociais: nas tratativas; na conclusão; na
execução; e por fim, após o cumprimento do contrato.
314
BÍBLIA SAGRADA. Português. Livro de Provérbios. Tradução: João Ferreira de Almeida. São
Paulo: Editora Impres. 1999. p. 551-553. Cf. Prov. 6,1. “Filho meu, se ficaste por fiador do teu
312
107
Também as escritas romanas, consubstanciadas na Lei das Doze
Tábuas, no ano 450 a.C., na Tábua VII estabelecia: “o rico será fiador do rico,
para o pobre qualquer um poderá servir de fiador”. Segundo esclarecimentos
de Gildo dos Santos315, no Direito Romano, a expressão cautio significava
todas as garantias que o devedor podia dispor; quais eram: sponsio, fidejussio,
fidepromissio, mandatum, pecuniae, credentiae, as quais se subsumiram no
instituto da fiança que, naquele tempo era constituída verbalmente, ao contrário
do que ocorre hoje, em grande parte dos ordenamentos jurídicos, em que se
exige a forma escrita.
No Direito Germânico, uma das formas de fiança era a dação de
refém, “em que alguém assumia a responsabilidade por dívida de terceiro,
quando um homem livre era entregue ao credor”, que o mantinha até que a
obrigação fosse adimplida; se não o fosse, o refém perdia sua liberdade e o
direito de viver ou morrer passava ao domínio do credor, assevera Gildo dos
Santos316.
No sistema normativo brasileiro, as garantias se subdividem em
reais e pessoais. Têm-se como exemplos das primeiras: a hipoteca, o penhor
e a anticrese e, quanto às garantias fidejussórias, destaca-se a fiança,
consubstanciada num contrato unilateral317 (na sua execução), acessório e, em
regra, gratuito318, por meio do qual uma pessoa assume perante um credor a
obrigação de pagar a dívida de um terceiro, se este não o fizer: ou seja, o
fiador, normalmente cedendo a pressão de ordem sentimental, pois, em regra,
tem um laço de amizade ou parentesco com o afiançado, assume perante o
credor a posição de garante daquele.
companheiro, se deste a tua mão ao estranho, se te enredaste com as palavras dos teus lábios ( ...)”.
Prov. 20, 16. “Ficando alguém por fiador de um estranho, tome-se-lhe a roupa: e por penhor àquele que
se obriga pela mulher estranha”.
315
SANTOS, Gildo dos. Fiança. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. p. 22
316
Idem. Ibidem. p. 22-23.
317
GOMES, Orlando. CONTRATOS. 12. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1992. p.492-495. Conforme
lições do autor, alguns estudiosos defendem a característica da bilateralidade do contrato de fiança, sob o
fundamento de que há um dever de diligência por parte do credor, que teria a obrigação de cobrar do
devedor principal. Maria Helena Diniz defende que o contrato de fiança é bilateral na sua formação e
unilateral na sua execução, vez que tal ajuste só gera obrigação para o fiador. In: DINIZ, Maria Helena.
Tratado Teórico e Prático dos Contratos. Vol. 5. 4. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2003, p. 5-10.
318
Idem. Ibidem. p. 493. Ensina Orlando Gomes que a característica da gratuidade não afasta a
possibilidade de o fiador auferir vantagens pecuniárias para compensar os riscos decorrentes da
obrigação que do contrato decorre.
108
Orlando Gomes319 aponta que a garantia pessoal decorrente da
fiança traz algumas conseqüências, tais como: “a obrigação fidejussória não
sobrevive à obrigação principal; e a obrigação fidejussória tem a mesma
natureza e extensão da obrigação principal”. O mencionado civilista acrescenta
que o instituto em tela é um contrato de caráter subsidiário; pode ser prestado
para “o cumprimento de obrigação futura ou condicional”; admite como objeto
outra fiança (denominada de subfiança); deve ser, necessariamente, acordado
por escrito; permite o benefício de ordem ou de excussão320; a obrigação
assumida pelo garantidor pode ser inferior à obrigação principal; garante a subrogação do devedor em todos os direitos do credor em face do devedor; pode
ter duração limitada ou ilimitada de tempo, cabendo ao fiador o direito de
exonerar-se da obrigação assumida.
A propósito, a questão da exoneração do fiador ainda acirra os
ânimos dos doutrinadores e acentua o dissenso da jurisprudência, vez que,
para alguns321, há conflito entre a regra insculpida no art. 39, da lei do
inquilinato322 e o art. 835, do Código Civil de 2002323, devendo aquela
prevalecer, por força do art. 2.036324, do referido novel civilista, e do princípio
da especialidade.
Em sentido contrário, ao lado de Gildo dos Santos325, entende-se
que a disciplina geral do instituto da fiança está sob o jugo do Código Civil,
cabendo a aplicação da lei especial naquilo que não contrariar as normas
previstas naquele diploma legal.
319
GOMES. Op. cit. p. 493-496. Aponta o autor que “embora a fiança seja um contrato intuito personae
em relação ao fiador, suas obrigações transmitem-se mortis causa, desde que nascida antes da abertura
da sucessão”.
320
Cf. ensina Fabrício Zamprogna Mattielo, o benefício de ordem consubstancia “a prerrogativa que tem o
fiador de exigir, ao ser demandado, a execução dos bens do devedor antes de serem executados os
seus”. In: MATTIELO, Fabrício Zamprogna. Código Civil Comentado. São Paulo: LTR, 2003. p. 517.
321
Nesse sentido ver GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro – Contratos e Atos
Unilaterais. Vol. III. São Paulo: Editora Saraiva, 2004
322
BRASIL. Poder Legislativo. Lei 8.245, de 18 de outubro de 1991. Dispõe sobre as locações urbanas e
os procedimentos a elas pertinentes. Brasília: Diário Oficial da União de 21 de outubro de 1991. “Art.
39. Salvo disposição contratual em contrário, qualquer das garantias da locação se estende até a efetiva
devolução do imóvel”.
323
BRASIL. Poder Legislativo. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Brasília: Diário
Oficial da União de 11 de janeiro de 2002. “Art. 835. O fiador poderá exonerar-se da fiança que tiver
assinado sem limitação de tempo, sempre que lhe convier, ficando obrigado por todos os efeitos da
fiança, durante 60 ( sessenta ) dias após a notificação”. Diferente era a regra do Código Civil de 1916,
que em seu art. 1.500, admitia a exoneração do fiador apenas com a anuência do locador ou por decisão
judicial. Com o novel civilista, no entanto, basta apenas a notificação do fiador ao credor, conforme o
artigo supracitado.
324
“Art. 2.036. A locação de prédio urbano, que esteja sujeita à lei especial, por esta continua a ser
regida”.
325
SANTOS, Gildo ( 2006 ). p. 96.
109
O objeto imediato do contrato de fiança é a “dívida que se quer
garantir”, ensinam Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho326, os quais
apontam, ainda, as formas de extinção do referido ajuste expressas no Código
Civil de 2002, a partir do art. 835 o qual prevê a possibilidade de exoneração
do fiador e, por conseguinte, a extinção do contrato em relação a ele; depois
vêm os art.s 838 e 839, que cuidam dos diversos meios de desobrigação da
avença de garantia, entre elas estão: a concessão de moratória feita pelo
credor sem o consentimento do fiador; a impossibilidade de sub-rogação nos
direitos do credor, por culpa deste; a aceitação do credor de objeto diverso do
que estava ajustado; e a utilização do benefício de ordem pelo fiador que, ao
indicar bens do devedor principal, e este não realizar a execução na época
propícia e sobrevindo a sua insolvência, poderá aquele eximir-se da função de
garantidor, mediante comprovação de que havia bens do devedor principal
suficientes antes da insolvência327.
Nessa trilha, afigura-se a fiança
328
uma das espécies do gênero
garantia ou caução e, no que toca ao seu objeto, funde-se em diferentes
modalidades, quais sejam: a fiança de natureza civil; de caráter comercial329;
criminal330; e por fim, a fiança bancária. Quanto à forma, o referido instituto
pode ser contratual (convencional), legal ou judicial331.
A fiança civil, segundo lições de Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo
Pamplona Filho332, cuida de “uma relação jurídica contratual, estabelecida entre
o credor de uma obrigação e um sujeito garantidor, com seu patrimônio
pessoal, para eventual hipótese de descumprimento de uma prestação
principal, pelo efetivo devedor”. Na realidade, o contrato de fiança, sob a
326
GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, RODOLFO. Novo Curso de Direito Civil. Contratos.
Tomo 2. Volume IV. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 597-623.
327
Idem. Ibidem. p.620-623.
328
Nesse sentido, ver PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. 3. ed.
Rio de Janeiro: Editora Borsói, 1972, Tomo XLIV. p. 100-101. A palavra fiança encontra sua origem
remota, no verbo fiar, no sentido de confiar, abonar, afiançar.
329
GAGLIANO; PAMPLONA FILHO. Op. Cit. p. 599. Para os autores, considerando a unificação das
obrigações civis e comerciais, a distinção entre fiança civil e comercial não faz mais sentido.
330
Idem. Ibidem. p. 599. Ensinam os autores, que a fiança criminal tem por escopo garantir o direito à
liberdade do acusado, “na efetivação da presunção de inocência até o trânsito em julgado do processo
penal correspondente”. Gilson dos Santos, a seu turno, argumenta que a fiança criminal, malgrado assim
ser denominada, não configura tecnicamente uma fiança, e sim uma caução real, visto que seu objeto é a
entrega de uma quantia em dinheiro; ver SANTOS, Gilson, op. cit. p. 82.
331
SANTOS, Gildo ( 2006 ). p. 22-46.
332
GAGLIANO; PAMPLONA FILHO. Op. Cit. p. 599.
110
perspectiva econômica, consubstancia um “contrato de prevenção de riscos”,
professam os mencionados autores.
É cediço que a fiança tem sido, de há muito, utilizada de forma
significativa no mercado de locação, como instrumento de garantia. Nesse
sentido, a Lei 8.245/91, a chamada lei de locação ou do inquilinato, em seu art.
37, prevê três espécies de garantia, que são: a caução, o seguro de fiança
locatícia, e a fiança na locação. A caução é de difícil utilização, basicamente
por duas razões: 1. pelo prisma do locador, a própria lei limita o depósito em
dinheiro no valor máximo de três aluguéis; e 2. pela perspectiva do locatário, na
maioria da vezes, ele não dispõe dessa quantia para o depósito caução.
A segunda modalidade de garantia de contrato de locação é o
seguro fiança333, também, no dia a dia, de difícil viabilidade para o locatário,
pois as instituições financeiras, sempre preocupadas com os riscos do mercado
creditício, criam inúmeros óbices de ordem burocrática que a tornam
inexeqüível, malgrado a existência de regras que vinculam a garantia
decorrente da fiança bancária à vigência do contrato de locação, e a
prorrogação contratual à anuência do segurador, conforme se verifica no art.
12, da Circular SUSEP nº 347, de 27 de junho de 2007:
o prazo de vigência do contrato de seguro fiança locatícia é o
mesmo do respectivo contrato de locação.
Par. 1º. Na hipótese de prorrogação do contrato por prazo
indeterminado, ou por força de ato normativo, a cobertura do
seguro somente persistirá mediante aceitação de nova proposta
por parte da sociedade seguradora.
De pronto, já é possível visualizar, a partir da norma supracitada,
a quebra de isonomia que existe entre a modalidade de garantia seguro fiança
e a fiança pessoal. Aquela, por meio de ato normativo, determina que a
responsabilidade da seguradora estende-se até o termo final do contrato; e na
hipótese de se tornar o contrato por prazo indeterminado, a referida garantia só
persistirá mediante nova proposta devidamente aceita. Já no contrato de fiança
locatícia, o qual, normalmente, vem atrelado ao contrato de locação, estipulase a responsabilidade do fiador até a entrega das chaves, o que já caracteriza
333
BRASIL. Poder Executivo. Ministério da Fazenda. SUSEP. Circular que dispõe regras de seguro fiança
locatícia. Brasília, DF. Disponível em: < www.susep>. gov.br >. Pesquisa realizada em 13/11/2007.
111
cláusula leonina, pois o fiador poderá ter que responder por obrigações que
excedem o prazo inicial do contrato, a que anuiu expressamente.
Nesse contexto, Genacéia da Silva Alberton334 aponta para a
realidade do mundo da vida, onde, em regra, “supõe-se que o fiador, ao aceitar
ser fiador do locatário tem ciência de que seu único imóvel está sujeito à
execução por eventual inadimplemento”, o que, assevera a autora, é “mera
suposição, porque raramente no contrato está expressa a indicação do imóvel
como garantia”. É fato que, na maioria das vezes, o fiador sequer tem
consciência das conseqüências jurídicas de seu ato, as quais repercutirão
diretamente em sua vida concreta.
De fato, a defesa da fiança como forma de facilitar a locação e,
por conseguinte, o acesso à habitação, não pode prejudicar diretamente aquele
que, “a duras penas” conseguiu alcançar o sonho da casa própria, e que, da
noite para o dia, se vê desalojado, por que o legislador decidiu fazer política
habitacional questionável utilizando como instrumento seu ato de liberalidade,
sem levar em consideração que, na maioria das vezes, o mesmo assume
posição de garante sem saber que seu único bem imóvel poderá ser objeto de
penhora, na hipótese de inadimplência do locatário, em contrato de locação no
qual foi fiador.
No que pertine ao benefício de ordem, Pablo Stolze Gagliano e
Rodolfo Pamplona Filho335 com fulcro no art. 828, do Código Civil de 2002,
aduzem que o mesmo poderá ser afastado quando o fiador: 1. o renunciar
expressamente; 2. se obrigar como principal pagador ou como devedor
solidário; e 3. na hipótese de insolvência ou falência do devedor.
Defende-se,
no
entanto,
entendimento
contrário
ao
aqui
esposado pelos referidos estudiosos, por duas razões bastante relevantes: a
primeira, refere-se ao fato de que o dispositivo 828, utilizado como fundamento,
não está em perfeita harmonia com a Carta de 1988, quando o interesse em
jogo é o patrimônio mínimo do fiador; e 2. porque, em se tratando de ato de
liberalidade, em regra, sem qualquer vantagem pecuniária, o contrato de fiança
dever ser interpretado restritivamente, bem como conter cláusulas objetivas
334
ALBERTON, Genacéia da Silva. Impenhorabilidade de Bem Imóvel Residencial do Fiador. In: TUCCI,
José Rogério Cruz e.( coordenador ). A Penhora e o Bem de Família do Fiador da Locação. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2003. p. 119.
335
GAGLIANO; PAMPLONA FILHO. Op. Cit. p. 599-600.
112
que deixem claro as possíveis conseqüências decorrentes da assinatura do
referido ajuste, como a possibilidade de seu único imóvel residencial responder
pela dívida do devedor-locatário, bem como prever normas que disciplinem
expressamente a comunicação ao fiador do inadimplemento do devedor
principal. Nesse diapasão, aponta Genacéia da Silva Alberton336 que:
os contratos de locação são efetivos contratos por adesão, com
termos já impressos, padronizados, onde o fiador assina, abre
mão do direito de ordem, assume obrigação de forma solidária e
não tem expressa a advertência de que o seu imóvel
residencial está sujeito à garantia de dívida que
eventualmente ocorra por inadimplemento do afiançado. ( grifo
nosso ).
Com amparo no pensamento da mencionada autora, afirma-se
que a violação ao princípio da igualdade é evidente na relação jurídica locatícia
envolvendo fiança pessoal. Basta examinar a posição do locatário, devedor da
obrigação decorrente do contrato de locação e do fiador que, num ato de
liberalidade, imbuído de sentimento de solidariedade, assume a posição de
garantidor do referido contrato. O absurdo jurídico ocorre quando da
inadimplência do devedor, o bem do fiador torna-se objeto de penhora, e,
posteriormente, objeto de execução, enquanto eventual bem do locatário, se
este for também proprietário, não será objeto de constrição, pois é protegido
pela Lei 8.009/90, imune à penhora por dívida de natureza civil, salvo, as
decorrentes do próprio imóvel, como IPTU, condomínio, taxa de incêndio etc.
Ainda, o locador, ou investidor do ramo imobiliário, por sua vez, continuará
morando em sua confortável casa, e seu imóvel, objeto de locação também
continuará em seu acervo patrimonial, sendo novamente locado; enquanto o
fiador e sua família estarão à mercê da sorte e de suas possibilidades
financeiras.
Nesse contexto, Eliana Maria Barreiros Aina337 professa que no
contrato de fiança locatícia não há o pleno exercício da autonomia da vontade
por parte do fiador que, sem possibilidade de discutir as cláusulas do contrato,
o assina sem saber que, ao celebrar tal negócio jurídico, está assumindo uma
336
ALBERTON. Op. Cit. p. 105-133.
AINA, Eliane Maria Barreiros. O Fiador e o Direito à Moradia: Direito Fundamental à Moradia Frente
à Situação do Fiador proprietário de Bem de Família. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2004. p.
37.
337
113
posição desvantajosa e excessivamente onerosa: trata-se “de um flagrante
desequilíbrio contratual”, complementa a autora, vez que:
com indiscutível regularidade, os termos contratuais envolvem a
renúncia por parte do fiador de diversas condições que lhe são
favoráveis, tais como o benefício de ordem, resilição unilateral
do contrato e outros, sendo que, por outro lado, assume
obrigações inadmissíveis, tais como a responsabilidade até a
entrega das chaves, mesmo que isso signifique comprometer-se
por períodos de muitos anos, além de não ter idéia do quantum
está comprometendo de seu patrimônio, pois a expressão ‘até a
entrega das chaves’ não estabelece um limite temporal nem
monetário.
A pensadora em tela338 defende que o fiador deve ser informado,
de forma expressa, que seu único imóvel será a garantia patrimonial da
obrigação assumida pelo locatário, bem como ser avisado, dentro do prazo de
noventa dias sobre a ocorrência de inadimplemento por parte do devedorlocatário.
Pode, entretanto, acontecer que aqueles ainda presos ao
positivismo clássico e ao legalismo, ao lançarem mão do disposto no art. 3º da
Lei de Introdução ao Código Civil339- que prevê a regra segundo a qual
ninguém pode “se escusar de cumprir a lei, alegando que não a conhece”-,
argumentar que o fiador deveria estar ciente de que o seu imóvel poderia ser
objeto de execução, na hipótese de inadimplemento do fiador, porquanto há
previsão legal, insculpida no art. 3º, inciso VII, da Lei 8.009/90. Tal fundamento,
todavia, não se sustenta diante da realidade dos fatos neste país, na qual mais
de 11% da população é analfabeta, e 26% são considerados analfabetos
funcionais340.
Nesse
sentido,
merece
destaque
o
pensamento
do
338
ALBERTON. Op. Cit. p. 120-129.
BRASIL. Decreto-Lei 4.657, de 4 de setembro de 1942. Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro.
Diário da República Federativa do Brasil, de 09 de set. 1942.
339
340
Conforme a UNESCO “analfabetos funcionais são as pessoas com menos de quatro anos de estudo “.
Para a organização, o fato de essas pessoas saberem ler e escrever não significa que seu conhecimento
seja suficiente para suprir as suas necessidades diárias quanto aos aspectos pessoais e profissionais.
Segundo dados do IBGE, em 2002, o Brasil tinha 32,1 milhões de analfabetos funcionais, ou seja, 26% da
população de 15 anos ou mais de idade.
114
Desembargador Benedicto Abicair, do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de
Janeiro341:
(...) convém esclarecer que num país onde a miserabilidade
cresce acentuadamente, naturalmente nutrida pela falta de uma
educação que permita a população ter pleno conhecimento do
que lê e ouve todos os dias, aliado ao fato de ter-se uma
infinidade de leis e correlatos que confundem, até mesmo, os
mais operantes profissionais do direito, é impossível pretenderse que aquela afirmativa de que a ninguém é permitido alegar o
desconhecimento da lei, seja encarada como absoluta.
Ora, ante tal realidade, exigir do fiador a plena consciência de que
seu bem de família poderá ser objeto de penhora na hipótese de
inadimplemento de seu afiançado, em contrato de locação, porque assim
dispõe a lei, e ele deveria saber, significa interpretar a sistemática normativa de
forma extremante abstrata e desconectada do mundo real.
Além do mais, não é possível, por tudo que já foi exposto sobre o
direito humano fundamental à habitação, colocar no mesmo patamar o referido
direito e o direito de crédito, posto estar-se sopesando valores axiologicamente
distintos; sem falar no fato de que o direito de crédito pode ser cobrado por
outros meios legais. Desta feita, qualquer obrigação a que tenha se vinculado o
fiador só poderá alcançar – repise-se - seu patrimônio excedente, ou seja,
aquele que está fora da esfera da garantia do mínimo existencial, não podendo
atingir, portanto, o bem de família, em que mora com sua família.
Com inspiração nas idéias de Enzo Roppo342, depreende-se que
o contrato de fiança, assim como os demais institutos jurídicos, devem ser
interpretados à luz da realidade em que estão inseridos, considerando-se,
sempre, as peculiaridades de cada situação e o homem a partir de suas
necessidades essenciais, no dizer de Pietro Barcellona343. Cabe lembrar e
realçar, sempre, que os contratos são regidos por uma premissa fundamental,
a sua função social, que configura preceito de ordem pública, “inválido, por
341
Ver Apelação Cível nº 2007.001.033337, da Sexta Câmara Cível, do Tribunal de Justiça do Estado do
Rio de Janeiro.
342
ROPPO, Enzo. O Contrato. Coimbra: Editora Almedina, 1988. p. 24-25.
343
BARCELLONA, Pietro. El individualismo proprietário. Presentación Mariano Maresca. Traducción
Jesús Ernesto García Rodríguez. Madrid: Editorial Trotta, S.A., 1996. p. 44.
115
isso, pode ser considerado qualquer negócio ou ato jurídico que contrariar essa
disposição”, vaticina Luiz Edson Fachin344.
Nessa trilha, buscar-se-á, no próximo tópico, demonstrar que o
instituto da impenhorabilidade do bem de família em geral, e, em especial, do
fiador, desempenha importantes funções, tais como: garantir um patrimônio
mínimo para uma existência digna; servir de instrumento de proteção do direito
humano fundamental à moradia; e tutelar o princípio-base da Constituição, a
dignidade da pessoa humana.
I. 3. Da Impenhorabilidade do Bem de Família
“Dentre o conjunto de bens que integram o patrimônio da família,
é o imóvel residencial que deve ser protegido, diante dos seus múltiplos
reflexos”, apregoa Antônio de Pádua Ferraz Nogueira345.
No
Dicionário
Houaiss
da
Língua
Portuguesa346,
a
impenhorabilidade está descrita como “qualidade do que é impenhorável;
característica dos bens que, por determinação legal ou testamentária ou
mesmo por ato voluntário, não podem ser objeto de penhora”, ou seja, a lei
afasta do campo da execução certos bens que servem de suporte para a
pessoa desenvolver-se, ter uma vida digna.
Cumpre, de pronto, reconhecer o caráter protetivo do instituto da
impenhorabilidade, somado à sua função de garantir um patrimônio mínimo ao
indivíduo que, no mundo do “ter”, pouco ou nada tem, professa Luiz Edson
Fachin347, defendendo que:
(...) a garantia de um patrimônio mínimo, a exemplo do que
ocorre com o denominado ‘bem de família’, não afeta direta e
necessariamente o direito material de crédito propriamente dito,
mas sim retira bem ( ou bens ) da órbita da executoriedade.
Trata-se, por assim dizer, de uma causa elisiva, que não
344
FACHIN, Luiz Edson. Questões do Direito Civil brasileiro contemporâneo. Rio de Janeiro: Editora
Renovar, 2008. p. 23. Tal premissa está fundamentada no art. 2.035, do Código Civil brasileiro de 2002.
345
NOGUEIRA, Antônio de Pádua Ferraz. Fundamentos sócio-jurídicos do bem de família (Lei 8.009/90).
In: Revista dos Tribunais. São Paulo: RT, v. 691. p. 7-12, maio, 1993.
346
DICIONÁRIO ELETRÔNICO HOUAISS DA LÍNGUA PORTUGUESA 2.0.
347
FACHIN ( 2006 ). p. 67; 140 -286. Nesse sentido, professa o autor: “obter a guarida do patrimônio
mínimo em favor dos valores fundamentais da pessoa é uma maneira de instituir um novo lugar jurídico,
espaço de luta constante entre interesses e pretensões”.
116
impugna a regra segundo a qual o patrimônio
( leia-se, pois, o
patrimônio disponível ) do devedor é a garantia do credor.
No caso do fiador, proprietário de um único bem (o bem de
família) advoga-se que a impenhorabilidade, como garantia do mínimo
existencial, e, por conseguinte, da dignidade humana, não deslegitima o direito
de crédito (uma das múltiplas dimensões do direito de propriedade), mas
apenas lhe impõe limites, porquanto há que se ponderar os interesses em jogo:
de um lado, um direito de crédito e, de outro, um bem imóvel que serve de
abrigo ao ser humano concreto.
Nesse diapasão, Antonio de Pádua Ferraz Nogueira348 denuncia:
“infeliz a família que nos dias atuais venha perder a sua residência, pois só
remotamente poderá adquirir outra, em face do alto custo da construção e da
desproporção dos valores das prestações de compra com os dos salários”.
Vale repisar que o bem de família, assegurado legalmente ou por
meio de ato de vontade, consubstancia efetivo instrumento de realização do
direito humano fundamental à moradia. De fato, sua ratio está calcada
substancialmente na dignidade da pessoa humana e em seu pleno
desenvolvimento. A propriedade defendida, no caso do bem de família, não
consubstancia direito fundamental autônomo, mas uma via instrumental para a
realização do direito humano fundamental à habitação. Sobre o tema, cabe
ressaltar a contribuição de Ingo Wolfgang Sarlet349:
A propriedade encerra muitas vezes, notadamente em
cumprindo a sua função social, um conteúdo existencial e
vinculado diretamente à própria dignidade da pessoa, como
ocorre por exemplo com o imóvel que serve de moradia ao titular
do domínio.
De fato, a imunidade da penhora tutela o patrimônio mínimo da
pessoa, de tal sorte que, “a execução não pode levar o executado a uma
situação incompatível com a dignidade da vida humana”, afirma Luiz Edson
348
NOGUEIRA. Op. Cit. p. 7-12.
SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 7. ed. rev. atual. e ampl. Porto
Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2007.a. p. 90.
349
117
Fachin350. Ainda, na direção desse entendimento, Melhim Namem Chalhub351
ilustra:
A estrutura do direito de propriedade reflete a realidade
econômica, política e social de cada época, de modo que sua
concepção é fruto de contínua adaptação de acordo com as
transformações por que passa a organização social.
A propriedade, conforme já dito alhures, abarca um arsenal de
concepções, nuances e características, que vão se transmudando de acordo
com os fatos da vida, revelando, desta forma, o que o mencionado autor
chamou de “contínua adaptação”. Trata-se, na realidade, de um processo
permanente de transformação pelo qual a propriedade, inevitavelmente, passa.
No caso do bem de família, o referido significante consubstancia um
instrumento por meio do qual o direito humano fundamental à moradia se
perfaz, se materializa, se amolda, se concretiza. A sua impenhorabilidade, no
dizer de Eliana Maria Barreiros Aina352 ӎ uma forma de garantir a moradia de
quem já a possui, e, enquanto perdurar enorme índice de deficit habitacional,
deve estender o seu alcance e não restringir como fez em relação ao fiador de
relação locatícia”.
Cabe realçar a iniciativa federal que, por meio da Lei 8.009/90,
precedida pela Medida Provisória nº 143, de 8 de março de 1990, afastou do
campo da incidência da execução civil, comercial, fiscal e previdenciária, o bem
de família e os objetos que lhe servem de guarnição. Com entendimento um
pouco diverso, Gildo dos Santos353 assevera que, não obstante a ratio do
referido diploma visar à proteção do teto do proprietário e de sua família, a
iniciativa legislativa culminou em um novo óbice para se locar um imóvel.
Diante da perspectiva de não poder penhorar o único bem do fiador, os
locadores, seja diretamente, ou por meio de empresas administradoras de
imóveis, passaram a exigir dos locatários, fiadores proprietários de mais de um
350
FACHIN, Luiz Edson. Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora
Renovar, 2006. p. 206-230.
351
CHALHUB, Melhin Namem. Propriedade Imobiliária: Função Social e Outros Aspectos. Rio de
Janeiro: Editora Renovar, 2000. p. 1.
352
AINA. Op. Cit. p. 119.
353
SANTOS, Gilson. Locação e Despejo. 5. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004.
p. 122-125.
118
bem imóvel, inibindo, desta forma, o mercado de aluguéis: pois ficou difícil
encontrar um garantidor titular de mais de um imóvel.
Com o objetivo de resolver o apontado problema, o Estado, mais
uma vez, veio, por meio de política legislativa, tentar solucionar a questão que,
aparentemente, parecia ter desencadeado uma crise no setor de locação,
prejudicando, com isso, o acesso à habitação. Desta forma, editou-se a Lei
8.245, de 18 de outubro de 1991 ( a denominada lei do inquilinato ) a qual
trouxe ao mundo jurídico e dos fatos uma nova exceção à impenhorabilidade
do bem de família, acrescentando o inciso VII ao art. 3º, da Lei 8.009/90, em
que prevê, expressamente, a possibilidade de restrição judicial do bem do
fiador de fiança locatícia.
Após a edição do referido diploma regulador do mercado de
locação, alguns doutrinadores, como Gildo dos Santos354, e parte da
jurisprudência ( sobre a qual se deitará análise minuciosa no capítulo II, deste
título ) passaram a admitir a penhora do bem de família do fiador mesmo para
os contratos firmados anteriormente à previsão legal. O mencionado autor
baseia seu entendimento na lei processual a qual no art. 591355 prevê que o
devedor responde por todos os seus bens presentes e futuros, para o
cumprimento das obrigações por ele assumidas.
Discorda-se, todavia, desta posição, porquanto é inadmissível
que uma lei posterior ( Lei 8.245/91, art. 82 c/c Lei 8.009/90, art. 3º, inciso VII )
venha alterar ato jurídico perfeito. Afinal, o contrato de fiança celebrado pelo
fiador para garantir uma obrigação decorrente de relação jurídica locatícia se
perfêz no momento de sua manifestação de vontade, sendo regido, portanto,
pelas regras à época estabelecidas. Não se pode confundir os efeitos
contínuos decorrentes da garantia, com o dies a quo do nascimento da relação
de garantia. Além disso, cumpre destacar que o contrato de fiança locatícia, por
consubstanciar, em regra, um ato de liberalidade do fiador, deve ser
354
SANTOS, Gildo ( 2006 ). p. 100 et seq.
Não se está aqui a questionar a constitucionalidade do art. 591, do Código de Processo Civil, o que se
defende, entretanto, é a sua interpretação conforme à Constituição no sentido de afastar a referida norma
do patrimônio que garante o mínimo existencial da pessoa e de sua família, no caso o cognominado bem
de família.
355
119
interpretado restritivamente, conforme determina o art. 114, do Código Civil de
2002356.
Sem inclinar para o antropocentrismo do século XIX, em que
imperava os interesses basicamente individuais, sustenta Luiz Edson Fachin357
que:
a pessoa pode ser, à luz do Direito Civil Contemporâneo, dotada
de uma garantia patrimonial que integra sua esfera jurídica.
Trata-se de um patrimônio mínimo mensurado parâmetros
elementares de uma vida digna e do qual não pode ser
expropriado ou desapossado. Por força desse princípio,
independente de previsão legislativa específica instituidora
dessa figura jurídica, e, para além de mera impenhorabilidade
como abonação, ou inalienabilidade como gravame, sustenta-se
existir imunidade juridicamente inata ao ser humano, superior
aos interesses dos credores.
Na linha de intelecção do mencionado jurista contemporâneo,
cabe trazer à lume o questionamento do filósofo Immanuel Kant358: “até que
ponto se deveria despender os próprios recursos na prática da beneficência?”
respondendo a sua própria indagação: “Certamente não ao ponto do benfeitor
ele mesmo finalmente chegar a necessitar da beneficência de outros”.
Nesse contexto, pretende-se, no próximo tópico, defender a
constitucionalidade condicionada da exceção prevista no inciso VII, art. 3º, da
Lei 8009/90, à luz da Constituição Federal de 1988, ou seja, somente é
constitucional a indigitada norma se interpretada conforme os preceitos
contemplados no texto constitucional, como o mínimo existencial.
I. 4. Da Constitucionalidade Condicionada do Art. 3º, inciso VII da Lei
8.009/90 – Lei do Bem de Família.
A análise crítica do art. 3º, inciso VII, da Lei 8.009/90 – Lei do
Bem de Família, permeia necessariamente a doutrina do controle de
constitucionalidade a qual, a despeito de sua importância, será apenas
356
BRASIL. Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Código Civil. Diário Oficial da União, Poder Executivo.
“Art. 114. Os negócios jurídicos benéficos e a renúncia interpretam-se estritamente”.
357
FACHIN ( 2006 ). p.1.
358
KANT, Immanuel. A Metafísica dos Costumes. Tradução, textos adicionais e notas Edson Bini. São
Paulo: Editora Edipro, 2003. p. 297.
120
abordada incidentalmente, considerando a delimitação contextual do trabalho
em tela.
Nesse contexto, elucida Luís Roberto Barroso359, inspirado nas
lições de Claus-Wilhelm Canaris:
O ordenamento jurídico é um sistema. Um sistema pressupõe
ordem e unidade, devendo suas partes conviver de maneira
harmoniosa. A quebra dessa harmonia deverá deflagrar
mecanismos de correção destinados a restabelecê-la. O controle
de constitucionalidade é um desses mecanismos, provavelmente
o mais importante, consistindo na compatibilidade entre uma lei
ou qualquer ato normativo infraconstitucional e a Constituição.
Na mesma trilha do constitucionalista brasileiro, parece caminhar
o italiano Riccardo Guastini360 que afirma a importância do processo de
constitucionalização do Direito, o qual se projeta a partir de certos
pressupostos, como por exemplo: 1. a existência de uma Constituição rígida361;
2. a garantia jurisdicional da Constituição, consubstanciada na idéia de controle
das normas infraconstitucionais, das quais se exige conformidade com as
regras e os princípios constitucionais362; 3. a força vinculante da Constituição,
no sentido de que “cada norma constitucional – independentemente da sua
estrutura ou do seu conteúdo normativo – seja uma norma jurídica genuína,
vinculante e suscetível de produzir efeitos jurídicos”, explica o mencionado
jurista italiano; 4. a sobre-interpretação da Constituição, consistente em “um
movimento
359
interpretativo
que
tende
a
desconsiderar
que
o
Direito
BARROSO, Luis Roberto. O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro. São Paulo:
Editora Saraiva, 2004. p. 1.
360
GUASTINI, Riccardo. A ‘Constitucionalização` do Ordenamento Jurídico e a Experiência Italiana. In:
DE SOUZA NETO, Cláudio Pereira e Daniel Sarmento. A Constitucionalização do Direito:
Fundamentos Teóricos e Aplicações Específicas. Rio de Janeiro: Editora Lúmen, 2007. p. 273.
361
Idem. Ibidem. Tipo de Constituição que exige complexo processo legislativo para a sua alteração.
Segundo o autor, “uma Constituição é rígida se e somente se: em primeiro lugar, é escrita: e, em segundo
lugar, é protegida ( ou garantida ) contra a legislação ‘ordinária’, no sentido de que as normas
constitucionais não podem ser derrogadas, modificadas ou ab-rogadas, salvo por meio de um
procedimento especial de revisão constitucional ( mais complexo que o procedimento de formação das
leis ).
362
Idem. Ibidem. p. 274. Conforme ensina o jurista, existem diversos sistemas de controle, dentre eles
destacam-se: 1. o modelo americano, controle a posteriori, por via de exceção, exercido in concreto pelos
juizes; o modelo francês, controle a priori, por via de ação, in abstracto, exercido, em regra, por um
Tribunal Constitucional; e o modelo adotado em países como Alemanha, Itália, Espanha etc., assim como
o modelo americano, o controle é a posteriori, por via de exceção, in concreto, porém exercido por um
Tribunal Constitucional. No Brasil, como é cediço, adota-se um sistema misto, o qual mescla o sistema
americano e o sistema europeu, porquanto tem-se o controle por via de ação e por via incidental. Nesse
sentido ver Guilherme Pena de Moraes, in: DE MORAES, Guilherme Pena. Direito Constitucional:
Teoria da Constituição. 3. ed. rev.. ampl. e atual. Rio de Janeiro: Editora Lumen Júris, 2006, p. 146-147.
121
Constitucional
seja
lacunoso”363;
5.
a
aplicação
direta
das
normas
constitucionais, as quais podem produzir efeitos imediatos e diretos, bem como
ser aplicadas por todos os magistrados diante de um caso concreto364; e 6. a
interpretação adequada das leis, isto é, as leis devem ser interpretadas
conforme a Constituição. É preciso ponderar que, em regra, as normas têm
sentido multívoco – e muitas vezes algum ou alguns desses sentidos não se
coadunam com a Carta Maior - exigindo do intérprete que escolha aquele (es )
que se harmoniza com a Constituição365. Na realidade, o que se busca com a
técnica da interpretação conforme à Constituição é salvar um dos sentidos da
norma, garantindo, desta forma, a sua validade e, por conseguinte, a sua
aplicabilidade no mundo da vida.
Nessa
toada,
Riccardo
Guastini366
relata
a
experiência
constitucional italiana e destaca que a interpretação das leis conforme a
Constituição – também denominada de interpretação “adequadora” ou
“harmonizante”- é realizada pela Corte Constitucional, bem como pelos juizes
de primeiro grau367. Ressalte-se que o manejo da referida técnica de
363
Idem. Ibidem. p. 276. Assevera o jurista que a sobre-interpretação pressupõe a existência de dois
aspectos: o primeiro diz respeito à “recusa da interpretação literal e do conexo argumento a contrario
senso, que geralmente trazem à lume lacunas ( embora o argumento a contrario senso também possa ser
usado para preenchê-las)”; e o segundo refere-se à “ construção de normas implícitas, idôneas para
completar lacunas enquanto não sejam evitáveis”.
364
Idem. Ibidem. p. 277. Professa o autor que no liberalismo clássico do século XVIII, a função da
Constituição era a de limitar o poder estatal. Deste modo, as normas constitucionais não regulavam de
forma alguma as relações entre os particulares, cuja disciplina decorria da legislação ordinária ( em
especial o Código Civil ). Já o Constitucionalismo contemporâneo alça as normas constitucionais a um
patamar axiologicamente superior às normas infraconstitucionais, exigindo destas observância aos
ditames daquelas. Sem esquecer que nessa seara, os direitos humanos fundamentais e a dignidade da
pessoa humana servem de bússola para todo o sistema jurídico.
365
GUASTINI. Op. Cit. p. 278. No dizer do pensador: “a interpretação conforme é, em suma, aquela que
adequa/harmoniza a lei à Constituição ( previamente interpretada, entende-se ), escolhendo – diante de
uma dúplice possibilidade interpretativa – o significado ( ou seja, a norma ) que evita toda contradição
existente entre lei e Constituição”. Vale destacar, ainda, outro aspecto do processo de
constitucionalização do Direito que o autor traz à baila, trata-se “da influência das normas constitucionais
sobre as relações políticas”. Afirma, entretanto, ser tal perspectiva de difícil assimilação, porquanto
depende de outros variados fatores, tais como; o escopo da Constituição e a visão dos magistrados, dos
agentes políticos e dos órgãos constitucionais.
366
Idem. Ibidem.p. 284-287.
367
No Brasil, o controle de constitucionalidade pelos juizes de primeiro grau, como é cediço, se dá no
sistema difuso, isto é, no bojo de uma ação em curso. Ensina Luis Roberto Barroso: “Na instância
ordinária, tanto em primeiro como em segundo grau de jurisdição, pode o órgão judicial suscitar a
inconstitucionalidade de norma aplicável à hipótese, não se operando a respeito a preclusão”. In:
BARROSO, Luis Roberto. O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro. São Paulo: Editora
Saraiva, 2004. p. 72. Para Lenio Luiz Streck “o juiz singular não declara a inconstitucionalidade de uma
lei; apenas deixa de aplicá-la “. Ver STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica. 2.
ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2004. p. 360-365. Este, no entanto, não é o entendimento da
doutrina majoritária, que reputa competente o juiz singular para declarar o texto normativo
inconstitucional, nesse sentido ver: DE MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. 17. ed. São Paulo:
Editora Atlas, 2005. p. 635. Para este constitucionalista, o controle difuso ou aberto “caracteriza-se pela
permissão a todo e qualquer juiz ou tribunal realizar no caso concreto a análise sobre a compatibilidade
do ordenamento jurídico com a Constituição Federal”. O autor cita a decisão proferida em sede de
122
hermenêutica pela Corte constitucional italiana é feito de diversas formas, tais
como:
1. Decisões “interpretativas” em sentido estrito. Fala-se de
‘sentenças interpretativas’ para se fazer referência a toda
decisão da Corte que não verse diretamente sobre uma
disposição legislativa, ou seja, sobre o texto da lei enquanto tal,
mas, ao invés, sobre uma – apenas uma – das normas
expressas pelo texto e, portanto, sobre uma das suas possíveis
interpretações (...). (...) Elas se manifestam por meio de dois
tipos principais:
a) as decisões que ‘rejeitam’ a dúvida de legitimidade
constitucional, declarando-a infundada; e
b) as decisões que ‘acolhem’ a dúvida de legitimidade
constitucional, declarando-a fundada, cujo efeito consiste na
anulação da norma em questão.
2. Decisões ‘manipuladoras’. Chamam-se de ‘manipuladoras’
(ou, ainda, ‘normativas’) aquelas sentenças de acolhimento em
que a Corte Constitucional não se limita a declarar a
ilegitimidade constitucional das normas que lhe são submetidas
para apreciação, mas – comportando-se como um verdadeiro
legislador positivo – modifica diretamente o ordenamento com o
escopo de harmonizá-lo com a Constituição. Existem dois tipos
fundamentais de sentenças manipuladoras:
a) sentenças ‘aditivas’. As sentenças que se costuma chamar
de ‘aditivas’ são aquelas em que a Corte declara a
ilegitimidade constitucional de uma dada disposição na parte
em que não expressa uma certa norma (que deveria
expressar para ser conforme a Constituição)368;
b) sentenças
‘substitutivas’. Denominam-se ‘substitutivas’
aquelas sentenças em que a Corte declara a ilegitimidade
constitucional de uma dada disposição na parte em que
expressa uma certa norma ao invés de outra: uma norma
distinta, que ela deveria expressar para ser caracterizada
conforme a Constituição369.
No sistema constitucional brasileiro, encontram-se exemplos de
sentenças substitutivas, consoante se verifica na decisão proferida pelo
Recurso Extraordinário ( nº 117.805/ 93-PR ), da lavra do Ministro Sepúlveda Pertence, na qual admitiu-se
a competência do juiz de primeira instância realizar o controle difuso de constitucionalidade.
368
GUASTINI. Op. Cit. p. 285. Explica o autor que tais sentenças têm como fundamento o princípio da
igualdade.
369
Idem. Ibidem. p. 278. A título de exemplo, aponta o autor a seguinte hipótese: “um dispositivo confere
um certo poder a um certo órgão estatal ( 01 ), enquanto que, segundo a Constituição ( da forma como é
interpretada pela Corte ), tal poder deveria ser conferido a um outro órgão (02 ). Por conseguinte, o
dispositivo é inconstitucional e, portanto, deveria ser anulado”.
123
Plenário do Supremo Tribunal Federal370, na qual, utilizando como fundamento
a doutrina européia da inconstitucionalidade progressiva, reconheceu que a
norma insculpida no art. 68, do Código de Processo Penal, o qual prevê a
legitimidade do Ministério Público para propor ação ex delicto na hipótese de a
vítima ser economicamente hipossuficiente, está em gradual processo de
inconstitucionalidade, considerando a mutação natural dos fatos.
Ainda, no tocante às formas de interpretação adotada pela Corte
Constitucional
italiana,
merece
destaque
as
chamadas
“decisões
interpretativas”, vez que, por meio delas é possível expurgar do cenário jurídico
qualquer sentido da norma que viole a Constituição e os direitos humanos
fundamentais, sem, necessariamente, alterar o texto legal. Nesse passo tem
caminhado a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, consoante se
depreende da ementa371 a seguir aduzida:
EMENTA: EMBARGOS DE DECLARAÇÃO RECEBIDOS COMO
AGRAVO REGIMENTAL. ESTABELECIMENTOS DE ENSINO.
TRANSFERÊNCIA
OBRIGATÓRIA.
LEI
9.536/1997.
CONGENERIDADE DA NATUREZA JURÍDICA DAS INSTITUIÇÕES
DE ENSINO ENVOLVIDAS. PRECEDENTE: ADI 3.324. Em
16.12.2004, o Plenário desta Corte julgou procedente, em parte,
a ADI 3.324 (Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 02.02.2005),
declarando a inconstitucionalidade, sem redução de texto,
do art. 1º da Lei 9.536/1997, para assentar que a transferência
de militar e seus dependentes somente é de ser permitida entre
370
BRASIL. Supremo Tribunal Federal.
Recurso Extraordinário nº 135328 / SP. Julgamento:
29/06/1994. LEGITIMIDADE - AÇÃO "EX DELICTO" - MINISTÉRIO PÚBLICO - DEFENSORIA PÚBLICA ARTIGO 68 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL - CARTA DA REPÚBLICA DE 1988. Disponível em:
<www.stf.gov.br>. Pesquisa realizada em 30/01/2008. Conforme se depreende da ementa: “A teor do
disposto no artigo 134 da Constituição Federal, cabe à Defensoria Pública, instituição essencial à função
jurisdicional do Estado, a orientação e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do artigo
5º, LXXIV, da Carta, estando restrita a atuação do Ministério Público, no campo dos interesses sociais e
individuais, àqueles indisponíveis (parte final do artigo 127 da Constituição Federal).
INCONSTITUCIONALIDADE PROGRESSIVA - VIABILIZAÇÃO DO EXERCÍCIO DE DIREITO
ASSEGURADO CONSTITUCIONALMENTE - ASSISTÊNCIA JURÍDICA E JUDICIÁRIA DOS
NECESSITADOS - SUBSISTÊNCIA TEMPORÁRIA DA LEGITIMAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. Ao
Estado, no que assegurado constitucionalmente certo direito, cumpre viabilizar o respectivo exercício.
Enquanto não criada por lei, organizada - e, portanto, preenchidos os cargos próprios, na unidade da
Federação - a Defensoria Pública, permanece em vigor o artigo 68 do Código de Processo Penal, estando
o Ministério Público legitimado para a ação de ressarcimento nele prevista. Irrelevância de a assistência
vir sendo prestada por órgão da Procuradoria Geral do Estado, em face de não lhe competir,
constitucionalmente, a defesa daqueles que não possam demandar, contratando diretamente profissional
da advocacia, sem prejuízo do próprio sustento”.
371
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO RECEBIDOS COMO AGRAVO
REGIMENTAL nº 541533/PR. Diário de Justiça de Justiça de 29-06-2007 PP-00139.
ESTABELECIMENTOS
DE
ENSINO.
TRANSFERÊNCIA
OBRIGATÓRIA.
Disponível
em:
<www.stf.gov.br>. Pesquisa realizada em 30/01/2008.
124
instituições de mesma espécie, em respeito ao princípio da
isonomia. Em síntese, dar-se-á a matrícula, segundo o art. 1º da
Lei 9.536/1997, em instituição privada se assim o for a de
origem, e em pública se o servidor ou o dependente for egresso
de instituição pública. Agravo regimental a que se nega
provimento ( grifo nosso ).
Na mesma linha de argumentação, Luis Roberto Barroso372
professa que o método interpretativo clássico - calcado no ideário de que o
Direito está delimitado abstratamente na norma e que, ao magistrado cabe o
exercício da subsunção do fato ao dispositivo legal - está ultrapassado pela
concepção contemporânea do direito constitucional, que redesenha o papel da
norma e do julgador. No tocante ao papel daquela, complementa o autor373
verificou-se que a solução dos problemas jurídicos nem sempre
se encontra no relato abstrato do texto normativo. Muitas vezes
só é possível produzir a resposta constitucionalmente adequada
à luz do problema, dos fatos relevantes, analisados topicamente.
No que diz respeito ao juiz, sua função não é mais apenas
cognitiva, porquanto ele passou a ser partícipe “do processo de criação do
Direito”, ensina, ainda, o constitucionalista pátrio. Dessa forma, é imperioso
reconhecer a relevância de significantes como as cláusulas gerais374, os
princípios375, as colisões de normas constitucionais, o critério da ponderação, e
372
BARROSO, Luis Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito ( O Triunfo tardio
do Direito Constitucional no Brasil ). In: DE SOUZA NETO, Cláudio Pereira e SARMENTO, Daniel
(coordenadores). A Constitucionalização do Direito: Fundamentos Teóricos e Aplicações Específicas.
Rio de Janeiro: Editora Lúmen, 2007. p. 203-249.
373
BARROSO ( 2007 ). Assevera o autor que ao juiz cabe a tarefa de completar “o trabalho do legislador,
ao fazer valorações de sentido para as cláusulas abertas e ao realizar escolhas entre soluções possíveis.
373
As cláusulas gerais ou conceitos jurídicos indeterminados, segundo Luis Roberto Barroso, “contêm
termos ou expressões de textura aberta, dotados de plasticidade, que fornecem um início de significação
a ser complementado pelo intérprete, levando-se em conta as circunstâncias do caso concreto”. Ver DE
SOUZA NETO. Op. Cit. p. 214.
374
As cláusulas gerais ou conceitos jurídicos indeterminados, segundo Luis Roberto Barroso, “contêm
termos ou expressões de textura aberta, dotados de plasticidade, que fornecem um início de significação
a ser complementado pelo intérprete, levando-se em conta as circunstâncias do caso concreto”. Ver DE
SOUZA NETO. Op. Cit. p. 214.
375
ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 2. ed.
São Paulo: Editora Malheiros, 2003. p. 119. Para o autor, os princípios “são normas imediatamente
finalísticas, primariamente prospectivas e com pretensão de complementaridade e de parcialidade, para
cuja aplicação demandam uma avaliação da correlação entre o estado de coisas a ser promovido e os
efeitos decorrentes da conduta havida como necessária à sua promoção”. Já Luis Roberto Barroso
concebe os princípios como “normas que consagram determinados valores ou indicam fins públicos a
serem realizados por diferentes meios”. In: DE SOUZA NETO. Op. Cit. p. 214.
125
a argumentação376, esta consubstanciada na idéia de racionalidade: todos
representam instrumentos que auxiliam o processo hermenêutico.
A jurisdição constitucional é outro ponto relevante para o estudo
aqui delimitado. De pronto, cabe trazer à lume a contribuição de Robert
Alexy377, o qual concebe a jurisdição constitucional como “ uma expressão da
prioridade ou superioridade dos direitos fundamentais sobre e contra a
legislação parlamentar”, e complementa: “a jurisdição constitucional representa
um exercício da atividade estatal”. Indaga, entretanto, o pensador alemão se
haveria compatibilidade entre democracia (esta vista sob a perspectiva da
vontade do povo, como voz ativa ) e a atividade de jurisdição constitucional
exercida pelos magistrados, os quais não são eleitos pelo povo, como o são os
parlamentares? O próprio autor busca a resposta, embasando a legitimidade
dos juizes da Corte Constitucional com a tese da representação argumentativa,
e assevera:
É necessário não apenas que a Corte sustente que seus
argumentos são argumentos do povo; um número suficiente de
pessoas deve, pelo menos na média, aceitar esses argumentos
como razões de correção. Somente pessoas racionais são
capazes de aceitar um argumento sob o fundamento de que ele
é correto ou plausível.
Nesse
passo,
Jürgen
Habermas378
desenvolve
a
teoria
procedimental e discursiva da democracia, tendo por escopo os direitos
humanos fundamentais, os quais resultam de escolhas feitas pelos membros
da sociedade, que admitem como legítima a normatividade positiva. A força
argumentativa do discurso, por sua vez, seria a alavanca do processo
376
376
Cf. Luis Roberto Barroso,
A colisão de normas é natural num mundo globalizado inserido no
contexto contemporâneo de Constituições de conteúdo dialético. Diante de tal situação, isto é, na
hipótese de colisão de normas, em abstrato, de mesmo valor hierárquico, deve-se adotar o método da
ponderação. No tocante ao critério da ponderação, preleciona o autor: “a ponderação de normas, bens ou
valores é a técnica a ser utilizada pelo intérprete, por via da qual ele fará concessões recíprocas,
procurando preservar o máximo possível de cada um dos interesses em disputa (...)”. Por fim, a
argumentação vincula-se “à razão prática, ao controle da racionalidade das decisões proferidas, mediante
ponderação, nos casos difíceis, que são aqueles que comportam mais de uma solução possível e
razoável”, ensina o constitucionalista. In: DE SOUZA NETO. Op. Cit. p. 215-216.
377
ALEXY, Robert. Ponderação, Jurisdição Constitucional e Representação Popular. Tradução Thomas
da Rosa de Bustamante. In: DE SOUZA NETO, Cláudio Pereira e SARMENTO, Daniel ( coordenadores ).
A Constitucionalização do Direito: Fundamentos Teóricos e Aplicações Específicas. Rio de Janeiro:
Editora Lúmen, 2007. p. 300-301.
378
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Faticidade e Validade. Tradução Flavio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Editora Tempo Brasileiro, 1997. p. 15.
126
deliberativo. O filósofo observa, ainda, que os direitos humanos fundamentais
são pilares necessários para a construção de um legítimo processo
democrático. Nesse sentido, assevera Gustavo Binenbojm379, amparado na
doutrina do mencionado pensador:
sendo condições necessárias do processo democrático, os
direitos fundamentais devem ficar imunes à vontade da maioria
legislativa; com efeito, a maioria democraticamente eleita não
tem a prerrogativa de inviabilizar o próprio procedimento
democrático. Aqui se situa o locus de atuação legítima da
jurisdição constitucional: a proteção do sistema de direitos que
possibilita a autonomia privada e política dos cidadãos, condição
da gênese democrática das leis.
Entende-se, na realidade, que a Constituição de 1988, elaborada
por uma Assembléia Constituinte, composta por representantes do povo, ao
prever a competência da Corte Constitucional para julgar a validade da
normativa
infraconstitucional
em
face
de
suas
normas,
já
está,
automaticamente, legitimando os julgadores no exercício da jurisdição
constitucional, sem esquecer que tal mister tem como premissa elementar a
tutela dos direitos e garantias fundamentais.
Nessa ordem de idéias, reconhece-se a importância do estudo
sobre o controle da constitucionalidade das normas de um sistema jurídico,
sobretudo, num Estado Constitucional Democrático de Direito. Não há,
todavia, a pretensão de se estender para além das breves linhas aqui traçadas,
considerando o objetivo central deste tópico, que se limita a analisar a (in)
constitucionalidade, ou a constitucionalidade condicionada da norma inscrita no
art. 3º, inciso VII, da Lei 8.009/90, a qual prevê a penhora do bem de família do
fiador em contrato de locação.
Antes, porém, de se deitar sobre o controvertido inciso VII, cabe,
de
imediato,
destacar
que
há
divergência
doutrinária
acerca
da
constitucionalidade do mencionado diploma legal. Uma primeira corrente
379
BINENBOJM, Gustavo. A Nova Jurisdição Constitucional Brasileira: Legitimidade democrática e
instrumentos de realização. 2. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 110-113. Cf. explica o
autor: “a pretensão de Habermas é, assim, substituir os fundamentos moral ou transcendental dos direitos
do homem, próprios da tradição liberal, por um fundamento procedimental, extraído de sua teoria
democrática. O princípio do discurso, elevado à condição de idéia-força da democracia, pressupõe uma
igualitarização de fundamento comunicacional entre os indivíduos, pedra angular de um novo contrato
social”.
127
(minoritária),
capitaneada
por
Carlos
Callage380,
defende
a
tese
da
inconstitucionalidade da Lei 8.009/90, por entender que tal previsão normativa
prejudica o sistema econômico, enfraquecendo o “princípio universal da
sujeição do patrimônio às dívidas”. O mencionado jurista busca fundamento
para sua posição no direito de propriedade, argumentando que o direito de
crédito
se
subsume
naquele,
merecendo,
portanto,
a
proteção
da
fundamentalidade.
Não se tem dúvida de que a Carta de 1988 consagra o direito de
propriedade como um valor fundamental, mas o próprio texto constitucional
ressalva a observância de sua função social, conforme já abordado. Desta
forma, tal posição, com a devida vênia, não encontra guarida no direito
contemporâneo - amparado na idéia de que o homem existencial, de carne e
osso, prevalece em detrimento do ser em abstrato-, tampouco tem acolhida na
Constituição de 1988, que alça ao patamar de princípios fundamentais da
República brasileira, a solidariedade e a dignidade humana.
Em sentido contrário, segue a outra corrente doutrinária
381
(majoritária)
, que advoga a constitucionalidade do referido diploma legal,
reconhecendo a relevância social da instituição do bem de família legal. Nesse
contexto, aponta Andréa Farias Guedes382 “que o fiador e sua família, ao
utilizar o bem de família para morar estarão respeitando o princípio da função
social da propriedade”. Na mesma linha de pensamento, Maria Celina Bodin de
Moraes383 professa:
(...) despropositada parece a permissão legal para a execução
do bem de família (...) para pagamento de obrigação assumida,
380
CALLAGE, Carlos. Inconstitucionalidade da Lei 8.009, de 29 de março de 1990
( impenhorabilidade do imóvel residencial ). São Paulo: Revista dos Tribunais, nº 662, dez./1990. p.
23-24.
381
Encampam tal corrente, apenas a título de exemplo: Luiz Edson Fachin. In: FACHIN, Luiz Edson.
Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2006; Eliane Maria
Barreiros Aina. In: AINA, Eliane Maria Barreiros. O Fiador e o Direito à Moradia: Direito Fundamental à
Moradia Frente à Situação do Fiador proprietário de Bem de Família. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora
Lúmen Júris, 2004; Genacéia da Silva Alberton. In: ALBERTON, Genacéia da Silva. Impenhorabilidade
de Bem Imóvel Residencial do Fiador. In: TUCCI, José Rogério Cruz e. (coordenador). A Penhora e o
Bem de Família do Fiador da Locação. São Paulo; Editora Revista dos Tribunais, 2003; e Maria Celina
Bodin de Moraes. Comentários às Disposições Gerais. Arts. 27 a 45. In: BITTAR, Carlos Alberto
( organizador ). Lei do Inquilinato Anotada e Comentada. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense.
382
GUEDES, Andrea Farias. O direito constitucional à moradia do fiador nos contratos de locação
de imóveis. Disponível em <http://www.ambito-juridico.com.br/>. p. 7. Pesquisa realizada em 02/02/2008.
383
BODIN DE MORAES, Maria Celina. Comentários às Disposições Gerais. Arts. 27 a 45. In: BITTAR,
Carlos Alberto ( organizador ). Lei do Inquilinato Anotada e Comentada. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora
Forense. p. 48-49.
128
no mais das vezes, por amizade e gratuitamente. Procurar
resolver um problema prático desconsiderando a sistemática do
ordenamento e os valores existenciais que estão em posição
hierarquicamente superior é atuar emergencialmente. E o
legislador de emergência, como se sabe, é um mau legislador.
De fato, não se pode negar o direito de crédito do credor; o que
se questiona é a política legislativa que dá prevalência ao “ter” do credor em
detrimento do “viver sob um teto do fiador”. Em defesa da humanização do
Direito a partir interpretação das normas e da construção jurisprudencial,
pondera Luiz Edson Fachin384: “entre a garantia creditícia e a dignidade
pessoal, opta-se por esta que deve propiciar a manutenção dos meios
indispensáveis à sobrevivência”. Deste modo, admitir que um direito de crédito,
decorrente de obrigação assumida em contrato de fiança, por conta de garantia
em contrato de locação, tenha força de, numa execução, excutir o único bem
do fiador, é fazer letra morta da Constituição e desconsiderar a essencialidade
do direito humano fundamental `a moradia.
Nesse passo, Eliane Maria Barreiros Aina385 vaticina: “o valor
moradia é uma necessidade existencial da pessoa humana antes mesmo de
agrupada em um núcleo familiar”. Ademais, reforça Flavio Murilo Tartuce
Silva386 que “o direito constitucional à moradia acaba limitando a autonomia
privada”. Para embasar sua posição, o mencionado jurista traz à baila o
Enunciado nº 24, editado pelo Conselho da Justiça Federal, por ocasião da
realização da I Jornada de Direito Civil:
a função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código
Civil, não elimina o princípio da autonomia contratual, mas
atenua ou reduz o alcance desse princípio quando presentes
interesses metaindividuais ou interesse individual relativo a
dignidade da pessoa humana.
384
FACHIN ( 2006 ). p. 173. Aduz, ainda, o mencionado autor: “humanismo e solidariedade constituem,
quando menos, duas ferramentas para compreender esse desafio que bate às portas do terceiro milênio
com mais intensidade. Reacender o significado de projeto de vida em comum é uma tarefa que incumbe a
todos, num processo sacudido pelos fatos e pela velocidade das transformações”.
385
AINA. Op. Cit. p. 45.
386
SILVA, Flávio Murilo Tartuce . A inconstitucionalidade da previsão do art. 3º, VII, da Lei 8.009/90.
Disponível em: <http://www.juristas.com.br/>.Pesquisa realizada em: 4/2/2008.
129
Nessa seara, ensina Daniel Sarmento387:
A constitucionalização do Direito Privado não se resume ao
acolhimento, em sede constitucional, de normas pertinentes, às
relações privadas. Ela traduz fenômeno mais profundo, que
impõe uma releitura de todos os institutos e conceitos do Direito
Privado a partir da axiologia constitucional (...).
Genacéia da Silva Alberton388, por seu turno, ressalta que a
denominada lei do bem de família, ao estabelecer mais uma forma de proteção
ao bem que serve de abrigo à família - além daquela prevista no Código Civil -,
“trouxe em si matizes axiológicos de conteúdo constitucional atendendo um dos
princípios fundamentais da Carta Magna, isto é, promover a dignidade da
pessoa humana”.
Há que se considerar que, a norma inserta no art. 3º, inciso VII,
da Lei 8.009/90389, que afasta o véu da imunidade (da impenhorabilidade) do
bem de família do fiador, viola a Constituição Federal de 1988, sob vários
aspectos: 1. viola o princípio da dignidade da pessoa humana; 2. contraria o
princípio da igualdade, vez que dá tratamento desigual ao locatário em
detrimento do fiador; 3. afronta o princípio da proibição do retrocesso; e, por
fim, 4. viola outros valores fundamentais como: a vida, o desenvolvimento
humano e o mínimo existencial.
Sobre o primeiro aspecto mencionado, Maria Celina Bodin de
Moraes390 reitera que, no Brasil, a dignidade humana, por força da Carta de
1988, verteu-se numa premissa com força normativa, apoiada “no imperativo
categórico kantiano”391. Desta feita, a proteção do bem de família ultrapassa a
fronteira patrimonial, porquanto visa à tutela da família e, sobretudo, da
dignidade dos seus membros. Vale realçar que a Constituição de 1988 garante
387
SARMENTO, DANIEL. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora
Lumen Júris, 2006. p. 324-325.
388
ALBERTON, Genacéia da Silva. Impenhorabilidade de Bem Imóvel Residencial do Fiador. In: TUCCI,
José Rogério Cruz e.( coordenador ). A Penhora e o Bem de Família do Fiador da Locação. São Paulo;
Editora Revista dos Tribunais, 2003. p. 118-119.
389
“Art. 3º. A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária,
trabalhista ou de qualquer natureza, salvo se movido: VII. por obrigação decorrente de fiança concedida
em contrato de locação ( grifo nosso )”.
390
MORAIS, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana: Uma leitura Civil-Constitucional dos
Danos Morais. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2003. p. 82.
391
Cf. lições de Immanuel Kant, “os imperativos têm um valor objetivo”, in: KANT, Immanuel. Crítica da
Razão Prática. Tradução Rodolfo Schaefer. São Paulo: Editora Martin Claret, 2006. p. 28.
130
proteção à família, conforme expressa o art. 226, in verbis: “A família, base da
sociedade, tem especial proteção do Estado”. Não se admite, portanto, que o
próprio Ente Público, por meio de sua função legiferante, crie óbices ao pleno
desenvolvimento familiar.
No que se refere ao princípio da igualdade, merece relevo a
doutrina de Pietro Perlingieri392que associa a igualdade a paridade de
tratamento, mas alerta:
A paridade de tratamento exaure-se no princípio retributivo. O
princípio da igualdade supera a posição formal da paridade para
realizar a igualdade substancial: quando existe desigualdade de
fato, não existe espaço para o princípio da paridade de
tratamento.
Conforme entendimento do referido jurista italiano, a igualdade
material exprime a idéia de justiça social e, citando a Constituição italiana,
afirma que:
o valor da justiça social, expresso no Texto fundamental (...), há
de incidir no direito civil, contribuindo, em sede interpretativa,
para individuar o conteúdo específico que, concretamente,
devem assumir as cláusulas gerais das quais é cravejada a
legislação: da eqüidade à lealdade ( correttezza ), do estado de
necessidade à lesão (...).
Trazendo para a realidade brasileira as lições de Pietro
Perlingieri, verifica-se a quebra de isonomia substancial existente entre o
locatário e o fiador. Conforme se extrai da inteligência do texto da Lei 8.009/00,
o bem de família do locatário estará a salvo de suas dívidas civis; isto é, o
crédito do locador não poderá ser satisfeito com possível penhora de seu único
bem imóvel, pois este está protegido pelo véu da impenhorabilidade; por outro
lado, o fiador que nada deve, apenas assumiu a posição de garantidor, no caso
de inadimplemento do seu afiançado, terá sua casa penhorada para pagar as
dívidas daquele, vez que a lei afastou da proteção o seu bem de família.
392
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: Introdução ao Direito Civil Constitucional. 3. ed.
Tradução Maria Cristina De Cicco. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2007. p. 44-51.
131
Ora, tal situação chega ao extremo do absurdo, pois, como muito
bem argumentou Genacéia da Silva Alberton393, ao se referir à hipótese de
exceção à impenhorabilidade do bem de família introduzida pela Lei do
inquilinato:
é difícil, efetivamente, admitir que, nós operadores do Direito,
não percebamos, pela mera leitura do texto legal, que há uma
flagrante injustiça e a inobservância de princípio constitucional
da isonomia que lhe retira a validez. (...) Se há uma
desigualdade de tratamento entre devedor principal e fiador,
não aplicar o art. 82 da Lei 8.245 ( tal dispositivo prevê a
inserção do inciso VII ao art. 3º, da lei do bem de família, o
qual afasta a impenhorabilidade do bem do fiador em contrato
de locação ) não é negar-lhe vigência, mas afirmar a sua
invalidade por trazer como conseqüência a inobservância do
princípio constitucional da isonomia previsto no caput do art. 5º
da CF.
É bastante discutível o argumento econômico conseqüencialista
adotado por parte da doutrina394 e da jurisprudência395 que admitem a
possibilidade de penhora do bem do fiador como forma de incentivar o mercado
imobiliário e, por conseguinte, o acesso à habitação. Em que pese a locação
também ser uma das formas de tal acesso – fato que não se discute questiona-se, por outro lado a superficialidade do discurso, considerando que,
na realidade, o que se está a prestigiar é a segurança do direito de crédito do
locador em detrimento da dignidade da pessoa humana (do fiador e de sua
família), do direito humano fundamental à moradia.
Na seara do discurso conseqüencialista econômico, Sérgio
Iglesias Nunes de Souza396 defende a constitucionalidade do inciso VII
argumentando:
393
ALBERTON. Op. Cit. p. 122-125..
Nesse sentido ver TUCCI, José Rogério Cruz e. Penhora sobre o Bem do Fiador de Locação. p. 15;
SICA, Heitor Vitor Mendonça. Questões Polêmicas e Atuais acerca da Fiança Locatícia. p. 49. In: TUCCI,
José Rogério Cruz e.( coordenador ). A Penhora e o Bem de Família do Fiador da Locação. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2003; e SOUZA, Sérgio Iglesias Nunes de. Direito à Moradia e de
Habitação. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004. p. 273.
395
Consoante será explicitado no cap.II, do Título II, do presente trabalho.
396
SOUZA, Sérgio Iglesias Nunes de. Direito à Moradia e de Habitação. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2004. p.272-274. O autor faz distinção, conforme já destacou-se anteriormente, entre direito à
moradia e direito de habitação. Ao primeiro ele reconhece o caráter de direito humano fundamental. No
que toca ao segundo, o de habitação, o autor o reputa como a forma de exercício daquele. Não se dota,
no entanto tal distinção, ao cabo do que faz a ordem internacional.
394
132
Na realidade, a lei visou a proteger e estimular o mercado
imobiliário e facilitar a realização dos contratos locatícios. (...)
Com a referida norma facilita-se o direito à moradia não só do
locatário, mas da coletividade, pois se propicia com ela o
aumento de moradas para a população, sem a necessidade de
aquisição de um imóvel. Assim, poder-se-ia falar em
recepcionalidade da norma legal se fosse estabelecida a
penhorabilidade do imóvel residencial do fiador – ainda que seu
único imóvel -, para contratos de locação de caráter
exclusivamente residencial.
Seguir o raciocínio do mencionado autor implica aceitar a
validade da regra da penhora do bem do fiador quando se tratar de locação
eminentemente residencial e rejeitá-la na hipótese de locação de natureza
mercantil. Ocorre que a tutela do bem de família do garantidor ultrapassa o
aspecto meramente jurídico, porquanto envolve a proteção de uma série de
valores (como já incansavelmente apregoado neste trabalho), a começar pela
dignidade da pessoa humana, que não se modifica em razão da natureza
jurídica de um contrato. Em outras palavras, a moradia do fiador deve ser
protegida independentemente de se tratar de locação residencial ou não, visto
que a tutela em questão abrange outros significantes diretamente vinculados
ao direito à vida digna.
De fato, a defesa da fiança como forma de facilitar a locação e,
por conseguinte, o acesso à habitação, não pode prejudicar diretamente aquele
que já conseguiu alcançar o sonho da casa própria, e que, da noite para o dia,
se vê desalojado, por que o legislador decidiu fazer política habitacional
questionável utilizando como instrumento seu ato de liberalidade; sem levar em
consideração que, na maioria das vezes, o mesmo assume posição de garante
sem saber que seu único bem imóvel poderá ser objeto de penhora, na
hipótese de inadimplência do locatário, em contrato de locação no qual foi
fiador. Importante repisar que a hermenêutica do Direito deve considerar,
necessariamente, o contexto social e cultural ao aplicar determinada norma
jurídica a um caso concreto.
133
O Princípio da Proibição do Retrocesso também é violado pela
norma inserta no art. 3º, inciso VII, da Lei 8.009/90. A respeito de tal norma
principiológica, Luciano de Souza Godoy397leciona:
se uma lei trouxe um benefício, um determinado proveito, ele se
incorpora ao patrimônio jurídico da sociedade. Lei posterior não
pode suprir um direito social ou uma garantia social sob pena de
promover um retrocesso, violando igualmente um princípio
constitucional.
Ingo Wolfgang Sarlet398 professa que o princípio da proibição do
retrocesso
está
implicitamente
contemplado
no
sistema
normativo-
constitucional brasileiro, conforme se depreende de alguns fundamentos, tais
como:
1. Do princípio do Estado democrático e social de Direito, que
impõe um patamar mínimo de segurança jurídica, o qual
necessariamente abrange a proteção de confiança e a
manutenção de um nível mínimo de continuidade da ordem
jurídica, além de uma segurança contra medidas retroativas e,
pelo menos em certa medida, atos de cunho retrocessivo de um
modo geral;
2. Do princípio da dignidade da pessoa humana que, exigindo a
satisfação – por meio de prestações positivas ( e, portanto, de
direitos fundamentais sociais ) – de uma existência condigna
para todos, tem como efeito, na sua perspectiva negativa, a
inviabilidade de medidas que fiquem aquém deste patamar; e
3. Do princípio da máxima eficácia e efetividade das normas
definidoras de direitos fundamentais, contido no artigo 5º, § 1º, e
que necessariamente abrange também a maximização da
proteção dos direitos fundamentais. Com efeito, a indispensável
otimização da eficácia e efetividade do direito à segurança
jurídica ( e, portanto, sempre também do princípio da segurança
jurídica ) reclama que se dê ao mesmo a maior proteção
possível, o que, por seu turno, exige uma proteção também
contra medidas de caráter retrocessivo, inclusive na acepção
aqui desenvolvida399.
397
GODOY, Luciano de Souza. O Direito à Moradia e o Contrato de Mútuo Imobiliário. Rio de Janeiro:
Editora Renovar, 2006. p. 187.
398
SARLET ( 2007.a ). p. 454-457.
399
Idem. Ibidem. p.457. O autor aponta, ainda, outros fundamentos: “a) As manifestações específicas e
expressamente previstas na Constituição, no que diz com a proteção contra medidas de cunho retroativo
( na qual se enquadra a proteção dos direitos adquiridos, da coisa julgada e do ato jurídico perfeito ) não
dão conta do universo de situações que integram a noção mais ampla de segurança jurídica, que, de
resto, encontra fundamento direto no artigo 5º, caput, da nossa Lei Fundamental e no princípio do Estado
social e democrático de Direito; b) O princípio da proteção da confiança, na condição de elemento nuclear
do Estado de Direito ( além da sua íntima conexão com a própria segurança
jurídica ) impõe ao poder
público – inclusive ( mas não exclusivamente ) como exigência de boa-fé nas relações com os
134
Consoante as lições do mencionado autor, o princípio da
proibição do retrocesso tem como escopo inibir a atuação do Poder Público,
em todas as suas esferas, no sentido de evitar violação frontal aos direitos
humanos fundamentais e às demais normas constitucionais. Tal princípio pode
ser invocado para afastar a norma inserta no art. 3º, inciso VII, da Lei 8.009/90,
inserida pela Lei 8.245/91, que prevê a regra da impenhorabilidade do bem de
família do fiador.
Por fim, cabe ainda salientar que a referida exceção normativa,
que levanta o véu da imunidade executória do bem de família do fiador,
desrespeita outros valores fundamentais, por diversas vezes repisados neste
trabalho, dentre eles estão a vida, o desenvolvimento humano e o mínimo
existencial. Vale lembrar que, na atualidade, a noção de vida, quando e como
surge, tem sido objeto de acirrados debates envolvendo cientistas, teólogos,
filósofos e operadores do Direito400; não se quer, entretanto, entrar nessa
complexa seara. Visa-se, tão-somente, a analisá-la no presente contexto, em
que se discute a fundamentalidade do bem de família do fiador. Para ilustrar,
José Afonso da Silva401 professa:
A vida constitui a fonte primária de todos os outros bens
jurídicos. De nada adiantaria a Constituição assegurar outros
direitos fundamentais, como a igualdade, a intimidade, a
liberdade, o bem-estar, se não erigisse a vida humana num
desses direitos.
Assumindo posicionamento análogo, Michael Kloepfer402 pontua:
“o direito à vida é o direito de viver. Ele abrange a existência corporal, a
existência biológica e física, que é pressuposto vital para a utilização de todos
particulares – o respeito pela confiança depositada pelos indivíduos em relação a uma certa estabilidade
e continuidade da ordem jurídica como um todo e das relações jurídicas especificamente consideradas; e
c) Os órgãos estatais (...) encontram-se vinculados não apenas às imposições constitucionais no âmbito
da sua concretização no plano infraconstitucional, mas estão sujeitos a uma certa auto-vinculação em
relação aos atos anteriores (...)”.
400
KLEVENHUSEN, Renata Braga. Projeto Parental e o Estatuto Jurídico do Embrião Humano: Limites e
Possibilidades das Técnicas de Reprodução Assistida. In: KLEVENHUSEN, Renata Braga
( coordenadora ). Direitos Fundamentais e Novos Direitos. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2005.
p. 105-131. Segundo a autora o o fenômeno da vida exsurge com a concepção.
401
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 17. ed. rev. e atual. São Paulo:
Editora Malheiros, 1999. p. 200-201.
402
KLOEPFER, Michael. Vida e dignidade da pessoa humana. In: SARLET, Ingo Wolfgang
( organizador ). Dimensões da Dignidade. Ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional.
Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005. p. 153-184.
135
os direitos fundamentais”. Nesse contexto exsurge o direito à saúde como
decorrência do valor “vida”. Pietro Perlingieri403, ao comentar a Constituição
italiana, preleciona: “a saúde, ainda que prevista autonomamente em nível
constitucional ( art. 32 ), deve ser considerada juntamente à norma que, como
cláusula geral, reconhece e garante os direitos do homem (...)”.
Guardando coerência com os mencionados valores, vida e saúde,
aparecem os direitos ao mínimo existencial e ao desenvolvimento humano,
todos, indubitavelmente, interligados. Nesse cenário, reconhece-se que a
existência humana, consusbtanciada no fenômeno “vida”, está diretamente
relacionada com a saúde da pessoa404. Nesse diapasão, Amartya Sen405, ao
abordar o problema da pobreza e da desigualdade material, a partir de uma
visão econômica, aponta:
(...) o desemprego não é meramente uma deficiência de renda
que pode ser compensada por transferências do Estado (...); é
também uma fonte de efeitos debilitadores muito abrangentes
sobre a liberdade, a iniciativa e as habilidades dos indivíduos.
Entre seus múltiplos efeitos, o desemprego contribui para a
‘exclusão social‘ de alguns grupos e acarreta a perda de
autonomia, de auto-confiança e de saúde física e
psicológica. ( grifo nosso )
Ainda, como pressuposto de efetividade do direito à vida,
entabula o direito ao mínimo existencial o requisito da essencialidade de um
patromônio mínimo que garanta a subsistência digna da pessoa. Nesse
sentido, Michael Kloepfer406discorre que:
A garantia jurídico-objetiva de um mínimo existencial material
não exige, em todos os casos, prestações materiais no
reconhecimento de direitos jurídico-subjetivos, mas que esta já
pode ser concretizada, antes e em importantes âmbitos, no
sentido jurídico-defensivo, por meio da proibição de intervenção
no mínimo existencial.
403
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: Introdução ao Direito Civil Constitucional. 3. ed.
Tradução Maria Cristina De Cicco. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2007. p. 158-159.
404
Idem. Ibidem. p. 158. A pessoa deve ser visualizada a partir de suas particularidades, professa o autor.
405
SEN, Amartya. Desenvolvimento como Liberdade. Tradução Laura Teixeira Motta. Revisão Técnica
Ricardo Doniselli Mendes. 6ª reimpressão. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2007. p. 35-36.
406
KLOEPFER. Op. Cit. p. 170.
136
Como ressaltado pelo referido jurista, a garantia do patrimônio
mínimo, como pressuposto de efetividade do direito ao mínimo existencial não
está jungido apenas a prestações positivas do Estado, mas também por meio
de atos de caráter administrativo, legislativo e judicial. Dessa forma, inaceitável
é a regra que permite a penhora do único bem do fiador, em contrato de
locação, porquanto, está o Poder Público, neste caso, por meio de política
legislativa, intervindo na esfera do mínimo existencial do garantidor e de sua
família.
A preservação do único bem do garantidor é decorrência natural
da tutela do mínimo existencial, e se harmoniza com a normativa constitucional,
que alça a princípio norteador da República brasileira, a dignidade da pessoa
humana e consagra a moradia como direito humano fundamental. Afinal, a
moradia, afirma Pietro Perlingieri407, deve ser concebida “como um aspecto de
um unitário valor normativo que é a tutela da pessoa.
Em consonância com tudo que foi exposto, entende-se que a
regra insculpida no art. 3º, inciso VII, da Lei 8.009/90, introduzida pela Lei
8.245/91, da forma como tem sido interpretada, inclusive pelo Supremo
Tribunal Federal, viola frontalmente o direito humano fundamental à moradia e
o princípio da igualdade material. Além de causar prejuízos a outros valores,
conforme já explicitado. É possível, no entanto, encontrar validade à regra de
exceção à penhora do bem do fiador, afastando, inicialmente, qualquer
interpretação literal do referido dispositivo.
Primeiramente, é preciso olhar para a norma inserta no art. 3º,
inciso VII, da Lei 8.009/90, a partir de uma nova concepção de Direito,
amparada na idéia antropológica, em que o homem é um ser individualizado,
com particularidades que os distingue dos demais. Ainda, faz-se necessário
uma releitura da relação jurídica clássica, calcada no direito civil do século XIX,
em que a pessoa é apenas mais um de seus elementos. Nesse sentido, Luiz
Edson Fachin408 adverte:
(...) há determinadas relações das quais emergem efeitos
jurídicos, e que não correspondem a um dado paradigma que foi
tipificado ou codificado ao final desse processo de refinamento
que a codificação opera (...). A análise do contrato, ao final do
407
408
PERLINGIERI. Op. Cit. p. 198.
FACHIN ( 2003 ). p. 201-202.
137
século XX, permite a leitura de que o modelo se reconhece com
todas as letras na decadência do voluntarismo, e no conjunto de
teorias que procuram explicar como o Estado ( Estado-juiz )
intervém na economia do contrato. Há não só a intervenção do
Estado-juiz, como também práticas contratuais muito distantes
da autonomia privada tradicional, especialmente nos contratos
de ( e por ) adesão.
Nesse contexto, defende-se que a regra esculpida no art. 3º,
inciso VII, da Lei 8.009/90, introduzida pela Lei 8.245/91, que permite a
penhora do bem de família do fiador, para ser constitucional, deve ser
interpretada da seguinte forma:
1. na hipótese de ser o fiador proprietário de um único imóvel,
este não poderá ser objeto de penhora, pois, assim como o bem do locatário,
está agasalhado com o manto da imunidade executória.
2. por outro lado, o fiador é proprietário de mais de um imóvel;
neste caso reconhece-se a existência de duas situações distintas: na primeira
tem-se o bem que lhe serve de moradia, o qual se subsume no bem de família.
A segunda situação diz respeito ao bem exógeno do fiador, isto é, aquele que
está fora da esfera de proteção da lei do bem de família, podendo, portanto,
sobre ele incidir a regra prevista no inciso VII, do art. 3º, da Lei 8.009/90. Não
há que se falar, nesta hipótese, em inconstitucionalidade da referida norma, em
relação ao seu bem excedente.
Em síntese, o art. 3º, inciso VII, da Lei 8.009/90, tem validade
constitucional condicionada, isto é, será constitucional desde que incida
somente sobre o bem excedente do fiador e jamais sobre aquele que lhe serve
de abrigo.
138
Capítulo II - EXAME CRÍTICO DA JURISPRUDÊNCIA ACERCA DA
PENHORA DO BEM DE FAMÍLIA DO FIADOR
II. 1. Breves Considerações
O Direito contemporâneo pós-positivismo não despreza as
normas jurídicas que compõem o sistema normativo; ao contrário, busca
aprimorá-las e interpretá-las à luz de critérios de justiça, amparados em valores
supra-legais, como a dignidade humana e a solidariedade. Visa-se, nesse novo
cenário que vem aos poucos sendo perfilhado, a reconhecer a força normativa
dos princípios (ao lado das regras), bem como de uma teoria de direitos
humanos fundamentais, como limite à atuação do Estado e dos atos privados.
Conforme entendimento de Luis Roberto Barroso409 “a superação histórica do
jusnaturalismo e o fracasso político do positivismo abriram caminho para um
conjunto amplo e ainda inacabado de reflexões acerca do Direito, sua função
social e sua interpretação”.
Esse processo de transformações expande a atuação do Estadojuiz e, por conseguinte, o papel da jurisprudência. Aliás, como muito bem
pontua Celso Fernandes Campilongo410, ao juiz cabe “uma função ativa no
processo de afirmação da cidadania e da justiça substantiva”, porquanto ele
409
BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito ( O Triunfo tardio
do Direito Constitucional do Brasil ). In: DE SOUZA NETO, Cláudio Pereira e SARMENTO, Daniel
(coordenadores). A Constitucionalização do Direito: Fundamentos Teóricos e Aplicações Específicas.
Rio de Janeiro: Editora Lúmen, 2007. p.203-249. Nesse sentido, Luis Roberto Barroso ensina que, a partir
da metade do século XX, as Constituições normativas consagram “uma nova formatação estatal”,
consubstanciada, basicamente, em três modelos de Estado, conforme esclarece o mencionado
constitucionalista: 1. O Estado pré-moderno caracterizava-se pela pluralidade de fontes normativas, pela
tradição romanística de produção jurídica e pela natureza jusnaturalista de sua fundamentação. Doutrina
e jurisprudência desempenhavam um papel criativo do Direito e, como conseqüência, também normativo
( o autor complementa, em nota de rodapé, que, no Estado denominado pré-moderno, a formação do
Direito não era legislativa, mas jurisprudencial e doutrinária ); 2. O Estado legislativo de direito, por sua
vez, assentou-se sobre o monopólio estatal da produção jurídica e sobre o princípio da legalidade (...). A
norma legislada se converte em fator de unidade e estabilidade do Direito, cuja justificação passa a ser de
natureza positivista; e 3. O Estado constitucional de direito desenvolve-se a partir do término da 2ª Guerra
Mundial e se aprofunda no último quarto do século XX, tendo por característica central a subordinação da
legalidade a uma Constituição rígida. A validade das leis já não depende apenas da forma de sua
produção, mas também da compatibilidade de seu conteúdo com as normas constitucionais”.
Complementa, ainda, o autor que o referido Estado Constitucional de Direito, na atualidade, impõe à
jurisprudência importante e delicada função de controlar a validade dos atos sejam de natureza
legislativa, sejam de caráter administrativo.
410
CAMPILONGO, Celso Fernandes. Os Desafios do Judiciário: Um Enquadramento Teórico”. In: FARIA,
José Eduardo ( coordenador ). Direitos Humanos, Direitos Sociais e Justiça. São Paulo: Editora
Malheiros, 2005. p. 30-51.
139
deixou de ser mero aplicador e intérprete da lei ao caso concreto e passou a
ser mais um ator na relação-jurídico-processual411. Na mesma linha de
argumentação, Fátima Nancy Andrighi412 alerta para o papel do juiz
contemporâneo, o qual deve estar sempre atento para não se deixar enganar
pelas armadilhas da onipotência, que o impede de enxergar o sujeito do
processo, o ser humano que está diante de si, ansioso por seu veredicto de
justiça. Defende, ainda, a jurista413, uma face mais humana para o Poder
Judiciário, ao destacar:
sei que não é suave o jugo na busca do Direito mais humano em
cada enredo, em seguir trajetória pautada no bom senso e na
conduta de irretocável padrão ético, jamais perdendo de vista as
pessoas simples, cujas almas calejadas pela trabalhosa seara
da vida não mais necessitem se quedar silentes no clamor
mudo pela verdadeira justiça.
Na linha de intelecção da mencionada estudiosa, observa-se que
a complexidade da vida contemporânea exige mudanças de caráter
multidisciplinar, refletindo diretamente na atuação do juiz, cuja responsabilidade
social alargou-se substancialmente ao longo dos últimos dois séculos. Nesse
passo, seu papel social ultrapassa o limite cognitivo da lei, posto ser o
magistrado personagem chave na consecução do processo democrático e na
efetivação dos direitos e garantias fundamentais. Como aponta Sergio Coelho
Junior414, a superação da visão clássica positivista abre espaço para um
“sistema aberto de valores, princípios e regras”, os quais se complementam.
Nesse contexto, a jurisprudência ocupa lugar de destaque, não apenas como
mais uma forma de interpretar o Direito, eis que constitui caminho de se fazer
411
Com efeito, apenas a título de ilustração, cabe destacar que a tese de que o juiz pode harmonizar a lei
ao caso posto, isto é, adaptá-la a uma dada situação não prevista na paisagem do quadro normativo, foi,
inicialmente, encampada pelo filósofo Aristóteles, cf. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo:
Editora Abril Cultural, 1973, l. V, 10 ( Os Pensadores ). p. 335-337.
412
ANDRIGUI, Fátima Nancy. Painel de Palestras. In: I Fórum Nacional de Debates sobre o Poder
Judiciário. 1997, Superior Tribunal de Justiça. O Juiz no Mundo Contemporâneo. Brasília: Disponível
em < http://bdjur.stj.gov.br >. Pesquisa realizada em 28/02/2008. Cf. aponta a autora: “está comprovado
por estudos médicos que a existência de pendenga judicial pode provocar enfermidade psicossomática”,
nas partes ( sujeito ativo e sujeito passivo da relação processual ).
413
ANDRIGUI, Fátima Nancy. Um Judiciário mais Humano: artigo em homenagem ao Ministro Edson
Vidigal. Justiça e Cidadania, edição especial, p. 20, 2004. Disponível em < http://bdjur.stj.gov.br >.
Pesquisa realizada em 28/02/2008.
414
COELHO JUNIOR. Sergio. Reflexões sobre o Direito, o juiz e a função de julgar. Jus Navigandi.
Disponível em <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto> Pesquisa realizada em 28/02/2008.
140
justiça, a partir de uma visão humanista, onde o homem tem alegrias, tristezas,
anseios e objetivos próprios; ou seja, é um ser concreto.
Sem querer adentrar na complexa seara doutrinária415 que
diverge quanto à idéia de que a jurisprudência é uma das fontes416 do Direito,
defende-se, de pronto, tal status a ela, considerando seu relevante papel na
construção de um novo Direito, amparado em paradigmas como a dignidade
humana, a solidariedade, a boa-fé e a função social da propriedade e dos
contratos.
Nesse sentido, assevera Pietro Perlingieri417 “que a eficácia
normativa do precedente reside na eficácia normativa das regras e dos
princípios de direito positivo, interpretados e aplicados pela jurisprudência”,
cujo fundamento, complementa o autor, “está na aplicação e na interpretação
de normas e princípios que não são próprios, mas que, ao contrário, pertencem
ao sistema das fontes normativas primárias, sem as quais seriam ‘flores
jurídicas sem caule’”.
Sem dúvida, na contemporaneidade, o papel da jurisprudência
assume significativo espaço no cenário jurídico, social e econômico, desde
que, ao interpretar e aplicar o Direito em um caso concreto, considere
premissas
fundamentais
como
a
dignidade
da
pessoa
humana,
as
circunstâncias e as peculiaridades inerentes à situação, bem como, e,
sobretudo, o homem concreto com necessidades específicas. Se assim não o
for, a jurisprudência deixará de ser meio de se buscar a justiça, para se tornar
415
Cf. San Tiago Dantas “a jurisprudência não é fonte do Direito, do mesmo modo que não o são o
princípio geral e a doutrina. Para o mencionado civilista, somente a lei e os costumes são fontes do
Direito. Ver. DANTAS, San Tiago. Clássicos da Literatura Jurídica. Programa de Direito Civil – Parte
Geral. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1984. p. 82-83. Caio Mário da Silva Pereira, a seu turno, apesar
de negar à jurisprudência a categoria de fonte do Direito, a reconhece como fonte de informação ou
intelectual. Ver. PEREIRA,Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Vol. I. 20. ed. Revista e
Atualizada por Maria Celina Bodin de Moraes. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2004. p.8-9. Em sentido
contrário, aos mencionados autores, se posiciona Francisco Amaral, posição que seguimos, para quem
as fontes do Direito “são, basicamente, o Código Civil e a legislação complementar, os negócios jurídicos,
as decisões que formam a jurisprudência uniforme, expressa nas súmulas, e os costumes”. Acrescentase, no topo da lista do mencionado civilista, a Constituição, esta, como diz o autor “passou a ser a fonte
suprema do processo de criação e de cognição jurídica”. Ver AMARAL, Francisco. Direito Civil:
Introdução. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Renovar, 2000. p. 78.
416
Cf. DE FARIAS, Cristiano Chaves. Direito Civil. Teoria Geral. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen
Júris, 2005. “A expressão fontes do Direito pertine ao seu nascedouro, à sua origem, ao lugar de onde
emana”.
417
PERLINGIERI. Op. Cit. p. 20.
141
mais uma forma de aplicar a neutralidade e a cientificidade que marcaram o
Direito do século XIX418.
Nesse cenário, o princípio da proibição do excesso - o qual no
Brasil recebe o nome de princípio da razoabilidade ou da proporcionalidade419 merece particular atenção. Com efeito, em que pese a discussão doutrinária420
em torno da possível diferença semântica entre os referidos termos, adota-se a
tese que os assume como expressões sinônimas.
Conforme lições de José Joaquim Gomes Canotilho421, o princípio
da proibição do excesso, ou da razoabilidade ou da proporcionalidade (termos
que serão utilizados aleatoriamente como sinônimos), tem como ratio essendi a
imposição de limitação a leis ou atos que restrinjam direitos e garantias
fundamentais. Na mesma direção, Luis Roberto Barroso422 pontua:
o princípio da razoabilidade é um mecanismo de controle da
discricionariedade legislativa e administrativa. Ele permite ao
Judiciário invalidar atos legislativos ou atos administrativos
quando: a) não haja relação de adequação entre o fim visado e o
meio empregado; b) a medida não seja exigível423 ou necessária,
havendo meio alternativo para chegar ao mesmo resultado com
menor ônus a um direito individual; c) não haja proporcionalidade
em sentido estrito, ou seja, o que se perde com a medida é de
maior relevo do que aquilo que se ganha.
418
FACHIN (2003). p. 59-60. Aponta o civilista que “a pretensão de cientificidade, como a de neutralidade,
exige certo distanciamento da realidade social. E é por isso que o Direito cada vez mais se afastou da sua
noção de arte e se aproximou desta pretensão pseudo-cientificidade, mediante a qual os conceitos
buscavam aprisionar os fatos da vida até que as águas desses diques represados acabavam rompendo
as comportas para que os fatos se impusessem”.
419
Sobre o tema merece relevo a obra BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da
Constituição. 5. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Saraiva, 2003. p. 218-245. Segundo se infere
da doutrina do constitucionalista, as duas expressões são sinônimas, não merecendo tratamento
diferente.
420
Cf. lições de Celso Antônio Bandeira de Mello, o princípio da razoabilidade está, basicamente,
vinculado à idéia de racionalidade baseada na coerência, na prudência e na disposição de observar os
ditames e finalidades da lei, enquanto o princípio da proporcionalidade é uma faceta daquele,
consubstanciado no ideal de que “as medidas desproporcionais ao resultado legitimamente alvejável são,
desde logo, condutas ilógicas, incongruentes”, conclui o autor. In: DE MELLO, Celso Bandeira. Curso de
Direito Administrativo. 17. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Malheiros, 2004. p.99-101.
421
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional. 4 ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1986. p. 487489. Tal princípio encontra-se, expressamente, consagrado na Constituição portuguesa, de 1976, no art.
18.
422
BARROSO ( 2003 ). p. 218-245.
423
Idem. Ibidem. p. 227-228. A expressão “exigível”, preleciona o autor, foi utilizada pelo Tribunal
Constitucional Federal alemão, que, numa decisão, se pronunciou acerca do princípio da razoabilidade ou
proporcionalidade e argumentou que “o meio empregado pelo legislador deve ser adequado e exigível,
para que seja atingido o fim almejado (...); ele é exigível quando o legislador não poderia ter escolhido
outro igualmente eficaz, mas que seria um meio não-prejudicial ou portador de uma limitação menos
perceptível a direito fundamental”.
142
Os aspectos do princípio da razoabilidade apresentados pelo
constitucionalista brasileiro podem ser desdobrados em premissas para a
análise da (in)constitucionalidade do art. 3º, inciso VII, da Lei 8.009/90, que
permite a penhora do bem de família do fiador, bem como das decisões dos
Tribunais brasileiros, os quais, na função jurisdicional que lhes diz respeito,
optam por decidir favoravelmente à penhora do referido bem, minimizando ou
desconsiderando o papel das normas constitucionais, em especial, os
princípios da dignidade da pessoa humana, da igualdade, da erradicação da
pobreza, dos direitos humanos fundamentais ( em particular, o direito à vida
digna e o direito à moradia ).
Nesse passo, consoante destacado anteriormente, o princípio da
razoabilidade exige dos atos legislativos e administrativos adequação entre os
fins almejados e os meios utilizados. Trazendo tal premissa para o texto da lei
do bem de família, o qual prevê a penhora do único bem do fiador, verifica-se,
de pronto, que o legislador não foi razoável - porquanto, utilizando-se de
argumento conseqüencialista econômico424, no sentido de que a referida
medida legislativa resolveria o problema do acesso à locação, e, por
conseguinte, à moradia – menosprezou o sujeito de carne osso e
desconsiderou seu patrimônio mínimo: consubstanciado na garantia de um
mínimo existencial e na realização do direito humano fundamental à moradia.
Somente, por este aspecto, já se poderia sustentar, por meio da aplicação do
princípio da proporcionalidade, a invalidação e a ineficácia da norma de
exceção, prevista na Lei 8.009/90.
Ainda, fica evidente que o legislador, ao editar a indigitada norma
de exceção, seguiu em direção diametralmente oposta ao primado defendido
por Immanuel Kant425 de que “na ordem dos fins, o homem seja um fim em si
mesmo; isto é, não possa nunca ser utilizado por alguém (nem mesmo por
Deus) apenas como meio, sem ao mesmo tempo ser um fim”.
Outra premissa extraída do princípio da razoabilidade diz respeito
à premente análise da necessidade de se praticar determinado ato,
424
Ainda que fosse, integralmente, verdadeiro tal argumento não poderia jamais ser o único a nortear as
decisões judiciais tendo em vista a necessidade de se considerar outros aspectos relevantes como a
dignidade da pessoa humana e o contexto social em que estão inseridos os destinatários da norma.
425
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Prática. Tradução Rodolfo Schaefer. São Paulo: Editora Martin
Claret, 2006. p. 141-142.
143
considerando a existência de outros meios menos lesivos aos direitos humanos
fundamentais. Ora, no tocante à exceção da penhora do bem do fiador, fica
claro que não houve tal preocupação, posto existirem (conforme mencionado
no capítulo I, seção II, do Título II, deste trabalho) outros meios menos
prejudiciais, como a caução e o seguro fiança, que não a fiança pessoal, a qual
pode ter como conseqüência nefasta levar à bancarrota o patrimônio mínimo
do garantidor.
Por fim, o último aspecto do princípio da proporcionalidade
relaciona-se com a idéia de justiça fundada na proibição do excesso, da
proporcionalidade em sentido estrito; isto é, mister se faz avaliar se “o que se
perde com a medida é de maior relevo do que aquilo que se ganha”, no dizer
de Luis Roberto Barroso426. Mais uma vez, verifica-se que a exceção contida
no art.3º, inciso VII, da Lei 8.009/90, que levanta o véu da imunidade
executória do bem de família do fiador, não só ultrapassa os limites da
razoabilidade, como viola frontalmente o princípio da função social do contrato
e da propriedade, porquanto dá prevalência, na relação contratual locatícia
cumulada com fiança, ao direito de crédito do locador em detrimento do
patrimônio mínimo do fiador, consusbtanciado no bem de família.
Desta feita, aceitar qualquer argumento justificador da medida
legislativa, que admite a penhora do único bem do fiador, não é somente
desarrazoado como também revela uma face cruel, injusta e desumana do
Direito, em contraposição ao que a Carta de 1988 proclama, em especial, nos
art. 1º, inciso III, que contempla, como princípio fundamental da República
brasileira, a dignidade humana; e o art. 3º, incisos I e III, que exprimem
objetivos a serem alcançados pela sociedade brasileira, como a construção de
uma sociedade justa e solidária e a erradicação da pobreza. Ora, sustentar a
validade da norma inserta no art. 3º, inciso VII, da lei do bem família, que
admite a penhora do único bem do fiador, é fazer da Constituição mero
“pedaço de papel”, no dizer de Ferdinand Lassalle, citado por Konrad Hesse427.
426
BARROSO ( 2007 ). p. 245.
HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Tradução Gilmar Ferreira Mendes. Porto
Alegre: Editora Sergio Antonio Fabris, 1991. p.9.
427
144
Nessa trilha, buscar-se-á analisar a seguir a jurisprudência dos
tribunais brasileiros acerca da (in)admissibilidade da penhora do bem de família
do fiador para cumprir obrigação decorrente de fiança em contrato de locação.
A metodologia de pesquisa adotada tem como marco a Lei
8.009/90, e os espaços cognitivos perquiridos serão, primeiramente, os
Tribunais Estaduais, os quais serão selecionados de acordo com o êxito da
pesquisa, sem preferência de qualquer região, em seguida, o Superior Tribunal
de Justiça e, por fim, o Supremo Tribunal Federal.
II. 2. Tribunais de Justiça Estaduais
Conforme se extrai do Direito Constitucional, uma das funções da
Lei Maior é dispor acerca da organização do Poder Judiciário; isto é, delimitar a
atuação dos órgãos que o compreendem. No tocante à Justiça Estadual, a
Carta Constitucional de 1988 outorga aos Estados-membros a tarefa de
organizá-la, respeitadas, obviamente, as normas gerais esculpidas na Carta
Maior.
Em síntese, a Justiça Estadual compreende duas instâncias: a
primeira é composta por juizes singulares e a segunda por órgãos colegiados,
formados por desembargadores. Dentre as funções dos órgãos colegiados da
segunda instância da Justiça está a de julgar os recursos oriundos das
decisões proferidas pelos juizes singulares: pode-se dizer que se trata da
razoável aplicação do princípio do duplo grau de jurisdição ou do duplo exame,
conforme lições de Sérgio Bermudes428:
A revisão de um ato decisório diminui a possibilidade de erro
judicial ( error in procedendo, erro de procedimento, se o juiz
viola norma da qual ele é destinatário; error in judicando, erro de
julgamento, se o juiz não aplica, de modo correto, a norma
disciplinadora da relação jurídica levada ao seu julgamento ).
Além disso, a revisão satisfaz a índole humana, pois aos
homens não acontece aceitarem uma decisão adversa,
principalmente quando única.
428
BERMUDES, Sérgio. Introdução ao Processo Civil. 3. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Editora
Forense, 2002. p. 161-163.
145
Nesse contexto, começa-se a delinear a jurisprudência dos
Tribunais locais, que, em regra, é contestada, por via recursal, nos Tribunais
Superiores, os quais poderão seguir o mesmo entendimento do Tribunal a quo,
ou, diversamente, adotar outra posição.
Entrementes destacam-se algumas decisões colhidas das Cortes
de Justiça estaduais:
TJ - Rio de Janeiro - 1998.001.03558 – AP. CÍVEL - DES. ADEMIR
PIMENTEL - Julgamento: 12/08/1998 - DECIMA QUINTA CÂMARA
CÍVEL -CIVIL. EMBARGOS DO DEVEDOR. IMPENHORABILIDADE
DE BENS. FIANÇA. EXONERAÇÃO. DESPROVIMENTO DO
RECURSO. I - Efetivada a penhora do bem de família na plena
vigência do inc. VII do art. 3º da Lei 8.009/90, acrescido pelo art. 82
da Lei 8.245/91, não há o que se falar em impenhorabilidade ou
violação a ato jurídico perfeito, ainda que o pacto tenha sido firmado
anteriormente a esse diploma legal, II - Para obter exoneração de
fiança, tem o fiador a sua disposição ação declaratória, sendo inábil a
tal objetivo simples notificação do locador, III - Inexiste novação se a
afiançada, simplesmente, em ação de despejo por falta de pagamento,
limita-se a efetuar o pagamento do débito cobrado, sem qualquer
acordo ou estabelecimento de cláusulas não integrantes do contrato
locatício; IV - Constitui-se título líquido, certo e exigível o contrato de
locação, se o fiador não comprova, de forma cabal, a cobrança
indevida, ou a quitação por parte do afiançado, responde, em
execução, pelo valor locativo; V - Desprovimento do recurso.
TJ - Rio de Janeiro - 2007.001.33716 - APELAÇÃO CÍVEL - DES.
LETICIA SARDAS - Julgamento: 05/07/2007 - VIGÉSIMA CÂMARA
CIVEL - EMBARGOS À EXECUÇÃO. PENHORA DO BEM DE
FAMÍLIA DOS FIADORES. VERBETE 63 DA SÚMULA DE
JURISPRUDÊNCIA PREDOMINANTE DO TJ/RJ. UNIFORMIZAÇÃO
DE JURISPRUDÊNCIA. PRECEDENTES.1. A impenhorabilidade do
bem de família é regra, somente sendo cabível nas estritas exceções
legalmente previstas. A Lei nº 8.009/90, em seu art. 3º, inciso VII, com
a redação dada pelo art. 82, da Lei nº 8.245/91, tornou possível a
penhora de bem de família dado em garantia de obrigação
decorrente de fiança pactuada em contrato de locação. 2.
Precedentes. RE nº 407.688, Pleno do STF, julgado em 8.2.2006,
maioria, noticiado no Informativo nº 416 e publicado, recentemente, em
06/10/2006.3. Nos termos do verbete n.º 63 da Súmula de
Jurisprudência predominante do TJ/RJ, cabe a incidência da penhora
sobre o imóvel único do fiador de contrato de locação.4. Uniformização
de Jurisprudência n.º 05/2001. Relator Desembargador PAULO
VENTURA. 5. Decisão proferida pelo órgão fracionário do Tribunal, na
forma expressamente autorizada pelo art. 557 do Código de Processo
Civil.6. Provimento do recurso na forma autorizada pelo §1º-A do artigo
557 do CPC.
TJ – Paraná - ÓRGÃO JULGADOR: SEXTA CÂMARA CÍVEL
(EXTINTO TA)- COMARCA:CURITIBA - PROCESSO: 0080065-5 Recurso:Apelação Cível -Relator: Antonio Prado Filho - Revisor:Hélio
Cesar Engelhardt - Parecer: Por unanimidade de votos, negaram
provimento - Julgamento: 28/08/1995 -Ementa: embargos a execução titulo extrajudicial - locação - fiador - índice opcional do locador - taxa
de conservação - pacta sunt servanda - bem indicado para penhora
146
sem registro - impossibilidade - bem de familia - impenhorabilidade exceção prevista no artigo 3o., vii, da lei no. 8.009/90. Apelação
desprovida. Necessário se faz o respeito ao princípio da força
obrigatória dos contratos. Foi deixado ao alvedrio do locador, a
instituição do índice para correção e taxa de manutenção, embora sua
cobrança não restasse comprovada. A impenhorabilidade do bem de
família, não se sustenta, em virtude de exceção prevista em lei.
Apelação desprovida. Legislação: L. 8009/90 - art 3, VII.
TJ- Rio Grande do Sul - AI. 194133799 - Relator: Alcindo Gomes
Bittencourt - Ementa: Agravo de Instrumento. A Lei N. 8009/90, em seu
artigo 3, inc. VII, permite a penhora do imóvel residencial do fiador,
mas o inquilino, frente ao locador, tem seu imóvel residencial
excluído de qualquer execução por dívida, na forma do art. 1, do
mesmo texto legal. Recurso Improvido....
Data De Julgamento: 06/12/1994
TJ- Rio Grande do Sul - Apelação Cível 194210175 - Relator: Leonello
Pedro Paludo - Ementa: Fiança. Penhorabilidade do imóvel residencial
do Fiador. Constitucionalidade. Após o advento da Lei 8.245/91, que
acresceu o inciso VII, ao artigo 3 da Lei 8.009/90, o imóvel residencial
do fiador é penhorável na execução dos valores afiançados, não
se vislumbrando em tal dispositivo legal qualquer ofensa a
Constituição Federal. Recurso Improvido. Data de Julgamento:
30/11/1994
TJ –Tribunal de Alçada Civil de São Paulo ( atualmente constitui-se em
Câmaras de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo ).
Execução – Penhora – Bem de Família – Fiador – Cabimento –
Aplicação da Lei 8.245/91. Quanto à impenhorabilidade do bem, de
conformidade com o art. 3º, VII, da Lei 8.009/90, trata-se da
excepcionalidade prevista legalmente, uma vez ser resultado de
dívidas contraídas por força de fiança prestada em contrato locatício. 7ª
Câm., Ap. c/ Rev . 617.242-00/8, rel. Juiz Américo Angélico, j. 13.11.
2001.
TJ –Tribunal de Alçada Civil de São Paulo - AI. – Locação de Imóveis –
Embargos à Execução – Isonomia – Fiador e Locatário – Contratos
distintos – Direito de moradia – EC n. 26/2000 – Norma programática –
Regulamentação – Ausência – Penhorabilidade mantida. O contrato de
locação e o de fiança são distintos, de modo que, em se tratando de
situações jurídicas distintas, não há se falar em isonomia. O direito
constitucional de moradia, previsto no art. 6º da CF, possui
natureza programática que carece de regulamentação, de modo
que a penhorabilidade do imóvel de família fica mantida. 3ª Câm.,
429
AI 870.236/00/3, rel. Juiz Carlos Giarusso Santos, j. 14.12.2004 .
( grifo nosso ).
Conforme se pode observar, todas as mencionadas decisões,
sem exceção, buscam fundamento, em grande medida, na letra fria e isolada
do dispositivo legal, evidenciando a defesa da supremacia da legalidade formal,
em detrimento da normativa material constitucional. Com a devida vênia,
429
SANTOS, Gildo dos. Fiança. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. p. 191.
147
parece sobremaneira desarrazoado admitir como legítima a penhora do único
bem do fiador, em contrato de locação, pelo simples fato de que a lei
infraconstitucional assim determina. Ademais, privilegiar o direito de crédito em
prejuízo de valores fundamentais como a dignidade da pessoa humana e o
direito à habitação parece transgredir toda a sistemática de valores apregoados
na Carta Constitucional de 1988.
De fato, a partir dos fundamentos adotados pela mencionada
jurisprudência das Cortes de Justiça estaduais, constata-se que, infelizmente, o
exercício da atividade jurisdicional no século XXI ainda está amarrado ao
dogma normativo-positivista clássico do século XIX, em que a análise do caso
concreto parte de premissas calcadas em pseudo-cientificismo e inalcançável
neutralismo, os quais, por muito tempo, serviram de parâmetro para o direito
privado.
Conforme expressado no tópico I deste capítulo, espera-se do
órgão julgador mais do que a mera aplicação do critério da subsunção da
norma à situação fática, amparado no princípio da legalidade estrita430.
Nessa toada, consoante se verifica dentre os argumentos
apresentados nas mencionadas decisões, está o de que o direito à moradia é
uma norma programática – dependente de regulamentação -, não cabendo,
portanto, conforme o entendimento jurisprudencial, sustentar que a norma que
afasta o véu da impenhorabilidade do bem do fiador violaria o art. 6º, da
Constituição. Indaga-se, todavia, se há realmente consistência entre a
premissa sobre a qual o argumento é construído (“o direito à moradia seria
direito social programático”) e a conclusão a que chegaram os julgadores (“não
haveria incompatibilidade entre a exceção prevista no inciso VII, do art. 3º, da
Lei 8.009/90 e o art. 6º da CR/88”)? Ainda que fosse possível partir da
premissa de que o direito à moradia consubstancia tão-somente um direito
social – tese que já foi descartada quando se abordou a natureza jurídica do
referido direito, posto se advogar neste trabalho que o mesmo é pressuposto
de efetividade de diversos outros valores (vide Título I, Capítulo II, seção II) –,
tal entendimento
430
estaria equivocado, tendo
em vista que a norma
CAMPILONGO, Celso Fernandes. Os Desafios do Judiciário: Um Enquadramento Teórico”. In: FARIA,
José Eduardo ( coordenador ). Direitos Humanos, Direitos Sociais e Justiça. São Paulo: Editora
Malheiros, 2005. p. 30-51.
148
programática431 se dirige não ao cidadão, mas ao Estado, a quem seria exigível
a realização de prestações positivas e negativas (p.ex., financiamentos para
aquisição de moradia e legislação que não viole o direito à moradia daqueles
que, por meio da casa própria, já exerceram tal direito). Assim, não há
correlação lógica entre a premissa utilizada e a conclusão a que chegaram os
Tribunais para sustentar a penhora do bem de família do fiador.
Nesse contexto, a despeito de possível pessimismo que pode
assombrar aqueles que propugnam a constitucionalização do Direito a partir de
um viés humanista, deve-se ter em mente que as mudanças de paradigmas
exigem tempo e determinação, e acima de tudo, esperança. Nesse sentido,
cabe trazer à baila julgados que contrariam aqueles anteriormente aludidos.
Nestes, os magistrados buscam a justiça não unicamente na aplicação da letra
fria da lei, mas adotando como critério hermenêutico fundamental a
ponderação de todos os valores contemplados no sistema jurídico:
TJ-SERGIPE 432– Ap. Cível – Execução – Fiador em contrato de
locação – Bem de família – Impenhorabilidade – Recurso improvido –
Decisão Unânime. Mesmo tratando-se de fiança decorrente de
contrato de locação, o bem imóvel do garantidor, recebendo o
nomen juris de bem de família, não pode ser objeto de constrição
judicial ( Câm. Civ. I. Ap.Civ. 1997203458 – Rel. Des. Fernando
Ribeiro Franco. J. 10.08.1999.
TJ- DISTRITO FEDERAL433 - Processual Civil – Civil – Constitucional –
Ação de execução – Penhora- Fiador – Desconstituição da constrição
judicial dos bens – Impenhorabilidade do bem de família – Exceção
prevista no art. 3º, VII, da Lei 8.009/90, acrescido pelo art. 82 da Lei
8.245/91 – Norma não recepcionada pela EC 26/2000 – Elevação da
moradia como direito social – Agravo improvido – Maioria. A nova
ordem constitucional, emanada pela Emenda 26/2000, merece reflexão
(...). Brasília. 4ª T. Cível . AI. 2000.00.2.003053-2-DF – Rel. Des. Lecir
Manoel da Luz. J. 13.11.2000.
431
No dizer de Maria Helena Diniz, as normas programáticas têm como função precípua delinear
preceitos a serem cumpridos pelo Estado, como “programas das respectivas atividades, pretendendo
unicamente a consecução dos fins sociais pelo Estado”. In: DINIZ, Maria Helena. Norma Constitucional
e seus efeitos. 2. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1992. p. 104. Convém ressaltar, ainda, ( conforme já
perfilhado no Titulo I, capítulo I, seção IV, deste trabalho ) que o Poder Público deve estar comprometido
com a máxima estabelecida pelo princípio da proibição do retrocesso, segunda a qual a conduta do
Estado, em todas as suas esferas, deve estar pautada nos limites impostos pelos direitos humanos
fundamentais e demais valores consagrados no texto constitucional, isto significa que uma norma
infraconstitucional não pode alcançar direito humano fundamental já realizado, como a casa própria do
fiador.
432
BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe. Jurisprudência. Disponível em
< www.tj.se.gov.br>. Pesquisa realizada em 29/10/2007.
433
FORNACIARI JÚNIOR, Clito. O Bem de Família na Execução da Fiança. In: TUCCI, José Rogério
Cruz e.(coordenador). A Penhora e o Bem de Família do Fiador da Locação. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2003. p. 102
149
434
TJ- RIO GRANDE DO SUL – LOCAÇÃO – EXECUÇÃO -FUNDADA
EM CREDITO LOCATICIO. IMPENHORABILIDADE DO IMOVEL
RESIDENCIAL DO FIADOR. Em se tratando de bem imóvel, sendo o
mesmo residência da família, a ele se estende o principio
excepcional da impenhorabilidade do único bem imóvel que sirva
de residência familiar, porque o art. 82 da Lei 8.245 que acrescentou o
inc. vii ao art. 3º da Lei 8.009 afronta o princípio da isonomia
constitucional e o direito social à moradia (art. 1º, inc. iii, art. 5º, caput,
e art. 6º, da Constituição federal, com a redação dada pela Emenda nº
26/00). Apelo provido, por maioria. Inversão dos ônus da sucumbência.
(Apelação Cível Nº 70001903590, Décima Sexta Câmara Cível,
Tribunal de Justiça do RS, Relator: Genacéia da Silva Alberton,
Julgado em 15/08/2001).
TJ – RIO GRANDE DO SUL - EMBARGOS À EXECUÇÃO .
LOCAÇÃO. Impenhorabilidade do único bem imóvel dos fiadores.
exegese do art. 6º da Constituição federal, com redação dada pela
Ementa Constitucional nº 26/2000, que dispõe sobre ao direitos
sociais APELAÇÃO PROVIDA. Voto vencido (Apelação Cível Nº
70003296738, Décima Sexta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS,
Relator: Paulo Augusto Monte Lopes, julgado em 19/12/2001). Dispõe
em seu voto o relator: “ Por fim, registra-se que a declaração de
impenhorabilidade do único bem imóvel do fiador não significa
simplesmente isentá-lo do compromisso assumido perante o credor do
afiançado, cujo débito poderá ser satisfeito de outras formas435.
TJ – RIO GRANDE DO SUL - APELAÇÃO CÍVEL. EMBARGOS À
EXECUÇÀO . LOCAÇÀO. FIANÇA. Penhora do único imóvel que serve
de residência do fiador. Impossibilidade. Pagamentos parciais.
Ausência de ressalva do exeqüente. Má-fé comprovada. Penalidade
aplicada. Sucumbência adequada. (...) São garantias constitucionais
fundamentais do cidadão e de sua família o direito de propriedade
(CF/88, art. 5º, XXII) e o direito à moradia (CF/88, art. 6º, caput, na
redação da EC 26/00), sendo que a Constituição, em sua axiologia,
prestigia como valor fundamental a moradia dos cidadãos e de
sua família, tanto que no art. 183 concede o usucapião para quem
detenha imóvel urbano nas condições que menciona. A lei deve ser
interpretada e aplicada atendendo aos fins sociais a que ela se
dirige e às exigências do bem comum (LICC, art. 5º), o que
certamente não estará sendo atendido se o fiador perder sua
residência para atender débitos de aluguéis do afiançado em
benefício do credor que explora economicamente a propriedade
imobiliária. Outra deve ser a solução para a viabilização do mercado
de locação seja pelos cuidados do locador ao aceitar o fiador com
patrimônio suficiente para a garantia, seja pela definitiva
implementação do seguro-fiança. O credor ou locador, ao contratar,
deve examinar a situação patrimonial do fiador, pois seu é o risco.
Demonstrada a má-fé do exeqüente em não ressalvar quantia já
recebida por conta do título exeqüendo, cabível a aplicação da pena do
434
BRASIL. Poder Judiciário. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Pesquisa de
Jurisprudência. Disponível em < www.tj.rs.gov.br>. Pesquisa realizada em 06/03/2008.
435
Convém ressaltar que a Súmula n° 6 editada pelo Tribunal de Alçada do Estado do Rio Grande do Sul,
hoje incorporado ao Tribunal de Justiça daquele Estado, dispõe: “Fiança. Exoneração. O fiador, uma vez
prorrogada a locação residencial por força de lei, pode exonerar-se da fiança, embora tenha renunciado,
quando a prestou, ao exercício da faculdade do art. 155 do Código Civil”. In: SANTOS, Gildo dos.
Fiança. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. p.202.
150
art. 1.531 do CCB/1916, cumulável, ademais, com a pena do art. 18 do
CPC. Precedentes do STJ. Sucumbência redimensionada. APELO DO
EMBARGADO DESPROVIDO. PROVIDO PARCIALMENTE O
RECURSO DOS EMBARGANTES. (Apelação Cível Nº 70002872240,
Primeira Câmara Especial Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator:
Adão Sérgio do Nascimento Cassiano, Julgado em 08/09/2003).
TJ/MINAS GERAIS436 - AGRAVO N° 1.0024.05.813335-6/001 COMARCA DE BELO HORIZONTE - RELATOR: DES. D. VIÇOSO
RODRIGUES. Agravo de instrumento interposto contra decisão
proferida pelo Juízo da 23ª Vara Cível da comarca de Belo Horizonte
que, nos autos da Ação de Despejo c/c cobrança de aluguéis, em fase
de execução de sentença, acolheu a impugnação apresentada pelo
executado para desconstituir a PENHORA do imóvel residencial do
fiador. “Conquanto o próprio STF tenha decidido, conforme já
ressaltado, pela aplicação do art. 3º, VII, da Lei 8.009/90, penso que a
solução deva se dar em sentido oposto. Em primeiro lugar, verifica-se
que a Emenda Constitucional nº 26, de 14 de fevereiro de 2000, incluiu
a moradia entre os direitos sociais previstos no art. 6º da CF/88, o qual
constitui norma de ordem pública. Ora, ao proceder de tal maneira, o
constituinte nada mais fez do que reconhecer o óbvio: a moradia como
direito fundamental da pessoa humana para uma vida digna em
sociedade. Com espeque na alteração realizada pela Emenda
Constitucional nº 26 e no próprio escopo da Lei 8.009/90, resta
claro que as exceções previstas no art. 3º dessa lei não podem ser
tidas como irrefutáveis, sob pena de dar cabo, em alguns casos, à
função social que exerce o BEM de família, o que não pode ser
admitido. ACÓRDÃO: Vistos etc., acorda, em Turma, a 18ª CÂMARA
CÍVEL do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, incorporando
neste o relatório de fls., na conformidade da ata dos julgamentos e das
notas taquigráficas, à unanimidade de votos, EM NEGAR
PROVIMENTO AO RECURSO. Data do Julgamento: 27/03/2007.
TJ/RIO DE JANEIRO437 - 2007.001.03337 - APELAÇÃO CIVEL FIADOR - LOCAÇÃO - BEM DE FAMILIA - IMPENHORABILIDADE ART. 6 - CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 - DES. BENEDICTO
ABICAIR - Julgamento: 12/09/2007 - SEXTA CAMARA CIVEL Embargos à execução. Bem de família. Contrato de fiança. Recurso
provido. 1. A jurisprudência é remansosa no sentido de considerar que
o fiador que oferece o único imóvel de sua propriedade para garantir
contrato de locação de terceiro pode ter o bem penhorado em caso de
descumprimento da obrigação principal do locatário. 2. A
penhorabilidade do bem de família do fiador do contrato de
locação, objeto do art. 3., inc. VIII, da Lei n. 8.009/1990, entretanto,
fere o art. 6. da CF/88, principalmente diante das peculiaridades,
dentre elas quando envolve aspectos de ordem social e
desigualdade entre um dos contratantes. Recurso provido.
As
recentes
decisões
supramencionadas
-
decididas
por
unanimidade pelos desembargadores que compõem as respectivas Câmaras
Cíveis - não somente dão sinais de que a matéria ainda não está pacificada
436
BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Jurisprudência. Disponível em
< www.tj.mg.gov.br>. Pesquisa realizada em 26/03/2008.
437
BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Jurisprudência. Disponível em
< www.tj.rj.gov.br>. Pesquisa realizada em 29/10/2007.
151
nos Tribunais, como acenam no sentido de uma nova hermenêutica com viés
antropológico, em que o homem é visto a partir de suas peculiaridades. No
tocante à decisão proferida pelo órgão da Corte de Justiça fluminense, merece
realce as palavras do Desembargador Benedito Abicair, relator do acórdão em
tela, que, ao estudar o caso, verificou tratar-se a apelante de pessoa com
poucos recursos, tanto na seara patrimonial, quanto de conhecimento da lei.
Nesse contexto, refletiu o magistrado:
(...) A sentença, ora atacada, à letra fria da lei, julgou
improcedente o pedido, por entender que a impenhorabilidade
do bem de família não é oponível quando se tratar de obrigação
decorrente de fiança concedida em contrato de locação.
(...) Em que pesem a lei específica e parte da jurisprudência e
doutrina, que embasam a sentença, entendo que a matéria não
pode ser dada como pacificada em nossos Tribunais, merecendo
tratamento mais acurado.
É oportuno destacar que a decisão ora mencionada possui
sentido diverso daquele consignado na Súmula 63, do próprio Tribunal
fluminense, aprovada por maioria de votos438 e editada em 24 de junho de
2002, com o seguinte teor: "Cabe a incidência de penhora sobre imóvel único
do fiador de contrato de locação, Lei nº 8.009/90 (art. 3º, VII) e Lei nº.
8.245/91". Observa-se pelo texto do acórdão que aprovou a referida súmula,
que os argumentos utilizados ( conseqüencialistas de cunho econômico de
difícil aferição prática ) parecem levar mais em consideração o crédito do
locador do que o direito à moradia do fiador e de sua família, conforme se
depreende de excerto do texto do relator desembargador Paulo Ventura, que
assevera:
Quando do advento da Lei 8.009/90, tornando impenhorável o
único imóvel residencial do devedor, os locadores com razão,
não mais aceitaram como fiador, quem fosse proprietário de um
único bem imóvel, o que tornaria inócua a garantia fidejussória
(...). A ratio essendi do dispositivo da lei do inquilinato foi a de
facilitar a obtenção da locação, já que os locadores voltaram a
aceitar fiadores que ostentassem um só imóvel.
438
Vale ressaltar que, por ocasião do julgamento da mencionada súmula, divergiram da maioria os
desembargadores Mariana Gonçalves e Jorge Uchoa de Mendonça, que não concordaram com a
redação, e o desembargador José Pimentel Marques que discordou de seu inteiro teor.
152
De fato, a locação, como referido, é uma das formas de exercício
do direito à moradia. Quanto a isso, acredita-se, não paira dúvida alguma; o
que se questiona, entretanto, é a forma simplista e até irresponsável do
legislador de depositar nas costas do fiador o pesado fardo da garantia
pessoal, em que até mesmo seu único bem, asilo sagrado do lar, poderá ser
utilizado para pagar dívida de outrem. Ora, isso, indiscutivelmente, ultrapassa
as raias do absurdo. Indaga-se, ainda, por que o Estado-legislador não
incentiva a fiança bancária, como forma de garantia para promover o acesso à
moradia, por meio da locação? Estaria o Estado dando prevalência aos
interesses das instituições financeiras em detrimento dos direitos do cidadão
que, com sacrifício realizou plenamente seu direito à moradia, por meio da
aquisição da casa própria? São questionamentos que sugerem maior reflexão
sobre o tema.
Na seqüência, busca-se analisar a jurisprudência do Superior
Tribunal de Justiça, no que concerne ao complicado problema da penhora do
único bem do garantidor, em contrato de locação.
II. 3. Superior Tribunal de Justiça
O Superior Tribunal de Justiça é fruto da Constituição de 1888 e
nasceu com a função precípua de tutelar as normas infraconstitucionais, “é o
guardião do ordenamento jurídico federal”, no dizer de Alexandre de Moraes439.
Nesse mister já teve a Corte Superior oportunidade, por diversas vezes, de
enfrentar questões envolvendo os contratos de fiança e de locação e seus
consectários, como a possibilidade de restrição do bem do fiador para suprir
débitos do afiançado, o locatário.
Nesse contexto, cabe analisar a jurisprudência da Corte Especial
a partir dos excertos a seguir transcritos:
1. Quanto aos limites da responsabilidade do fiador:
A. CIVIL. LOCAÇÃO. FIANÇA. I. O art. 1.483 do Código Civil dispõe
expressamente que a fiança deve se dar por escrito e não admite
interpretação extensiva. Assim sendo, se houve o ajustamento do
439
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 17. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2005. p. 512.
153
valor da locação maior do que estipulado no contrato, com a
transigência da locatária, os fiadores não estarão obrigados a
responder pelo débito cobrado, não havendo que se falar em
“assentimento tácito”. SEXTA TURMA, Resp. 34981-SP
(1993/0013173-7), Rel. Min. Pedro Acioli . Julgamento. 03.12.1994.
B.LOCAÇÃO.FIANÇA. RESPONSABILIDADE DO FIADOR. ENTREGA
DAS CHAVES. LIMITES. Nos contratos de locação prorrogados
por prazo indeterminado, a responsabilidade do fiador não se
estende ao aditamento ou prorrogação contratual a que não anuiu,
em face da não admissão da interpretação extensiva de contratos
dessa natureza. Resp. 171880 –MG. Rel. Min. Hamilton Carvalhido .
D.J. 05.06.2000.
C. LOCAÇÃO. FIANÇA. DESONERAÇÃO. LEI 8.245/91, ART. 39.
CÓDIGO CIVIL, AT. 1.500. PRORROGAÇÃO DO CONTRATO DE
LOCAÇÀO. Não pode a norma da Lei 8.245/91, art. 39, que determina
a perpetuação da obrigação de garantia até a devolução do imóvel, ser
interpretada em dissonância da regra contida no CC, art. 1.500. Não se
pode querer ver o fiador responsabilizado indefinidamente, sem sua
anuência, por acordo privativo do locador e locatário, pelo qual
entendem de prorrogar o contrato de locação sem prazo determinado.
Assim sendo, conforme entendimento desta Corte, ‘não é compatível
a coexistência da cláusula de responsabilidade até a entrega das
chaves, com o intuito da prorrogação contratual indefinida’, só
podendo vigorar tal disposição durante a vigência do contrato ao qual o
fiador se vinculou. Resp. 246809- PR. Rel. Min. Edson Vidigal. D.J.
19.06.2000.
D. LOCAÇÃO. PROCESSUAL CIVIL. FIANÇA. ENTREGA DAS
CHAVES. PENHORA. LEI 8.245/91 - BEM DE FAMÍLIA. I - É assente
neste Tribunal o entendimento de que o instituto da fiança não
comporta interpretação extensiva, obedecendo, assim, disposição
expressa do artigo 1.483 do Código Civil. Na fiança, o garante só
pode ser responsabilizado pelos valores previstos no contrato a
que se vinculou, sendo irrelevante, na hipótese, para se delimitar a
duração da garantia, cláusula contratual prevendo a obrigação do
fiador até a entrega das chaves. II - Sendo proposta a ação na
vigência da Lei n° 8.245/91, válida é a penhora que obedece seus
termos, excluindo o fiador em contrato locatício da impenhorabilidade
do bem de família. Precedentes. Recurso parcialmente provido. REsp
306163 / MG -2001/0023037-7 - Rel. Ministro FELIX FISCHER JULGAMENTO: 10/04/2001.
E. CIVIL. LOCAÇÃO. RECURSO ESPECIAL. CONTRATO DE
LOCAÇÃO POR TEMPO DETERMINADO. PRORROGAÇÃO LEGAL
POR
PRAZO INDETERMINADO. EXONERAÇÃO DA FIANÇA.
IMPOSSIBILIDADE.DISSÍDIO
JURISPRUDENCIAL.INEXISTÊNCIA.
SÚMULA
83/STJ.
MORATÓRIA.
BEM
DE
FAMÍLIA.
IMPENHORABILIDADE. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO.
SÚMULAS 282 E 356/STF. COMPENSAÇÃO DE VALORES.
AUSÊNCIA
DE
INDICAÇÃO
DO
DISPOSITIVO
INFRACONSTITUCIONAL TIDO POR VIOLADO. DEFICIÊNCIA DE
FUNDAMENTAÇÃO. SÚMULA 284/STF. RECURSO ESPECIAL
CONHECIDO E IMPROVIDO. 1. A Terceira Seção do Superior Tribunal
de Justiça, no julgamento do EREsp 566.633/CE, firmou o
entendimento de que, havendo, como no caso vertente, cláusula
expressa no contrato de aluguel de que a responsabilidade dos
fiadores perdurará até a efetiva entrega das chaves do imóvel
objeto da locação, não há falar em desobrigação destes, ainda que o
154
contrato tenha se prorrogado por prazo indeterminado. REsp 827047 /
SP RECURSO ESPECIAL 2006/0054652-2 – Rel. Ministro ARNALDO
ESTEVES LIMA - JULGAMENTO: 06/03/2007. ( grifo nosso ).
Há que se reconhecer a elogiável posição da Corte Especial, no
tocante à ponderação que fazia na hipótese de responsabilidade ad eternum do
fiador. Parecia caminhar bem o Tribunal, no sentido de enxergar vidas nas
demandas que chegavam à sua avaliação. Conforme se depreende da
pesquisa realizada, desde 1993, era forte o entendimento de que a
responsabilidade do fiador estava adstrita ao prazo do contrato, sendo suas
cláusulas de interpretação restritiva. Nesse sentido, cabe trazer à baila as
palavras do Ministro Edson Vidigal, em sede de Recurso Especial440:
(...) esta Corte em diversas oportunidades já proclamou o
entendimento, segundo o qual o contrato de fiança, por ser uma
liberalidade, não aceita interpretação extensiva e que, em assim
sendo, somente subsistirá a garantia prestada na prorrogação do
contrato de locação se for dada anuência expressa do fiador.
Desta forma, não tem eficácia a cláusula contratual que prevê a
obrigação fidejussória até a entrega das chaves. Pois, sendo a
prorrogação do contrato uma permissão da lei aos contratantes,
se o fiador não se vincular expressamente a este, que é, na
verdade, novo contrato, não podem fazê-lo os contratantes, pois
não se pode obrigar terceiros sem sua anuência. Incidência da
Súmula 2 l4/STJ441. Ademais, a jurisprudência deste Superior
Tribunal de Justiça é pacífica no sentido de não se reconhecer a
prorrogação tácita da fiança, e que só pode a cláusula de
responsabilidade até a entrega das chaves ser aplicada na
vigência do contrato original, nunca em prorrogação posterior da
qual não anuiu o fiador.
Ocorre que, em novembro de 2006, a Terceira Turma do Superior
Tribunal de Justiça, no âmbito do julgamento de um Recurso de Embargos de
Divergência442, fixou entendimento no sentido de admitir como legítima e
idônea a cláusula limitativa de responsabilidade do fiador até a entrega das
440
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 2006/0054652-2. Julgado em 06/03/2007.
Diário de Justiça de 19/03/2007, p. 389. Disponível em < www.stj.gov.br>. Pesquisa realizada em
05/03/2008.
441
Assim dispõe o enunciado da Súmula 214: “o fiador na locação não responde por obrigações
resultantes de aditamento ao qual não anuiu”.
442
Conforme ensina Alexandre Freitas Câmara, os Embargos de Divergência consistem “num
mecanismo destinado a compor dissídios jurisprudenciais internos de um dado tribunal, tendo, pois,
função equivalente ao do incidente de uniformização de jurisprudência”. In: CÂMARA, Alexandre Freitas.
Lições de Direito Processual Civil. Vol. II. 6. ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2002, p. 46-47.
Com efeito, o recurso em tela está disciplinado no art. 555, par. 1º, do Código de Processo Civil brasileiro.
155
chaves, se assim estiver expresso no contrato, conforme se extrai da ementa
da decisão em tela:
EResp. 566.633-CE443. Locação. Fiança. Prorrogação. Cláusula
de garantia até a efetiva entrega das chaves. Continuam os
fiadores responsáveis pelos débitos locatícios posteriores à
prorrogação legal do contrato se anuíram expressamente a essa
possibilidade e não se exoneraram nas formas dos artigos 1.500
do CC/16 ou do 835 do CC/02, a depender da época que
firmaram a avença. Embargos de divergência que se dá
provimento.
Conforme já se teve oportunidade de assinalar no capítulo I, na
seção II, do presente título, defende-se que a responsabilidade do fiador, em
contrato de locação, deve estar adstrita ao prazo estipulado no ajuste444, posto
ser um disparate privilegiar a segurança do crédito do locador, mantendo a
responsabilidade do fiador até a entrega das chaves. Ademais, a realidade que
se constata no mundo dos fatos, em que, de modo geral, o garantidor não é
comunicado do inadimplemento do locatário, terá o fiador, ao assinar o contrato
de fiança, colocado ante a sua cabeça uma verdadeira espada de Dâmocles445.
De fato, não parece haver harmonia entre o atual pensamento da
Corte Especial de Justiça (de que a responsabilidade do fiador se estende até
a efetiva entrega das chaves) e a sua autodenominação de Tribunal da
Cidadania, dado que tal adjetivação carrega valores que se espera amparados
e defendidos por meio da função jurisdicional. Desta forma, verifica-se um
paradoxo entre as decisões do Tribunal que admitem a responsabilidade do
fiador até a entrega das chaves e a idéia de justiça subjacente do substantivo
cidadania. Nesse diapasão, são oportunas as palavras de Marcos Silvio de
Santana446:
A história da cidadania mostra bem como esse valor encontra-se
em permanente construção. A cidadania constrói-se e conquistase. É objetivo perseguido por aqueles que anseiam por
443
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Embargos de Divergência em Recurso Especial. Locação.
Julgado em 22.11.2006. Diário de Justiça de 12.03.2008. Disponível em < www.stj.gov.br >. Pesquisa
realizada em 12/03/2008.
444
Oportuno repisar que a responsabilidade do fiador até a entrega das chaves caracteriza cláusula
leonina, injusta e contrária à ordem constitucional brasileira.
445
NOVO DICIONÁRIO AURÉLIO. Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Nova
Fronteira, 1999. p.809. Segundo o referido dicionário, a expressão “espada de dâmocles” significa “perigo
sempre iminente.”
446
SANTANA, Marcos Silvio de. O que é Cidadania. Disponível em < www.advogado.adv.br >. Pesquisa
realizada em 15/03/2008.
156
liberdade, mais direitos, melhores garantias individuais e
coletivas frente ao poder e a arrogância do Estado. A sociedade
ocidental nos últimos séculos andou a passos largos no sentido
das conquistas de direitos de que hoje as gerações do presente
desfrutam. O exercício da cidadania plena pressupõe ter direitos
civis, políticos e sociais e estes, se já presentes, são fruto de um
longo processo histórico que demandou lágrimas, sangue e
sonhos daqueles que ficaram pelo caminho, mas não tombados,
e sim, conhecidos ou anônimos no tempo, vivos no presente de
cada cidadão do mundo, através do seu “ir e vir”, do seu livre
arbítrio e de todas as conquistas que, embora incipientes, abrem
caminhos para se chegar a uma humanidade mais decente, livre
e justa a cada dia.
Nesse contexto, cumpre agora trazer à baila alguns julgados do
Tribunal Especial que admitem a penhora do bem de família do fiador em
contrato de locação.
2. Quanto à possibilidade de penhora do bem de família do
fiador:
a. FIANÇA EM CONTRATO DE LOCAÇÃO – EXECUÇÃO –
PENHORA EM IMÓVEL – Art. 3º, inciso VII, da Lei 8.009/90.
Determinando a Lei 8.009/90, no art. 3º, inciso VII, a exclusão do
regime da impenhorabilidade de bem no caso de processo de
execução por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato
de locação, a aplicação é imediata, sem se poder cogitar, na
espécie, de situação pré-constituída ou direito adquirido. Recurso
não conhecido. Resp. 60.824/SP. Rel. Ministro José Arnaldo da
Fonseca. Julgamento em 15.10.1996.
b. PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS À EXECUÇÃO. PENHORA.
BEM DE FAMÍLIA. FIADOR. OBRIGAÇÃO RESULTANTE DE
FIANÇA. LEI 8.245/91. É válida a penhora do único bem do
garantidor do contrato de locação posto que realizada na vigência
da Lei 8.245/91, que introduziu, no seu art. 82, um novo caso de
exclusão de impenhorabilidade do bem destinado à moradia da
família, ainda sim quando a fiança fora prestada na vigência da Lei
8009/90. 3. Recurso provido- REsp 196452 / SP - 1998/0087783-5 –
Rel. Ministro EDSON VIDIGAL - DJ 19.06.2000 p. 167.
c.
LOCAÇÃO – FIANÇA – PENHORA – BEM DE FAMÍLIA. Sendo
proposta a ação na vigência da Lei 8.245/91, válida é a penhora
que obedece seus termos, excluindo o fiador em contrato locatício
da impenhorabilidade do bem de família. Recurso provido. Resp.
299.663/RJ . Rel. Min. Félix Fischer. Julgamento 15.03.2001.
d. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA.
LOCAÇÃO.
FIANÇA.
PENHORA.
BEM
DE
FAMÍLIA.
POSSIBILIDADE.
É possível a penhora do único bem imóvel do fiador do contrato de
locação, em virtude da exceção legal do artigo 3º da Lei 8.009/90.
(Precedente: RE nº 407.688, Pleno do STF, julgado em 8.2.2006,
maioria, noticiado no informativo nº 416). Recurso ordinário
157
desprovido. RMS 21265 / RSRECURSO ORDINÁRIO EM
MANDADO DE SEGURANÇA 2005/0211861-8 – Rel. Ministro
FELIX FISCHER -JULGAMENTO: 23/05/2006
Observa-se, na referida jurisprudência447 que, apesar dos avanços
da doutrina da constitucionalização do Direito, amparada nas regras e
princípios constitucionais, as raízes do positivismo clássico ainda se mantêm
firmes e servindo de base para que se aplique o método de subsunção formal
da regra abstrata e genérica ao caso concreto. Parece que a referida Corte de
Justiça privilegia a obrigação decorrente de fiança em contrato de locação, ao
conferir prevalência ao crédito do locador em detrimento de valores
fundamentais como a dignidade humana, a função social nas relações jurídicas
e a solidariedade.
É indiscutível que a posição majoritariamente adotada pelo
Tribunal da Cidadania se distancia dos mencionados valores, assim como do
ideal consubstanciado na doutrina da constitucionalização do Direito, na qual
se privilegiam os direitos humanos fundamentais. Ainda, vale realçar que o que
se espera do juiz contemporâneo vai além do mero conhecimento da lei posta:
visto que a ele está reservada a importante função de fazer justiça social, a
partir da análise das peculiaridades do caso concreto, tendo sempre como
base o ser individualizado e não apenas premissas formais, genéricas e
abstratas previstas no texto legal.
Na verdade, espera-se, efetivamente, que o Superior Tribunal de
Justiça reveja seus posicionamentos, em especial, no que toca à possibilidade
de restrição judicial do único bem do fiador. Vale ressaltar que não se
questiona o instituto da penhora, que pode, perfeitamente, incidir sobre um
bem do fiador, conquanto se trate de bem excedente; ou seja, que não
constitua seu bem de família. Aí sim, poder-se-á considerá-lo um legítimo
Tribunal da Cidadania.
A seguir, busca-se analisar a jurisprudência do Supremo Tribunal
Federal, no que diz respeito à possibilidade de penhora do bem de família do
fiador que, em sede de Recurso Extraordinário, ou seja, na esfera do controle
447
Em sentido contrário à penhora do bem do fiador, ver REsp nº 84511 / SP – Rel. Ministro José Dantas.
158
incidental de constitucionalidade, se manifestou acerca da validade da norma
ínsita no art. 3º, inciso VII, da Lei 8.009/90, acrescentada pela Lei 8.245/91.
II. 4. Supremo Tribunal Federal
Hodiernamente, conforme explicitado no capítulo I, na seção IV, do
presente título II, o Direito tem sido redesenhado com as cores da Constituição
e arquitetado com premissas antropológicas, como a dignidade humana e a
solidariedade. Com esse fundamento, as normas constitucionais necessitam de
mecanismos que as preservem de possíveis violações, e neste aspecto, a
jurisdição constitucional ascende como instrumento viabilizador da mencionada
proteção.
No Brasil, cabe repisar, adota-se um sistema misto de controle
das normas constitucionais, posto mesclar-se o sistema norte-americano
(controle por via incidental, concreto, difuso) com o sistema austríaco (controle
em abstrato, concentrado). Com efeito, a Carta de 1988 determina em seu art.
102, que é do Supremo Tribunal Federal a competência para julgar, no controle
em abstrato, as ações diretas de constitucionalidade de lei ou ato normativo
federal ou estadual448, bem como, no controle difuso, as ações incidentais, por
meio do recurso extraordinário.
Nesse contexto, assume relevância a interpretação que o
Supremo Tribunal Federal dá às normas constitucionais. Ocorre que nem
sempre a exegese escolhida pela mencionada Corte de Justiça, efetivamente,
se harmoniza com a própria sistemática da Constituição, consoante será
demonstrado no que toca à recente posição adotada, em sede de recurso
extraordinário449 - no qual foi argüida a inconstitucionalidade da regra inserta no
inciso VII, do art. 3º, da Lei 8.009/90, que prevê a penhora do bem de família
do fiador -, em que o Plenário, por maioria, decidiu pela validade do referido
dispositivo.
448
Cumpre ressaltar que a análise pelo STF das normas municipais em face da Constituição Federal
ocorre no controle concentrado por via da ação de descumprimento de preceito fundamental, art. 103,
par. 1º, e no controle difuso, por meio de recurso extraordinário, art. 102, inciso III, da CR/88.
449
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 407.688-8-SP. Diário da Justiça de 06
out. 2006. Fiador. Locação. Ação de Despejo. Disponível em: <www.stf.gov.br>. Acesso em 27/03/ 2007.
159
Ab initio, é oportuno destacar uma das decisões450proferidas pelo
Ministro Carlos Velloso, o qual, como relator de Recurso Extraordinário451,
considerou não-recepcionada a regra legal que prevê a penhora do bem de
família do fiador, em contrato de locação, nos termos da ementa a seguir
transcrita:
RE 449657 / SP - Relator(a) Min. CARLOS VELLOSO – Julgamento 27/05/2005 - EMENTA: CONSTITUCIONAL. CIVIL. FIADOR: BEM DE
FAMÍLIA: IMÓVEL RESIDENCIAL DO CASAL OU DE ENTIDADE
FAMILIAR: IMPENHORABILIDADE. Lei nº 8.009/90, arts. 1º e 3º. Lei
8.245, de 1991, que acrescentou o inciso VII, ao art. 3º, ressalvando a
penhora "por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de
locação": sua não- recepção pelo art. 6º, C.F., com a redação da EC
26/2000. Aplicabilidade do princípio isonômico e do princípio de
hermenêutica: ubi eadem ratio, ibi eadem legis dispositio: onde
existe a mesma razão fundamental, prevalece a mesma regra de
Direito. (...) Autos conclusos em 20.4.2005. Decido. Ao julgar o RE
352.940/SP, em 26.4.2005, escrevi: "EMENTA: CONSTITUCIONAL.
CIVIL. FIADOR: BEM DE FAMÍLIA: IMÓVEL RESIDENCIAL DO
CASAL OU DE ENTIDADE FAMILIAR: IMPENHORABILIDADE. Lei nº
8.009/90, arts. 1º e 3º. Lei 8.245, de 1991, que acrescentou o inciso VII,
ao art. 3º, ressalvando a penhora 'por obrigação decorrente de fiança
concedida em contrato de locação': sua não- recepção pelo art. 6º,
C.F., com a redação da EC 26/2000. Aplicabilidade do princípio
isonômico e do princípio de hermenêutica: ubi eadem ratio, ibi eadem
legis dispositio: onde existe a mesma razão fundamental, prevalece a
mesma regra de Direito. Recurso extraordinário conhecido e provido.
(...) A Lei 8.009, de 1990, art. 1º, estabelece a impenhorabilidade do
imóvel residencial do casal ou da entidade familiar e determina que não
responde o referido imóvel por qualquer tipo de dívida, salvo nas
hipóteses previstas na mesma lei, art. 3º, inciso I a VI. Acontece que a
Lei 8.245, de 18.10.91, acrescentou o inciso VII, a ressalvar a penhora
'por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação.'
É dizer, o bem de família de um fiador em contrato de locação teria
sido excluído da impenhorabilidade. Acontece que o art. 6º da C.F.,
com a redação da EC nº 26, de 2000, ficou assim redigido: 'Art. 6º. São
direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, a
segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância,
a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.' Em
trabalho doutrinário que escrevi 'Dos Direitos Sociais na Constituição
do Brasil' (...) registrei que o direito à moradia, estabelecido no art. 6º,
C.F., é um direito fundamental de 2ª geração, direito social que veio a
ser reconhecido pela EC 26, de 2000. O bem de família, a moradia do
homem e sua família justifica a existência de sua impenhorabilidade:
Lei 8.009/90, art. 1º. Essa impenhorabilidade decorre de constituir a
moradia um direito fundamental. Posto isso, veja-se a contradição: a
450
Ver outras decisões monocráticas do Ministro Carlos Velloso, nas quais considera não-recepcionada
pela ordem constitucional, o inciso VII, do art. 3º, da Lei 8009/90, que prevê a penhora do bem de família
do fiador, tais como: RE 415563 / SP; RE 349370 / SP; RE 415626 / SP; RE 352940 / SP; e RE 165571
/ RS.
451
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 449657-SP. Constitucional. Civil. Fiador:
Bem de Família: Imóvel residencial do casal ou de entidade familiar: Impenhorabilidade. Julgamento
27/05/2005. Diário de Justiça de 09.05.2006. Disponível em < www.stf.gov.br>. Pesquisa realizada em
22/11/2007.
160
Lei 8.245, de 1991, excepcionando o bem de família do fiador, sujeitou
o seu imóvel residencial, imóvel residencial próprio do casal, ou da
entidade familiar, à penhora. Não há dúvida que ressalva trazida
pela Lei 8.245, de 1991, inciso VII do art. 3º feriu de morte o
princípio isonômico, tratando desigualmente situações iguais (...).
Isto quer dizer que, tendo em vista o princípio isonômico, o citado
dispositivo inciso VII do art. 3º, acrescentado pela Lei 8.245/91,
não foi recebido pela EC 26, de 2000. Essa não recepção mais se
acentua diante do fato de a EC 26, de 2000, ter estampado,
expressamente, no art. 6º, C.F., o direito à moradia como direito
fundamental de 2ª geração, direito social. Ora, o bem de família, Lei
8.009/90, art. 1º encontra justificativa, foi dito linha atrás, no constituir o
direito à moradia um direito fundamental que deve ser protegido e por
isso mesmo encontra garantia na Constituição. Em síntese, o inciso
VII do art. 3º da Lei 8.009, de 1990, introduzido pela Lei 8.245, de
1991, não foi recebido pela CF, art. 6º, redação da EC 26/2000. Do
exposto, conheço do recurso e dou-lhe provimento, Publique-se.
Brasília, 27 de abril de 2005.( grifo nosso ).
Pode-se dizer que a referida decisão, como outras que vieram a
reboque, deu ensejo para que o Plenário do Supremo Tribunal Federal
avaliasse a norma jurídica questionada, o que ocorreu em sede de Recurso
Extraordinário452. É interessante observar que a maioria dos Ministros453 da
Suprema Corte brasileira, ao enfrentar a questão em tela, utilizou,
predominantemente, base argumentativa fundada em elementos econômicos,
conforme se extrai de trecho do voto do Ministro Cezar Peluso:
(...) a expropriabilidade do bem do fiador tende, posto que por
via oblíqua, também proteger o direito social de moradia,
protegendo direito inerente à condição de locador, não um
qualquer direito de crédito.
(...) castrar essa técnica legislativa (refere-se a previsão da
fiança em locação), que não pré-exclui ações estatais
concorrentes de outra ordem, romperia equilíbrio do mercado,
despertando exigência sistemática de garantias mais custosas
para as locações residenciais, com conseqüente desfalque do
campo de abrangência do próprio direito constitucional à
moradia.
Em que pese o enorme respeito que merece o Ministro Cezar
Peluso, a imagem que de imediato surge ao ler o seu voto é a de alguém que
452
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 407.688/SP. Julgado em 02.02.2006.
Brasília. Diário de Justiça de 06.10.2006. Disponível em www.stf.gov.br. Pesquisa realizada em
27/03/2007.
453
Vale dizer que a decisão em tela não foi ratificada pelos Ministros Eros Grau, Carlos Ayres Brito e
Celso de Mello, que se posicionaram no sentido da prevalência do direito humano fundamental à moradia.
161
para
sustentar
e
privilegiar
uma
tese
em
abstrato
(econômica
e
conseqüencialista) de difícil mensuração, aniquila um direito humano
fundamental e concreto de um ser de carne e osso; isto é, para vestir uma tese
incerta e uma pessoa abstrata, desnuda outra de carne e osso.
Em sede de debates, o Ministro Eros Grau, Carlos Ayres Britto e
Celso de Mello defenderam a impenhorabilidade do bem de família do fiador,
conforme se depreende de fragmentos de seus votos. No dizer do Ministro
Celso de Mello, a essencialidade do direito à moradia impõe o cumprimento de
dois princípios fundamentais: o patrimônio mínimo e a dignidade humana,
sobre este, preleciona o magistrado:
Esse princípio fundamental, valorizado pela fiel observância da
exigência ético-jurídica da solidariedade social – que traduz
um dos objetivos fundamentais do Estado Social de Direito ( CF,
art. 3º, I ) – permite legitimar interpretações que objetivem
destacar, em referido contexto, o necessário respeito ao
indivíduo, superando-se, desse modo, em prol da subsistência
digna das pessoas, restrições que possam injustamente frustrar
a eficácia de um direito tão essencial, como o da
intangibilidade do espaço doméstico em que o ser humano vive
com a sua família ( grifo do autor ).
Nesse passo, o Ministro Carlos Ayres Brito, em seu voto, ao
defender a imunidade do bem de família do fiador, apresentou o direito à
moradia a partir de três perspectivas:
A Constituição usa o substantivo ‘moradia’ em três
oportunidades: a primeira, no artigo. 6º, para dizer que a moradia
é um direito social; a segunda, no inciso IV, do artigo 7º, para
dizer, em alto e bom som, que a moradia se inclui entre as
‘necessidades vitais básicas’do trabalhador e da sua família; e,
na terceira vez, a Constituição usa o termo ‘moradia’como
política pública, inserindo-a no rol de competências materiais
concomitantes dos Estados, da União, do Distrito Federal e dos
Municípios ( artigo 23, inciso IX ). A partir dessas qualificações
constitucionais, sobretudo aquela que faz da moradia uma
necessidade essencial, vital básica do trabalhador e de sua
família, entendo que esse direito à moradia se torna
indisponível, é não-potestativo, não pode sofrer penhora por
efeito de um contrato de fiação. Ele não pode, mediante um
contrato de fiação, decair ( grifo nosso ).
162
Por fim, em seu voto, o Ministro Eros Grau, ao defender que “a
impenhorabilidade do imóvel residencial instrumenta a proteção do indivíduo e
sua família quanto às necessidades materiais, de sorte a prover a sua
subsistência”, travou um verdadeiro diálogo-duelo com o relator do recurso, o
Ministro Cezar Peluso, o qual questionou de forma veemente os argumentos
apresentados por ele.
Sem se abater, mas convencido de sua posição, o
Ministro Eros Grau refutou o argumento conseqüencialista454 trazido pelo
colega, - de que possível afastamento da regra que excepciona da
impenhorabilidade o bem de família do fiador causaria forte impacto no
mercado das locações imobiliárias – e defendeu os preceitos constitucionais,
afirmando que “não hão de faltar políticas públicas, adequadas à fluência desse
mercado, sem comprometimento do direito social e da garantia constitucional”.
Nesse duelo de idéias, o Ministro Cezar Peluso, a despeito de
partir de premissas verdadeiras, parece ter chegado, com a devida vênia, a
uma conclusão equivocada. Veja-se: o primeiro aspecto apontado pelo julgador
refere-se à existência de contingente de pessoas sem titularidade proprietária
significativamente superior aos que possuem uma propriedade imóvel; e o
segundo vincula-se à idéia de que o acesso à locação é um meio fácil para as
pessoas sem condições financeiras exercerem o direito à moradia. Realmente,
conforme referido, o deficit habitacional no Brasil chega ao patamar de oito
milhões de pessoas (ver disposição gráfica no capítulo I, do Título I), não há
como fugir da realidade apontada pelos números, mas o que se questiona é a
conclusão a que chegou o respeitável magistrado, consoante suas palavras:
(...) aos poucos e aos pouquíssimos proprietários que
voluntariamente acedem em ser fiadores nos contratos, o Estado
deu uma opção, que a meu ver, está dentro da norma
constitucional do direito de moradia.
O que está em jogo aí são – como sempre – dois interesses
relevantes, mas, neste caso, parece-me que a norma, abrindo a
exceção à inexpropriabilidade do bem de família, é uma das
454
GALVÃO, Pedro. A Teoria Utilitarista de J. S. Mill: Uma Caracterização. Disponível em:
<www.spfil.pt/trol-galvao.htm>. Pesquisa feita em 25/04/2007). Segundo o autor, “ o consequencialismo é
uma perspectiva sobre a correcção moral (ou obrigação moral) — uma perspectiva sobre o que é
moralmente certo ou errado fazer. Nas suas versões mais directas, aplica-se primariamente a ações, mas
há teorias consequencialistas que se aplicam primariamente a regras, práticas ou motivos, determinando
só derivadamente a correcção moral das ações”.
163
modalidades de conformação do direito de moradia por via
normativa, porque permite que uma grande classe de pessoas
tenha acesso à locação.
Parece despida de fundamentação incólume à crítica a linha de
intelecção do mencionado julgador, precisamente por duas razões distintas: no
tocante à primeira delas, fica claro que o magistrado não faz qualquer distinção
entre o direito de propriedade autônomo e o direito de propriedade
acessória/instrumental ( conforme defendido no capítulo I, seção IV, do Título
I ). A dimensão instrumental do mencionado direito tem basicamente duas
funções: 1. dar plenitude ao direito humano fundamental à moradia; e 2. servir
como garantia do patrimônio mínimo. Já o direito de propriedade autônoma,
desvinculado do bem de família, além de cumprir a função social que lhe é
afeta, pode estar no âmbito de interesses disponíveis, porquanto não está
servindo de pressuposto de efetividade ao direito de habitação.
A segunda razão, por sua vez, relaciona-se com o argumento
defendido pelo Ministro Cezar Peluso, segundo o qual a opção normativa que
prevê a penhora do bem de família do fiador tem como ratio subjacente o
incentivo ao acesso à moradia, por meio da locação. Embora não desprovido
de razão tal argumento, padece de razoabilidade, na medida em que, sob a
alegação de que se está a facilitar a moradia daquele que pouco ou nada tem,
retira-se daquele que, com muito esforço, conseguiu concretizar de forma plena
o seu direito à moradia, por meio da casa própria. Tal vertente de pensamento
parece contradizer, não somente, a essência da própria Constituição de 1988,
mas, sobretudo, conduz ao retrocesso, uma das facetas da injustiça, posto
admitir que se retire do fiador o exercício pleno e consumado do direito à
moradia, concretizado na sua casa própria, no seu bem de família.
Nesse passo, defende-se que a norma inserta no art. 3º, inciso
VII, da Lei 8.009/90, que prevê a penhora do único bem do fiador, somente
será válida se interpretada conforme a Constituição, isto é, somente será
constitucional se condicionada à existência de um bem exógeno: ou seja,
situado fora do espectro de proteção do patrimônio mínimo, subsumido no bem
de família do fiador.
164
CONCLUSÃO
O trabalho em tela, conforme teve seu objeto delimitado no
capítulo introdutório - qual seja, a (im)possibilidade de penhora do único bem
do fiador em contrato de fiança – apoiou-se em premissas de cunho teórico,
filosófico, sociológico e jurídico.
A primeira e fundamental premissa é a tutela da dignidade da
pessoa humana, corolário para a defesa de outros valores fundamentais ao
pleno desenvolvimento humano.
Com
amparo
nas
teses
da
constitucionalização
e
repersonalização do Direito, defendidas pela doutrina civil-constitucionalista
nacional e estrangeira, sustentou-se outra importante premissa, a qual vinculase à defesa do caráter metajurídico do direito humano fundamental à moradia:
pressuposto necessário à realização de outros direitos fundamentais, além de
servir de base para a defesa do patrimônio mínimo, consubstanciado no bem
de família.
Além das mencionadas premissas, outro aspecto relevante que
fundamentou os argumentos sustentados no presente trabalho, diz respeito à
defesa do caráter instrumental do direito de propriedade, partindo-se do fato de
que tal instituto biparte-se em direito fundamental autônomo e direito
fundamental acessório/instrumental. O primeiro, de acordo com a Carta de
1988, cumpre sua função social ao observar princípios como o da dignidade
humana e o da solidariedade. Já o direito de propriedade acessória está
atrelado ao direito humano fundamental à moradia, posto servir de instrumento
para o efetivo exercício deste; ou seja, o direito de propriedade acessória não
vale de per se, não pode ser equiparado, por exemplo, ao direito de crédito do
locador, na medida em que traduz valores axiologicamente diferentes.
Indiscutivelmente, a abordagem do tema, em decorrência da sua
complexidade, exigiu uma análise a partir de marcos teóricos multidisciplinares,
razão pela qual, na primeira parte do trabalho, apontou-se alguns aspectos que
contribuíram para a deflagração da crise da habitação no Brasil, a partir do
século XIX, além dos problemas que vieram a reboque, como o crescimento
165
desordenado do espaço urbano, a exclusão sócio-econômica e violações de
direitos humanos fundamentais.
Nesse contexto, é inquestionável a correlação do bem de família
com a concretização do direito humano fundamental à moradia, de tal sorte que
o estudo acerca da eficácia jurídica e social dos direitos humanos, bem como
dos seus elementos intrínsecos - fundamentalidade e essencialidade – tornouse necessário para analisar situações que envolvem dois direitos fundamentais,
como é o caso da questão nuclear deste trabalho.
De fato, tem-se de um lado o direito de crédito do locador, e de
outro o direito à moradia. Segundo a CR/88, ambos são direitos humanos
fundamentais, se o entendimento é no sentido de que o direito de crédito
subsume-se no direito de propriedade. Como resolver, então, esse conflito
entre dois direitos fundamentais? O critério da ponderação, nesta situação
pode ser uma saída viável. Deve-se, avaliar a essencialidade de cada direito
em jogo, e o grau de interferência admissível no núcleo fundamental de cada
um. Desta forma, deve-se ponderar o seguinte: 1. O que acontecerá se o
locador não puder obter seu crédito com o bem de família do fiador? 2. Por
outro lado, o que acontecerá se o bem de família do fiador for excutido em
processo de execução para suprir o crédito do locador?
Ao se ponderar as questões colocadas, deve-se, primeiramente,
levar em consideração valores fundamentais, como a dignidade humana, a
família, e o mínimo existencial, bem como o contexto social nacional, no qual
11% da população é analfabeta, sem esquecer dos analfabetos funcionais, que
atingem o patamar de 26% dos habitantes, os quais conseguem ler, mas não
têm a compreensão necessária do que lêem.
Nesse cenário, é possível visualizar o seguinte quadro: de um
lado o locador e seu direito de crédito, o qual pode ser suprido por outras
formas, além de poder novamente colocar para locação o seu bem imóvel. De
outro lado, tem-se o fiador e o seu bem de família, que se vier a perdê-lo terá
que se submeter às regras do mercado de locação, inclusive amargar com a
possível dificuldade em arrumar alguém disposto a colocar-se na posição de
seu garantidor; verá vilipendiada a sua dignidade e de sua família; sentirá,
ainda, sua saúde física e mental sofrer os nefastos efeitos do processo que
culminou com a perda da sua casa própria, entre outros prejuízos.
166
Nesse passo, ao enfrentar a questão da penhora do único bem do
fiador, prevista no art. 3º, inciso VII, da Lei 8.009/90, à luz da Constituição
Federal de 1988, analisou-se a jurisprudência das Cortes de Justiça brasileiras,
no tocante à (im)possibilidade da penhora do único bem do fiador.
A despeito da constatação de que a maioria das decisões dos
Tribunais de Justiça dos Estados, do Superior Tribunal de Justiça e do
Supremo Tribunal Federal, ser no sentido da possibilidade da penhora do único
bem do fiador, tendo como fundamento a letra fria da lei, não se perde a
esperança de alcançar o ideal perseguido pelos defensores das teorias da
constitucionalização e repersonalização do Direito, que é o estudo do caso
concreto a partir da análise das peculiaridades que envolvem o homem de
carne e osso. Ressalte-se, enquanto houver esperança haverá força para se
caminhar rumo ao Estado Democrático Constitucional e Humanitário de Direito.
Nesse contexto, ao se afirmar que a pessoa humana é o centro
de onde irradiam todos os direitos, sendo, portanto, a sua dignidade vetor
delimitador de todas as normas jurídicas, sustenta-se a constitucionalidade
condicionada do inciso VII, do art. 3°, da Lei 8.009/90, à existência de um bem
exógeno do fiador; ou seja, de um bem que esteja fora da esfera do seu
patrimônio mínimo.
Desta feita, por tudo o que foi esposado neste trabalho, diante das
premissas apresentadas e dos argumentos defendidos conclui-se que a
decisão do STF, a qual analisou, em sede de controle concreto, a referida
norma - que prevê a penhora do bem de família do fiador - não se sustenta
filosófica, sociológica e juridicamente.
A uma, porque dá prevalência ao crédito em detrimento da
dignidade da pessoa do fiador e de sua família.
A duas, porquanto tal decisão não ponderou o contexto social em
que a norma está inserida, no qual a maioria das pessoas que assumem a
posição de garantidor, em contrato de locação, não tem a correta noção das
conseqüências práticas de seu ato, e em regra, são proprietárias de um único
imóvel.
A três, a decisão do STF não se sustenta juridicamente, por duas
razões distintas: 1. não considerou a violação ao princípio da igualdade existente
167
no inciso VII, do art. 3º da Lei 8.009/90, eis que o mencionado diploma legal
protege o bem do locatário, caso este o tenha, porém afasta o manto da
impenhorabilidade daquele que foi fiador. Cabe frisar, sempre, que a ratio
essendi do bem de família é garantir o patrimônio mínimo de todos aqueles que
a “duras penas” já o conquistaram, seja o locatário, seja o fiador; e 2. a segunda
razão, em função da qual não merece prosperar a referida decisão do STF, diz
respeito ao fato de que a propriedade consubstanciada no bem de família não
vale de per se, posto ser mero instrumento para a concretização do direito
humano fundamental à moradia, e este, por sua vez, entende-se ser requisito
essencial à efetividade de outros valores fundamentais como a vida, a educação,
a saúde, a cidadania e o acesso às oportunidades de crescimento profissional.
No
cenário
em
que
o
direito
constitucional
humanitário
contemporâneo vem se delineando não há mais espaço para a mera aplicação
da letra fria da lei ao caso concreto. As relações jurídicas - nas quais o homem
está inserido apenas como mais um de seus elementos essenciais - necessitam
de uma releitura a partir de uma visão antropocêntica, amparada na dignidade
humana. De tal sorte que o homem deve ser analisado a partir de suas
especificidades e necessidades particulares, e não mais como um ser genérico e
abstrato, conforme acentua Luiz Edson Fachin455: “sujeito concreto e cidadania
não se assentam na razão de uma compreensão exclusivamente abstrata do
sujeito: passa a ter sentido o plano do seu conteúdo, bem como suas projeções
concretas”.
Nesse contexto, devem o Código Civil e demais leis esparsas se
coadunar com as normas constitucionais, em especial, aquelas que consagram
direitos humanos fundamentais, sendo inadmissível que um diploma legal venha
a restringir um direito fundamental, como o direito à moradia, em benefício de um
direito de crédito, que pode ser exigido por outros instrumentos menos gravosos.
As normas civilistas existem para servir e ordenar as relações sociais, não para
violar valores fundamentais do homem.
.
Cumpre destacar, ainda, que as garantias contratuais, em
particular, do contrato de locação, não podem reduzir à miserabilidade aquele
que, num ato de liberalidade ( generosidade ), assumiu a obrigação de
455
FACHIN, Luiz Edson. Teoria Crítica do Direito Civil à Luz do Novo Código Civil Brasileiro. 2. ed.
Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 189.
168
garantidor. Desta forma, entende-se que o Estado deve incentivar outras
formas de garantia que não ponham em risco a dignidade, a segurança e o
desenvolvimento daquele que já conseguiu a sua tão sonhada casa própria,
concretizando, com isso, o pleno exercício do direito humano fundamental à
moradia.
No caso brasileiro, em que a crise da habitação assume
proporções sérias, causando prejuízos de diversas ordens - tanto de caráter
sócio-econômico quanto psicológico e cultural - o sonho da casa própria deve
ser tratado como objetivo a ser alcançado a partir de esforços compartilhados
entre cidadãos, Poder Público e sociedade ( esta como um conjunto de atores
diversos ), visto que somente assim será possível realizar a travessia da
situação de deficit habitacional para uma cidade sustentável, onde todos
possam ter acesso à moradia digna.
Saliente-se que, atentar para a ratio da lei do bem de família, que
é a de garantir o patrimônio mínimo do indivíduo e de sua família, deve ser
premissa inafastável tanto na formação das relações jurídicas como na análise
do caso concreto em sede judicial.
Repise-se, no tocante à propriedade, deve-se ter sempre em
mente que tal instituto como função social assume dupla dimensão: de direito
autônomo e de direito acessório, sendo certo que a propriedade acessória está
diretamente vinculada ao pleno exercício do direito à habitação.
Nessa toada, comungando da visão humanista e solidária da
doutrina que embasou as idéias defendidas neste trabalho, espera-se que num
futuro próximo o legislador reveja a norma inserta no inciso VII, do art. 3º, da
Lei 8.009/90, que admite a penhora do bem de família, expurgando-a do
ordenamento jurídico456. E, se assim não o fizer o legislador, deposita-se a
esperança na Suprema Corte Constitucional brasileira, para que reveja sua
posição, no sentido de dar interpretação conforme a CR/88, condicionando a
validade da referida regra à existência de um bem excedente do fiador, isto é,
456
Cumpre mencionar o Projeto de Lei nº 4.728/1998, de autoria do Deputado Federal José Machado, do
Partido dos Trabalhadores-SP, o qual busca vedar que se ofereça o único imóvel da família como
garantia locatícia. Ressalte-se, ainda, que apensados a este projeto, existem outros projetos visando à
alteração da lei do bem de família: ( PL 562/99; pl 895/99; PL1.683/99; PL 4.923/01; PL 1.458/03; e PL
2.666/03 ).
169
um bem que esteja fora do espectro de seu patrimônio mínimo, um bem que
não lhe sirva de abrigo, como é o caso do bem de família legal.
170
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bem de família do fiador e o direito humano fundamental à moradia