Polifonia
PERIÓDICO DO Programa de Pós-graduação
em Estudos de Linguagem-Mestrado
Número 20 – 2009 – issn 0104-687X
Estudos LITERÁRIOS
POLIFONIA
CUIABÁ
EDUFMT
Nº 20
P. 1-172
2009
issn 0104-687x
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
Reitora
Maria Lúcia Cavalli Neder
Vice-Reitor
Francisco José Dutra Souto
Pró-Reitora Administrativa
Valéria Calmon Cerisara
Pró-Reitora de Planejamento
Elisabeth Aparecida Furtado
de Mendonça
Pró-Reitora de Ensino de Graduação
Myrian Thereza Moura Serra
Pró-Reitora de Ensino de
Pós-Graduação
Leny Caselli Anzai
Pró-Reitor de Pesquisa
Adnauer Tarquínio Daltro
Pró-Reitor de Vivência
Acadêmica e Social
Luis Fabrício Cirillo de Carvalho
Diretora do Instituto de Linguagens
Rosângela Cálix Coelho da Costa
Coordenadora do Mestrado
em Estudos de Linguagem
Cláudia Graziano Paes de Barros
Coordenador da
Editora Universitária
Marinaldo Divino Ribeiro
Conselho Editorial
Ana Antônia de Assis-Peterson – UFMT
António Manuel de Andrade Moniz – Universidade
Nova de Lisboa
Cássia Virgínia Coelho de Souza – UFMT
Célia Maria Domingues da Rocha Reis – UFMT
Cláudia Graziano Paes de Barros – UFMT
Daniel Faïta – IUFM/FR
Diana Boxer – University of Florida
Elias Alves de Andrade – UFMT
Enid de Abreu Dobránsky – USF
Franceli Aparecida da Silva Mello – UFMT
Helena Nagamine Brandão – USP
Lúcia Helena Vendrúsculo Possari – UFMT
Ludmila de Lima Brandão – UFMT
Manoel Mourivaldo Santiago Almeida – USP
Marcos Antônio Moura Vieira – UFMT
Maria Inês Pagliarini Cox – UFMT
Maria Rosa Petroni – UFMT
Marilda C. Cavalcanti – UNICAMP
Mário Cezar Silva Leite – UFMT
Nancy H. Hornberger – University Of Pennsylvania
Piers Armstrong – Dartmouth College
Rhina Landos Martinez André – UFMT
Roberto Leiser Baronas – UFSCAR
Simone de Jesus Padilha – UFMT
Sônia Aparecida Lopes Benites – UEM
Stella Maris Bortoni – UnB
Vera Lúcia Menezes de O. e Paiva – UFMG
Editores Executivos
Ana Antônia de Assis-Peterson
Maria Inês Pagliarini Cox
Maria Rosa Petroni
Organizadores
Franceli Aparecida da Silva Mello
Rhina Landos Martinez André
Polifonia
PERIÓDICO DO Programa de Pós-graduação
em Estudos de Linguagem-Mestrado
Número 20 – 2009 – issn 0104-687X
Estudos LITERÁRIOS
POLIFONIA
CUIABÁ
EDUFMT
Nº 20
P. 1-172
2009
issn 0104-687x
Universidade Federal de Mato Grosso
Av. Fernando Corrêa da Costa, 2367
Bairro Boa Esperança – Campus Universitário Gabriel Novis Neves
CEP: 78.060-900 – Cuiabá-MT – Brasil
Fones: 0XX-65-3615.8408 – Fax: 3615.8413
Polifonia
Periódico do Programa de Pós-Graduação em
Estudos de Linguagem – Mestrado
Instituto de Linguagens
Universidade Federal de Mato Grosso
Av. Fernando Corrêa da Costa, 2367
Bairro Boa Esperança – Campus Universitário Gabriel Novis Neves
CEP: 78.060-900 – Cuiabá-MT – Brasil
Fones: 0XX-65-3615.8408 – Fax: 3615-8418
e-mail: [email protected]
Ficha Catalográfica - Biblioteca Central
Polifonia. Periódico do Programa de Pós-Graduação em Estudos de
Linguagem - Mestrado [do] Instituto de Linguagens, Universidade Federal de
Mato Grosso - Ano 17. nº 20. (2009). Cuiabá: Editora Universitária, V. I; 22,5 cm
172p.
Semestral
I. Universidade Federal de Mato Grosso
ISSN 0104-687x
Capa, Editoração e Projeto Gráfico:
Candida Bitencourt Haesbaert
FAPEMAT
Fundação de Amparo à Pesquisa de Mato Grosso
Av. Fernando Corrêa da Costa, 2367 – Bairro Boa Esperança
Fone: (65) 3615 8322 – fax: (65) 3615 8325
Cuiabá – MT – 78.060-900
[email protected]
Rua 03, s/nº, 3º andar, Prédio da IOMAT, C.
Fone 65-3613-3500 - Fax: 65-3613-3502
CEP 78050-970 - Cuiabá-MT.
[email protected]
www.fapemat.mt.gov.br
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
ARTIGOS
AUTORES, AUTORIA E PODER: ASPECTOS
DA CONSTITUIÇÃO DO CAMPO LITERÁRIO
EM MATO GROSSO.............................................1
Franceli Aparecida da Silva Mello
Wanda Cecília Correa de Mello
DIÁLOGO ENTRE JORNALISMO E LITERATURA
NA VIDA E OBRA DE JOÃO ANTÔNIO................19
Carlos Alberto Farias de Azevedo Filho
DAS LETRAS ÀS CIFRAS: LITERATURA E
VALORES NO SÉCULO XIX . .............................43
Simone Cristina Mendonça
ÊXTASE ENFERMIÇO: TRANSCENDÊNCIA
POÉTICA E VOLÚPIA DA PRECIPITAÇÃO NO
DECADENTISMO BRASILEIRO – UM EXEMPLO
EM CRUZ E SOUSA...........................................53
Fabiano Rodrigo da Silva Santos
ESAÚ E JACÓ E MEMORIAL DE AIRES:
A ABOLIÇÃO E A REPÚBLICA SOB O OLHAR
MACHADIANO...................................................69
Adriana da Costa Teles
MATO GROSSO NA LITERATURA BRASILEIRA:
IMAGEM, MEMÓRIA E VIAGEM.........................83
Olga Castrillon-Mendes
FERNANDO PESSOA, O POETA DESCONFIADO:
UMA BREVE LEITURA DE CANCIONEIRO...........93
Lucelena Ferreira
NOS ARREDORES DO FANTÁSTICO
MATOGROSSENSE: O BERRO DE TEREZA......103
Mário Cezar Silva Leite
José Alexandre Vieira da Silva
CAPITALISMO E ESQUIZOFRENIA: A SUBJETIVI­
DADE BLOQUEADA NA DUPLA ESCRITURA DE
TEATRO DE BERNARDO CARVALHO...............119
Maria Carlota de Alencar Pires
O LIVRO DAS IGNORÃÇAS COMO VOZ LÍRICA DE
INSCRIÇÃO ÉPICA..........................................137
Jamesson Buarque de Souza
Marta Helena Cocco
O CÃO E O HOMEM NO ROMANCE Los perros
hambrientos DE CIRO ALEGRIA..................151
Rhina Landos Martínez André
Patrícia Oliveira Lacerda
CONTENTS
PRESENTATION
ARTICLES
AUTHORS, AUTHORSHIP AND POWER:
ASPECTS OF THE CONSTITUTION OF THE
LITERARY FIELD IN MATO GROSSO...................1
Franceli Aparecida da Silva Mello
Wanda Cecília Correa de Mello
DIALOGUE BETWEEN JOURNALISM AND
LITERATURE IN THE LIFE AND WORK OF
JOÃO ANTÔNIO ...............................................19
Carlos Alberto Farias de Azevedo Filho
FROM LETTERS TO NUMBERS: LITERATURE AND
VALUES IN THE NINETEENTH CENTURY............ 43
Simone Cristina Mendonça
SICKY ECSTASY: POETIC TRANSCENDENCE AND RAPTURE OF PRECIPITATION IN
BRAZILIAN DECADENTISM - AN EXAMPLE
IN CRUZ E SOUSA.............................................53
Fabiano Rodrigo da Silva Santos
ESAÚ E JACÓ AND MEMORIAL DE AIRES:
ABOLITION AND THE REPUBLIC UNDER
MACHADO’S EYES............................................69
Adriana da Costa Teles
MATO GROSSO IN THE BRAZILIAN LITERATURE:
IMAGE, MEMORY AND TRAVEL........................83
Olga Castrillon-Mendes
FERNANDO PESSOA, THE SKEPTICAL POET:
A SHORT READING OF CANCIONEIRO...............93
Lucelena Ferreira
CLOSE TO THE FANTASTIC IN THE MATO GROSSO
LITERATURE: THE CRY OF TEREZA................. 103
Mário Cezar Silva Leite
José Alexandre Vieira da Silva
CAPITALISM AND SCHIZOPHRENIA:
OBSTRUCTED SUBJECTIVENESS OF DOUBLE
ENTENDRES IN THE NOVEL THEATER BY
BERNARDO CARVALHO..................................119
Maria Carlota de Alencar Pires
O LIVRO DAS IGNORÃÇAS AS LYRICAL VOICE
OF EPIC INSCRIPTION....................................137
Jamesson Buarque de Souza
Marta Helena Cocco
THE DOG AND THE HUMAN IN Los perros
hambrientos BY PERUVIAN WRITER CIRO
ALEGRÍA BAZÁN.............................................151
Rhina Landos Martínez André
Patrícia Oliveira Lacerda
Apresentação
Ao percorrer as páginas desta edição de número 20
da Revista Polifonia, o leitor encontrará textos das mais
variadas temáticas e abordagens teóricas, o que reflete
uma tendência atual da pesquisa no campo dos Estudos
Literários. Que bom! Afinal, a diversidade é da natureza da
literatura; bem como seu caráter simultaneamente democrático e elitista. Pois, se por um lado, o texto literário se
oferece ao gozo e julgamento de qualquer pessoa; por outro,
só aos especialistas são dadas as prerrogativas de estudá-lo
e consagrá-lo no espaço acadêmico. A luta pela legitimação
do escritor é um dos assuntos abordados por mim e Wanda
Cecília Correa de Mello, no artigo “Autores, Autoria e Poder: aspectos da constituição do campo literário em Mato
Grosso”, no qual se conclui que a inserção de um autor no
campo literário depende, não só de seu talento, como de
sua relação com as várias instâncias de poder. Embora não
trate especificamente do tema, o artigo de Carlos Alberto
Farias de Azevedo Filho, “Diálogo entre jornalismo e literatura na vida e obra de João Antônio”, refere as posições de
poder conquistadas no exercício do jornalismo, como fator
fundamental para que muitos escritores pudessem se fazer
conhecidos e reconhecidos pelo público e pela crítica. Este
é o caso de João Antonio, Machado de Assis, Visconde de
Taunay e Cruz e Sousa, só para citar autores estudados
nesta revista. Todos eles tinham consciência do poder de
publicidade e consagração da imprensa, especialmente os
do século XIX, para quem o espaço para a divulgação da
literatura impressa restringia-se ao jornal e ao livro. E nem
todos tinham condições de publicar livros, como nos informa
o artigo de Simone Cristina Mendonça, “Das letras às cifras:
literatura e valores no século XIX”, que trata do esforço dos
autores do XIX em estabelecer redes de relações pessoais e
profissionais para o (e no) exercício da literatura. Naquele
tempo, Machado de Assis e o Visconde de Taunay saíram-se
melhor do que Cruz e Sousa nesta empreitada. _ Talvez por
ser negro e/ou por morar numa província distante da Corte,
ou, ainda, por sua opção estética (o simbolismo/decadentismo não tinha muito prestígio entre as instâncias consagradoras da época, entendam-se a Academia Brasileira de
Letras e os escritores consagrados), pode (m) ter contribuído
para isso _. O fato é que o poeta catarinense morreu pobre
e amargurado por não ver reconhecido seu talento. Talvez
estivesse à frente de seu tempo, como demonstra o artigo
“Êxtase enfermiço: transcendência poética e volúpia da
precipitação no decadentismo brasileiro – um exemplo em
Cruz e Sousa”, de Fabiano Rodrigo da Silva Santos, pois,
segundo o autor, ao precipitar-se nos abismos, ao percorrer
a vereda entrelaçada entre o grotesco e o sublime, o poeta
teria aderido a uma nova estética, surgida no seio da Modernidade e aparentemente até então desconhecida pelas
letras nacionais.
Mais sintonizados com o seu tempo estavam Machado
de Assis e o Visconde de Taunay, como demonstram os artigos de Adriana da Costa Teles e Olga Castrillon-Mendes,
respectivamente. Em “Esaú e Jacó e Memorial de Aires:
a abolição e a república sob o olhar machadiano”, Teles
discute alguns aspectos da maneira _ indireta _ pela qual
Machado retratou nos seus últimos romances aquele momento da história brasileira. Tomando a obra do Visconde
de Taunay como emblemática para se pensar a construção
imagética de Mato Grosso, Castrillon-Mendes, em “Mato
Grosso na literatura brasileira: imagem, memória e viagem”, a insere na discussão do Romantismo e do gênero
paisagístico brasileiro, logrando fazer-nos compreender o
processo de elaboração das imagens da natureza e as vinculações ideológicas dela decorrentes. Segundo a autora,
o tratamento dispensado à natureza na obra de Taunay
articula sentimento e razão, na medida em que acrescenta
ao modo romântico de representação da paisagem o projeto
ideológico de construção nacional de então.
O binômio sentimento/razão também se insinua no
artigo de Lucelena Ferreira,
“Fernando Pessoa, o poeta desconfiado: uma breve leitura de Cancioneiro”, que investiga a categoria intelectual
do pensamento na escrita do ortônimo, esta identificada
como uma poesia analítica e intelectualizada, tingida pela
busca de significados para o desconhecido. Ao racionalismo
exacerbado desta obra de Fernando Pessoa, pode-se opor
o misticismo do romance de Tereza Albues, analisado por
Mário Cezar Silva Leite e José Alexandre Vieira da Silva
no artigo “Nos arredores do fantástico mato-grossense: o
berro de Tereza”. Na obra da autora mato-grossense, seus
analistas apontam para a recorrência de aspectos sobrenaturalizados, supra-humanos e epifânicos, que convivem no
mesmo ambiente narrativo através da intromissão brutal do
mistério. Ainda que distantes no tempo e no espaço, a obra
do poeta português e da romancista brasileira revelam o
homem como um ser estranho para si mesmo. No limite do
estranhamento de si mesmo, temos o romance de Bernardo
Carvalho, analisado por Maria Carlota de Alencar Pires em
“Capitalismo e esquizofrenia: a subjetividade bloqueada
na dupla escritura de Teatro de Bernardo Carvalho”. Em
seu artigo, a autora vê na linguagem esquizofrênica do
romance um sintoma do mal-estar em que novos paradigmas do capitalismo, em fins do século XX, promovem o
aprisionamento das subjetividades. Estas subjetividades
ocupam, nas narrativas contemporâneas, espaços abertos
ou fechados e tornam-se cada vez mais “bloqueadas”, seja
no nível mental, seja no social, e se enredam na antilógica
cultural do capitalismo tardio. Isto parece não acontecer no
mundo pantaneiro descrito na poesia de Manoel de Barros,
conforme afirmam Jamesson Buarque de Souza e Marta
Helena Cocco em seu artigo, “O Livro das Ignorãças como
voz lírica de inscrição épica”. Segundo os autores, o eulírico na poesia de Barros revela-se totalmente integrado ao
mundo que o rodeia, de tal forma que se pode falar numa
identidade/fusão entre o habitante do mundo pantaneiro
com seu ethos particular. Tal identidade é interpretada pelos
articulistas como uma tentativa de questionar a supremacia
humana diante de outros seres. Se em Manoel de Barros
homens, animais e plantas aparecem em pé de igualdade;
na obra de Ciro Alegria esta proposição se radicaliza, a ponto de ocorrer uma inversão de comportamentos, ou seja, o
homem se desumaniza enquanto o animal se humaniza. É
o que demonstram Rhina Landos Martínez André e Patrícia
Oliveira Lacerda, no artigo “O cão e o homem no romance
Os cães famintos de Ciro Alegria”, ao analisarem o processo
de zoomorfização e antropomorfização ocasionados pelas
forças antagônicas, enfrentamentos e jogos de poder.
Nesta apresentação, destaquei apenas algumas questões
que me chamaram a atenção nos artigos deste número da
Revista Polifonia. Não quero, nem posso, tirar do leitor o
direito, nem o prazer de descobrir outras leituras. Afinal,
isto faz parte da já referida natureza democrática da literatura. Ainda bem!
Franceli Aparecida da Silva Mello
AUTORES, AUTORIA E PODER:
ASPECTOS DA CONSTITUIÇÃO DO CAMPO
LITERÁRIO EM MATO GROSSO
Franceli Aparecida da Silva Mello1
Wanda Cecília Correa de Mello2
A literatura não existe num vácuo. Os escritores, como tais,
têm uma função social definida exatamente proporcional
à sua competência como escritores. Essa é a sua principal
utilidade. Todas as demais são relativas e temporárias e só
podem ser avaliadas de acordo com o ponto de vista particular de cada um. (Ezra Pound, in Abc da literatura, 2003).
Resumo: Este artigo procura, num primeiro momento, discutir algumas definições de autor e autoria, baseado em
diferentes concepções teóricas, tais como as de Foucault,
Barthes, Bourdieu, Possenti e outros. Em seguida, comenta a produção de quatro dos autores mais representativos
da literatura mato-grossense _ Dom Aquino, Silva Freire,
Ricardo Guilherme Dicke e Ivens Cuiabano Scaff _ no que
tange a sua relação com as várias instâncias de poder, visando à inserção no campo literário.
Palavras-chave: Autoria, poder, campo literário, Mato Grosso.
AUTHORS, AUTHORSHIP AND POWER: ASPECTS OF
THE CONSTITUTION OF THE LITERARY FIELD IN
MATO GROSSO
Abstract: This article intend, at first, to discuss some definitions of author and authorship, based on different theoretical
concepts, such as Foucault, Barthes, Bourdieu, Possenti et al.
After that, it comments the production of four most representative authors of the literature mato-grossense _ Dom Aquino,
Silva Freire, Ricardo Guilherme Dicke and Ivens Scaff _ with
respect to its relationship with the various instances of power,
aimed at including in the literary field.
Keywords: Authorship, power, literary field, Mato Grosso.
1 Doutora em Literatura Brasileira e professora de Teoria Literária no Departamento de
Letras e do Mestrado em Estudos de Linguagem/IL/UFMT. Pesquisadora do Grupo RG
Dicke de Estudos em Cultura e Literatura de Mato-Grosso. [email protected]
2 Mestre em Estudos de Linguagem e professora de Língua Portuguesa nas redes Estadual e Municipal de Ensino de Várzea Grande/MT. Pesquisadora do Grupo RG Dicke
de Estudos em Cultura e Literatura de Mato-Grosso. [email protected]
POLIFONIA
CUIABÁ
EDUFMT
Nº 20
P. 1-17
2009
issn 0104-687x
Na obra O que é um autor? (2002) Foucault busca inicialmente desfazer a identificação habitual entre as unidades
do livro, da obra e do autor através do significado do que ele
chama de “função-autor”. Esta carece ainda de uma análise
histórica dos discursos – o seu valor segundo as modalidades de sua existência. Alguns discursos, no interior de uma
cultura, são providos dessa “função-autor” e outros não,
sendo que, para Foucault, a função-autor estaria ligada a
um sistema jurídico e institucional, não podendo ser exercida em todos os discursos, épocas e formas de civilização
de maneira uniforme, uma vez que não poderia ser atribuída espontaneamente ao seu produtor, podendo dar lugar
simultaneamente a várias posições-sujeito, ocupadas por
diferentes classes de indivíduos. Segundo ele, não se pode
definir um autor sem pensar em obra.
A noção de autor constitui o momento forte da individualização na história das idéias, dos conhecimentos,
das literaturas, na história da filosofia também, e na
das ciências. Mesmo hoje, quando se faz a história de
um conceito, de um gênero literário ou de um tipo de
filosofia, creio que tais unidades continuam a ser consideradas como recortes relativamente fracos, secundários
e sobrepostos em relação à unidade primeira, sólida e
fundamental, que é a de autor e de obra (2002:33).
Assim, não basta escrever para ser autor, no que concorda Sírio Possenti (2002), é necessário que aquele que
escreve seja “dono” de seu discurso e que se inscreva em
alguma instância de poder capaz de inserir-se no campo
literário.
A autoria, ou a responsabilidade de um autor sobre um
discurso, começou quando a sociedade passou a exigir que
alguém assumisse juridicamente sua fala. Em muitas culturas, incluindo a nossa, o discurso era uma ação entre o
sagrado e o profano, o legal e o ilegal, ou que se situava no
campo do religioso e daquilo que estava entre as blasfêmias.
Houve um embate para que o sistema de posse e regras do
copyright fosse estabelecido – entre os séculos XVIII e XIX
– a partir daí, foi como se o autor, aceito na ordem social
da propriedade, pudesse compensar seu novo status com
2
a prática da transgressão. Há que se compreender, no entanto, que o que Foucault chama de “função-autor” não
é nem universal, nem constante em todas as civilizações.
Houve época em que os textos hoje conhecidos como “literários” – histórias, contos populares e similares – circulavam
e eram valorizados sem que se questionasse sua autoria.
Entretanto, a partir do século X, o discurso literário passou
a só ser considerado quando carregasse o nome do autor
de cada texto.
Em sua análise acerca do que faz um autor chegar a
sê-lo, Foucault conclui que a discursividade é a marca do
autor, entendendo o “discurso” como um corpo do pensamento e da escrita que é unida tendo um objeto comum
de estudo, uma metodologia comum, e/ou de um jogo de
termos e de idéias comuns; a idéia do discurso permite
assim que ele fale sobre uma variedade larga dos textos,
de países diferentes e dos gêneros históricos diferentes e
diferentes disciplinas.
Para Roland Barthes (1970), entretanto, a questão da
autoria adquire outros contornos que não apenas esses.
Para ele, falta uma “sociologia da palavra”, para se conceituar o que é escritor, uma vez que a palavra é poder, um
poder que detém, em diversos graus, a linguagem de uma
nação. Segundo o autor, foi na França pós-Revolução que
os políticos se apropriaram “da língua dos escritores com
fins políticos”, processo no qual os escritores também contribuíram para alargar a função literária
a fazer dessa palavra institucionalizada da qual são
ainda proprietários reconhecidos, o instrumento de uma
nova ação; e ao lado dos escritores propriamente ditos,
constitui-se e desenvolve-se um novo grupo, detentor
da linguagem pública (Barthes, 1970:32)
A esses, Barthes chama de escreventes. A diferença entre escritor, que neste caso também é autor, e escrevente,
é que enquanto o primeiro realiza uma função, o segundo
realiza uma atividade. O escritor tem o poder de abalar o
mundo, uma vez que sua verdadeira responsabilidade é a de
“suportar o mundo como um engajamento fracassado” (Barthes, 1970:35), para Barthes não há uma escrita engajada,
3
já que a literatura é sempre irrealista, o que lhe permite
fazer perguntas ao mundo sem que elas sejam diretas ou
excessivamente agressivas. Ao participar do jogo proposto
pelo escritor, o leitor transforma o objeto em um mito: o
mito do bem-escrever.
Pierre Bourdieu (2002) entende que ambos – escritor e
autor – são um só. Aquele que escreve é, ainda que minimamente, responsável por seu texto, o que o tornaria o “autor”
deste – a autoria considerada como o “fazer consciente” e,
segundo ele, o campo literário é o lugar universalmente definido como apropriado para a definição e análise legítima
do que seja um escritor/autor. A autoria exige, desse modo
e, sobretudo, uma responsabilidade que não se restringe ao
sentido jurídico do termo, mas que se estende, também, e
com igual rigor perante a sociedade, à história e ao meio.
Isto é, perante o contexto sócio-histórico em que se insere
o autor. Isso faz com que, para que alguém se apresente
como autor, seja preciso assumir diante às instituições (visto
que a própria autoria é uma função institucionalizada) o
papel social que se constitui a partir de sua relação com a
linguagem e o mundo. Isto se torna um dos princípios para
o agrupamento, o domínio sobre as várias posições nas
quais se instaura o sujeito, imprimindo a ele significações
coerentes e dando sentido aos fatos.
O autor, assim pensado, passa a ser analisado como função complexa do próprio discurso, e não como seu fundador
originário. Aqui, discurso, bem entendido, tem a conotação
que lhe dá Sírio Possenti (2002:18) “(...) como um tipo de
sentido – um efeito de sentido, uma posição, uma ideologia
– que se materializa na língua, embora não mantenha uma
relação biunívoca com recursos de expressão da língua”.
Faoro (2001) lembra que as condições sociais contribuíram de maneira decisiva para as estratégias de apropriação
dos meios para alguém ser alçado à condição de escritor,
embora, na maior parte das vezes, de maneira subliminar.
Em seu livro As regras da arte: gênese e estrutura do
campo literário (2002), Bourdieu identifica um microcosmo
cujos participantes, em simultâneas relações de concorrência e solidariedade entre si, produzem uma arte social.
Assim, e especialmente a partir de Napoleão III, teríamos
4
os defensores da idéia de que a elaboração artística deveria
expressar os conflitos presentes na sociedade. Em contraposição a este pensamento, os defensores da arte pela arte,
secundarizavam os conteúdos abordados em nome de uma
pesquisa sempre renovada da linguagem, desconsiderando
que a estrutura do espaço social representado nos romances
é também a estrutura do espaço social no qual seu próprio
autor estava situado (Bourdieu:2004).
Para Bourdieu, o campo literário é um espaço social que
reúne diferentes grupos, que mantêm relações determinadas
entre si e também com o campo do poder. “Este universo
aparentemente anárquico e de bom grado libertário [...] é
o lugar de uma espécie de balé bem ordenado no qual os
indivíduos e os grupos desenham suas figuras” (Bourdieu,
2002, p. 133). De acordo com o autor (2002, 2004), no campo literário, o estabelecimento e manutenção dos espaços
de poder estão condicionados a um campo de forças que
subordina o artista a critérios socialmente/culturalmente
definidos e faz com que sua obra seja aceita. A primeira
aceitação é, à primeira vista, aquela realizada entre os componentes do campo, ou seja, a obra literária terá que ser
avalizada por alguém – um autor – que já tenha ultrapassado o campo literário e tenha sido reconhecido em outros
campos – econômico, cultural etc.
Bourdieu considera que o princípio de consagração
(illusio) está no jogo e no valor das apostas que permitem
aos artistas já consagrados constituírem certos produtos
pelo milagre da assinatura (griffe) e essa assinatura serve
com moeda fiduciária para as relações de troca entre os
participantes do campo.
É interessante notar que esse poder de sacralização – e,
consequentemente, de dessacralização – é, na verdade, um
jogo de espelhos, uma vez que quem consagra é também
consagrado no mesmo ato e que esse ato é coletivo. Nas
palavras do autor,
Para dar uma idéia do trabalho coletivo de que ela [a
consagração] é o produto, seria preciso reconstituir a
circulação dos incontáveis autos de crédito que se trocam
entre os agentes envolvidos no campo artístico, entre os
5
artistas, evidentemente com as exposições de grupo ou
os prefácios pelos quais os autores consagrados consagram os mais jovens que os consagram em troca
como mestres ou chefes de escola, entre os artistas
e os mecenas ou os colecionadores, os artistas e os
críticos, e, em particular, os críticos de vanguarda
que se consagram obtendo a consagração dos artistas
que defendem ou operando redescobertas ou reavaliações de artistas menores nos quais empenham e põe
à prova seu poder de consagração e assim por diante.
(2002:260, grifo nosso)3
Até meados do séc. XIX, a consagração do escritor passava, necessariamente, pelas Academias de Letras. No Brasil,
as Academias, forjadas aos moldes franceses, arrogavam-se
o direito de escolher aqueles que podiam ou não participar
do grupo, baseadas em critérios como o de adequação ao
gosto pessoal dos acadêmicos, à escola literária ou ao projeto político governamental do momento. Por vezes, critérios “inconfessáveis” determinavam a aceitação de alguns
membros, como o pertencimento a famílias “tradicionais”,
ou sua proximidade a elas, o “você sabe com quem está
falando”, discutido por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil (2004) e por Roberto DaMatta em Carnavais,
malandros e heróis (1997). Inspirado nos estudos do francês Aléxis de Tocqueville, DaMatta traça um panorama do
Brasil que oscila entre a tendência meritocrática proposta
pela revolução francesa e aquela que, cristalizada no tempo,
busca ainda o reconhecimento no nome de família, o que
gera expressões como “paulista quatrocentão”, “carioca da
gema”, “cuiabano de chapa e cruz”, entre outras.
Para DaMatta, a expressão “Você sabe com quem
está falando?” serve para lembrar o lugar de quem fala
em situações de separação social. Esse recurso “é a negação do ‘jeitinho’, da ‘cordialidade’ e da ‘malandragem’”
(DaMatta,1997.:140), uma forma de fazer com que a pessoa
que fugiu a “regra” retome o “seu lugar”.
3 Caso específico desse jogo é o artigo que Silva Freire publicou em um jornal de
Cuiabá acerca do trabalho de Ricardo Guilherme Dicke, naquele momento, já com
visibilidade nacional como 4º lugar no Prêmio Walmap.
6
O uso dessa expressão também atingiu a literatura e fez
com que pessoas que são mais “escreventes“ do que “escritores” ocupassem lugar nas Academias, em detrimento de
outros, com menos “nome”; não importando a qualidade
da obra, mas a assinatura (griffe) que ela carrega. É o caso
de alguns políticos, autores em geral de um livro apenas,
ou no muito, de dois ou três, para os quais não se utiliza o
valor literário como critério de legitimação e sim seu lugar
na pirâmide social.
Não obstante a força dessas instâncias “oficiais” de
consagração, cabe lembrar que, em alguns casos, o público reconhece como autor, entenda-se, “bom autor”, um
nome que nem sempre concorreria à Academia. Incluem-se
neste caso autores de best sellers cujos nomes costumam
ser questionados em universidades, por exemplo, mas que
granjearam posição no campo literário pela extensão do público que atingiram; entrando, neste caso, o mercado como
instância legitimadora. Assim, como afirma Bourdieu,
(...) a intensidade da luta [pela legitimação] varia, sem
dúvida, segundo os gêneros, e segundo a raridade da
competência específica que exigem em cada época, ou
seja, segundo a probabilidade da “concorrência desleal”
ou do “exercício ilegal” (o que certamente explica que o
campo intelectual, incessantemente sob ameaça da heteronomia e dos produtores heterônomos, seja um dos
lugares privilegiados para apreender a lógica de lutas
que obsedam todos os campos). (2002:244)
Quando se trata de analisar a formação do campo literário em Mato Grosso, há que se considerar algumas peculiaridades que nos colocam numa posição de desvantagem
em relação aos circuitos de produção e comercialização de
livros, o que diminui tanto o interesse quanto as condições
efetivas para alguém se tornar um escritor. Este processo
também altera a forma como o poder se manifesta através
da literatura, fazendo com que haja, muitas vezes, uma
inversão: o autor é antes conhecido por sua profissão,
seu lugar na pirâmide social (muitas vezes advindo de seu
nome de família) ou uma conjunção desses e outros fatores,
igualmente sociais, do que por sua produção artística. Ou
7
seja, o que lhe confere poder é o lugar de onde fala mais do
que o que fala.
Segundo Foucault, o poder não é uma coisa, algo que
se toma ou se dá, se ganha ou se perde. É uma relação de
forças. Circula em rede e perpassa todos os indivíduos.
Neste sentido não existe o “fora” do poder, mas um jogo de
forças, presente em lutas transversais em toda sociedade
engendradas e/ ou movidas pelo saber. Onde há saber, há
poder. Mas é importante acrescentar que onde há poder,
há resistência. Se, por um lado, novos saberes, novas tecnologias ampliam e aprofundam os poderes na sociedade
disciplinar em que vivemos, por outro, sujeitos cada vez
mais conscientes lutam contra as forças que tentam reduzilos a objetos, contra toda heteronomia, contra as múltiplas
formas de dominação sempre criativas e renovadas. A literatura tem, então, poder, mas este está subordinado às
condições sociais em que é produzida. Essa conjuntura cria,
entre outras coisas, o que se convencionou chamar de “regionalismo”; este, ainda segundo Bourdieu, carrega propriedades simbólicas que, arroladas por etnólogos e sociólogos
objetivistas, funcionam como sinais, emblemas ou estigmas
que podem ser utilizados estrategicamente em função dos
interesses materiais e simbólicos do seu portador.
Para Antonio Candido, o regionalismo foi uma etapa
necessária para a expressão literária. Embora “os seus produtos tenham envelhecido” (2003:159), Candido pondera
que apenas em países com absoluto predomínio da cultura
urbana, em seu sentido de metrópole, essa literatura se
tenha tornado anacrônica. Em países como o Brasil, cuja
idéia de “nação” ainda está em construção4, o regionalismo
é uma forma de subsistência e resistência da literatura, e
não necessariamente uma forma de alienação.
As diversas formas de resistência se articulam em rede
nas lutas pela autodeterminação, pela conquista efetiva da
democracia, nas denúncias contra o preconceito, nas revoltas contra toda forma de discriminação, exclusão e violência,
na preocupação com a ecologia e na reflexão crítica sobre
4 Veja-se o número de informes publicitários que tem sido publicado na mídia, cujo
formato é uma revisitação da frase, “O melhor do Brasil é o brasileiro”, de Câmara
Cascudo e que algumas regiões adaptaram à sua própria produção artística.
8
os limites éticos das conquistas científicas e tecnológicas.
Essas lutas e seus reflexos percorrem, permeiam a criação
artística e inserem a literatura no campo de embate pela
legitimação de valores como o “saber regional” e a “cor local”, importantes para a autonomia literária de uma região.
A professora Maria Adélia Menegazzo (2004:17) pensa o
regionalismo como “o local da cultura e a cultura local ao
mesmo tempo. Isto é, não só se apresenta como objeto de
cultura, mas também representa a cultura de determinado
objeto”. Ou seja, no regionalismo, em alguns casos, além
das marcas de fala e “cor local”, se podem encontrar as lutas
políticas e sociais que permeiam a vida cultural de determinado lugar. E nisso concorda Bourdieu (2002) para quem
retratar, recriar, recompor, redimensionar a “realidade regional” coloca em debate as relações de poder assinaladas
como mecanismos pelos quais os dominados aceitam ou
resistem à dominação em todas as suas formas.
Em parte, isso ocorre porque o poder político percorre e
mantém a estrutura das relações em outras instâncias de
poder. Segundo Raymundo Faoro (2001) e Sérgio Buarque
de Holanda (2004) a formação política de Portugal redundou
no formato de colonização que tivemos, o que se reflete até
hoje nas relações de poder, em geral construídas a partir
do campo econômico. Embora não seja apenas em Mato
Grosso que isto se dê, é interessante notar o quanto aqui,
o regionalismo ainda molda nossa forma de ver e pensar
a cultura, em seu sentido amplo, e atua, especificamente
neste trabalho, na construção do campo literário.
A fim de exemplificar o que foi dito acima, passaremos
a comentar a produção de quatro dos autores mais representativos da literatura local, no que tange à relação entre
seu lugar social e sua legitimação no campo literário. São
eles: Dom Aquino, Silva Freire, Ricardo Guilherme Dicke e
Ivens Cuiabano Scaff.
Por tratar-se de um campo ainda incipiente, a literatura de/produzida em Mato Grosso lança mão do discurso
regionalista como parte importante de seu processo de
legitimação.
Dos autores escolhidos, exceto Ricardo Dicke, todos
apresentam em comum o fato de terem ocupado/ocuparem
9
lugar de destaque na vida social e política local. D. Aquino
foi arcebispo e presidente do Estado, Silva Freire foi considerado o melhor advogado criminalista de sua época, além
de atuar como político e professor e Ivens Scaff é médico de
reconhecida importância, especialmente por seu trabalho
com os portadores de Aids. Nos três, a percepção do espaço
social como espaço de poder alicerça sua produção escrita.
A despeito da diferença de perspectiva, o fato é que, a nosso
ver, todos eles se utilizam do expediente regionalista, conscientes de que, no caso de Mato Grosso, esta é a forma primária mais eficaz para sua legitimação no campo literário.
D. Aquino foi, durante um longo tempo, o maior nome
de referência em literatura no Estado. Nele percebe-se que
a erudição é mais que um processo de construção: é a fala
do artista. Reconhecido por todos os estudiosos da literatura
mato-grossense como exímio orador, a matéria verbal que
constitui sua obra romântico-parnasiana, como a entende
Hilda Magalhães (2001), lembra em alguma dimensão o
Vaso grego de Vicente de Carvalho em que se misturam
traços d’ O Guarani, de José de Alencar. Investido da autoridade que a Igreja lhe outorgou e aliada a esta aquela que o
Estado o fez, D. Aquino foi um homem de seu tempo. Limitado – ou acobertado? – por sua função política e religiosa,
o 2º arcebispo de Cuiabá fez-se conhecer por sua luta pela
constituição de um Estado forte e soberano.
Transformando Mato Grosso em um micro-cosmo das
discussões nacionais acerca da construção identitária, D.
Aquino trabalhou a imagem do Estado optando pela exaltação de sua beleza geográfica ainda selvagem e sua riqueza, ainda inexplorada. Nada em seu discurso era gratuito.
Quando no púlpito, trazia aos ouvintes o senso comum
embutido na palavra “sermão”: oratória destinada à correção
de enganos e erros. Sabia por que lutava e fazia questão que
outros soubessem disso também. Sua expressão, escrita ou
falada, tinha um claro propósito civilizatório. O anacronismo
em sua obra, foi, na opinião de Hilda Magalhães, benéfico
para o Estado e para a literatura regional.
[Entretanto] o fato de a literatura de Mato Grosso se manter anacrônica durante toda a primeira metade do século
não implica em que esse produto seja necessariamente
10
ruim. Dentro do estilo a que ela se propõe, consegue
se distinguir e se afirmar no cenário literário matogrossense, não apenas pelo fato de serem as primeiras
manifestações literárias com uma identidade regional,
mas também pela sua qualidade. Assim, a poesia de D.
Aquino é anacrônica no sentido de que se operacionaliza,
em plenos anos 1920 e 1930, uma estética caudatária
do Parnasianismo e do Romantismo. Mas, dentro do
estilo proposto, afirma-se como uma obra importante na
literatura de Mato Grosso. (Magalhães, 2001:311).
A questão operacional, creio, pode ser vista sob outra
ótica: a da necessidade política que havia na época de
valorizar a terra e reafirmar a identidade mato-grossense.
É interessante notar que o mesmo homem que falava em
preservação de valores morais e cultuava o poema parnasiano, destacava-se por sua visão de futuro, como nos lembra
Romancini (2005:44)
Tendo em vista preparar as ruas para o tráfego de automóveis, que começavam a chegar a Cuiabá, o presidente
do Estado, D. Aquino Correa, providenciou o calçamento
das principais ruas de Cuiabá, em 1919: XV de novembro, Av. D. Aquino, Mundéu, Praça da República,
Joaquim Murtinho e Barão de Melgaço.
Esse aparente paradoxo pode ser explicado pelo que
diz Manoel de Cavalcanti Proença, em artigo publicado por
Carlos Gomes de Carvalho no segundo volume do Panorama da literatura e da cultura em Mato Grosso, havia dois
aspectos principais na poesia de Mato Grosso: a epopéia –
de D. Aquino – e o panteísmo. Cavalcanti Proença vê como
“inevitável” a escolha por temas telúricos.
Despertando no momento, nas letras do Estado o
primeiro surto de uma literatura independente em
que se busca retratar no ambiente natal o homem
mato-grossense, era força que nos precursores do
movimento predominasse o amor da tradição e da
natureza. E a míngua de modelos que orientassem
nos vates uma cristalização poética por si capaz de
dar feição típica ao versejar nativo, os vanguardistas cuja formação literária se fez no deletrear de
11
livros completamente alheios aos motivos matogrossenses, teriam que adaptar-se, forçando um
pouco a sinceridade. Daí resulta a poesia eminentemente objetiva que caracteriza os poetas da minha terra, especificada na história e na paisagem
(Carvalho, 2004:213):
É fácil reconhecer D. Aquino nesse discurso. E, guardadas as devidas proporções temporais, podemos encontrar
Silva Freire e Ivens Scaff aí também.
Em Silva Freire, o saudosismo entrelaça-se ao experimentalismo. O poeta é um artífice das palavras, que monta,
desmonta e remonta fazendo do poema um laboratório.
Segundo Neto (2001):
Sabemos que várias restrições são feitas, pelos menos
avisados, a respeito da poesia de Silva Freire. Tudo
deriva apenas de um fato: despreparo para receber a
mensagem...
Mas, Magalhães (2002:162) e Leite (2005:249-250) lembram que Rubens de Mendonça, que não pode ser considerado um leitor despreparado, ingênuo ou mentalmente
preguiçoso, disse não compreender o poema feito por Freire
em homenagem ao nascimento de Rondon, embora o poema tenha sido elogiado por Gervásio Leite e João Antonio
Neto, dois nomes também respeitados no campo literário
mato-grossense.
Silva Freire produziu sua poesia em plena efervescência
do movimento concretista. Entretanto, em Mato Grosso,
um pouco pelas condições de tráfego entre Cuiabá e as
outras capitais, um pouco em nome da preservação da
cultura local, o belo, em termos literários, ainda baseava-se
no romantismo e na belle époque. De difícil leitura, a obra
freiriana situa-se entre aquelas que, malgrado sua beleza
intrínseca, são pouco estudadas – embora este não seja o
único e, acreditamos, nem mesmo o mais forte motivo para
o silenciamento das Academias acerca de sua obra, uma
vez que Ricardo Dicke não pode ser considerado também
um autor de fácil compreensão e, no entanto, tem reconhecimento nacional.
12
A figura de Dicke é cheia de contradições e desafios:
avesso a entrevistas, é, no entanto, nelas que podemos
encontrar um pouco do homem por trás do escritor. Há
artigos sobre ele em jornais de circulação nacional – “O Estado de São Paulo”, “Folha de São Paulo”, “O Globo”, entre
outros – que garantem a manutenção de seu nome entre os
grandes da literatura contemporânea. Em Cuiabá, a UFMT
tem contribuído para o reconhecimento mato-grossense do
autor5, malgrado sua pouca propensão à ribalta.
O discurso curto e algo seco nas entrevistas não dão
conta de sua erudição, fato mais claramente observável em
sua obra. Alguns críticos alegam que há pouca verossimilhança no que tange ao tratamento da linguagem na fala das
personagens com pouca instrução formal, como é o caso da
maior parte dos seus tipos, outros, porém, entendem que o
pensar filosoficamente sobre a vida e o cotidiano não seja
prerrogativa dos que tem instrução formal, mas de quem
vive cada dia como único. Sua linguagem é erudita, com
reflexões de cunho existencial que, embora pertençam ao
universo das coisas de todos nós – nascer, crescer, morrer – são cunhadas de forma peculiar, tornando-se pouco
acessível, na maior parte das vezes.
Em Dicke podemos encontrar um regionalismo menos
lúdico e mais calcado no momento político e social que Mato
Grosso vivia ao final da década de 60 – quando escreveu
Deus de Caim – e subsiste ainda hoje, com as constantes
dissensões acerca do pertencimento da terra e à terra.
Quanto a Scaff, tanto seus poemas quanto seus contos
utilizam-se da história e da paisagem mato-grossenses de
forma lúdica. Seguindo a vertente do regionalismo ufanista,
Scaff propõe a leitura da cultura local como particularidade
deste espaço, sem entrar no mérito de isso ser “bom” ou
“mau”. Sua obra não pode ser considerada como unidade
homogênea do pensamento mato-grossense, mas revela-se
e revela seu autor na medida em que
5 São estudiosos do autor em Mato Grosso, até o momento, Juliano Moreno, Gilvone
Miguel, e Everton de Almeida. Alguns outros pesquisadores, como Hilda Magalhães,
Mário Cezar Leite, Carlos Gomes e nós, debruçamo-nos apenas sobre alguns aspectos
de sua obra.
13
Admite-se que deve haver um nível (tão profundo quanto
é preciso imaginar) no qual a obra se revela, em todos
os seus fragmentos, mesmo os mais minúsculos e os
menos essenciais, como a expressão do pensamento, ou
da experiência, ou da imaginação, ou do inconsciente
do autor, ou ainda das determinações históricas a que
estava preso (Foucault, 2004)
Podemos relacionar o que diz Foucault (2002) ao que
assevera Bourdieu (2003), para quem há uma lógica interna nos objetos culturais em seu espaço relacional com os
campos que produzem obras culturais. As determinações
externas só têm força na intermediação das transformações
específicas na estrutura do campo resultante.
O grau de autonomia do campo é variável e proporcional
ao capital simbólico acumulado através de gerações. Dado
que o poder simbólico opõe-se a todas as formas de poder
heterônomo conferido pelos detentores do capital cultural,
a submissão aos gêneros ditados por quaisquer mudanças
– sociais, políticas ou de concepções artísticas – nunca é
tão grande quanto os produtores mais conservadores fazem
crer. (Bourdieu, 2002:253)
As lutas internas, especialmente as que opõem os defensores da “arte pura” aos defensores da “arte burguesa” ou
“comercial” e levam os primeiros a recusar aos segundos
o próprio nome de escritor, tomam inevitavelmente a forma de conflitos de definição, no sentido próprio do termo:
cada um visa impor os limites do campo mais favoráveis
aos seus interesses ou, o que dá no mesmo, a definição
das condições da vinculação verdadeira ao campo (ou dos
títulos que dão direito à condição de escritor, de artista
ou de cientista) que é mais apropriada para o justificar
por existir como existe. (grifos do autor)
Essas lutas internas, capazes de definir mais restrita
e estritamente o que é um escritor, na visão daqueles que
detém o poder de dar-lhes existência, não é outro, ainda
segundo Bourdieu (idem, 253), senão “o ponto de vista fundador, pelo qual o campo se constitui como tal e que, a esse
título, define o direito de entrada no campo (...)”. Em Mato
Grosso, ao que parece, o conceito acerca de quem e como é
14
escritor ainda está em vias de construção, ambiguamente
oscilando entre o “você sabe com quem está falando?” e a
meritocracia.
Ora, ainda não há um público que se possa realmente
chamar de “leitor”, até porque as condições de produção e
reprodução do livro ainda são precárias. Temos apenas duas
livrarias que podem realmente responder por esse nome,
e quatro editoras especializadas em literatura. Os espaços
para divulgação dos trabalhos são igualmente poucos, se
considerada a população da chamada “grande Cuiabá”, os
municípios de Cuiabá e Várzea Grande, e compreendem um
centro cultural, os espaços das Universidades e Faculdades,
e os três shoppings da capital.
Algumas iniciativas como a Literamérica (Feira sulamericana de literatura), o concurso da livraria Adeptus,
alguns concursos literários instituídos por Prefeituras e o
estabelecimento dos Fóruns Culturais no Estado, têm dado
impulso à literatura. Os cursos de Letras deixaram de ser
o único espaço para se discutir literatura em Mato Grosso;
isso aumenta o público e, em certa medida, a qualidade da
produção literária.
Quanto ao escritor, vimos que sua maneira particular
de se relacionar com a sociedade e sua época determinam
seu espaço no campo literário. Cada um dos autores mencionados neste trabalho tratou da questão “o que, como e
para quem escrever”, de acordo com sua posição social, seu
projeto de construção identitária coletivo e/ou individual
e as condições históricas de seu espaço de escrita. Assim
pensado, D. Aquino não é anacrônico: é fruto e reflexo de
sua época, profissão e condições histórico-sociais e culturais mato-grossenses entre o final da década de 1910 e a
de 1950. Ele foi o que devia e podia ser, naquele momento.
Analisar sua obra sem levar em conta o contexto em que
foi produzida, tira-lhe uma importante função, social e
literária.
De modo semelhante pode-se pensar a obra de Silva
Freire, um modernista em busca da preservação de valores
culturais, como própria à construção identitária da época.
Essa identidade estava ligada ao reconhecimento externo
15
e o que ele, como poeta e político, buscava era fazer com
que a literatura de Mato Grosso acompanhasse os padrões
considerados “modernos” para fazer-nos reconhecer para
além de nossas fronteiras geo-políticas.
Ironicamente, quem consegue esse reconhecimento em
seu nome e em nome do Estado é Ricardo Dicke, o pintor
que decide mudar o rumo de sua arte e escrever. Contrariando a tendência da época, porém, sua prosa não exalta a
grandeza do Estado, antes problematiza e põe a nu questões
envolvendo a população que vive à margem da sociedade,
pessoas para as quais a cidadania só existe como palavra
no dicionário.
Atualmente, dos autores comentados aqui, o mais conhecido pelo público é Ivens Scaff, um reconhecimento que
este credita à sua atuação como médico, mais que aos seus
textos, que ele acredita não serem lidos. De todos, também,
é o menos estudado pelas Universidades, o que pode nos
levar a conclusão de que nós, das Academias, andamos em
dissonância com os gostos populares, uma vez que, via de
regra, elegemos como representantes do “saber escrever
literatura” pessoas que o leitor comum em geral não elege
como “literatos”.
Referências
BARTHES, R. Escritores e escreventes. São Paulo: Perspectiva,
1970.
BOURDIEU, P. As regras da arte: gênese e estrutura do campo
literário. São Paulo: Cia. das letras, 2002.
______. O poder simbólico. São Paulo: Cia. das letras, 2004.
CANDIDO, A. A educação pela noite outros ensaios. 3ª. ed. São
Paulo: Ática, 2003.
______. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história
literária. 8ª. ed. São Paulo: T. A. Queiroz, 2000.
CARVALHO, C. G. Panorama da literatura e cultura de Mato
Grosso. Vol. II. Cuiabá: Verdepantanal, 2004.
_____. A poesia em Mato Grosso. Cuiabá: Verdepantanal, 2003.
16
DaMATTA, R. Carnavais, malandros e heróis - Para uma
sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.
DICKE, R. G. Cerimônias do esquecimento. Cuiabá: EdUFMT,
1995.
FAORO, R. Os donos do poder: a formação do patronato
político brasileiro. São Paulo: Globo, 2001.
FOUCAULT, M. O que é um autor? 4ª. ed. Portugal: Passagens,
2002.
_____. A arqueologia do saber. 7ª. ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2004.
_____. Les mots et les choses: archéologie de la sciences
humaines. Paris: Gallimart, 1966.
HOLANDA, S. B. de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia
das Letras, 2004.
LEITE, M. C. S. (org.). Mapas da mina: estudos da literatura
em Mato Grosso. Cuiabá: Cathedral, 2005.
MAGALHÃES, H. G. D. Relações de poder na literatura da
Amazônia legal. Cuiabá: EdUFMT, 2002.
_____. História da literatura de Mato Grosso: século XX. Cuiabá:
Unicen, 2001.
MENEGAZZO, M. A. Representações literárias de mato grosso:
o europeu, o paraguaio, o brasileiro e o mato-grossense.
Campo Grande, MS: EdUFMS, 2004.
NETO, J. A. D. Aquino: o orador; O modernismo em Mato
Grosso: reencontro com Silva Freire. Cuiabá: Academia Matogrossense de Letras, 2001.
POSSENTI, S. Os limites do discurso. Curitiba: Criar, 2002.
_____. Indícios de autoria. São Paulo: IEL-UNICAMP, 2000.
POUND, E. Abc da literatura. São Paulo: Cultrix, 2003.
ROMANCINI, S. R. Cuiabá: paisagens e espaços da memória.
Cuiabá: Cathedral, 2005. (Coleção Tibanaré, vol. 6).
Recebido em 04/11/2009
Aceito em 03/12/2009
17
DIÁLOGO ENTRE JORNALISMO
E LITERATURA NA VIDA E OBRA DE
JOÃO ANTÔNIO
Carlos Alberto Farias de Azevedo Filho1
Resumo: O presente artigo investiga as relações entre literatura e jornalismo na obra do escritor contemporâneo
brasileiro João Antônio (1937-1996) desde sua estréia nos
anos 60 até o final da década de 90 do século XX.
Palavras Chave: João Antônio, Jornalismo, Literatura.
DIALOGUE BETWEEN JOURNALISM AND LITERATURE
IN THE LIFE AND WORK OF JOÃO ANTÔNIO
Abstract: The present article examines the relations between
literature and journalism in work of contemporary brazilian
writer João Antônio (1937-1996), since his début in 60´s
years until the end of 90´s decade of 20 century.
Keywords: João Antônio, Journalism, Literature.
Firmes, os dedos impulsionam o mecanismo. A fita
rubro-negra obedece e pela força da letra vai dançando,
batucando, tingindo o papel. Estranha seqüência que vai
povoando frases e parágrafos e laudas. Sentimento de
pressa, urgência. Fumaça de cigarro, barulho, confusão,
papéis amassados. O jovem escritor João Antônio sabia
muito bem que o jornal, com suas rotativas, é uma máquina
de empregar muitos talentos literários. No entanto, como
ele mesmo dizia, num país ágrafo como o Brasil, o jornal
cumpre dupla função: servir de trabalho para literatos e
como veículo de divulgação de seus escritos. E é através
das páginas do jornal que o iniciante João Antônio sai do
anonimato e publica, no final da década de 50, “Frio”, um
dos seus primeiros contos.
1 Carlos Alberto Farias de Azevêdo Filho é jornalista profissional e professor do Curso
de Comunicação Social (Jornalismo) da UEPB. Doutor em Literatura pela UNESP/
Assis e mestre em Literatura e Vida Social pela UFPB. Líder do Grupo de Pesquisa
em Jornalismo e Literatura (GPJL) do CNPq. Autor do livro “João Antônio, repórter de
Realidade” (João Pessoa, Idéia, 2002). Endereço eletrônico: [email protected]
POLIFONIA
CUIABÁ
EDUFMT
Nº 20
P. 19-42
2009
issn 0104-687x
Desde muito cedo, como apontamos, a carreira literária de João Antônio está ligada ao jornalismo. Os veículos
jornal e revista servem ao ficcionista como suporte para a
publicação de seus contos e também como incentivadores
de sua produção, já que tais periódicos (A Cigarra,Tribuna
da Imprensa e Última Hora) promoviam seus concursos
literários, os quais ele ganhou com contos como “Meninão
do Caixote” e “Natal na cafua”.
De ganhador de concursos a “Publicitário do
Ano”
Uma das metas de João Antônio era viver exclusivamente de sua literatura. Em diversos momentos de sua vida,
ele expressou a preocupação com as condições materiais
para o exercício da escrita no Brasil. Ele afirma em Ribeiro
Neto(1981 p.7) que a profissão deveria ser mais respeitada
no país. Como observa Lacerda (2006 p.138), com base no
trabalho da tese defendido em Sociologia na USP por Antônio M. C. Braga, Profissão Escritor: escritores, trajetória
social, indústria cultural, campo e ação literária no Brasil
dos anos 70, “João Antônio está longe de ter sido o único
escritor de sua geração a se colocar no mercado de trabalho como ‘profissional do texto’ já que quase nenhum deles
[os escritores da geração de João Antônio] sobrevivesse
exclusivamente da literatura, em sua quase totalidade eles
encontravam sustento na produção de textos jornalísticos,
publicitários, roteiros televisivos, radiofônicos etc.” Ainda
conforme o biógrafo Rodrigo Lacerda, João Antônio vai ter
uma passagem rápida pela publicidade da Agência Pettinati
de publicidade, na década de 60.
João Antônio vai expressar literariamente seu descontentamento com o mundo da publicidade anos depois, num
texto intitulado “Publicitário do Ano”, publicado no livro
Abraçado ao meu Rancor, em meados da década de 80, no
qual o escritor mostra o descompasso existente entre o que
o publicitário afirma nas suas peças redacionais e o que ele
realmente pensa e faz.
20
Jornalismo como verdade e salvação
Como não conseguiu sobreviver exclusivamente de sua
literatura, a presença de João Antônio no jornalismo vai
ser uma constante. A partir da transformação do escritor
em jornalista, ele vai exercer funções de repórter, editor,
cronista, articulista, resenhista etc. A militância do escritor
no espaço público da imprensa brasileira pode ser sentida
no simples contato com todo o seu acervo que se encontra
cedido à Universidade Estadual Paulista (UNESP), em Assis.
A volumosa produção jornalística de e sobre João Antônio
vem recentemente sendo catalogada e estudada.
Grosso modo, podemos dividir a atuação de João Antônio no jornalismo impresso brasileiro em dois conjuntos: a
grande imprensa (Jornal do Brasil, jornal Última Hora, O Estado de São Paulo, Tribuna da Imprensa , revistas Realidade,
Cláudia, Manchete e TV Globo etc.) e a imprensa alternativa,
contracultural ou nanica (expressão criada pelo próprio
escritor para agrupar “uma imprensa viva que questiona,
que duvida, que enfrenta, vasculha, alerta, remexe, depõe,
derruba, cheira a alguma coisa e fede” (apud CHINEM, 2004
p.68), como Pasquim, Bondinho, Ex-, Opinião, Movimento e
CooJornal entre outros.
A primeira fase de João Antônio na imprensa brasileira
corresponde a um segundo momento de profissionalização
do escritor-jornalista, que saído da publicação de Malagueta,
Perus e Bacanaço, em 1963, tem o primeiro livro como senha
para adentrar no campo literário e jornalístico, sendo saudado como grande revelação no conto nacional, ganhando
inclusive vários prêmios literários.
Um homem entre duas cidades. Dividido entre São
Paulo e Rio de Janeiro, João Antônio vai migrar para a segunda, indo trabalhar em 1964 no Jornal do Brasil como
repórter especial. Esse vai ser um dos primeiros trabalhos
jornalísticos do escritor que irá encontrar no jornalismo, e
não na publicidade, um ganha-pão e uma profissão que o
acompanhará até o final da vida.
21
Repórter, reportagem: Realidade
O nascimento da grande reportagem como gênero jornalístico no Brasil é atribuído ao pioneirismo de João do
Rio (pseudônimo do escritor Paulo Barreto) que na virada
do século 19 ousou sair do confortável gabinete e ganhar
o espaço das ruas. O apogeu da reportagem como gênero
jornalístico no Brasil se dá sessenta anos depois de João do
Rio com uma experiência editorial que terá o sintomático
nome de Realidade, criada em 1966, pela editora Abril. No
livro Jornalismo de Revista, Marília Scalzo (2003) vai mostrar
como a Realidade marcou a imprensa brasileira.
Em Revista Realidade-tempo da reportagem na imprensa
brasileira, o professor José Salvador Faro (1999) faz um extenso levantamento sobre o impacto da revista no contexto
sócio-político e cultural dos anos 60 no Brasil, destacando o
papel de renovador do periódico. Criada em plena época de
revolução da sexualidade, a revista foi um sucesso editorial
por trazer em suas páginas a reportagem social, discutindo
criticamente a moral e os costumes. Faro não estabelece
uma correlação direta entre o gênero reportagem praticado
na revista com os pressupostos do chamado New Journalism,
corrente do chamado jornalismo literário, surgida no fim
dos anos 50 e que se desenvolveu com bastante força nos
Estados Unidos. No entanto, ele admite que os textos escritos
pelos jornalistas de Realidade se distanciam fortemente do
jornalismo tradicional praticado no país naquela época.
Os pressupostos metodológicos do chamado Novo Jornalismo (New Journalism) foram sintetizados pelo escritor
e jornalista Tom Wolfe (2005) numa antologia lançada originalmente em 1977, com reportagens de Rex Reed, Terry
Southern, Norman Mailer, Nicholas Tomalin, Bárbara L.
Goldsmith, Joe McGinnis, Robert Christgau, John Gregory
Dunne e do próprio Tom Wolfe. Surgido na primeira metade da década de 60 o New Journalism, segundo Wolfe,
convulsionou a literatura e o jornalismo dos EUA, por seus
métodos pouco tradicionais e também pela nova maneira
de se encarar as transformações que estavam em curso na
sociedade americana. Na opinião dele, os romancistas norteamericanos se afastaram da realidade e não conseguiam
22
transpor para a ficção temas que pipocavam na sociedade.
Assim, o Novo Jornalismo retoma a tradição literária realista, renovando não só o jornalismo como também a literatura.
Alguns procedimentos são resumidos por Wolfe em quatro
itens que o jornalista tem de observar na hora de captar
e de escrever suas reportagens, são eles: 1) narração cena
por cena 2) reprodução dos diálogos 3) relato em terceira
pessoa 4) relato das ações do dia-a-dia.
Como antecedente direto do Novo Jornalismo, Wolfe
elenca a reportagem Hiroshima de John Hersey, que foi
publicada em 1946, ocupando um número inteiro da The
New Yorker. Partindo do cotidiano de pessoas afetadas pela
radiação da bomba H, Hersey constrói perfis que se articulam formando um caleidoscópio humano dos desastres da
destruição atômica. Mas ao romancista Truman Capote está
reservado o lugar de pioneiro do Novo Jornalismo e criador
de um novo gênero, o híbrido romance-reportagem, com A
sangue frio, publicado em livro em 1966.
Considerada um marco na história da imprensa brasileira, Realidade também foi referência para o Novo Jornalismo
brasileiro e também na vida e carreira de João Antônio. Lá,
ele pode fazer reportagens que marcaram época, muitas
vezes fundindo jornalismo e literatura. A estréia dele se
deu em outubro de 1967 com uma reportagem sobre sinuca, sob o título “Este homem não Brinca em Serviço”, com
fotos de Geraldo Mori e revelando as figuras marginais que
se referem diretamente ao universo do seu livro de estréia,
Malagueta, Perus e Bacanaço, publicado em 1963.
A atuação de João Antônio em Realidade será destacada
também com “Um dia no Cais”, um texto que vai marcar
no Brasil o Novo Jornalismo (New Journalism), o primeiro
conto-reportagem do autor fundindo literatura e jornalismo
numa linguagem híbrida. O que o jornalista João Antônio
fez ao publicar o primeiro conto-reportagem de Realidade
estava sintonizado numa tradição de jornalismo literário
que se expandia no mundo, principalmente nos Estados
Unidos com autores como Norman Mailer, Truman Capote,
Gay Telesse entre outros.
Em 1968, João Antônio, também com a colaboração de
outros jornalistas, publica a reportagem “A morte”, aprovei23
tada anos depois no livro Casa de loucos, de 1976. No ano
de 1968, o jornalista cede a sua paixão pessoal pela Música
Popular Brasileira (MPB) e entrevista a maior intérprete viva
de Noel Rosa, a cantora Aracy de Almeida. A entrevista de
Aracy é transformada num perfil jornalístico, ou seja, numa
reportagem descritiva de pessoa. Curiosamente, o último
livro publicado pelo escritor vai levar o título de Dama do
Encantado (1996). Ainda em 1968, o jornalista publicará
mais três textos, todos relacionados com o mesmo universo
temático dos contos: jogos e marginalidade. Assim, João
Antônio publica as reportagens “É uma revolução” (sobre a
rivalidade entre Galo e Raposa no futebol de Minas Gerais),
“O pequeno prêmio” (na qual ele decifra a corrida de trote
com seus freqüentadores interessantíssimos) e “Quem é o
dedo-duro” sobre os colaboradores da polícia, reportagem
a qual ele vai reescrever em forma de conto e publicar no
livro Dedo-Duro, de 1982.
O interessante na experiência jornalística da revista
Realidade é que o escritor João Antônio vai aproveitar em
livros as reportagens publicadas na imprensa e a maioria
delas, textualmente modificada ou não, vai figurar em Malhação de Judas Carioca (1975) e Casa de Loucos (1976).
A chamada transmigração dos textos e motivos para o
universo ficcional, e também seu efeito reverso, vai nos
mostrar o sentido híbrido da prática jornalístico-literária
de um dos principais nomes da literatura brasileira, nos
chamando a atenção para o fato de que o trânsito entre
indústria cultural e literatura não é tão simples como se
pensa, revelando mecanismos textuais e dinâmicas entre
os gêneros midiáticos e literários.
No estudo de BELLUCCO (2006 p.53) as relações entre
João Antônio e a revista Realidade durante o curto período
de 1966 a 1968, já preparam o escritor para produzir “um
conjunto de expressões inovadoras no âmbito do jornalismo
que já foi reconhecida como uma experiência importante
para a radicalização posterior dos nanicos”. Para ele, Casa
de loucos, “esse texto de 1971, o último de Realidade, marca
uma transição. João Antônio se engaja na luta política dos
jornais nanicos a partir desse ano, decidindo-se por uma
militância aberta que teria no Pasquim”
24
A crônica pingente no Pasquim
O jornal Pasquim foi um dos mais importantes veículos
da chamada imprensa alternativa brasileira das décadas
de 60 e 70. Humor e crítica política se fundem a partir de
uma linguagem nova que trouxe ao jornalismo brasileiro
um tom informal, meio que carioca, próximo da oralidade
e distante da norma culta.
Na redação do jornal, conviviam Millôr Fernandes, Jaguar, Ziraldo, Ivan Lessa, Paulo Francis, Sérgio Augusto
entre outros intelectuais. Do primeiro número saído a 26
de junho de 1969 até o fim do jornal em 1975, segundo
Millôr Fernandes(1977 p.9), a censura foi uma constante
na atividade jornalística do periódico.
No estudo mais completo até o momento sobre a imprensa alternativa no Brasil, o livro Jornalistas e Revolucionários, Bernardo KUCINSKI (1991) faz uma breve, mas
completa história do Pasquim, desde a sua gênese até sua
descaracterização e decadência. Ele situa Pasquim numa
segunda fase de combate à ditadura, na qual os jornais de
cunho partidário cedem espaço ao humor, humor este que
satiriza o poder estabelecido através da força. Contracultural, o jornal Pasquim tem uma grande importância na
renovação estilística do jornalismo brasileiro, bem como
na própria história recente do país no que se refere à luta
pela liberdade de expressão. Kucinski (1991 p.156) aponta
que o “PASQUIM revolucionou a linguagem do jornalismo
brasileiro, instituindo uma oralidade que ia além da mera
transferência da linguagem coloquial para a escrita do jornal”. Além disso, ele aponta alguns traços que caracterizariam o jornal por toda a sua existência, dentre os quais a
grande entrevista provocadora e dialogada.
O progressivo aumento da tiragem e, por conseguinte,
o crescimento da influência do jornal na classe média da
sociedade brasileira, provocaram o enquadramento do Pasquim na chamada Lei de Segurança Nacional, já que setores
conservadores do clero e das forças armadas afirmavam que
o jornal fazia uma campanha contra a família brasileira.
Na verdade, a censura se abatia sobre o Pasquim, como
afirma Kucinski (1991 p. 163), pois “policiais do DOI-CODI
25
invadiram a redação do Pasquim durante o fechamento da
edição, prendendo todos os jornalistas presentes, menos
Tarso de Castro que conseguiu escapulir (...)”.
A morte do jornal Pasquim vai ser lenta, resultado de
vários fatores: a censura, a descaracterização do projeto
editorial do periódico, a crise financeira entre outros. No
entanto, a idéia de um jornalismo alternativo fincado na
total liberdade iria voltar décadas depois num contexto totalmente diferente. A publicação se arrastou até os anos 80,
atingindo apenas três mil exemplares de tiragem. Depois,
em 1988, foi vendida por Jaguar a um empresário. A partir
daí, Pasquim será apenas uma lembrança, só restará o nome
do jornal e a lembrança de sua irreverência e coragem ao
enfrentar a ditadura militar. A idéia de se ter novamente
o jornal vai ser retomada, décadas depois, num momento
histórico diferente e com objetivos diferentes.
João Antônio cronista do PASQUIM dos anos 70
Segundo pesquisa de Bellucco (2006 p.9), que realizou
um rastreamento das fontes primárias e crônicas dispersas
em vários arquivos, a colaboração do escritor-jornalista
João Antônio na imprensa alternativa, mais precisamente
no Pasquim, se dá com trinta e nove crônicas publicadas no
período de 1974 a 1979. Para ele, as crônicas joantonianas
não constituem um lugar paralelo ou secundário no conjunto de sua obra, sendo relevantes para a compreensão
de sua trajetória literária.
Enfatiza Bellucco (2006 p.17-18) que uma das principais
crônicas publicadas por João Antônio no Pasquim é “Aviso
aos nanicos”, que saiu na primeira semana de agosto de
1975, na qual o escritor faz:
Um dos primeiros balanços sobre o conjunto de jornais
que integraram a frente jornalística de oposição que
depois ficou conhecida pelo nome de imprensa alternativa. A partir deste texto, difundiu-se o termo´nanico`
com que João Antônio quis ressaltar a dimensão minoritária e contra-hegemônica do conjunto de jornais
onde praticou uma militância aguerrida, concentrando
aí o sentido político das duas principais atividades com
26
as quais afligiu-se em vida, a literatura e o jornalismo
(BELLUCCO,2006 p.17-18).
Na crônica, João Antônio fazia uma leitura afirmando
que no Brasil o termo urderground tomou formas bem brasileiras, sob a denominação geral de nanicos. O jornalistaescritor conhecia por dentro a grande imprensa e em seus
textos as referências negativas aos veículos tradicionais
vão ficando cada vez mais constantes e agressivas. A série
completa de crônicas de João Antônio publicadas no Pasquim informa Bellucco (2006 p.39) que:
Constitui-se de quarenta e um textos: inicia-se em
agosto de 1974 com a publicação de Cartão Vermelho
para os Valentões, é interrompida em junho de 1976 e
retomada com três crônicas no início dos anos 1980 (...)
Destacam-se os perfis e textos memorialísticos, ao lado
de narrativas sobre lugares e situações urbanas, como
o conjunto de textos que em 1978 seriam costurados à
narrativa de Ô Copacabana!
Para Bellucco (2006 p.57), durante o período de 1974 a
1978 é nítida a preocupação de João Antônio em constituir
certo ponto de vista político e literário associado à vivência
das classes subalternas. É desse período o texto “Corpoa-corpo com a vida” escrito no Rio de Janeiro em 1975.
Para ele, o texto indica uma postura do escritor frente aos
nacionalismos do momento e a mobilidade de gêneros em
sua trajetória literária, marcada sempre pelo trânsito entre a
urgência da crítica social veiculada na imprensa através das
crônicas, a confissão biográfica e o esforço de “fino lavor” na
criação ficcional. Para ele, “tomadas em seu conjunto, e não
apenas como uma soma contingente, as crônicas de João
Antônio para a imprensa nanica seguem (...) Demarcando
simbolicamente a cidade como expressão superlativa do
país, visto de uma condição de pingente” (p.115)
Panorama: João Antônio de pés vermelhos
A trajetória de João Antônio na imprensa brasileira traz
um momento singular que é sua passagem pela cidade de
Londrina. Literalmente fugindo do eixo Rio-São Paulo, o
jornalista irá integrar, na metade dos anos 70, a equipe
27
do jornal diário Panorama. No Paraná, seus pés pisam na
terra vermelha, símbolo de esplendor e decadência da cultura do café.
A recuperação da importante passagem do escritor pelo
Sul do país é feita por Renata Ribeiro de Moraes (2005),
através da coleta, catalogação e análise das reportagens do
escritor, situando-as no conjunto de sua obra jornalísticoliterária. A história do jornal Panorama também é recontada por Moraes (2005) através do levantamento de dados
com entrevistas aos envolvidos na criação do veículo na
década de 70. A experiência do jornal durou apenas dois
anos (1975 e 1976). A pesquisadora Moraes (2005, p. 90)
estabelece três fases para o processo: o planejamento (dois
anos antes de 1975), a implantação (1975) e a expansão e
declínio (1976).
A idéia de criar mais um jornal diário para a cidade de
Londrina foi do empresário das comunicações e político
Paulo da Cruz Pimentel, que chamou os jornalistas Nassib
Jabur e Délio César para planejar e implementar o novo
meio de comunicação. Panorama começou a circular no mês
de março de 1975 e chegou ao segundo ano com a edição de
número 515, em outubro de 1976. A sua tiragem original foi
de vinte mil exemplares, um bom número já que se tratava
da segunda mais importante cidade do Estado do Paraná,
ficando atrás somente da capital Curitiba.
A montagem da equipe de Panorama, que contava com
grandes nomes da reportagem brasileira, aconteceu graças
ao fim anunciado da revista Realidade, do grupo Abril. Assim, sob a liderança de Narciso Kalili (ex-repórter especial
da revista Realidade), além de João Antônio, também se
aclimataram em Londrina nomes como Mylton Severiano
da Silva, Hamilton Almeida Filho entre outros.
Mesmo sendo uma experiência da grande imprensa, o
jornal Panorama vai, em alguns momentos, desagradar à
elite da região, justamente com matérias sobre ecologia:
uma delas sobre a derrubada de uma árvore centenária e
outra sobre a poluição do lago Igapó. A censura imposta
pela ditadura militar também caiu sobre o jornal, mas
mesmo assim João Antônio conseguiu publicar reportagens
como “Olá, professor, há quanto tempo!”, sobre a volta do
28
antropólogo Darcy Ribeiro, um dos grandes perseguidos
pelo regime militar.
Os pés sentem as andanças
Convidado pelo amigo Mylton Severiano (Myltainho) e
com o aval de Narciso Kalili, o escritor-jornalista João Antônio irá permanecer em Londrina por três meses. Ele irá
conhecer a cidade, segundo Moraes (2005 p.96) através do
jornalista local Nelson Capucho. Londrina era para João
Antônio um signo duplo, entre o passado e o presente, entre a abundância esbanjadora dos anos loucos do café e a
decadência da região com a geada e a perda da safra.
Um levantamento feito por Moraes (2005) das edições
de Panorama concluiu que o escritor-jornalista produziu
nove textos. São eles: Londrina de João Antônio , Os anos
Loucos de Londrina , Desgracido! (9 de março de 1975),
Olá, professor há quanto tempo! (27 de março de 1975), A
sessão está aberta (14 de março de 1975), O Parto (10 de
março de 1975), Jacarandá Ladrão (17 de março de 1975),
Jacarandá Guardador de Carros (24 de março de 1975) e
Jacarandá- a estrela desce (10 de março de 1975).
E é no chão de Londrina que vai nascer uma ampla
galeria de tipos, sempre chamados de Jacarandá, poeta do
momento. Inclusive, anos depois, em 1993, João Antônio irá
nos oferecer o livro de ficção Um herói sem Paradeiro- vidão
e agitos de Jacarandá, poeta do momento. Em “Jacarandá
e sua constelação de máscaras”, prefácio da publicação,
assinado pelo crítico literário Fábio Lucas, podemos ler:
Tudo funciona como se o contista, já consagrado, tivesse
se rendido à tentação de escrever um romance, pois cada
unidade temática é presidida pela personagem Jacarandá (...) Pelo visto temos um herói de papéis variados,
uma constelação de máscaras. Todas apontam para o
brasileiro da periferia, desclassificado, cuja cultura, em
franca transformação, produz mobilidade horizontal e
incertezas nas camadas humildes em contraposição à
prepotência e arrogância da aristocracia rural e de seus
aliados urbanos, as camadas afluentes (...) Nota-se a
sutileza da arte de João Antônio. Contos-retratos de
29
preocupação social. Capacidade de dizer muito em frases
simples e contidas. Habilidade de dar representação literária à escumalha social do Brasil, a marginalidade dos
grandes centros urbanos do país. (LUCAS, 1993 p. 1)
Note-se que “Jacarandá- guardador de carros” vai ser
publicado em Panorama e depois reescrito e transformado
em “Guardador”, publicado seguidamente em dois livros
Abraçado ao meu rancor (1986) e Guardador (1992), com o
qual o escritor conquistou o Prêmio Jabuti de 1993. O texto
atravessará décadas (70,80 e 90).
João Antônio, editor do Livro de cabeceira do
homem
A partir da experiência da Revista Civilização Brasileira
(que circulou de 1965 a 1968), a editora Civilização Brasileira lançou em meados da década de 70 a revista Livro de
cabeceira do homem. Para editar, Ênio Silveira, diretor da
Civilização Brasileira, convidou João Antônio.
Interessa-nos entender Livro de cabeceira do homem
como representação de um movimento de luta pela democracia num país em que o Estado de Direito foi suspenso e
a imprensa estava censurada por conta do golpe militar e
do Ato Institucional número 5. Especificamente, estudamos
a participação de João Antônio como repórter, contista e
editor da revista, tendo publicado no periódico três textos:
“Os testamentos de Cidade de Deus’’, “Saudades do Brega’’
e “A agonia das gafieiras’’.
Um capítulo pouco estudado da imprensa de resistência da década de 70 no Brasil, a revista Livro de cabeceira
do homem teve publicação bimestral, em formato de livro
(14X21), 200 páginas no máximo, com “reportagens, crônicas, confissões, entrevista, contos, humorismo: os bons
e os maus flagrantes da realidade’’. As capas eram de autoria de Douné e seguiam uma identidade gráfica de um
número para o outro. Livro de cabeceira do homem segue
o formato e linha editorial traçado por Ênio Silveira para
ser um espaço de debate sobre a atualidade brasileira. De
certa forma, o Livro de cabeceira do homem (1975) segue a
trilha aberta pela revista Civilização Brasileira (1965-1968)
30
e tem continuidade com Encontros com a Civilização Brasileira (1978-1980).
Quais eram os colaboradores da revista LCH? Com que
freqüência escreviam? Quais os temas abordados? Quais
os gêneros literários ou jornalísticos dos textos publicados?
Para responder tais perguntas fizemos um levantamento
volume por volume da revista Livro de cabeceira do homem.
Os colaboradores mais assíduos eram o próprio editor do
Livro de cabeceira do homem, João Antônio com textos
publicados nos três números. Em seguida aparecem os repórteres Juarez Barroso, José Louzeiro e Aguinaldo Silva,
com dois textos cada.
Em uma breve análise dos gêneros literários e jornalísticos dos textos publicados na revista, notamos a predominância da reportagem, mas também a presença da
literatura através do conto. Não hesitamos em classificar
a revista como um terreno fértil, que opera como veículo
que possibilita o diálogo entre a literatura e jornalismo. Em
alguns casos, temos escritores consagrados praticando a
reportagem, como é o caso de Aguinaldo Silva, João Antônio
e Hermilo Borba Filho. Em outros, vemos um repórter como
Juarez Barroso publicar uma reportagem num número e
em outro um conto.
João Antônio, jornalismo e literatura no Livro
de cabeceira do homem
O jornalismo na vida de João Antônio não atravancava
sua produção literária. Pelo contrário, as duas áreas de
certa maneira se complementavam. Como um dos pioneiros a trabalhar no Brasil dentro da filosofia do chamado
Novo Jornalismo (New Journalism), João Antônio publicou
vários livros quase essencialmente jornalísticos como, por
exemplo, Malhação de Judas Carioca (1975) e Casa de Loucos (1976), reunindo o melhor da sua produção veiculada
anteriormente em jornais e revistas. Publicou outros de
difícil classificação como Lambões de Caçarola (1978) e Ô
Copacabana! (1978), que mesclavam jornalismo e literatura
bem na tendência do experimentalismo com a mistura de
gêneros da década de 70.
31
João Antônio irá publicar três textos no Livro de Cabeceira do Homem. O primeiro deles é uma reportagem: “Os
testemunhos de Cidade de Deus”, que trata do processo
governamental de desfavelamento do Rio de Janeiro visto
pelos moradores do subúrbio carioca, traz fotografias de
Jorge Aguiar. O segundo texto, também uma reportagem,
denominado “Saudades do Brega’’, desloca-se da grande
metrópole carioca para a cidade de Londrina, época em que
participou da equipe do jornal Panorama. Ele traz dessa
vez ao invés de fotografias, ilustrações de Benjamin, artista gráfico do Rio de Janeiro. A última reportagem de João
Antônio no LCH retorna ao Rio de Janeiro, com o auxílio do
fotojornalista Marco Vinício, para escrever sobre a “Agonia
das Gafieiras”.
Na Última Hora, João Antônio inventa o “corpoa-corpo com a vida”
“Nova estréia em UH” anunciava a capa do caderno
“Revista”, do jornal “Última Hora” do dia 08 de março de
1976. “A partir de amanhã, em UH Revista, João Antônio
estará contando com um vigor particular e violento, as
coisas que impressionam a sensibilidade do homem e escritor. Explicitando sua verdade, a literatura, para ele um
ato orgânico. Um negócio de amor-paixão”. Era assim que
o jornal apresentava seu mais novo jornalista contratado.
Um mês antes, em carta enviada a Peri Cotta, datada de 21
de fevereiro de 1976, o escritor-jornalista explicitava alguns
pontos que seriam base de sua atividade como cronista em
Última Hora, principalmente realçando que a periodicidade
dos textos não deveria ser diária e sim que a coluna “Corpoa-corpo” aparecesse três vezes por semana. Além disso,
ainda na carta, João Antônio vai explicar sua metodologia
para a feitura dos textos:
Embora escrevendo em ritmo fluente, a verdade é que
meus textos são elaborados, sofridos e saem para o papel
mais como um trabalho de garimpo do que de paixão.
Exatamente essa característica é que lhes dá personalidade, os diferenciando de outros. Não é apenas um
problema de realização de linguagem, estilo; é a própria
32
escolha de tema e disposição de uma ótica pessoal (e
talvez intransferível) de ver, captar e retransmitir as
coisas, pessoas, fatos, lugares, casos, situações. (ANTÔNIO, 1976)
O aparecimento da coluna “Corpo-a-corpo” de João Antônio, em meados da década de 70, no jornal Última Hora,
mesmo sem a direção de um nacional-populismo varguista
de Samuel Weiner, parece-nos um fato interessante. Visto
como escritor best sellers a partir da publicação de Malhação
de Judas Carioca e Leão-de-chácara em 1975, recebendo
inclusive um prêmio da Associação Paulista de Críticos de
Arte (APCA), escrevendo sobre assuntos do cotidiano, o
escritor faz uma série de 108 crônicas, que passeiam por
seus temas prediletos, tais como marginalizados em geral,
malandragem, condição periférica do escritor e jogos em
geral (futebol, sinuca, corrida de cavalos, cartas etc.).
Mais uma vez vai acontecer o fenômeno da produção
jornalística migrar para das páginas dos jornais para os
livros do autor de Malagueta, Perus e Bacanaço. Boa parte
dos escritos da coluna “Corpo-a-corpo” vai para Casa de
loucos, lançado também pela Civilização Brasileira no mesmo
ano. Assim, “Nosso compadre o profeta Nelson Cavaquinho”,
uma série de cinco crônicas publicadas entre 29 de abril
a 06 de maio de 1976, vai para Casa de loucos como um
único texto sob o título “Nelson Cavaquinho”. Já “Túmulo
do amor”, publicada em três partes de 28 a 31 de maio de
1976, transforma-se em “55 anos de casados” no livro. E
“Crônica do valente torcedor”, que saiu num conjunto de dez
textos, no intervalo de 03 de junho a 14 de julho de 1976,
é rebatizada de “Raul, meu amor” no livro. ”Matar a morte”
(27 de abril de 1976), “A evitada das gentes” (27 de maio de
1976), “A magra é certa” (05 de agosto de 1976, ano XXVI
número 7743) são na verdade extratos da reportagem A Morte, publicada nos anos 60, na revista Realidade. Além disso,
a reportagem que dá o título ao livro também foi trazida das
páginas coloridas de Realidade. Já “Ficar no caritó” (27 de
agosto de 1976, ano XXVI, número 7764) e “Virgens” (10
de setembro de 1976, ano XXVI número 7778) irão compor
“As virgens blindadas do footing” no livro. Mas também vão
compor Casa de Loucos textos transmigrados das páginas
33
do Jornal do Brasil (“As mortes e a vida de Sérgio Milliet”),
Panorama (“Olá professor, há quanto tempo”) e Livro de cabeceira do homem (“Testemunho da Cidade de Deus”)
Meados dos anos 80: a crônica no “Jornal do
País” como gênese de “Zicartola...”
No intervalo entre os anos 1985 e 1986, João Antônio
publicou uma serie de crônicas no suplemento semanal “Nas
Bancas” que vinha encartado no “Jornal do País”. Tomados
em conjunto, as crônicas de João Antônio se dividem em
dois grupos, denominados por ele mesmo de “águas-fortes
cariocas” e “águas-fortes paulistas”. Tais escritos seguem
a mesma linha temática do escritor-jornalista ao se reportarem a situações vividas pelas camadas excluídas da
sociedade, ao futebol, ao cotidiano da metrópole (seja Rio
de Janeiro ou São Paulo) ou figuras da cultura brasileira
como compositores e escritores como Jacó do Bandolim,
Cartola, Marcos Rey, Aguinaldo Silva, João Ubaldo Ribeiro
ou Mário Quintana.
O escritor João Antônio aproveitou grande parte desses
escritos publicados no suplemento semanal “Nas bancas”
para compor o livro Zicartola e que tudo mais vá pro inferno!,
publicado em 1991, na série Diálogo, da editora Scipione,
dirigida ao público juvenil. Quase toda a gênese de Zicartola
e que tudo mais vá pro inferno! se dá através da transposição
das crônicas publicadas no jornal juntamente com processos
de edição como a fusão de escritos ou mesmo colagem de
parágrafos inteiros. Em muitos momentos vê-se o trabalho
de fusão de escritos publicados em jornal, como por exemplo,
as crônicas “Glauber” (publicada na semana de 10 a 16 de
junho de 1986), “Suor e cebola da Barra Funda” (semana 17
a 23 de junho de 1986), “Um estouro” (semana de 24 a 30
de julho de 1986) e datiloscritos (em lauda padrão do jornal)
como “Matinês do Cine Glamour” e “Ladrão de bicicleta”,
reunidas num único escrito, com o novo título de “Vibrações,
poeiras e pulgueiros”, que tem como fio condutor a relação
do cronista com o cinema. Em outro caso, há uma transposição de toda a crônica, mantendo-se inclusive o título dado
no jornal, como é o caso de “Querida Praça XV” (semana de
34
06 a 12 de fevereiro de 1986) e “Santas Teresas” (09 a15
de janeiro de 1986). Já a crônica “No primeiro domingo do
ano” (semana de 16 a 22 de janeiro de 1986) irá ser aproveitada integralmente com o título modificado para “Feira”.
“Noturno Tio Biu (semana 23 a 29 de janeiro de 1986) será
incorporada a “E que tudo o mais vá pro inferno”.
O que o escritor João Antônio irá aproveitar para compor
o livro Zicartola e que tudo vá para o inferno! são apenas crônicas que remetem às memórias infantis do Morro da geada,
em São Paulo ou ao convívio com artistas que representam
a vida do povo brasileiro seja no cinema (Glauber Rocha)
ou na música (Cartola). As crônicas com mais aderência
a questões contextuais ou mesmo factuais de meados da
década de 80 não serão escolhidas por estarem em demasia
enraizadas na realidade. A crônica funciona como expressão
de um projeto nacional-popular.
As águas-fortes reaparecem no “Estadão”
Capelato & Prado (1980 p. XX) assinala que o jornal O
Estado de S. Paulo foi fundado em 1875 como A província de
S. Paulo, defendendo idéias republicanas sem “no entanto,
admitir sua transformação em porta-voz oficial do partido
nascente”.
O surgimento do “Suplemento Literário” do jornal O Estado de S. Paulo, segundo Lorenzotti (2002 p.11), deve-se à
iniciativa do crítico literário Antonio Candido que idealizou
a publicação e de Décio de Almeida Prado que a dirigiu por
dez anos, de 1956-1966. O “Suplemento Literário” do OESP
viria a ser um modelo para os demais do país já que tinha
autonomia como publicação artística, não-jornalística. De
1966 a 1974, ele foi editado por Nilo Scalzo. Depois do fim
do “Suplemento Literário” vieram o “Suplemento Cultural”,
o “Cultura” e o “Caderno 2”. É no jornal Estado de S. Paulo
que João Antônio vai publicar seus primeiros contos e depois retomar a colaboração no final dos anos 80.
De fato, João Antônio, um pouco antes de publicar o
seu primeiro livro, já ocupava as páginas do “Suplemento
Literário” do “Estadão”, como se pode atestar com os contos “Frio” (número 142, de 01/08/1959),”Índios” ( número
35
168, em 06/02/1960) e “Um velho e um cachorro” ( número
305,de 17/11/1962). Sendo que ele vai aproveitar “Frio”
para integrar o terceiro conjunto de contos (Sinuca) de Malagueta, Perus e Bacanaço, de 1963. Assim, João Antônio
dará continuidade, já como escritor consagrado no início da
década de 90, a essa colaboração através do envio de textos
para os editores Nilo Scalzo e Ana Maria Lopes e Silva.
As chamadas águas-fortes (cariocas, paulistas e até mesmo paranaenses ou baianas) vão ser republicadas seguidamente no intervalo de 1989 a 1991, no suplemento “Cultura”.
O próprio escritor elabora uma lista datiloscrita com vinte
textos, para controle do fluxo das crônicas, não esquecendo
o valor recebido por cada colaboração enviada ao periódico.
A grande maioria de tais escritos dará a gênese de seu último
livro Dama do Encantado, lançado em 1996.
Interessa-nos saber o significado de “águas-fortes” para
a escrita de João Antônio, já que constituem conjuntos de
escritos que têm entre si identidade própria, sendo publicados no Jornal do País (suplemento “Nas Bancas”) e no
Estado de S. Paulo (Suplemento “Cultura”), atravessando
décadas. Tecnicamente, como explica Oliveira (2002), o
termo “água-forte”:
Foi o segundo processo de impressão a seguir no Ocidente, já no século 15, pouco após os tipos móveis de
Gutenberg. Hoje é utilizado mais para fins artísticos.
Trata-se em realidade de um processo de impressão
encavográfica. Característica de todos eles é o uso do
ácido nítrico (chamado, justamente, de água forte) para
ensulcar o verniz aplicado à uma chapa de metal que
servirá como matriz. A tinta se aloja nos sulcos feitos
pelo ácido e é transferida para o papel por pressão.
(OLIVEIRA, 2002 p. 67)
Parece curioso o uso de “águas-fortes” para marcar cada
texto ou conjunto deles, pois logo após o uso do termo vem
uma espécie de localização (carioca, paulista, paulistano,
baiana e paranaense), como se ao dar título ao escrito
ocorresse um processo de territorialização. Ao se remeter a
processos de impressão anteriores ao moderno sistema de
rotativas de off-set, largamente adotado pela imprensa da
36
época e que Oliveira (2002 p.41) vê como “principal modelo
de impressão desde a segunda metade do século 20”, João
Antônio distancia-se do jornalismo e ao mesmo tempo assume que seus escritos têm fins artísticos, como se fossem
desenhos e esboços fortemente marcados pela vivência e
lirismo sem deixar o tom “ácido”, forte, ou seja, crítico. Ao
imprimir com ácido tal escritura sobre o verniz da chapa de
metal, João Antônio sonda as cidades em suas contradições,
crueldades e lirismos, demonstrando que as transformações
constantes de tais espaços geram processos contínuos de
territorialização, desterritorialização e reterritorialização.
Perfis do “Estadão” migram para Dama do
Encantado
Além das chamadas “Águas-fortes”, existem ainda vários
escritos publicados no suplemento “Cultura” que merecem
a atenção: são os perfis jornalístico-literários de figuras
de destaque da cultura brasileira, em especial a música e
literatura. Alguns textos que vão compor Dama do Encantado, último livro do escritor, uma espécie de reunião de “perfis”,
subvertem um pouco o gênero jornalístico. Segundo Pena
(2005, p.33), perfil é uma reportagem que “procura apresentar a imagem psicológica de alguém, a partir de depoimentos
do próprio, assim como de familiares, amigos, subordinados
e superiores dele”. No entanto, alguns desses escritos de
João Antônio vão se colocar na fronteira entre o jornalismo
e a crítica literária, criando um ambiente híbrido em que a
vida do autor estudado é contada de forma jornalística com
o suporte da crítica literária. Vilas Boas (2003 p.22) observa
que a época áurea do perfil na imprensa brasileira se deu
com a revista Realidade (de 66 a 68), mas a tendência do
jornalismo em apostar mais na idéia de retratar figuras humanas jornalisticamente e literariamente se deu nos anos
30 nos periódicos norte-americanos. Kotscho (1986, p.42)
afirma que o perfil é o mais rico filão das matérias chamadas
humanas, já que permite que o leitor “entre” no cotidiano
de uma pessoa, seja ela famosa ou anônima. “Entre as mil
maneiras de se fazer um perfil, uma delas é acompanhar um
dia na vida do personagem ou lugar” (p.46). Coimbra (1993,
37
p.103) chama perfil de reportagem descritiva de pessoa, já
que congrega elementos verbais e não-verbais, exigindo do
repórter um grande esforço de observação, a fim de captar
não só falas como também tudo o que está ao redor do
entrevistado (espaço) e como ele se comporta (riso, tom da
voz, expressões faciais, hesitações, olhar, entre outros). Já
Medina (2003) acredita que o gênero perfil está se abrindo
para outras contribuições, em especial as metodologias das
Ciências Sociais e Antropologia. Assim, a autora considera
que o gênero jornalístico perfil pode ser reformulado através
do diálogo com o ensaio.
Talvez o último livro de João Antônio, Dama do Encantado, publicado por uma editora de pequeno porte como
a Nova Alexandria, seja mesmo um pouco do que Medina
afirma ser de reportagem-ensaio. João Antônio escolhia a
dedo seus perfilados, a partir de uma certa empatia entre
entrevistador-entrevistado ou mesmo admiração que os escritor sentia por figuras como Noel Rosa e Lima Barreto. O
perfil que dá título à obra é sobre Araci de Almeida (Dama
do Encantado), curiosamente retratada desde a década
de 60 e 70 pelo escritor que já publicou reportagem em
Realidade em outubro de 1968 (“Ela é o samba”), além de
crônicas para A Última Hora: “Aracy” (23 de julho de 1976),
“Araçá” (07 de agosto de 1976), “A dama do encantado” (28
de agosto de 1976) e “Quem canta de graça é galo” (25 de
setembro de 1976).
O jornalista publica no “Estadão” os seguintes perfisensaios: “Duas bagatelas ao redor do mulato de todos os
santos” (sobre Lima Barreto, em 4/04/1982), “Pequena
especulação em torno de três momentos do poeta da Vila”
(sobre Noel Rosa, 11-05-1983), “O singular e enigmático em
Mário Peixoto” (em 02/12/1984), “Noel Rosa em tempo galopante” (27/06/1987), “Ciro Monteiro ia vivendo de amor”
(30/12/1989), “Morre o valete de copos” (24/11/1990),
“Realismo crítico em Marcos Rey” (16/02/1991), “Morte e
vida de Sérgio Milliet” (27/4/1991) “Conversa com o poeta”
( sobre os 80 anos de Mário Quintana, em 06-04-1991), e
“Dalton exporta a lua parda dos vampiros” (20/07/1996).
Em Dama do Encantado vai assim confirmar o talento
do escritor-jornalista na observação e arte dos portraits a
38
partir de sua galeria de escritores (Dalton Trevisan, Nelson
Rodrigues, Lima Barreto, João do Rio e Mário Quintana),
jogadores (Garrincha) e músicos (Aracy de Almeida).
A crítica literária na Tribuna da Imprensa
Segundo Jesus (2001 p.16), o imbricamento do João
Antônio-ficcionista com o João Antônio-repórter se dá também nos artigos publicados semanalmente na Tribuna da
Imprensa de 1993 a 1996, veiculados no caderno Tribuna Bis,
formando um conjunto de 133 textos que foram catalogados
na pesquisa da autora. Além de organizar e sistematizar tais
escritos, Jesus (2001) ainda faz um pequeno ensaio introdutório a fim de caracterizar a crítica produzida pelo escritor
no jornal carioca. Na visão da pesquisadora, João Antônio se
aproxima de uma crítica impressionista sem que isso signifique que seu texto seja um texto menor. Escritas no auge da
maturidade literária do escritor, ou seja, nos últimos quatro
anos de sua vida, as críticas de João Antônio “não seguiam
métodos ou teorias preestabelecidas” (p.25).
Claro que a produção crítica híbrida de João Antônio não
pode ser caracterizada como o que Perrone-Moisés (2005 p.
XII) chama de “crítica-escritura” como as de Roland Barthes,
Butor ou Blanchot, que foram exemplos de “escritorescríticos”. É que o autor de Malagueta, Perus e Bacanaço
ainda está centrado nas funções explicativa, informadora e
didática. Apesar de certa diluição de fronteiras no ato crítico
de João Antônio para jornais, seu trabalho na Tribuna da
Imprensa está mais para o crítico-escrevente preocupado
com as funções tradicionais da atividade colocando-se como
juiz (Jesus, 2001, p.20).
Força híbrida que tudo movimenta
Atravessando mais de 30 anos da história do Brasil
contemporâneo, a trajetória de João Antônio na imprensa
brasileira confunde-se com as buscas da sociedade como
um todo frente aos múltiplos contextos (Estado autoritário,
censura, modernização, redemocratização, retomada da
democracia etc.). O jornalismo em João Antônio aparece
inicialmente apenas como espaço para veiculação de seus
39
contos. Em seguida, já profissionalizado como jornalista,
vemos o aparecimento do repórter e da reportagem. Já
consagrado como best seller em meados da década de 70, o
cronista entra em cena como profundo, lírico e ácido observador da Bruzundanga. Na década de 90, o crítico literário
e o talentoso criador de perfis e pequenas narrativas biográficas. No entanto, em vários momentos os gêneros literários
e jornalísticos se enfrentam, confundem e se fundem graças
à habilidade do escritor-jornalista em fazer circular sua
escritura de um veículo a outro, do jornal para o livro, do
livro para o jornal, de uma década a outra. Assim como os
personagens de Malagueta, Perus e Bacanaço, os escritos de
João Antônio estão sempre em movimento, numa “caminhada” que às vezes é individual ou em outras é coletiva. Essa
força híbrida, invisível, que rompe barreiras, fronteiras e
gêneros, nos interessa enquanto estratégia moderna e “impura” da escrita contemporânea, convidando-nos a pensar
a questão do hibridismo na literatura do autor.
Referências
ANTÔNIO, J. Casa de loucos. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1976.
ANTÔNIO, J. Cartas aos amigos Caio Porfírio Carneiro e Fábio
Lucas. Cotia, SP: Ateliê Editorial; São Paulo: Oficina do Livro
Rubens Borba de Moraes, 2004.
AZEVEDO FILHO, C. A. F. de. João Antônio, repórter de
Realidade. João Pessoa: Idéia, 2002
BELLUCCO, H. A. de L. Radiografias Brasileiras: Experiência e
Identidade Nacional nas Crônicas de João Antônio. Mestrado
em Teoria e História Literária. Instituto de Estudos da Linguagem
Universidade Estadual de Campinas, 2006. (dissertação de mestrado)
CAPELATO, M. H.; PRADO, M. L. O Bravo Matutino- imprensa
e ideologia: o jornal O Estado de S. Paulo. São Paulo: Alfaômega,1980.
CHINEM, R. Jornalismo de guerrilha. São Paulo: Disal,2004.
COIMBRA, O. O texto da reportagem impressa. São Paulo:
Ática, 1993
DINES, A. O papel do jornal. São Paulo: Summus,1986.
40
FARO, J. S. Revista Realidade-1966-1968- tempo da reportagem
na imprensa brasileira. Canoas: Ulbra: Age,1999.
FERNANDES, M. Millôr no Pasquim. Rio de Janeiro: Nórdica,
1977.
JESUS, C. D. A. de. A Crítica de João Antônio na Tribuna
da Imprensa. Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da
Universidade Estadual Paulista, Assis, 2001. (Dissertação de
mestrado)
KOTSCHO, R. A prática da reportagem. São Paulo: Ática,
1986.
KUCINSKI, B. Jornalistas e revolucionários- nos tempos da
imprensa
alternativa. São Paulo: Scritta, 1991.
LACERDA, R. João Antônio: uma biografia literária. Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de Teoria
Literária e Comparada. Universidade de São Paulo (USP), 2006.
(Tese de doutorado, mimeo)
LORENZOTTI, E. Suplemento literário que falta ele faz! São
Paulo: Imprensa Oficial, 2007.
LUCAS, F. Jacarandá e sua constelação de máscaras. In: ANTÔNIO,
J. Um herói sem paradeiro. São Paulo: Atual, 1993.
MEDINA, C. A arte de tecer o presente- narrativa e cotidiano.
São Paulo: Summus, 2003.
MORAES, R. R. de. João Antônio de pés vermelhos: a atuação
do escritor-jornalista em Panorama.Universidade Estadual de
Londrina, 2005. (Dissertação de mestrado)
OLIVEIRA, M. Produção gráfica para designers. Rio de Janeiro,
2AB, 2002.
PENA, F. Jornalismo. Rio de Janeiro: Estácio de Sá, 2005 (Coleção
1000 perguntas).
PERRONE-MOISÉS, L. Texto, crítica, escritura. São Paulo:
Companhia das Letras, 1993.
RIBEIRO NETO, J. da S. João Antônio Literatura Comentada.
São Paulo: Abril Cultural, 1981.
SCALZO, M. Jornalismo de Revista. São Paulo: Contexto,
2003.
41
VILAS BOAS, S. Perfis e como escrevê-los. São Paulo: Summus,
2003.
WOLFE, T. Radical chique e o Novo Jornalismo. Tradução de
José Rubens
Siqueira; posfácio de Joaquim Ferreira dos Santos. São Paulo:
Companhia das Letras,
2005.
Recebido em 20/10/2009
Aceito em 20/11/2009
42
DAS LETRAS ÀS CIFRAS: LITERATURA E
VALORES NO SÉCULO XIX
Simone Cristina Mendonça1
Resumo: O estudo da literatura brasileira oitocentista nos
fornece um vasto elenco de autores consagrados e de obras
diversas, com destaque para os romances. A publicação
dessas obras, porém, nem sempre foi tarefa fácil. Há que
se lembrar, assim, do esforço do autor e das redes de relações pessoais e profissionais estabelecidas para o (e no)
exercício da literatura. Para tanto, trataremos dos processos
pelos quais essa literatura passava, indo do manuscrito
aos leitores, comentando a situação ainda não profissional
dos autores, os necessários contatos e contratos, os meios
de se fazer conhecidos e as possibilidades de impressão e
de venda.
Palavras-chave: século XIX, literatura brasileira, mercado
editorial.
FROM LETTERS TO NUMBERS: LITERATURE AND
VALUES IN THE NINETEENTH CENTURY
Abstract: The study of Brazilian literature in the nineteenth
century provides a broad list of famous authors and several
works, especially novels. The publication of these works,
however, wasn’t always easy. It must be remembered, so, the
author’s efforts and networks of personal and professional
relationships established for the (and in the) exercise of the
literature. To this end, we will discuss the processes by which
this literature passed, from the manuscript to the readers,
commenting on the situation of the authors, the necessary
contacts and contracts, the means of making themselves
known and the possibilities of printing and selling.
Keywords: eighteenth century, Brazilian Literature, editorial
market.
1 Doutora em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas/
Unicamp e graduada em Letras pela mesma instituição. Atualmente, bolsista do
Programa de Desenvolvimento Científico e Tecnológico Regional, DCR, com pesquisa
em andamento na Universidade Federal do Pará/UFPA, financiada pelo CNPq e pela
FAPESPA. simonecristinamendonç[email protected]
POLIFONIA
CUIABÁ
EDUFMT
Nº 20
P. 43-51
2009
issn 0104-687x
Iniciar uma discussão acerca de literatura envolvendo
valores monetários pode se tornar uma atitude perigosa,
que corre o risco de ser considerada quase herética, uma vez
que outros valores, como os estéticos, por exemplo, é que
majoritariamente são privilegiados nas reflexões literárias,
com seus méritos. No entanto, o tema financeiro sempre
volta à baila, em investigações de caráter histórico, em textos
interdisciplinares, em especulações biográficas ou mesmo
discretamente diluído em outros questionamentos.
Arriscamo-nos a escrever sobre a temática2, retomando
pesquisas anteriores e aproveitando a oportunidade para
relembrarmos os percalços pelos quais passaram grandes
autores para conseguirem publicar seus trabalhos, incluindo os investimentos financeiros. Entre os escritos de autores
brasileiros, pelo menos desde o século XIX, há registros de
lamentações sobre a necessidade de terem de se dedicar a
outras atividades remuneradas, além de reivindicações por
um melhor reconhecimento de suas produções artísticas.
Não raro, sabemos, era preciso lecionar, exercer profissões
burocráticas, trabalhar para o governo, ou, ainda, atuar
como profissionais liberais, como médicos ou advogados,
serviços dos quais dependiam os orçamentos dos escritores
(Cf. BESSONE, 1999).
Embora atarefados com o exercício de suas profissões,
essas, felizmente, não sufocavam os autores, que encontravam tempo para formular suas histórias, inicialmente
de maneira manuscrita, e esquematizar estratégias de publicação e de venda. No período oitocentista, tempo em que
a Literatura e o jornal estabeleciam estreitas ligações, era
nesse veículo que muitos autores encontravam espaço para
tornar conhecidos seus textos. No caso dos romances, estes,
muitas vezes, vinham ao público, seccionados em capítulos
periodicamente impressos. Dos chamados folhetins à edição
dos romances em livros havia um caminho a percorrer, no
qual a companhia de um editor seria muito bem vinda.
2 Uma primeira versão desse texto foi apresentada oralmente em uma mesa-redonda,
ocorrida no dia 26 de setembro de 2008, em “Machado de Assis nos trilhos de Viçosa”, evento comemorativo do centenário de morte do autor, na cidade de Viçosa/
MG, promovido pela Universidade Federal de Viçosa/UFV.
44
No Brasil, podemos citar o exemplo de Machado de Assis,
que, ainda em seu primeiro livro de poesias, Crisálidas,
teve a sorte de merecer o agrado do já renomado editor francês Baptiste Louis Garnier, estabelecido no Rio de Janeiro.
No entanto, nem todos podiam contar com tal ventura e,
por isso mesmo, sobre B. L. Garnier foram tecidas duras
críticas acerca da seleção de autores contemplados com
seu selo, uma vez que, dizia-se, ele não editava escritores
desconhecidos. Um bom exemplo dessas críticas foi a que
escreveu Arthur Azevedo, no jornal O Álbum, em 07 de
Outubro de 1893:
Mas a verdade é que elle só acolhia de braços abertos
os escriptores que lhe entravam na casa com reputação feita, e ainda a estes pagava sabe Deus como. Não
tirou nenhum nome da sombra, não estendeu a mão
a nenhum talento desconhecido. Quando algum moço
obscuro o procurava, ouvia: ‘cresça e apareça’. Se o pobre
diabo realmente crescesse e apparecesse, poderia contar
com o editor. (apud PINHEIRO, 2007, p.39)
Como se vê, publicar tendo Garnier como editor parece não ter sido algo fácil para os escritores oitocentistas,
o que talvez justifique que os contemplados folgassem ao
consegui-lo. José de Alencar, por exemplo, em Como e
por que sou romancista, comentou a respeito, com certo
alívio: “Ao cabo de vinte e dois anos de gleba na imprensa,
achei afinal um editor, o Senhor B. Garnier, que espontaneamente ofereceu-me um contrato vantajoso em meados
de 1870.” (ALENCAR, 1990, p. 70). O autor se refere ao
contrato firmado em que se obrigava a negociar com o editor
“a propriedade dos romances inéditos”, dos quais o primeiro
foi Diva, livro que lhe rendeu oitocentos mil réis (800$000)
pela edição (PINHEIRO, 2007, p. 41).
Primeiro editor no Brasil a negociar uma remuneração
pecuniária com os escritores com os quais trabalhava, Baptiste Louis Garnier dispunha ainda de um ponto de venda,
em localização privilegiada na capital do Império, na Rua
do Ouvidor, onde se escoava grande parte da literatura hoje
canônica.
45
Livraria Garnier3
A livraria tinha vários concorrentes, desde outras grandes lojas como a Livraria dos irmãos Laemmert, como outros comerciantes menores. A historiadora Tânia Bessone
informa alguns nomes de livrarias que mais apareciam em
anúncios de propaganda no Jornal do Commercio, no ano
de 1870: Garnier (Rua do Ouvidor, 69); Enciclopédica (Rua
Gonçalves Dias, 72); E. e H. Laemmert (Rua do Ouvidor,
68); Cruz Coutinho (Rua São José, 75); Casa de uma Porta
Só (Rua São José, 69); Luso Brasileira (Rua da Quitanda,
30); Dupont e Mendonça (Rua Gonçalves Dias, 75); Clássica (Rua Gonçalves Dias, 54); Econômica (Largo do Paço,
C); Correia de Melo (Rua do Ouvidor, 183). (Cf. BESSONE,
1999, p. 83).
No caso das negociações dos escritores com Garnier,
sabe-se que a remuneração aos primeiros era legalmente
estabelecida, por meio de contratos em que se concediam
os direitos de publicação de uma ou de todas as edições de
certa obra, recebendo ora um valor estipulado por exemplar,
ora uma quantia única pela concessão.
3 Imagem disponível no seguinte site, consultado em 26/10/2009: <http://www.flickr.
com/photos/andre_so_rio/page8/>
46
Machado de Assis fechou contratos com o editor que
lhe renderam, por exemplo, duzentos réis ($200) por cada
exemplar, de uma tiragem de mil, da primeira edição de
Contos Fluminenses, em 1865; e duzentos e cinqüenta mil
réis (250$000) pela segunda edição (1.100 exemplares) de
Memórias Póstumas de Brás Cubas, em 1896 (PINHEIRO,
2007, p. 42-3).
Consultando outras leituras, podemos verificar que
os valores recebidos nessas negociações podem parecer
baixos se comparados com a remuneração de outras atividades artísticas. Machado de Assis, em crônica publicada
na revista Illustração Brasileira, em 1876, comentou, em
tom de pilhéria, o cachê de oito contos e oitocentos mil réis
(8.800$000) mensais, recebido mensalmente por um tenor
em passagem pelo Rio de Janeiro na época:
Ao preço elevado dos bilhetes corresponde o dos vencimentos dos cantores. Só o tenor recebe por mês oito
contos e oitocentos mil réis! Não sei que haja na crítica
moderna melhor definição de um tenor do que esta dos
oito contos, a não ser outra de dez ou quinze. Que me
importa ouvir as explicações técnicas dos críticos para
saber se o tenor tem grande voz e profundo estudo? Já
sei, já sabemos todos, ele tem uma voz de oito contos
e oitocentos, devo aplaudi-lo com ambas as luvas, até
arrebentá-las. (ASSIS, 1953, p. 96-97)4.
O valor do cachê a ser pago para o tenor supera os oito
contos de réis (8.000$000) que Machado de Assis só receberia em 1889, como salário anual, no cargo de diretor geral
da Diretoria do Comércio5.
Ainda que os pagamentos designados não fossem os almejados, há que se admitir que conseguir publicar um livro
na Garnier atribuiria certo valor ao autor que o colocaria em
posição vantajosa no cenário da época, pelo próprio nome
do editor, já revestido do que poderíamos chamar de capital simbólico, na linha dos estudos de Pierre Bourdieu (Cf.
4 A crônica citada data de 01 de Agosto de 1876. Agradeço a Cristiano Sávio Mariano
pela indicação do trecho, retirado das crônicas machadianas da revista Illustração
Brasileira, seu objeto de estudo.
5 Cf. Revista de História da Biblioteca Nacional. Ano 3, n. 36, setembro, 2008.
47
BOURDIEU, 1996). Por outro lado, as relações profissionais
entre editor e autor também rendiam lucros não financeiros
para Garnier que, por sua vez, tornava-se mais conhecido
na medida em que publicava nomes de prestígio.
As contribuições de Garnier para as letras brasileiras,
editando autores nacionais, por exemplo, lhe renderam a
comenda da “Ordem Imperial da Rosa”, em 16 de março de
1867 (Cf. PINHEIRO, 2007). Um círculo de valorização, então, se formava, ampliando o reconhecimento tanto do autor
como do editor, que garantia, ainda, aumento das receitas
financeiras. Além disso, boa parte das publicações de sua
casa editorial contava com um cuidado na confecção dos
volumes, atentando para a qualidade material dos livros, o
que contribuía para sua valorização.
Outros nomes foram editados por esse francês, que, por
questões econômicas e alfandegárias, mandava os livros
para serem impressos em sua pátria, conquistando a inimizade dos tipógrafos nacionais. As impressões eram feitas na
França, sobretudo porque o imposto alfandegário que incidia
sobre o livro impresso era menor que o referente ao papel em
branco. Ademais, as melhorias no transporte ultramarino,
como o uso dos navios a vapor, diminuíam o tempo de viagem
entre Europa e Rio de Janeiro, que, em 1851, por exemplo,
era de 22 dias (HALLEWELL, 1985, p. 129)6.
Quando do livro pronto, o próprio editor se encarregava
da divulgação, enviando exemplares para diversos jornais,
tanto na Corte, como nas províncias, a fim não só de receber os agradecimentos e os comentários, mas também de
aumentar o campo de atuação de seu comércio. Ozângela
de Arruda Silva, que se debruçou sobre jornais da província do Ceará, analisando a circulação de livros na cidade
de Fortaleza, nos noticia sobre o envio de livros ao jornal
Cearense:
Em 1875, o livreiro-editor [Garnier] doou: O Dr. Ox, Júlio Verne; Mademoiselle de Maupim, Th. Gauthier; Mlle.
Clopatra, Arséne Houssaye; Ubirajara, José de Alencar;
6 Acerca das condições de trabalho dos tipógrafos e de suas reivindicações quanto ao
incentivo às impressões feitas no país, ver VITORINO, Artur José Renda. Máquinas
e operários: mudança técnica e sindicalismo gráfico (São Paulo e Rio de Janeiro, 1858-1912). São Paulo: Ed. Annablume/FAPESP, 2000.
48
Senhora – perfil de mulher, José de Alencar; Seis novellas
de Th. Gauthier; O Abandonado, 2ª parte da Ilha Mysteriosa, Júlio Verne; Romance da Duqueza e Sertanejo,
José de Alencar. (SILVA, 2008, p. 230)
Seguindo uma tendência empreendida pelas livrarias
desde o início do século, B. L. Garnier também anunciava
aos leitores da Corte do Rio de Janeiro os seus livros, em
catálogos especialmente preparados pela casa (Cf. QUEIROZ, 2008) ou em importantes jornais da época, como o
Jornal do Commercio.
A imprensa periódica, assim, assumiu, além da função
de divulgadora de notícias, o papel de veículo de propaganda
de produtos diversos, entre os quais os livros, bem como de
entretenimento. A estreita relação entre literatura e imprensa que se deu no século XIX tem seu maior exemplo nos
chamados folhetins, rodapés das páginas dos jornais, que,
a princípio, traziam variedades e que se estabeleceram como
espaço de publicação de narrativas em forma seriada.
A aliança comercial entre os redatores dos jornais e os
autores garantia a venda dos exemplares periódicos, satisfazendo também o interesse do escritor em divulgar suas
obras ficcionais, bem como seu nome. A partir de 1838, o
Jornal do Comércio, publicou fragmentos de romances, cuja
leitura virou moda entre os consumidores do jornal7. Para
se fazer conhecido, então, uma das alternativas era a de
que um autor precisava estabelecer relações com pessoas
ligadas aos jornais, veículos alternativos de divulgação
de seus escritos. De acordo com a pesquisadora Valéria
Augusti, autora de interessante artigo sobre os percursos
de profissionalização dos autores oitocentistas e suas intrínsecas relações com os jornais da Corte, era mesmo o
jornal o lugar de divulgação das obras e dos autores, no
qual os homens de Letras tentavam primeiramente se fazer
conhecidos (Cf. AUGUSTI, 2007, p. 93-121).
Concluindo, a literatura brasileira oitocentista, além
da inspiração, da técnica e das qualidades estéticas, era
também composta de negociações e valores financeiros.
7 Sobre folhetins, relembro o já bastante conhecido livro: MEYER, Marlyse. Folhetim:
Uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
49
Os autores, profissionais de outras áreas, que dividiam
seu tempo dedicando-se também a escrever poesia, prosa,
crônica e crítica, buscavam uma colocação no prestigiado
círculo literário da capital do Império. Nessa perspectiva,
alcançar uma posição de destaque muitas vezes dependia de
que eles estivessem incluídos numa rede de amizades e de
relações profissionais. Contexto, ousamos dizer, não muito
distante do que percebemos na contemporaneidade.
Referências
ALENCAR, J. de. Como e porque sou romancista. Campinas,
SP: Pontes, 1990.
ASSIS, M. de. História de Quinze Dias. In Obras completas de
Machado de Assis: Crônicas. 3° Volume (1871-1878). São Paulo:
W. N. Jackson Inc. Editores, 1953.
AUGUSTI, V. Mercado de letras, mercado dos homens. Revista
de História Regional. 12 (2). 93-121. Paraná: UEPG, 2007.
AZEVEDO, Arthur. O Álbum, 07 de outubro de 1893. apud PINHEIRO,
A. S. Para além da amenidade : o Jornal das Familias (18631878) e sua rede de produção. Tese de Doutorado. Unicamp/IEL/
Depto. de Teoria e História Literária. [s/n], 2007.
BESSONE, T. Palácios de destinos cruzados: Bibliotecas,
homens e livros no Rio de Janeiro, 1870-1920. Rio de Janeiro:
Arquivo Nacional, 1999.
BOURDIEU, P. O mercado de bens simbólicos. In: As Regras
da Arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo:
Companhia das Letras, 1996.
GUIMARÃES, H. de S. Os leitores de Machado de Assis: o
romance machadiano e o público de literatura no século 19.
São Paulo: Nankin Editorial: Editora da Universidade de São
Paulo, 2004.
HALLEWELL, L. O Livro no Brasil. Trad. do Inglês Maria da
Penha Villalobos e Lolio Lourenço de Oliveira. São Paulo, SP: T.
A. Queiroz, EDUSP, 1985.
MEYER, M. Folhetim: Uma história. São Paulo: Companhia das
Letras, 1996.
PINHEIRO, A. S. Para além da amenidade : o Jornal das
Familias (1863-1878) e sua rede de produção. Tese de
50
Doutorado. Unicamp/IEL/Depto. de Teoria e História Literária.
[s/n], 2007.
Revista de História da Biblioteca Nacional. Ano 3, n. 36,
setembro 2008.
QUEIROZ, J. M. de. Em busca de romances: um passeio pelo
catálogo da livraria Garnier. In: ABREU, M. A. (org). Trajetórias
do Romance. Circulação, leitura e escrita nos séculos XVIII
e XIX. Campinas: Mercado de Letras, 2008.
SILVA, O. de A. Lugares de compra, itinerários de leitura:
circulação de romances em Fortaleza oitocentista. In: ABREU, M.
A. (org). Trajetórias do Romance. Circulação, leitura e escrita
nos séculos XVIII e XIX. Campinas: Mercado de Letras, 2008.
VITORINO, A. J. R. Máquinas e operários: mudança técnica e
sindicalismo gráfico (São Paulo e Rio de Janeiro, 1858-1912).
São Paulo: Ed. Annablume/FAPESP, 2000.
Recebido em 30/10/2009
Aceito em 30/11/2009
51
ÊXTASE ENFERMIÇO: TRANSCENDÊNCIA
POÉTICA E VOLÚPIA DA PRECIPITAÇÃO
NO DECADENTISMO BRASILEIRO –
UM EXEMPLO EM CRUZ E SOUSA
Fabiano Rodrigo da Silva Santos1
Resumo: Este artigo consiste em uma discussão da visão
de transcendência particular à poética do Decadentismo,
tomando como referência a lírica de Cruz e Sousa. Por
transcendência poética entende-se a busca pelo ideal e
por romper as barreiras da percepção comum por meio da
prática poética. Entre os românticos, a transcendência era
buscada de diversas formas; uma das mais comuns era o
arrebatamento sublime. Com o simbolismo/decadentismo, o grotesco participa desse processo e o arrebatamento
transcendente encontra uma analogia em seu oposto – a
queda. A lírica de Cruz e Sousa ilustra esse novo leitmotiv,
surgido no seio da Modernidade.
Palavras-Chave: Transcendência Poética, Decadentismo,
Cruz e Sousa.
SICKY ECSTASY: POETIC TRANSCENDENCE AND
RAPTURE OF PRECIPITATION IN BRAZILIAN
DECADENTISM - AN EXAMPLE
IN CRUZ E SOUSA
Abstract: This article is a discussion on the vision of transcendence peculiar to the poetic of Decadentism and considers the reference offered for the Cruz e Sousa´s poetry. We
call poetic transcendence the search for Ideal and for broke
the barrier of usual perception by the poetic work. Among
the romantics, the transcendence was search for many
ways; one of them was the sublime ravishing. In the Symbolism/Decadentism, the transcendent ravishing finds its
opposite – the fall. The Cruz e Sousa´s poetry illustrates this
new leitmotiv which have rise in the center of Modernity.
Keywords: Poetic Trancendence, Decadentism, Cruz e Sousa.
1 Doutor em Estudos Literários pela UNESP – FCL, Campus de Araraquara. [email protected]
POLIFONIA
CUIABÁ
EDUFMT
Nº 20
P. 53-68
2009
issn 0104-687x
A obra de Cruz e Sousa (1861-1898) é marcada por uma
tensão que apresenta seu universo poético como cindido entre duas instâncias que se embatem no plano da elaboração
estética. Poeta idealista por um lado, mas sensualista por
outro, Cruz e Sousa retrata em sua obra, de maneira agônica,
o conflito entre o físico e o etéreo, que muitas vezes expressa
a convivência problemática entre grotesco2 e sublime3. Para
se entender essa tensão fundamental para muitos aspectos
da obra de Cruz e Sousa é conveniente tomar como ponto de
partida o plano no qual essas duas frentes se esbarram – é
na instância das impressões sensoriais, mutáveis e incertas,
que o inefável e o concreto confluem.
A perscrutação de nexos com outras realidades na instância das impressões está no centro de muitas das práticas
simbolistas; assim é, por exemplo, com os tóxicos, venenos
e perfumes de Baudelaire, com a música de Verlaine ou com
a busca por sensações excêntricas empreendida pelos decadentes – como atesta o À rebours, de Huysmans, romance
cujo herói, Des Esseintes, como anacoreta da decadência,
isola-se da convivência com o mundo comum, refugiando-se
junto a seus gostos exóticos, cultivando-os religiosamente
2 O grotesco é um conceito passível de muitas definições, visto tratar-se de uma categoria que comporta manifestações estéticas multiformes; no entanto, em todas as
definições do que se poderia chamar de grotesco romântico, observa-se recorrência da
expressão de contrastes agudas, os quais se manifestam comumente no hibridismo
entre gêneros, no inesperado oriundo da intervenção do insólito e da subversão das
convenções de verossimilhança (KAYSER, 2003). O grotesco, portanto, seria configurador de fenômenos contraditórios e ambíguos. Uma categoria que se expressa por meio
de híbridos que vão desde os monstros compostos por fragmentos de corpos estranhos
entre si que figuram nos ornamentos que dão origem ao termo grotesco (ornamentos
fantasiosos conhecidos desde a Antiguidade) até a fusão de conceitos normalmente
inconciliáveis, flagrante no amálgama entre dor e riso, atração e repulsa, horror e
beleza. Assim, poder-se-ia concluir, que o belo horrendo que dá forma ao erotismo de
Cruz e Sousa é passível de entendido nos termos dessa categoria estética.
3 O sublime, na definição de Kant, nasceria da constatação de que a razão humana,
em face a fenômenos sensoriais de grandiosidade imensurável, possui limites, não
podendo compreender todos os aspectos da realidade. O sublime constituiria um
desafio também à imaginação, a qual, ante a perspectiva da infinitude do sublime,
falharia em representá-lo concretamente; tal impossibilidade transportaria o homem
diretamente à instância das “Ideias”, na qual o sublime então poderia ser representado. Desse modo, suscitaria o sublime a contemplação dos aspectos mais violentos e
magníficos da natureza, tais como o mar agitado pela tempestade, as gargantas dos
abismos e os céus infinitos; nas palavras de Kant: la naturaleza suscita las más veces
las ideas de lo sublime cuando es contemplada en su caos y en el desorden e ímpitu
destructor más salvages e irregulares com tal de que se puede ver grandiosidad e potencia (KANT, 1961, p. 87). Grosso modo, poder-se-ia colocar sob a égide do sublime
todos os fenômenos nos quais se vislumbre a infinitude. O sublime seria, portanto:
“lo absolutamente grande [...] lo grande por encima de toda comparacíon [...] aquello
comparado com lo cual resulta pequeño todo lo demás” (KANT, 1961, p. 89-91).
54
(HUYSMANS, 1977). O hedonismo extravagante de Des Esseintes transforma seu exílio em eremitério, onde prazeres
excêntricos, como a contemplação de obras de arte raras,
cultivo de plantas tóxicas estranhas e a entrega quase mórbida às cismas interiores, convertem-se em ofícios de uma
religião das impressões.
Talvez por sua sensibilidade atenta às nuances sutis da
sensorialidade, os simbolistas sempre estiveram ocupados
com epifanias e transcendências buscadas no reverso do
ordinário. Por isso, procuraram no misticismo cristão, ou
de outras culturas, vocábulos e conceitos que definissem a
sua religião estética. Também viram em estados anormais
de consciência vias para operar mudanças nas impressões
e assim transubstanciar a própria realidade. A perda da
razão e o êxtase estão entre esses estados.
Aqui no Brasil, por exemplo, desde os primeiros autoalcunhados decadistas – anteriores a Cruz e Sousa – estabeleceu-se um termo que pode bem definir a sensibilidade
simbolista. Trata-se do termo nevrose, bastante recorrente
na dicção dos simbolistas brasileiros. A nevrose parece
ter ocupado dentro do imaginário simbolista o lugar antes
reservado à atuação do êxtase religioso e das epifanias e
inspirações poéticas. Reconhecendo-se como uma parcela à
margem do mundo, os decadentes/simbolistas buscam no
mesmo lado gauche a substância motriz de sua criação estética; a doença dos nervos, fonte das alucinações, é também
senhora das fantasias, que impossibilita os artistas de verem
com olhos normais, levando-os a uma contemplação oblíqua
da realidade, que vislumbra também outros mundos.
Essa espécie de êxtase enfermiço pode ser visto como
uma encruzilhada sombria onde o eu lírico, musas e quimeras se encontram, na união quase incestuosa entre as impressões do mundo e as fantasias oriundas do mistério.
Em tempos de decadência, perda da orientação metafísica, agonia do sublime e morte de Deus4, estados como a
nevrose, análogos ao tédio e à melancolia, já celebrizados
pelos românticos anteriores, assumem o lugar das facul4 Tais motivos, sobretudo o tópos da morte de Deus, são discutidos em obras canônicas
dedicadas à poética romântica e moderna; como exemplo citamos Os filhos do barro
de Octavio Paz (1994).
55
dades transcendentes da poesia. Esses estados anímicos,
muitas vezes, ganham forma no grotesco.
A poética de Cruz e Sousa, sempre regida pelas tensões, também vê semelhanças entre o arrebatamento da
sensibilidade e os ardores da febre. Sua obra talvez seja
a manifestação mais bem acabada da explosão da sensibilidade em zonas nas quais as formas da imaginação se
unem convulsivamente às impressões. Seus poemas são
manifestações do êxtase, sobretudo quando se considera a
primeira obra em versos de Cruz e Sousa – Broquéis.
Broquéis, segundo consta nas informações biográficas
fornecidas por Nestor Vítor, foi escrito em pouco tempo.
Trata-se de uma compilação de poemas que datam da segunda e definitiva ida de Cruz e Sousa ao Rio de Janeiro,
em 1890. Considerando-se a data da publicação do livro
– 1893, constata-se que os poemas que o compõem foram
escritos em apenas três anos (VÍTOR apud COUTINHO,
1979, p. 127-28). O pouco espaço cronológico que há entre
os poemas pode explicar a recorrência de muitos temas e
leitmotive que chamam a atenção em Broquéis, como o Esteticismo decadente, o erotismo, a convenção de imagens
cromáticas brancas e a tonalidade febril e violenta de seu
discurso. Na época da publicação do livro, essas características foram interpretadas como cacoetes do poeta. Ao
contrário disso, elas parecem compor antes um plano de
integração estética arbitrário. A unidade existente em Broquéis não dá indícios de ser simplesmente involuntária;
ao levarmos em conta a proposta de lançamento de um
livro comprometido com uma nova estética (o Simbolismo),
tendemos a considerar como proposital a homogeneidade
das características desta obra. O livro apresenta inclusive
um poema programático – “Antífona”, no qual se observa
a existência de muitas das idiossincrasias da obra, como
a temática, o elogio ao esteticismo e a materialização de
imagens diáfanas, elementos que podem ser considerados
parte uma proposta estética.
Normalmente atribui-se ao Simbolismo a construção de
poemas por meio do discurso sugestivo, a qual dota os silêncios e as entrelinhas de significação tão expressiva quanto
a das palavras. Exemplos típicos, e talvez, até mais radicais
56
desta proposta, podem ser observadas em poemas de Mallarmé ou em Maeterlinck, cuja obra Serres Chaudes pode dar
mostras claras desta prática estética. Em Cruz e Sousa, no
entanto, e principalmente em Broquéis, constatamos uma
forma de expressão, muito diferente da encontrada nos
poetas do Simbolismo europeu, afeitos às “ausências”. No
poeta brasileiro, os substantivos normalmente acumulamse em associações metafóricas e os adjetivos revestem os
de matizes variados. Uma estrofe do soneto “Dilacerações”
permite a visualização desta maneira de construção:
Carnes virgens e tépidas do Oriente
do Sonho e das Estrelas fabulosas
carnes acerbas e maravilhosas
tentadoras do sol intensamente...
(CRUZ E SOUSA, 1961, p. 24)
Cada substantivo está acompanhado por pelo menos
um adjetivo, e não há nenhum verbo (o que é bem típico
de Cruz e Sousa), o que aumenta a plasticidade de seus
textos, visto que a ação suscitada pelos verbos se mostra
atenuada. A sugestão, cara aos simbolistas, na estrofe
apresentada, dá-se na apresentação de imagens de forma
não descritiva, composta apenas por elementos nominais;
no entanto, esta forma de construção discursiva implica
uma explicitação clara dos conceitos, o que pode ser visto
como um fator pouco sugestivo. O crítico Carlos Dante Moraes vê Cruz e Sousa como poeta mais afeito à exposição
de impressões do que à sugestão do impreciso; para ele,
destaca-se a dramaticidade das imagens (MORAES apud
COUTINHO, 1979, p. 285-86).
Justamente um espetáculo de figurações impressionantes se observa em Cruz e Sousa; o que em Broquéis traduz-se
em imagens eufóricas e violentas. Em poemas como “Cristo
de bronze”, “Lésbia”, “Múmia” e “Dança do ventre” as imagens referentes à carne e ao sangue são frequentes, assim
como a violência expressa na tensão entre opostos, como
atração e repulsa, medo e desejo, bestialidade e galanteria
erótica. Tais conceitos, postos em relações antagônicas,
convergem no tema erótico em Broquéis com uma frequência
que chama a atenção.
57
O erotismo em Cruz e Sousa não se expressa de forma
equilibrada, ou resolvida, mas consiste numa forma de
sensualismo tenso. Os aspectos do demoníaco também
estão associados à matéria erótica desenvolvida pelo poeta,
numa clara remissão a Baudelaire que também revela a
identidade do desejo com o tormento, o que mais uma vez
implica o tópos da angústia. A matéria erótica é complexa
em Cruz e Sousa, baseando-se em tensões, expressas por
contradições e junções insólitas que por vezes se manifestam no grotesco.
O destaque dado ao erótico nos poemas de Broquéis
parece ligar-se em seus fundamentos ao encantamento das
impressões sensoriais e à busca do êxtase por meios anômalos – anômalos, pois o erotismo em Cruz e Sousa é revestido
pela ameaça, contando em sua fruição com um híbrido de
fascínio e terror. Eco de uma tradição romântica que conferiu ao belo formas aflitivas oriundas de seus opostos. O
erotismo maldito demonstra ser uma faceta mais intimista da
contemplação da beleza turva utilizada pelo projeto estético
romântico para alargar as fronteiras do belo, como reconhece
o estudo A carne, a morte e o diabo na literatura romântica
de Mario Praz (1994). Além do mais, o erotismo é bastante
adequado a uma estética questionadora dos postulados da
razão, já que suas pulsões tangem – como considerou Georges
Bataille nos ensaios que compõem sua obra O erotismo – a
aspectos primitivos da sensibilidade, despertando sensações
que colocam em xeque o isolamento da categoria do sujeito,
por meio da diluição do indivíduo em uma miríade de sensações inexplicáveis racionalmente (BATAILLE, 1987).
Enquanto a arte encaminha o sujeito para nirvanas cataclísmicos, buscados em êxtases estéticos, o motivo erótico
implica a precipitação do sujeito nos abismos da perdição.
Por isso, o objeto de contemplação, mormente, assume a
forma de monstros grotescos, vampiros devoradores, cuja
atração magnética se estabelece em uma espiral de impressões contraditórias que vão do asco ao desejo, do fascínio
ao horror e são unidas pelos elementos do grotesco e pela
homologia entre o êxtase e a morte. O demoníaco, o macabro e o mórbido denunciam a filiação do eu lírico de Cruz
e Sousa a uma tradição sinistra do imaginário romântico,
58
ao invés da pudicícia religiosa, como se poderia supor.
Não demonstra fidelidade ao moralismo cristão uma lírica
que gerou poemas profanadores e sacrílegos como “Cristo
de Bronze” (Broquéis), no qual Cristo surge como entidade
diabólica, ídolo do pecado e do desejo – “Na rija cruz aspérrimo pregado/canta o Cristo de bronze do Pecado/ ri o
Cristo de bronze das luxúrias...” (CRUZ E SOUSA, 1961, p.
73) – ou “Sexta-feira Santa” (Últimos Sonetos), onde a descrição do cadáver de Cristo é acometido por uma putrefação
demoníaca – “Mas da sagrada Redenção de Cristo/ Em vez
do grande Amor, puro, imprevisto/ Brotam fosforescências de gangrena!” (CRUZ E SOUSA, 1961, p. 213). Tais
poemas revelam uma crise metafísica que não se submete
aos postulados da fé cristã. Quando Cruz e Sousa recorre
ao Cristianismo, assim como outros simbolistas, o faz na
medida em que suas conotações místicas correspondem à
transcendência que recobre a experiência poética5.
O diabo, a morte e a doença são três entidades que ocupam o imaginário erótico romântico desde muito tempo e
constituem uma longa tradição. Mario Praz reconhece que
a figura feminina maldita – misto de sedução e monstruosidade – manifesta-se de várias formas nas artes do fim
do século XIX (PRAZ, 1994, p. 194), e suas representações
parecem compartilhar uma série de características com
os poemas de Cruz e Sousa de mesma temática. Essas sedutoras apresentam-se como seres que exercem poder de
vida e morte sobre a criatura seduzida, sendo repelidas e,
ao mesmo tempo, desejadas. Suas representações evocam
imagens como as de predadores ou animais repulsivos,
que fazem lembrar os velhos mitos e lendas das harpias,
lâmias, vampiros, melusinas e esfinges. De alguma forma,
estes monstros se nutrem da desgraça do ser seduzido tanto
por lhe trazerem maus agouros, como por fartarem-se em
sua carne e sangue.
5 Apesar de o Cristianismo estar presente na poesia simbolista, do mesmo modo que
outras manifestações místicas, como as religiões orientais ou o paganismo ocidental
(esse último mais influente no Pré-rafaelismo inglês e na poesia de inspiração celta
de Yeats), em alguns simbolistas, o Cristianismo foi elemento bastante importante
na elaboração de projetos estéticos. É o caso de Antonio Nobre, que imprimiu em
sua poesia elementos nacionalistas, dentre os quais estava o catolicismo popular
lusitano; ou ainda de Alphonsus de Guimaraens, cuja poesia mística atesta uma
devoção religiosa acentuada.
59
O erotismo de Broquéis tem forte relação com o mal e
com a morte. O desejo, na voz poética, manifesta-se como
carnes laceradas (como em “Dilacerações”), animais repulsivos (“Dança do Ventre”) e figuras demoníacas (“Lésbia” e
“Afra”). E o eu lírico, quando não é uma espécie de Tântalo
imerso no tártaro do desejo inatingível, é vítima de uma
relação erótica predatória muitas vezes alicerçada no grotesco. Contudo, em muitos momentos, o grotesco parece
ineficiente para manifestar por si próprio a profundidade
dos abismos da perdição erótica. É nesse momento que o
sublime a ele se mescla expressando nessa conjunção um
terror nascido do contato da sensibilidade do eu lírico com
as forças diluidoras do mistério com nuances de morte. É
isso que se observa no poema “Múmia”:
1. Múmia de sangue e lama e terra e treva,
Podridão feita deusa de granito,
Que surges dos mistérios do infinito
Amamentada na lascívia de Eva.
2. Tua boca voraz se farta e ceva
Na carne e espalhas o terror maldito,
O grito humano, o doloroso grito
Que um vento estranho para os limbos leva.
3. Báratros, criptas, dédalos atrozes
Escancaram-se aos tétricos, ferozes
Uivos tremendos com luxúria e cio...
4. Ris a punhais de frígidos sarcasmos
E deve dar com gélidos espasmos
O teu beijo de pedra horrendo e frio!...
(CRUZ E SOUSA, 1961, p. 71)
Escusado apontar a filiação da imagem central desse
soneto – a múmia canibal e ctônica – às mulheres fatais
dos poemas de Baudelaire, cujo fatídico poder de atração
converte-as, com freqüência, em monstros que, embora
descritos com a galanteria irônica e o requinte que caracterizam o discurso baudelairiano, apresentam laivos
horrendos. Assim como Baudelaire (em poemas como “Le
Léthé”, “Une Charogne” e “La Danse Macabre”) explora novas potencialidades da beleza ao conferir graça ao horror
60
e ao grotesco, Cruz e Sousa produz uma forma de beleza
aflitiva na qual grotesco e sublime encontram-se no retrato
da contemplação do horror. Comum entre os dois poetas é
o apelo erótico ligado à diluição de si próprio.
Em “Múmia”, temos uma força devoradora, intimamente vinculada aos aspectos do feminino, materializada em
uma entidade hedionda, cujos traços tanto têm de grotesco
quanto de sublime. A própria matéria prima que compõe
esse monstro devorador agrega aspectos sublimes e grotescos: a Múmia é composta por “sangue”, “lama”, “terra”
e “treva”. Tratam-se de vocábulos ligados ao grotesco por
remeterem ao tópos do baixo – literalmente ao chão, no
caso de “lama” e “terra” – e por emanarem o horror e o
fantástico, como “sangue” e “treva”. Esses mesmos termos
ligam-se a conceitos míticos vinculados, principalmente,
ao ctônico e ao telúrico (nos casos de “lama” e “terra”) e ao
caótico, expresso na alusão às zonas limítrofes entre vida e
morte (“o sangue”), assim como aos elementos misteriosos
que envolvem o cosmo, representando tanto as ausências
quanto a escuridão primordial (“treva”). Assim, a múmia é
descrita como monstro gerado da conjugação da terra com
a escuridão, banhada com sangue, de uma maneira que
remete à cosmogonia mítica. Os pontos de contato com o
elemento caótico das cosmogonias inevitavelmente filia a
imagem ao sublime, remetendo ao infinito e à contemplação
dos aspectos terríveis do próprio universo.
Mais adiante é reforçado o caráter ctônico e cósmico da
múmia:
Podridão feita deusa de granito,
Que surges dos mistérios do infinito
Amamentada na lascívia de Eva.
Se, por um lado, a putrefação aponta os estágios avançados e repulsivos da morte, por outro, participa de uma
composição imagética que depura a natureza grotesca: a
ligação da podridão da carne com a terra gera a analogia
com a pedra, a partir da qual nasce a deusa devoradora
do poema. Não se trata de mero cadáver putrefato, mas de
uma “deusa de granito”, cuja condição hedionda encontra
o sublime quando ela é convertida em entidade telúrica. O
61
caráter sublime desse cadáver grotesco é realçado quando
a múmia surge “dos mistérios do infinito” e é “amamentada
na lascívia de Eva”, ou seja, é fruto da conjugação das forças
cósmicas desconhecidas e do erotismo maldito representado
pela figura de Eva, emblema do vínculo entre a mulher e o
pecado, segundo a concepção judaico-cristã.
Assim, o próprio elemento feminino (por extensão, o
erótico) – já que remete tanto ao mistério, quanto ao ctônico – aproxima grotesco e sublime: ora a mulher integra a
galeria dos monstros ctônicos, ora o fascínio ambíguo que
exerce obriga o eu lírico a referir-se à múmia como deusa,
justamente por seus atributos femininos. A múmia de Cruz
e Sousa aproxima-se, desse modo, das deusas-monstro dos
mitos primordiais, fazendo parte do panteão grotesco criado pelo poeta, no qual já figura o velho satã decadente de
“Majestade caída”. Enquanto esse satã, como um Prometeu
gauche, preside sobre os homens (mais precisamente sobre
a “raça” dos poetas), a múmia encarna o escuro, o lado
desconhecido da natureza e o feminino.
Assim como nos mitos, em que o caos gera formas monstruosas que se insurgem contra a nova ordem do cosmo,
ameaçando-o de destruição; a múmia de Cruz e Sousa é
força ameaçadora e voraz:
Tua boca voraz se farta e ceva
Na carne e espalhas o terror maldito,
O grito humano, o doloroso grito
Que um vento estranho para os limbos leva.
A ligação da múmia com os outros mundos recebe relevo
ainda maior no primeiro terceto do poema, quando a boca
devoradora grotesca evoca outras grotas, portais que ligam
o mundo conhecido a mistérios terrificantes – imagens localizadas entre o sublime e grotesco:
Báratros, criptas, dédalos atrozes
Escancaram-se aos tétricos, ferozes
Uivos tremendos com luxúria e cio...
Esse decassílabo heroico e formado por aliteração de
fonemas fricativos que dão à sequência cumulativa dos termos uma impressão acústica de crepitação, como se ao ler
62
o poema caminhássemos em terreno escarpado. Além disso,
nota-se um paralelismo perfeito na distribuição tônica das
sílabas: proparoxítona (“báratro”) / paroxítona (“criptas”)
/ proparoxítona (“dédalos”) / paroxítona (“atrozes”). Esse
esquema também contribui para a impressão acústica de
atrito, impressão essa que percorre praticamente todo o
terceto: “escacaram-se”, “tétricos”, “ferozes”, “tremendos”
e “luxúria”.
Nesse terceto as grotas estão ligadas ao elemento erótico:
é precisamente o terror matizado por magnetismo sexual
(“uivos tremendos com luxúria e cio”) que parece tragar o
eu lírico para o além. Nos “uivos de luxúria” encontramos
um paralelo grotesco do “grito humano, o doloroso grito”
despertado pela múmia, presente no segundo quarteto do
poema. Se num primeiro momento a múmia é fonte de terror, posteriormente, escancaradas as portas do mistério e
aberta a via para a transcendência rumo ao desconhecido,
ela torna-se entidade promotora de atração erótica, expressa
no terror e nas imagens acústicas, agora bestializadas pelo
desejo. Se o grito de terror era humano, os sons da luxúria
são animalescos (“uivos” movidos pelo “cio”).
No terceto final, o cadáver devorador, deusa grotesca e
sublime dos mundos desconhecidos, é personificado como
uma femme fatale:
Ris a punhais de frígidos sarcasmos
E deve dar com gélidos espasmos
O teu beijo de pedra horrendo e frio!...
Aqui a atmosfera erótica que se insinuava na contemplação dessa entidade se torna mais explícita, na identificação
da múmia com a femme fatale indiferente, de riso cortante
como punhais, cujo beijo gélido é ofertado como um espasmo de morte. Imagens associadas ao campo semântico das
ausências parecem evocar a morte. Seus beijos são como os
dos vermes, monstros e vampiros de Baudelaire – mordidas
que, entre carícias nefastas, arrancam pedaços do indivíduo,
aniquilando-o na experiência erótica.
“Múmia”, desse modo, comprova a maneira como as
experiências sensoriais servem como forma de diluição do
material e encaminham a sensibilidade para as instâncias
63
inefáveis, mesmo por caminhos perigosos. O mundo material, apartado dos ideais e dos sonhos, em Cruz e Sousa, é
palco da angústia, já que sua lírica atesta uma busca passional pela dissolução da matéria e a liberdade das outras
faculdades do sujeito – sejam essas o espírito, a consciência
ou a imaginação. Por isso, o erotismo está entre os temas
mais tensos de sua lírica, já que nele os impulsos da matéria, expressos no desejo sexual, se tornam intensos, ao
mesmo tempo em que propiciam sensações de evasão do
próprio corpo, suscitadas por estados extáticos. Junta-se
a esses elementos toda a tradição do erotismo maldito legada pelo Romantismo, que em Cruz e Sousa transforma a
pulsão erótica em um arrebatamento a planos muitas vezes
sinistros, como se observou no poema “Múmia”.
O que se observa na obra de Cruz e Sousa, porém, não é
o processo de sublimação do sujeito lírico – como supuseram
algumas leituras canônicas da obra Últimos Sonetos – mas
o retrato da aspiração dolorosa pela transcendência. Nesse
sentido, convém lembrar aqui de uma tendência da crítica
em observar na lírica do autor um percurso que vai da revolta inicial nas primeiras obras até uma suposta resignação
estoica presente em Últimos Sonetos. Tal tendência contou
com forte prestígio, sendo representada por nomes bastante
expressivos de nossa cultura artística, como Fernando Góes,
Henriqueta Lisboa, Tasso da Silveira e Walter M. Barbosa.
Esses estudiosos tinham como ponto em comum a
percepção de elementos cristãos na metafísica de Cruz e
Sousa, concebendo a preponderância do satanismo estético como características superadas em Últimos Sonetos.
No entanto, como aponta Ivone Daré Rabello, no ensaio “A
Jornada Vã – polêmica sobre o misticismo cristão de Cruz
e Sousa: Comédia divina e ironia moderna”, a busca por
transcendência nos poemas de Cruz e Sousa manifesta-se
com muito mais frequência na dúvida.
Além disso, a resignação atribuída por essa tendência da
crítica aos poemas de Cruz e Sousa está distante das interjeições sofridas do discurso passional que domina os meios
de expressão do poeta. Tentar resolver os conflitos instaurados pela lírica de Cruz e Sousa mediante a perspectiva
do misticismo cristão, além de ser um equívoco, segundo
64
Ivone Daré Rabello, seria uma forma cômoda de simplificar
as tensões que são a pedra de toque de sua obra. Afinal, a
aparente paz de alguns poemas de Últimos Sonetos, como
afirma Ivone Daré Rabello (apud IOPANAN, 1999, p. 29),
traz no fundo uma trama de “conflitos insolúveis”:
Se o caminho ascensional, místico, ordena grande parte
desses Últimos Sonetos, a temática, única na lírica brasileira, ao menos no século XX, suscita especulações
sobre a via crucis do homem negro e pobre. Na arte, teria
vertido dor em certezas espirituais e a experiência se sublimara nas lides da elaboração poética, dissolvendo-se
angústia em canto. A interpretação, muito recorrente,
é também cômoda e acomodadora: todos conflitos que
se põem à mostra na obra de Cruz e Sousa, em chave
de poesia enigmática, ficam então resolvidos pela força
com que o injustiçado se voltou para a visão beatífica.
(RABELO apud SOARES, 1999, p. 28)
Além da aspiração pela transcendência, é preciso considerar ainda a inclinação que a poesia de Cruz e Sousa
tem pelas analogias vertiginosas e intrincadas. Assim, sublime e grotesco não se configuram isoladamente em sua
lírica, mas, com frequência considerável, misturam-se,
gerando uma forma de beleza nova, em medidas ainda não
exploradas pelo Romantismo anterior. Em Cruz e Sousa,
a conjugação do grotesco e do sublime parece nascer da
tentativa de expressar as dimensões dos conflitos de sua
sensibilidade, tão aberta ao apelo das altas esferas como
imersa nos disformes pesadelos interiores. É como configuração da dinâmica que orquestra as variações da angústia
que essas duas categorias se unem.
Dor e arte são elementos superlativos em Cruz e Sousa,
tomando não apenas conta das instâncias internas do eu
lírico, como dos espaços metafísicos que a Modernidade
tornou vazios, com seu elogio da razão em detrimento da
visão encantada de mundo.6 Por isso, pode-se falar em uma
6 Michael Löwy e Robert Sayer em seu estudo intitulado Revolta e Melancolia, tratam
o Romantismo em termos de um fenômeno engendrado no centro da Modernidade
como resistência aos ditames racionais e utilitaristas da própria Modernidade. Assim,
segundo os autores, para exercer sua crítica, o Romantismo, entre outros fatores
buscaria uma forma de reencantamento do mundo através da arte e do pensamento
(LÖWY. SAYER, 1995, p.34-35)
65
metafísica da angústia em Cruz e Sousa que tem entre suas
pulsões a visão ascensional da arte, a busca do absoluto no
inefável e a negação da matéria. O universo de Cruz e Sousa
é, desse modo, dotado de uma cosmologia dual, semelhante
à platônica, mas de cores mais carregadas.
A parcela do mundo física, material e sensorial é revestida por formas grotescas que dão face a todas as limitações,
carências e anseios frustrados – o grotesco, nesse sentido,
tende a ser o rosto hediondo das misérias humanas; como
é indiciado em poemas como o soneto “Condenação fatal”:
Ó mundo, que és o exílio dos exílios,
Um monturo de fezes putrefato,
Onde o ser mais gentil, mais timorato,
Dos seres vis circula nos concílios
[...]
Oh! Como são sinistramente feios
Teus aspectos de fera, os teus meneios
Pantéricos, ó mundo que não sonhas!
(CRUZ E SOUSA, 1961, p. 203)
Já o sublime, com seu caráter diáfano, indica o mundo
onde as fantasias poéticas encontram o absoluto – é o sublime, portanto, que sugere o ideal. Todavia, como se pode
observar, as duas categorias se encontram com frequência em sua obra, precisamente naquelas zonas em que o
transporte de um mundo a outro, em geral, é operado na
tentativa de fixação do processo de transcendência. Desse
modo, pode-se concluir que a visão metafísica de Cruz e
Sousa é registrada esteticamente no processo de tentativa
de romper as amarras materiais e subjetivas com fins de
diluir o sujeito no absoluto.
Tomando-se o exemplo de Cruz e Sousa como sintomático da sensibilidade particular que regeu a poética decadentista, tributária da tradição romântica e solo fértil da poesia
da Modernidade, torna-se flagrante que a transcendência
estética – tema que em contextos anteriores costumava
tornar-se manifesta na esteira do sublime – encaminhou
os líricos do fin-de-siècle aos mistérios da noite, dos abismos e do Nada. Para eles, a transcendência não parece
assumir os contornos do arrebatamento, mas traduz-se
66
melhor como experiência de precipitação. Baudelaire, farol dessa geração, já havia ensinado aos seus discípulos o
caminho para a plaga sombria onde um novo ideal, ainda
desconhecido, aguardaria para ser descortinado, ao cantar
no poema “La Mort”, “Plonger au fond du gouffre, Enfer ou
Ciel, qu´importe?/Au fond de L´inconnu pour trouver du
nouveau!7” (BAUDELAIRE, 1961, p. 30). Foi precisamente
nos abismos (mesmo que confundido algumas vezes com
o firmamento escuro) que Cruz e Sousa se precipitou ao
seguir a vereda entrelaçada entre o grotesco e o sublime,
cujo término parece desembocar em uma forma de beleza
ambígua, vertiginosa, e aparentemente até então desconhecida pelas letras nacionais.
Referências
BATTAILLE, G. O Erotismo. Tradução de Antonio Carlos Viana.
Porto Alegre: L&PM, 1987.
BAUDELAIRE, C. Oeuvre complète. Paris: Gallimard, 1961.
BURWICK, F. The Haunted Eye: Perception and Grotesque in
English and German Romanticism. Heidelberg: Winter Verlag,
1987. (Reihe Siegen, 70)
CALINESCU, M. Cinco caras de la modernidad. Madrid: Editorial
Tecnos, 1991.
COUTINHO, A. (Org.) Cruz e Sousa. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira/ Brasília: INL, 1979.
CRUZ E SOUSA, J. da. Obra completa. Organização, introdução
e notas de Andrade Muricy. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1961.
HUGO, V. Do grotesco e do sublime. Tradução de Célia
Berrentini. São Paulo: Perspectiva, 1988.
HUYSMANS, J-K. À Rebours. Paris: Gallimard, 1977.
KANT, E. Crítica del judicio. Tradução de José Rovira Armengoi.
Buenos Aires: Losada, 1961
KAYSER, W. O Grotesco: Configuração na pintura e na literatura.
Tradução de J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2003.
7 “Mergulhar no fundo do abismo, Inferno ou Céu, que importa?/Ao fundo do desconhecido para encontrar o novo!” (tradução livre de nossa autoria).
67
LÖWY, M. SAYRE, R. Revolta e melancolia: o Romantismo
contramão da modernidade. Tradução de Guilherme João de
Freitas Teixeira. Petrópolis: Vozes, 1995.
MICHAUD, G. de. Méssage poétique du symbolisme. Paris:
Nizet, 1966.
MURICY, J. C. de A. Panorama do movimento simbolista
brasileiro. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional,
1987.
PAZ, O. Os filhos do barro: do romantismo à vanguarda. Tradução
de Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994.
PRAZ, M. A carne, a morte e o diabo na literatura romântica.
Tradução de Philadelpho Meneses. Campinas: Editora da
Unicamp, 1994.
RABELO, I. Polêmica sobre o misticismo cristão em Cruz e Sousa:
Comédia divina e Ironia Romântica. In: SOARES, I. Morcego
Cego. Revista de Estudos sobre Poesia. Florianópolis, v. 2, p.
27-42, 1999.
WEISKEL, T. O sublime romântico. Tradução de Patrícia Flores
da Cunha. Rio de Janeiro: Imago, 1994.
Recebido em 31/10/2009
Aceito em 30/11/2009
68
ESAÚ E JACÓ E MEMORIAL DE AIRES:
A ABOLIÇÃO E A REPÚBLICA SOB O
OLHAR MACHADIANO
Adriana da Costa Teles1
Resumo: Os romances finais de Machado de Assis, Esaú e
Jacó (1904) e Memorial de Aires (1908), são ambientados
em um período que cobre a emancipação dos escravos e a
transição do Império para a República no Brasil. Ambos
os romances, apesar de apresentarem uma abordagem
discreta sobre tais questões, deixam margem para que o
leitor discuta índices interessantes a respeito desse período pela qual o país passava. O objetivo do presente artigo
é discutir alguns aspectos da maneira pela qual Machado
retrata esse momento delicado da história brasileira por
meio de sua ficção.
Palavras-chave: Esaú e Jacó, Memorial de Aires, literatura
e história.
ESAÚ E JACÓ AND MEMORIAL DE AIRES: ABOLITION
AND THE REPUBLIC UNDER MACHADO’S EYES
Abstract: Machado de Assis’ last novels, Esaú e Jacó (1904)
and Memorial de Aires (1908), take place years before its
publication, in a period that covers the emancipation of the
slaves and the transition from Empire to Republic in Brazil.
Although they present a discreet discussion about these
facts, both of them propitiate to the reader to notice interesting aspects of this Brazil in change. The aim of this article is
to discuss some aspects of the way Machado portraits this
delicate moment of Brazilian history by his fiction.
Keywords: Esaú e Jacó, Memorial de Aires, literature and
history.
1 Adriana da Costa Teles é doutora em Teoria da Literatura pela UNESP/Ibilce de São
José do Rio Preto, professora de Teoria da Literatura e Literatura Brasileira da FAIMI
(Mirassol) e da UNILAGO (São José do Rio Preto), e-mail: [email protected].
POLIFONIA
CUIABÁ
EDUFMT
Nº 20
P. 69-82
2009
issn 0104-687x
As obras finais de Machado de Assis, Esaú e Jacó e Memorial de Aires, apesar de publicadas no início do século
XX, 1904 e 1908, respectivamente, são ambientadas anos
antes, ainda no século XIX. Os dois romances, que tem
em comum a presença de Aires, compõem um conjunto
interessante que, pelo período abordado, engloba um momento importante da história do Brasil: Memorial de Aires
tem como cenário histórico predominantemente a emancipação dos escravos, o romance dos gêmeos, por sua vez,
levemente toca na questão da abolição, para se focar no
evento da República.
Como é próprio do estilo machadiano, tal representação
não se faz de maneira óbvia, mas por meio de um discurso
resvaladiço e retórico que oculta em suas veredas elementos a serem perscrutados pelo leitor interessado em tais
questões. Em Esaú e Jacó, a temática se mostra de maneira
mais explícita, haja vista Pedro e Paulo, inimigos na vida
pessoal e política, um com tendências para a República,
outro para o Império. Além do conflito ideológico entre os
irmãos, há a presença de alguns capítulos do romance que
dão conta da questão. É o caso dos capítulos referentes
às tabuletas, “Tabuleta velha” e “Pare no D” e “O golpe” e
“Manhã de 15”, para citar alguns exemplos. Em Memorial
de Aires, a questão aparece de maneira mais discreta por
meio das anotações que o Conselheiro Aires faz em seu
diário. Astuto observador, Aires registra discretamente a
movimentação que circundou o evento. Tal descrição terá
como elementos decisivos os relatos do Comendador Campos, as personagens Santa-Pia e Fidélia.
1. Literatura e história
A presença do viés histórico nos dois últimos romances
machadianos chama a atenção do leitor que freqüenta os
textos do autor. Afinal, sabendo que nada se faz de maneira gratuita em sua ficção, tais índices nos convidam a
olhar mais de perto para a maneira com que são tramados. O olhar que dispensamos à questão se faz inspirado
pelo pensamento de Antônio Candido. O crítico brasileiro
chama a atenção em Literatura e Sociedade (1985) para a
importância de se fundir
70
(...) texto e contexto numa interpretação dialeticamente
íntegra, em que tanto o velho ponto de vista que explicava pelos fatores externos, quanto o outro, norteado
pela convicção de que a estrutura é virtualmente independente, se combinam como momentos necessários do
processo interpretativo (CANDIDO, 1985, p. 4).
Como se pode perceber, não se trata de adotar, aqui, um
ponto de vista segundo a qual o externo explica e atribui
valor à obra nem de tomar o texto como objeto cuja estrutura é completamente independente do universo exterior,
mas sim de conceber texto e contexto como elementos necessários ao trabalho interpretativo.
Para Candido, “o externo (no caso, o social) importa, não
como causa, nem como significado, mas como elemento
que desempenha certo papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno” (1985, p. 4). O que nos
interessa é discutir de que forma a questão histórica é trabalhada esteticamente de maneira tal a ser um elemento
produtor de significados no texto. A questão não é, portanto,
a do contexto social enquanto veículo a conduzir a corrente
criadora, fornecendo ambiente e costumes. É o que afirma
Candido que, ao comentar o romance Senhora, aponta para
a necessidade de fazer uma análise
em que levamos em conta o elemento social, não exteriormente, como referência que permite identificar, na
matéria do livro, a expressão de uma certa época ou de
uma sociedade determinada; nem como enquadramento,
que permite situá-lo historicamente; mas como fator da
própria construção artística estudado no nível explicativo
e não ilustrativo (CANDIDO, 1985, p. 7).
Semelhante discussão requer que o leitor esteja atento
não apenas às obliqüidades do discurso machadiano, mas
também às artimanhas de transposição de um universo
ao outro, ou seja, do universo da realidade para o da representação. Na tentativa de entender um pouco mais as
peculiaridades destes dois mundos, nos valemos de algumas considerações de Maria Teresa Freitas. Em Literatura
e História (1986), a autora nos mostra que, por meio da
construção do texto literário, os elementos do contexto social
71
são redistribuídos no fictício, dando origem a um universo
que é, até certo ponto, independente do universo social
original de onde foram extraídos. Segundo ela,
ao criar uma história, com personagens e situações dramáticas, o autor tentará passar uma visão pessoal do
universo – que não é de forma alguma cópia da realidade,
mas sim interpretação dos acontecimentos relacionados
à história –, através da qual chegará a uma realidade
distinta daquela que a originou (FREITAS, 1986, p. 7).
O escritor, ao tecer sua ficção, reconstrói o mundo que
o rodeia, dando origem a uma realidade outra, que é, ao
mesmo tempo, independente da realidade do qual ele é
parte, mas que com ela se relaciona de maneira intrínseca.
O resultado é a configuração de uma nova versão do mundo objetivo, que não pode ser confundida com a realidade
concreta. O valor artístico da obra estaria, segundo Freitas,
justamente nesse processo de transfiguração artística que
deforma o mundo exterior e produz uma realidade filtrada
pelos anseios do escritor. Assim, estamos, no caso de Esaú
e Jacó e Memorial de Aires, frente a um universo recémconcebido, que apresenta, embutido nas situações que traz,
o simulacro de uma determinada época e uma maneira
particular de representá-la e encará-la.
Para Hayden White, o escritor exerce o papel de uma
espécie de cronista de seu tempo. Sobre tal questão, White
afirma que tanto o escritor quanto o historiador têm como
objetivo oferecer uma “imagem verbal da realidade” (1994,
p. 138), mas ao romancista caberia o papel de oferecer
uma perspectiva indireta, ou seja, por meio de técnicas figurativas. Mesmo que Machado não tenha o compromisso
de uma representação factual, o período escolhido para
ambientar seus dois últimos romances sugere seu vínculo
com algum domínio da experiência humana, principalmente
no que concerne aos fatos que caracterizam o período escolhido. A produção machadiana, oferecendo um retrato da
vida burguesa do Rio de Janeiro do século XIX, oferece, ao
mesmo tempo, um retrato indireto do contexto social que
a circunda. Retratar a burguesia carioca, como se costuma
dizer das obras de Machado, requer situá-la em um con72
texto social abrangente que, mesmo não sendo o foco do
enredo, é parte inextirpável da vida social enfocada e cujo
papel dentro do contexto burguês encontra-se latente nas
situações e acontecimentos abordados.
Assim, personagens aparentemente isoladas de um
contexto social totalizante mostram-se profundamente reveladoras do modo como funciona todo um sistema. Esaú
e Jacó e Memorial de Aires, narrativas que aparentemente
se limitam a retratar uma classe social mais privilegiada
dentro do contexto carioca de fins de século XIX, trazem à
tona elementos de suma importância para a discussão de
aspectos fundamentais de um Brasil de fins de século.
2. Um pouco de Brasil sob a ótica machadiana
Os eventos históricos presentes em Esaú e Jacó e Memorial de Aires, sérios, devidos à sua própria natureza,
surgem imiscuídos a eventos de menor importância e valor,
inseridos na vida cotidiana das personagens. Tal recurso
composicional provoca um efeito interessante. Ao mesmo
tempo em que insere o tema de maneira despretensiosa e
casual, livrando o autor de um compromisso de representação factual e, portanto, deixando a obra mais livre de
expectativas e aberta a significações várias, proporciona ao
leitor observar os eventos a partir de uma ótica no mínimo
curiosa, de um ponto de vista, diríamos, interno à narração.
Por meio de tal recurso, o leitor passa a compartilhar do
aspecto cotidiano do evento, observando os fatos próximo
às personagens e a partir do dia-a-dia vivenciado por elas
em meio a tais acontecimentos.
A título de exemplificação, citamos Esaú e Jacó e uma
curiosa passagem que retomaremos ao longo de nossa discussão. A aproximação da República é trazida para o leitor,
no referido romance, dentre outros fatos, pelo episódio das
tabuletas. Custódio, dono de uma confeitaria conhecida
e tradicional, a “Confeitaria do Império”, decide pintar a
tabuleta do estabelecimento, substituindo a placa velha e
desbotada por uma nova e recém pintada. No entanto, os
boatos da “revolução” e da mudança do regime o colocam
em polvorosa, afinal, o investimento era grande e o risco de
73
uma represália dos republicanos poderia lhe render prejuízos como a quebra das vidraças e a própria destruição da
tabuleta. Isso faz com que mande um recado urgente ao
pintor: “pare no d”. Dessa maneira, Custódio poderia aproveitar o início da pintura, pois, caso o advento da República
se concretizasse, o fim estaria inevitavelmente perdido. No
entanto, o pintor já havia finalizado o trabalho e não queria
“despintar tudo” como lhe pede Custódio, a menos que este
lhe pagasse a despesa, o que causa profundo aborrecimento
ao confeiteiro e o leva a pedir auxílio a Aires. Este, na tentativa de ajudá-lo, sugere que mude o nome da confeitaria
para “Confeitaria da República”.
A passagem, que resumidamente apresentamos, aparece ao longo de alguns capítulos da obra e ilustra algumas
questões importantes sobre o envolvimento das personagens
com o evento iminente. De forma caricata, nos é mostrado
que as pessoas não estavam propriamente preocupadas
com a mudança que se aproximava, pelo menos, não preocupadas com os possíveis rumos que tomaria o país, mas
voltadas para suas preocupações particulares e interesses próprios. O acontecimento sério, que, a princípio, iria
abalar a estrutura de governo do país, aparece banalizado
em meio às preocupações do confeiteiro, que, indignado e
desolado, reflete: “E afinal que tinha ele com a política? Era
um simples fabricante de doces, estimado, afreguesado,
respeitado, e principalmente respeitador da ordem pública”
(EJ, 2003, p.137).
A mistura do sério com o banal é curiosa. Aliás, diríamos
que é aí que o discurso machadiano se faz certeiro e significativo. Mais do que assumir uma causa, a da representação
histórica, ou criar um efeito de verossimilhança para seu
romance, com um cenário que se apóia em fatos conhecidos
da então recente história brasileira, a opção pelo sério em
meio ao comezinho parece, em última instância, sugerir
a existência de certa distância entre o cidadão comum e
os fatos decisivos pela qual passava o país. O advento da
República parece afetar a personagem não porque alterará
a forma de governo do país do qual é parte, mas por mexer
com seu negócio e, principalmente, pela possibilidade de lhe
causar prejuízos financeiros. A opção ideológica, se a favor
74
do Império ou da República, ou mesmo a troca de regime,
parece pouco importar: “que tinha ele com a política”?
Ismael Ângelo Cintra afirma em “Discursos entrecruzados: história e representação em Esaú e Jacó”, artigo
publicado pela revista Linha d’água em 1990, que
a visita de Custódio, (...), tematiza o envolvimento periférico das pessoas com o fato maior da política nacional.
Tematização alegórica, evidentemente. Através da figura
quase caricata do comerciante às voltas com a tabuleta
velha e podre de sua confeitaria, imprópria para a tinta
nova e para novos letreiros (...), o texto permite perceber ironicamente, o tipo de interesse que a mudança de
regime desperta (CINTRA, p. 27, 1990).
O pouco envolvimento do cidadão comum com questões
maiores do país parece ser reiterado em Esaú e Jacó. Assim
como Custódio, outras personagens parecem mais preocupadas com questões particulares do que com aspectos
que concernem o todo da nação. É o caso de Santos, por
exemplo. Pertencente a uma classe social mais privilegiada, Santos, ao tomar conhecimento de que a república se
aproxima, preocupa-se com o funcionamento do sistema
financeiro que rege a nação. Fica claro, no entanto, que sua
preocupação não é com uma possível crise social, mas com
os prejuízos que poderia ter caso algo assim ocorresse. Ao
narrar as preocupações de Santos, o narrador afirma que
“todo ele parecia entregue ao presente, ao momento, ao comércio fechado, aos bancos sem operações, ao receio de uma
suspensão total de negócios, durante prazo indeterminado”
(EJ, 2003, p. 142). Os Batistas, por sua vez, mal controlam
a ansiedade: “nenhum deles podia crer que as instituições
tivessem caído, outras nascido, tudo mudado” (EJ, 2003,
p. 150). Estes, que haviam comemorado a presidência de
uma província na noite de 14, percebiam, estupefatos, que
o sonho de ascensão política e social estava extinto ou, pelo
menos, bastante comprometido.
É pertinente chamar a atenção, também, para a maneira
como as pessoas tomam conhecimento do advento da República em Esaú e Jacó. As primeiras informações chegam para
as pessoas de maneira incerta e parcial. Aires, por exemplo,
75
toma conhecimento do fato por meio de um discurso elíptico
e fragmentário. O Conselheiro, de manhã no Passeio Público, percebe certa agitação e ouve conversas que mencionam
“Deodoro, batalhões, campo, ministério, etc” (EJ, 2003, p.132,
grifos do autor). No entanto, tais informações não fornecem
dados precisos ou confiáveis ao Conselheiro, que não consegue saber com exatidão o que estava ocorrendo.
Na volta para casa, o cocheiro que leva Aires confirma
a chegada da República e afirma ter levado um passageiro
estranho que “tinha sangue nos dedos” (EJ, 2003, p.133).
No entanto, inseguro com o que teria visto, o cocheiro recua:
“Mas reparei e vi que era barro” (EJ, 2003, p.133) e logo
depois conclui: “pensando bem, creio que era sangue” (EJ,
2003, p.133). Além de traçar diálogo com um discurso absolutizador, enfatizando por meio do ponto de vista adotado
o quão incerto e ambíguo podem ser os fatos (e tocando em
questões relativas à representação, caras às correntes estéticas predominantes no período), tais passagens mostram o
tipo de envolvimento e engajamento que se tinha com tais
questões. A República parece muito distante não apenas
do povo, representado aí pelo cocheiro, mas também de
certa elite, Aires, por exemplo, o que torna o fato envolto em
mistérios e boatos. O que, em princípio, deveria fortalecer
e envolver os membros da nação, provoca especulações e
os colocam como espectadores da situação.
O envolvimento periférico das pessoas com os fatos de
seu tempo pode ser visto também em Memorial de Aires. A
última obra machadiana, que tem como discreto cenário a
emancipação dos escravos, apresenta uma sociedade que
mostra um individualismo latente. Memorial, como sabemos, é um romance escrito em forma de diário pelo Conselheiro Aires, que registra em seus apontamentos fatos e
impressões que presencia em seu dia-a-dia. Apesar de os
acontecimentos trazidos pelo suposto diário se ambientarem
entre janeiro de 1888 e agosto de 1889, cobrindo, portanto,
o evento da abolição, há, curiosamente, uma ausência quase
que total de alusão ao evento da emancipação por parte dos
personagens. Os fatos referentes à abolição presentes no
diário de Aires provêm de informações que lhe são fornecidas
pelo Comendador Campos, irmão de Santa-Pia, um fazen76
deiro escravista. O núcleo central de personagens, pequenos
burgueses cariocas, amigos de Aires e muito presentes em
seu memorial, sequer comenta a questão. Eis aí um índice
curioso. O fato de o acontecimento passar despercebido
pelo grupo, ao contrário do que ocorre com o advento da
república em Esaú e Jacó, se dá talvez devido a pouca interferência que produz na vida dessas pessoas. Ao contrário
do que ocorre em Esaú e Jacó, em Memorial as personagens
não se vêem ameaçadas pela mudança iminente.
Há, a esse respeito, uma passagem curiosa de Memorial
de Aires, que merece ser mencionada. Trata-se da entrada
de 14 de maio, meia-noite. Nela, o Conselheiro narra uma
visita feita à casa dos Aguiar na noite de 13 de maio, dia
da emancipação dos escravos. Aires narra que ao chegar
à casa dos Aguiar encontrou algumas pessoas e bastante animação. A alegria de todos o leva a felicitá-los pelo
acontecimento do dia, a abolição. A resposta que obtém,
no entanto, o espanta: “Já sabia?”. Não entendendo a situação, Aires aguarda algum comentário que o esclareça,
o que logo acontece. A felicidade geral era devida a uma
carta recém chegada da Europa em que o afilhado do casal,
Tristão, mandava notícias depois de muitos anos. A ironia
presente no texto é clara. A felicidade que o Conselheiro vê
nos presentes e atribui ao “grande acontecimento do dia”,
a emancipação dos escravos, estava equivocada. A alegria
e a comemoração na casa dos amigos não se deviam à abolição e sim a uma carta recém-recebida da Europa. Assim,
ganha sentido a irônica e sugestiva reflexão com que Aires
abre suas anotações de 14 de maio de 1888 para descrever
sua visita à casa de Aguiar na mesma noite: “não há alegria
pública que valha uma boa alegria particular” (MA, 2003, p.
281). O evento da abolição parece não figurar entre as preocupações dos amigos de Aires, sendo facilmente substituído
por eventos particulares que se instalam e roubam a cena
sem constrangimento. Novamente temos a ironia do narrador que sutilmente nos aponta uma sociedade segmentada
que se aliena dos acontecimentos decisivos de sua história
em virtude de um universo particular predominante.
Cabe aqui citar algumas interessantes observações que
Dirce Riedel faz em seu artigo “Omissão ou participação?
77
O negro na obra de Machado de Assis: Aires e o seu Memorial”, publicado em 1983, pela revista Caleidoscópio. Segundo a autora, Machado cria um narrador que observava
a sociedade pela ótica da alta e média burguesia carioca.
No entanto, o narrador machadiano conhece os problemas
sociais que essa classe social muitas vezes procurava ignorar. Segundo a estudiosa, o texto de Machado é tecido a
partir de paradoxos que se estabelecem nas relações entre
personagens omissos, que se calam frente ao que vêem. O
arranjo dos fatos, as opiniões que as personagens exprimem
ou as conclusões que tiram expressam somente um retrato
do comportamento da sociedade, mais especificamente a
classe média e alta burguesia, frente a esse e outros problemas sociais.
Um dado que não pode escapar da percepção do leitor
é que o país retratado em Esaú e Jacó e Memorial de Aires
mostra-se em um período de mudanças: a nova condição dos
negros, o novo regime. No entanto, essa mudança parece ser
problematizada. A grande questão que parece ser colocada
é: as mudanças representariam, de fato, transformações
políticas e sociais?
Em Esaú e Jacó, Santos, além de se preocupar com a
harmonia do funcionamento do sistema financeiro do país,
mostra-se preocupado, também, com uma possível “revolução”. Segundo o narrador, “Santos receava os fuzilamentos,
por exemplo, se fuzilassem o imperador, e com ele as pessoas de sociedade? Recordou que o Terror...” (EJ, 2003, p.
142). Parece óbvio que a preocupação da personagem é com
uma possível investida contra as elites, da qual é membro.
Parte do grupo das “pessoas da sociedade”, Santos imagina
as conseqüências de uma revolução nos moldes de outras
já ocorridas em lugares diversos... . No entanto, é curioso o
comentário que Aires faz em seguida. Procurando acalmar
Santos, Aires tira-lhe o “terror da cabeça. (...). Depois lembrou a índole branda do povo. O povo mudaria de governo,
sem tocar nas pessoas” (EJ, 2003, p. 142).
A índole branda do povo parece apontar para uma mudança de regime diferente do que geralmente ocorre em
outros lugares. A alusão ao “Terror” remete o leitor à idéia
de uma revolução nos moldes de outras que, de maneira
78
violenta e determinada, depuseram regimes e deram início a
um novo contorno político e social de seus países. Diferença
crucial para com o país delineado em Esaú e Jacó, onde a
índole pacífica do povo mudaria de governo sem tocar nas
elites e em quem se encontra de fato no poder.
Para além de uma mera observação, Aires parece assinalar um país que passa por um período de mudanças,
mas com poucas alterações. É o que percebemos por meio
de outros comentários desferidos pela personagem ao longo
desses capítulos que lidam de maneira mais direta com o
evento da República. Sobre a mudança de regime, o narrador assinala:
Aires quis aquietar-lhe o coração. Nada se mudaria; o regímen sim, era possível, mas também se
muda de roupa sem mudar de pele. Comércio é
preciso. Os bancos são indispensáveis. No sábado,
ou quando muito na segunda-feira, tudo voltaria
ao que era na véspera, menos a Constituição (EJ,
2003, p. 141).
A passagem citada deixa entrever que a mudança que
Aires vê próxima é mais aparente do que propriamente
real. A afirmação de que se muda de roupa sem trocar de
pele, revela uma alteração exterior e não propriamente na
estrutura do que está para ser mudado. É bastante irônica
a afirmação de que dali a poucos dias tudo voltaria ao que
era de véspera, menos a Constituição. Ora, mas não é a
Constituição que regula a vida do indivíduo em sociedade? Se ela se transforma, tudo o mais não deveria mudar
também?
É neste contexto que retomamos a questão das tabuletas, já discutidas anteriormente. Estas parecem ilustrar
de maneira alegórica a mudança que tomava lugar no país,
naquele momento. A troca de tabuletas, uma velha e podre, por uma nova e recém pintada poderia ilustrar uma
mudança semelhante a que ocorre no regime: uma troca de
tabuletas. Em uma, velha, desbotada e comida pelos bichos,
escreve-se “Império” e, em outra, nova e recém pintada,
escreve-se “República”. Mas, enfim, tudo não passaria de
inscrições em tabuletas?
79
Outro fato pode ser posto em paralelo a este ocorre em
Memorial de Aires. Santa-Pia, fazendeiro de escravos, decide antecipar o ato da regente e emancipar os seus cativos
antes que ela o faça. Segundo ele, para deixar “provado
que julgo o ato do governo uma expoliação, por intervir no
exercício de um direito que só pertence ao proprietário, e do
qual uso com perda minha, porque assim o quero e posso”
(MA, 2003, p. 277). A queda de braço entre o fazendeiro e
a regente o leva a tomar a decisão. Após a assinatura da
alforria, Santa Pia afirma: “Estou certo que poucos deles
deixarão a fazenda; a maior parte ficará comigo, ganhando
o salário que lhes vou marcar, e alguns até sem nada – pelo
gosto de morrer onde nasceram” (MA, 2003, p. 278).
A certeza de Santa-Pia de que, mesmo alforriados, os
escravos não abandonariam as terras em que viviam, aceitando trabalhar por qualquer salário ou mesmo de graça,
evidencia o quão precária era a situação dos negros naquele momento no Brasil e o quão ilusória era a abolição.
É bastante duvidosa a razão que o fazendeiro dá para a
suposta permanência dos negros em sua fazenda – “pelo
gosto de morrer onde nasceram”. Não seria pela falta de
alternativas e oportunidades que estes homens e mulheres
careciam na época? Não é possível lermos a justificativa
do Barão senão como reflexo de uma ironia do narrador,
com seu intuito desmascarador? Afinal, o apego telúrico
ou nacionalista (o gosto de morrer em sua pátria) só pode
soar como absurdo.
O fazendeiro sabe que dificilmente algo vai mudar na
estrutura social ou nas relações que tem para com os (ex)
escravos. Estes, mesmo livres, continuarão presos à sua
condição de trabalhadores rurais e à falta de oportunidades,
não tendo alternativa outra a não ser continuar exatamente
como antes, somente ostentando, agora, uma liberdade que
é muito mais fictícia do que real.
3. O esboço de uma transição?
Apesar de nem sempre se fazer óbvia ao leitor apressado,
a referência à história nos romances finais de Machado de
Assis se faz marcante, revelando um viés de leitura denso e
80
complexo. A linguagem machadiana, resvaladiça e retórica,
aparece em suas duas últimas obras pronta para desestabilizar, des-costurar o discurso histórico. É claro que se trata
de uma ficção, no entanto, a maneira com que Machado
pinta o Brasil de fins de século XIX serve, no mínimo, para
que o leitor reavalie e releia o discurso histórico. Concordamos com Cintra quando afirma que,
ao estabelecer uma interlocução crítica, em alusões
nem sempre disfarçadas, (...), Machado certamente tem
em mira liquidar vãs e ingênuas pretensões veristas de
trazer para o âmbito da literatura a própria realidade,
una, inteira, pura, exposta à contemplação tranqüila e
passiva do leitor (CINTRA, 1990, p.30).
Como vimos, o leitor é convidado a refletir criticamente
a respeito do período enfocado nos romances e a perceber
certa dinâmica social que pode ser posta em paralelo ao
momento histórico vivido pelo país cerca de duas décadas
antes da escritura dos romances. É como se tal dinâmica
colocasse movimento na História, mostrando os “bastidores” da “revolução” e da abolição, rompendo, assim, com
um discurso que se quer pronto e a espera de um leitor
passivo e estático.
Esaú e Jacó e Memorial de Aires deixam ver uma sociedade em um período de mudanças, a emancipação dos
escravos, a mudança de regime. No entanto, em meio a
essas mudanças, pouco parece se alterar de fato: os escravos libertos continuariam a viver dependentes de uma
estrutura que os exclui; o regime muda, mas pouco altera
o país. Delineia-se, ainda, uma sociedade que se aliena de
momentos decisivos de sua história. Carente de unidade e
segmentada, cada grupo, cada indivíduo parece pouco se
importar com o destino do todo ou com a configuração de
uma nação de fato. O Brasil pintado por Machado em seus
dois últimos romances perece ser um aglomerado de grupos distintos, sem comunicação entre si, isolados em seus
interesses próprios, alienados em sua própria realidade e
desinteressados em construir uma nação.
81
Referências
CINTRA, I. Â. Discursos entrecruzados: história e representação
em Esaú e Jacó. Revista Linha D’água. São Paulo, pp. 24-31,
1990.
MACHADO DE ASSIS, J. M. Memorial de Aires. São Paulo: Nova
Cultura, 2003.
_________. Esaú e Jacó. São Paulo: Nova Cultura, 2003.
FREITAS, M. T. Literatura e História: o romance revolucionário
de André Malraux. São Paulo: Atual, 1986.
RIEDEL, D. C. Omissão ou participação? O negro na obra de
Machado de Assis: Aires e o seu Memorial. Revista Caleidoscópio,
São Gonçalo, n. 3, p. 7-17, 1983.
WHITE, H. Trópicos do discurso. São Paulo: Edusp, 1994.
Recebido em 20/10/2009
Aceito em 20/11/2009
82
MATO GROSSO NA LITERATURA
BRASILEIRA: IMAGEM MEMÓRIA E VIAGEM
Olga Maria Castrillon-Mendes1
Resumo: A obra de Alfredo d’Escragnolle Taunay, Visconde
de Taunay, é emblemática para se pensar a construção
imagética de Mato Grosso e como essa composição entra
na discussão do Romantismo e do gênero paisagístico brasileiro. Pretende-se, desta forma, no percurso dos quadros
da natureza nela configurados, compreender o processo
de elaboração dessas imagens e as vinculações ideológicas
dela decorrentes, configurando a forma como se pensou o
Brasil na segunda metade do século XIX.
Palavras-chave: Memória, Viagem, Literatura.
MATO GROSSO IN THE BRAZILIAN LITERATURE:
IMAGE, MEMORY AND TRAVEL
Abstract: The work of Alfredo d’Escragnolle Taunay, Viscount Taunay, is emblematic when we think about the imagetic construction of Mato Grosso and how this composition
comes into the subject of romanticism and gender landscape
of Brazil. Taking into consideration the route of the paintings of nature set up in Taunays’ work, this study aims at
understanding the process of making such images and the
ideological relations resulted from it, setting the way it was
thought Brazil in the second half of nineteenth century.
Keywords: Memory, Travel, Literature.
Propomos, com este artigo, analisar parte da obra de Alfredo d’Escragnolle Taunay, Visconde de Taunay, buscando
caracterizar a imagem que faz de Mato Grosso, ao mesmo
tempo em que estaremos averiguando suas vinculações ideológicas e formação artístico-cultural, para compreender até
que ponto representa um arquétipo na literatura brasileira
romântica, levando-se em consideração o documentário
constituído pelos relatos e pela iconografia dos viajantes
que palmilharam o interior do Brasil no século XIX.
1 Professora do departamento de Letras/UNEMAT/Cáceres/MT. [email protected].
POLIFONIA
CUIABÁ
EDUFMT
Nº 20
P. 83-92
2009
issn 0104-687x
Como resultado de um trabalho que venho desenvolvendo há alguns anos, na Universidade do Estado de Mato
Grosso, as reflexões aqui iniciadas fazem parte de um projeto maior que envolve alunos bolsistas e alguns profissionais da Literatura e da História, proponentes da idéia de
compor arquivos e consecutar pesquisas sobre a formação
e a cultura do Estado.
Tratar da construção da imagem de Mato Grosso no século XIX, traz discussões mais abrangentes que envolvem
Ciência Arte e Literatura, postulando idéias seminais para
a formação da identidade nacional.
O século XIX significou novas transformações sociais,
novas práticas de literatura e avanços na ciência, alterando, substancialmente, a forma de ver e sentir o mundo. No
Brasil, as tendências artísticas européias se mesclam às
características autóctones, fornecendo elementos singulares para a formação cultural e o processo de constituição
da nacionalidade. Do grupo de artistas formados pelo neoclacissismo, pela Enciclopédie e pelo Iluminismo, aliados a
uma elite brasileira culta e nacionalista, começa-se a gestar
o ideário romântico.
Assim, o Brasil torna-se acessível aos viajantes estrangeiros que inserem saberes e imprimem imagens memoráveis através da prática em campo, elaborando desenhos
e escritos moldados pelo espírito da experiência vivencial
capazes de desenvolver uma escola do olhar. A natureza
passa a ser personagem e meio para interpretar e criar uma
imagem de Brasil.
Nessa esteira, Alfredo d’Escragnolle Taunay, herdeiro
de uma família de artistas e eminente homem do império,
constrói uma obra articulada entre o sentimento e a razão,
irremediavelmente marcada pela estética da natureza.
Parece aspirar a uma arte mediada pelo espelho do olhar.
Ao particularizar a paisagem mato-grossense, define o seu
sentido pela compreensão do conjunto artístico em que ela
se insere. Vincula-se ao naturalista alemão Humboldt e
às influências legadas por Davi nos integrantes da Missão
Artística de 1816, que fundaram a escola de Belas Artes
no Rio de Janeiro.
84
No percurso das imagens
O espaço geográfico onde se configura Mato Grosso, até
a sua divisão em 1978 (CAMPESTRINI & GUIMARÃES, 1991
e VALLE, 1996), foi delimitado pela formação de povoamentos, vilas e fortificações. Em 1748, quando da criação da
Capitania, desmembrada de São Paulo, seus contornos iam
de Camapuã (no sul) ao Guaporé (no extremo oeste) e se
imprimia como “chave e propugnáculo dos sertões do Brasil”, conforme se propaga nos documentos administrativos.
Podemos dizer que Mato Grosso é parte do projeto iluminista
na concepção e no espírito renovador do Marquês de Pombal, sobre o qual Candido (1997, p. 63) diz que qualquer
que seja o juízo que se tenha dele, sua ação foi decisiva e
benéfica para o Brasil, favorecendo atitudes mentais evoluídas, que incrementariam o desejo de saber e a adoção de
novos pontos de vista na literatura e na ciência.
No início do século XIX, o domínio francês alastra-se
pela Europa, e no mundo hispano-americano o desejo de
independência, o antagonismo de interesses e a indefinição
do ideário de nação colocam os países frente a problemas
que envolvem política externa, de navegação e de fronteiras.
Reaquecem-se antigas desavenças entre “vizinhos indigestos” (a expressão é tomada de MENEZES, 1998).
Os tratados de limites com princípios coloniais são colocados em pauta, a diplomacia entre os países não funciona
a contento e o impasse pela livre utilização dos rios para não
isolar Mato Grosso chega ao limite do inegociável. Explode
o confronto na região do Prata entre 1864 e 1870. Nesse
período, Alfredo d’Escragnolle Taunay chega a Mato Grosso
pela sua parte sul, compondo a malograda expedição militar
contra os paraguaios. Sua função é a de relatar os acontecimentos da Guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai,
como secretário da Comissão de Engenheiros. Encargo
que lhe proporcionou as observações mais pungentes da
batalha e do sertão, onde os pantanais ameaçavam tragar
os homens. A serviço do Estado ou da Arte, transforma o
sertão em objeto da sua experiência. Tinha, então, 21 anos.
Soldado, político, artista, literato desde os dez anos, neto de
pintor, sobrinho de desenhista das expedições Freicenet e
Langsdorff, foi um apaixonado pela natureza do Estado.
85
A sua formação e ascendência artística vincula-se à
família componente da Missão Artística de 1816, no Rio
de Janeiro, que funda a Academia de Belas Artes, ligada à
pintura neoclássica de J. L. David (1748-1825), o artista da
Revolução Francesa. Alia-se, ainda, à “estética-científica” do
naturalista alemão Alexander von Humboldt, cujos escritos
foram a fonte de novas e seminais visões da América nos
dois lados do Atlântico (PRATT, 1999, p. 196).
Seus relatos parecem compor o que Manthorne (1996)
chama de “cultura de viagem” que, aliados a outros escritos
elaborados por diferentes observadores sociais, formam uma
literatura fundamental para a nossa constituição de povo, de
raça e de processos ideológicos. Registros que prenunciam
como o século XIX recorta o mundo e como as imagens escritas e desenhadas por outros olhares se mesclam com a
paisagem do interior brasileiro para construir outro mundo
sobre um já existente e prenhe de significação.
Taunay será tocado pelo conjunto equilibrado da “dilatadíssima superfície” da natureza mato-grossense: o
sertão e os sertanejos; o sol e as chuvas, o exotismo da
paisagem, as tormentas dos insetos e a insalubridade do
clima, que funcionarão no seu espírito como laboratório.
Uma natureza não só observada, mas vivida. E esse aspecto
se colocará como fundamental em toda a sua obra. Nela
parece se presentificar aspectos que podem confirmar a
minha hipótese de que Taunay constrói uma imagem de
Mato Grosso para além da mera reprodução do natural.
Imprime-lhe uma abrangência “cósmica” (o termo e a idéia
são trazidos de PRATT, op. cit.). E estas perspectivas nos
reportam à visão humboldtiana de natureza que parece se
unir à pena de Taunay nos quadros em que pinta a paisagem mato-grossense.
Localidades, usos e costumes, além da natureza do Estado constituem figuras centrais dos escritos de Taunay.
Como esse “quadro” passa pelo olhar do escritor? Inicialmente, compara, fica impotente, esquadrinha os lugares
e os tipos. Descreve a desolação, a distância, os horrores
do calor e dos insetos, das doenças para logo em seguida explodir em sensações de alívio e de prazer. Tanto na
narrativa da guerra como nas lembranças que compõem a
86
memória da natureza “jamais vista”, o espírito é perpassado
por esse duplo sentimento. As imagens, entretanto, não se
acumulam. Unem-se para compor o universo harmônico.
Harmonia que é fruto da própria formação artística do escritor. Acostumado aos modos civilizados da corte carioca,
a viagem para Mato Grosso serviu-lhe, apesar de tudo, de
deleite ante os esplendores da natureza: “era eu o único
dentre os companheiros, e portanto de toda a força expedicionária, que ia olhando para os encantos dos grandes
quadros naturais e lhes dando o devido apreço” (TAUNAY,
1948, p. 131).
Uma concepção acompanha os seus escritos: o sertão é
um “lugar sem moradias”. Quanto mais se adentra, mais
o cenário e os costumes vão se modificando, se fechando
em tradição e em respeito aos valores morais. A tragédia
do par romântico em Inocência é um exemplo disso. Esses
“filhos da natureza” (SCHLICHTAORST, 1978, p. 1) dizem
pouco e observam muito; característica que se imprime no
modo de ser da “gente pantaneira”, na perspectiva adotada
por Barros (1998).
Antecipando alguns pontos de análise, presenciamos
nessas obras “emblemas” (STAROBINSKY, 1988) utilizados
por Taunay para retratar a paisagem mato-grossense. O
rio é um deles e o mais forte, dada à incorporação do ciclo
das águas a que todos os viajantes estão suscetíveis nas
regiões do pantanal. Outro símbolo é a flora exuberante,
com destaque especial para os variados tipos de palmeiras,
especificamente, os buritis, que têm formato de um leque,
cuja presença denota a existência de água: “Constitue o burity uma das minhas maiores saudades do sertão” (TAUNAY,
1923, p. 87). A paixão de Taunay por esse elemento natural
é tamanha que faz do seu leitor também um observador
desse vegetal. Por fim, o sol e a lua, astros-reis do sertão
que imprimem luminosidade no espírito do viajante. Temos,
assim, os componentes do ciclo vital do homem sintetizados no universo sertanejo: a água, a terra e a luz (claro/
escuro), compondo a química dos artifícios da pintura e o
movimento da vida.
Estamos, assim, dando forma à indagação: em que matrizes de pensamento se filia o autor? Ao que tudo indica e
87
ancorada na bibliografia a que já tive acesso até o momento,
os procedimentos de Taunay são marcas de procedimento
romântico e guarda vinculações que podem ser consideradas
fundantes na sua formação de escritor de um período preocupado com um projeto de nação. Então, pensar o Brasil
significava professar a idéia de que a unidade nacional é
perpassada por sentimentos: de natureza e de polis. Ambivalências constantes nas representações literárias.
Além de prover a arte brasileira da sua sensibilidade de
escritor, Taunay atende aos ideários românticos de elevação
do espírito e de relação homem/natureza. Não a elaboração
mental/racional, mas segundo Candido (1997, p. 61), as
ressonâncias, as harmonias entre natureza e espírito, numa
experiência estritamente pessoal e intransferível. Podemos
dizer que Taunay é “prisioneiro do pitoresco” para trazer as
idéias de Ferdinand Denis (1978, p. 37) que em seu tratado
sobre a literatura brasileira, apregoa a observação como o
único guia para o pensamento que “deve alargar-se com
o espetáculo que se lhe oferece”. E ensina os brasileiros a
penetrarem na grandeza da natureza “muito favorável ao
desenvolvimento do gênio”.
Em Humboldt , como fala Pratt (op. cit.) o valor estético
intrínseco e a ênfase sobre ‘harmonias e forças ocultas’
que atribui aos lugares, o alinha à estética espiritualista
do Romantismo. A obra Quadros da Natureza (HUMBOLDT,
1964) traz descrições de várias partes do mundo visitadas
e vividas onde passar as “noites em claro, observando as
estrelas para determinar as posições geográficas”, faz parte
do processo de estudo e de êxtase. Como em Taunay, parece
não haver supremacia de uma paisagem sobre a outra, de
uma região sobre outra, pois “em todas as zonas a natureza
apresenta o “fenómeno destas planicies sem fim; mas, em
cada região, tem elas caracter particular e fisionomia própria, derivados da constituição do solo, diferenças de clima
e elevação sobre o nivel do mar” (op. cit., p. 6).
Estaria Humboldt, como Taunay, afastado do que estabelecia a arte neoclássica? Em Chiarelli, prefaciando a
obra de Gonzaga-Duque (1995, p. 13), encontramos as
figuras que acompanharam a Missão Artística de 1816, e
que gravitavam ao redor de duas questões estéticas que se
88
digladiavam na França naquele momento. “De um lado os
partidários do neoclassicismo (...); de outro, os entusiastas
de uma atitude afastada dos rigores neoclássicos (Nicolas
Antoine Taunay) com fortes inclinações para a sensibilidade romântica”. Ainda trazendo o suporte do crítico de
arte, a pintura de paisagem surge no Brasil como forma de
oposição “para fazer surgir entre nós uma arte nacional,
com características próprias, distintas daquelas dos outros
países” (op. cit., p. p. 20). Este gosto mesclado dos valores
estéticos se faz presente na obra do escritor. Vê-se, assim,
a dualidade de que se revestiu o seu espírito, possivelmente
modificado pela vivência em terras mato-grossenses.
Assim como para Pratt, Humboldt reinventa a América,
podemos dizer que Taunay reinterpreta Mato Grosso. Se
conciliarmos as duas visões de mundo, vemos ambos evocarem uma natureza que está acima de um real verossímil,
transcendendo o olhar para além do visível. Não há acúmulo
de imagens, mas a harmonia de elementos pictóricos que
geram os efeitos de um ‘quadro’. Neste particular, trazemos
as idéias desenvolvidas por Diener (1999, p. 41-9), que, ao
discutir a obra Ensaio sobre a geografia das plantas, diz
que Humboldt inaugura o “gênero” de artistas viajantes e
o “caráter programático” a que devem estar aliados, como
a “vivência” e as “impressões”, fontes de estudo do estético.
Taunay estaria antenado nesse processo criativo de observação e registros cuidadosos que permitem compor uma visão
acabada da paisagem. Não há propósito de reproduzir, mas
de fazer conforme um “modelo”. Desta forma, seus postulados estéticos ancoram-se na tradição clássica, sem estar
preso a ela. Seu objetivo não é trazer o novo, mas re-criar a
tradição a partir dos estudos e das viagens. Dois componentes que plasmam a relação homem/natureza, compondo a
visão que define o “caráter” da paisagem, modelo que pode
ter sido utilizado por Taunay.
Ainda conforme Diener (op. cit.), no século XIX o paisagismo é um gênero e a arte auxiliar das ciências naturais.
Reconhece-se, na narrativa pictórica, sinais dos elementos
que se presentificam na obra do pintor David, cujas marcas
irão reaparecer nos franceses da Missão Artística de 1816.
Seu quadro é ‘pensado’ e a massa humana não é o retrato
89
coletivo, mas um conjunto de retratos particulares (Starobinsky, 1988, p. 73-4).
Desta forma, a Missão Artística vai exercer importante
papel na representação da paisagem brasileira, formando
imagens que circularam na Europa e fizeram uma tradição
de arte no Brasil. O Rio de Janeiro se transforma, “civilizase” aos moldes europeus; e o nome de Humboldt subjaz
ao programa de composição do grupo de artistas franceses
que atravessaram o Atlântico. É o contexto do indivíduo
inaugurado por Humboldt e reinterpretado por Taunay
após sua estada em Mato Grosso. O homem se coloca no
centro do universo, testando-o, sentindo os seus influxos e
experienciando os seus objetos sem, no entanto, ser maior
que ele. Ao contrário, a grandiosidade da natureza traz a
consciência da sua pequenez. Humboldt faz escola e nela
Taunay parece se vincular. O exótico se dá pela busca de
lugares ermos e indevassáveis que desafiam os limites
humanos. A capacidade de captar tipos e pintar cenas faz
de Taunay um dos mais fecundos escritores brasileiros do
século XIX, quando utiliza da experiência imediata para
conferir transcendência à arte.
Consideramos, finalmente, as questões imediatas que
desencadeiam o processo de análise. O que são imagens?
Como podem ser construídas? Como se manifestam? Sendo
Alfredo d’Escragnolle Taunay um homem de um período
de adventos, interessa-nos como o Romantismo e as novas
idéias republicanas se articularam em seu espírito. O Brasil
começa a existir como país. As sensibilidades relativamente
novas se unem à pena do escritor para compor o sentimento
dominante do século XIX, assim como a literatura, a história e a arte são chamadas para nos fazer compreender
parte dessas manifestações que constroem a idéia do que
chamamos Brasil. O homem viaja e se descobre. Nós nos
descobrimos nele. É o círculo da história desde Homero.
Esse é o topos, o lugar a ser vislumbrado.
90
Referências
BARROS, A. L. de. Gente pantaneira: crônicas de sua história.
Rio de Janeiro: Lacerda Editora, 1998.
CAPESTRINI & GUIMARÃES. História de Mato Grosso do Sul.
Campo Grande: Academia Sul-matogrossense de Letras, 1991.
CANDIDO, A. Formação da literatura brasileira. Vol 1 e 2. 8 ed.
Belo Horizonte/RJ: Itatiaia, 1997.
DENIS, F. Resumo da história literária do Brasil. In: Historiadores
e críticos do Romantismo: a contribuição européia, crítica
e história literária. Sel. e apresentação de Guilhermino Cesar.
Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos; São Paulo: Ed. USP,
1978.
DIENER, P. La estética clasicista de Humboldt aplicada al arte de
viajeros. In: Amerística. México, DF, Año 2, Número 3, Segundo
Semestre de 1999 (41-49).
GONZAGA-DUQUE. A Arte brasileira. Campinas-SP: Mercado
de Letras, 1995.
HUMBOLDT, A. de. Quadros da natureza. Vol. 1 e 2. Trad. Assis
Carvalho. Rio de Janeiro: W. M. Jackson, 1964.
MENEZES, A. da M. Guerra do Paraguai: como construímos o
conflito. São Paulo: Contexto; Cuiabá-MT: Ed. da UFMT, 1998.
PRATT, M. L. Os olhos do império: relatos de viagem e
transculturação. Trad. Jézio Hernani B. Gutierre. Bauru, SP:
EDUSC, 1999.
SCHLICHTHORST, C. A Literatura do Brasil. In: Historiadores
e críticos do Romantismo: a contribuição européia, crítica
e história literária. Sel. e apresentação de Guilhermino Cesar.
Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos; São Paulo: Ed. USP,
1978.
STAROBINSKY, J. 1789: os Emblemas da Razão. Trad. Maria
Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
TAUNAY, A. d’E. Visões do sertão. São Paulo: Off. Graph.
Monteiro Lobato, 1 ed., 1923.
TAUNAY, Alfredo d’Escragnolle. Memórias. São Paulo: Comp.
Melhoramentos, vol. VI, 1948.
TAUNAY, Alfredo d’Escragnolle. Inocência. São Paulo: FTD,
1982.
91
TAUNAY, Alfredo d’Escragnolle. A Retirada da Laguna: episódio
da guerra do Paraguai. São Paulo: Companhia das Letras,
1997.
VALLE, Pedro. A divisão de Mato Grosso. Brasília: Royal Court,
1996.
Recebido em 30/10/2009
Aceito em 30/11/2009
92
FERNANDO PESSOA, O POETA
DESCONFIADO: UMA BREVE LEITURA
DE CANCIONEIRO
Lucelena Ferreira1
À professora Cleonice Berardinelli, por suas lições encantadas.
Resumo: Este artigo propõe uma leitura do livro Cancioneiro,
assinado por Fernando Pessoa, com objetivo de investigar a
categoria intelectual do pensamento na escrita do ortônimo,
identificada como uma poesia analítica e intelectualizada,
tingida pela busca de significados para o Desconhecido.
Palavras-chave: Fernando Pessoa, poesia, pensamento.
FERNANDO PESSOA, THE SKEPTICAL POET:
A SHORT READING OF CANCIONEIRO
Abstract: This article considers a reading of the book Cancioneiro, signed by Fernando Pessoa, in order to investigate the category of thinking in his writing, identified as an
analytical and intellectual poetry, dyed by the search of
meanings for the Unknown.
Keywords: Fernando Pessoa, poetry, thinking.
1. Introdução
Na leitura de Cancioneiro, o poeta me pede os ares (me
perde os ares?). Persigo o cheiro do mar.
De outras veredas, avulta o Rosa: “Eu quase que nada
não sei. Mas desconfio de muita coisa” (1986, p.14). Fernando Pessoa foi poeta desconfiado. Apesar de inventar em
verso o conselho “Não procures nem creias: tudo é oculto”
(1990a, p.138), insiste, no Cancioneiro, em perscrutar o
enigma da existência. A desconfiança primordial (ligada à
intuição do Mistério) pontua o pensamento de Pessoa or1 Doutora em Letras (PUC-Rio/ École de Hautes Études em Sciences Sociales) e
Doutora em Educação Brasileira (PUC-Rio). Professora Adjunta do Mestrado em
Educação da UNESA/RJ e professora da Pós-Graduação l.s. do Departamento de
Letras da PUC-Rio. É pesquisadora do GEALE – PPGE/PUC-Rio (Grupo de Estudos
em Antropologia da Leitura e da Escrita). [email protected]
POLIFONIA
CUIABÁ
EDUFMT
Nº 20
P. 93-102
2009
issn 0104-687x
tônimo, aguçando-lhe o “vício de pensar” (BERARDINELLI,
1994, p.47): impulso gerador de inquietude e poesia. Para
Berardinelli, o que constitui o cerne do poeta Fernando Pessoa é sua “angústia metafísica” (2008, p.30). Tal condição
se desdobra em uma poesia analítica e intelectualizada, que
enreda o leitor neste movimento reflexivo, instigando-o
a pensar, a raciocinar, e não apenas a experimentar
sentimentos e sensações – pensar e raciocinar sempre
na direção de dúvidas e perplexidades que, sutilmente
analisadas por ele, conduzem a mais dúvidas, que só
fazem conduzir a mais dúvidas (MOISÉS, 2005, p.20).
Este estudo propõe aproximação com Cancioneiro, livro
assinado por Fernando Pessoa. Mais especificamente, destina-se à investigação da categoria intelectual do pensamento
na poesia do ortônimo. Como o ato de pensar contribui e
interfere no trato das questões existenciais que afligem o
poeta? Seria vício saudável, o de pensar?
Sem exatidão, o poeta derrama lento. Pessoa suspende
tempos previstos.
2. O poeta de Cancioneiro
O livro estudado apresenta a maioria dos poemas em
primeira pessoa, evidenciando um sujeito lírico que se narra, em busca de sentido. Considero a existência de apenas
um sujeito lírico, personalidade única, a povoar os textos
de Cancioneiro.
Ao que parece, a complexidade da questão dos heterônimos assola seu próprio criador. Pessoa nomeia seus três
heterônimos mais conhecidos:
Construí dentro de mim várias personagens distintas
entre si e de mim, personagens essas a que atribuí
poemas vários que não são como eu, nos meus sentimentos e idéias, os escreveria. Assim têm estes poemas
de Caeiro, os de Ricardo Reis e os de Álvaro de Campos
que ser considerados. Não há que buscar em quaisquer
deles idéias ou sentimentos meus, pois muitos deles
exprimem idéias que não aceito, sentimentos que nunca
tive (1966, p.108).
94
Em outro momento, admite novos adeptos à lista das
suas “personagens” ou, como ele mesmo especifica, das
personalidades que viveu dentro de si (1990c, p.82):
Nunca me sinto tão portuguêsmente eu como quando
me sinto diferente de mim - Alberto Caeiro, Ricardo Reis,
Álvaro de Campos, Fernando Pessoa, e quantos mais
haja havidos ou por haver (1966, p.108).
Seria o Fernando Pessoa de Cancioneiro heterônimo
disfarçado de ortônimo? É possível. A semelhança de nome
entre o autor dos heterônimos assumidos e o poeta do
Cancioneiro abriga trapaça com a língua (BARTHES, 1996)
e provoca o leitor. Nesta leitura, imagino o ortônimo como
um dos matizes do universo poético de Pessoa, que interessa
em sua dimensão simbólica de figura fingida. Em outras
palavras, importa a expressão poética da personalidade que
se assenta sob a assinatura de Fernando Pessoa no Cancioneiro, independente de sua participação ou coincidência com
a do autor humano. Um conceito útil a esta pesquisa é o de
fingimento, tal como definido pelo ortônimo. Jacinto Coelho
decifra: “exprimir poeticamente implica fingir - idéia que
não constitui novidade para os leitores atentos de Pessoa”
(apud PESSOA, 1966, p.xxix). Aborta-se, portanto, a noção
de falsidade: fingir um sentimento seria dar-lhe contorno
de arte. O poema “Autopsicografia”2, que inclui reflexão
sobre o ato criador, reafirma esta idéia. Maria de Lourdes
Alves amplia: “Para Pessoa, fingir é conhecer-se” (1988,
p.42). No ortônimo, a escrita poética opera como forma de
auto-conhecimento.
O sujeito lírico do Cancioneiro concebe estranhamento: “Sou o ser que vê, e vê tudo estranho” (1990a, p.142).
Percebe-se “doido que estranha sua própria alma” (1990a,
p.111), estrangeiro de si mesmo. Assim lança - sobre si e
sobre o mundo - um olhar inaugural: olhar de estrangeiro, empenhado em traduzir, em compreender. O ortônimo
rastreia significados para o Desconhecido3 (1990a, p.113),
assumindo poesia como amparo possível.
2 Este poema é definido por José Quesado como a “verdadeira arte-poética de Fernando
Pessoa” (1978, p. 415).
3 O uso da maiúscula inicial é recurso recorrente no Cancioneiro.
95
“Emissário de um rei desconhecido/ eu cumpro informes instruções de além” (1990a, p.128), afirma o Pessoa
ortônimo, aceitando a missão que reconhece como sua. Um
conjunto de quatorze poemas chamado “Passos da Cruz”,
presente no Cancioneiro, trata do caminho do poeta, predestinado a uma vida de glória e dor, tal como Jesus Cristo. As
referências bíblicas (título, número de poemas e analogias
contidas nos versos) agregam valor e conferem uma certa
gravidade à sorte do artista. Para o ortônimo, escrever é destino: “Há um poeta em mim que Deus me disse...” (1990a,
p.124). Esta certeza não o abandona.
3. O vício de pensar
Álvaro de Campos definiu:
Fernando Pessoa é puramente intelectual; a sua
força reside mais na análise intelectual do sentimento e da emoção, por ele levada a uma perfeição
que quase nos deixa com a respiração suspensa
(PESSOA, 1966, p.148).
O ortônimo vincula-se ao vício de pensar: “Estou preso
ao meu pensamento/ Como o vento preso ao ar” (1990a,
p.160). Assim também sua escrita:
[...] Tenho saudades de mim.
De quando, de alma alheada,
eu era não ser assim,
E os versos vinham de nada.
Hoje penso quando faço,
’Screvo sabendo o que digo...[...] (1990a, p.160)
No ortônimo de Cancioneiro, o pensamento reúne duas
facetas: é corrosivo, já que o impede de ser feliz, de desfrutar a leveza advinda da falta de consciência das coisas; é
produtivo, pois se desdobra em poesia. A lucidez inexorável
o leva a pensar sobre o pensamento: “Fúria nas trevas o
vento/ Num grande som de alongar./ Não há no meu pensamento/ Senão não poder parar” (1990a, p.160). Vento e
pensamento têm como razão comum a impossibilidade de
cessar.
96
Desse modo, o pensamento proíbe o ortônimo de apenas sentir, sem reflexão. Diz ele: “O que em mim sente ’stá
pensando” (1990a, p.144), e completa: “Meus sentimentos
são rastros./ Só meu pensamento sente...” (1990a, p.150).
Procura ainda delimitar fronteiras entre sentimento e pensamento, para concluir:
Tenho tanto sentimento
Que é freqüente persuadir-me
De que sou sentimental,
Mas reconheço, ao medir-me,
que tudo isso é pensamento,
Que não senti afinal.[...] (1990a, p.172)
Pensar e sentir se tangenciam, aprisionando o ortônimo
e suscitando angústia: “No mal-estar em que vivo,/ No mal
pensar em que sinto,/ Sou de mim mesmo cativo” (1990a,
p.174). Torna-se impossível seguir o ensinamento do mestre Caeiro, de compreender “com os olhos, nunca com o
pensamento” (1990b, p.237), pois mesmo os sentidos, no
ortônimo de Cancioneiro, associam-se ao pensamento. A
partir deles, busca conhecer e construir significados: “Ah,
nada, nada!/ Só os pesares/ De ter ouvido,/ De ter querido/ Ouvir para além/ do que é o sentido/ Que uma voz
tem” (1990a, p.180). Persiste em vão a crença de Caeiro: “O
único sentido íntimo das cousas/ É elas não terem sentido
íntimo nenhum” (1990b, p.207). A investigação contínua
da essência das coisas, norteada pelo pensamento, acaba
por gerar o cansaço, de que se queixa o eu lírico: “Cansa
sentir quando se pensa” (1990a, p.163).
O ortônimo de Cancioneiro convive com a impossibilidade de desvendar o Desconhecido: “Cega, a Ciência a inútil
gleba lavra./ Louca, a Fé vive o sonho do seu culto” (1990a,
p.139). Foge-lhe a auto-definição: “Quem me dirá quem
sou?” (1990a, p.145). O sentimento de irrealização e a consciência da insolubilidade do Mistério estimulam dúvidas
sobre a validade do pensar incessante: “Eis o momento.../
Sejamo-lo... Pra quê o pensamento?...” (1990a, p.118). O
sujeito lírico professa a inutilidade do pensamento: “Tudo
de repente é oco -/ Mesmo o meu estar a pensar” (1990a,
p.112). E a noção de vazio se repete: “Que inquieta ilusão!/
97
E esta sensação/ Oca, de ser cego/ No meu pensamento,/
Na minha vontade...” (1990a, p.120). Mas, para apoiar sua
tentativa de conhecimento, resta-lhe o pensar, já que “sentir/ É não se conhecer” (1990a, p.166). Apesar do esforço
de entendimento empreendido pelo ortônimo, arma-se um
círculo vicioso que o enreda: “O meu mistério eu avivo/ Se
me perco a meditar” (1990a, p.121).
Para Moisés, a poesia pessoana é “medularmente intelectualizada”, pois
além de brotar das emoções, brota também, e indissociavelmente, da inteligência raciocinante. O que resulta
desse inusitado consórcio é um desfiar cerradamente
reflexivo, indagador e questionador de imagens, metáforas, cláusulas e associações que ostentam ou simulam
notável rigor lógico. (2005, p.19)
O eu lírico de Cancioneiro reconhece que sua condição de
pensador constante o condena à infelicidade: “Só quem puder obter a estupidez/ Ou a loucura pode ser feliz” (1990a,
p.104). Por vezes, escapa-lhe o sentido da vida: “Trila na
noite uma flauta. [...] Perdida série de notas vaga e sem sentido nenhum,/ Como a vida” (1990a, p.141). Nesse contexto,
o eu lírico entrevê descanso no sono: “Dorme, que a vida é
nada!/ Dorme, que tudo é vão” (1990a, p.176). Iluminam-se
sono e morte, por vezes metaforicamente associados, como
refúgios, como fontes de alívio: “Que é feito de tudo?/ Que
fiz eu de mim?/ Deixa-me dormir,/ Dormir a sorrir/ e seja
isto o fim” (1990a, p.119). Sob este prisma, o título do poema
“Abdicação” antecipa desistência, desdobrando a metáfora
do reinado: “Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços/ E
chama-me teu filho./ Eu sou um rei/ Que voluntariamente
abandonei/ O meu trono de sonhos e cansaços” (1990a,
p.138). Ao mesmo tempo, a implacabilidade da morte tinge de angústia a poesia de Cancioneiro, que se amplia em
imagens e associações:
Sermos, e não sermos mais!... Ó leões nascidos na
jaula!...
Repique de sinos para além, no Outro Vale... Perto?
[...]
98
Tecedeiras viúvas gozam as mortalhas de virgens que
tecem (1990a, p.110).
Atrelado a uma “inteligência demasiadamente enamorada pela análise e pelo raciocínio”, somada à “emotividade excessiva” (BERARDINELLI, 1985, p.253), o ortônimo
de Cancioneiro alterna momentos de aceitação desta sua
condição a outros de insatisfação e desejo de mudança.
Freqüentemente aspira à inconsciência:
Para que sou consciente se a consciência é uma ilusão?
Que sou eu entre quê e os fatos?
Fechai-me os olhos, toldai-me a vista da alma!
Ó ilusões! se eu nada sei de mim e da vida,
Ao menos goze esse nada, sem fé, mas com calma,
ao menos durma viver, como uma praia esquecida...
(1990a, p.130)
O ortônimo imagina felizes os que não pensam o que
sentem, e confessa sua inveja:
Gato que brincas na rua
Como se fosse na cama,
Invejo a sorte que é tua
Porque nem sorte se chama.
Bom servo das leis fatais
Que regem pedras e gentes,
Que tens instintos gerais
E sentes só o que sentes.
És feliz porque és assim,
Todo o nada que és é teu.
Eu vejo-me e estou sem mim,
Conheço-me e não sou eu. (1990a, p.156)
Os últimos versos remetem à inutilidade do conhecimento. Por saber-se atado à sua condição, o eu lírico expressa
desejo de mudança por meio de paradoxos, reforçando a
impossibilidade de realização: “Ah, poder ser tu, sendo
eu!/ Ter a tua alegre inconsciência,/ E a consciência disto”
(1990a, p.144); “Ah, ser os outros! Se eu o pudesse/ Sem
outros ser!” (1990a, p.176).
99
Em Cancioneiro, o ortônimo se descobre condenado à
lucidez, emitindo lampejos de aceitação: “Se eu fosse outro,
fora outro. Assim/ Aceito o que me dão” (1990a, p.177).
Vislumbra a razão como único guia possível:
Guia-me a só razão.
Não me deram mais guia.
Alumia-me em vão?
Só ela me alumia.
Tivesse Quem criou
O mundo desejado
Que eu fosse outro que sou,
Ter-me-ia outro criado.
Deu-me olhos para ver.
Olho, vejo, acredito.
Como ousarei dizer:
“Cego, fora eu bendito”?
Como o olhar, a razão
Deus me deu, para ver
Para além da visão Olhar de conhecer.
Se ver é enganar-me,
Pensar um descaminho,
Não sei. Deus os quis dar-me
Por verdade e caminho. (1990a, p.160)
Neste poema, o eu lírico se curva aos desígnios de Deus.
E deixa pender questões sem resposta, encaixes do Desconhecido. No espírito religioso e convicto dos mistérios
impenetráveis da vida, sobejam preocupações metafísicas:
Cancioneiro retém desejo de transcendência do mundo material. De acordo com Fernando Pessoa prosador, uma obra,
para que seja sincera, deve incluir idéia metafísica:
Chamo insinceras às coisas feitas para fazer pasmar
[como talvez alguns poemas iniciais do ortônimo], e às
coisas, também - repare nisto, que é importante - que não
contêm uma fundamental idéia metafísica, isto é, por
onde não passa, ainda que como um vento, uma noção
da gravidade e do mistério da Vida. (1990c, p.55)
100
O que não falta ao ortônimo de Cancioneiro é percepção
do Mistério. Mas, apesar de todo seu esforço de compreensão, sopra o lamento: “Tudo é tão difícil de compreender!...”
(1990a, p.120).
4. Considerações finais
A voz do ortônimo se levanta, em movimento inquieto:
“Que desassossego!” (1990a, p.120). Ao que parece, Bernardo Soares recolheu título de tamanho justo ao Cancioneiro.
O poeta rima consigo.
O timbre plural de Pessoa privilegia subjetividade: desejo
de desvendar-se. Cancioneiro afia desconfiança e cultiva
contradições em ritmo de lucidez. O vício persiste. Multiplica
dúvidas, desencanta respostas. O ortônimo atrai consciência - de sua missão, do Desconhecido, da impossibilidade de
penetrá-lo. Soa, em badaladas: “Tudo é mistério” (PESSOA,
1990c, p.38).
Pessoa se proclama paradoxo. Guimarães Rosa finge
aprovar:
Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto:
que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas vão sempre mudando.
Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me
ensinou. Isso que me alegra, montão (1986, p.21).
Cancioneiro é orquestra, o nome diz. Afina e desafina.
Terminado, acende amor pela vida. E obedece ao que o poeta, em prosa, impõe: “A finalidade da arte é elevar” (1990a,
p.226).
Tudo se dissolve, em Pessoa. Matéria bruta é poesia. E
só. O resto carece de certeza.
101
Referências
ALVES, M. de L. G.. Os modos do tempo em Pessoa. In: Boletim
do SEPESP - UFRJ. 1988, v.2.
BARTHES, R. Aula. São Paulo: Cultrix, 1996.
BERARDINELLI, C. À guisa de aparato genérico. In: BERARDINELLI,
C., MATOS, M. (orgs.). Fernando Pessoa – Mensagem. Rio de
Janeiro: Sette Letras, 2008.
______. A poesia de Fernando Pessoa. In: O poetar pensante. Rio
de Janeiro: Uapê, 1994.
______. Estudos de Literatura Portuguesa. Lisboa: Imprensa
Nacional, Casa da Moeda, 1985.
COELHO, J. do P. Fernando Pessoa, pensador múltiplo. In:
Páginas Íntimas e de Auto-interpretação. Lisboa: Edições
Ática, 1966.
MOISÉS, C. F. Almoxarifado de mitos. São Paulo: Escrituras,
2005.
PESSOA, F. Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1990.
______. Cancioneiro. In: Obra poética. Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, 1990a.
______. O guardador de rebanhos. In: Obra poética. Rio de
Janeiro: Nova Aguilar, 1990b.
______. Obra em prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1990c.
______. Páginas Íntimas e de auto-interpretação. Lisboa: Edições
Ática, 1966.
QUESADO, J. C. B. Uma autopsicografia do processo de
construção poética. In: Actas do I congresso internacional de
estudos pessoanos. Porto: Brasília Editora, 1978.
ROSA, J. G. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1986.
Recebido em 30/09/2009
Aceito em 30/11/2009
102
NOS ARREDORES DO FANTÁSTICO
MATOGROSSENSE: O BERRO DE TEREZA
Mário Cezar Silva Leite (UFMT)1
José Alexandre Vieira da Silva (IFMT)2
Resumo: Este artigo investiga a presença dos elementos
fantásticos no romance O Berro do Cordeiro em Nova York,
da escritora Tereza Albues. A autora constrói o seu fantástico particular em que o homem é um ser estranho para si
mesmo e que o outro é um abismo e com isso o fantástico
invade a alma humana e inunda o mundo cotidiano. Nesta
obra percebemos uma recorrência marcante de aspectos
sobrenaturalizados, supra-humanos e epifânicos que convivem no mesmo ambiente narrativo através da intromissão brutal do mistério (sempre com elementos místicos e
esotéricos).
Palavras-chave: Tereza Albues, Fantástico, Místicos.
CLOSE TO THE FANTASTIC IN THE MATO GROSSO
LITERATURE: THE CRY OF TEREZA
Abstract: This article investigates the presence of fantastic
elements in the novel The Berro of the Lamb in New York,
the writer Teresa Albues. The author builds his fantastic
especially when the man is a stranger to himself and the
other is a deep and it’s amazing invades the human soul and
fills the everyday world. In this work we noticed a striking
recurrence of aspects supernaturalizes, superhuman and
epiphany, that share the same environment through the
narrative of the brutal interference mystery (always with
esoteric and mystical elements).
Keywords: Tereza Albues, Fantastic, Mystical.
1 Professor, na UFMT, de literatura brasileira, do Departamento de Letras/IL; professor
do Mestrado em Estudos de Linguagem (MeEL/IL); e do Mestrado em Estudos de
Cultura Contemporânea (ECCO/IL); Coordenador do GT de Literatura Oral e Popular
da ANPOLL (2008-2010). [email protected]
2 Mestre em Estudos de Linguagem (MeEL/UFMT) e Doutorando em Estudos Literários
na UFG além de Pesquisador do Grupo RG Dicke de Estudos em Cultura e Literatura
de Mato-Grosso. Professor efetivo do Instituto Federal de Ciência e Tecnologia de
Mato Grosso (IFMT). [email protected]
POLIFONIA
CUIABÁ
EDUFMT
Nº 20
P. 103-118
2009
issn 0104-687x
Eu vejo nisso uma contradição, principalmente na expressão “realismo fantástico”, porque se é real, como é
que pode ser fantástico? Por outro lado, também há uma
grande dificuldade em se caracterizar o que é real, não
é? – um assunto até filosófico. Os filósofos ainda não
conseguiram definir o que é realidade.
(J. J Veiga)
No desabrochar da modernidade verificamos que a história da cultura ocidental passou por um período de racionalismo e abandono do intuitivo, processo este que remonta
à Renascença, isso nos idos do século XV.
Talvez essa busca pelo racional e científico, diante das
crises existenciais humanas, seja uma estratégia equivocada de tentar resolver todos os nossos problemas. Para uma
tentativa de solução dessa situação conflituosa, o filósofo
Capra (2005) diz que teríamos que buscar o equilíbrio da
mente humana, usando, para tal, tanto o racional quanto o
intuitivo. Enquanto o pensamento racional é linear, concentrado e analítico, o intuitivo, por basear-se em uma experiência direta, não-intelectual da realidade, é mais subjetivo
e concentrado em ampliar a percepção do consciente.
Com a ampliação da percepção da realidade, ao se
lançar mão tanto do consciente como do inconsciente, o
homem adquiriria, segundo Capra, uma visão holística
das verdadeiras causas dos problemas mais complexos da
humanidade e com isso poderia combatê-los.
Tomemos como exemplo, que consubstancie esse fato, os
Contos Fantásticos de Guy de Maupassant3. Penetremos na
Europa da segunda metade do século XIX e iremos perceber
que o ambiente intelectual é dominado por um profundo
sentimento de relatividade que justifica o subjetivismo e
suscita a inquietude.
Segundo Capra (2005) a influência do pessimismo alemão
de Schopenhauer une-se a um darwinismo compreendido
de forma igualmente trágica: o homem é um animal efêmero
sobre um globo perdido na imensidão do Universo.
3 MAUPASSANT, Guy de; BRUM, José Thomaz (Trad.) Contos fantásticos – O Horla &
outras histórias. 1. ed. Porto Alegre: L&PM POCKET, 2000.
104
Não é preciso ser um estudioso ou um naturalista para
perceber isso. Respira-se este ar de incerteza derivado de
uma desilusão radical: a ciência é apenas uma definição humana, estamos fechados em nosso espírito - sem remédio.
Anderson, comentando Spencer, ilustra essa atmosfera
com uma frase exemplar: “O desenvolvimento da ciência só
fez aumentar seus pontos de contato com o desconhecido
que a rodeia.” (ANDERSON, 1989, p. 29). A extenuação
da fé vêm se juntar aos temas da falência da ciência e da
psicologia da época.
É nesse quadro cultural, que muito se assemelha ao
vivido hoje que devemos, por exemplo, compreender os romances de uma mato-grossense, chamada Tereza Albues4,
reunidos em um gênero literário específico: o fantástico.
Esses romances não se distinguem pelos temas de que
tratam, mas pela atmosfera criada em torno do acontecimento; eles pintam uma existência habitada pela inquietude e
“[...] onde existe a hesitação experimentada por um ser que
só conhece as leis naturais face a um acontecimento aparentemente sobrenatural” (TODOROV, 2003, p. 31). Romances
avessos à fé absoluta e à incredulidade total, romances da
hesitação: “Cheguei quase a acreditar: eis a fórmula que
resume o espírito do fantástico” (TODOROV, p. 36).
Nesse quase, de lacuna e imprecisão, Tereza constrói
o seu fantástico particular: não de criaturas impossíveis
(duendes, gênios) em cenários exóticos, mas acontecimentos
estranhos que se equilibram nessa tensão que se origina
de um espírito incerto.
Lugares e objetos testemunham esta cisão de um corpo
em que ‘a identidade explode em pedaços’. O mundo
humano é parcial, cruel e dominado pela ilusão universal. O não-humano é o que nos permanece oculto, o
fantástico. O inexplicável está instalado aqui na Terra e
tem suas raízes na inquietação humana, em seu caráter
fluido (DISCINI, 2001, p. 30).
4 O presente artigo é parte da Dissertação de Mestrado em Estudos Literários e Culturais (MeEL/UFMT) sobre a obra O Berro do Cordeiro em NY orientada pelo Prof.
Mário Cezar Silva Leite.
105
Formada em Direito, Letras e Jornalismo, Tereza começou a escrever no exterior, mas a vivência na sua terra,
plena de lendas e dramático realismo, foi fundamental para
a construção do seu universo literário. De acordo com a
romancista, seus escritos representam uma mistura entre
a rica experiência vivida no Brasil e a progressiva incorporação de outras culturas. E é isso que vemos em seu primeiro romance, Pedra Canga, cujo subtema do fantástico
nele inserido é, sem dúvida, o das histórias em que o mal
se cristaliza num ser, num objeto ou num processo e interfere em nosso mundo, revelando, de passagem, o quanto
é precário o equilíbrio de que depende o conceito daquilo
que chamamos de real, beirando, na narrativa dessa obra,
o sobrenatural e as histórias de horror. No romance, percebemos uma mistura de todos esses elementos.
Chapada da Palma Roxa, seu segundo romance, tem o
espaço romanesco situado em um vilarejo chamado Porto
Graça, que é abalado pela morte misteriosa de um recémnascido, cujo corpo fora encontrado às margens da “Pedra
das Lavadeiras”.
A trama dessa narrativa desenvolve-se no sentido do
desvendamento da identidade do assassino da criança. A
personagem-narradora tentará estabelecer, ao mesmo tempo, o desnudamento da alma humana, apresentando-nos,
mais uma vez, duas realidades: a vivida e a sentida.
O terceiro livro, publicado pela autora em 1993, tem
como tema a vida do bisavô da personagem-narradora,
chamado João Padre. Esse homem rompe com os dogmas
da Igreja ao largar a batina para se casar com uma negra,
tornando-se, em Livramento-Mato Grosso, uma figura contraditória: para uns, trata-se de um santo; para outros, é
apenas um “doido-varrido”.
Para a narradora seu bisavô é considerado entidade “iluminada”, cuja biografia é resgatada por ela, protagonista da
obra, que passa, ao longo da trama romanesca, à procura de
João Padre. A grande mensagem do livro não deixa de seguir
o receituário místico da auto-ajuda, que é o de se contrapor
à sociedade materialista na qual vivemos, que acredita no
dinheiro como solução para todos os problemas, pois as
106
conquistas materiais nos trazem satisfação. Porém, na obra,
a real felicidade e realização estão na esfera espiritual.
O quarto livro de Tereza é O Berro do Cordeiro em Nova
York. De todos, seguramente, é o mais engajado politicamente. O veio temático principal é a descrição da manipulação
do poder no Estado do Mato Grosso exercido, na maioria das
vezes, com fortes tons de injustiça, discriminação, preconceito e exploração que tanto a personagem-narradora quanto os seus familiares sofrem no decorrer da narrativa.
O último romance da autora, ainda inédito no Brasil, foi
publicado no Salão do Livro de Paris, pela Editora 00h00, em
16 de março de 2001. O livro intitulado A Dança do Jaguar
é um romance sensual e palpitante, que leva o leitor a seguir os passos, ora ligeiros ora pesados, de um ser diabólico
que, à semelhança do jaguar, ronda a heroína, oculto nas
sombras. A narrativa se desenvolve, ao mesmo tempo, nos
planos do real e do fantástico, em que o ritmo é conduzido,
com segurança, entre momentos de relaxamento e tensão,
criando um fascinante suspense.
Como cenário, temos a cidade de São Francisco, nos
Estados Unidos, e o Solar Maltesa, uma misteriosa casa vitoriana onde Nayla, jovem pintora, vive momentos de terror.
Em busca de uma morada, ela encontra o casarão que vai
dividir com uma figura bastante excêntrica, o botânico Tristan O’Hara. Estranhos acontecimentos começam a intrigar
a jovem, que se sente vigiada. Nayla se vê, de repente, presa
às malhas de um terrível segredo, que envolve o passado
do Solar Maltesa.
Além das obras supracitadas, Tereza também é contista,
tendo publicado O furo do mamão e Gregória na janela, no
livro de contos Na margem esquerda do rio: contos de fim
de século, organizado por Mário Cezar Silva Leite e Juliano
Moreno. Na Revista O Caixote publicou o Ilha das cigarras
e A ressurreição de Leocádia na revista VÔTE! Esses e outros contos foram reunidos postumamente no livro Buquê
de Línguas (2008).
Nas obras de Tereza, percebemos uma recorrência marcante de aspectos sobrenaturalizados, supra-humanos e
epifânicos, que convivem no mesmo ambiente narrativo
107
de outras personagens através da intromissão do mistério
(sempre com elementos místicos e esotéricos) e que irá reproduzir-se, principalmente, n’O Berro do Cordeiro em NY.
Neste artigo, demonstramos como a presença recorrente
desses elementos é utilizada pela autora na obra citada.
Mesmo que se tenha sempre presente a dificuldade em
definir a narrativa fantástica, lembremos que ela existe e
se constrói com base em algumas características que lhe
são particulares. E são justamente essas características,
ou particularidades, que devemos buscar para que a sua
compreensão se faça mais precisa.
Podemos dizer que o elemento básico caracterizador do
fantástico é o insólito, o sobrenatural, ou como diz Filipe Furtado, o meta-empírico, entendendo como tal o que esteja
[...] para além do que é verificável ou cognoscível a partir da experiência, tanto por intermédio dos sentidos
ou das potencialidades cognitivas da mente humana,
como através de quaisquer aparelhos que auxiliem,
desenvolvam ou supram essas faculdades. (FURTADO,
1980, p. 20).
E continua: [...] o conjunto de manifestações assim designadas inclui
não apenas qualquer tipo de fenômenos ditos sobrenaturais na acepção mais corrente deste termo [...], mas
também todos os que, seguindo embora os princípios
ordenadores do mundo real, são considerados inexplicáveis e alheios a ele apenas devido a erros de percepção
ou desconhecimento desses princípios por parte de quem
porventura os testemunhe (FURTADO, ibid., loc. cit.)
No entanto, é bom lembrar que o sobrenatural, no sentido de se estar além ou fora do natural, não é característica
exclusiva do fantástico. Os contos de fadas, por exemplo,
não só trabalham com ele como também neles têm um elemento necessário para sua caracterização.
O sobrenatural caracterizador do fantástico, nas histórias de horror, é o chamado sobrenatural negativo, aquele
que infunde o pavor, a opressão ou um mal-estar, é o sobrenatural de índole maléfica, que normalmente não ocorre nos
108
contos de fadas. O sobrenatural que aparece nesse último
cria todo o universo da narrativa, sem uma oposição entre
o mundo real, empírico, e o irreal onde a história do “era
uma vez” se passa.
A presença do sobrenatural no fantástico ocorre de
forma diferente. Trata-se de uma invasão do inexplicável
no mundo concreto, criando uma situação angustiante de
ambigüidade que abala a nossa compreensão baseada na
experiência cotidiana. O sobrenatural não é aceito nem vivenciado como se dá no gênero maravilhoso, mas constitui
uma estranheza que coloca em xeque a existência do mundo
real e das leis naturais que organizam.
O próprio Todorov dirá:
O fantástico implica, portanto, não apenas a existência
de um acontecimento estranho, que provoca hesitação
no leitor e no herói; mas também numa maneira de ler,
que se pode por ora definir negativamente: não deve
ser nem “poética”, nem “alegórica” [...]. Esta espécie de
imagens se situa no próprio cerne do fantástico, a meio
caminho entre aquilo que me ocorreu chamar imagens
infinitas e imagens ilimitadas. As primeiras procuram
por princípio a incoerência e recusam intencionalmente
qualquer significação. As segundas traduzem textos precisos em símbolos que um dicionário apropriado reconverte, termo por termo, em discursos correspondentes
(TODOROV, 2003, p. 38).
Vejamos como em O Berro do Cordeiro o fantástico é,
muitas vezes, pincelado com matizes sobrenaturais, como
no episódio em que a personagem-narradora pega um táxi
em Manhatan com um motorista indiano que dirige com
olhos fechados, em meditação profunda, no trânsito de
Nova Iorque:
Quando peguei o táxi, tarde da noite, saindo duma festa
no East Side em Manhatan, defrontei-me com o inusitado, nem um leve roçar de intuição me prevenindo.
O motorista, um indiano de longas barbas e turbante,
perguntou-me o itinerário, eu disse meu endereço no
Soho, ele seguiu o trajeto. Em menos de dois minutos
ele me perguntou, de onde você é? Do Brasil. Mora em
109
Nova York? Moro. Sabe que o meu cristal projetou uma
sombra no seu rosto? Só aí notei que ele tinha um cristal
pendurado no espelho retrovisor do carro. Que conversa
mais estranha, pensei. Com certeza, ao me ver sozinha,
queria puxar assunto, resolvi que o melhor era não dar
prosseguimento ao papo. Fiquei em silêncio durante
longo tempo até que de repente, num impulso perguntei,
qual o significado da sombra? Alguma coisa negativa?
O indiano responde pausadamente, não, ao contrário,
é algo especial, um sinal de boa sorte e felicidade, raramente acontece. Daí pra frente ele não disse mais nada,
eu também não. Olhei novamente para o retrovisor,
levo um susto, o indiano estava de olhos fechados. Meu
Deus, este homem está dormindo no volante, vai bater a
qualquer momento. Não sei por que, ao invés de tentar
acordá-lo, permaneço quieta no banco de trás, não faço
o menor movimento. Ele continua dirigindo tranqüilamente, pára nos sinais, faz curvas, atravessa avenidas
me deixa na porta da minha casa, abre os olhos, boa
noite. Só agora percebo que falhei em todas as interpretações, minhas idéias pré-concebidas impediram que eu
visse a grandeza do que estava vivendo, deixei passar a
oportunidade de dialogar com aquele ser tão evoluído
espiritualmente que podia dirigir um carro em meditação
profunda pelas ruas movimentadas de Manhattan. Será
que eu o encontraria novamente? (1995, p. 112-113).
Ou, ainda, como o puramente sobrenatural, quando
num dia, em seu apartamento no Flamengo, no Estado do
Rio de Janeiro, é acordada pela voz, possível, do ex-dono,
que havia morrido, naquele imóvel:
uma certa noite em que no mesmo apartamento fui
despertada por uma voz rouca sussurrando ao meu
ouvido: Por que tiraram o meu telefone daqui se eu não
dei permissão? Pulo da cama, acendo a luz, vasculho
rapidamente a sala-e-quarto, as portas trancadas, ninguém. Tempos depois o zelador do prédio me conta (sem
eu perguntar) que o primeiro dono do apartamento onde
eu morava tinha sido um solteirão que morrera anos
atrás, aí eu pergunto, ele tinha telefone? Tinha, mas
110
parece que alguém da família se apossara indevidamente
do aparelho enquanto ele estava doente e transferiu a
linha para Botafogo. Como é que eu poderia saber esta
história antiga? Teria sido o espírito do homem que
viera reclamar a devolução do que lhe pertencia? Mas
por que eu? Que fosse perseguir quem o roubara, disse
bem alto nessa mesma noite, no quarto, luz acesa até
de madrugada. Penso que fui ouvida, a voz nunca mais
me fez cobranças [...] (1995, p. 111).
Em O Berro do Cordeiro percebemos a semelhança do
que acontecem noutros romances da autora, que o mundo
físico e o não-físico se interpenetram, visando, através da
narrativa desses acontecimentos fantásticos e sobrenaturalizados, suscitar sensações que provoquem o crescimento
paulatino, intelectual e espiritual da personagem-narradora,
fazendo com que esta assuma, diante do evento, uma atitude, na maioria das vezes, positiva e de incentivo pessoal
diante das adversidades vividas. Note-se esse aspecto no
fragmento abaixo:
É fascinante puxar o fio delicado da percepção abrindo
espaço para outra realidade mais real do que a nossa
que conosco convive diariamente, por que hesitamos?
Não a enxergamos, não queremos enxergá-la, fechamos
o canal, de novo o medo emperrando nosso crescimento,
olha o lobisomen, assombração, bicho-papão da nossa
infância; difícil corcovear, jogar por terra o monstro assustador que desde o berço cravou as garras na nossa
imaginação. A resistência do racional também é ferrenha,
aboleta-se no pensamento, assegurando que tudo não
passa de ilusão dos sentidos, alucinações, fantasias. Ah
este racional repressivo, pedagógico, querendo sistematizar a vida da gente. E quantas vezes o esperto consegue
seu intento, pois ele não se apresenta em corpo sólido,
munido de ponderações concretas extraídas da nossa
própria vivência para alicerçar aquilo que prega? Minando oportunidades de avanço no desvendamento de
outros mundos, persistente? (ibidem, p. 111-112)
Além disso, observe-se que ali, o tempo e o espaço do
mundo sobrenatural não são o tempo e o espaço da vida
111
cotidiana. O tempo parece suspenso, ele se prolonga muito
mais além daquilo que se crê possível.
Com isso poderíamos dizer que em Tereza não é o olhar
em si mesmo que se acha ligado ao mundo fantástico, mas
aqueles símbolos do olhar indireto, subvertidos que são os
óculos e o espelho da alma.
É nesse sentido que notamos, em O Berro do Cordeiro
em Nova York, que o fantástico é construído no sentido de
desnudar o limite entre o físico e a mente, entre a matéria
e o espírito, entre a coisa e a palavra. Os eventos concretos
e realistas em suas obras deixam de ser estanques, é o que
Todorov (2003) chamará de pandeterminismo.5
Todorov dirá que semelhante ruptura dos limites entre
matéria e espírito era considerado, em especial no século
XIX, como a primeira característica da loucura.
Os psiquiatras afirmavam geralmente que o homem
“normal” dispõe de muitos quadros de referência e liga
cada fato a um deles exclusivamente. O psicótico, ao
contrário, não seria capaz de distinguir estes diferentes
quadros entre si e confundiria o sensível e o imaginário
(Todorov, 2003, p. 123).
Segundo ele, a proximidade da loucura com a temática
da literatura fantástica está ligada também a uma das características fundamentais do mundo da criança, ou mais
exatamente ao que ele chama de simulacro adulto. Todorov
afirma que no ponto inicial da evolução mental não existe
certamente nenhuma diferenciação entre o eu e o mundo
exterior (2003, p. 124-131).
Talvez esses aspectos sejam somente conjecturas, entretanto podem explicar a escolha da autora pelos loucos e
as crianças6 como seus personagens principais. Como, por
exemplo, no dia em que o pai da personagem-narradora
5 Todorov define pandeterminismo como sendo um determinismo generalizado. Para
ele, tudo, até o encontro de diversas séries casuais (ou acaso) deve ter sua causa,
no sentido pleno da palavra, mesmo que esta só possa ser de ordem sobrenatural.
O Pandeterminismo, com isso, tem como conseqüência natural o que se poderia
chamar a “pansignificação”, pois, já que existem relações em todos os níveis, entre
todos os elementos do mundo, este mundo torna-se altamente significativo.
6 Isto pode ser verificado em Venâncio em O Berro do Cordeiro, Zé Garbas em Pedra
Canga, João Padre em Travessia dos sempre vivo e a menina Taisha em Chapada
da palma roxa.
112
volta louco depois de fugir da fazenda em que era mantido
como escravo:
Entrou na casa de meu tio, subiu pelas paredes até a
cumeeira, pendurou-se pelos pés e falou: Sou um morcego, desta quadratura não saio até o senhor ir buscar
minha mulher e meus filhos na Nhecolândia. E contou
toda a sua saga em versos de rima perfeitas, ele que
nunca fora poeta e mal sabia ler e assinar o nome. Tinha
enlouquecido (ALBUES, 1995, p. 30-31).
Além disso, no mundo vivenciado por essas personagens,
as fronteiras normais entre o eu e o mundo desaparecem, encontrando-se em seu lugar uma espécie de “fusão cósmica”.
Coincidência? Tenho dúvidas. Penso que os acontecimentos estão interligados e são impulsionados por energias
que fazem parte do equilíbrio e harmonia universal, tudo
tem sua razão de ser, nada acontece ao acaso. Senão
como explicar a estranha experiência que vivenciei no
Rio de Janeiro? Morava sozinha num enorme apartamento [...]. Uma noite acordei, levei um susto danado,
uma moça desconhecida estava deitada ao meu lado,
dormindo tranqüilamente. Era muito jovem aparentava
dezessete anos mais ou menos, branca, cabelos louros
encaracolados, usava um vestido de algodão estampados
de flores grandes e verdes. Estava tão junto de mim que eu
podia sentir o contato e o peso do seu corpo, a respiração
compassada, ressonando. A primeira coisa que me veio à
cabeça, como foi que essa moça entrou aqui? Levanto-me,
vou verificar a porta, será que esqueci de trancá-la? Claro
que não. As chaves estão lá, os dois trincos de segurança
também, travados, como eu fazia todas as noites antes de
me deitar. Meio entorpecida volto para o quarto, a moça
continua dormindo, não sei o que fazer, de repente algo me
diz que aquela pessoa não é real, é um espírito. Aí entra o
pavor, fiquei gelada, fechei os olhos, rezei, pedi aos meus
guias e todos os santos que a levasse dali [...]. Depois de
algum tempo, abro os olhos, ela continua ali, recomeço as
preces, angustiada, recebo uma mensagem ou intuição,
ela dizendo não quero sair daqui. Me desespero, respondo mentalmente, mas você tem que sair senão eu vou
morrer. Aí ela vai embora [...]. Tempos depois encontrei
113
uma vizinha tagarela no elevador, começamos a conversar, chegamos até a esquina e ficamos esperando o sinal
para atravessar a larga Av. Venceslau Braz. De repente
ela fala, tenha muito cuidado ao atravessar neste ponto,
os motoristas são doidos, muitas vezes avançam o sinal,
olha não faz muito tempo eu presenciei um atropelamento
aqui nesta esquina. Uma mocinha linda, loirinha, cabelo
crespo, regulando dezessete anos, morreu na hora, dava
pena ver o seu rostinho, parecia que estava dormindo [...]
(Albues, 1995, p. 119-120).
Como isso, verificamos que o aspecto central dessa
obra seja o limite entre matéria e espírito, entre o natural
e sobrenatural, o que fixará esse romance nos arredores
do fantástico.
Pavla Lidmilová, que traduz para o tcheco a obra de J. J.
Veiga, em entrevista para Antonio Armoni Prado, diz que a
literatura fantástica no Brasil difere bastante da literatura
do gênero fantástico de outros países latino-americanos:
O que nos atrai, por exemplo, na obra de João Guimarães
Rosa, de José J Veiga, de Murilo Rubião, é a profunda
afetuosidade do povo, a pureza daqueles heróis infantis,
aquela esperança que cresce paulatinamente, que eu acho
que não existe nos escritores do gênero fantástico hispanoamericanos. Borges, Cortazar, Casares, depois Juan Rulfo,
são escritores pessimistas, amargurados, há um arrepio
que a gente sente lendo esses autores; é um outro contexto,
uma outra situação nacional, situação do povo. E aqui no
Brasil é muito diferente (Prado, 1989 p. 38-39).
Podemos perceber essa diferença, citada por Pavla, em
várias partes do livro O Berro do Cordeiro em Nova York.
Na obra, a personagem-narradora nos apresenta os fatos,
relacionados ao fantástico, como se fossem uma catarse,
um verdadeiro ritual de purificação pelo qual ela passa da
infância até a vida adulta, entremeada, sempre, por experiências sobrenaturalizadas. São histórias reais com impressões
profundas da narrativa fantástica, como no episódio em
que seu pai, após fugir de uma fazenda em que era escravo,
consegue, depois da visão que tem de seu avô, já falecido,
atravessar incólume um rio cheio de piranhas e jacarés:
114
Durante três dias papai vagou pelo mato perdido, nem
sinal da estrada para Três Marias, as lagoas coalhadas de
jacarés impedindo passagem. Mordido de mosquito, sujo,
rasgado pelos espinhos, desorientado, faminto, ouviu a
voz do espírito do seu avô João Padre que o mandou deitar debaixo de uma árvore de flores roxas. Ele obedeceu,
caiu no sono, sonhou, a figura iluminada do avô falou:
as flores desta árvore cairão sobre você perfumando o
seu corpo. Pode entrar nas águas, jacarés e cobras serão afastados pelo perfume, não te farão mal. Daqui pra
frente eu o guiarei. Papai despertou, tinha um lençol de
flores cobrindo-o, levantou confiante, atravessou sete
baías nadando, os jacarés quietos, imóveis, indiferentes
à sua passagem. (ALBUES, 1995, p. 30-31).
Hilda Gomes, em artigo publicado no livro Mapas da
Mina: estudos de literatura em Mato Grosso, destaca alguns
pontos dentro dessa discussão do fantástico e também do
conceito da mitificação dos espaços e personagens presentes
no romance. Ela dirá que, no
Plano da atualização dos mitos, a fuga de Venâncio resgata
o mito da terra prometida. Nesse sentido a travessia do
pantanal é uma imagem atualizada da travessia bíblica
do Mar Vermelho. Essa travessia é uma travessia sagrada
posto que Venâncio se submete antes a um ritual de purificação, após o que poderá realizar a travessia do pantanal.
O perfume das flores sobre o seu corpo paralisa as feras,
e a passagem do pantanal torna-se possível. Na impossibilidade de construir, socialmente, seu destino, resta
a recorrência às crenças, resgatando a divindade, que é
atualizada na imagem de seu avô. A imagem do resgate do
mito é sugerida ainda pelo nome da fazenda onde Venâncio
deseja chegar, Três Marias, a terra, portanto, três vezes
santa (MAGALHAES. In: LEITE, 2005, p. 217).
Em Tereza, essa maneira de descrever o mundo da
infância mantém-se, evidentemente, prisioneira de uma
visão adulta, na qual, precisamente, os dois mundos são
distintos. O que temos nas mãos é um simulacro adulto
da infância.
115
E é justamente aí que o fantástico contribui, também,
para a fragmentação identitária da personagem-narradora
na obra. Todorov dirá que na literatura fantástica
[...] o limite entre matéria e espírito não é aí ignorado,
como no pensamento mítico, por exemplo; ele permanece
presente para fornecer o pretexto às transgressões incessantes [...]. Esta lei que encontramos na base de todas
as deformações produzidas pelo fantástico no interior de
nossa rede de temas tem algumas conseqüências imediatas. Assim, aí se podem generalizar o fenômeno das
metamorfoses e dizer que uma pessoa se multiplicará
facilmente. Nós nos sentimos todos como várias pessoas
(Todorov, 2003, p. 124).
É nesse sentido, que o fantástico nos permite compreender a própria Literatura que é, segundo Todorov, paradoxal,
assumindo a antítese entre o real e o irreal, pois a
[...] operação que consiste em conciliar o possível e o
impossível pode fornecer a definição à própria palavra
‘impossível’, e, no entanto, a literatura é; e este é o seu
maior paradoxo. (TODOROV, 2003, p.183).
Além disso, o universo fantástico em Tereza criou textos nos quais o mundo cotidiano nos é mostrado sob uma
perspectiva diferente da usual. Ao contrário do gênero Fantasy7 (O Senhor dos Anéis, de J. R. R. Tolkien), tão ao gosto
dos leitores modernos, o fantástico dela não criou mundos
fabulosos, distintos do nosso e povoados por criaturas imaginárias, mas revelou e problematizou a vida e o ambiente
que conhecemos no dia-a-dia. E é aí que distinguimos O
berro do cordeiro em NY de uma simples “história de horror”,
composta de personagens e situações macabros visando
tão-somente ao efeito de terror, pois esse “realismo” do
fantástico em Tereza Albues não implica numa limitação ou
pauperização de seu alcance na abordagem de problemas
7 Segundo Ricardo Pinto o fantasy é encarado como um domínio mais ou menos juvenil
(independentemente da idade) e cujo preconceito embaraçosamente é difícil de refutar.
Afinal, amiúde as personagens consistem em pouco mais que tipos convencionais (no
melhor dos casos, arquétipos; no pior, estereótipos), quase como os da epopéia clássica,
com o seu panteão de deuses, semideuses e heróis. E o imaginário aqui é tão mítico
que evoca os contos de fadas, com as peripécias desenrolando-se num outro espaçotempo. Pode argumentar-se que a imaginação desenfreada povoa também outros modelos literários mais prestigiados, como o romantismo gótico ou o realismo fantástico.
E que a condição humana continua lá, transcendendo as aparências e apregoando a
sua proverbial ubiqüidade. Tolkien, por exemplo, criou todo um universo, com raças,
idiomas e geografia definidos. “Em suma, o fantasy oscilaria, incongruentemente,
entre a superficialidade juvenil e o pedantismo erudito” (PINTO, 2003, p.03).
116
humanos, antes é a fonte de sua complexidade estética e
de representação social.
Desse modo, vimos que o fantástico, em O Berro do Cordeiro em NY, ultrapassa as fronteiras da literatura trivial. O
alcance crítico e estético do fantástico atinge vários níveis,
dentre os quais se destacam: a subtração aos tabus da sociedade ao tratar, veladamente, de tópicos proibidos como
a sensualidade do ato amoroso; a substituição do mundo
tangível por outra realidade mais elevada e poética, para
cuja representação concorrem o mito, os símbolos, as metáforas, a sinestesia; libertação do terror diante da morte e do
nada (anulação do indivíduo) através da sua representação
dentro da narrativa enquanto forma de exorcizar e vencer
o medo inspirado por eles; e a representação do absurdo
e falta de sentido da vida por meio da criação de situações
insólitas, incompreensíveis, ilógicas, que põem em xeque
nossa capacidade racional de entender a realidade.
Negando a morte e todos os fatores de aprisionamento
ou limitação do indivíduo, o fantástico, nesse caso, abre
as portas à imaginação, à liberação dos impulsos, à experimentação de novos recursos de criação ficcional. Daí a
importância de conhecê-lo e estudá-lo.
Para corroborar tudo isso, vimos que o princípio tonal no
romance O berro do Cordeiro em NY é na verdade uma tentativa de busca interior, de questionamento da realidade social
e desvelamento daquilo que chamamos de realidade.
Para a autora atingir esse objetivo é necessário que a
personagem-narradora submerja no tempo-espaço, provocando o enfrentamento e diluição das tensões culturais e
psicológicas do ser humano, sugerindo aos leitores que o
mundo real pode ser apenas uma aparência, “[...] nos fazendo pressentir que deve haver tantas aparências de mundos
quantas formas de olhos e de variedades de entendimento”
(BARINE, 1970 apud RODRIGUES, p. 17), em contraposição
ao que nos direciona a nossa “vã filosofia”.
Em O berro do Cordeiro em NY, Tereza Albues produz
uma literatura intimista e autobiográfica, mas que se
universaliza na medida em que as questões especuladas,
através dos enigmas humanos e supra-humanos, com os
117
elementos do fantástico, operacionalizam-se através da
realidade social e cultural da região de Mato Grosso.
Referências
ALBUES, T. Pedra Canga. Rio de Janeiro: PHILOBIBLION, 1987.
______. Chapada da Palma Roxa. Rio de Janeiro: Atheneu –
Cultura, 1990.
______. Travessia dos sempre vivos. Cuiabá: Editora da UFMT,
1993.
______. O berro do cordeiro em Nova York. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1995.
Anderson, B. Nação e Consciência Nacional. São Paulo: Ática,
1989.
CALVINO, Í. (org.). O fantástico visionário e o fantástico cotidiano,
In: Contos fantásticos do século XIX. 2ª. ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 2004.
CAPRA, F. O Ponto de Mutação. A Ciência, a Sociedade e a
Cultura emergente. 26ª ed. São Paulo: Cultrix, 2005.
DISCINI, N. Intertextualidade e conto maravilhoso. São Paulo:
Edusp, 2001.
FURTADO, F. A Construção do Fantástico na Narrativa. Lisboa:
Livros Horizontes, 1980.
LEITE, M. C. S. Águas Encantadas de Chacororé. Natureza,
cultura, paisagens e mitos do pantanal. Cuiabá: Cathedral
UNICEN Publicações, 2003.
______. Mapas da mina: estudos de literatura em Mato Grosso.
Cuiabá: Cathedral UNICEN Publicações, 2005.
MAUPASSANT, G. de e BRUM, J. T. (Trad.) Contos fantásticos
– O Horla & outras histórias. Porto Alegre: L&PM , 1997.
PRADO, A. A. (org). Atrás do mágico relance. Uma conversa com
J.J. Veiga. Campinas- SP: Unicamp, 1989.
PINTO, R. A dança da pedra do Camaleão – Os escolhidos. Vol.
I, São Paulo: Editora Presença, 2003.
RODRIGUES, S. C. O fantástico. São Paulo: Ática, 1988.
TODOROV, T. Introdução à Literatura Fantástica. São Paulo:
Perspectiva, 2003.
______. As Estruturas Narrativas. São Paulo, SP: Perspectiva,
1970.
Recebido em 03/11/2009
Aceito em 04/12/2009
118
CAPITALISMO E ESQUIZOFRENIA:
A SUBJETIVIDADE BLOQUEADA NA
DUPLA ESCRITURA DE TEATRO DE
BERNARDO CARVALHO
Maria Carlota de Alencar Pires (UNEB)1
Resumo: Neste artigo, procuramos analisar a experiência
paranóica em Teatro (1998), de Bernardo Carvalho, como
sintoma de um mal-estar, em fins do século XX, em que
novos paradigmas do capitalismo promovem o aprisionamento das subjetividades, que denominamos subjetividades
bloqueadas. Tal bloqueio ocorre em razão de diversos fatores, a exemplo do consumo de produtos industrializados,
do consumo de drogas, ou ainda do consumo das novas
formas simbólicas da mídia, implicadas no tecido sociocultural. Essas subjetividades ocupam, nas narrativas
contemporâneas, espaços abertos ou fechados: tais como
o espaço das ruas ou dos shoppings, e tornam-se cada vez
mais “bloqueadas”, seja no nível mental, seja no social, e se
enredam na antilógica cultural do capitalismo tardio.
Palavras-chave: paranóia, descentramento, capitalismo.
CAPITALISM AND SCHIZOPHRENIA: OBSTRUCTED
SUBJECTIVENESS OF DOUBLE ENTENDRES IN THE
NOVEL THEATER BY BERNARDO CARVALHO
Abstract: In this text we try to analyse the paranoid experience
on Teatro (1998) of Bernardo Carvalho as a symptom of the
malady by the end of the 20th century, where new capitalism
paradigms lead the arresting of subjective things, the so called
blockaded non-objectives. Such blockade occurs such as the
consumption of industrialized products, drugs or new symbolic ways of media, somehow connected to the social cultural
tissue. Those non-objectives are all over nowadays tales, in
open or closed spaces like streets and malls and so become
more and more blocked over the mental or social level and
get trapped in the late capitalism anti-logics culture.
Keywords: Paranoia, offcentering, capitalism.
1 Graduada em Letras, com Mestrado em Literatura Brasileira e Doutora em Literatura
Comparada. [email protected]
POLIFONIA
CUIABÁ
EDUFMT
Nº 20
P. 119-136
2009
issn 0104-687x
Vamos discutir a fragmentação do signo sociocultural
contemporâneo, na perspectiva do romance Teatro (1998),
de Bernardo Carvalho, extraindo dele o cenário da sociedade
dita pós-moderna, em fins-de-século XX, na qual os sujeitos
transitam agônicos em espaços degradados.
Para tanto, observaremos no romance a subjetividade
paranóica, que se encontra bloqueada pelas mazelas do
capitalismo tardio (JAMESON, 2000). Jameson compreende
o capitalismo tardio como uma das interfaces truncadas
do pós-modernismo, já que nesse conceito cabem múltiplas interpretações. Por aqui, tomamos a expressão como
sinônimo de globalização. Diz Jameson que os resíduos do
capitalismo tardio projetam-se nos artefatos simbólicos do
consumo, a exemplo dos “enlatados” norte-americanos, e outros tantos símbolos da cultura pop.
Este interessante romance de Bernardo Carvalho constitui-se como viva metáfora da fragmentação individual,
haja vista que a narrativa compreende duas partes, em
que a primeira refere-se a um significante distorcido, como
simulacro do estrangeiro no centro de um outro “império”:
neste caso os Estados Unidos. Na segunda, vemos as evidências dos novos paradigmas midiáticos da globalização,
que transforma o corpo em objeto de consumo. O corpo sofre
uma dupla transgressão, em que a construção da subjetividade homoerótica se traduz como discurso paranóico. O
corpo, então, converte-se numa dupla escritura, e o desejo
está para além das formas ulteriores do retrato narcísicofreudiano, alienando-se na engrenagem contraditória do
capitalismo tardio.
Jameson ressalta que essas contradições não estão localizadas excepcionalmente nos países periféricos ou ditos
emergentes. Elas são características próprias do processo
global em todo o mundo, porque o novo modo de produção
capitalista não impõe uma blindagem entre os países centrais (imperialistas) e os periféricos (pós-coloniais), e menos
ainda entre as culturas deste e daquele. Ao contrário, pois o
signo sociocultural sofre um esgarçamento, torna-se poroso,
permitindo, dessa maneira, que os seus artefatos simbólicos
transitem entre as culturas, a partir de estruturas flexíveis,
de caráter híbrido. Em outras palavras, o capitalismo tar120
dio afeta a produção cultural e simbólica, tanto nos países
de segundo e terceiro mundo, quanto naqueles países ditos imperialistas, em que os novos artefatos da produção
industrial atendem às demandas tardias das ex-colônias,
veiculadas pelas novas mídias, a exemplo da Internet.
A partir de Teatro, compreendemos que o capitalismo
tardio também se configura por meio de uma escritura
aberta, em que deslizam tanto os resíduos da modernidade e do moderno, quanto os novos modelos imagéticos da
chamada pós-modernidade. Nela, estão infiltrados traços
de diferentes ordens, que ligam e desligam o discurso de
subjetividades paranóicas, resultante de um mal-estar
mundano. Tais discursos erigem-se nos mais diferentes
produtos artísticos da indústria cultural, que acaba por
operar os sintomas de um capitalismo esquizofrênico, no
atendimento das mais variadas demandas do signo social
cada vez mais heterogêneo e confuso.
Teatro alegoriza esta estrutura aberta do capitalismo tardio, convertendo o discurso paranóico em metáfora grandeangular da ficção dita pós-moderna. Para Jacques Derrida
(1995), a escritura reflete um traço (-), cuja forma primordial
é o vazio, como estrutura existencial do sujeito:
Se a angústia da escritura não é, não deve ser um pathos determinado, é porque não é essencialmente uma
modificação ou um afeto empírico do escritor, mas a
responsabilidade desta angústia, dessa passagem necessariamente estreita da palavra na qual as significações possíveis se empurram e mutuamente se detêm.
(DERRIDA, 1995, p. 92).
Derrida entende que a escritura é a significação verbal
humana em seu processo de comunicação, em que “no fluxo
das palavras a língua perde-se no inconsistente” (DERRIDA,
1995, p. 93). Essa inconsistência revela-se na escritura
como angústia. Como angústia da palavra, em que o escritor
busca novos sentidos de linguagem e tem, na realização da
escrita, uma aliada fantasmagórica, visto que ele projeta no
significado as sombras distorcidas do significante. Entretanto, a escritura engendra traços significantes, sem que
isto lhe force uma determinação significativa.
121
A escritura é, pois, uma estrutura aberta, na qual sempre
haverá uma incompletude, um vazio significante. Este vazio
significante refere-se, antes, a uma imagem acústica, que
terá existência apenas fora da escritura, com a presença
daquilo que Derrida denomina traço. O traço se inscreverá
neste vazio, nesta “rachadura” estreita da palavra escrita.
Aproveitando o conceito de escritura de Derrida, podemos dizer que o romance Teatro configura um vazio estrutural de dois traços comunicantes, que revelam as inscrições
simbólicas tanto no nível do significante, que diz respeito
às representações imagéticas entre as culturas, quanto no
nível do significado, que diz respeito à palavra escrita como
resistência ao desaparecimento dos resíduos culturais. Teatro é a escritura de uma subjetividade bloqueada que resiste
aos estados paranóicos, em meio aos efeitos negativos do
capitalismo tardio.
Felix Guattari (1989) afirma que a subjetividade pósmarxista ganhou uma dimensão extremamente complexa,
em que os adventos do capitalismo, que Marx denominou
infraestrutura e superestrutura, já não servem para ajustar
o indivíduo ao cenário da chamada sociedade pós-moderna.
Nessa ótica, a produção dos bens materiais (infraestrutura),
tanto quanto a produção dos bens simbólicos ou culturais
(superestrutura), já não garante a estabilidade do sujeito
no mundo contemporâneo, seja nos países centrais, seja
nos periféricos:
Nenhum campo de opinião, de pensamento, de imagem,
de afectos, de narratividade pode, daqui para a frente,
ter a pretensão de escapar da influência invasiva da
assistência por computador, dos bancos de dados, da
telemática etc... Com isso chegamos a nos indagar se
a própria essência do sujeito – essa famosa essência
atrás da qual a filosofia ocidental corre há séculos – não
estaria ameaçada por essa nova “maquinodependência”
da subjetividade. Sabemos da curiosa mistura de enriquecimento e empobrecimento que resultou disso tudo
até agora: uma aparente democratização do acesso aos
dados e aos saberes, associada a um fechamento segregativo de suas instâncias de elaboração; uma multipli-
122
cação dos ângulos de abordagem antropológica e uma
mestiçagem planetária das culturas, paradoxalmente
contemporâneas de uma ascensão dos particularismos
e dos racismos; uma imensa extensão dos campos de
investigação dos discursos técnico-científícos e estéticos
evoluindo num contexto moral de insipidez e desencanto.
(GUATARI apud PARENTE, 2001, p. 170).
É nessa antilógica do capitalismo, como aqui a denominaremos de “razão impura”, que consideramos Teatro como
metáfora partida das novas formas simbólicas e culturais
da contemporaneidade. O romance de Bernardo Carvalho
mostra as fraturas irreversíveis do signo sociocultural, na
antilógica dos conteúdos performáticos da mídia. Fraturas
que não se referem apenas às relações psiquiátricas entre
médico e paciente, por exemplo, mas, sobretudo, no que
se refere à instabilidade do sujeito e suas relações com o
tecido social, no último quartel do século XX.
Bernardo Carvalho mostra de que forma essa instabilidade pode significar o afrouxamento das grandes teorias
que marcaram a cultura e o saber acadêmico ao longo dos
séculos XIX e XX, a exemplo das teorias de Freud, de Darwin e de Karl Marx.
Em Teatro, cabe-nos algumas indagações: quem é o
louco? E qual é o lugar que ele ocupa e de onde fala, nos
meandros dessa realidade esquizofrênica do capitalismo tardio? Quem é o verdadeiro suspeito de investigação clínica se,
neste grande “teatro” da contemporaneidade, o pathos pode
estar escondido sob as mais variadas máscaras sociais.
Para respondermos a tais indagações, devemos compreender, em primeiro lugar, que as fronteiras entre uma razão
social pura e as psicoses individuais, tornaram-se muito
frágeis. Teatro configura o descolamento entre o significante
e o significado, que dão formas a um signo sociocultural
híbrido, babélico (BHABHA, 1998). Este hibridismo da escritura de Carvalho apresenta-se de maneira reflexa entre
a primeira e a segunda parte do romance.
Diz Homi Bhabha que o signo sociocultural constitui-se
a partir de um forte hibridismo, emergindo dele uma contínua tradução entre as culturas. Bhabha denomina essa
123
tradução de “internacional tradutório”, que se verifica como
instância primeira do signo sociocultural:
Trata-se de um significado que é culturalmente estrangeiro não porque é falado em muitas línguas, mas porque
a compulsão colonial pela verdade é sempre um efeito
do que Derrida chamou de performance babélica, no
ato da tradução, como uma transferência figurada de
significado através de sistemas de linguagem. (BHABHA,
1998, p. 193-4).
Mas, para Jacques Lacan (1998), é nesse descolamento
entre significante e significado, isto é, imagem e palavra,
que ocorrem as psicoses. A partir da relação do sujeito com
o significante e com o outro, com os diferentes estágios da
alteridade, o outro imaginário e o outro simbólico, que “poderemos articular esta intrusão, esta progressiva ocupação
psicológica do significante que se chama a psicose” (LACAN,
1998, p. 252).
Bernardo Carvalho procura mostrar, em sua escritura partida, que o significante, tanto quanto o significado,
sofreram uma distorção, deixando-se ver as impurezas da
racionalidade do capitalismo pós-industrial. Tais impurezas
já não estão mais amontoadas debaixo do tapete de uma
moral burguesa, em que as culturas pretendiam uma lógica cartesiana, fundamentada nas operações coercitivas
do Estado. Essas operações, até meados do século XX,
traduziam-se no ajuste dos sujeitos transgressores dentro
dos hospícios, com o total controle do Estado, melhor dizendo, do “Pai-Estado”.
Para Foucault, a reinvenção da subjetividade pelo capitalismo, ao longo do século XIX, implicou, sobretudo, em
mudança de paradigma em torno da moral burguesa, que já
não via sentido na castração do sujeito, como forma de poder
e dominação do Estado capitalista. As formas coercitivas
do poder pertenciam ao plano da exterioridade subjetiva, a
exemplo dos símbolos dogmáticos do catolicismo, os quais
levavam o sujeito às práticas de castração, repressão sexual,
arrependimento e confissões.
Zygmunt Bauman (2000), reinterpretando Foucault,
observa que a política, assim como as instituições públicas
124
e o Estado, já não possuem um significado fixo na vida da
sociedade capitalista. O Estado tornou-se, ao longo do século XX, um signo deslizante e contaminado por diferentes
significantes dispersos em seu bojo:
Significa apenas que a função de estabelecer código e
agenda está sendo decididamente transferida das instituições políticas (isto é, eleitas e em princípio controladas) para outras forças.
Desregulamentar significa diminuir o papel regulador
do Estado, não necessariamente o declínio da regulamentação, quanto mais o seu fim. O recuo ou autolimitação do Estado tem como efeito mais destacado uma
maior exposição dos optantes tanto ao impacto coercivo
(agendador) como doutrinador (codificador) de forças
essencialmente não políticas, primordialmente aquelas associadas aos mercados financeiro e de consumo.
(BAUMAN, 2000, p. 80).
Teatro nos leva a compreender a radical instabilidade do
signo sociocultural em seus mais variados aspectos. Nessa
escritura de máscaras, são visíveis as tênues fronteiras entre
razão e loucura, entre verdade e mentira, entre realidade
e ficção, entre o real e o virtual, entre o Pai e o filho, na
esteira da sociedade globalizada.
O que mais importa no romance de Carvalho não é exatamente a narrativa inventada de um alienado mental, mas,
sobretudo, o diálogo que o escritor estabelece com os novos
paradigmas da sociedade pós-moderna, por meio de uma
linguagem paranóica, dita também esquizofrênica, como observamos em A céu aberto (1997), de João Gilberto Noll.
Noll realiza uma escritura fantasmagórica, cujas sombras são a duplicata da alucinação da guerra, em meio à
busca pelo pai. Pai igualmente ausente, que se inscreve
como traço ausente, enigmático. Observa Derrida que toda
presença implica o aparecimento de um enigma, ou de uma
presença pura e simples como duplicação, repetição originária: “autodistinção entre o domínio da ausência como
palavra e como escritura. A escritura na palavra. Alucinação como palavra e alucinação como escritura”. (DERRIDA,
1995, p. 180)
125
Bernardo Carvalho coloca à contra-luz o esgarçamento
dessas formas simbólicas, ulteriormente fixas, como razão,
realidade, loucura, busca pela origem perdida. Tais paradigmas misturam-se ao tecido social de extremos, em que a
cultura do dinheiro confunde-se com a do poder da política
e da mídia, produzindo-se, então, pathos, como sintoma da
diluição das mesmas forças permeadoras do Estado, que
era antes produto e produtor do que Freud denominou de
recalque.
Podemos pensar o recalque freudiano, no contexto da
pós-modernidade, em que “a falência do Estado viabilizou
o processo de globalização” (BAUMAN, 1999, p.27), como
dimensão primeira de uma auto-repressão nos níveis internos e externos da subjetividade. O sujeito recalcado
pode estar à deriva de seus próprios conflitos, em que as
interferências simbólicas da cultura do capitalismo tardio
o atravessam, causando-lhe o que Bauman denomina de
“mal-estar”, diante de uma pós-modernidade complexa,
tanto quanto confusa.
Para Derrida, o recalque é sinônimo de não esquecimento, de não exclusão das frustrações, projetadas de
maneira especular, em duplo movimento. Nessa ótica, os
signos psicossociais afetam o espaço interno da subjetividade, afetando conseqüentemente suas representações
mentais e simbólicas, em torno desses mesmos signos que
o perseguem, alterando substantivamente a produção do
significado que, em última análise, torna-se distorcido na
escritura. O recalque não repele, não foge nem exclui uma
força exterior, contém uma “representação interior, desenhando dentro de si um espaço de repressão. Aqui, o que
representa uma força no caso da escritura – interior e essencial à palavra – foi contido fora da palavra”. (DERRIDA,
1995, p. 180)
O recalque projeta-se no indivíduo, antes de tudo,
como memória que ele será apenas capaz de diluir, isto é,
torná-la como esquecimento, a partir da escritura, melhor
dizendo, a partir da palavra escrita, da inscrição do nome e,
em última instância, da linguagem. Trazer algo à memória
significa bloquear outros significados, quer dizer, esquecer
outros significantes dispersos nas lembranças. É como se
126
o significado sofresse uma espécie de corte essencial, realizado pelo significante, que acaba por rasurar as imagens
da memória:
(...) a memória. (A Darzstellung é a representação, no
sentido fraco desta palavra mas também muitas vezes no
sentido da figuração visual, e por vezes da representação
teatral. A nossa tradução variará conforme a inflexão do
contexto). Freud só concede a qualidade psíquica a estes
últimos neurônios. São os “carregadores da memória, e,
portanto, provavelmente dos acontecimentos psíquicos
em geral”. A memória não é, portanto, uma propriedade
do psiquismo entre outras, é a própria essência do psiquismo. Resistência e por isso mesmo abertura à efração
do traço. (DERRIDA, 1995, p. 185).
Em Teatro, o narrador possui uma origem igualmente
partida, isto é, uma origem que foi dividida entre duas nações, entre duas narrativas, entre duas memórias, entre
duas línguas. Esta fragmentação é o produto do recalque
paterno, buscando encontrar novos significados para o resgate dessa mesma origem diluída, ou melhor, dessa herança
perdida, e que nunca foi dada por um outro Pai-Estado, em
terras estrangeiras:
Nasci e cresci do outro lado da fronteira que o meu pai
atravessou na calada da noite com a minha mãe grávida
para viver no “centro do império”, ele dizia, e agora eu
entendo. A mesma fronteira que tive de atravessar de
volta para falar essa língua que ele havia abandonado
ao decidir viver lá, embora comigo ainda tentasse usála, e que aos poucos compreendeu ser a sua única esperança e o último vestígio da sua identidade, a única
herança que podia me deixar. Foram sessenta anos até
eu entender que somente nessa língua pobre eu poderia
falar, escapar ao controle dos sãos, somente fora do país,
contar essa história que na língua deles, que também foi
minha ao nascer do lado de lá da fronteira, só pode soar
como alucinação ou heresia. Só a língua do meu pai pode
restituir alguma verdade. (CARVALHO, 1998, p. 9).
127
Aqui vemos a ocorrência de duas trajetórias antitéticas,
que somatizam o mesmo desejo da fuga de sentidos que já
não se traduzem pela forma de valores utópicos de enraizamento patriótico, crença no Pai-Estado, identidade original
como herança, e o princípio da verdade linguística como
forma de superação do recalque estrangeiro. Nada disso
funcionou para o pai e não funcionará também para o filho,
mesmo que ele faça o caminho de volta, o caminho inverso
à trajetória desse pai biológico, o caminho de utopia.
Entretanto, o filho nessa “aporia”, melhor dizendo, nessa
busca por uma verdade, por um novo sentido de escritura,
deseja contar uma história que apenas é possível na língua
pobre de seu pai, e, para isto, é necessário o distanciamento
do centro do que ele chama de “império”, um império que
não foi o de seu pai e nem é o seu. Distanciamento que acaba por produzir aquilo que Homi Bhabha (1998) denomina
descentramento cultural. Teatro inscreve o descentramento
em duplo sentido, isto é, em duplo movimento da fuga e do
retorno, do eterno retorno às origens.
Não é mero acaso ou banal coincidência que o narrador
inicia a sua história inventada a partir de uma epígrafe que
conta também uma história de pathos. Escritura lendária,
que serve de legenda para muitas outras histórias de encontros e desencontros entre pai e filho, restando apenas o
grande enigma existencial de se estar no teatro do mundo,
buscar um lugar, uma permanência, uma origem, uma
família, como na trajetória de Édipo.
Lemos na epígrafe da escritura de Teatro a tentativa de
retorno a uma origem que foi inconscientemente sacrificada
pelo filho: “Hei de lavar a nódoa deste sangue, e não só pelos
outros, mas também por minha causa – pois quem matou
Laios talvez me esteja preparando o mesmo fim: ao justiçálo, então, é a mim que sirvo” (CARVALHO, 1998, p. 5).
Na escritura fantasmagórica de Teatro, o narrador deseja
vingar-se do desaparecimento inexplicável de seu pai, em
terras estrangeiras. O pai é o seu traço original, apagado
não pelo laço filial mas, antes, pela Lei:
Meu pai tinha essa fantasia: que a polícia era o que
podia haver de mais poderoso naquele país. Um pensa128
mento típico do imigrante ilegal, para quem os agentes
costumam ter uma presença marcante, e na maioria
dos casos definitiva. Tinham sido o pior pesadelo da
vida dele, o fantasma que o havia assombrado durante
anos, até ser anistiado. Nunca entendeu que a minha
polícia nada tinha a ver com a dele, embora tenha sido
o primeiro a chamar, na sua língua, os meus colegas de
“sãos”, o que não deixava de atestar um certo entendimento, tanto mais certo por ser sarcástico. Nada a ver
com imigração e fronteiras. Minha polícia cuidava do
mal interior. Quando consegui o emprego, ele chorou de
orgulho. Tinha esquecido o tempo em que o perseguiram. Não me fez jurar que eu não perseguiria nenhum
imigrante ilegal. (CARVALHO, 1998, p. 12-3).
O narrador provoca o seu próprio exílio do centro do
“império” para se isentar da contaminação significante
do mundo capitalista, cheio de sanidade coercitiva do
Pai-Estado, responsável pela produção de subjetividades
esquizóides e deslizantes. Essas subjetividades não conseguem fixar-se no território do Outro. Configuram-se, nesse
sentido, como subjetividades bloqueadas ou agônicas, como
também denominamos, e encontram-se deslocalizadas no
tecido sociocultural. Transitam à margem e estão excluídas
da racionalidade lógica do centro do “império”, ainda que
contaminado por fantasmas estrangeiros.
Para Foucault, os ditos da insurreição revelam a contraface do Poder institucionalizado. O Poder é então responsável pela produção das subjetividades agônicas, isto é,
aqueles indivíduos que estão à margem do social. Elas são
agônicas porque oscilam entre a ética e o crime: “um delinqüente arrisca sua vida contra castigos abusivos; um louco
não suporta mais estar preso e decaído; um povo recusa o
regime que o oprime” (FOUCAULT, 2004, p. 80).
É a partir do distanciamento, da fuga e da concepção de
uma razão impura que o narrador inominado, em Teatro,
na primeira parte de sua escritura, irá promover o desvelamento crítico das máscaras sociais, em seu caminho de
volta, fazendo emergir as profundas mazelas no bojo esquizofrênico do capitalismo tardio.
129
É no caminho de volta às origens perdidas que o narrador revela o seu nome: Daniel, na segunda parte de sua
autobiografia de ficção, em que revela também o lugar de
onde fala: o hospício. Daniel configura-se como subjetividade bloqueada, e este bloqueio é promovido pelo seu confinamento no hospício que, por sua vez, é o lugar simbólico
das subjetividades bloqueadas, ou barradas. Elas sofrem
essa interdição tanto pelo Estado, quanto pela sociedade
de consumo.
Para Derrida, a presença implicada do traço será sempre uma presença ameaçada por um Outro traço, por uma
Outra escritura que colocará em xeque o que foi escrito
anteriormente. Teatro compreende duas distintas escrituras, em que a segunda, isto é, a segunda parte do romance,
desestabiliza por completo a primeira, que parece ter sido
escrita por um Outro narrador, um narrador que não se
revela, por isso inominado.
Em Teatro vimos as nítidas rasuras “onto-teológicas” do
traço, isto é, da palavra, visto que a negação de algum sentido de Verdade faz diluir também algum sentido de theos,
de thelos. Essa exclusão onto-teológica, ou, em outras palavras, essa exclusão da divindade como fundação primeira
da origem, por conseguinte do traço/palavra, como em Édipo rei, é também sintoma do esgarçamento das máscaras
edipianas e narcísicas. O filho, ao fazer o regresso às suas
origens ontogenéticas, afasta-se de si mesmo, por um lado,
e, por outro, aparta-se das lembranças fantasmáticas do pai
morto, no centro de um “império” que não lhe pertencia.
Para romper com a memória do pai morto é necessário,
pois, que Daniel também provoque cisões em sua máscara
edípica. Ele encontra a solução simbólica para esta fuga de
si, forjando a sua própria morte:
Depois de procurar com o dedo, olhou para mim e disse:
“Não está aqui”, entre os mortos. Não respondi, já estava
com a nota debaixo da mão. Empurrei o dinheiro sobre
a página do livro, sobre o nome dos mortos, para que
ele o visse. Sabia que podia negociar com aquele tipo
de homem. “Vai sair mais caro”, ele disse. E eu coloquei
outra nota. Repeti o meu nome, a data de nascimento
130
e morte. Mostrei-lhe a certidão de óbito falsa, para que
não errasse a grafia. Era um sujeito ignorante, que copiou letra por letra do meu nome de estrangeiro e disse
sorrindo que eu não precisava mais me preocupar, em
uma semana a placa estaria no túmulo, o meu nome ao
lado do nome do meu pai e do da minha mãe. O último
detalhe. Eu sabia que era uma faca de dois gumes. Se
quisessem me eliminar, agora seria muito mais fácil,
já tinha feito metade do serviço. Por outro lado, minha
esperança era que acreditassem na minha morte, pelo
menos até eu sair do país. Não sabia se já estavam no
meu encalço, se já tinham se lembrado de mim. Foi
apenas uma suposição. Preferi não me arriscar.
Saí do cemitério direto para a estrada. Viajei durante dois
dias até a fronteira, onde abandonei e explodi o carro,
não sem antes adulterar o número do chassi. Devem têlo encontrado na manhã seguinte. É comum encontrar
carros explodidos na fronteira. Em geral são obra de
bandidos ou traficantes tentando eliminar rastros. Sou
apenas um aposentado. (CARVALHO, 1998, p. 18).
O dinheiro sobre o nome dos mortos é o significante que
promove o apagamento da escritura e, por conseguinte, da
memória do nome do pai, sobrepondo-se, metonimicamente,
a um outro significante, que desvela códigos subliminares
de uma razão impura, reacendendo outros significados metafóricos na construção das subjetividades bloqueadas.
Aqui vemos que a razão – em oposição à loucura – é extremamente diluída no bojo dos códigos sociais, e aí vemos
surgir uma razão que na verdade é impura, isto é, ela não
está isenta de contaminação irracional e acaba por projetar
no Outro uma razão que também é facilmente corruptível.
A subjetividade bloqueada pelo dinheiro torna-se paranóica,
visto que ocorre o descolamento do significante – na esfera do
imaginário – e do significado – na esfera do simbólico. Nesse
sentido, o dinheiro funciona para Daniel como metáfora e metonímia de apagamento e ascensão social a um só tempo:
A oposição da metáfora e da metonímia é fundamental,
pois o que Freud colocou originalmente no primeiro
plano nos mecanismos da neurose, bem como naqueles
131
dos fenômenos marginais da vida normal ou do sonho,
não é nem a dimensão metafórica, nem a identificação.
É o contrário. De uma forma geral, o que Freud chama a
condensação, é o que se chama em retórica a metáfora, o
que ele chama o deslocamento é a metonímia. A estruturação, a existência lexical do conjunto do aparelho significante, são determinantes para os fenômenos presentes
na neurose, pois o significante é o instrumento com o
qual se exprime o significado desaparecido. É por essa
razão que de novo dirigindo a atenção para o significante,
nada mais fazemos do que voltar ao ponto de partida da
descoberta freudiana. (LACAN, 1998, p. 252).
Observamos que esse apagamento nominal remete ao
desejo inconsciente de anomia, de anonimato, de morte. O
nosso narrador quer evadir-se do centro do
“império”,
quer distanciar-se da realidade esvaziada de significados,
como forma de superação do recalque de sua subjetividade
estrangeira, e para isso apaga o seu nome, sua identidade,
seu logos. Para Derrida, “a repressão logocêntrica não é inteligível a partir do conceito freudiano de recalque; individual
e original se torna possível no horizonte de uma cultura e
de uma inserção histórica” (DERRIDA, 1995, p. 181).
Daniel, ao comprar a sua própria morte, a fim de se
evadir de uma realidade de significados esgarçados para
cair na clandestinidade, assume uma Outra subjetividade,
igualmente bloqueada: a do terrorista.
Vemos surgir, então, a configuração não apenas de uma
subjetividade híbrida, mas, sobretudo, o surgimento do
sujeito fractal, isto é, do sujeito fraturado, que se desdobra em três diferentes tipos de subjetividades, que não se
comunicam: a do estrangeiro, a do policial aposentado e,
por último, a do terrorista:
A idéia das vítimas sempre entrando em suas casas,
perdendo os sentidos (a idéia era levá-las a perder os
sentidos) depois de abrirem os pacotes, sujas daquele
pó amarelo, solar, caídas no chão, paralisadas, sempre
ricos e bem-sucedidos profissionais, empresários, advogados, financistas, publicitários e suas mulheres, uma
vez uma secretária, gente de bem, a idéia daquela gente
morrendo por funcionar tão bem dentro do mundo em
132
que vivia, tudo isso criou um pânico virtual, contido,
que aumentava o ritmo dos batimentos cardíacos sem
no entanto deixar transparecer nenhuma mudança.
(CARVALHO, 1998, p. 30).
Mas, poderemos nos perguntar: por que uma subjetividade terrorista e não simplesmente paranóica? Por que
o desejo de perseguir e não a mania de perseguição, que é
própria das subjetividades paranóicas? Reflexões que não
se esgotam apenas com argumentos teóricos, visto que se
trata de uma escritura complexa e inesgotável, cheia de referências significativas. Mesmo assim, no nosso observatório
de sombras, vemos que Bernardo Carvalho se antecipa ao
atual estágio do terrorismo no mundo, a exemplo do atentado terrorista em Nova York, no World Trade Center, em
2001. É deste modo que a dupla escritura partida de Teatro
ocupa a cena irreal do contemporâneo, entre significantes
rasurados e vários outros significados que nos arrastam
para o centro do furacão da pós-modernidade.
Bernardo Carvalho mistura signos do passado e do
presente, dificultando a passagem da palavra, da escritura
e, por último, da linguagem pela estreita fenda da ficção.
Teatro nos impõe uma dificuldade de leitura em torno de
uma escritura rachada e que articula diferentes códigos,
diluídos na sociedade do capitalismo tardio. Códigos que
dependerão sempre de um desvelamento, de uma decodificação. Interessante observar que as novas mídias, por
exemplo, ocupam o lugar da memória, que se torna instável
e deslizante entre o plano do real e o plano do virtual:
Dessa vez, a mensagem viera dois dias depois. O terrorista – os investigadores, reconvocados, voltaram a se
referir assim ao missivista assassino, sem reservas –
agora se manifestava sobre a mídia. Perguntava como é
que a mídia podia estar presente sempre que acontecia
algo importante e inesperado em qualquer parte do planeta, como era possível que sempre houvesse imagens
de todas as coisas que aconteciam no mundo: “Como
é possível prever e controlar todo acaso, aboli-lo, sem
que o mundo se torne uma farsa, uma ficção horrível e
programada? Esta carta, como os pacotes que vieram
antes e os que ainda estão por vir, prova, para aqueles
133
facilmente iludidos pelas imagens da televisão, que a
mídia não pode estar sempre presente, que há coisas
que não se podem ver e que o acaso sempre existirá.
(CARVALHO, 1998, p. 27).
Curiosamente, Teatro constitui-se como paradoxo de
apresentação da mídia televisiva para refutar o seu papel
controlador sobre as manifestações da subjetividade, dando ênfase à representação teatral, por exemplo. Derrida
vê o teatro como jogo de representação da escritura, em
que o corpo do ator carrega a máscara viva da realidade:
“Só o teatro é arte total em que se produz, além da poesia,
da música e da dança o aparecimento do próprio corpo”
(DERRIDA, 1995, p. 133). Corpo que simplesmente fala,
antagonista da escritura.
No romance de Carvalho, o teatro aparece como representação de uma fala, que se inscreve por meio de uma escritura
partida. O corpo aqui oculta-se na máscara da insanidade
mental e ocupa um lugar de isolamento e reclusão, visto que
esse narrador fala de um hospício, como já ressaltamos. Por
outro lado, o corpo, em Teatro, diferente da manifestação
teatral, não é objeto de representação, mas, antes, é um significante ausente que desvela as impurezas de um mundo
desajustado, no qual transitam subjetividades interditadas:
Leu, nas cartas do irmão, que se tratava de uma urna
de latão com um pergaminho. O dono do supermercado,
insatisfeito com a descoberta e frustrado com a evasiva
de N., a quem perguntara o que queriam dizer aquelas
inscrições (recebendo como resposta que levariam meses
até poder decifrar todo o pergaminho escrito em grande
parte na língua doce, continuou esburacando o chão do
supermercado à procura do “verdadeiro tesouro”, como
dizia, quando, para N., já estava mais do que claro que
era o tesouro o que haviam achado, como relatava nas
cartas. O supermercado foi à falência quando já não era
mais possível alocar os laticínios na ala dos produtos de
limpeza ou vice-versa, e assim por diante, porque todas
as alas foram inutilizadas, como N. escreveu ao suspeito,
não sem algum humor (era v. que, aparentemente, não
tinha nenhum). A família acabou interditando o dono do
supermercado, talvez com um pouco de atraso, agora que
134
sua idéia era derrubar o prédio inteiro, transformando
todo o terreno num grande sítio arqueológico, o que lhe
parecia um lucrativo investimento a longo prazo. (CARVALHO, 1998, p. 60).
Na escritura híbrida de Teatro, observamos que o corpo é marcado pelos símbolos da cultura pós-moderna, na
alegorização da personagem Ana C., por exemplo. Aqui arriscaríamos dizer que Carvalho faz uma referência à poeta
Ana Cristina Cezar, que participou da chamada “geração
mimeógrafo” nos 1970. No romance, Ana C. possui uma
incompletude nominal e assume, surpreendentemente, na
segunda parte do livro, uma identidade homossexual, produzindo vídeos pornográficos. Vemos aqui o corpo se projetar
como ausência significante, para ocupar um outro significado. O corpo de Ana C. é mais um traço vazio que busca o
preenchimento de sentidos, mesmo esgarçados pela razão
impura de uma lógica cultural do capitalismo tardio:
(...) O corpo traz todas as respostas, de onde viemos, para
onde vamos, o que somos, por que estamos aqui, mas
o corpo não conta. O espírito não sabe ler o corpo, essa
fórmula, e nunca poderá lê-la, pois assim é que é, esta
condição, esta impossibilidade. Daí o corpo para os cátaros ser obra do demônio, aprisionando a alma. O corpo é
ao mesmo tempo o que detém todas as respostas e o que
não se pode ler, foi o que eu respondi a ele, não tendo
mais o que dizer, quando me mandou aquela fórmula,
o irmão disse em alguma parte do artigo, referindo-se
ao suspeito. E que foi também a partir daquele ponto
que sentiu, ainda sem aquilatar as conseqüências, que
o tinha perdido de vez. (CARVALHO, 1998, p. 63).
Com efeito, é necessário buscar sentidos, significados,
traços que venham a preencher essa escritura vazia e demoníaca do corpo. O corpo de Ana C., portanto, configura-se
como reescritura de um teatro, produzindo uma dificuldade
de leitura, uma dificuldade na passagem do traço por essa
“rachadura” corpórea. O corpo híbrido de Ana C. articula
múltiplos significados para um significante que se encontra vazio. Mais uma vez, vimos a ocorrência de múltiplos
sentidos sobre o corpo na cultura do pós-modernismo, no
135
cruzamento com outros significados acerca do estar no
mundo, buscar uma identidade, uma origem.
Em última análise, é necessário, então, o distanciamento, a negação do lugar, a fuga de sentidos de realidade, para
que enxerguemos a insanidade das novas formas simbólicas
do contemporâneo. Não é por acaso essa dificuldade de leitura de Teatro, visto que Bernardo Carvalho, a partir de um
discurso esquizofrênico e de repetição, rearticula, “direto do
hospício”, os novos paradigmas da sociedade do capitalismo
tardio. Tais paradigmas ou, em outras palavras, os novos
signos culturais, erigem-se nessa escritura partida como
angústia, como razão impura, como paranóia.
Referências
BHABHA, H. O local da cultura. Trad. Myrian Ávila, Eliana
Lourenço de Lima e Gláucia Renata Gonçalves. Belo Horizonte:
Ed. UFMG, 1998.
BAUMAN, Z. O mal-estar da pós-modernidade. Trad. Mauro Gama
e Cláudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
__________. Globalização: as conseqüências humanas. Trad.
Marcos Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
__________. Em busca da política. Trad. Marcos Penchel. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
CARVALHO, B. Teatro. São Paulo: Companhia das Letras,
1998.
DERRIDA, J. A escritura e a diferença. Trad. Maria Beatriz
Marques Nizza da Silva. São Paulo: Perspectiva, 1995. (Col.
Debates)
FOUCAULT, M. Ética, sexualidade e política. Vol V, Trad.
Elisa Monteiro e Inês Autran Dourado. Org. Manoel Barros. Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 2004.
LACAN, J. Seminário 3: as psicoses. Trad. M. D. Magno. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
JAMESON, F. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo
tardio. Trad. Maria Elisa Cevasco. São Paulo: Ática, 2000.
PARENTE. A. Imagem máquina. Rio de Janeiro: Editora 34,
2001.
Recebido em 31/10/2009
Aceito em 07/12/2009
136
O LIVRO DAS IGNORÃÇAS COMO VOZ LÍRICA
DE INSCRIÇÃO ÉPICA
Marta Helena Cocco1
Jamesson Buarque de Souza2
Resumo: Este artigo descreve a presença de aspectos do estilo
épico na formação poética de O Livro das Ignorãças, de Manoel de Barros, percorrendo um processo de apresentação de
características desse estilo, como a descrição de um mundo
isolado e suficiente em si mesmo, a presença de personagens
e animais que expressam a coletividade de seres daquele
mundo e a ausência de tempo futuro, entre outras. Para efeito
deste estudo, consideramos que, no mundo contemporâneo,
o estilo épico se configura nos poemas hibridizado (com o
lírico). Para tanto convocamos à discussão postulados sobre
o gênero épico a partir dos estudos de Hegel (1997), Lukács
(2000), Staiger (1997) e Bakhtin (1990).
Palavras-chave: poesia brasileira, Manoel de Barros, estilo épico.
O LIVRO DAS IGNORÃÇAS AS LYRICAL VOICE
OF EPIC INSCRIPTION
Abstract: This paper describes the presence of the aspects
of epic style of poetry in The Book of Ignorãças (O Livro das
Ignorãças), by Manoel de Barros. For this, it goes through
a process of presenting the features of this style, such that
the description of an isolated world and sufficient in itself,
the presence of characters and animals that express a collectivity of beings of that world and no future time, among
other. For purposes of this study, we believe that the epic
style takes shape in the lyrical poems hybridized in the
contemporary world. For this discussion, we argue the
postulates about the epic genre from the studies of Hegel
(1997), Lukács (2000), Bakhtin (1990 and Staiger(1997).
Keywords: Brazilian poetry, Manuel de Barros, epic style.
1 Professora de Literaturas da Língua Portuguesa da Unemat/MT, doutoranda em
Letras e Lingüística (FL/UFG) e membro do grupo de pesquisas RG-Dicke (UFMT/
CNPq). [email protected]
2 Professor doutor de Teoria de Literatura e de Ensino de Literatura na FL/UFG e do
programa de pós-graduação stricto sensu (mestrado e doutoramento) da mesma instituição, no qual ministra a disciplina Teorias do estilo épico em poesia: dos antigos
aos modernos e contemporâneos.
POLIFONIA
CUIABÁ
EDUFMT
Nº 20
P. 137-150
2009
issn 0104-687x
A classificação de uma obra nos gêneros épico, lírico e
dramático era mais tranquila na Antiguidade, diante de um
número reduzido de obras, segundo Emil Staiger (1997). No
entanto, acrescentamos que não se tratava somente disso.
Na Antiguidade havia uma formalização, uma predisposição humana a um mundo dado antes. Logo, a formalização
fechada de congressos textuais (poesia, filosofia) e seus
compartimentos (épica e dramática, diálogo e escólio) era
muito resolvida, de sorte que não havia, propriamente,
insinuação de uma coisa na outra, pois isso implicaria em
mau domínio da Retórica, da Gramática e da Lógica. Hoje,
com tamanha variedade e quantidade de textos, qualquer
tentativa de classificação é uma custosa empreitada. O
que tem sido apresentado como consenso é que os gêneros
estão hibridizados. Esse consenso começou a ganhar corpo, sobretudo, no início do século XX, a partir das visitas
e revisitações aos Cursos de Estética (1997), de Hegel, e ao
Nascimento da Tragédia (1983), de Nietzsche. É justamente
essa hibridização que nos permite visualizar a vigência do
estilo épico em obras da atualidade, contrariando aqueles
que, sem qualquer relativização, consideram apenas o gênero puro, porque julgam ser o épico um gênero morto, de
existência jamais cabível a partir da Modernidade. Mais
gravemente, julga-se, não raro, o épico inconcebível desde
os fins da Antiguidade.
Muitas interpretações foram feitas para se compreender
o que caracteriza o gênero épico em um texto literário. Algumas sobrevivem até hoje e se consolidaram como fonte de
referência. Outras se enfraqueceram pelo fato de se referirem a obras em particular. Do que se pesquisou a respeito,
interessa-nos, inicialmente, verificar a proposição de Lukács
(2000) de que o épico relaciona-se com culturas fechadas,
nas quais imanência e transcendência coexistem e o mundo
se apresenta ao ser como uma totalidade na qual ele está
inserido e integrado. Lukács asseverou que a epopeia não
é possível no mundo moderno (com o advento do drama e
da filosofia), uma vez que a constituição deste mundo prevê
a individualidade humana:
138
A grande épica dá forma à totalidade extensiva da vida, o
drama à totalidade intensiva da essencialidade. Eis por
que, quando a existência perdeu sua totalidade espontaneamente integrada e presente aos sentidos, o drama
pôde, não obstante, encontrar em seu apriorismo formal
um mundo talvez problemático, mas ainda assim capaz
de tudo conter e fechado em si mesmo. Para a grande
épica isso é impossível. (LUKÁCS, 2000, p. 44).
Concordamos com o filósofo, no entanto, sob a ressalva
de que a Modernidade compreende o espaço do múltiplo e
do diverso, portanto, coexistem hoje mundos assemelhados
(logo, não-idênticos) ao da antiga epopeia, ainda que sejam
mundos caracterizados por um relativo isolamento. Cabe
aqui, portanto, compreender que a teoria do gênero épico,
aliás, a teoria dos gêneros literários foi constituída a partir
de um formalismo não-mais pertinente e fundada em princípios de formulação fechada de congressos textuais, como
dissemos no início deste artigo. No entanto, chegando-se à
Literatura do Modernismo para os dias atuais, os fundamentos de inspiração (da Antiguidade e da Idade Média, tanto do
viés pagão quanto do cristão), de emulação (do Classicismo,
do Renascimento até o Iluminismo) e de influência por força
de genialidade e originalidade (do “Sturm und Drang”, bem
como do Romantismo propriamente dito) foram se consubstanciando. Logo, dessa massa mista de fundamentos
distintos, muito do que ficou para a escrita literária foi uma
série de costumes, de hábitos. Assim, saindo do conceito de
gênero, que leva em conta essa formalidade fechada e cabível
a épocas específicas, e convocando o conceito de estilo, o
qual diz respeito a traço, à maneira de fazer conforme fazia
um gênero, o épico é pertinente a qualquer época, assim
como o lírico – visto que a poesia assim tratada nos dias
atuais não converge exatamente para a poesia, por exemplo,
medieval tomada como lírica.
Retomando Lukács (2000) outra proposição deste filósofo é a de que não é mais possível a epopeia em verso. A
partir dessa proposição, sobrelevamos nossa ressalva, pois
o teórico ao fazer essa afirmação se refere à inexistência de
condições sócio-culturais para a criação épica na atualidade, inclusive no sentido estilístico, e, por isso, híbrido.
139
Asseveramos que, não a epopeia necessariamente – sobretudo, a epopeia como, por que e para que foi aos antigos –,
mas o estilo épico, quer dizer, poemas em estilo épico são
possíveis, pois, justamente um desses mundos (assinalados
anteriormente), tornados conhecidos por uma voz lírica com
traços épicos, é o que almejamos apresentar neste artigo.
Antes, porém, devemos dizer que Lukács comunga do pensamento de seu antecessor Hegel para quem a epopéia não
é realizável quando
as determinações gerais, que devem presidir aos atos
humanos, em vez de fazer parte da totalidade formada
pela vida sentimental e mental, assumiram um caráter
prosaico, o de uma ordem personificada em instituições
políticas, regulada por prescrições morais e jurídicas
fixas que impõem ao homem obrigações e deveres, que
ele há de cumprir sob a pressão de uma necessidade
exterior, de modo algum imanente. Em presença de
semelhante realidade, o homem transporta-se para um
mundo da sua própria criação, no qual exprime as suas
intuições, sentimentos e reflexões, para um mundo no
qual busca não motivos de ação, mas uma percepção do
seu próprio eu interior, um colóquio com o seu eu mais
íntimo na sua expressão lírica. (HEGEL, 1997, p. 445).
Encontramos na 3ª parte do Livro das ignorãças3, de
Manoel de Barros, intitulado “mundo pequeno”, a representação de um mundo que, para o eu-lírico parece ser
suficiente, o que nos impele a relacioná-lo com o mundo
fechado das epopeias – jamais no nível sócio-histórico, mas
nesse sentido mesmo, relacional, de plano interpretativo.
Nesse caso, a diferença reside na presença do elemento
lírico, no sentido da consciência do eu diante do mundo. É
justamente o eu que nos fala sobre sua descrição e nos indica uma integração entre o ser, o cosmos e a divindade:
O mundo meu é pequeno, Senhor.
Tem um rio e um pouco de árvores.
Nossa casa foi feita de costas para o rio.
Formigas recortam roseiras da avó.
3 Para os poemas ou excertos do Livro das ignorãças que serão apresentados neste
artigo, usaremos a referencia: LI e o número da página.
140
No fundo do quintal há um menino e suas latas
Maravilhosas.
Seu olho exagera o azul.
Todas as coisas deste lugar já estão comprometidas com aves.
Aqui, se o horizonte enrubesce um pouco, os
Besouros pensam que estão no incêndio.
Quando o rio está começando um peixe,
Ele me coisa
Ele me rã
Ele me arvore.
De tarde um velho tocará sua flauta para inverter os
Ocasos. (LI, p. 75)
Na tessitura do texto, nos componentes linguísticos,
comprova-se a afirmação anterior. O pronome possessivo
“nossa” (“nossa casa”) e o advérbio de lugar “aqui” (“aqui,
se o horizonte”) demarcam a inscrição espacial, ao lado da
descrição dos elementos que formam esse espaço-paisagem
e que evidenciam a satisfação do eu com as coisas que o
rodeiam – um menino e suas “latas maravilhosas” – e sua
total integração ao ambiente quando se apropria de substantivos e lhes dá função de verbo para dizer que o mundo
lhe pertence, e mais do que isso, compõe o seu ser: “ele me
rã, ele me árvore’”. As formas verbais no presente indicam
um estado, uma vivência do hoje, sem a preocupação com
o futuro, conforme Staiger (1997, p. 108): “o homem épico
vive exclusivamente a vida de cada dia” e, indicando uma
atitude de humildade e contemplação, conforme Lukács:
o sujeito da épica é sempre o homem empírico da vida, mas sua presunção criadora e subjugadora da vida transformase, na grande épica, em humildade, em
contemplação, em admiração muda perante o sentido de clara fulgência que se
tornou visível a ele, homem comum da
existência cotidiana, de modo tão inesperadamente óbvio.(LUKÀCS, 2000, p.48).
Também verificamos no mundo descrito, a ausência de
códigos e regras institucionais caracterizadores do mundo
prosaico pontuado por Hegel.
141
Um dos elementos caracterizadores do estilo épico é
a presença de personagens míticas, cujo comportamento
assemelha-se ao dos profetas ou poetas, por serem portadores de uma verdade filosófica. Além disso, são apresentados
como sempre foram, são estereotipados, não passam por
nenhuma transformação. Por isso, estão ao par de animais
e, nesse sentido, a marginalidade não só se justifica, mas,
nesse caso, afasta-se da tradição do estilo épico e se inscreve
no gênero romanesco. No segundo poema da 3ª parte, são
citados Bugre Felisdônio, Ignácio Raizama e Rogaciano:
Conheço de palma os dementes de rio.
Fui amigo do Bugre Felisdônio, de Ignácio Raizama
E de Rogaciano.
Todos catavam pregos na beira do rio para enfiar no
Horizonte.
Um dia encontrei Felisdônio comendo papel
nas ruas de Corumbá.
Me disse que as coisas que não existem são mais
Bonitas. (LI, p. 77)
No poema seguinte, Barros descreve um desses personagens a quem não dá nome. Nesse caso, talvez o nome
não interesse, mas seu modo de viver e estar nesse mundo,
caracterizando uma ilha, um isolamento diante do mapamúndi. Sem dúvida trata-se de indivíduos, mas, para o
ethos local, representam um tipo ou a própria comunidade
de habitantes do pantanal. Assim, representariam os heróis daquela coletividade, no sentido híbrido entre o épico
e o romanesco. Outro modo de ver é o da coerência com o
atributo do ser cujo gosto é o de desnomear as coisas. Para
reforçar a tese de que o épico sobrevive na contemporaneidade, podemos caracterizar esses e outros personagens que
aparecem nos poemas de Manoel de Barros como arquetípicos, no sentido de que não são criações individuais do
autor, mas fazem parte do coletivo da humanidade, como
representações sócio-históricas de sujeitos típicos. Nesse
caso, o romanesco é deixado de lado a serviço do épico,
visto que naquele gênero as personagens são dotadas de
psicologia e, neste estilo, não. Caberia ao poeta, então,
acessar este arquivo:
142
Retrato de um poste mal afincado ele era.
Sendo um vaqueiro entrementes; peão de campo.
No jeito comprido de estar em pé seu corpo fazia
três curvas no ar.
Usava um defeito de ave no lábio.
Desde o vilarejo em que nasceu podia alcançar o
Cheiro das árvores.
Esse malfincado:
sempre nos pareceu feito de restos.
(...)
Gostava de desnomear:
para falar barranco dizia: lugar onde avestruz
esbarra.
Rede era vasilha de dormir.
(...)
(LI, p.79)
Chama-nos a atenção nesse poema a descrição do personagem, menos focalizada no aspecto físico e mais nos
atributos, especialmente no de se referir a outros seres,
ignorando os sentidos convencionais e estabelecendo os que
resultam da sua vivencia-imanência à natureza. Ressalte-se
que esses atributos são apresentados como perenes, visto
que não há qualquer marca de transformação nos personagens. O mesmo ocorre com o, agora nomeado, Sombra-boa,
do poema seguinte:
Caçador, nos barrancos, de rãs entardecidas,
Sombra-boa entardece. (...)
Sombra-boa tem hora que entra em pura
decomposição lírica: ‘aromas de tomilhos
dementam cigarras’. Conversava em guató, em
Português, e em Pássaro.
(...)
Foi sempre um ente abençoado a garças.
Nascera engrandecido de nadezas. (LI, p.81)
O narrador, o contador de histórias também aparece
como atributo de alguns personagens ou do próprio eu dos
poemas – Estórias de Andaleço fascinavam os meninos – (LI,
143
p. 93). Esse aspecto nos remete à biografia de Homero que,
embora não totalmente segura, aponta para o fato de ele
ter sido um compilador de várias histórias que corriam de
boca a boca na Grécia Antiga. Essa teria sido a origem de
Ilíada. Se pensarmos nas duas classificações de narrador
feitas por Walter Benjamin (1994, p.198), observamos nos
poemas de Manoel de Barros, tanto o narrador que conhece
muito bem o seu mundo por viver intensa e unicamente
nele (o que diz respeito principalmente aos personagens
mencionados) como o narrador que viajou por outros lugares e de lá trouxe suas experiências, como demonstram
estes versos que serão novamente transcritos mais adiante
obra neste artigo:
(...)
Me arrastei por beiradas de muros cariados desde
Puerto Suarez, Chiquitos, Oruros e Santa Cruz
De La Sierra, na Bolívia.
Depois em Barranco, Tango Maria (onde conheci o
poeta Cesar Vallejo), Orellana e Mocomonco
- no Peru.
(...)
(LI, p.101)
Outra marca do estilo épico é anulação do tempo, partindo do pressuposto de que ele (o épico) faz convergir as
épocas; nele, o passado apresenta-se impassível, é rememorado e não recordado, como diz Staiger:
O acontecimento conserva-se distante, oposto, também
pelo fato de ser passado. O autor épico não se afunda no
passado, recordando-o como o lírico, e sim rememoriza-o.
E nessa memória fica conservado o afastamento temporal
e espacial. O longínquo é trazido ao presente, para diante
de nossos olhos, logo perante nós, como um mundo outro
maravilhoso maior. (STAIGER, 1997, p. 79)
No épico, como o passado está concluído, a linhagem dos
personagens não é objeto de investigação. É o que ocorre
em: “Sombra-Boa “foi sempre abençoado a garças” (LI, p.81),
não há uma anterioridade determinante, ‘nascera’ assim e
por isso se recobre de um sentido de ancestralidade. Nesse
caso não há também uma relação de causa-consequência,
144
pelo menos não explicitamente. Ao lado desses personagens
arquetípicos, sem distinção hierárquica, aparecem animais:
formigas, besouros, rãs, borboletas, lesmas, capivaras, lagartos. São seres que habitam, ao par do humano, o mundo
do pantanal, como em:
Esses lagartos curimpãpãs têm índole tropical.
Tornam-se no mês de agosto amortecidos e idiotas
Ao ponto que se deixam passar por cima como
pedras.
(...)
(LI, p. 83)
O mundo pantaneiro, constituído desses seres, não
tem uma origem descrita na obra do poeta.. São narrados
sempre em relação ao passado, embora a percepção de sua
existência se dê no presente do fazer poético.
O mundo não foi feito em alfabeto. Senão que
Primeiro em água e luz. Depois árvore. Depois
Lagartixas. Apareceu um homem na beira do rio.
Apareceu uma ave na beira do rio. Apareceu a
Concha. E o mar estava na concha. A pedra foi
Descoberta por um índio. O índio fez fósforo da
Pedra e inventou o fogo pra gente fazer bóia. Um
Menino escutava o verme de uma planta, que era
Pardo. Sonhava-se muito com pererecas e com
Mulheres. As moscas davam flor em março.
(...)
(LI, p. 95)
Esse mundo, por sua vez, é pleno, não há, em nenhum
momento, o registro de desconforto, qualquer que seja, do
ser sobre seu destino:
O que jantava eram bundas de gafanhoto com mel.
(LI, p.93).
Vi outonos mantidos por cigarras.
Vi lamas fascinando borboletas.
E aquelas permanências nos relentos faziam-me
Alcançar os deslimites do Ser. (LI, p. 101)
Também a sensação de que o mundo é e acaba ali,
reiterando a noção de mundo fechado sobre a qual já nos
145
referimos: “Estas águas não têm lado de lá. / Daqui só enxergo a fronteira do céu.” (LI, p. 33). O ser que habita esse
mundo, sequer questiona seu destino: “estou irresponsável
do meu rumo.”(LI, p.53).
Outro aspecto que sobressai nesse recorte é o cruzamento com a história, com as lendas, configurando uma intertextualidade com fontes populares, mais precisamente com
lendas contadas na própria região e registradas em livro.
Sobre essa relação vale pensar a respeito do que Gerardo
Mello Mourão disse: “o poema épico escrito em nossos dias
pode e deve ser feito também de collages” (MOURÃO, 1997,
p. 16-17). Isso se observa no poema VI em que o 4º e o 5º
versos ganham uma nota de rodapé:
Mulheres não tinham caminho de sair
Era só concha.*
Depois é que fizeram o vaso da mulher com uma
Abertura de cinco centímetros mais ou menos.
(E conforme o uso aumentava).
Era só concha: está nas lendas em Nheengatu e Português, na revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro. (LI, p. 85)
Todas essas marcas extraídas dos poemas de Manoel
de Barros servem para reconhecermos neles a presença do
épico e apologizarmos que esse estilo não pertence apenas ao
passado, mas se reelabora contemporaneamente. Entretanto, convém salientar que são apenas traços do estilo épico,
o lírico constitui material preponderante na arquitetura dos
versos. Esse hibridismo fica evidente quando temos em poemas predominantemente narrativos, um eu que ora se refere
a terceiros, ora a si mesmo e, em alguns textos, faz uso do
expediente biográfico, denunciando a indubitável presença
do autor. Essa autobiografia, entretanto, confunde-se com
os seres ficcionalizados, por serem tão semelhantes devido
ao fato de ocuparem o mesmo espaço e por compreenderem
o mundo com similar reconhecimento do sentido da imanência. É o que observamos nestes excertos:
Descobri aos 13 anos que o que me dava prazer nas
leituras não era a beleza das frases, mas a doença delas.
Comuniquei ao Padre Ezequiel, um meu Preceptor,
146
Esse gosto esquisito.
(...) (LI, p.87)
De 1940 a 1946 vivi em lugares decadentes onde o
Mato e a fome tomavam conta das casas, dos
Seus loucos, de suas crianças e de seus bêbados.
Ali me anonimei de árvore.
Me arrastei por beiradas de muros cariados desde
Puerto Suarez, Chiquitos, Oruros e Santa Cruz
De La Sierra, na Bolívia.
Depois em Barranco, Tango Maria (onde conheci o
poeta Cesar Vallejo), Orellana e Mocomonco
- no Peru.
(...)
(LI, p.101)
Venho de um Cuiabá garimpo e de ruelas entortadas.
Meu pai teve uma venda de bananas no Beco da
Marinha, onde nasci.
Me criei no Pantanal de Corumbá, entre bichos do
Chão, pessoas humilde, aves, árvores e rios.
Aprecio viver em lugares decadentes por gosto de
Estar entre pedras e lagartos.(...)
Já publiquei 10 livros de poesia; ao publicá-los me
Sinto como que desonrado e fujo para o
Pantanal onde sou abençoado a garças.
(...) (LI, p. 103)
Tais semelhanças entre o eu-biográfico, o eu-poético,
personagens e animais, acaba por criar uma identidade,
a do habitante do mundo pantaneiro com seu ethos particular. A identidade é tão fecunda que gera uma fusão,
ser e espaço são “uma só carne”: “O chão deseja meu olho
vazado pra fazer parte do/ cisco que se acumula debaixo
das árvores” (LI, p. 99). Se observarmos o Livro das ignorãças por completo, assim como outras obras de Manoel
de Barros, verificaremos que essa postura diante da vida e
da natureza se repete e se corporifica no ritmo prosaico de
seus textos, sua sintaxe narrativa (em que predominam as
relações de coordenação de não as de subordinação) e seu
léxico impregnado de neologismos criados, geralmente, da
migração das palavras de uma classe a outra. Sobre essa
recorrência, ao analisar a obra de Homero, Staiger disse:
147
Homero ascende da torrente da existência e conservase firme, imutável frente às coisas. Ele as vê de um
único ponto de vista, de uma perspectiva determinada.
A perspectiva situa-se na rítmica de seus versos e lhe
assegura sua identidade, sua constância frente ao fluxo
das aparências (STAIGER, 1997, p. 77).
Do mesmo modo é possível reconhecer um estilo a Manoel de Barros ou uma dicção manoelina e dizer que há uma
unidade em sua obra, se pensarmos que a sua perspectiva
de composição é, no plano formal, predominantemente
composta de versos irregulares, de ritmo prosaico. No plano
do conteúdo, é nítida uma forte influência da corrente de
vanguarda surrealista, uma valorização dos pequenos mundos, uma tentativa de deserarquizar a supremacia humana
diante de outros seres, e a valorização da linguagem simples
e espontânea do mundo pantaneiro, em face do purismo e
do convencionalismo da variante padrão.
Voltando à questão do épico, não poderíamos deixar
de convocar para este estudo as proposições de Mikhail
Bakhtin (1990). Se para Lukács (2000) a epopeia em versos
é impossível, para Bakhtin, o poema que contenha o estilo
épico se transforma em romance em verso, pois considera
que o romance é o único gênero que ainda está em evolução, enquanto os outros já são conhecidos em seu aspecto
acabado. Sobre a epopeia, em particular, ele diz não ser
apenas um gênero criado há muito tempo, mas também
um gênero envelhecido (BAKHTIN, 1990, p. 397). Para
concordarmos com o teórico, talvez devêssemos pensar em
gêneros puros, sem a hibridização a que nos referimos. Ao
analisar os textos da antiga Grécia, Bakhtin formula a tese
de que o aedo da epopeia antiga se situava a uma grande
distância temporal dos seus personagens, e, isso se constituía numa das premissas da epopeia. Ora, em Manoel de
Barros o que vemos não é o poeta num tempo diferente do
dos personagens. O tempo e o espaço são simultâneos e
isolados do restante da civilização urbana e tecnologizada.
Talvez pudéssemos dizer que se trata de um passado que
ainda vive no presente, em determinados espaços específicos, como é o caso do pantanal, da vivência em fazendas
e sítios pantaneiros. Nesse sentido a memória tem papel
148
fundamental como fundamental é o apontamento de Souza:
“O poeta ocupado da sua memória e do que consegue perceber na memória do mundo, tem vocação épica. Contudo,
hoje em dia, esta vocação tem nascedouro no isolamento,
na reclusão”. (SOUZA, 2007, p. 38).
Se essa for a nossa concepção de espaço-tempo em
Manoel de Barros, concordaremos que O mundo épico está
construído numa zona de representação longínqua, absoluta, fora da esfera do possível contato com o presente em
devir, que é inacabado e por isso mesmo sujeito à reinterpretação e à reavaliação. (BAKHTIN, 1990, p. 409).
Nesse sentido devemos assinalar uma convergência entre os pensamentos de Bakhtin e Lukács, que consideram
determinantes as forças sócio-ideológicas na constituição
dos gêneros. Talvez o problema de Bakhtin seja o de não
admitir que também o épico possa sofrer adaptações e
que algumas prerrogativas do mundo antigo, tal como as
concebe Lukács, ainda possam existir, como acabamos de
demonstrar na poesia de Manoel de Barros.
Cabe ainda asseverar que esses teóricos ocuparam-se em
definir a questão dos gêneros. Valendo-nos de seus construtos filosóficos, chamamos a atenção para o atual caráter
hibrido dos gêneros. No caso destes poemas estudados não
se pensou no épico como um gênero, mas como um estilo.
Por fim, diante das evidências encontradas no conjunto de poemas que serviu a este recorte, torna-se possível
afirmar que o estilo épico hibridizado (com o lírico) está
presente nos poemas de Manoel de Barros pela presença
de expressões próprias às narrativas sobre o passado (“de
primeiro as coisas… fui amigo do… venho de…”); pela circunscrição de um mundo (mesmo isolado e coexistindo com
todo o aparato tecnológico da contemporaneidade) fechado,
coeso, em que há a sensação de que nada falta, de que
está completo; pela presença de personagens com traços
arquetípicos; pelo modo como os elementos que compõem
o mundo pantaneiro são apresentados na poesia: eles simplesmente existem, são como são porque assim têm de ser.
Essa apresentação do mundo e dos seres em Manoel de
Barros configura uma maior dedicação do poeta ao que vê e
contempla do que com os “domínios interiores”, no dizer de
149
Staiger. E essa direção da vista para fora, juntamente com
o substrato advindo da memória, constitui-se na síntese
da intuição épica de Manoel de Barros. Talvez essa síntese
possa ser traduzida como o desejo de retorno ao tempo da
imanência – transcendência, ao tempo do épico, sem a cisão
da modernidade. Algo possível apenas no mundo fabuloso
de Manoel de Barros, cuja prescrição - como exemplificam
estes versos: “para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber: a) que o esplendor da manhã não se abre com
faca” ... (LI, p. 9) - é o exercício do desaprender.
Referências
BAKHTIN, M. Questões de Literatura e de Estética. A teoria do
romance. 2ª ed. São Paulo: Editora Hucitec, 1990.
BARROS, M. de. Livro das Ignorãças. 10ed. Rio de Janeiro:
Record, 2001.
BENJAMIN, W. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai
Leskov. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre
literatura e história da cultura / Walter Benjamin. Trad. Sergio
Paulo Rouanet. 7ª Ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. P. 197 a 221.
(Obras Escolhidas; V.1)
HEGEL, G. W. F. Curso de estética - O Sistema das artes. Trad.
Álvaro Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
LUKÁCS, G. A teoria do romance - um ensaio histórico-filosófico
sobre as formas da grande épica. Trad. José Marcos Mariani de
Macedo. São Paulo: Duas cidades; Ed.34, 2000.
MOURÃO, G. M. Invenção do mar. São Paulo: Record, 1997.
SOUZA, J. B. de. A poesia épica de Gerardo Melo Mourão. Tese
de doutoramento apresentada à Universidade Federal de Goiás,
em 2007.
STAIGER, E. Conceitos fundamentais da poética. 3ª Ed. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.
Recebido em 30/11/2009
Aceito em 15/12/2009
150
O CÃO E O HOMEM NO ROMANCE Los
perros hambrientos DE CIRO ALEGRIA
Rhina Landos Martínez André1
Patrícia Oliveira Lacerda2
Resumo: Este trabalho analisa a obra Los perros hambrientos
- do escritor peruano Ciro Alegría Bazán, publicada no ano
de 1939, em Santiago do Chile – evidenciando os processos
de inversão de valores e comportamentos que se realizam
entre os protagonistas, homens e cães – zoomorfismo e
antropomorfismo – ocasionados pelas forças antagônicas,
enfrentamentos e jogos de poder. O cão é o protagonista
que o autor personifica para metaforizar a relação com o
homem em seus sentimentos mais nobres e puros como a
sensibilidade, a dor, a alegria, a solidariedade, a fidelidade, o amor, como uma maneira de preencher o vazio que o
ser humano não consegue com seus pares. Na narrativa o
homem se desumaniza e, portanto, se bestializa, enquanto
o cão se humaniza. Lançar um olhar sobre este processo
de zoomorfização e antropomorfização é o objetivo principal
deste trabalho.
Palavras-chave: Literatura, Ciro Alegría, indigenismo/regionalismo.
THE DOG AND THE HUMAN IN Los perros
hambrientos BY PERUVIAN WRITER CIRO
ALEGRÍA BAZÁN
Abstract: This paper analyzes the book “The Hungry Dogs”
by Peruvian writer Ciro Alegría Bazán published in 1939, in
Santiago do Chile, showing the process of inversion of values
and behaviors which takes place between the protagonists,
men and dogs – zoomorphism and anthropomorfism – caused by antagonistic forces, fighting and power games. The
dog is the protagonist which embodies the metaphorical
relation between the man in his noblest and pure sentiments
1 Professora Doutora do Programa de Mestrado em Estudos de Linguagem (MeEL) da
UFMT. [email protected]
2 Mestre em Estudos de Linguagem (MeEL) pela UFMT e Professora da Universidade
Federal de Goiás
POLIFONIA
CUIABÁ
EDUFMT
Nº 20
P. 151-173
2009
issn 0104-687x
such as sensitivity, pain, joy and solidarity, fidelity as way
to fill the void left by the human being. In the narrative,
the man brutalizes himself, while the dog is humanized.
The goal of this work is to take look at the process of the
zoomorphism and anthropomorphism.
Keywords: Literature, Ciro Alegría, indigenism/regionalism.
Introdução
Los perros hambrientos é uma expressiva obra do escritor
peruano contemporâneo Ciro Alegria (1909 – 1967) que retrata parte da história da condição de subalternidade vivida
pela população indígena peruana em meados do século XX,
descrevendo o tradicional e secular relacionamento entre
homens e cães e mostrando de que forma a seca, a fome e as
relações de poder provocam alterações nessa convivência.
Esta obra de Ciro Alegría é a expressão artística mais
representativa da narrativa regionalista e indigenista da
produção latinoamericana. Na opinião da crítica esta obra,
além de ter sido traduzida em dezenove idiomas, é a que
melhor caracteriza o estilo do autor considerado um dos
mais importantes escritores peruanos do século XX.
Trata-se de um romance peculiar, pois suas personagens
principais são cães confundindo-se com humanos, agindo no
enredo como um espelho da figura indígena; eles demonstram
companheirismo e fidelidade aos seus donos, acompanhando-os em todas as dificuldades que enfrentam em razão da
perda de suas terras para os grandes latifundiários e em
virtude da forte seca que assola a região, onde a natureza
parecera se converter em inimiga fazendo parte dos jogos de
poder que enlaçam a tríade homem, cão e natureza.
A fascinação que produz a terra americana nos escritores
ao contato com os diversos elementos – pampa, selva virgem,
rios misteriosos e caudalosos, desertos intermináveis – atrai
profundamente, segundo anota Giuseppe Bellini (1990) na
Historia da Literatura Hispanoamericana. A região americana, intensa em sua espiritualidade, assim como em sua
desmesurada violência, dominada por paixões primitivas
despontará orgulhosa como protagonista principal desta
produção.
152
Paralela a esta narrativa onde a região americana em
toda sua dimensão é o tema central, uma outra corrente
assume uma orientação de protesto sociopolítico em que o
protagonismo surgirá do tema do indígena, que será visto
e teorizado de uma maneira muito mais complexa – indigenismo – dentro de uma série de novas relações surgidas
no seio da realidade latinoamericana. O tema do índio, do
cacique, do ditador, do povo aparecerá dentro dessa corrente
estética e cobrirá um período de uns 50 anos, aproximadamente, ao ponto de se unirem a Região e o indígena como
protagonistas únicos do espaço americano.
Pelo fato de envolver a realidade americana e junto com
esta, a terra, o indígena e seus seculares problemas, arrefecidos pelas relações de poder, o regionalismo e o indigenismo,
como correntes estéticas, estão longe de ser extintas e ser
consideradas ultrapassadas, pois se configuram em estruturas menos tradicionais e com problemas mais modernos.
Seus traços literários surgiram por volta de 1920, e encontram-se presentes ainda na atualidade. Segundo Rama,
Na América Latina o regionalismo veio para ficar, e ainda
é possível percebê-lo nos jovens narradores. Isso pode ser
comprovado se formos capazes de conceber o regionalismo
como uma força criadora que se manifesta ao compasso
do processo cultural que se constrói incessantemente na
região e não como a fórmula estética restrita produzida
nos anos de 1920 e 1930, que naquele momento se deu
de acordo com os níveis culturais dos quais se dispunha.
(RAMA, apud GUARDINI et al. 2001, p. 137)
Essas correntes estéticas mostram a relação do homem
latinoamericano e sua vinculação com a natureza. Configuram-se de diversas formas a convivência humana com
animais de estimação e sua vida corriqueira; explana-se o
comportamento dos bichos e a relação de solidariedade com
seus donos, bem como o enfrentamento do homem com a
mesma natureza para sua própria sobrevivência. Ou seja,
representam-se literariamente o indígena, seu entorno e
seus problemas. Embora a crítica se detenha em enfocar a
produção da região andina, pode-se assegurar que no resto
dos países da América Latina há uma extensa produção e
153
de qualidade inquestionável; bastaria citar aquela surgida
após a Revolução Mexicana que disseminou a temática por
todo o âmbito latinoamericano e não exclusivamente nos
países andinos. Nelas se descreve o marco geográfico rural em que se desenvolve a vida dos grupos e tipos raciais
marginalizados e explorados pelo colonizador – àqueles
que habitam nas regiões mais desoladas, seja na selva, na
serra ou na costa – permitindo uma visão panorâmica dos
aspectos mais diversos do mundo indígena como a miséria e
pobreza contrastando com a riqueza do colonizador estrangeiro. Na narrativa regionalista /indigenista o subalterno
estará sempre presente.
No extenso espaço da região latinoamericana o Peru é
um dos países onde habita uma grande massa indígena
que atualmente encontra-se marginalizada e esquecida.
Essa população se refugia em regiões inóspitas fugindo
da violência urbana, onde se mantêm as velhas tradições
sobrevivendo em contato direto com a natureza. Na obra de
Alegria constatamos que tanto na vida, como na obra, ao
fim de cada dia, semana, mês ou ano a monotonia envolve
o tempo, muitas vezes esperando a seca terminar ou que a
chuva, mesmo que seja em pequenas migalhas, permita a
multiplicação da semente. Dessa forma, tanto os homens
quanto os animais sofrem e seguem construindo sua história ou sujeitando-se a ela.
Nessa vertente a obra Los perros hambrientos suscita
admiração e perplexidade por causa do aspecto antropomórfico que os cães apresentam ao longo da narrativa,
em contraste à desumanização imputada ao homem pelo
comportamento zoomórfico.
Tentar entender como e por que ocorre o processo de
inversão das qualidades próprias dos homens e dos animais
e analisar a íntima relação entre homem, animal e natureza,
são os desafios deste trabalho.
Zoomorfização do homem e antropomorfização
do cão
A origem do termo antropomorfismo vem de duas palavras gregas: anthropos (homem) e morphe (forma). Com
154
o passar do tempo, o termo foi ampliado por semelhança
também com o comportamento do homem, não só na forma,
mas na “tendência para interpretar todo o tipo de espécie
e de realidade em termos de comportamento humano ou
por semelhança ou analogia com esse comportamento”,
segundo Abbagnano (1982, p. 64). Da mesma maneira, a
palavra zoomorfismo significa “animal – forma”, porém, é
um fenômeno que pode ser abordado sob diversos olhares:
tendência de ver características animais nos humanos; tomar forma de animais – como a persistência na iconografia
cristã e nos ícones de povos antigos–; ou representação
alegórica de algum rito de sagração real da pré-história e,
ainda, como animalização do homem no sentido de que o
ser humano possa ser colocado em condições ínfimas de
subsistência, embrutecendo-o, bestializando-o, e assim, ser
equiparado ao animal.
Na cultura popular, o cão adquire significados como
“cão – demônio”, ou representa a generosidade do “melhor
amigo do homem”. No imaginário coletivo, o cão representa
o sincretismo entre o mal e o bem. Desde essa perspectiva,
na obra Los perros hambrientos, o autor metaforiza o comportamento canino nos sentimentos mais nobres e puros
como a solidariedade na dor e na felicidade, até mesmo na
maneira de nos comportarmos e lidarmos com a morte.
Keith Thomas, em seu livro O homem e o mundo natural
(1996), registra que, séculos atrás, as relações entre animais
domésticos e o homem eram mais fortes e aqueles mais
próximos aos donos do que hoje. Os seres humanos viviam
de tal forma familiarizados com os animais que os bichos
praticamente, “faziam parte da família” e, “vivendo em tal
proximidade com os homens, esses animais eram muitas
vezes considerados como indivíduos”, (Thomas, 1996, p.
114), pois da mesma maneira, os cães se familiarizavam aos
homens ajudando-os nas lavouras e no pastoreio, embora
os rebanhos fossem menores, o que facilitava o próprio
reconhecimento de cada animal pelo dono.
Esse binômio homem–animal responde às tradições culturais antigas, tal como registra o autor, e explica que isto é
uma forma de expressar a simbiose homem-natureza. Thomas também registra que “assim como os homens tratavam
155
com carinho os animais de estimação por serem projeções
deles mesmos, também preservavam as árvores domésticas,
por representarem indivíduos, famílias...”, (THOMAS 1996,
p. 266), numa clara exposição da aproximação e do respeito
que o homem tem pela natureza.
Um fato não menos interessante é o de que o cão é um
animal que foi trazido a América pelos europeus durante a
colonização, não sendo, portanto, americano e nem pertencente à cultura indígena. A escolha específica do autor pelo
cão pode, de certa maneira, ser explicada pela simbologia
que esse animal carrega consigo nas diversas civilizações,
ao que Chevalier (1992), tece o seguinte comentário:
Não há, sem dúvida, mitologia alguma que não tenha
associado o cão à morte, aos infernos, ao mundo subterrâneo, aos impérios invisíveis regidos pelas divindades
ctonianas ou selênicas. [...] A primeira função mítica do
cão, universalmente atestada, é a de guia do homem
na noite da morte, após ter sido seu companheiro no
dia da vida (CHEVALIER: 1992, 176) (Grifo nosso).
Mais ainda, segundo Cirlot, o cão é emblema de fidelidade:
Sentido com o qual aparece muito freqüentemente sob
os pés de figuras de damas esculpidas nos sepulcros
medievais [...] Também tem no simbolismo cristão,
outra atribuição derivada do serviço do cão pastor
– e é a de guardião e guia do rebanho - sendo por isso
alegoria às vezes do sacerdote. Mais profundamente, e
não obstante em relação com as passagens anteriores
como abutre, o cão é acompanhante do morto em sua
“viagem noturna pelo mar”, associado aos símbolos
maternos e de sentido similar (CIRLOT, 1984, p. 39)
(Grifo nosso).
No Dicionário Oxford de Literatura Clássica, Harvey
(1987) afirma que os cães foram “... criados pelos gregos
para a caça, para guardar casas e rebanhos e para fazerlhes companhia”, e daí a relação de amizade e solidariedade
entre o homem e este animal demonstrada nas inúmeras
obras da antiguidade:
156
Os cães estão presentes na mitologia e folclore dos primeiros povos - Cavall, o «cão do rei Artur», e Hodain, da
história de Tristão e Isolda. Maera foi outro cão da mitologia grega, que, através do seu uivo prolongado, conduziu
Erigone ao lugar em que o seu pai, Icarius, tinha sido
assassinado. Outra história da fidelidade canina é a do
cão dos Seven Sleepers, que acompanhou os seus donos
ao local em que estavam aprisionados, mantendo-se de
guarda, a seu lado, durante 300 anos, sem se mexer,
comer, beber ou dormir (HARVEY, 1987)3
No folclore, os cães têm sido considerados como detentores de conhecimentos misteriosos relacionados a assuntos
espirituais. Foram também representados como monstros
terríveis, como o Cérbero de várias cabeças que guardava
a entrada do Hades. Enfim, muitas obras e autores trazem
como personagens outros animais, seja para metaforizar as
forças de poder, a violência, a sensibilidade humana ou o
comportamento bruto dos homens, ao ponto de adquirirem
comportamentos primários, fazendo aflorar seus instintos
selvagens, – mesmo porque, às vezes, a própria natureza
se transforma em personagem opressora.
Na obra alegriana o narrador compara as ações e o comportamento dos cães a dos homens, humanizando uns e
animalizando outros, colocando-os sob um mesmo prisma,
encontrando semelhanças entre eles e igualando-os, como
se nenhum fosse melhor que o outro. Os animais clamam
pela dignidade do homem e os homens clamam por sua
própria dignidade - “El animal ama quien le da de comer.
Y sin duda, pasa lo mismo con ese animal superior que es
el homem, aunque este acepte la ración en forma de equivalencias menos ostensibles. Por isso, o velho amor pelos
donos”, anota o autor (Alegría, 1994, p.117).
Se buscarmos no dicionário a conceituação do vocábulo
animalizar, encontraremos seu significado como “tornar
bruto, embrutecer-se, bestializar”, colocado no sentido
negativo, fazendo a comparação ao animal, numa redução
da racionalidade pelo instinto. Em contrapartida, ao ob3 Enciclopédia de Ciências da Natureza, disponível em www.universal.pt/tamaticos/
dicionarios, em 1º/10/2006, às 9:45.
157
servarmos o verbete humanizar seu significado tem a ver
com “tornar humano, humanar, tornar benévolo, tratável,
amansar (animais), fazer adquirir hábitos sociais polidos,
civilizar” (FERREIRA, 2000, p.323). Observa-se, então,
uma exposição clara da inversão de papéis entre homens e
animais: a presença do antropomorfismo e do zoomorfismo
em uma inversão de valores ou papéis.
O autor consegue humanizar de tal forma o desempenho
dos animais fazendo com que transcendam sua condição
animalesca, chegando mesmo a se igualar ou transpor a
fronteira que separa homens e cães. O processo de mudança
de ambos vai modificando os comportamentos até aflorar
nos homens seus instintos mais selvagens, remetendo-nos
à Teoria do Determinismo de Hypolite Taine e o Evolucionismo de Darwin.
No caso específico de Los perros hambrientos, os cães,
como personagens, mesmo sendo animais, expressam
verossimilhança e comunicam a “mais lídima verdade
existencial”, segundo Cândido (2002), se constituindo em
peça fundamental dentro da narrativa, pois não pensamos
enredo dissociado de personagens: o enredo existe através
das personagens; as personagens vivem no enredo. Enredo
e personagem exprimem, ligados, os intuitos do romance,
a visão da vida que decorre dele, os significados e valores
que o animam (CÂNDIDO, 2002, p. 53-54).
A atuação da personagem, seja humana ou animal, é
que funda a verossimilhança do romance e é exatamente
nesse ponto que as palavras deixam de constituir as personagens e o ambiente, e são essas mesmas personagens que
“absorvem as palavras do texto e passam a constituí-las,
tornando-se a fonte delas – exatamente como ocorre na realidade”. Assim sendo, “a personagem deve dar a impressão
de que vive, de que é como um ser vivo” (Cândido, 2002,
p. 64), tanto em sua materialização em palavras quanto em
seu desempenho enquanto protagonista e/ou antagonista.
Sobre a aptidão do escritor de criar e recriar personagens
da vida real na ficção, o autor expõe:
158
.... os grandes autores, levando a ficção ficticiamente às
suas últimas conseqüências, refazem o mistério do ser
humano, através da apresentação de aspectos que produzem certa opalização e iridescência, e reconstituem,
em certa medida, a opacidade da pessoa real. É precisamente o modo pelo qual o autor dirige o nosso “olhar”,
através de aspectos selecionados de certas situações, da
aparência física e do comportamento – sintomáticos de
certos estados ou processos psíquicos – ou diretamente
através de aspectos da intimidade das personagens –
tudo isso de tal modo que também as zonas indeterminadas começam a “funcionar” – é precisamente através
de todos esses e outros recursos que o autor torna a
personagem até certo ponto de novo inesgotável e insondável (Cândido, 2002, p. 35-36).
Na obra de Alegría os cães protagonizam a história. São
eles que disputam a comida, a relação de afeto, a relação
social e o poder, parecendo que também disputam o espaço
de representação com o homem. O ambiente e o tempo que
metaforiza a realidade do indígena é a natureza indômita.
Um fato instigante é a forma que o autor usa para enunciar
traços das relações de poder da sociedade peruana: a dominação dos latifundiários e o abuso de poder mediante a
aproximação tensa do constante embate da vida e da morte
causado pelas relações de antagonismo que envolvem o
homem e o homem; o homem e a natureza; o homem, o cão
e a natureza deixando à tona a oscilação dessas relações
provocadas pelas mudanças do clima.
Segundo Antônio Candido, uma das mais importantes
funções da ficção é proporcionar um conhecimento mais
completo e mais coerente do que o conhecimento fragmentário que temos dos seres. Esse mesmo recurso estético se
evidencia na configuração das personagens na obra Los perros hambrientos. O autor imprime-lhe tal verossimilhança ao
cão com o humano, enquanto personagem, que fica difícil
encontrar a fronteira entre um e outro pela transformação
do comportamento e sua sensibilidade.
159
A metáfora da zoomorfização e antropomorfização na obra Los perros hambrientos
Ciro Alegría, em seu livro Los perros hambrientos relatanos a vida rural do contexto peruano do primeiro triênio do
século XX a partir da história da família de Simón Robles,
índio/mestiço, contador de histórias e peão, que trabalhava,
vivia e criava ovelhas na fazenda Páucar, do fazendeiro Don
Cipriano Ramírez.
Simón e sua família – a esposa Juana e os filhos Vicenta, Timóteo e Antuca - viviam de acordo com os limites
que lhes eram impostos. Seus cães eram conhecidos por
toda a região por suas habilidades de cuidar, conduzir e
proteger o rebanho de ovelhas. O autor apresenta os cães
dividindo-os hierarquicamente, desde os primeiros da linhagem, no caso, Wanka e Zambo, pois deles descenderam os
demais que foram se misturando, miscigenando-se, como
o homem indígena daquelas cordilheiras, segundo conta
Alegria (ALEGRÍA, 1994, p. 18). O cão Zambo foi chamado
assim porque tinha os pelos escuros e a cadela Wanka, a
matriarca, recebeu esse nome em homenagem a uma tribo
inca, aludindo à pureza e à qualidade da raça. Ambos foram
criados e amamentados pelas ovelhas.
Os filhotes de Wanka e Zambo eram vendidos ou trocados por ovelhas e o rebanho foi crescendo de tal modo que
Simón ficou com os cães Pellejo e Güeso para ajudar com a
lida do rebanho. Um dos cães – Mañu - foi dado à Martina,
filha mais velha de Simón casada com Mateo, também de
origem indígena. Esse cão passou de simples mascote a chefe
de família quando Mateo foi obrigado a sair para cumprir o
serviço militar: “en casa donde no hay hombre el perro guarda”, assegura o autor (p. 34). O cachorro, inclusive, tinha que
proteger e cuidar dos membros restantes, como se entendesse
as conseqüências da ausência de seu dono e assumisse a
responsabilidade de zelar pela casa e pela família:
Mañu tomó, por eso una especial importancia. Él mismo
se daba cuenta, aunque en forma imprecisa, de que ya
no desempeñaba el mismo papel de antes. No era solamente el vigilante de la noche. El husmeador de sombras.
[...] sintiéndose guardador de la casa y sus moradores
160
cobró un gran orgullo. Gruñía y mostraba los afilados
colmillos a la menor ocasión y tenía siempre la mirada
y los oídos alertas. Erguido sobre una loma o un pedró,
era un incansable vigía de la zona. Pero [...] extrañaba
también al Mateo [...] (Alegría, 1994, p. 34).
Güeso foi raptado pelos bandoleiros Julián e Blás Celedonio, ladrões de gado, quando estava pastoreando com
Antuca e Vicenta. O narrador descreve, com um estilo evidentemente dramático, a emoção do impacto da intervenção impetuosa destes personagens. Duas silhuetas negras
surgiram desenrolando as carabinas e, com uma rápida
destreza enroscaram violentamente a corda no pescoço do
animal. Como duas bestas exacerbadas os bandoleiros deram chicotadas ao animal para que os acompanhasse.
Güeso, rendido, entregado a una dolorosa y sangrante
renuncia, con la espiración corta, el cuerpo ardoroso y la
cabeza en llamas, comenzó a caminar. Un hilo de sangre tibia le resbalaba por una pierna. (Alegría, 1978, p. 49)
O autor também expõe a dor e a resistência do cão ao
ser levado a casa pelos bandidos, reagindo como um ser
humano à violência do seqüestro:
Güeso comió acuciado por el hambre, pero con el pecho lleno todavía de odio. Muy en sus adentros, había
decidido odiar. Más bien dicho, el odio le había llenado
el pecho, cárdeno y cálido, como la sangre de su herida
(Alegría, 1978, p. 51).
O sentimento de nostalgia que acolhe o ser humano frente a distancia que o separa de sua família e mais, quando
a separação tem sido forçada, é o mesmo sentimento de
dor e nostalgia que aflora aos borbotões no animal violentamente seqüestrado, ao se lembrar de seus antigos donos.
A presença do narrador se manifesta na emoção e na ironia
velada para contrapor as situações:
Güeso, solitario junto al horcón, reclinó la cabeza entre
las patas, presa de una gran congoja al recordar el redil
y toda su anterior existencia. Wanka y los demás compañeros estarían durmiendo sobre la paja tibia, entre los
vellones suaves, o quizá ladrando a las bestias dañinas.
161
A su lado sonaría el lento rumiar de las ovejas y, al día
siguiente, la vida tornaría a amanecer como siempre,
plácida y luminosa. Pero para él, ya nada de eso habría
tal vez. (ALEGRÍA, 1994, p. 500)
O sentimento de afeto pela família de Robles faz surgir em Güeso o desejo de vingança ao descobrir que pode
romper a corda que o ata ao tronco e fugir sem ser visto,
aproveitando a escuridão da noite e o sono dos bandoleiros.
Estava seguro de que não se perderia ao retomar o caminho
de volta. Continuando com sua narrativa dramatizada, o
autor sublinha na exasperação mediante o uso de discurso indireto e direto para aludir ao desespero que acossa
ao animal. Com uma linguagem coloquial cheia de tensão
e suspense, a narrativa descreve o momento de fúria que
arrebata o cachorro ao roer o laço de coro que o amarra:
Sus colmillos se introducían eficazmente. […] Cedió una
hebra al fin, y lleno de esperanza continuó royendo,
royendo, con el cuerpo azotado por el viento y los ojos
ahitos de sombra […] Roía silenciosamente, pero no
tanto como para no producir un pequeño rumor. Uno de
los hombres se revolvió en su lecho. ¿Y si despertara y
descubriera? Güeso siguió royendo... Otra de las hebras
cedió. Quedaba tan solo una… cuando he allí que, de
súbito uno de los hombres gritó: -Ey, quel perro masca
el lazo… (ALEGRÍA, 1994, p. 51)
Grande conhecedor do idioma e para uma revitalização
da fala popular misturando discursos da fala camponesa, de
coloquialismos e a voz mesma do narrador, o autor põe em
destaque o distanciamento entre o narrador e os distintos
personagens, para fazer fluir a história potencializando a
verossimilhança. Desse modo sabemos que Güeso perdeu
as esperanças de se reencontrar com seus antigos donos,
e com o passar do tempo, acostumou-se com a nova vida,
de cão pastor converteu-se em cão bandoleiro – colaborava com os roubos de gado, auxiliava no tocar do rebanho
a outras regiões para que pudessem ser vendidos. Pronto
se acostumou aos tiroteios: “Escuchó innumerables tiros
y vio caer a muchos hombres para no levantarse más” (P.
61). Participava de fugas e embates com a polícia. Assim,
conheceu outros bandidos e a Elisa, a bela chinesinha
162
do povoado de Sarún, namorada de Julián, estreitando a
amizade com seus atuais donos, ao ponto de salvar a vida
de Julián várias vezes do alferes, nas lutas e perseguições
travadas entre policiais e bandidos.
A ênfase do autor em descrever a psicologia peculiar dos
cachorros é freqüente no decorrer da narrativa. Como, por
exemplo, quando brotou em Güeso um sentimento parecido
ao que absorve o homem em momentos de crise de consciência, no instante em que nas andanças que fazia com
Blás, viu o antigo dono. Chegou a ‘pensar’ na volta, porém,
deixa passar a oportunidade de regressar ao seu antigo lar,
por medo de ser rejeitado:
Cierta vez, Güeso avistó su manada a lo lejos. Ahí estaba
Antuca, los perros, las ovejas, todo lo que en otro tiempo constituyó su vida y luego, durante muchas horas,
le causara una inmensa nostalgia. Detúvose indeciso,
mirando el lento trajín del rebaño. ¿Iría hacia él? ¿Seguiría al Julián?
[...] Y lentamente, entregándose al incitante reclamo de
la violencia, tomó el rumbo del Julián. De este modo
decidió su destino. (ALEGRIA, 1994, p. 57-58)
O autor nos distancia um pouco do foco da situação
para lembrar a própria história de Julián, contada por ele
mesmo e suas motivações de ter escolhido ‘os caminhos
proibidos’ e ser perseguido da justiça. Ele, Julián, e todos
os seus atos de brutalidade, com a vida sempre correndo
risco de morte, são conseqüência das circunstâncias que
como cholo mestizo lhe aconteceram com seu antigo patrão.
Aquele exigia muito trabalho e da terra pouco ou nada brotava. Um dia o patrão lhe lançou a frase: “Cholo, ladrón” e
ele, o Julián, “sacó entonces el puñal y lo clavó” (p. 58). A
partir desse momento seu embrutecimento se manifesta de
maneira violenta. Ele não era ladrão, todavia. “Algunas veces
se batió a cuchillo y corrió sangre ajena por su brazo, pero
ladrón no era” (p. 58). Por esse fato estava sendo procurado
pela justiça e é por isso que afloram sempre seus instintos
primários e se zoomorfiza nas contendas com a policia ou
quando rouba o gado para viver.
163
Alegría alude a este tipo de situações que são parte do cotidiano da vida na floresta, ou na selva peruana. Os homens
se bestializam para conseguir alguma comida quando a seca
desaba sobre os campos, ou quando os grandes latifundiários mandam perseguir os que roubam suas propriedades
e a polícia usa da força bruta. Por exemplo, um ataque de
vários dias por parte da polícia para encontrar Blas e Julián, os bandoleiros citados, que ficaram presos em uma
gruta sem mantimento ou água. O alferes Chumpi, líder da
diligência, manda envenenar os mamões que maduravam
nos pés – único alimento próximo ao local onde os “fora da
lei” estavam escondidos - para matar todo o bando de uma
só vez. Güeso morre em meio ao tiroteio entrando na frente
da bala destinada a Julián, num ato heróico de sacrifício e
amor pelo seu dono e amigo.
Alegria registra este fato de tal forma que parece aludir
a uma ferida feita à própria natureza, ao ser violentada a
simbiose secular entre ela e os animais. A maneira de pensamentos verbalizados se entrecruza uma série de reflexões
sobre as conseqüências deste fato para o homem e o resto
da natureza. Como se a criatura reagisse à dor, a morte
desse cão marca o período de uma grande seca, onde a comida começa a escassear e as relações afetivas e familiares
entre seres humanos e animais também se deterioram. O
autor, habilmente, associa metaforicamente estes fatos
para destacar a brutalidade e a bestialidade dos homens da
justiça que velam pela propriedade privada, em contraste
à antropomorfização dos cães em sua solidariedade ao seu
dono e protetor. É o dom que possui o escritor peruano,
usando as palavras de Rama, porque de fato “ele é obtido
originalmente pela inexplicável partilha de tantos traços
psíquicos que compõem a admirável multiplicidade do ser
humano” (RAMA apud AGUIAR el al. 2001, P. 109).
Não chovia, e tanto os homens quanto os animais não
tinham o suficiente para matar a fome, sendo cada dia, um
tempo de mais castigos e fadigas pela seca implacável, imposta pela natureza, o que propiciou a invasão dos cães nos
milharais de uma fazenda privada. Os peões, em desespero
pelas mortes de parentes, amigos e animais ocasionadas
pela falta de comida, pediram ajuda a Don Cipriano, o dono
164
da fazenda em que moravam outros mestiços, que a negou,
mesmo tendo grande fartura.
A fome era tamanha que os mestiços pediram ajuda à
Virgem do Carmo para ver se do céu chegava o pão salvador.
É o desejo de encontrar uma resposta divina aos momentos
de dificuldade. Porém, a ajuda divina não se materializa.
Sozinha e em desespero por ver os animais e seus filhos
definhando sem ter o que comer, Martina saiu em busca
de alimento e deixou seu filho Damián aos cuidados de
Mañu. O menino morreu de fome e o cão ficou ao seu lado,
protegendo-o e impedindo que os urubus devorassem o
corpo inerte da criança, até que apareceu um peão da
fazenda e o levou onde estava seu avô Simón para ser enterrado como um ser que merece um pouco de dignidade,
mesmo que fosse tardia. O narrador alude ao desespero do
cachorro marcando os movimentos da cena alternando com
a focalização da morte pela fome.
O sofrimento era tão forte que as pessoas e os cachorros
perderam a fidelidade para com seus “amos”, os cães por
causa da fome e os homens pela perda do trabalho, da dignidade e da honra. Wanka é acometida pela desesperação ao
ponto de matar uma ovelha para saciar sua fome, pelo que
é expulsa de casa a pauladas. Os cães Mañu e o índio Mashe morreram também pela mesma situação, infelizmente
reforçando as perdas sofridas ao longo da narrativa, tanto
de homens quanto de animais, ocasionadas pela fome. Em
um ato de violência e de egoísmo o fazendeiro, Don Cipriano,
também ordenou que os peões envenenassem o milharal
para que os cães e os homens não o devorassem, evitando
um prejuízo maior, porém, o cão Mulato morreu ao ingerir
as espigas envenenadas, e seu descendente Pellejo, também
morre contaminado por ter comido de sua carne morta.
Don Cipriano, acuado pelos pedidos de ajuda e de alimentos por parte dos mestiços, matou três deles a bala
como se fossem animais famintos,
[...] El indio Ambrosio Tucto, que iba delante con el machete en alto, dispuesto a partir la cabeza del que se le
opusiera o si la puerta del cerrado no abría.
Mas, del extremo de un cuarto sobresaliente que cortaba
el viento, irrumpió una descarga continua. El indio Ambro165
sio Tucto, que estaba enfrente, con el machete levantado,
dispuesto a partir la cabeza de quien se opusiese, o de
quebrar la puerta si no se abría, cayó de bruces. La sangre
brotó de las piernas de otros y dos más rodaron por el suelo
también. Los disparos seguían, por lo que los campesinos
comprendieron que eran muchos los que hacían fuego [...]
huyeron en todas direcciones (Alegría, 1994, p. 115)
Mais vozes foram silenciadas e para sempre, servindo
de exemplo. Deste modo fica claro como se bestializa e
embrutece o grande fazendeiro pelo temor de perder suas
propriedades.
As autoridades representadas pelo alferes, o subprefeito
e os gendarmes utilizam todo tipo de fórmulas de violência
para acabar com os roubos, invasão de fazendas, pedidos
de clemência pela população faminta, compra clandestina
de gado, segundo as queixas dos fazendeiros, e a ordem
direta é matar sem piedade. Há que se perseguir os ladrões
com astúcia e artimanhas, envenenar os milharais, colocar
armadilhas, matar os cachorros que se interpõem no caminho, até ‘limpar’ as fazendas dos inimigos invasores. Quer
dizer, usar as armas e os cavalos com frieza.
Quando mataram os irmãos Celedonios, tanto com balas
quanto com mamões envenenados e o alferes observou sua
inusitada tarefa exclamou: “Y después dirán que el alférez
Chumpi no tiene cabeza… Jajaja…,ja…ja… Esto es lo que
se llama cazar pumas…ja…ja…”(p. 92). Ao descobrir que
Güeso ainda se movia, “un balazo le rompió la cabeza y
apagó la lumbre de unos ojos que aun miraban llenos de
tristeza el cuerpo cimbrado de Julián…” (p. 92).
Depois da catástrofe de perdas humanas, animais e
materiais, as chuvas chegaram e, juntamente, a felicidade
regressou para os animais e o povo inteiro. Vale ressaltar
que a prosperidade, a alegria, a comida abundante, a fraternidade entre os humanos e cães regressaram com a chuva.
A vida, então, seguiu seu curso, como se tudo estivesse
em perfeita sintonia e toda dor e miséria fossem parte do
cotidiano. As pessoas ora esperam a fartura, ora esperam
a miséria, ora esperam a morte e o círculo vicioso de fome
e morte se seculariza para não acabar mais.
166
Palavras finais
O espaço em que se desenvolve toda a trama da obra
em tela é o campo, e nele habitam os protagonistas numa
simbiose de natureza-cão-homem, onde a natureza exerce
um papel fundamental para a continuidade da vida ou para
a redução da espécie. O cenário determina as leis gerais
da seleção natural que, apesar de aniquilar, mostra seu
lado contraditório, entrelaçando as espécies em interações
de dependência cada vez mais densas. É como se homem
e natureza se fundissem em seus anseios mais profundos,
nos desejos e sentimentos mais secretos, de tal forma que
não conseguimos distinguir quem faz parte da paisagem
natural ou humanizada, pois os elementos que compõem
a cena formam um único quadro como se homem e cão
pertencessem um ao outro e jamais fossem capazes de se
separar.
Alegría coloca a natureza em primeiro plano, deixando
os personagens em segundo plano, sem perder sua importância, ao mostrar que a natureza também responde como
um organismo vivo – antropomorfizada – à violência a que
é submetida ao arrancar de suas entranhas a essência
da terra. Para se defender, provoca sofrimentos e perdas
ao homem e aos animais que estão além da compreensão
humana, mas que é uma reação natural para indicar que
todos estão sendo vilipendiados. A seca, que finda a germinação dos alimentos, impede o cultivo das plantas e leva
ao despertar da violência instintiva no homem, talvez seja
a vingança da natureza para mostrar que a ‘inteligência’ do
homem, com suas modernas formas de organização social
não é capaz de enfrentar as forças naturais. A natureza
devolve ao homem o mal que ele lhe faz.
A implacável seca se faz opressora sobre as personagens,
vez que enfraquece física e mentalmente tanto homens quanto
animais. Há que se lembrar da morte de uma ovelha causada
pela cadela Wanka, a matriarca, que num gesto desesperado
contra a morte iminente devido à fome, a ataca, mata e faz
um banquete, juntamente com seus pares. Os restos que deveriam servir de alimento aos cães, foram os que os animais
compartilharam e saciaram a fome da família de Jacinta:
167
“Allí – rojos y blancos- estaban los restos de una oveja:
lanas, gualdrapas y huesos revueltos. Después de vacilar un poco, los coloco en el rebozo y luego se echó el
atado a las espaldas […] Y pusieron las presas al fuego.
Arrancaron las piltrafas de carne y royeron los huesos.
(ALEGRÍA, 1994, p.121).
A antropomorfização dos cães se evidencia de duas maneiras: por um lado, a seleção natural se inverte: o homem
dotado de inteligência é incapaz de vencer a natureza e o
animal para prover seu sustento. A maneira de castigo, por
vilipendiar a natureza, alimenta-se dos restos que o ‘melhor
amigo’ deprecia.
Por outro lado, há que se observar outro fato que o autor
nos coloca para entender a relação de afeto do animal para
com seu dono: ao se aproximar da casa, a atitude dos cães,
mesmo com uma mistura de arrependimento e temor ao
castigo, é mais forte o desejo de entrar e ocupar seu lugar
de guardião do lugar. Eles sabiam que tinham sido criados
para cuidar, embora tenham conseguido a subsistência da
família que se alimentou com os ossos, o que revela, mais
uma vez, a troca de valores e papéis das personagens.
Wanka acertou no palpite, pois, quando chega a casa
com os outros cachorros que participaram do ocorrido,
Simón, seu dono, tomou as medidas necessárias para
expulsá-la, como se o exemplo da punição servisse para
os demais:
Llegaban con los hocicos rojos y los vientres llenos, colgantes, ahitos. Tomó un grueso bordón y se les fue encima. Gritaron ellos huyendo ante los garrotazos. Hombres
y mujeres los corrían hasta muy lejos [...] Cuando cayó
la noche, los perros trataron una vez más de volver, de
ganar nuevamente al hombre […] y no porque pensaran
en seguir comiéndose las ovejas. Pero velaba al hombre…
(ALEGRÍA, 1994, p. 119-120).
Outro importante fato, embora já nos tenhamos remetido, vale a pena retomar, é quando Martina – a mãe de
Damián que saiu para procurar comida – o deixa solitário
em casa, e o cão Mañu , faz justamente o inverso, mesmo
168
debilitado pela fraqueza ocasionada pela fome, quando o
menino morre também de fome, protege o corpinho inerte
dos vorazes cóndores, assumindo o papel de pai e mãe. O
autor mistura atributos humanos e não humanos num contexto comum em que homem e animal se intercomunicam
e interagem de forma satisfatória. Para o mundo moderno
“o predomínio do homem sobre o mundo da natureza seria
a meta inconteste do esforço humano” (THOMAS, 1996,
p. 289), no entanto, para o indígena, a fraterna relação
com a terra e o respeito às coisas naturais continuariam
primordiais.
La siembra el cultivo, la cosecha renuevan para los
campesinos, cada año, la satisfacción de vivir. Son
la razón de su existencia. Y a fuer de hombres rudos
y sencillos, las huellas de sus pasos no se producen
de otro modo que alineándose en surcos innumerables. ¿Qué más? Eso es todo. La vida consigue ser
buena si es fecunda. (ALEGRÍA: 1994, p. 94).
Enfim, na vida há ganhos e perdas, e metaforicamente, na obra, os cães se igualam ao homem até na hora da
morte: Mashe, o índio, e Mañu o cachorro, morrem de fome
e abandonados; Mashe sem direito a enterro e Mañu, sem
rancor, mas com um questionamento nos olhos: “No he
tratado siempre de servir?” (p.137) e Antuca permaneceu
com ele em retribuição, da mesma forma que o cão havia
feito com seu primo Damián. Os demais cães: Mulato morre de fome e Pellejo devora seus restos; Güeso finaliza sua
vida, heroicamente, num tiroteio entre a polícia e os bandoleiros; Güenamigo, cão de Blás, morre no mesmo conflito
de maneira menos nobre; Mauser explode com uma mina
de dinamite; Tinto é atacado por um cão da casa grande;
Trueno é morto por um puma da cordilheira; Manólia por
sua esperteza, ensinou aos amigos o ataque ao milharal
para se alimentarem com tenras espigas e por causa disso
recebe um tiro do capataz; Rayo tenta entrar na plantação
e é atingido por uma armadilha de pau e pedra colocada
na porteira da entrada da roça, com a finalidade de coibir
a passagem dos cães para o milharal; os outros se perdem
na narrativa, como os homens no anonimato da vida:
169
Hombres y animales, en medio de la tristeza gris de los
campos, vagaban apocados y cansinos. Parecían más
enjutos, que los árboles, más miserables que las yerbas
retorcidas, más pequeños que los guijarros calcinados.
Solo sus ojos, frente a la neta negación del cielo esplendoroso, mostraban un dolor en el que latía una dramática
grandeza. Tremaba en ellos la agonía. Eran los ojos de la
vida que no quería morir (ALEGRÍA, 1994 p.110-111).
São essas manifestações de violência, em suas mais
diversas formas, sofridas pelo homem do campo, que levam o autor peruano a mostrar literariamente como este
se transforma, - se zoomorfiza - para fazer brotar seus
instintos selvagens. A zoomorfização do capataz, dos policiais, dos ladrões, enfim, dos representantes do governo,
revela que o povo indígena peruano não tem saída. Está
assediado pela natureza, pelos cães, pelos fazendeiros: é a
metonímia da miséria social, a marginalização, o infortúnio,
a desventura.
O indígena foi reduzido à condição de animal (zoomorfizado) por sua mísera forma de vida, por suas atitudes
humildes e pela falta de perspectiva quanto ao futuro.
Em contraponto, os cães agem e se portam como homens,
ocupando o lugar de membros da família, tal qual a cadela
Baleia em Vidas secas de Graciliano Ramos.
Finalmente podemos dizer que nesta obra singular Ciro
Alegría transforma a relação sensível entre dono e cão em
algo mais que isso, alude à harmonia simbiótica, ancestral,
do animal com o homem indígena em que eles se confundem por sua solidariedade e afeto. A natureza é a mãe
que os alimenta, e eles se irmanam quando a natureza se
enfurece pelos danos ocasionados em suas entranhas. O
autor metaforiza o comportamento dos homens em cães e
os cães em homens para aludir metonimicamente à miséria, à exploração, à discriminação dos abandonados nas
terras incultiváveis, onde isolados do mundo só encontram
proteção entre os seus pares, os animais, confundidos
entre eles. Poderia indicar que homem se animaliza ao estabelecer “classes sociais”, conforme as posses: “ - Patrón,
¿cómo que nuay nada? Sus mulas y caballos finos están
170
comiendo cebada. ¿no vale más quiun animal um cristiano?
[...] peyor que perros tamos...Nosotros si que semos perros
hambrientos... (Alegría, 1994, p. 147).
Como os humanos, os cães também se transformam em
malvados diante da fome e chegam a se odiar, a se atacar
e a se devorar, e isto é significativo literariamente, porque
Alegria configura uma casta de animais para aludir à bestialização do homem poderoso. No penúltimo capítulo o autor
descreve a atitude do fazendeiro ao pedido dos famintos:
Recojan los muertos y métanlos en ese cuarto. Habrá que
enterrarlos en la noche. Y limpien esa sangre con trapos
y agua... Y ahora, mis amigos – terminó dirigiéndose a
su aguerrida gente – vamos nosotros a bebernos una
copita… (ALEGRÍA, 1994, p.151)
As palavras faltam para aludir à insensibilidade do dono
da terra, o animal mata para saciar sua fome e a natureza
reage a esta agressão.
Hombres y animales, en medio de la de a tristeza gris de
los campos vagaban apocados y cansinos. Parecían más
enjutos que los árboles, más miserables que las yerbas
retorcidas, más pequeños que los guijarros calcinados.
Solo sus ojos [...] mostraban un dolor en que latía una
dramática grandeza [...]. Eran los ojos de la vida que no
quería morir (Alegría, 1994, p.111).
Antropomorfização e zoomorfização são estados que
remetem ao homem e ao cão. Os cães sofrem, no decorrer
da narrativa, uma transformação especial, ao se imprimir
neles um “sexto sentido” e este é humano. No homem, ao
contrário, ao sofrer um processo de animalização, aflora um
“sexto sentido” não de sobrevivência, se não de destruição,
violentando tudo ao seu redor, incluindo os outros homens.
É por isto que Osso, tem o pensamento conclusivo de que
os homens, por vezes, são mais brutos e perversos que os
próprios animais ditos irracionais “descubrió que el hombre
era animal terco y duro” (Alegría, 1994, p. 48).
171
Referências
ABBAGNANO, Nicola. Diccionario de Filosofia. São Paulo:
Edusp, 1982.
AGUIAR, GUARDINI, VASCONCELOS, F, S. T. (Orgs). Angel Rama.
Literatura e cultura na América Latina. São Paulo: Edusp,
2001.
ALEGRÍA, Ciro. Los perros hambrientos. Madrid: Alianza
editorial, 1994.
________ B. Ciro. Os cães famintos. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1978.
BELLII, Giuseppe. Historia de la Literatura Hispanoamericana.
Madrid: Editorial Castalia, 1986.
CANDIDO, Antonio et al. A personagem de ficção. 11 ed. São
Paulo: Perspectiva, 2002.
_________. Literatura e sociedade. 9 ed. rev. Rio de Janeiro: Ouro
sobre azul, 2006.
CIRLOT, J.E. Dicionário de símbolos. São Paulo: Ed. Moraes,
1984.
CHEVALIER J. e GHEERBRANT, L. Dicionário de símbolos. Rio
de Janeiro: Edit. José Olympio, 1989.
HARVEY. Enciclopédia de Ciências da Natureza. Disponível www.
universal.pt/tamaticos/dicionarios. Acesso em 1º/10/2006.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da
Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira,
1990.
THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural. São Paulo:
Companhia das Letras, 1996.
Recebido em 30/11/2009
Aceito em 14/12/2009
172
INSTRUÇÕES AOS AUTORES PARA
PUBLICAÇÃO DE ARTIGOS NO
PERIÓDICO POLIFONIA
A revista POLIFONIA publica artigos originais na área de linguagens,
em português, inglês, francês e espanhol.
Uma vez publicada, cada articulista receberá três exemplares.
Além da versão impressa, a Polifonia é também disponibilizada no
site do MeEL/UFMT (http://www.ufmt.br/meel).
Para o envio de artigos, devem ser obedecidas as seguintes instruções:
1. Os artigos devem ser enviados para o e-mail polifonia@
ufmt.br, digitado com o processador de texto MSWORD
FOR WINDOWS, tamanho A4 (210 mm x 297mm), com
título, sem o nome do(s) autor(es).
1.1. A identificação do autor deverá ser feita em um arquivo à parte, com as seguintes informações:
• título do trabalho;
• nome completo do(s) autor(es);
• titulação acadêmica máxima, instituição onde
trabalha(m), atividades exercidas
• telefone, e-mail (indicar se o e-mail pode ser divulgado na revista) e endereço completo para correspondência;
• apontar (caso necessário) a origem do trabalho, a
vinculação a outros projetos, a obtenção de auxílio para a realização do projeto e quaisquer outros
dados relativos à sua produção.
1.2. Formatação do texto:
• título do trabalho: em português, antes do Resumo
e das Palavras-chave e, em inglês, antes do Abstract e Keywords. Usar maiúsculas e negrito, fonte
Times, 12, centralizado;
• Texto: deverá ter de 12 a 20 laudas. Espaço 1,5.
• Resumo: máximo de 08 linhas, seguido de 3 a 5
palavras-chave, ambos em português e inglês.
• Títulos das seções e subseções: letra minúscula e
negrito
• Caso haja necessidade de destacar algum termo, no
texto, fazê-lo em itálico.
• Citações: com três linhas ou mais, deverão ser recuadas em 4 cm da margem esquerda. A margem
da 1ª linha deve ser de 1,5 cm. Times New Roman,
alinhamento justificado, espaço simples, fonte 11.
Elas serão indicadas no corpo do texto por chamadas assim: (CHAUI, 2002, p. 57).
Citação com até duas linhas: sem recuo, no próprio
corpo do texto, entre aspas, seguida da indicação
bibliográfica (CHAUI, 2002, p. 57).
• Citações em outras línguas (opcional): caso o autor
queira fazer a tradução, esta deverá ser colocada
em rodapé, antecedida pela expressão Tradução do
autor.
• Rodapé: deve ser usado apenas para notas explicativas e não mais para referência bibliográfica,
que deve ser feita no próprio texto. Ex: (ANDRADE,
1980, p. 7).
• Referências bibliográficas: USAR SÓ A PALAvRA
“REFERÊNCIAS”. Devem ser apresentadas nas Referências somente aquelas obras que foram efetivamente citadas no corpo do texto. Quando citados
no corpo do texto, os títulos das obras devem ser
colocados em itálico.
As Referências devem ser colocadas em ordem alfabética ao final
do texto, seguindo a NBR 6023. Transcrevemos dessas normas, abaixo,
alguns casos de maior ocorrência:
LIVRO
GOMES, L.G.F.F. Novela e sociedade no Brasil. Niterói:
EdUFF, 1998. (Coleção Antropologia e Política)
ARTIGO EM PERIÓDICO
GUIRRA, M.C.S. Da teoria à prática: o lugar da constituição do professor de Língua Portuguesa. Revista Panorâmica. Cuiabá, v. 06, p. 25-37, jan.jul. 2006.
CAPÍTULO DE LIVRO
SANTAELLA, L. A crítica das mídias na entrada do século
21. In: PRADO, J. L. A (Org.) Crítica das práticas midiáticas: da sociedade de massa às ciberculturas. São Paulo:
Hacker Editores, 2002. p. 44-56.
TRABALHO APRESENTADO EM EVENTO
BRAYNER, A R A; MEDEIROS, C.B. Incorporação do tempo
em SGDB orientado a objetos. In: SIMPÓSIO BRASILEIRO
DE BANCO DE DADOS, 9...*, 1994, São Paulo. Anais...
São Paulo: USP, 1994, p.16-29.
*NUMERAÇÃO DO EVENTO (SE HOUVER)
DOCUMENTO COM AUTORIA DE ENTIDADE
BIBLIOTECA NACIONAL (Brasil). Relatório da DiretoriaGeral: 1984. Rio de Janeiro, 1985, 40p.
ARTIGO E/OU MATÉRIA DE REVISTA, BOLETIM ETC EM
MEIO ELETRÔNICO
RIBEIRO, P.S.G. Adoção à brasileira: uma análise sóciojurídica. Dataveni@, São Paulo, ano 3, n.18, ago.1998.
Disponível em: <http://www.datavenia.inf.br/frame.artig.
html > Acesso em: 10 set. 1998.
• São permitidas imagens, mas a impressão será feita
em preto e branco. No caso de fotografias, deve-se
anexar o nome do fotógrafo e autorização dele para
publicação, além da autorização das pessoas fotografadas.
• Após a aprovação do artigo para publicação, a Editoria irá comunicar e enviar ao autor a ‘Carta de
Autorização para Publicação’, na qual ele ainda declare sua responsabilidade pelo conteúdo do respectivo texto.