Antonio Claudio Engelke Menezes Teixeira
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521345/CA
Esporte e violência no jiu-jitsu:
o caso dos “pitboys”
Dissertação de Mestrado
Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Ciências Sociais da PUC-Rio como
requisito parcial para a obtenção do título de Mestre
em Ciências Sociais.
Orientador: Prof. Valter Sinder
Co-orientadora: Profa. Maria Isabel Mendes de Almeida
Rio de Janeiro
Dezembro de 2007
Antonio Claudio Engelke Menezes Teixeira
Esporte e violência no jiu-jitsu: o caso dos "pitboys"
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521345/CA
Dissertação apresentada como requisito parcial para
obtenção do título de Mestre pelo Programa de PósGraduação em Ciências Sociais da PUC-Rio.
Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo
assinada.
Prof. Valter Sinder
Orientador
Departamento de Sociologia e Política – PUC-Rio
Profa. Maria Isabel Mendes de Almeida
Co-Orientadora
Departamento de Sociologia e Política – PUC-Rio
Prof. Roberto Augusto DaMatta
Departamento de Sociologia e Política – PUC-Rio
Prof. Paulo Jorge da Silva Ribeiro
Departamento de Sociologia e Política – PUC-Rio
Profa. Maria Claudia Pereira Coelho
UERJ
Prof. João Pontes Nogueira
Coordenador Setorial
do Centro de Ciências Sociais – PUC-Rio
Rio de Janeiro, 14 de dezembro de 2007
Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total
ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, do
autor e do orientador.
Antonio Claudio Engelke Menezes Teixeira
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521345/CA
Graduou-se em Comunicação Social pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro (2001). Fez
especialização (Latu Sensu) em Sociologia pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro (2006). Tem
interesses em Sociologia e Antropologia, com ênfase nos
seguintes temas: sociologia da violência, antropologia
urbana e culturas jovens.
Ficha Catalográfica
Teixeira, Antonio Claudio Engelke Menezes
Esporte e violência no jiu-jitsu : o caso dos “pitboys” /
Antonio Claudio Engelke Menezes Teixeira ; orientador:
Valter Sinder ; co-orientadora: Maria Isabel Mendes de
Almeida. – 2007.
160 f. ; 30 cm
Dissertação (Mestrado em Sociologia)–Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
2007.
Inclui bibliografia
1. Sociologia – Teses. 2. Juventude. 3. Violência. 4.
Esporte. 5. Diversão. 6. Masculinidade. I. Sinder, Valter.
II. Almeida, Maria Isabel Mendes de. III. Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento
de Ciências Sociais. III. Título.
CDD: 301
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A Antonio Carlos Menezes Teixeira, que, além de tudo,
é meu pai.
Agradecimentos
Na cartilha que ensina a formatar uma dissertação, lê-se: “Tal como a dedicatória,
os agradecimentos devem ser objetivos, sendo evitados quaisquer exageros”.
Entendo a preocupação em prevenir excessos que destoem da sobriedade
acadêmica. Mas, embora pertinente, a advertência me parece um tanto injusta.
Acaso seria exagero afirmar que, sem a mão firme e ao mesmo tempo paciente
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dos orientadores, esta dissertação teria sido sequer possível? Ou que, sem a
intervenção decisiva dos membros da banca no exame de qualificação, teria a
forma que se verá adiante? Não há exagero em afirmar isso. Portanto, que me seja
permitido quebrar o protocolo uma única vez.
Aos meus orientadores Valter Sinder e Maria Isabel Mendes de Almeida, toda a
gratidão que houver. Palavra alguma expressará o que lhes devo pela inspiração,
estímulo e atenção.
Ao professor Paulo Jorge da Silva Ribeiro, por tudo. Em especial, muito obrigado
por cada uma de suas aulas: por nos mostrar todos os motivos para perder a
inocência, e nenhum para perder a esperança.
Ao professor Roberto DaMatta, por haver dedicado uma vida inteira ao estudo do
que faz do brasil, Brasil. É um privilégio poder ter estudado e aprendido com o
senhor.
Ao professor Luiz Eduardo Soares, pelas críticas e orientações fundamentais, por
ocasião de meu exame de qualificação.
Ao professor José Carlos Rodrigues, pelos poucos mas decisivos conselhos sobre
como me aproximar do tema deste trabalho.
A todos os entrevistados, sobretudo ao “Mestre” e ao “Professor”, exemplos de
dedicação ao esporte e amigos que espero conservar por longo tempo.
Aos colegas do curso de mestrado, principalmente Leonardo “Setúbal” Lucena e
Olívia Nogueira Hirsch – amigos novos, porém de grande importância. Agradeço
também a Amanda Costa Reis, pela generosidade de me haver cedido seu clipping
de matérias jornalísticas sobre “pitboys”.
A Ana Roxo, Mercedes e Mônica, do Departamento de Sociologia e Política da
PUC-Rio, pelo carinho e atenção.
A CAPES e à PUC-Rio, pelas bolsas concedidas.
A meu avô, Ernani Teixeira Filho, meu primeiro e mais ávido leitor.
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A meu pai, Antonio Carlos Menezes Teixeira, por tanta coisa que é melhor nem
começar a enumerar – prometi quebrar o protocolo uma única vez.
A José Guilherme Vereza, seguramente o melhor amigo que uma pessoa pode
desejar ter.
E, last but not least, às mulheres da minha vida: minha mãe, Patricia de Britto e
Cunha (in memorian); minhas muitas e queridas irmãs – Anna Carolina, Anna
Paola, Anna Gabriela, Larissa e Antonia –; minha grande amiga e psicanalista
Regina Ewald; e à Thais Continentino Blank, minha namorada, porque sem o
amor todo o resto não faz sentido.
Resumo
Teixeira, Antonio Claudio Engelke Menezes; Sinder, Valter; Mendes de
Almeida, Maria Isabel. Esporte e violência no jiu-jitsu: o caso dos
“pitboys”. Rio de Janeiro, 2007. 160 p. Dissertação de mestrado.
Departamento de Sociologia e Política. Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro.
A pesquisa busca compreender a relação entre a prática do jiu-jitsu, tal
como desenvolvido pela família Gracie, e a violência praticada pelo que a mídia
convencionou chamar de “pitboys”, jovens cariocas de classe média e alta que
amiúde envolvem-se em brigas e atos de vandalismo. Evitando abordar o tema
pelo viés da ausência, comumente utilizado para explicar o comportamento de
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“pitboys” – a falta de instrutores de jiu-jitsu qualificados, de pais zelosos, de
“limites” de educação, de leis mais severas etc. –, o presente estudo procurou
observar, no interior de uma academia de jiu-jitsu, a construção de um ethos
guerreiro, a profissionalização da “porrada” advinda do sucesso dos eventos de
vale-tudo, as inscrições corporais dos praticantes de jiu-jitsu, a importância das
“marias-tatames” na consolidação de um estilo de masculinidade rude ou bruto, e
a relação entre virilidade e masculinidade, atributos muito prezados por lutadores.
Num segundo momento, a pesquisa se dedica a entender a “porrada” como um
jogo, uma brincadeira inserida num contexto lúdico; jogo que é a um só tempo
racional e irracional, e que implica sempre em algum risco e, portanto, em
possibilidade de reconhecimento e lucros de distinção para os vencedores.
Observa-se também o contexto mais amplo dentro do qual o fenômeno “pitboy”
eclodiu: a sensação de insegurança que se instala no rastro da ascensão do crime
organizado a partir dos anos oitenta, o processo de identificação de “pitboys” com
marginais excluídos, a cultura da malandragem que une a ambos e, ao mesmo
tempo e paradoxalmente, o reforço das fronteiras de classe no uso do “você sabe
com quem está falando?”, comumente utilizado por jovens de classe média e alta
que praticam a violência na noite carioca.
Palavras-chave
Juventude, violência, esporte, diversão, masculinidade.
ABSTRACT
Teixeira, Antonio Claudio Engelke Menezes; Sinder, Valter; Mendes de
Almeida, Maria Isabel. Sport and violence in jiu-jitsu: on "pitboys". Rio de
Janeiro, 2007. 160 p. Master's Thesis. Department of Sociology and Politics.
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
The research tries to understand the relation between the practice of jiu-jitsu,
as developed by the Gracie family, and the violence of the so called "pitboys",
upper class young boys that often becomes involved in street fights and acts of
vandalism. Preventing to approach the subject trough the “bias of the absence”,
normally used to explain the behavior of "pitboys" - the lack of qualified jiu-jitsu
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instructors, zealous parents, "limits" of education, severe laws etc. -, the present
study seeks to observe, in the interior of a jiu-jitsu academy, the construction of a
warlike ethos, the professionalization of street fights due to the success of “No
Holds Barred” events, the corporal inscriptions of jiu-jitsu practitioners, the
importance of the "Marias-tatames" (young girls who choose only mean jiu-jitsu
fighters to date) in the consolidation of a rude style of masculinity, and the
relation between virility and masculinity, attributes highly valued by fighters. The
research also tries to understand street fights as a game that is part of a playful
context; a play that, at the same time, is both rational and irrational, that always
implies in some kind of risk and, therefore, in the possibility of recognition for the
winners. The wider context in which the phenomenon "pitboy" came out is also
observed: the sensation of unsecurity that is installed in the track of organized
crime’s ascension back in the Eighties; the process of identification of "pitboys"
with excluded delinquents; the “malandragem” culture that joins them both and,
paradoxicalally, the frequent use by “pitboys” of the autoritarian rite "do you
know who are you speaking to?", that reinforces the distinction between upper
and lower class people in Brazil.
Keywords
Youth, violence, sport, masculinity.
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Sumário
1. Introdução
11
2. No Tatame.
22
2.1.Superioridade e identidade:
breve história do Gracie jiu-jitsu
23
2.2. Sem quimono, com quimono, sem quimono:
a transformação do jiu-jitsu
34
2.3. Corpo, masculinidade, virilidade e pertencimento
numa academia de jiu-jitsu
49
3. Na Rua
87
3.1 Contextualizando a discussão:
breve painel da violência no Brasil
88
3.2 Imagens da barbárie: os discursos sobre “pitboys”
99
3.3 Enfim, porrada: depoimentos de “ex-pitboys”
e seguranças de casas noturnas
109
4. Conclusão
151
5. Referências Bibliográficas
155
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Deve-se conceber o discurso como uma violência que fazemos às coisas...
Michel Foucault
1
Introdução
A festa não havia atingido seu clímax. Jovens, em sua maioria ainda não
saídos da adolescência, bebiam e conversavam, riam e se azaravam, andavam para
cá e para lá, num deslocamento incessante e aparentemente aleatório. Vazia, a
pista de dança aguardava seus melhores momentos. A noite, contudo, prometia.
Tratava-se do aniversário da filha mais nova de uma das famílias mais ricas e
tradicionais do Rio de Janeiro, dona de um importante conglomerado midiático.
Sozinho e em pé, eu observava o vai-e-vem das pessoas. Os dois amigos
com os quais eu havia ido à festa tinham se afastado para buscar caipirinhas. De
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repente, sinto alguém me pegando, pela costas, num golpe conhecido como
“gravata” – com a diferença de que, ao mesmo tempo em que meu pescoço é
apertado (a “gravata” propriamente dita), meu braço direito é continuamente
torcido por trás do corpo, num movimento que vai de baixo para cima. A pressão
no pescoço não é o problema: dificulta mas não impede a respiração. A torção no
braço, sim, causa algum incômodo. Começa a doer levemente. Abro um sorriso.
“Deve ser alguém lá da academia”, penso.
Tratei logo de fazer o que todos os lutadores de jiu-jitsu fazem quando são
apanhados num golpe do qual não conseguem escapar, e que os força a desistir de
seguir na luta: dei dois tapinhas no corpo. É a senha, o código para dizer “ok, eu
desisto”. Mas ao invés de ter meu pescoço e braço liberados, como seria natural,
sinto a torção aumentar ainda mais. Nesse momento, viro o rosto para o lado,
tentando identificar o engraçadinho que não queria me soltar. Pergunto: “Quem
é?”. Ato contínuo, o golpe se afrouxa, e sou levemente empurrado para frente.
Quando viro para trás, o susto:
– É o Predador.
O Predador devia ter a mesma estatura que eu, mas sua compleição física
era claramente mais larga e forte. Sua aparência intimidava – os cabelos raspados,
a orelha deformada, o pescoço grosso, os olhos secos e fixos. Reparei que
mantinha os dois pés afastados, um ligeiramente mais à frente que o outro: estava
“em base”, como se diz no jargão das artes marciais, isto é, distribuía bem o peso
12
do corpo de modo a manter-se equilibrado e prevenido. Então me dei conta da
gravidade da situação, e tive medo. Estava obviamente irritado com a provocação
grosseira e desnecessária, isto é, com o fato de haver tido meu braço torcido e meu
pescoço apertado por um completo desconhecido, mas sabia que, se protestasse –
“Tá maluco, rapá? Eu te conheço? Como é que tu faz uma coisa dessas?” –
acabaria suscitando uma discussão e, com quase toda certeza, uma briga. Ali
estava o estereótipo perfeito de um praticante de jiu-jitsu, esperando apenas minha
reação natural de ofensa e indignação para colocar em prática sua potência e
habilidade de luta. O cenário já estava armado; tudo o que ele, Predador,
necessitava agora era que sua presa escolhida o confrontasse, o desafiasse. Mas,
intuitivamente, fiz o único movimento, o único gesto que talvez me livrasse, de
uma vez só, da guerra aberta e da saída covarde e desmoralizante. Estiquei a mão
e, com a maior naturalidade que fui capaz de demonstrar, ofereci um
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cumprimento:
– E aí, Predador, beleza?
Devo tê-lo pego de surpresa. O Predador hesitou por um instante; depois
aceitou o cumprimento, apertando-me firmemente a mão. Tão logo nossas mãos
se desvencilharam, dei-lhe as costas e saí andando, com a pressa nervosa de quem
na verdade gostaria de estar correndo. Não o vi mais naquela noite. A festa seguiu
seu curso, e é provável que eu tenha voltado para casa um pouco embriagado.
Tempos depois, refletindo sobre este episódio, cheguei à conclusão de que ao
cumprimentá-lo dizendo “e aí, Predador, beleza?”, eu o reconheci, nos dois
sentidos do termo. Ou seja, reconheci que ele era de fato O Predador, e portanto
automaticamente atestei sua superioridade em relação a mim, sua presa; e
reconheci também, embora inadvertidamente, a pessoa por trás do personagem
Predador, o que o pode ter lhe causado certa confusão mental, uma dúvida como
“será que esse cara realmente me conhece de algum lugar?”. Ademais, o aperto de
mãos deve ter contribuído para desestabilizar suas expectativas. Numa situação
como aquela, é quase certo que ele esperasse, de minha parte, a reclamação direta
ou a fuga acuada, jamais o tratamento normalmente dispensado a um amigo ou
conhecido.
Mas tudo isto, é claro, são apenas suposições. Se minha reação foi
determinante para o desfecho pacífico de nosso breve encontro, ou se o Predador
13
simplesmente percebeu que eu estava apavorado e, num surto de compaixão, teve
pena de me “encher de porrada”, nunca saberemos.
O “choque de cultura” a que Roy Wagner (1978) se refere, a experiência
desconcertante e às vezes traumática do desembarque do antropólogo no campo,
isto é, no seio da população remota que ele um dia resolveu pesquisar, este
choque, eu não conheci. Não passei por todo tipo de tormento e situações
embaraçosas para me familiarizar com os códigos de comportamento dos
“nativos”. Cheguei já adaptado a eles quando fui fazer a etnografia; conhecia-os
de longa data. Meu primeiro contato com o jiu-jitsu fora na academia Gracie do
Humaitá, ainda nos anos oitenta. Conheci Hélio Gracie, patriarca da família e já
naquela época uma lenda do esporte, e tive aulas particulares com seu filho Rolker
– além de defesa pessoal, aprendi que deveria fitar meu interlocutor sempre nos
olhos, e que saúde era sobretudo uma questão de combinar alimentos de uma
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maneira bastante criteriosa e específica. Mais tarde, já adolescente, segui
praticando jiu-jitsu por alguns anos em outra academia da zona sul da cidade. Foi
ali, no início da década de noventa, que o jiu-jitsu caiu no gosto dos jovens de
classe média e alta, primeiro no Rio de Janeiro, depois no Brasil todo. Naquele
momento, surgia também a figura do “pitboy”. Conheci “pitboys” no tatame e nas
noitadas. De algum modo, fizeram parte de meu cotidiano durante a adolescência.
Voltei à mesma academia que frequentei dos quinze aos dezenove anos para
produzir a etnografia que se segue. Apesar de conhecer os códigos dos nativos,
não foi sem algum estranhamento que passei a conviver entre eles novamente. É
curioso, mas só agora – depois de haver terminado o trabalho, quando enfim
escrevo as páginas que o introduzem – me dou conta de que, desde o primeiro
contato com o antigo Mestre e colegas de treino, fiz questão de exagerar certos
traços de minha personalidade de modo a representar a mim mesmo como um
sujeito algo boêmio, que não liga muito para o próprio corpo e menos ainda para o
fato de ganhar ou perder uma luta. Em outras palavras, me esforcei em passar uma
imagem oposta àquela que, imagina-se, os lutadores de jiu-jitsu tanto prezam, qual
seja, a do macho viril, firme e de poucas palavras. Com isto quero dizer que, em
diversas oportunidades, abusei da ironia e do humor auto-depreciativo para
construir minha caracterização perante toda a academia, do aluno mais graduado
ao xará Antonio, faixa-branca como eu. Repetidas vezes deixei claro que meu
estilo de vida, e alguns dos valores que a norteiam, são bastante díspares ou até
14
mesmo antitéticos a muito do que é caro a qualquer lutador ou praticante de jiujitsu: a virilidade, a disposição para a luta, a competitividade, o orgulho do próprio
corpo.
Talvez tenha adotado tal postura porque precisasse deixar bem nítida minha
distância em relação a “eles”, como se quisesse dizer aberta e explicitamente “não
sou um de vocês, tenham isso em mente ao lidar comigo”; talvez porque tivesse
simplesmente a intenção de provocá-los, de saber como reagiriam a um outro
diferente, excêntrico; ou talvez porque houvesse lembrado, ainda que
inconscientemente, de meus tempos de redator publicitário – e se há uma coisa
que um publicitário sabe é que, se feito com suficiente inteligência, o antimarketing é uma das melhores estratégias de marketing que existe. Ou talvez
tenha sido tudo isso ao mesmo tempo. Apesar deste curioso e aparente, digamos,
“curto-circuito” – um “ex-nativo” que, anos depois, “volta para casa” fazendo
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questão de demonstrar que não é mais um “nativo” –, penso que fui bem sucedido.
Minha condição de veterano, membro da primeira geração de alunos da academia,
me garantiu recepção calorosa por parte do Mestre. Mas a simpatia dos colegas de
treino, com uma única exceção, não foi ganha a priori, e sim no convívio diário.
A problemática do posicionamento que resolvi adotar, contudo, não se
resume a construção deliberada de uma determinada imagem, esta estratégia que
chamei de anti-marketing. Havia também o outro e decisivo espectro de minha
identidade, que me causava dúvida e alguma inquietação: devo contar a todos
eles, logo de saída, que sou um antropólogo estudando o universo do jiu-jitsu, e
que o principal foco de minha pesquisa é a questão da violência que envolve os
“pitboys”? Inicialmente, optei por observar sem dizer que estava observando,
talvez inseguro com minha própria condição de “investigador”. Claro, não
demorou muito para que o Mestre, durante uma conversa casual, me perguntasse o
“quê eu fazia da vida”. Disse-lhe a verdade – que cursava um mestrado em
ciências sociais, e que estava estudando para ser um antropólogo –; mas não toda
a verdade. Foi somente em 30 de janeiro de 2007, portanto quase seis meses
depois de haver retomado a prática do jiu-jitsu, que contei a todos que vinha
realizando um estudo que, em grande parte, era sobre a academia. Somente então
eu revelei os propósitos de minha pesquisa, e lhes disse que eram “personagens”
de meu relato, que durante todo o tempo eu os estivera observando e anotando
muitas das conversas que entabulávamos durante os treinos.
15
Depois disso, depois de revelada minha identidade, virei “o antropólogo”.
Brincalhão, o Mestre passou a me receber sempre aos gritos de “chegou o nosso
antropólogo!” ou então “úúúú antropóóólogo!” Mas não fazia isso com desdém;
muito ao contrário, havia algo de carinhoso, como se reconhecesse uma certa
autoridade no fato de eu ser um estudioso, por mais que não compreendesse
inteiramente o quê eu estudava. Isso me pareceu bastante evidente quando da
ocasião em que uma equipe de TV fez uma reportagem sobre a academia. Naquela
oportunidade, fui apresentado à repórter (uma loura bonita e de corpo bem
talhado, que mereceu toda atenção e sorte de elogios entre o pessoal no tatame)
pelo Mestre da seguinte forma: “Fulana, este é o nosso antropólogo!”. No dia
seguinte, ao encontrá-lo, antes mesmo de me apertar as mãos ele já foi dizendo:
“Viu só a moral que eu te dei com a gostosa? Chegou o nosso antropólogo!”
O antropólogo chegou na academia de jiu-jitsu de outrora esperando
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encontrar “pitboys”. Decepcionou-se. Não estavam lá. No decorrer do trabalho de
campo e da pesquisa bibliográfica ficaria evidente ser impossível estabelecer uma
relação direta do tipo causa e efeito entre jiu-jitsu e “pitboys”, não apenas por
fatores concernentes à prática do jiu-jitsu, mas também em função do próprio
estatuto do termo “pitboy”. Em relação a este último ponto, basta uma rápida
olhada nos jornais para verificar que, atualmente, o uso do termo “pitboy” não
mais se restringe a lutadores: expandiu-se para abrigar qualquer ato de
delinqüência cometido por jovens de classe média e alta 1 . Hoje, o termo “pitboy”
é “aplicado a um indíviduo ao final de um bem sucedido processo de rotulação”
(Cardoso, 2005: 47), no qual o principal fator que garante o rótulo ao jovem
infrator é a junção entre sua classe social e o tipo de crime por ele cometido, e não
sua adesão à alguma arte marcial.
De saída, somos obrigados a reconhecer as dificuldades de se falar em
“pitboy” como categoria sociológica. Como definir um “pitboy”? Se aceitarmos, a
título de ilustração, a definição de que “pitboy” é todo aquele que se envolve em
brigas com regularidade, arriscaremos a incluir pessoas que tenham agido em
defesa própria mais de uma vez num curto espaço de tempo. Portanto, a
1
Comprova-o o recente episódio de agressão e roubo sofridos pela doméstica Sirlei Dias, atacada
por um grupo de jovens da Barra da Tijuca. Examinaremos a questão ao longo do trabalho. Para
uma análise mais detalhada de como o termo “pitboy” transformou-se em uma categoria de
acusação cujo emprego não necessariamente encontra-se vinculado às artes marciais, e de como o
processo de penalização dos “pitboys” incorre nos mesmos erros que pretende sanar, consultar
Cardoso, 2005.
16
freqüência do ato de brigar é um critério necessário, porém insuficiente.
Qualificando um pouco mais o argumento, poderíamos dizer que o “pitboy” não
apenas envolve-se em brigas com freqüência: tem no mais das vezes a clara
intenção de provocá-las. Contudo, ainda assim a definição resulta falha. Basta
imaginarmos, por exemplo, um lutador de jiu-jitsu que, mesmo não sendo ele
próprio o agente provocador de confusões em bares e boates, termina sempre por
tomar parte nelas. (De resto, a intencionalidade como critério puro não tem muita
serventia: acaso um sujeito que, ao flagrar sua esposa com um amante, inicie uma
briga com a clara intenção de machucar seu rival pode ser considerado um
“pitboy”?) Poder-se-ia, então, tentar uma segunda definição: “pitboy” é o jovem
que, por pouca ou nenhuma motivação aparente, provoca um confronto físico
numa situação de convívio social, ou que reage com violência desproporcional a
um ato que de maneira geral não motivaria uma atitude física. Mas em que pese o
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esforço, persiste o problema. Pois como definir os parâmetros de legitimidade do
uso da violência corporal, as fronteiras que estabelecem a (des)proporcionalidade
de uma reação? Seriam tais parâmetros fixos, isto é, independentes do contexto do
conflito, ou flexíveis? E, mais ainda, estariam todos eles contemplados pela noção
de “legítima defesa” prevista em lei? Nesta perspectiva, em quê se diferenciam os
atuais “pitboys” das antigas gangues de jovens do Rio de Janeiro – como a famosa
“turma da Miguel Lemos” – que, décadas antes, gozavam de péssima reputação
justamente em função das brigas e arruaças que amiúde provocavam?
À esta altura, espero haver ficado suficientemente claro que o “pitboy” –
neologismo 2 criado em 1999 pelos jornalistas Tom Leão e Carlos Albuquerque
nas páginas do “Rio Fanzine”, espaço dedicado à cultura jovem no jornal O Globo
– não existe de fato. Ele é um estereótipo, causa e efeito de um discurso midiático
que o representa ao mesmo tempo em que o constrói. Para os propósitos deste
trabalho, o “pitboy” será pensado, segundo a terminologia weberiana, como um
tipo ideal. E um tipo ideal, como se sabe, é uma ferramenta de análise, uma
aproximação conceitual que, ao sublinhar ou mesmo exagerar um determinado
conjunto de características relevantes no interior de um fato social, constrói um
2
O neologismo “pitboy” resulta da união das palavras “pitbull”, raça de cães bastante apreciada
por lutadores por sua força e ferocidade, e “playboy”, uma referência à classe social à qual a
maioria dos lutadores de jiu-jitsu pertence.
17
modelo que a despeito de não existir concretamente permite apreciar o fato em
questão com maior acuidade.
Se você é um antropólogo pesquisando o universo do jiu-jitsu, uma das
coisas mais desastradas que pode fazer é empregar a palavra “pitboy” em uma
conversa na academia ou durante uma entrevista. A simples menção ao termo
“pitboy” já é suficiente para causar certo mal-estar. Trata-se do ponto crítico,
nevrálgico, que afeta os lutadores de jiu-jitsu e prejudica a imagem do esporte
como um todo. Nada mais natural, portanto, que nenhum lutador se identifique
como um “pitboy”, e que faça questão de repudiar abertamente o comportamento
que lhe é associado. Mesmo um praticante de jiu-jitsu que goste de bater nos
outros (um “Predador”, digamos) dificilmente pensará em si próprio como um
“pitboy”: dirá que é um “casca-grossa” ou, no limite, um “porradeiro”, jamais um
“pitboy”. Em suma, fale em “pitboy” dentro de uma academia de jiu-jitsu e as
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portas de suas entrevistas se fecharão; ou, se se mantiverem abertas, tudo o que
você conseguirá será um amontoado de clichês, desses que lemos nos jornais toda
vez que um lutador se envolve numa briga: “isso é coisa de moleque que fez jiujitsu durante um mês com um professor desqualificado”, “atleta de jiu-jitsu de
verdade luta no tatame ou no ringue, não briga na rua” etc.
Tais obstáculos me forçaram a pensar em alternativas. Se a definição do
método de pesquisa é também um momento de criatividade, e não apenas de mera
adequação, por que não procurar inspiração fora do âmbito das ciências sociais?
Foi o que procurei fazer, ao incorporar à metodologia de trabalho uma idéia
retirada dos escritos de Gay Talese, um dos principais nomes do gênero conhecido
como “jornalismo literário”, ou new journalism. Talese (2004) escreveu aquele
que até hoje é considerado o melhor “perfil” de Frank Sinatra – sem entrevistá-lo.
Sinatra estava resfriado, arredio e preocupado com a agenda de compromissos;
acompanhando seus passos à meia distância, Talese limitou-se a observar o
universo de pessoas que gravitavam no entorno do cantor e a entrevistar algumas
delas. Conseguiu assim perceber não quem Frank Sinatra dizia ser ou o que ele
queria que o público soubesse a seu respeito, mas quem ele era em diversas
situações e âmbitos de sua vida cotidiana e o que significava para os que lhe eram
mais próximos. O exemplo pode ser útil aqui, com alguma imaginação. Sabendo
da quase impossibilidade de encontrar um “pitboy” que se reconheça como tal, e
sabendo também da inadequação de conversar com um jovem “pitboy” atual
18
tendo em vista meus propósitos (muito mais voltados ao exame do início da
explosão do jiu-jitsu, que possibilitou a emergência da onda de violência a ele
associada), decidi tomar caminho semelhante ao de Talese. Entrevistei exlutadores de jiu-jitsu, alguns deles “ex-pitboys”, confiando no fato de que a
distância costuma refinar o olhar, e entrevistei também alguns seguranças de casas
noturnas, pois é certo que ninguém observou e enfrentou “pitboys” tanto quanto
eles.
Ex-lutadores de jiu-jitsu foram relativamente fáceis de contactar e
entrevistar. Já os seguranças deram mais trabalho. Não foram poucas as
dificuldades encontradas na hora de entrevistá-los em portas de boates e casas
noturnas cariocas. Desconfiança, receio, impaciência ou simplesmente má
vontade: o fato é que as tais portas simplesmente não se abriram, certamente
também por incompetência do pesquisador. Obrigado a procurar outra solução,
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recorri a um expediente tipicamente brasileiro. Liguei para amigos.
E de telefonema em telefonema cheguei até a porta de uma das maiores
empresas de segurança de festas e eventos do Rio de Janeiro. A sede da empresa,
que ocupa uma construção baixa e discreta num bairro da zona norte da cidade, é
um lugar que, na falta de palavra melhor, defino simplesmente como
“ressabiado”. Há um portão de ferro espesso e negro, muitas câmeras de
vigilância, um interfone que pergunta de modo seco “quem é?”, e um corredor
estreito, ao longo do qual é preciso vencer duas ou três pesadas portas que se
abrem de modo automático, mas apenas por dentro. Fui gentilmente recebido pelo
dono da empresa, ele próprio um ex-segurança. Expliquei-lhe o motivo da visita,
os objetivos do trabalho. Como tivesse gratidão para com o amigo a quem eu
havia recorrido, ofereceu pronta ajuda. Chamou mais quatro seguranças de sua
equipe, e me permitiu o tempo que quisesse para entrevistá-los.
A dissertação que se segue foi fruto de um trabalho de campo realizado
durante onze meses numa academia de jiu-jitsu da zona sul do Rio de Janeiro.
Foram entrevistados cinco seguranças, dez ex-lutadores de jiu-jitsu, o Mestre
(dono da academia), o Professor (faixa-preta responsável pela aula no horário das
dezesseis horas) e mais quatro colegas de treino.
O trabalho divide-se em dois capítulos. O primeiro, “No Tatame”, consiste
na experiência etnográfica propriamente dita. O reencontro com o antigo Mestre e
alguns alunos, o retorno (dolorido) ao tatame, a análise da estrutura de uma sessão
19
de treino, a prática da “taparia” como um rito de passagem de construção da
masculinidade, os usos dos corpos dos lutadores, os signos de pertencimento, as
idéias de virilidade e valentia que atravessam o ambiente hipermasculino de uma
academia de jiu-jitsu. Tangenciando a discussão, serão observadas questões como
a importância das “marias-tatames” na edificação de um estilo de masculinidade
grosseiro e violento, e a problemática relação de lutadores com a
homossexualidade. Além disso, será analisado o processo de criação de um ethos
guerreiro entre os praticantes de jiu-jitsu, e a construção da idéia de sua eficácia e
superioridade em brigas de rua. Por esta razão, o relato etnográfico é precedido
por um breve apanhado da história do jiu-jitsu no Brasil, cujo objetivo é introduzir
e contextualizar a discussão que se lhe segue. Trata, portanto, do desenvolvimento
do jiu-jitsu pela família Gracie, sua história desde os ensinamentos do patriarca
Hélio até a profissionalização do esporte e o desenvolvimento de modalidades a
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ele associada, como o vale-tudo e as competições de submission grappling.
O segundo capítulo (“Na Rua”) aborda problemas diretamente relacionados
à ação dos “pitboys”. O intuito, vale dizer logo, não é apreciar a construção dos
“pitboys” através do discurso midiático, embora tal empresa não passe
desapercebida; é antes o de apreciar, na esteira dos depoimentos obtidos através
das entrevistas com “ex-pitboys” e seguranças das casas noturnas, questões
referentes aos seus comportamentos. Alguns pontos merecerão destaque, a saber:
a agressão gratuita, o vandalismo, o roubo, enfim, o flerte com a delinquência –
semelhanças (poderíamos dizer “identificações”) entre a ação dos “pitboys” e a
dos grupos marginalizados associados ao tráfico de drogas, tendo em vista o
recente contexto social e econômico brasileiro, em cujo interior vem sendo
diagnosticado o processo de “dessensibilização da sociedade para questões
referentes à vida humana” (Cecchetto, 2004:108); a racionalidade empregada no
ato de brigar, ou seja, o cálculo que envolve o domínio do uso das técnicas
corporais, para usar a expressão de Mauss (2005); a idéia de que a “porrada” é
encarada como um jogo-brincadeira no sentido que lhe dá Huizinga (2005); o
significado e a importância do “descontrole controlado das emoções”, do risco e
da adrenalina que necessariamente acompanham a “porrada”; a opção pela
malandragem como guia de conduta e o uso do “Você sabe com quem está
falando?” (DaMatta, 1983). Examinei com maior detalhe os aspectos que me
pareceram mais relevantes; outros, apenas comentei brevemente. Penso que não
20
poderia ter sido de outro modo. Há questões que, se examinadas com o rigor e a
profundidade que exigem, renderiam dissertações inteiras.
Com a pesquisa praticamente finalizada, aconteceu de me deparar, de
maneira bastante introdutória e portanto superficial, com fragmentos da obra de
Derrida 3 . E um dos aspectos que mais captou minha atenção foi sua insistência no
fato de que em toda classificação binária um dos termos da relação certamente
será privilegiado em detrimento do outro. Transportei o raciocínio para o âmbito
deste trabalho e, de súbito, me dei conta do quão estruturalista era a estrutura do
meu argumento. Sabemos, é claro, que o relato etnográfico inventa – no sentido
de construir, não de criar uma ficção – a cultura que se propõe a descrever
(Wagner, 1981), e que todo e qualquer discurso, e as histórias nele veiculadas, é
vazado em tropos de linguagem (White, 2001). Sabemos também que o
antropólogo é de algum modo forçado a observar/participar já efetuando
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classificações, e isto por duas razões: porque processos narrativos atravessam toda
a feitura de uma etnografia, e não apenas sua redação final (Clifford, 1986), e
sobretudo porque ela, a etnografia,
não é mera descrição ou recolha de dados a serem posteriormente trabalhados: o
que se observa e a forma como se ordenam as primeiras observações já obedecem
a algum princípio de classificação e, se não se propõe algum, o que vai presidir e
orientar esse primeiro olhar é o senso comum. Que é o que, precisamente, se
pretende evitar. (Magnani, 2000: 37.)
Pois bem, são muitas as oposições binárias aqui delineadas: ausência x
excesso, malandro x otário, indivíduo x pessoa, risco x controle, intensividade x
extensividade, homens x mulheres, racionalidade x irracionalidade, identificação x
diferenciação. Não posso afirmar quais teriam sido privilegiados; se o fiz, e
segundo Derrida devo necessariamente tê-lo feito, não foi de forma consciente.
Mas posso afirmar, contudo, que uma das conclusões a que cheguei reside no fato
de que tais oposições, quando observadas de perto, revelam-se menos opostas do
que parecem à primeira vista. Seus ingredientes misturam-se, formam-se híbridos,
e só um golpe de extrema violência teórica conseguiria arrancá-los de sua
unicidade, quebrando-os em partes isoladas, separadas entre si. O “pitboy”, misto
de pitbull playboy, híbrido de homem e cão, adora um esporte que é em si uma
3
SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais.
Petrópolis: Editora Vozes, 2000.
21
grande mistura de lutas, o vale-tudo (não por acaso chamado atualmente de Mixed
Martial Arts); sabe de cor como praticar a “porrada”, treinado que é na eficiência
da briga, e o faz de uma maneira lúdica, irracional; assume riscos, procurando a
intensividade do instante, e os controla tanto quanto pode, desejoso de
extensividade em vida; jacta-se malandro, e deixa-se apanhar às vezes como
otário; identifica-se com os marginalizados (com os “indivíduos”), e utiliza-se de
sua posição social (como “pessoa”) para diferenciar-se deles.
E não estaria exatamente aí, no hibridismo, um dos principais traços
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distintivos das relações sociais no Brasil?
2
No Tatame
Nunca gostei de dar aulas a atletas. Atleta não precisa. Quem precisa do meu jiujitsu é o cara franzino, apavorado, frouxo, inseguro, indefeso. Já imaginou esse
cara ter certeza que não leva facada, paulada, pisão, soco, pontapé, gravata? Ele
aprende a sair de qualquer situação e começa a ver que é invencível. Sua moral
tímida muda para a de alguém que acredita em si, e isso não tem preço. (...) Criei
um veículo para dar segurança às pessoas.
Hélio Gracie
Não estava em meus planos iniciais fazer uma incursão pela história do jiujitsu tal como desenvolvido pela família Gracie no Brasil. Pretendia iniciar logo
com o relato de minha experiência etnográfica, isto é, com o trabalho de campo
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propriamente dito, a vivência no tatame. Mas a feitura de planos, permitam-me o
clichê, não é algo que costuma combinar com o ofício de antropólogo. Pois foi
durante a ocasião a mais descompromissada, uma conversa informal durante um
jantar entre amigos, que me vi subitamente obrigado a mudar de idéia.
À certa altura, perguntaram-me sobre minha vida profissional. Falei um
pouco sobre meus estudos em ciências sociais, e do projeto de minha pesquisa,
ainda incipiente. Como houvesse curiosidade da parte de meus interlocutores,
senti-me à vontade para alongar o assunto; e então discorri brevemente sobre o
retorno aos tatames, o reencontro com antigos companheiros de treinos, e
mencionei meu espanto diante da inabalável fé que eles demonstram ter na
eficácia da técnica do jiu-jitsu numa briga de rua. “O jiu-jitsu é a arte marcial mais
eficiente que existe”, afirmei, repetindo o discurso dos “nativos”. Ao que um dos
presentes à mesa, lutador de caratê, retrucou: “olha, o jiu-jitsu pode até ser mais
eficiente numa situação ‘mano-a-mano’, mas numa porrada em lugar público, tipo
uma festa ou boate, não é não”. Tinha razão.
O jiu-jitsu é uma arte marcial inteiramente voltada para a luta no solo:
ensina a agarrar o oponente, aplicar-lhe uma queda e então subjugá-lo, em geral
por meio de uma chave-de-braço ou estrangulamento. É uma técnica que costuma
funcionar quando se tem a certeza de que ninguém irá interferir na briga, o que
não é o caso de confusões que se armam em bares, festas ou boates. Em tais
circunstâncias, agarrar-se a um adversário no chão, mesmo que o dominando por
23
completo, é ficar em posição vulnerável. Há sempre o risco de tornar-se vítima de
socos e pontapés dos amigos da outra parte envolvida na briga – ou, em casos
mais extremos, de “cadeiradas”, “garrafadas” e do que mais o azar permitir que
caia em mãos alheias.
Tudo isso serviu para chamar minha atenção para o fato de que, em tese, os
“pitboys” deveriam haver surgido não entre praticantes de jiu-jitsu, mas entre
lutadores de caratê, boxe, boxe tailandês, tae kwon do ou qualquer outra arte
marcial que ensine a lutar em pé e à distância, pois é este o tipo de técnica de luta
que se exige numa briga dentro de uma festa ou boate. Percebi, então, que a
confiança dos lutadores de jiu-jitsu na eficácia de sua técnica em confrontos
violentos era tão grande que extrapolava os limites da razão utilitária. Aí estava
a primeira questão que importava examinar: de onde provinha esta arraigada
confiança? Mais ainda, como ela encontrava meios para atualizar-se? Se meu
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objetivo principal neste trabalho era entender melhor a violência associada aos
“pitboys”, que por sua vez estão associados ao jiu-jitsu, então teria
necessariamente que conhecer a tradição desta arte marcial, da qual eles,
“pitboys”, são em parte herdeiros. A idéia da superioridade da eficácia da técnica
do jiu-jitsu, e o poder de atração que ela exerce, é parte desta tradição tanto quanto
a própria técnica, seus movimentos, golpes e macetes.
2.1
Superioridade e identidade: breve história do Gracie jiu-jitsu
No dia de natal do ano de 1898, um rapaz de vinte anos, 1,64 metro e
sessenta e oito quilos causou assombro no tradicional torneio realizado na
academia Kodokan, em Tóquio. Derrotou, em seqüência, quinze oponentes. Ao
final, teve colocada na cintura a faixa-preta pelas mãos de Jigoro Kano, ninguém
menos que o fundador do judô moderno. Chamava-se Mitsuyo Maeda. Praticava,
além do judô, antigas formas de jiu-jitsu japonês.
Em 1904, Maeda recebeu de seu mestre a tarefa de popularizar o judô nos
Estados Unidos. Estreou derrotando alguns wrestlers 1 americanos na prestigiosa
1
“Wrestler” é o praticante de wrestling, modalidade que no Brasil é chamada de luta grecoromana, cujo objetivo é derrubar o oponente de modo a colocar suas costas inteiramente no chão.
24
academia militar de West Point. Em Nova York, participou de diversas lutas
undergound, sendo a principal contra um adversário conhecido como “The
Butcher” (“o Açougueiro”). Vitorioso, ofereceu-se em desafio ao então campeão
mundial de boxe da categoria peso pesado, Jack Johnson. Não obteve resposta. O
jovem lutador, no entanto, recusou-se a limitar seus horizontes aos Estados
Unidos. Acumulou viagens e vitórias em Inglaterra, Bélgica, Espanha e Cuba.
Mas foi no Brasil que decidiu fixar-se, já quase uma década depois de haver
deixado o Japão.
Nos anos vinte, um projeto de colonização do governo japonês no norte do
Brasil reclamou os serviços de Maeda, que, então apelidado de Conde Koma, foi
transferido para Belém, onde viveu até o fim da vida. Morreu a 28 de novembro
de 1941 – não sem antes ensinar sua técnica a Carlos Gracie, filho de Gastão
Gracie, homem de reconhecida influência na região.
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De volta ao Rio de Janeiro, Carlos abriu sua própria academia em 1925,
inaugurando a tradição de luta na família Gracie. O primeiro anúncio, mandou
veicular no jornal: ao lado de uma foto sua, a chamada “Se você quer um braço ou
uma costela quebrada, ligue para Carlos Gracie no número abaixo...”. 2 Foi Carlos
também quem deu início a outra tradição entre os Gracie, tão importante e
longeva quanto o aprendizado do jiu-jitsu. Como tivesse sua preparação para as
lutas amiúde prejudicada por enxaquecas e inflamações na pleura, para os quais
não encontrava remédio na medicina tradicional de sua época, pôs-se a pesquisar
as propriedades de alimentos e ervas. Desenvolveu assim uma dieta rigorosa,
formulada de acordo com a classificação dos alimentos em diferentes grupos e a
combinação apropriada entre eles, cujo objetivo consistia basicamente em
equilibrar o ph dos ingredientes das refeições, evitando sobretudo o excesso de
acidez.
Ao cuidado com o corpo, o pioneiro do clã Gracie somou a prática da
meditação, através da qual tratava de desenvolver-se também espiritualmente.
Corpo e mente equilibrados, a saúde melhorada, Carlos pôde colocar-se mais à
prova em desafios públicos. É sua filha (e biógrafa) Reyla quem conta:
Carlos sempre foi totalmente contra a associação do jiu-jitsu à violência.
Obviamente que, no início, Carlos botava anúncios nos jornais e desafiava
2
Fonte: Gracie Magazine, edição 78 (julho de 2003), pg. 18.
25
estivadores muito mais musculosos no cais do porto, até porque, na década de 30,
existia a necessidade de firmar uma supremacia e formar uma identidade. Foi
quando começaram os comentários: “Os Gracie são invencíveis. Os Gracie
resolvem na porrada”. (Fonte: Gracie Magazine, edição 94, novembro de 2004,
pg 42; itálicos meus.)
É certo que Carlos teve uma carreira expressiva, e vitoriosa, como lutador;
os números completos de seus embates, contudo, não me foram possíveis levantar.
De qualquer maneira, foi somente com seu irmão Hélio, onze anos mais moço,
que o sobrenome Gracie logrou conquistar fama nacional.
Hélio Gracie transformou o jiu-jitsu que Maeda ensinou a seu irmão Carlos
no que hoje é conhecido no mundo todo por “brazilian jiu-jitsu”. Hélio era um
adolescente franzino, de saúde precária; tinha desmaios tão freqüentes quanto
súbitos, o que levou o médico da família, o Dr. Fábio Carneiro de Mendonça, a
proibi-lo de praticar atividades físicas. “Ninguém sabia o que era. Se eu visse
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sangue, desmaiava; se escutava gemidos, desfalecia; se me emocionasse, também,
cheguei a desmaiar na igreja quando fui rezar”, diz Hélio. 3 Impossibilitado
durante anos de praticar jiu-jitsu com os irmãos, limitava-se a observá-los.
Quando enfim começou a treinar, percebeu que não conseguia executar os
mesmos movimentos e golpes que tanto estava acostumado a ver. Faltava-lhe
força. A limitação física o obrigou a desenvolver um estilo próprio.
Comecei a querer repetir tudo o que o Carlos fazia, mas não conseguia. Então, dei
meu jeito. É como um cara forte que consegue levantar um carro com a mão. Eu
preciso de um macaco. E foi assim que eu criei o jiu-jitsu de hoje. (...) Não foi feito
com inteligência, mas com instinto. É como você sentado, cansa da posição e
descruza a perna. Sem pensar. Da mesma forma, aperfeiçoei a técnica, sem mérito,
mas porque era preciso. Quando descobria um jeitinho, treinava aquilo. (Fonte:
Gracie Magazine, edição 50, marco de 2001, pg.27)
De jeitinho em jeitinho, Hélio foi transformando o jiu-jitsu até fazê-lo
merecer o apelido de “arte suave”. À técnica nos tatames, Hélio adicionava os
rigores de uma vida disciplinada, às vezes até o ponto do exagero – não fumava,
não colocava uma gota sequer de álcool na boca, não praticava sexo que não fosse
para fins de reprodução. Tanta abnegação rapidamente o levou a ocupar lugar de
destaque entre os Gracie. Abriu sua própria academia, primeiro no bairro do
Flamengo, e depois, em sociedade com seu irmão Carlos, na avenida Rio Branco.
3
Fonte: Revista Gracie Magazine, edição 50 (março de 2001), pg. 27.
26
A academia ocupava um andar inteiro de um prédio, chegando a contabilizar cem
aulas particulares por dia (com o auxilio de outros instrutores, como Hélio Vígio,
Armando Wriedt, João Alberto Barreto, Carlson e Robson Gracie) e uma média
de seiscentos alunos por mês. Os kimonos eram fornecidos pela própria academia;
nos finais de semana, o enorme amontoado de pano sujo seguia numa
caminhonete para a casa da família Gracie em Teresópolis, onde duas máquinas
industriais de lavanderia se encarregavam de limpá-los. Hélio controlava a tudo
com mão de ferro, o asseio das instalações e dos kimonos, a pontualidade das
aulas, o desenvolvimento dos alunos, o desempenho de sua equipe de professores.
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“Os donos do Brasil passaram por lá” 4 , diz, sem modéstia.
Se eu pegasse alguém falando: “Fulano, deita”, anotava. “Deita” o cacete! “Sr.
Fulano, faz o favor de deitar?”. Então são pequenas coisas, mas que faziam parte
do método. O aluno tem que se sentir respeitado. Dávamos aulas para presidentes,
ministros de estado. Já pensou: “Deita, Figueiredo?” (Fonte: Revista Gracie
Magazine, edição 51, abril de 2001, pg. 35.)
Nos anos trinta, o Gracie jiu-jitsu prosperava não tanto em função do que
acontecia no interior de suas academias, mas sobretudo em razão do que se
passava fora delas. O sucesso e a reputação da técnica de defesa pessoal associada
ao sobrenome Gracie foi construído por sobre testes públicos, que foram muitos e
diversos – confrontos de luta esportiva, sem golpes traumáticos, lutas oficiais de
vale-tudo ou simplesmente brigas de rua. Hélio estreou publicamente com uma
vitória rápida, obtida com um arm lock (“chave de braço”), sobre o lutador de
boxe Antônio Portugal. Em 1932, o primeiro empate da carreira, uma luta de
cento e dez minutos contra o “gigante” americano Fred Ebert, interrompida pela
polícia, pois era proibido a espetáculos públicos prolongarem-se após as duas
horas da manhã. Empate com sabor de vitória: “Meus cotovelos ficaram pretos
feito a sola de um sapato, de tanto que eu dei na cara dele. Foi aí que eu fiquei
famoso” 5 , relembra Hélio. Mas a memória nem sempre é a conselheira mais fiel.
Antes da luta contra Ebert a fama já havia alcançado os Gracie, num episódio
sangrento.
Aconteceu que Manoel Rufino dos Santos, campeão sul-americano de lutalivre, teria dado uma declaração na qual afirmava que “se não estivesse afastado
4
5
Fonte: Revista Gracie Magazine, edição 51 (abril de 2001), pg. 35.
Fonte: Revista Gracie Magazine, edição 50 (março de 2001), pg. 28.
27
dos ringues, mostraria que os Gracie não eram essas coisas” 6 . A resposta não
tardou. Hélio e seus quatro irmãos pegaram um táxi e foram ao encontro de
Rufino, no Tijuca Tênis Clube.
Cheguei lá, saltei e parti pra cima dele: “Vim te dar a resposta”, e dei-lhe um tapa
na boca. Ele deu um murro, bloqueei, entrei em queda, ele bateu com a base do
crânio no chão. Espirrava sangue pra burro. Quis ficar por cima, mas ele, muito
forte, levantou e saiu correndo, gritando para alguém do clube. Corri, passei e o
puxei, dando outra queda. Depois peguei o braço, teve até que botar platina. Ele
se virou e eu enforquei, quando o Carlos mandou largar, salvando o homem.
(Fonte: Revista Gracie Magazine, edição 50, março de 2001, pg. 31.)
A briga lhes rendeu um processo e, “enquanto aguardava julgamento, Hélio
quase foi impedido de lutar, como noticiam os jornais antes da luta contra Fred
Ebert”. No tribunal, quando indagado se havia contado com a ajuda dos irmãos ao
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massacrar Rufino, respondeu: “Fiz [sozinho], e se quiser que eu prove, faço de
novo, aqui mesmo”. Foi condenado em primeira instância a dois anos e meio de
prisão; seus irmãos, a um ano e meio. Uma aluna de Hélio, de família influente,
foi interceder junto a Getúlio Vargas. Pediu-lhe a suspensão da pena, mas
o presidente disse que não nos podia indultar se a gente estivesse na rua. E a
polícia não nos prendia, tinha medo, mas acabamos nos apresentando. Foi a
maior mordomia na prisão, as portas abertas, recebíamos visita o dia inteiro, e
nossa comida entrava e saía. Regalia total. Os Associados fizeram uma
reportagem: “Primeira vez que se faz entrevista dentro da prisão”. (Fonte: Revista
Gracie Magazine, edição 50, março de 2001, pg. 31.)
Passaram somente onze dias na cadeia. Vargas lhes concedeu o indulto logo
após a confirmação da sentença pelo Supremo Tribunal Federal. Tempos depois,
Hélio admitiria: “Foi besteira. Mas nosso temperamento era fogo”. 7
O temperamento de Hélio, contudo, por mais explosivo e de prontidão
constante para a luta que fosse, não o levava a brigar na rua por razão pouca ou
nenhuma. Hélio fazia questão de brigar somente quando a arte marcial que havia
6
Fonte: Revista Gracie Magazine, edição 50 (março de 2001), pg. 31.
Fonte: Revista Gracie Magazine, edição 50 (março de 2001), pg. 31. Nesta mesma edição, há um
outro caso que ilustra bem a disposição de Hélio Gracie para a luta. Conta que, na praia, ficou
encarando um sujeito “com quase dois metros”. O tal sujeito se aproximou, perguntou o quê Hélio
estava olhando e, em seguida, disse que gostaria de lhe quebrar a cara. “Então por que não
quebra?”, foi a resposta. Iniciada a briga, o grandalhão rapidamente foi levado ao chão e
dominado. “Peguei a barba dele, puxei e disse: vou mostrar que você, com essa barba toda, é
viado!”. Hélio encaixou um estrangulamento, o adversário desmaiou. Depois de acordado,
perguntou-lhe: “Já ouviu falar no Hélio Gracie?”
7
28
criado fosse desafiada,
desdenhada, ou quando a honra da família se visse
aviltada. Sua luta era para provar a superioridade do Gracie jiu-jitsu, para torná-lo
conhecido e respeitado como a mais eficiente de todas as artes marciais, aquela
que permite ao fraco derrotar o forte; na verdade, dedicou a vida inteira a tal
tarefa. Um antigo conhecido de Hélio, hoje um nonagenário como ele, conta que
mais de uma vez viu o Gracie fazer uso de sua notoriedade como lutador para
resolver uma situação conflituosa sem o emprego da violência:
Estávamos num baile no Teatro Municipal, e a uma certa altura um jovem agarrou
uma moça pelos cabelos. Cismou de dar umas bitocas nela. Mas a moça, coitada,
não queria conversa, tentava se desvencilhar, mas não conseguia porque o rapaz
era mais forte. Vendo aquela cena, o Hélio foi lá e tirou as mãos do camarada de
cima da moça, e em seguida deu um cartão com o nome e o endereço da academia
Gracie, se não me engano na [avenida] Rio Branco. O camarada deu meia volta e
saiu de fininho.
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Em outra ocasião, Hélio salvara seu pescoço:
Uma vez eu dei um encontrão num camarada, sem querer, eu não tinha a intenção
de esbarrar, o copo na minha mão voou e foi vinho para tudo quanto era lado na
camisa dele. O camarada se zangou, imagina, tomou um banho de vinho numa
festa. E veio tirar satisfações comigo. Eu pedi desculpas, disse que foi sem querer,
mas ele não aceitou minhas desculpas. Ele queria briga. O Hélio estava do meu
lado, viu tudo, e quando o rapaz, que aliás era muito mais alto e parrudo do que
nós dois, fez que ia me dar um safanão, o Hélio se colocou na frente dele, e puxou
o cartãozinho do bolso da camisa e disse: “Se quiser brigar, me procura lá na
Academia, o endereço está aí”. O grandalhão ficou sem reação, olhou para o
lado, para o outro, e saiu andando.
Não foram poucas as vezes em que o jiu-jitsu dos Gracie teve sua eficiência
colocada à prova 8 . Entre os inúmeros desafios na carreira de Hélio, sobressaem-se
os confrontos contra os japoneses Kato e Kimura, em 1951, e contra seu ex-aluno
Waldemar Santana, em 1955. As lutas contra os japoneses ocorreram por ocasião
8
A este respeito, veja-se o seguinte depoimento de Hélio: “Toda hora vinha gente me desafiar,
mas eu não lutava contra qualquer um em público. O cara vinha e eu surrava dentro da academia.
Eles perdiam rápido, não sabiam nada de jiu-jitsu. Eu dava pontapé na bunda, ridicularizava. E
fazia tudo de graça, para me convencer da superioridade do jiu-jitsu. (Fonte: Revista Gracie
Magazine, edição 50, março de 2001, pg 29; itálicos meus.) Carlson, seu sobrinho, relata o mesmo
expediente: “...sempre aparecia gente para nos desafiar. Inclusive, ficávamos sempre lá na
academia de prontidão, eu, Hélio Vigio, João Alberto, e sempre aparecia alguém. ‘Quem vai pegar
sou eu’, ‘Não, sou eu’, tinha até briga para ver quem ia lutar. (...) No mesmo dia às vezes a gente
fazia duas ou três lutas, eu torcia sempre para aparecer alguém.” (Fonte: Revista Gracie Magazine,
edição 109, março de 2006, pg 54.)
29
da passagem da delegação japonesa de judô no Brasil. Kato, o segundo melhor
lutador do Japão, lutou duas vezes com Hélio. O primeiro confronto, travado nas
regras do jiu-jitsu esportivo no Maracanã, terminou em empate; o segundo,
também sob as mesmas regras, ocorrido dias depois no estádio do Pacaembu,
acabou com Kato desacordado, vítima de um estrangulamento. “Foi a maior
emoção da minha vida, pois constatei que o meu jiu-jitsu era superior ao dele”,
disse o Gracie aos jornais da época. Faltava somente enfrentar Kimura, então o
campeão absoluto de judô japonês, o que acabaria acontecendo a 23 de outubro
daquele mesmo ano. Kimura, vinte e cinco quilos mais pesado, afirmou que se
Hélio lhe resistisse por mais de três minutos, poderia se considerar campeão. A
luta, acompanhada por cerca de vinte mil pessoas no estádio do Maracanã, durou
treze minutos. Ainda assim, vitória do japonês: pego numa chave de braço
certeira, Hélio recusou-se a “bater”, isto é, a dar os três tapinhas sinalizando
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desistência, e teve o braço fraturado, obrigando o seu córner a jogar a toalha.
A luta contra Waldemar Santana deveu-se a uma desavença profissional.
Ainda um aluno da academia Gracie, Santana fora convidado a lutar no Palácio de
Alumínio, lugar famoso por suas “marmeladas”, combates previamente
arranjados, combinados. Santana garantiu que a luta seria “para valer”, mas Hélio
temia que o sobrenome Gracie ficasse associado àquele tipo de evento – e
portanto manchado naquilo que lhe era mais caro. O aluno contrariou o mestre e
decidiu lutar assim mesmo; acabou expulso da academia. Então, “um jornalista
malandro arrancou dele uma declaração de que eu não era aquilo tudo que se
pensava. Eu não gostei, tomei satisfação, ele não desmentiu e acabamos brigando,
de um dia para o outro.” 9
O dia foi 24 de maio de 1955. Hélio tinha quarenta e dois anos, sessenta
quilos e uma infecção no ouvido que lhe subia uma febre de trinta e oito graus;
Santana, oitenta e oito quilos e o esplendor de seus vinte e três anos. Trocaram
socos, chutes, cotoveladas, joelhadas, cabeçadas, torções e estrangulamentos por
três horas e quarenta minutos ininterruptos, naquele que é até hoje o mais longo
vale-tudo de que se tem notícia. Ao final, um exausto Hélio “apagou”. O desfecho
da luta permanece nebuloso, até para o próprio Hélio: ora afirma-se que
Waldemar o teria acertado com um pontapé, ora que ele simplesmente caiu
9
Fonte: Revista Gracie Magazine, edição 51, abril de 2001, pg 36.
30
desmaiado, sozinho. O certo é que, tão logo a toalha foi jogada, o jovem Carlson
invadiu o ringue e ergueu nos ombros o tio desacordado. Ali mesmo prometeu
vingança: “É o seguinte, agora o negócio mudou de figura, bicho. Não tenho nada
contra você, sou seu amigo, mas vou ter que te pegar. No ringue, e lá não tem esse
negócio, é pau puro. Vou procurar te arrebentar. Se prepara que eu vou entrar pra
te quebrar.” 10
No dia seguinte ao combate, o patriarca Carlos assim explicava a derrota do
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irmão mais novo ao jornal O Globo:
... desejo, a fim de que não sejam exploradas as minhas declarações, afirmar de
início que Waldemar lutou muito bem e que sua vitória não poderá sofrer
qualquer contestação. (...) Entretanto, é preciso que se saiba que Hélio entrou no
ringue apenas por uma questão de honra, sem ter dado sequer um treino [Hélio já
era então um lutador aposentado; dedicava-se somente ao ensino de jiu-jitsu].
Meu irmão entendeu que não poderia fugir de uma luta contra um ex-aluno. Não
se tratava de vencer, e sim de dar provas de que um Gracie não foge a qualquer
desafio. Hélio quis demonstrar que a covardia é um estado de espírito que jamais
transpôs as portas de nossa academia. (Fonte: Revista Gracie Magazine, edição
51, abril de 2001, pg 37; itálicos meus.)
Foi o próprio Carlos quem sugeriu o nome de João Alberto Barreto,
instrutor da academia Gracie na Rio Branco, para a revanche contra Santana.
Contudo, Barreto sabia que a tarefa não era propriamente sua, não porque lhe
faltasse qualificação, mas porque estavam em jogo o nome e a honra dos Gracie:
“Não tinha cabimento eu lutar contra o Valdemar. Era um assunto que alguém da
família teria que resolver. Mas só de o Carlos sugerir o meu nome, o Carlson
passou a treinar” 11 . Chegava, enfim, a hora de alguém assumir o posto de Hélio
como o “primeiro homem” da família Gracie.
Carlson lutou cinco vezes com Valdemar Santana. Ganhou uma, empatou as
outras quatro, nas quais alega haver levado certa vantagem, não obstante o
resultado oficial. Apenas cinco meses depois da derrota de Hélio, o primeiro
confronto; travado nas regras do jiu-jitsu, terminou sem vencedores. “Se perco, a
família Gracie tinha acabado” 12 . Carlson só venceria o rival no ano seguinte, num
vale-tudo de trinta e nove minutos. Relembrando a luta, diz que “Ele [Santana]
perdeu porque não conseguiu voltar mais, já tava massacrado, com a cara enorme,
10
Fonte: Revista Gracie Magazine, edição 100, março de 2006, pg 52.
Fonte: Revista Gracie Magazine, edição 109, março de 2006, pg 36.
12
Fonte: Revista Gracie Magazine, edição 109, março de 2006, pg 52.
11
31
sangrando por tudo quanto era lado, e o Carlos Renato, que era o segundo dele,
jogou a toalha, porque senão ele ia morrer” 13 . Enfrentaram-se pela última vez em
1970, Carlson já aposentado. Novamente um vale-tudo. Novamente um empate.
Entretanto, Carlson fez mais do que carregar nos ombros, ou punhos, o
cartaz dos Gracie durante as décadas de cinqüenta e sessenta, e manter intocado o
prestígio da arte marcial que desenvolveram. Percebendo a (ainda incipiente)
popularização do jiu-jitsu como esporte, o que deixava em segundo plano as
técnicas de defesa pessoal, Carlson passou a dar aulas em grupo – em termos
metodológicos, quase uma heresia na família. Ensinava o que fosse necessário
para competir, e vencer, de quimono. Conseguiu, com isso, difundir o jiu-jitsu
esportivo e formar um time de atletas que dominaria as competições de jiu-jitsu
por cerca de duas décadas. Talvez não contasse com a aprovação de seu tio Hélio,
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pois este, nas palavras de João Alberto Barreto,
...sempre encarou o jiu-jitsu como uma ideologia, a luta de o fraco vencer ou pelo
menos não perder do forte. (...) Por isso, ele exigia o cumprimento de um sistema
completo, no qual a pessoa tinha que se defender, derrubar – ou ser derrubada, e,
nesse caso, raspar – passar a guarda, montar e finalizar. Já o Carlson, não. Para
ele, o jiu-jitsu era um jogo. O importante era vencer. Se o aluno então for pior em
pé que o adversário, puxa para o chão e vence da guarda. Dane-se o sistema. 14
(Fonte: Revista Gracie Magazine, edição 109, março de 2006, pg 44.)
De qualquer forma, foi nos tatames da academia Carlson Gracie que o jiujitsu esportivo começou a ganhar as feições que conserva até hoje. Mas a saga dos
Gracie não acaba em Carlson. Rolls, tido como imbatível em lutas de quimono no
final dos anos setenta, poderia ter se firmado definitivamente como o melhor da
família, não fosse a morte prematura em junho de 1982. Nos anos noventa, Royce
fez história ao sagrar-se campeão das três primeiras edições do Ultimate Fighting
Championship nos EUA, torneio que deu projeção internacional ao vale-tudo em
geral e ao jiu-jitsu brasileiro em particular. Rickson, apontado de forma quase
unânime como o mais técnico lutador de jiu-jitsu que já houve, amealhou fama e
13
Fonte: Revista Gracie Magazine, edição 109, março de 2006, pg 54.
O leitor não tem a obrigação de conhecer os termos técnicos do jiu-jitsu; portanto, cabe explicálos brevemente. “Raspar” é o movimento de inverter o posicionamento dos lutadores: o que está
por baixo “vira o jogo”, passando a ficar por cima. “Passar a guarda” consiste em livrar-se das
pernas do oponente, para na seqüência imobilizá-lo lateralmente. “Montar” é o ato de sentar sobre
o peito do adversário, em geral apoiando-se os dois joelhos no chão, posição que é extremamente
vantajosa. “Finalizar” é encaixar um golpe de modo a fazer com que o adversário não tenha outra
opção a não ser sinalizar a desistência (a finalização encerra a luta). Explicarei detalhadamente a
dinâmica de uma luta de jiu-jitsu, e seu sistema de pontuação, mais adiante.
14
32
fortuna em eventos de vale-tudo no Japão, onde é reverenciado como um mito das
artes marciais. (Ryan, mais novo, ganhou as páginas dos jornais em função das
brigas de rua em que amiúde se envolvia no Rio de Janeiro; posteriormente, foi
lutar vale-tudo no exterior.) E há também Royler, Renzo, Roger – a lista é
extensa.
Mas todos estes nomes, e as histórias que evocam, dizem respeito ao
segundo e radicalmente distinto momento do jiu-jitsu brasileiro, marcado pela
acirramento da rivalidade entre academias nos campeonatos e pela ascensão do
vale-tudo à condição de esporte altamente lucrativo, com eventos ganhando escala
e projeção em todos os continentes. Convém abordar tudo isso em uma nova
seção.
Antes, porém, uma última observação.
Ao leitor certamente não haverá passado desapercebido o fato de que, até
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aqui, a maior parte de minha pesquisa esteve fundamentada numa única fonte,
qual seja a revista editada pela família Gracie. Fonte esta que opera não apenas
como um suporte da memória da família Gracie – ou um “lugar de memória”, para
tomar emprestado o conceito de Pierre Nora (1993) – , mas concorre também na
construção de uma aura mitológica em torno de sua história e feitos. O tom autocongrulatório é evidente; as páginas recheadas de elogios, que inúmeras vezes
beiram o ufanismo ingênuo 15 , não escondem a intenção de cristalizar uma imagem
positiva dos lutadores Gracie e da arte marcial que criaram.
Justamente por isso a opção: queria apreender o discurso dos Gracie, ou
seja, saber o quê e como os criadores e difusores do jiu-jitsu falam publicamente
sobre si e sua técnica de luta. Mais: interessava-me o uso que os Gracie fizeram de
sua própria história, a maneira através da qual se apropriaram dos acontecimentos
de sua biografia. Com efeito, as questões que importam verificar
remetem menos ao conhecimento do verdadeiro do que ao do verossímil. Explicome: um fato pode não ter acontecido, contrário às alegações de um cronista. Mas
o fato de ele ter podido afirmá-lo, de ter podido contar com a sua aceitação pelo
público contemporâneo, é pelo menos tão revelador quanto a simples ocorrência
de um evento, a qual, finalmente, deve-se ao acaso. A recepção dos enunciados é
mais reveladora para a história das ideologias do que sua produção; e, quando um
15
Seria desnecessário apresentar uma lista de exemplos que o comprovam. Basta apenas um: “A
ciência do esporte ainda engatinhava. Mas Hélio Gracie, um desses fenômenos que, como Da
Vinci e Einstein, viveu em um tempo anterior ao que lhe conviria, já lutava por horas”. (Fonte:
Revista Gracie Magazine, edição 50, março de 2001, p.28.)
33
autor comete um engano ou mente, seu texto não é menos significativo do que
quando diz a verdade; o que importa é que o texto possa ser recebido pelos
contemporâneos, ou que seu produtor tenha acreditado nele. Nessa perspectiva, a
noção de “falso” é não-pertinente. (Todorov, 2003 pp.74-5; grifo meu)
Neste primeiro momento, era importante compreender o estabelecimento da
idéia de superioridade do jiu-jitsu e do ethos guerreiro (Elias, 1994) 16 a ela
associado. É sem dúvida bastante significativo que o primeiro anúncio ou
propaganda de uma academia Gracie tenha sido um desafio aberto – “Se você
quer ter um braço ou uma costela quebrada, ligue para Carlos Gracie...” –, e não
um convite ao aprendizado de uma técnica de auto-defesa, algo como “Se você
não quer ter um braço ou uma costela quebrada, ligue...” Havia, como bem
resumiu Reyla, filha de Carlos, a necessidade de “firmar uma supremacia e formar
uma identidade”. A ordem dos fatores aqui me parece apropriada: a afirmação (e
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confirmação) da superioridade do jiu-jitsu em relação a todas as outras artes
marciais teve um papel fundamental na formação da identidade não apenas dos
lutadores da família Gracie, mas sobretudo da atmosfera de suas academias e
aulas. E a afirmação desta superioridade só poderia ser feita, literalmente, na
porrada.
Nos muitos depoimentos publicados na revista Gracie Magazine, fica
bastante evidente que o brazilian jiu-jitsu nasceu com uma obsessão: provar-se a
arte marcial que permite ao fraco vencer o forte; a técnica que, de modo
espetacularmente mais eficaz que qualquer outra, não só anula a força do
adversário como tira proveito dela para liquidá-lo. Tal necessidade de se fazer
reconhecer como uma técnica imbatível de defesa pessoal forneceu os subsídios
necessários à disseminação, no interior das academias Gracie e mesmo em seus
ambientes familiares, de uma atmosfera permeada por valores ligados à virilidade
e à disposição para a luta. A obsessão de se provar superior favoreceu a criação de
um ethos guerreiro, pois era sempre preciso estar pronto para brigar contra
qualquer adversário, em qualquer situação. Toda a idéia de honra dos Gracie está
atravessada por esta obsessão – e eles não hesitaram uma única vez em colocar-se
16
Em “O Processo Civilizador”, Elias emprega o conceito de ethos guerreiro para dar conta do
conjunto de disposições (psicológicas e sociais) que favorecia ou mesmo estimulava, entre a
nobreza européia da Idade Média, um comportamento orientado pela expertise nas artes da guerra.
Nessa perspectiva, a inclinação para o confronto corporal violento era antes uma virtude cultivada,
um traço distintivo, do que uma necessidade puramente instrumental. É sobretudo a este aspecto –
o manejo da violência como virtude, que confere distinção – ao qual estarei me referindo ao
utilizar aqui o conceito de ethos guerreiro.
34
à prova para defendê-la. Não é difícil perceber aí um sistema que se retroalimenta:
a necessidade de provar superioridade fomenta um ethos guerreiro, que se
converte em uma prática de luta que consagra a eficácia da técnica, técnica esta
que só pode se manter consagrada através de mais lutas, que por sua vez exigem a
manutenção constante de um ethos guerreiro.
2.2
Sem quimono, com quimono, sem quimono: a transformação do jiujitsu
Nos anos oitenta, ao matricular-se na academia Gracie do Humaitá o aluno
recebia de presente um exemplar do livro “Hélio Gracie, um super-homem
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brasileiro”. Na capa, por sobre tons avermelhados, uma foto do mestre Hélio.
Dentro, histórias de luta e heroísmo. Hélio Gracie, contava um capítulo do livro,
havia desafiado até um mar infestado de tubarões para salvar a vida de um
homem.
Nos tatames da Gracie Humaitá, além de golpes, imobilizações,
estrangulamentos e torções, ensinava-se que um homem deveria sempre olhar os
outros nos olhos, e que o cotovelo era o osso mais duro do corpo, o mais
apropriado portanto para machucar um oponente em caso de briga. Ensinava-se
também os princípios básicos da dieta Gracie, e havia sempre uma pilha de
folhetos instrutivos prontos a serem distribuídos, caso o aluno demonstrasse
algum interesse. A metodologia de ensino aplicada ainda era aquela desenvolvida
por Hélio: aulas particulares de meia-hora, ministradas por seu filho Rolker, nas
quais aprendia-se a dar quedas (sendo a “baiana” 17 a mais utilizada), a sair de
gravatas e puxões de gola de camisa, e, é claro, a imobilizar e finalizar um
adversário no chão. No conjunto, as aulas formavam um programa completo de
defesa pessoal. 18
17
A “Baiana” consiste num movimento rápido de queda, no qual agarra-se, com as duas mãos, a
parte de trás dos joelhos do oponente, jogando-lhe as pernas para cima e para o lado ao mesmo
tempo, fazendo com que caia de costas no chão.
18
Por motivos que escapam à minha memória, deixei de freqüentar a academia Gracie do Humaitá
ainda na faixa-branca. Depois fui aprender judô e, na seqüência, caratê. Em vão: ambos não me
interessaram por muito tempo, e acabei voltando aos tatames de jiu-jitsu.
35
Ao reencontrar os tatames de jiu-jitsu (mas em outra academia) alguns anos
mais tarde, deparei-me com uma rotina de treinamento totalmente distinta. As
aulas, em grupo, duravam duas horas, e praticamente toda a primeira metade era
dedicada a extenuantes exercícios físicos. Corrida em volta do tatame,
alongamentos, polichinelos, agachamentos – e a pior parte, sessões de abdominais
intercaladas com séries de flexões de braço.
“Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove..”, contava um aluno.
“Dez!”, gritavam todos juntos.
“Onze, doze...”
E era sempre assim, até completarem-se setecentas, oitocentas ou mesmo
mil abdominais, dependendo do humor do professor. A cada centena cumprida,
dez ou vinte flexões de braços, ou ainda “mergulhos”, que é uma espécie de
flexão de braço, apenas mais exigente. O tipo de abdominal variava – com os pés
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rente ao chão, subindo e descendo o quadril, abrindo e fechando as pernas,
agarrando os joelhos... –; o que não variava nunca, porém, era a disposição do
professor em fiscalizar o cumprimento do exercício por todos os alunos. Quem
fosse surpreendido cabulando abdominal ou flexão de braço geralmente era
punido com uma “chicotada” de faixa ou vara de madeira. E quando percebia que
o cansaço começava a nos vencer a todos, não raro o professor se exaltava:
“O que vocês são?”
“Guerreiros!”, respondíamos num berro uníssono.
“Mais alto, porra!”
“Guerreeeirooos!”
“Quatrocentos e vinte e um, quatrocentos e vinte e dois...”
Terminado o alongamento e o condicionamento físico, tinha início a parte
técnica. O professor requisitava o auxílio de um aluno, quase sempre entre os mais
graduados, e colocava-se no centro do tatame. Exigia atenção aos detalhes e
silêncio absoluto. Ensinava uma “posição” demonstrando-a no corpo do aluno:
“Segura a manga do quimono dele, a outra mão vai na gola, mas firme no peito,
que é para o adversário não vir pra cima; aí fica em pé, solta a mão da gola,
agarra as duas pernas por baixo, uma mão na calça do quimono dele e a outra no
fundo da gola, escolhe um lado, joga as pernas e passa a guarda amassando o
gogó dele. Estabilizou a imobilização, três pontos.”
36
Toda aula aprendíamos uma posição ou golpe novos, e toda aula éramos
lembrados de que “passagem de guarda” valia três pontos, “joelho na barriga”,
três pontos, “pegada pelas costas”, quatro pontos, “montada”, quatro pontos,
“raspagem”, dois pontos. Também não nos deixavam esquecer as datas dos
campeonatos estadual e brasileiro de jiu-jitsu, e que as lutas na faixa azul duravam
cinco minutos. Em suma, estávamos sendo treinados para ser atletas de jiu-jitsu,
para competir de quimono.
E treinar era o que mais se fazia na academia. Após o aquecimento e a
prática da posição ensinada no dia, chegava a hora do treino propriamente dito. O
professor “casava” as duplas, isto é, escolhia quem ia lutar contra quem. Em geral,
eram quatro duplas lutando ao mesmo tempo no tatame, por cinco ou seis
minutos; o exíguo espaço não permitia mais do que isso. Ao todo, cada aluno
treinava quatro ou cinco vezes por aula. Às vezes, o professor anunciava “hoje nós
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vamos fazer um ‘intervalinho’”, que era a prática de treinos contínuos, sem
descanso ou pausa: tão logo acabava um treino iniciava-se outro, até o corpo não
responder mais ou o professor achar que todos estavam suficientemente exaustos.
“O que vocês são?”
“Guerreiros!”
E então estávamos liberados para beber um pouco de água.
Sem dúvida, a vasta maioria de nossos treinos era de quimono, voltado para
competição. Mas acontecia, ainda que com freqüência incerta, de termos aula de
defesa pessoal, ou melhor, de ataque pessoal. Nestas ocasiões, tirávamos a parte
de cima do quimono, o “paletó”, restando somente a calça; alguns ficavam só de
sunga. Eram três os tipos de treinamento: “taparia”, “bloqueio” e “baile funk”. A
“taparia” era uma espécie de “vale-quase-tudo” onde só era permitido atingir o
oponente com a mão aberta. Soco, cotovelada, chute, cabeçada, joelhada, nada
disso valia, mas você tinha permissão para reunir o máximo de suas forças e
explodir um sonoro tapa na cara de seu adversário. Podia não machucar tanto
quanto um golpe de mão fechada, mas com certeza era igualmente
desmoralizante. As contusões, quando haviam, não preocupavam. Não me lembro
de ninguém saindo seriamente machucado desses treinos. Bem mais freqüente, no
entanto, era ver alunos terminando as aulas visivelmente chateados com o fato de
haverem apanhado na cara; vez por outra, via-se alguém com os olhos cheio
d’água, tentando a todo custo segurar o choro.
37
Tinha “taparia”, não era sempre, mas tinha. E tinha também, não sei se você
conhece, um negócio chamado “bloqueio”. Tipo, era um cara com luva de boxe, e
você tinha que derrubar o cara e tal. O cara de luva de boxe podia comer na
porrada, vai enfiando a porrada até o outro botar pra baixo. Botou pra baixo,
pára, levanta. É um treino pra você pegar o tempo de entrar na “baiana”, de
agarrar e levar pro chão. (Eduardo, 30 anos, ex-praticante de jiu-jitsu.)
Já o “baile funk” era similar a uma “taparia”, só que envolvendo mais
pessoas. Tinha este nome porque simulava uma pancadaria entre “galeras”: o
professor colocava metade dos alunos de um lado, metade do outro, e a briga
começava.
No meu entender, hoje é bastante claro que práticas como a “taparia”, o
“bloqueio” e o “baile funk” eram menos um tipo de treinamento (no sentido de
aperfeiçoamento técnico) do que um ritual de masculinização. Afinal, ali estavam
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adolescentes experimentado situações de confronto corporal em um ambiente
onde o significado da masculinidade – o “ser homem” – encontra-se
inextricavelmente atrelado à idéia de gerir o próprio medo, encarar a briga,
superar a dor que a acompanha e, se possível, vencer a ambas. Poder-se-ia
entender a “taparia” como um rito de passagem no sentido que lhe dá Victor
Turner (1974), mas isso exigiria algumas ressalvas, entre elas a de que as três
fases que constituem o rito de passagem (separação, liminaridade e agregação)
não estariam assim tão claramente delineadas. Nesse registro, é possível entendêlas não como um rito de passagem per se, mas como parte integrante de um rito de
passagem mais amplo e abrangente, qual seja, a formação da identidade
masculina.
Volta e meia tinha “taparia”, mas isso era mais raro, pelo menos aonde eu
treinava. Tinha alguns tipos de “taparia”. Às vezes era um contra um, nego tirava
o quimono, um contra o outro, e a galera botando pilha em volta. E às vezes era
generalizado, todo mundo sem quimono e todo mundo dando porrada em todo
mundo, tapa na cara, aí juntava neguinho, tapa na cara. Isso aí eu acho que é
nego querendo fazer o outro virar macho. É, tipo assim, dando porrada você
aprendia a apanhar, aprendia a se virar e a sair de situações mais difíceis. Mas,
normalmente, a “taparia” era sinistra. Tomava cada bordoada, meu amigo...
(Bruno, 29 anos, ex-praticante de jiu-jitsu.)
Por outro lado, seria exagerado ver no conjunto de tais práticas uma
iniciação, pois esta, na definição de Mircea Eliade, “equivale a uma mudança
38
básica na condição existencial; o principiante emerge de sua provação investido
de um ser totalmente diferente daquele que possuía antes da iniciação; ele terá se
tornado outro” (apud Thompson, 1991: 36; tradução minha 19 ). Talvez fosse
melhor então considerá-las como uma das muitas “pseudo-iniciações” da
masculinidade em sociedades ocidentais contemporâneas (Moore e Gillette, 1992)
– as outras seriam, por exemplo, o serviço militar, a iniciação sexual com uma
prostituta e os frequentemente violentos rituais de batismo de novos integrantes de
gangues urbanas, nos quais o abuso de álcool e drogas é recorrente.
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But these pseudo-initiations will not produce men, because real men are not
wantonly violent or hostile. Boy psychology is charged with the struggle for
dominance of others, in some form or another. And it is often caught up in the
wounding of self, as well as others. It is sadomasochistic. Man psychology is
always the opposite. It is nurturing and generative, not wounding and destructive
(Moore e Gillette, 1992: 45)
De qualquer maneira, é certo que a “taparia” ajudava não apenas na
construção do homem através da agressividade, mas também na fabricação de
uma idéia de masculinidade mensurada pela capacidade de vencer, de triunfar
sobre o oponente (Brittan, 1989). Um faixa-preta de vinte e oito anos, hoje
instrutor de jiu-jitsu, recorda-se daquelas ocasiões:
Pois é, “taparia” rolava, rolava também de um cara ficar com luva de boxe e
enfiar a porrada, o cara de luva só podia bater e o outro só podia se defender,
tinha que finalizar. E “baile funk”, o pau comia, porrada de mulão [muitas
pessoas] contra mulão. Cheguei em casa uma vez com o olho desse tamanho, não
contei pra minha mãe nem nada, disse que tinha sido jogando bola. Porra, eu
voltei pra casa várias vezes chorando... Mas no dia seguinte a piranha tava lá,
apanhando de novo. (André, 29 anos, faixa preta e professor de jiu-jitsu.)
Começamos assim a vislumbrar a atmosfera no interior de uma academia de
jiu-jitsu no início dos anos noventa. Mas há outros dados que merecem atenção.
Ao treinamento sempre exaustivo e às vezes brutalizante somava-se uma
informalidade incomum no mundo das artes marciais. Em geral, o ensino e prática
de uma arte marcial são caracterizados por uma dimensão que se poderia chamar
ritualística. No início e no final de toda aula de caratê, os alunos devem ficar de pé
19
No original: “Initiation is equivalent to a basic change in existential condition; the novice
emerges from his ordeal endowed with a totally different being from which he possessed before his
initiation; he has become another”.
39
e, juntos, revenciarem o mestre; ao entrar e sair de um dojô de judô, um aluno
deverá reverenciar Jigoro Kano (haverá seguramente uma foto ou pôster
pendurado na parede); e assim por diante. O treino de jiu-jitsu, ao contrário, era (e
ainda é, como veremos) atravessado por regras e obrigações rituais mínimas. Não
havia, uma separação hierárquica tão fortemente delimitada entre alunos e mestre,
tampouco a exigência de reverenciá-lo ritualmente. E, mais importante, não havia
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uma “filosofia” por trás do jiu-jitsu.
Eu acho que faltou.. A maioria das artes marciais vem com uma rigidez de ensino
grande. Cheio de respeito, de uma filosofia. O jiu-jitsu, não, o jiu-jitsu não tem
nada disso. Você entra no tatame e não tem cumprimento, o que é uma coisa
bacana até, entre aspas, porque tem muito a ver com o Rio de Janeiro, é uma coisa
muito informal. Tem muito professor de jiu-jitsu por aí que os alunos mandam
tomar no cu, dão tapa na cabeça, quer dizer, não respeitam o cara. Jogavam
brigadeiro na cabeça dele. Faltou uma cumplicidade entre mestre e aluno. De
repente, se não fosse isso, não tinha rolado toda essa onda de briga. Porra, o que
eu já escutei de coisa, professor que “apagava” aluno só de sacanagem... O
professor chegava e dizia “vem cá, vou te mostrar uma posição”, aí pegava,
apertava o pescoço do aluno e “apagava” ele. (Marcos, 31 anos, ex-praticante de
jiu-jitsu.)
Nesse ponto, devo confessar minha surpresa. Não com o que foi narrado
pelos entrevistados – o que se passava no interior de uma academia de jiu-jitsu
naquela época, já o sabia por experiência própria –, mas sim pelo fato de eles o
terem feito de forma tão sincera, despudorada. Esperava ouvir depoimentos mais
“corporativistas”, pois tratavam-se de pessoas com um longo histórico de
relacionamento com o jiu-jitsu. Felizmente, não foi o que ocorreu:
Você vê o judô, que é uma coisa mais rigorosa. Você cumprimenta o juiz, o
adversário, o dojô, você pode perder a luta, pode estar puto, mas quando sai do
dojô, tem que cumprimentar todo mundo de novo. No jiu-jitsu é aquela bagunca,
aquela zona, e tal tal tal, e acho que isso foi muito porque rolou uma prostituição
da faixa preta. Claro, quando você começa a distribuir faixa preta pra qualquer
um, porque ganhou meia dúzia de campeonato, esse cara pode até ter técnica boa,
mas ele não tem ainda uma cabeça boa. Na minha visão, ele não pode receber
ainda essa autoridade, esse poder, de dar aula e ser exemplo pra outras pessoas.
Por isso vários saíam brigando. O Rickson [Gracie] que é o Rickson brigou várias
vezes na rua, mas ele brigava com o Hugo Duarte [da luta-livre], era uma
rivalidade... E era uma coisa meio de marketing, brigavam na rua pra depois
marcar um vale-tudo, que ainda tava todo mundo no começo, tinha um teste entre
as artes marciais. Então eu acho que faltou naquela época uma federação por trás
aí, pra coordenar quem poderia ter a faixa-preta, pra penalizar os que fizessem
alguma coisa, que queimassem o nome. Tinha que ter alguma legislação. “Você é
faixa preta e brigou na rua? Dá aqui a faixa-preta. Você não tem mais licença pra
dar aula no Rio de Janeiro”. E aí beleza, o cara vai pensar duas vezes antes de
40
brigar. Agora, o cara vive saindo na porrada na rua, fica famoso, vira ídolo, e vai
ganhar mais aluno... Porra, por que ele não vai brigar? Claro que ele vai brigar.
(Túlio, 34 anos, ex-praticante de jiu-jitsu.)
Merece atenção esta “prostituição da faixa preta” à qual se refere o
entrevistado acima. Outros ex-praticantes de jiu-jitsu argumentaram algo
semelhante, embora não exatamente nos mesmos termos: falavam de uma falta de
rigor na hora de graduar um praticante com uma faixa preta20 . Nessa perspectiva,
a “prostituição da faixa preta” ou a “ausência de rigor” em sua distribuição é
absolutamente coerente com a “falta de uma filosofia” que, segundo os praticantes
de jiu-jitsu, caracterizaria esta arte marcial. De um modo geral, o ensino do judô,
do caratê e demais artes marciais se faz acompanhar não apenas de obrigações
rituais que reforçam a observação do respeito e da hierarquia, mas também do
ensino de uma “filosofia” de não agressão, de respeito ao próximo. A comparação
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é inevitável: como o jiu-jitsu não dispõe de semelhante pedagogia, diz-se que ele
não “tem uma filosofia”. Ocorre que, se olhada com cuidado, esta ausência de
filosofia revela-se na verdade uma filosofia em si mesma – ou melhor, a filosofia
da eficiência. Ora, então não acabamos de ver, na história do estabelecimento do
jiu-jitsu pelas mãos da família Gracie, na relação entre a necessidade de provar a
superioridade da técnica e o ethos guerreiro que ela engendra, um sistema que
alimenta a si próprio? Nada mais natural, portanto: uma arte marcial balizada pela
obsessão pela eficiência só poderia ter como parâmetro para a gradução da faixa
preta a própria eficiência. Retidão de caráter, maturidade emocional, nada disso é
requisito fundamental quando se erige como valor maior a competência em
subjugar fisicamente um adversário. Não haveria pois contradição alguma no fato
de que o critério utilizado para a coroação de um lutador com a faixa-preta fosse o
bom desempenho em campeonatos ou brigas de rua:
A: Você lutou jiu-jitsu durante quanto tempo?
Marcos: Fiz uns oito anos de jiu-jitsu.
A: Então você chegou até a faixa marrom ou preta?
20
Veja-se, por exemplo, a fala de outro entrevistado: “A forma como devia ser ensinada devia ser
rigoroso. Tinha que ter mais respeito, uma faixa preta só pode ser dada se a pessoa tem
responsabilidade, não podia ser dada pra um cara que fica brigando na rua. A faixa preta deveria
ser dada não só porque o cara é bom tecnicamente, mas quando o cara já ta pronto pra ser um
professor, já aprendeu com a vida e tal. Às vezes eu vejo uns faixas pretas que não tem nada a ver
com isso”. (Bruno, 29 anos, ex-praticante de jiu-jitsu.)
41
Marcos: Não, não. Fiquei na faixa azul. Eles queriam que eu lutasse campeonato,
só que eu não queria lutar, não gostava. Como eu não lutava, eles não davam
faixa, então foda-se. Tanto que agora, eu morei fora muito tempo, passei alguns
anos fora. Cara, eu já tô a um tempão sem treinar, e de bobeira fui dar uns treinos
numa academia com um professor que era até lá da Carlson [Gracie]. Aí ele me
botou pra treinar com um faixa marrom, e eu fiz jogo duro com ele. Porra, com
faixa marrom, fazendo jogo duro, sendo que eu não treino há anos... Faixa azul é
que eu não sou.
Num tal ambiente, uma filosofia que incluísse o pacifismo e o respeito ao
próximo seria contraprodutiva, prejudicial. Assim, parece ficar mais nítida a idéia
de que práticas como “taparia”, “bloqueio” e “baile funk” eram elas próprias
necessárias à reprodução da filosofia da eficiência que consagrara o jiu-jitsu. Pois
sem a introjeção daquele ethos guerreiro, sem o aprendizado da disposição
incessante em provar a própria superioridade – fatores fundamentais à eficiência
demonstrada pela técnica Gracie em brigas de rua –, como poderia o jiu-jitsu
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manter seu principal traço distintivo, aquilo que o diferenciava das demais artes
marciais e o colocava acima delas?
A: Você acha que os professores incentivavam os alunos a sairem na porrada?
Lucas: Ah, tinha umas estórias. Tinha professor, faixa-preta cascudão, que saía na
night com os alunos dele e saía na porrada. Eu conheço um cara que treinava
numa academia que o professor falava assim: “Quem aqui tomar trote no colégio
vai entrar na porrada na academia. Se o cara for te dar trote, enfia a porrada no
cara”. Então tipo assim, o cara ia tomar trote, vinha a galera e o cara já
“armava” [faz o movimento de levantar os punhos]: “É tu que vai me dar trote?
Vou enfiar a porrada!” Porque se chegasse na academia e o professor ficasse
sabendo que o cara não tinha reagido, que tinha tomado o trote, o cara tinha um
pavor animal que o professor ia bater nele. E batia mesmo, apagava ele,
entendeu? Muito louco. Era melhor bater no cara do que apanhar do professor.
Muito louco. Fiquei impressionado quando eu soube disso. (Eduardo, 30 anos, expraticante de jiu-jitsu.)
Claro, seria uma injustiça e uma incorreção de minha parte generalizar o
argumento. Sem dúvida, havia academias e professores que incentivam tais
comportamentos, e outros que o reprimiam ativamente. Não há como afirmar,
com base em evidência empíricas, qual constituía a regra e qual a exceção. Mas,
levando-se em conta tudo o que foi dito acerca da necessidade do ethos guerreiro
para a consolidação de uma idéia de supremacia do jiu-jitsu como arte marcial, e
observando-se a popularidade que o jiu-jitsu conquistou justamente por esta razão,
pode-se suspeitar de que a regra dentro das academias, infelizmente, era antes o
estímulo ao comportamento violento do que sua repressão. Ainda assim, não
42
deixo de registrar o depoimento de um entrevistado, narrando com orgulho a
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intervenção de seu professor numa confusão em que estava prester a se envolver:
O meu professor não deixava nego sair na porrada. Uma vez uma namorada
minha me chifrou com um cara, e eu queria dar porrada no cara de qualquer jeito.
Aí teve um desafio de lutas de jiu-jitsu, e o cara tava lá. Na saída da parada, eu vi
o moleque lá. Eu queria enfiar a porrada nele, eu ia enfiar a porrada nele. Não
tinha outra possibilidade. Tava eu e um camarada meu. E ele: “Pega o cara! Pega
o cara!” Era o diabinho ali no meu ouvido. Na hora que eu cheguei, quando eu fui
pra cima dele, sinto um braço me puxando. Quem era? Era o meu professor. “Que
porra é essa Marcelo?” E eu: “Porra, aquele filho da puta ali, quero enfiar a
porrada nele.” “Quer enfiar a porrada nele? Então vamos lá na academia pra
gente conversar”. Aí chegou na academia e ele falou “só vou deixar você enfiar a
porrada no cara se você enfiar a porrada antes no Caio”. Detalhe: o Caio era
faixa marrom, e muito maior que eu. Mas eu tava tão puto que falei “beleza”. Aí
botaram luva de boxe em mim, o Caio botou também, e aí nem pensei, parti pra
cima. Tomei um cruzado, caí no chão, e ele começou a me enfiar a porrada.
Montou em mim, me deu um soco e perguntou: “Tá bom, professor?” E o
professor: “Marcelo, tu ainda quer dar porrada no cara?” E eu: “quero!”. Aí o
professor falou “então pode bater mais um pouco nele, Caio”. Aí desisti. Acabei
não saindo na porrada com o cara depois. (Lucas, 32 anos, ex-praticante de jiujitsu,)
O jiu-jitsu no mundo: vale-tudo e submission grappling
Foi nesta época, mais precisamente no início dos anos noventa, que o jiujitsu entrou na moda. Com o jiu-jitsu tornado febre, primeiro entre a juventude da
zona sul carioca, depois nas principais capitais do país, os campeonatos cresceram
e se multiplicaram, e, no rastro deles, toda uma indústria associada ao esporte.
Marcas de roupas (as chamadas fight wear, como a “Bad Boy”), lojas de sucos
(pioneiras na difusão do açaí, fruta da região norte cujo suco, servido quase como
um sorvete, é bastante apreciado por lutadores devido ao seu valor calórico e
nutritivo), fabricantes de quimonos e acessórios (protetores de orelha, de boca
etc.), enfim, um novo e lucrativo nicho de mercado começou a ser explorado. A
crescente premiação e visibilidade dos campeonatos aumentou também a
rivalidade entre as academias. Para se ter uma idéia, um dos piores adjetivos que
um lutador podia receber era “creonte” 21 , isto é, traidor, atleta que abandonava
sua academia para treinar em uma rival. Nas competições, as torcidas se
organizavam e se provocavam mutuamente, às vezes ao ponto de se enfrentarem
21
Pelo visto, alguém no mundo do jiu-jitsu deve haver lido a tragédia Édipo-Rei, de Sófocles.
43
com violência. Quem treinava, por exemplo, na Carlson Gracie, era considerado
inimigo dentro da Barra Gracie e da Gracie Humaitá.
A grande novidade, no entanto, foi a explosão dos eventos de vale-tudo. De
início, o jiu-jitsu teve na luta-livre seu maior adversário; posteriormente, lutou
contra praticamente todas as artes marciais, em todos os continentes, e assim
ganhou o mundo. Os confrontos de vale-tudo ajudaram a acirrar definitivamente a
rixa com a luta-livre, arte marcial semelhante ao jiu-jitsu22 , porém praticada sem
quimono. Em 1984, um vale-tudo ocorrido no ginásio do Maracanãzinho lançou
sombras sobre a suposta superioridade da técnica criada pelos Gracie. Fernando
Pinduka, então um dos grandes nomes do jiu-jitsu, não passou de um empate
contra seu adversário da luta-livre, e Renan Pitanguy foi nocauteado pelo rival
Eugênio Tadeu. Uma reedição do desafio luta-livre x jiu-jitsu, um vale-tudo
ocorrido em agosto de 1991 no ginásio do clube Grajaú, entretanto, voltou a
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colocar a balança favorável para o lado do jiu-jitsu. Três confrontos, três vitórias
da “arte suave”. A rivalidade era tanta que Wallid Ismail, aluno de Carlson
Gracie, chegou a arrancar os dentes da frente para a sua luta contra Eugênio
Tadeu, da qual saiu vitorioso e consagrado.
A rixa só atingiu o seu auge quando Rickson Gracie derrotou o maior
expoente da luta-livre, Hugo Duarte, numa briga travada na praia do Pepê, Barra
da Tijuca. 23 Hugo revidou invadindo dias depois a academia Gracie, provocando
uma pancadaria generalizada. É Wallid Ismail quem conta:
22
A luta-livre assemelha-se ao jiu-jitsu por ser uma modalidade também inteiramente voltada para
a luta no solo. Contudo, pelo fato do treinamento ocorrer sem quimono, o repertório de golpes dos
lutadores de luta-livre é mais limitado do que o dos praticantes de jiu-jitsu. Os lutadores de jiujitsu frequentemente acusam os da luta-livre de serem “grossos”, isto é, de se valerem de muita
força e pouca técnica. Mas a rivalidade não se restringe a questões puramente técnicas. A luta-livre
se desenvolveu na zona norte do Rio de Janeiro, e suas academias em geral cobravam preços bem
mais módicos do que as academias de jiu-jitsu da zona sul da cidade. Hoje o jiu-jitsu espalhou-se
até pelo interior do estado, e a distinção já não faz tanto sentido. Mas na década de 80 e no início
da de 90, o elemento de diferenciação social era nítido na rixa entre as modalidades. Os praticantes
de luta-livre, por exemplo, rotulavam os lutadores de jiu-jitsu de “playboys”, “filhinhos de papai”
da zona sul e da Barra da Tijuca. Para uma abordagem mais detalhada deste tópico, ver o artigo
“Economia da violência versus ethos guerreiro nas artes marciais no Rio de Janeiro”, de Carlos
Aurélio Pimenta de Faria (s/d/p).
23
O vídeo da briga encontra-se disponível em www.youtube.com/watch?v=yt35nJCP3Oc. Vale
notar que a locução que acompanha o vídeo, feita por Rorion Gracie, o transforma numa peça de
propaganda do Gracie jiu-jitsu: “The man with a white [não entendi a palavra exata, mas refere-se
à roupa branca do lutador Hugo Duarte] has been insulting the Gracie family. My brother
[Rickson] slaps him on the face and challenges him on the spot. Though this footage is not very
clear, it gives you a good idea what to expect in a real street fight. The purpose of any self-defense
should be to prepare you to the unpredictable reality of the street. All martial arts are limited by
rules, which give their practitioners a false sense of security. Out on the street, if you have to fight
44
Eu era faixa-roxa, estava treinando na Carlson quando alguém chegou falando
que os caras haviam invadido a academia Gracie. Chamei alguns faixas-pretas do
Carlson e só o Clóvis foi comigo. Temos que reconhecer que o Hugo Duarte foi
corajoso ao invadir a academia Gracie apenas uma semana depois de o Rickson
tê-lo derrotado na praia do Pepê. Fiquei impressionado com a coragem do Hélio
Gracie. Ele tinha quase 80 anos e liderou tudo. Depois o Royler [Gracie] e o
Eugênio saíram na porrada e a polícia chegou atirando e todo mundo correu...
Que época louca! Hoje, as pessoas não entendem o que rolava naquela época... Os
caras da luta-livre dominavam as ruas do Rio. Eram os donos da cidade. (Fonte:
Revista Tatame edição 131, janeiro de 2007, pg.35)
O Rio de Janeiro começou a ficar pequeno para o jiu-jitsu quando, em 1993,
Rorion Gracie organizou o Ultimate Fighting Championship (UFC) nos EUA,
evento de vale-tudo onde dezesseis lutadores de diferentes artes marciais se
enfrentaram numa mesma noite, em combates disputados dentro de uma jaula de
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formato octagonal, sem regras 24 , luvas, rounds ou limite de tempo. Cabeçadas,
joelhadas, chutes no rosto do adversário deitado no chão, pisões na costela, dentes
quebrados voando, supercílios abertos com apenas um soco, cotovelos estalando
em chaves de braço, estrangulamentos – enfim, era o mais próximo que se
conseguia chegar de uma briga de rua, só que dentro de um ringue, com
transmissão pela TV e replay dos lances mais dramáticos.
Royce Gracie, o mais leve dentre todos os competidores, lutou três vezes
naquela noite. Sagrou-se campeão sem exibir sequer um olho roxo. A decisão de
escalar Royce, e não Rickson, que era indiscutivelmente o melhor e mais forte
membro da família Gracie, partiu do próprio Rorion. Queria alguém que parecesse
uma pessoa normal, de biótipo magro, e não um atleta de compleição física
invejável, como era o caso de Rickson. Royce foi escolhido para lutar porque sua
vitória representaria tudo aquilo que o Gracie jiu-jitsu sempre fez questão de
for your life, there are no referees and no rules applied. A street fight is not want you wanted to be
or what you expected to be; it simply is. Fights like this occurred frequently in Brazil and it was in
this kind of environment that the Gracie established itself as the most complete and effective
source of instructional jiu-jitsu in the world. The best chance to win a fight against a bigger and
stronger opponent is to close the distance and take him to the ground. While this appears to be a
draw, it is important that you understand that my brother, with the colorful trunks, is reacting to
the moment-to-moment reality of the fight and is maneuvering the opponent to his doom. The
Gracie jiu-jitsu academy will prepare you to defend yourself where it really counts: out in the
streets or, in this case, the beach in Rio. The Gracie brother, now mounted on the man who was
claiming to be the champ, will punch him until he admits that jiu-jitsu still reigns”. [O vídeo
termina com Rickson montado em Hugo Duarte, esmurrando-o impiedosamente.]
24
Havia, é claro, algumas proibições básicas: não era permitido morder o adversário, colocar
dedos nos olhos ou aplicar golpes na região genital. Todo o resto era permitido, inclusive golpes
na nuca, o que depois viria a ser proibido.
45
provar ou demonstrar – que era, de fato, a única arte marcial que permitia a Davi
vencer Golias. Foi exatamente o que aconteceu. Royce venceu as três primeiras
edições do UFC usando somente a técnica do jiu-jitsu. Praticamente sem ferir os
adversários com golpes traumáticos, aplicava-lhes chaves de braço e
estrangulamentos que rapidamente os faziam desistir de seguir lutando. E fazia
tudo isso com as costas no chão, isto é, lutando “por baixo” do oponente, posição
que, no mundo das artes marciais, foi desde sempre era considerada bastante
desvantajosa.
A técnica associada ao sobrenome Gracie assombrou o mundo, e em pouco
tempo o vale-tudo se tornou uma febre mundial, com eventos disputados
mensalmente no Japão e na Europa. Mas a supremacia dos atletas do jiu-jitsu não
durou muito. Wrestlers norte-americanos, então já familiarizados com a técnica
Gracie, aprenderam a neutralizar os principais golpes do jiu-jitsu, e souberam tirar
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proveito de sua invejável condição física para impor um estilo de luta que ficaria
conhecido como ground and pound (“derrubar e bater”). O reinado do wrestlers,
contudo, também foi passageiro. Logo surgiram os strikers, atletas de boxe
tailandês e boxe tradicional que, igualmente escolados nas principais artimanhas
do jiu-jitsu e do wrestling, começaram a colecionar vitórias e títulos, com
nocautes rápidos e espetaculares.
Atualmente, a separação entre strikers (“nocauteadores”, que preferem lutar
em pé e vencer através de golpes traumáticos) e grapplers (“agarradores”, que
derrotam seus adversários principalmente com técnicas de solo) não é mais tão
evidente. Pois as competições são tão acirradas que o atleta que se quer de ponta,
por mais que tenha predileção por um determinado estilo de luta, é obrigado a
treinar todas as modalidades. Regras e lutadores modificaram-se como um todo.
Hoje, o vale-tudo é chamado de Mixed Martial Arts ou MMA, até porque não
“vale mais tudo”: há categorias separando os atletas por peso (o que torna as
disputas mais justas), é obrigatório o uso de pequenas luvas para proteger as
mãos, os combates são divididos em rounds e, em determinados eventos, como o
UFC, certos expedientes são proibidos, como golpes traumáticos na nuca ou
chutes no adversário quando este estiver no chão. Neste sentido, pode-se dizer que
o MMA percorreu a mesma trajetória que o Boxe, isto é, foi gradualmente
incorporando um conjunto de regras e dispositivos cujo principal objetivo estava
não apenas em preservar a integridade física dos lutadores, mas sobretudo em
46
evitar ferir os olhos de sua audiência, cada vez mais dotada de sensibilidade em
relação a violência 25 (Elias e Dunning, 1997).
O MMA transformou o ato de “sair na porrada” em um esporte, aliás
altamente rentável. De acordo com o site MMAWeekly, em 2006 o UFC registrou
o lucro recorde de mais de 200 milhões de dólares; apenas na edição 66, o UFC
obteve 47,94 milhões de dólares de faturamento em pay-per-view, ultrapassando o
boxe, cuja maior soma em pay-per-view ficou em 46,20 milhões de dólares, na
luta entre De La Hoya e Mayorga. Além disso, “o MMA foi apontado como o
esporte mais popular entre homens de 18 a 45 anos, passando a ser a nova menina
dos olhos dos anunciantes norte-americanos” (Fonte: Revista Tatame, edição 131,
janeiro de 2007, p.4). Recentemente, foi criada nos Estados Unidos a
International Fight League, que congrega times de lutadores de MMA
(“Anacondas”, “Silverbacks”, “Razorclaws”, “Tiger Sharks” etc., bem ao estilo
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dos times de futebol americano) que se enfrentam num calendário de lutas durante
todo o ano. Há também um reality show na TV americana, o The Ultimate
Fighter, cujo propósito é selecionar futuros lutadores para o UFC e acompanharlhes o treinamento. Mas tamanho sucesso não se dá exclusivamente na América
do Norte: também na Europa e no Japão o MMA atrai público e patrocinadores de
forma grandiosa, com eventos como o Cage Rage e o Pride Fighting
Championship. As cifras astronômicas – um campeão do Pride chega a ganhar
400 mil dólares em apenas uma noite – não demoraram a despertar a cobiça dos
lutadores brasileiros. Inúmeros campeões de jiu-jitsu ou de boxe tailandês
abandonaram suas competições tradicionais em favor de um treinamento
diversificado, visando uma melhor preparação para a carreira de lutador de MMA.
Muitos vêm amealhando sucesso e fortuna: os “jiu-jiteiros” cariocas Rodrigo
“Minotauro”, Paulão Filho e Ricardo Arona, para citar apenas alguns, ou os atletas
da academia curitibana Chute Boxe, celeiro de campeões como Wanderley Silva e
Maurício “Shogun”. 26 Há muitos outros ainda – Vitor “Shaolin” Ribeiro,
25
Não se pode perder de vista, entretanto, que a sensibilidade do público em relação ao alto grau
de violência e dramaticidade das lutas não foi o único fator a pesar na transformação do vale-tudo
em MMA. Também interesses comerciais tiveram sua cota de influência aí. Para superar as
restrições impostas por muitos estados da federação norte-americana e com isso ganhar escala
nacional nos EUA – tornando-se assim um investimento economicamente atraente para empresas
de pay-per-view –, o MMA teve que se adequar às exigências impostas pela Comissão Atlética de
Nevada, entidade que controla os desportos de lutas naquele país.
26
De passagem, fica aqui uma sugestão para pesquisa. Wanderley Silva manteve durante 6 anos o
posto de melhor lutador de MMA do mundo na categoria até 93 quilos – no Japão, as lojas de
47
Alexandre Pequeno, Lyoto Machida, Vitor Belfort, Gesias Cavalcanti, Anderson
Silva...
Por fim, cabe também ressaltar o crescimento dos eventos de submission
grappling, nos quais não são permitidos golpes traumáticos. As lutas são
realizadas sem quimonos, como em competições de luta-livre, e o objetivo é levar
o adversário para o chão e finalizá-lo. O maior evento do gênero, o Abu-Dhabi
Contest, realizado a cada dois anos, já é chamado de “a copa do mundo das lutas
agarradas”, não apenas por distribuir uma expressiva quantia de dinheiro aos seus
campeões, mas sobretudo por atrair a participação de atletas de modalidades tão
diversas como wrestling, luta greco-romana, judô, sambo, luta-livre e, é claro, jiujitsu. Até aqui os praticantes do Gracie jiu-jitsu vêm dominando a competição; o
último torneio Abu-Dhabi, realizado em maio nos Estados Unidos, terminou com
lutadores brasileiros de jiu-jitsu no lugar mais alto do pódio em todas as
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categorias.
No desenvolvimento das competições de submission grappling estão as
maiores esperanças de futuras medalhas olímpicas para atletas de jiu-jitsu. Em
dezembro de 2006, o submission grappling tornou-se uma modalidade de luta
reconhecida pela Fedération Internationale des Luttes Associées (FILA), entidade
que desde 1912 é responsável pelas lutas olímpicas. Mirando a aprovação do
Comitê Olímpico Internacional, a FILA já está trabalhando no sentido de encaixar
os eventos de submission nos padrões internacionais de segurança desportiva, o
que prevê a realização de exames anti-doping e a padronização universal das
regras dos combates. Segundo Raphael Martinetti, presidente da FILA, a
expectativa é que o submission grappling seja incluído nos jogos olímpicos de
2016 (Fonte: Revista Gracie Magazine, edição 119, janeiro de 2007, pg. 49). O
crescimento dos eventos de “jiu-jitsu sem quimono”, e a projeção internacional
brinquedo vendem um boneco de miniatura Wanderley Silva, e seu rosto estampa uma série de
cartões de crédito Mastercard. Rodrigo “Minotauro”, campeão mundial de MMA em 2001 e 2003,
é igualmente idolatrado no Japão: já foi modelo para uma história em quadrinho, personagem de
um videogame de lutas e ator em um seriado de humor na TV japonesa. Além disso, Wanderley e
“Minotauro”, assim como outros respeitados lutadores brasileiros, recebem fortunas para ministrar
seminários na Europa e nos Estados Unidos. São, para resumir, lendas reconhecidas de um esporte
que vem merecendo a atenção da grande mídia no mundo todo – exceto no Brasil. Chama a
atenção o completo descaso dos meios de comunicação brasileiros para com o sucesso dos nossos
atletas de MMA. Penso que, por comparação, o exame mais detalhado deste assunto permitiria
visualizar os mecanismos através dos quais a grande mídia faz suas escolhas sobre quem deve ou
não ser alçado à categoria de ídolo do esporte nacional.
48
que o esporte vem ganhando 27 , afeta diretamente o treinamento e as ambições dos
atletas de jiu-jitsu. Nas revistas especializadas, fala-se já numa certa decadência
das competições de quimono, o que aponta para o fato de os melhores atletas de
jiu-jitsu estarem se dedicando exclusivamente ao MMA ou ao submission. Não
sem razão: em janeiro de 2007, um desafio de lutas casadas entre alguns dos
maiores nomes atuais do jiu-jitsu, organizado através da votação de internautas,
não chegou a encher as pequenas arquibancadas armadas na casa de shows Ribalta
(Barra da Tijuca), e mereceu somente duas páginas de cobertura jornalística na
revista Tatame; já a etapa brasileira de seleção para o Abu-Dhabi Contest 2007,
realizada poucos dias após o evento na Barra, lotou as arquibancadas do ginásio
do Botafogo, e recebeu cinco páginas na mesma edição da revista Tatame. Estive
presente em ambos os eventos. A diferença de público era visível.
Em suma, nos últimos anos o jiu-jitsu vem sendo cada vez mais “aplicado”
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em competições outras, como as de MMA e submission grappling. O que não
deixa de configurar algo como um “retorno as origens”, dado que tal fato remete à
usabilidade que o jiu-jitsu tem fora do tatame, isto é, no ringue ou na rua – e,
como vimos, foram estes usos da técnica que marcaram os tempos iniciais do jiujitsu brasileiro, com Carlos e Hélio Gracie. Sem quimono, com quimono, sem
quimono: uma vez concluída esta breve história da transformação do jiu-jitsu,
podemos enfim adentrar o corpo do relato etnográfico. Em setembro de 2006,
decidi matricular-me na mesma academia em que havia praticado jiu-jitsu na
adolescência. Voltei a usar a faixa branca.
27
Apenas a título de registro: pela primeira vez, o campeonato mundial de jiu-jitsu será realizado
fora do Brasil. O campeonato, cuja primeira edição foi em 1996, é organizado pela Confederação
Brasileira de Jiu-Jitsu, entidade presidida por Carlos Gracie Júnior. Em 2007, será sediado na
Califórnia.
49
2.3
Corpo, masculinidade, virilidade e pertencimento numa academia de
jiu-jitsu
O Mestre e o Professor
Passava da hora do almoço quando cheguei à academia. Esperava encontrar
o tradicional ambiente de luta, atletas suando debaixo de grossos quimonos, gritos
de esforço em meio a treinos ou flexões de braço. Mas o lugar estava vazio, e as
luzes, apagadas. Somente uma recepcionista entediada e um aparelho de televisão
ligado davam vida ao ambiente. Pergunto as informações de praxe – preço,
horário das aulas, professores. Num gesto automático, a moça me estende um
folheto com as informações. A mensalidade custa R$ 175,00, mas o aluno tem a
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opção de comprar pacotes promocionais. Se escolher o de três meses, pagará R$
160,00; caso opte pelo de seis meses, cada mensalidade sairá por R$ 150,00,
pagos adiantados em cheques pré-datados. Seja como for, uma vez que o aluno
desembolsa a quantia, pode treinar em qualquer horário, e quantas vezes quiser no
mesmo dia. No folheto sou igualmente informado dos horários dos treinos – sete,
dez, dezesseis, vinte horas, e um treino livre todo sábado às dez horas – e que há
também uma taxa de matrícula, de R$ 120,00. Agradeço a atenção e despeço-me.
No caminho de volta, penso na possibilidade de ter que comprar um
quimono novo (que, dependendo do modelo, pode chegar a custar cerca de R$
250,00); o antigo, guardado de qualquer jeito num saco debaixo da cama, estava
rasgado e mofado. Penso também na necessidade de comprar uma mochila grande
para acomodar quimono, toalha, livros e demais apetrechos cotidianos de trabalho.
Então me ponho a fazer contas. A dor, como se vê, começa antes do primeiro
treino. Começa no bolso.
No dia seguinte, voltei no horário do treino da tarde. Ao reencontrar o
Mestre, e externar a ele a vontade de retomar o treinamento de jiu-jitsu em sua
academia, sou imediatamente recebido com sorriso e aprovação. O Mestre diz
que, por coincidência, havia visto naquele mesmo dia uma foto antiga, da primeira
turma da academia, na qual eu figurava. Pede-me que o acompanhe ao seu
escritório, uma pequena sala ao lado da recepção, e vai logo tratando de mostrar,
no computador, uma foto tosca, datada de 1992, de muitos adolescentes de
50
quimono – a maioria de braço cruzado, fazendo cara de malvado e pose de durão.
“Vê se tu consegue se achar aí”, ordena. Aponto um garoto magrelo, o rosto
imberbe, no canto esquerdo da foto: “Sou eu aqui”.
E passo a reconhecer os amigos que treinavam comigo, muitos dos quais
não vejo há anos. Educadamente, o Mestre diz que, por ser aluno antigo, não
precisaria pagar a matrícula. Diz ainda que, caso estivesse precisando, poderia
conseguir um quimono novo com bom desconto. Agradeço a gentileza e, antes
que pudesse completar com um “bom, então até amanhã”, sou surpreendido por
um olhar enviesado: “Agora, caralho Antonio, que barba é essa?”
O Mestre é um tipo brincalhão, gosta de fazer graça com os outros. Sempre
foi assim. Tem trinta e nove anos, e uma filha de seis, fruto de um casamento que
já dura quatorze anos. Quando abriu sua academia, no início da década de 90,
ainda não era faixa-preta. Não tem vergonha de assumir que está um pouco fora
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de forma – os tempos de competição ficaram para trás. Atualmente, é mais
administrador do que lutador; poderia, se quisesse, colocar seus faixas-pretas para
dar aulas, pelo menos no horário das sete da manhã. Mas faz questão de continuar
dando aulas, não apenas no primeiro mas também no último horário (vinte horas),
que é o mais exigente, repleto de atletas graduados e em nível de competição.
Ainda treina assiduamente, e não é difícil vê-lo lutando contra um de seus faixaspretas por mais de dez, quinze minutos ininterruptos. Experiente, sabe a hora de
“explodir”, de fazer força, e a hora de respirar, de aguardar com paciência o
desenrolar da movimentação de seu oponente.
O reencontro com o Professor foi um tanto surpreendente. Apesar de a
diferença de idade entre nós ser de apenas alguns meses, não treinávamos juntos
quando a academia abriu, no início dos anos noventa. Naquela época, havia o
treino dos “adultos” (acima de quinze, dezesseis anos) e o dos “moleques” – e ele
era tão baixinho e franzino, que se via obrigado a treinar entre as crianças. Pois
bem: o outrora frágil e magricelo faixa-branca havia se transformado num atleta
de porte físico avantajado, um faixa-preta de destaque, campeão brasileiro e
mundial de jiu-jitsu. Os ombros largos, os músculos definidos, mas não inchados
como os dos halterofilistas; embora seja visivelmente um sujeito forte, não pesa
mais do que setenta e cinco quilos.
É o aluno mais antigo da academia. Inscreveu-se no dia mesmo da
inauguração – “peguei um quimono de caratê emprestado e fui treinar”, recorda-
51
se. Hoje é o grande nome da academia. Mas apesar de reverenciado pelos alunos –
e sobretudo pelo Mestre, que o ensinou tudo – por sua técnica, conserva a
humildade e um jeitão algo tímido. Tem a fala mansa, embora exprima com
firmeza a voz de comando durante as aulas. Ao contrário do Mestre, não costuma
caçoar de quem quer que seja, exceto quando o assunto é futebol. Vascaínos são
suas vítimas prediletas, como convém a um rubro-negro fanático. Vai a todos os
jogos do Flamengo no Maracanã (tem o escudo do Clube tatuado na perna),
celebra com cerveja as vitórias e com algum mau-humor as derrotas. Mas a paixão
pelo futebol não o cega a ponto de prejudicar-lhe a rotina de treinamento. Tratase, afinal, de um atleta no esplendor de sua forma física, que complementa os
treinos diários de jiu-jitsu (notem o plural) com aulas de boxe tailandês e boxe
tradicional, e, sob a orientação de um personal trainer, segue à risca um programa
de condicionamento aeróbico que inclui natação, corrida e exercícios diversos de
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explosão muscular.
Tanto sacrifício tem uma explicação. O Professor vai estrear em breve no
vale-tudo, o que todavia não implica no abandono das competições de jiu-jitsu –
“minha meta para este ano é ser campeão mundial de jiu-jitsu”, afirma. Quando
perguntado sobre o porquê de iniciar carreira no MMA agora que está no auge de
sua trajetória como lutador de jiu-jitsu, respondeu que foram dois os fatores que
pesaram em sua decisão:
O primeiro foi o lance da academia, né? Como eu estou na linha de frente, resolvei
botar a cara a tapa, ser um espelho, outros vem atrás depois. Tem o [cita o nome
de um outro atleta da academia] que também tá começando agora. Pra divulgar
mais a academia. E também... Tô competindo no jiu-jitsu há muito tempo, então eu
acho que... é como o cara que pega onda. O cara tá todo dia pegando Pipeline,
Pipeline [praia do Havaí famosa por suas ondas grandes e tubulares], já manda
todas as manobras, chega uma hora em que a adrenalina do cara já não incomoda
mais, tem que procurar outros ares. Como é que ele faz isso? Pega onda de tow in,
onda de 20 metros [Tow in é uma modalidade em que o surfista, usando uma
prancha especial, é rebocado por um jet-ski, que o coloca dentro da onda. Com
isso, ondas gigantes, até então tidas como impossíveis de serem surfadas, foram
desbravadas]. Eu já entrei em muita competição, já não me dá tanta adrenalina. E
a coisa mais perto do jiu-jitsu é o vale tudo. E é uma coisa boa pra carreira, além
de dar adrenalina nova, eu divulgar a academia, pode ser uma carreira que me dê
dinheiro. Não é porque eu goste de tomar soco na cara, mesmo porque eu não sei
nem qual vai ser a minha reação na hora, se vou chegar lá, tomar um soco e vou
recuar, ou se vou tomar um soco e vou esquecer o vale tudo e levar pro lado
pessoal.
52
Não é preciso acompanhar a extenuante rotina do Professor para perceber o
seu caráter eminentemente ascético. Antes de, digamos, maltratar os corpos dos
seus adversários, primeiro ele maltrata o seu próprio, e isso em quase todos os
dias da semana. Diversas vezes o vi chegar para dar aula ressentindo-se de
cansaço e dores musculares; nestas ocasiões, invariavelmente ele anunciava que o
treino seria “puxado”, que iria colocar a todos nós para suar de verdade. “Alguém
tem que pagar”, dizia, balançando a cabeça de um lado para o outro. Este
“alguém”, no caso, incluía a minha pessoa.
O treino das dezesseis horas
Como já foi dito, são vários os horários em que se pode treinar na academia.
Cada horário, em função do tipo de aluno que o freqüenta, tem um perfil diferente.
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Às sete horas da manhã treinam aqueles que trabalham o dia inteiro (adultos,
portanto). Às dez também só há adultos, a maioria de graduação igual ou superior
à faixa-roxa. 28 Às quatro da tarde, há uma mistura maior – garotos de quinze a
vinte anos, faixas-branca e azul, e, vez por outra, alguns faixas-marrom e preta
adultos. De noite, a maior parte dos alunos é de atletas graduados, que competem
profissionalmente. Escolhi o treino da tarde não apenas em função da
conveniência do horário, mas também porque me permitiria melhores
oportunidades de luta. Explico-me. Treinar com alguém mais graduado obriga a
melhorar o sistema defensivo: você passa sufoco, é finalizado diversas vezes, mas
aos poucos vai aprendendo a evitar os golpes e posições do oponente. Já o treino
com um aluno menos graduado serve para aumentar o repertório de ataques –
sendo mais técnico que seu adversário, você tem condições de encaixar golpes e
testar posições. No horário das dezesseis horas, achei que teria ambos os tipos de
treinamento, o que seria não apenas produtivo tecnicamente, mas sobretudo
reconfortante em termos corporais. Ninguém agüenta ser “amassado” todos os
dias no tatame.
A quantidade de alunos às dezesseis horas flutua, nunca é exatamente
estável. Mas há sempre os mais assíduos, aqueles que, como eu, preferem treinar
28
A graduação de faixas no jiu-jitsu obedece à seguinte ordem: branca, azul, roxa, marrom, preta,
vermelha (esta última sendo mais um atestado de experiência do que de técnica). Em geral, um
aluno assíduo e razoavelmente talentoso leva entre sete e oito anos para graduar-se faixa-preta.
53
de tarde, e que só muito raramente, em ocasiões excepcionais, lutam em outro
horário. A partir de agora, concentrarei o meu relato no convívio com alguns
destes alunos assíduos, aqueles com os quais tive mais oportunidade de conversar
e treinar.
Antonio, vinte anos, faixa-branca, cearense de nascença, morador da Penha,
trabalha como garçom na zona sul. É casado com uma menina de dezessete anos,
com quem tem uma filha pequena. Tentou ser jogador profissional de futebol no
clube Marília, de São Paulo, mas não teve sorte. Não abandonou o futebol por
completo, contudo: joga “pelada” no Aterro do Flamengo semana sim, outra
também. Vez por outra aparece para treinar queixando-se de dores no joelho. Léo,
dezesseis anos, faixa-azul, vascaíno inveterado; mora na zona sul, e no final do
ano vai prestar vestibular para o curso de Direito. Deve gozar de um alto padrão
de vida, a julgar pelos táxis que o deixam e o buscam diariamente na porta da
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academia. O Mestre costuma chamá-lo de “Princesa Léia” (personagem da trilogia
Star Wars), ou então “Léia da cefaléia”, em referência à sua condição física
quando começou a treinar na academia – era gordinho e desengonçado, mas
perdeu quinze quilos com a prática diária de jiu-jitsu e hoje é um garoto forte, de
músculos definidos. Sampaio (vulgo “Mussum”), quinze anos, faixa-azul, negro,
morador da Cruzada São Sebastião, conjunto de habitações populares no Leblon.
Tímido, fala muito baixo, quase sem mexer a boca. O jeito manso, no entanto,
engana: é um exímio lutador de jiu-jitsu, e dedica-se também ao boxe tailandês.
Pretende lutar vale-tudo quando alcançar a maioridade. Pedro, vinte e sete anos,
faixa-roxa, aluno antigo, da primeira turma. É chef de cozinha, atualmente
desempregado. Apelidaram-no de “trash” e “japonês-de-cara-inchada”, o que aliás
não é totalmente descabido. Tem o olho puxado dos japoneses, e a cara sempre
com jeito de quem acabou de acordar.
Classe social, cor, lugar de nascença – como se vê, são muitas as diferenças
entre os alunos do treino da tarde. Contudo, há uma única grande semelhança
entre eles. Quando perguntados sobre o porquê de haverem escolhido o jiu-jitsu,
responderam todos “para aprender a me defender”. (Sampaio foi o único a
acrescentar algo à resposta: disse que “costumava apanhar na creche”.) O
depoimento do Professor, nesse aspecto, é paradigmático:
54
Já tinha feito judô e caratê, mas muito pequeno, uns seis anos, oito anos, mas não
parei nesses dois mais de um mês. Não me interessou muito não. Quando eu entrei
no jiu-jitsu eu nem fazia idéia do que era, como que era. E o que me fascinou foi a
luta em si, de não ter contato de soco e chute, e sim de dominar o adversário. O
cara mais leve conseguir dominar o cara muito mais pesado, muito mais forte, que
nenhuma outra luta tem, não existe isso em nenhuma luta. Aí me interessou,
porque eu era muito pequeno e comecei a dominar neguinho muito mais forte e
mais pesado do que eu.
Tal motivação para começar a treinar jiu-jitsu não é exclusividade dos
alunos pesquisados na academia onde treino. Em sua etnografia entre lutadores de
jiu-jitsu, Cecchetto (2004, especialmente cap. 3) colheu depoimentos que
apontavam nesta mesma direção, a da necessidade de auto-defesa. Mas há que se
notar que, em tese, qualquer arte marcial ensina um indivíduo a se defender. No
entanto, o fato de os alunos haverem sido enfáticos quanto a este ponto indica uma
particularidade: eles queriam não apenas aprender um meio de auto-defesa, mas
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aprender o que julgavam ser o mais eficiente dentre todos eles. Estavam, nesse
sentido, aderindo ao discurso propalado pelos Gracie, pois acreditavam de
antemão ser o jiu-jitsu a arte marcial mais eficiente para a defesa pessoal. Os
motivos desta adesão a priori à idéia de superioridade do jiu-jitsu, se fossem
investigados a fundo, justificariam a feitura de uma outra dissertação. Penso,
entretanto, que um importante fator reside no sucesso dos lutadores de jiu-jitsu em
eventos internacionais de Vale-Tudo. A transformação da porrada em esporte
mundialmente conhecido e admirado, de início operada pelas mãos da família
Gracie, pode ter servido como uma espécie de comprovação empírica da
superioridade técnica do jiu-jitsu em confrontos violentos. Abrindo as portas para
uma futura pesquisa, poder-se-ia perguntar: qual o impacto disso no imaginário
dos adolescentes em vias de se decidir sobre qual arte marcial praticar? De que
maneira o sucesso no Vale-Tudo afetou a auto-imagem dos lutadores de jiu-jitsu
e, por extensão, a imagem que projetam sobre si próprios? Seria somente
coincidência o fato de o jiu-jitsu começar a se tornar uma “febre” mais ou menos
na mesma época em que Royce Gracie fez história no Ultimate Fighting
Championship, logrando superar adversários muito mais fortes e pesados com
surpreendente facilidade? Vejamos o que tem a dizer quem começou a lutar jiujitsu naquela época:
55
O jiu-jitsu começou... Olha, tinha o Rickson dando porrada em todo mundo lá nos
Estados Unidos. Era assim: chamavam professor de judô, de caratê, essas merdas,
pra cair na porrada com o Rickson, fechava a academia e deixava os caras se
pegarem. O Rickson enfiava a porrada, mas enfiava a porrada mesmo, e o cara
virava aluno dele. O Royce também, enfim, a família Gracie, num sei o quê,
aparecia eles dando porrada em todo mundo, então tinha aquele papo, “o jiu-jitsu
é foda”. E isso aí levou o nome do jiu-jitsu, e nego começou a praticar. Porra,
pensa só, porque o cara vai praticar judô, caratê, essas merdas, se ele tá vendo na
tv um magrinho do jiu-jitsu sentando a porrada em geral? Beleza. Aí o cara
começa a praticar, fica mais auto-confiante e tal... E isso foi contagiando muita
gente, principalmente a galera da zona sul e tal. (Rafael, 31 anos, ex-praticante de
jiu-jitsu.)
Contudo, devo abandonar neste ponto o exame de tal questão. Por ora,
contento-me apenas em levantar as perguntas.
A estrutura de uma aula em grupo – aquecimento, ensino de uma posição,
treino – permanece a mesma de quando comecei a praticar jiu-jitsu, há cerca de
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uma década. Mas já não há uma vara de madeira ou uma faixa na mão do Mestre
ou do Professor, prontas para serem usadas em alunos preguiçosos, nem a
obrigação de levar o corpo ao limite da capacidade ainda no aquecimento, com
intermináveis sessões de exercícios abdominais e séries de flexões de braço.
Mencionamos anteriormente que o jiu-jitsu, ao contrário de outras artes marciais,
não é atravessado por rituais que reforçam o respeito e a hierarquia. Trata-se de
uma arte marcial cujo ensino se dá em bases que se poderia considerar informais,
por certo, mas isso não implica na bagunça generalizada. Atrasos, por exemplo,
são duramente repreendidos. Os alunos devem chegar pontualmente aos treinos. E
os exercícios, embora menos intensos do que outrora, continuam a ser cobrados.
Há sempre uma voz de comando a dizer “Só mais uma série! Não pára não! Mais
um treininho!”, e a exortar os alunos a esticarem seus limites um pouco mais.
Talvez isso se deva não apenas à necessidade de bom condicionamento físico que
o jiu-jitsu impõe, mas também e sobretudo a uma questão de superação pessoal,
de “raça”, como se diz na gíria da academia. Pois raça é um dos ingredientes
fundamentais do lutador: é preciso ter muita “raça” para sair de um golpe
encaixado, para reverter uma posição desvantajosa, para seguir acreditando até o
fim na vitória.
Faixa-branca na cintura, adentrei o tatame para meu primeiro treino. O
Professor colocou um CD num pequeno aparelho de som, ajustou o volume e,
quando a música começou a sair das caixas de som posicionadas no teto da
56
academia, ordenou que começássemos a correr em volta do tatame – os mais
graduados à frente, faixas-brancas no final da fila. Tocava uma música do grupo O
Rappa: “Ôôôôô ôô ôôô” / “Ôôôôô ôô ôôô” / “O show tááá co...meçando” / “O
show tááá co...meçando” / “Ôôôôô ôô ôôô.”
O fato de iniciarmos a corrida de aquecimento ouvindo música dá a medida
da descontração da aula. Ao longos dos meses em que realizei a pesquisa, ficou
clara a predileção do professor pelo O Rappa e também pelo rap americano, ou
melhor, o gangsta rap de artistas como 2Pac, Snoop Doggy Dog, 50cent e
outros 29 . Apenas esporadicamente o professor colocava algo diferente disso no
som – um pouco de Bob Marley ou alguma coisa de rock dos anos 80, como Dire
Straits, The Smiths, ou mesmo Iron Maiden.
O aquecimento durou cerca de trinta minutos. Corremos (primeiro em estilo
cooper, depois lateral, alterando braços e pernas, levantando joelhos, levantando
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calcanhares; por fim, demos pequenos “tiros” de corrida de costas), aquecemos os
membros superiores (com um peso de um quilo em cada mão, jogamos os braços
pra cima, giramos o tronco, encostamos as mãos na ponta dos pés), fizemos
abdominais (não mais do que duzentas, divididas em séries de cinqüenta e
intercaladas por séries de dez flexões de braço), e alongamentos no chão (atenção
especial à lombar, pescoço e joelho). Em seguida, o Professor solicitou a ajuda do
aluno mais graduado presente e, fazendo-o deitar no centro do tatame, nele
demonstrou um golpe: um estrangulamento de gola cruzada, que deveria ser
repetido diversas vezes pelos alunos, separados em duplas. Ao fim do treino
técnico, o Professor pediu que amarrássemos o quimono, e nos liberou para um
gole de água. Então e enfim, o treino propriamente dito. É o Professor que escolhe
29
Sobre este ponto, há um fato digno de nota. Como mencionei anteriormente, em janeiro de 2007
estive presente num desafio de lutas entre os principais nomes do jiu-jitsu brasileiro. Os combates
foram definidos através da votação do público na internet, e o evento, realizado numa casa de
shows da Barra da Tijuca, teve público apenas razoável. Na ocasião, anotei em meu diário de
campo que a maioria dos lutadores escolheu um gangsta rap como trilha sonora de sua entrada no
tatame. Dos quatorze atletas, somente 4 optaram por algo diferente disso – três funks dos morros
cariocas e uma música do Rage Against The Machine (banda americana famosa tanto por letras
politicamente engajadas como por melodias pesadas, enfurecidas). O gangsta rap é um subgênero
do rap e do hip hop, cuja principal característica reside no fato de que alguns de seus expoentes
foram ou são sujeitos ligados a marginalidade, ao crime – e que não tem pudor algum de celebrar
isso abertamente em suas músicas. As letras frequentemente exaltam um estilo de vida atravessado
pelo uso de drogas (sobretudo maconha de boa qualidade), o culto as armas, o acirramento de
rivalidades em relação à rappers de outros lugares e gravadoras, e pelo desrespeito completo às
mulheres. Não quero com isso dar a entender que condeno o gangsta rap por suas propriedades
intrínsecas; apenas achei relevante salientar que este é um estilo de música bastante apreciado por
lutadores de jiu-jitsu.
57
quem irá lutar contra quem, e faz isso de maneira que todos treinem não menos
que três vezes por aula (a duração das lutas varia entre cinco, seis e sete minutos;
faixas-pretas geralmente treinam por dez minutos). Do início ao fim da aula,
haverá passado não mais que hora e meia.
Meu primeiro treino na academia foi com o faixa-azul Léo. Quando me
ajoelhei na frente dele – os treinos começam com os lutadores de joelhos, e são
precedidos por um aperto de mão –, já estava exausto; o aquecimento, embora
descontraído e não muito exigente, fora o suficiente para cansar meu corpo,
desacostumado ao exercício físico. O Professor pediu ao Léo que lutasse devagar
comigo, pois eu estava há muito tempo sem treinar. O jovem faixa-azul obedeceu,
permitindo que me movimentasse mais livremente. Oferecendo menos resistência
do que poderia, deixou que eu lhe passasse a guarda, isto é, que me livrasse de
suas pernas e o imobilizasse lateralmente, posição desvantajosa para ele. Ato
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contínuo, percebi que deixava o pescoço desprotegido, e logo encaixei um
estrangulamento conhecido como “ezequiel”. Funcionou. Apesar da tentativa
desesperada de se safar do golpe, ele acabou sendo obrigado a desistir. Então
voltamos a ficar de joelhos, apertamos as mãos novamente, e a luta recomeçou.
Sem perder tempo, Léo agarrou minhas pernas com força e truculência. Treinar
“solto”, permitir minha movimentação, como o Mestre pedira, tudo bem – mas ser
finalizado por um faixa-branca há dez anos sem lutar era algo inaceitável. E ali,
fazendo o que podia para me defender de seus muitos e cada vez mais decididos
golpes, tive minha primeira lição sobre o que exatamente está em jogo em um
treino numa academia de jiu-jitsu. O fato de ser finalizado por um aluno menos
graduado mexeu com os brios de Léo, e sua vontade irascível de dar o troco me
pareceu não apenas um movimento para restabelecer “a ordem natural das coisas”
(assim deixando claro quem de fato era o melhor ou mais técnico), mas também
uma tentativa de restaurar sua honra, temporariamente arranhada por uma derrota
fragorosa e inexplicável.
Começava ali meus problemas com Léo. Na verdade, não fui o único a ter
dificuldades de relacionamento com ele no tatame. As altercações que teve com
Pedro (faixa-roxa) e Sandro (faixa-preta) repercutiram na academia como um
todo, chegando ao ouvido do próprio Mestre.
A primeira desavença ocorreu com Pedro. No último treino de uma aula
qualquer, Pedro surpreendeu Léo com um estrangulamento, finalizando-o. Fato
58
absolutamente normal, dada a diferença de graduação entre eles (Léo, como já foi
dito, é faixa-azul). O rapaz, contudo, ficou visivelmente contrariado. Assim que o
treino acabou, disse para Pedro: “você só me pega [finaliza] quando eu tô
cansado”. Colocada dessa maneira, a frase soa como uma provocação: como se
estivesse afirmando que, em igualdades de condições físicas, a técnica de Pedro
não se mostraria superior, não obstante a maior graduação de sua faixa. Soube
deste episódio através do Mestre, que, ao relatar o ocorrido, manifestou alguma
desaprovação em relação a atitude de Léo.
Com Sandro, a coisa foi um pouco pior. Sucedeu que Léo, durante um
treino, encaixou uma chave de omoplata em Sandro e, com isso, conseguiu
“raspá-lo”. Não é algo que se veja todos os dias, uma faixa-azul encaixando um
bom golpe num faixa-preta, e, mais ainda, pontuando em cima dele. De fato, Léo
é um “especialista” em chave de omoplata. Executa o golpe com tanta precisão
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que toda a evolução de seu “jogo” de jiu-jitsu depende dele, o que aliás já lhe
rendeu severas críticas do Professor e dos alunos mais graduados, dado que um
dos segredos de um bom lutador é justamente a
imprevisibilidade, o uso
diversificado de técnicas e golpes em momentos diferentes da luta. Pois bem: após
o tal treino, Léo teria deixado um recado na página de Sandro no site Orkut,
dizendo algo como “e aí, tomou um calor de mim no treino hoje, hein?” Sandro, é
claro, não gostou: ali estava um aluno de graduação bastante inferior à sua
contando vantagem, em público, sobre sua técnica no tatame. No dia seguinte, o
troco. Sandro pediu ao Professor que o deixasse treinar com Léo. Pedido aceito,
iníciou-se o massacre. O faixa-azul foi finalizado diversas vezes.
Como já foi dito, meus problemas com Léo iniciaram no instante mesmo em
que comecei a treinar na academia. Mas não acabaram ali. Com efeito, à medida
que os meses foram passando, Léo passou a zombar de minha condição física
todas as vezes que fazíamos aula juntos. Se eu reclamasse de um exercício mais
exigente, ele fazia graça; se pedia para interromper um treino por estar cansado,
era porque estava faltando “raça”; se me queixasse de alguma dor no corpo, lá
estava ele para afirmar, em um misto de ironia e desprezo: “Caralho, Antonio, tu é
o maior velho”.
Certa feita, treinávamos juntos uma posição ensinada pelo Professor – um
estrangulamento pelas costas –, quando reclamei de dores no pescoço, pedindo
que ele praticasse a técnica com um pouco menos de força em mim. De imediato,
59
a gozação em alto e bom som: “Aí Antonio, tu é o Bebeto aqui da academia.” A
princípio, fiquei sem entender direito. Depois me de conta de que ele se referia ao
ex-jogador de futebol da seleção brasileira, que tinha fama de reclamar de tudo, e
de ser frágil fisicamente. “Léo, tudo o que eu queria era ter os seus dezesseis anos
de novo”, respondi-lhe, com alguma impaciência.
Depois de uma pausa para recobrar o fôlego e beber um pouco de água,
voltamos ao tatame. O Professor começa a escolher quem iria treinar contra quem
e, logo de saída, ordena que Léo se ajoelhe para lutar com um faixa-preta. Ao
primeiro protesto de Léo – ele pedira um pouco mais de tempo para descansar
antes de treinar – o Professor dispara: “Ô Bebeto, ajoelha e treina, que eu tô
mandando!”
De alguma maneira, parecia haver algum consenso entre o restante dos
alunos quanto a personalidade um tanto difícil de Léo. A maneira com que
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destilava suas ironias, o jeito com que tratava seus colegas de treino, revelavam
arrogância e competitividade desmedidas. Claro, sabemos que em qualquer
academia de arte marcial são bastante comuns as brincadeiras e provocações em
relação à condição dos alunos mais fracos física ou tecnicamente. Mas sabemos
também que a diferença entre o remédio e o veneno é muitas vezes apenas uma
questão de dose – e Léo estava claramente exagerando na dose de gozação que lhe
cabia.
Naquele dia, consultei meu diário de campo ainda na academia. Constava
uma anotação, do início de janeiro (2007), sobre o episódio em que o Mestre
falara sobre a condição de Léo. O treino ainda não havia começado, os alunos
estavam chegando à academia quando Léo adentrou o tatame. Brincalhão, o
Mestre passou a fazer graça do porte físico avantajado do rapaz. Mas logo a
brincadeira mudou de tom, e o Mestre, com um ar de seriedade, perguntou-lhe se
ainda era virgem. Léo ficou visivelmente desconcertado; sem jeito, tentou mudar
de assunto. O Mestre, contudo, insistiu e, olhando para mim, falou com orgulho
que eu deveria ter visto “aquele moleque quando começou a treinar”, que tinha
chegado na academia uma criança gorda – mas agora, que diferença!
Pela maneira com que o Mestre disse aquelas palavras, e pela maneira
também com que Léo resignou-se a elas, olhando cabisbaixo e sorrindo amarelo,
tive a certeza de que o início da prática do jiu-jitsu havia sido um marco, um
momento decisivo em sua adolescência. A trajetória de sua bildung dividia-se em
60
antes e depois do jiu-jitsu: antes, um garoto gordinho, desajeitado, inseguro e
portanto tímido em relação ao sexo oposto; depois, um rapaz forte e bonito, de
corpo bem talhado, seguro e paquerador. Em suma, ali estava um exemplo
perfeito da transformação que o jiu-jitsu é capaz de operar na auto-estima de um
jovem. E o problema, neste caso, residia justamente aí. O excesso de auto-estima,
levado a cabo por força de uma ação exterior ao sujeito (o esporte), cristalizou-se
em arrogância, em um sentimento de superioridade. Léo era agora um garoto mais
forte que a maioria de seus colegas, e acreditava praticar a arte marcial que o
autorizava a se sentir desta forma.
Com efeito, desde o primeiro treino pude perceber como a prática do jiujitsu está atravessada pela competitividade, e quanto o elemento de virilidade está
simbolicamente em jogo. Se falamos em virilidade, falamos também em
masculinidade – e aqui, não custa lembrar, estamos no terreno das construções
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sociais, não de fenômenos naturais. 30 Ninguém nasce homem, mas sim torna-se
homem, e esta aquisição da masculinidade, como nos lembram os muitos registros
etnográficos, é feita através de um rito de passagem, que em muitas culturas é
doloroso ou mesmo violento. Em suma, não há algo como uma inclinação natural
dos homens ao comportamento competitivo ou mesmo violento. A identidade
masculina não está nos genes; ela deve ser adquirida 31 .
Muito bem: o que interessa aqui é avaliar como, no espaço de uma academia
de jiu-jitsu, questões relacionadas à masculinidade e virilidade encontram-se
imbricadas, e, mais ainda, como se inscrevem no corpo do lutador. Pois é através
do corpo que se faz um lutador: o aprendizado de jiu-jitsu nada mais é do que a
assimilação de um conjunto de práticas “da qual o corpo é ao mesmo tempo a
sede, o instrumento e o alvo” (Wacquant, 2002: 33). Pode-se explicar verbalmente
30
O debate em torno da masculinidade foi marcado durante muito tempo pela idéia de que a
violência seria uma característica inata do homem, algo que faria parte de sua natureza. Tal idéia
começou a ser discutida, e superada, com o desenvolvimento de pesquisas etnográficas e com a
contestação advinda do movimento feminista, nos anos 70. A própria noção de “natureza
humana”, em termos genéricos, foi ferida de morte: em ensaio clássico, Clifford Geertz (1989)
assinala que todas as sociedades apresentam alguma forma de moral, de religião, ou de estrutura
familiar – mas estas formas de construções morais, práticas religiosas e estruturas familiares são
tão diferentes entre si, que só seria possível reuni-las sob um mesmo conceito, de vigência
universal, valendo-se de uma generalização tão larga que o próprio conceito perderia rigor
científico, porque demasiadamente abstrato. Na filosofia, alguns dos ataques mais contundentes à
idéia de uma “essência” ou “natureza” humana podem ser encontrados na obra de Richard Rorty
(1989; 1994; 2002).
31
Para um painel mais abrangente da discussão teórica em torno da construção social da
masculinidade, consultar o trabalho de Cecchetto (2004), especialmente os capítulos 1 e 2.
61
a um aluno novato como se executa uma chave de braço (“com uma mão, segure a
manga do quimono do braço oposto do adversário, suba as pernas até a altura de
seus ombros e, ao mesmo tempo, desloque o quadril para o lado oposto ao braço
que está dominado; em seguida passe a perna por cima do braço dominado e
levante o quadril, de modo a fazer o movimento de alavanca: pronto, a chave de
braço está dada”), mas, na hora da luta, o conhecimento teórico não lhe terá
utilidade alguma. Numa luta, a aplicação das técnicas do jiu-jitsu, como de resto
de quaisquer outras artes marciais, não deve passar pela mediação do intelecto;
para serem correta e eficientemente executadas, precisam estar incorporadas quase
que instintivamente ao repertório de movimentos corporais do lutador. Trata-se de
uma pedagogia estritamente corporal, posto que é somente com a repetição
contínua da rotina de treinamento que o gesto inscreve-se no corpo (Wacquant,
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2002).
Os usos do corpo
O primeiro ponto a se destacar, e que nos remete a observações de escopo
sociológico mais abrangente, é a enorme importância que o corpo assumiu na
construção da identidade do indivíduo hodierno. Atualmente, é consenso nas
ciências sociais o diagnóstico segundo o qual as antigas instâncias doadoras de
sentido à existência do indivíduo – as instituições que atuavam como suporte da
identidade – teriam perdido força e relevância de atuação (Costa, 2004; Bezerra
Jr., 2002). Família, religião, doutrinas políticas e ideológicas, todos os
representantes de valores tidos como tradicionais estariam, ao longo do século XX
e ainda hoje no XXI, em processo de declínio. Em contrapartida, como que em
resposta a esta nova realidade, teríamos assistido ao surgimento de um sujeito
individualista, um self reflexivo e narcisista, senhor de sua trajetória, artesão de
sua própria existência (Breton, 2004).
Não quer isto dizer, contudo, que todas estas instâncias tenham perdido por
completo a força normativa de que dispunham. “Simplesmente”, argumenta
Jurandir Freire Costa, “(...) foram ‘privatizadas’. Ou seja, deixaram de agir
institucionalmente, por meio de regras impessoais e universais, para serem
ativadas caso a caso, ponto por ponto” (Costa, 2004: 189). Aqui, uma vez mais,
novos problemas se colocam. Quais as características de uma subjetividade
62
impactada pela vida em meio a um sistema econômico cuja instabilidade e pressão
por desempenho que lhes são inerentes estimulam a infixidez e engendram a
insegurança crônica (Sennet, 2005)? Em que medida encontram-se imbricadas a
construção da identidade e a relação com o próprio corpo, num mundo cada vez
mais regido por imagens e pautado pela idéia de aparência? Como se estruturam
as novas gramáticas afetivas em contextos, por assim dizer, pós-modernos?
Embora existam diferenças entre as idéias dos diversos autores que se
debruçaram sobre estas questões, parece haver alguma concordância quanto a
noção de que o investimento do sujeito em seu próprio corpo seria conseqüência
natural deste estado das coisas. Trata-se, lembremos apenas de passagem, de uma
reviravolta e tanto na cultura ocidental: pois o Ocidente nunca enxergou o corpo
humano como um fim em si mesmo, ao contrário, o corpo foi sempre encarado
como um instrumento para cumprir tarefas familiares, políticas ou religiosas.
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Segundo Jurandir Freire Costa (2004), estaríamos presenciando o surgimento de
um novo modelo de identidade: a bioidentidade, uma forma de sociabilidade
apolítica organizada não mais em termos de raça, classe ou filiação política, mas
sim sobre critérios corporais, médicos e estéticos. O cuidado de si não seria mais
transcendente, e sim corpóreo; e é a chamada “qualidade de vida” o princípio com
o qual todas crenças religiosas, políticas, sociais e psicológicas teriam que se
coadunar. Nossa cultura, diz o autor, é uma cultura somática, cujas principais
características incluem a supervalorização das sensações em detrimento dos
sentimentos e o fim do resguardo intimista, a impossibilidade de manter afastado
do olhar alheio os dados mais íntimos do indivíduo.
No mesmo eixo de argumentação, David Le Breton (2003; 2004) assevera
que o corpo é hoje uma afirmação pessoal, um alter ego, um outro si-mesmo, e
isso de uma maneira tão intensa que a interioridade do sujeito estaria na verdade
mais alocada em sua exterioridade. A contínua adaptação às normas estéticas do
momento exigiria um ininterrupto esforço de trabalho sobre si, uma ascese
vigilante e permanente – o fisiculturismo, a obsessão pelos regimes alimentares, o
crescente recurso às intervenções médicas de estética e a metamorfose do corpo
pela artificialidade seriam sintomas deste esforço. Breton não deixa de notar, na
“cybercultura”, a possibilidade dissimular o corpo e a identidade, ou mesmo a
possibilidade de abandonar a prisão do corpo e viver uma vida inteiramente feita
de sensações digitais. Observa, também, a invasão da medicina sobre a saúde:
63
cada vez mais toma-se remédios para programar os humores e corrigir as
imperfeições de um corpo tido como deficitário, incompleto. Tudo somado, diz o
autor, ocorre que o indivíduo contemporâneo faz de seu corpo um abrigo para si,
um lugar onde possa ter a “ilusão sincera de ser, enfim, ele próprio” (Breton,
2004: 69).
De fato, o lutador de jiu-jitsu tem no próprio corpo um abrigo. Trata-se de
um esporte que, de uma maneira geral, exige sacrifícios imensos ao corpo do
praticante. A primeira parte do corpo que se ressente do treinamento de jiu-jitsu
são os dedos das mãos. Sofrem com a aspereza do quimono. Já na primeira
semana, na área imediatamente acima das unhas, a pele fica em carne viva, e é
preciso usar esparadapros para conseguir treinar. Com o tempo, formam-se calos,
e o desconforto desaparece. Também não leva muito tempo até que se sinta o
pescoço dolorido, pois são muitas as posições (estrangulamentos principalmente)
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em que as grossas lapelas do quimono exercem enorme pressão sobre ele. Aqueles
que têm pele mais branca, como eu, costumam ver surgirem manchas roxas nos
dias seguintes aos treinamentos, normalmente localizadas no pescoço e debaixo
das axilas.
Há esportes que demandam mais resistência, outros que requerem muita
explosão muscular; há também aqueles em que a agilidade ou a flexibilidade são o
mais importante. O jiu-jitsu requer tudo isso ao mesmo tempo 32 . É preciso ter
bastante força de explosão muscular, mas esta força deve ser capaz de ser
sustentada por um bom tempo, do contrário, não tem serventia alguma. Contudo,
força e resistência de nada adiantam, se o lutador for lento e inflexível – agilidade
e um bom alongamento muscular são imprescindíveis para um sem número de
golpes e posições. O Mestre é bastante enfático quanto a isso:
32
Senti na carne a exigência do jiu-jitsu. Além do cansaço natural das primeiras semanas de
treinamento – aos poucos, me dei conta de que uma das coisas mais importantes que um aluno
novato tem a aprender é justamente como fazer força, de que maneira e em quais situações – sofri
com contusões. Meu joelho direito “saiu do lugar” diversas vezes (o que causava alguma dor e
impedia o treinamento nos 3 ou 4 dias subseqüentes); tive duas costelas “estaladas” (na segunda
vez, foram dois meses em fisioterapia, sem poder treinar); e recebi três pontos no supercílio
esquerdo, resultado de um choque acidental contra o cotovelo de Sampaio (ao examinar meu rosto
ensangüentado, o Professor exclamou: “é, abriu uma bucetinha”). Não credito esta seqüência de
lesões à violência envolvida na prática do jiu-jitsu, e nem poderia, pois o jiu-jitsu não é um esporte
de confronto corporal brutal ou violento. Muito ao contrário: penso que fui vítima de mim mesmo,
de meu descaso para com meu corpo durante quase uma década, e também do azar. Contra o azar,
pode-se muito pouco.
64
Já vi neguinho que corre maratona chegar aqui no tatame, dar um, dois treininhos
e morrer. Jiu-jitsu é foda. É o melhor e o pior esporte que tem. O [diz o nome do
atleta] mesmo, o cara é professor de boxe tailandês, atleta e tal, faixa preta de jiujitsu também. Mas tava há um tempo sem treinar de pano [quimono]. Aí chegou
aqui outro dia pra treinar e no dia seguinte reclamou pra caralho, disse que tava
todo moído, que num sei quê, “porra, tô cheio de dor”...
O lutador de jiu-jitsu sabe que dificilmente há modalidade esportiva que
exija mais sacrifícios ao corpo. Sabe e se orgulha disso. Uma das gírias mais
ouvida nos tatames é “casca-grossa”, talvez um dos maiores elogios que se possa
fazer a um lutador. Inicialmente, “casca-grossa” designava o atleta de jiu-jitsu de
destaque reconhecido, que aliava as três características imprescindíveis a todo
campeão: força, técnica e raça. Com o tempo, o uso do termo expandiu-se. Um
surfista que desce ondas enormes é, sem dúvida, um “casca-grossa”. Um filme
bastante violento deverá conter cenas “casca-grossas” – nesse registro, “cascaPUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521345/CA
grossa” é quase sinônimo de “sinistro”, outro termo bastante utilizado por jovens,
lutadores ou não. Mas o que importa notar é o aspecto de fisicalidade que a gíria
expressa: o elogio se faz à pele, ao invólucro do corpo, não ao conteúdo. Afinal, é
a pele que, endurecida pelo treinamento, se faz casca. Casca que, por espessa,
perde em sensibilidade, mas ganha em proteção à dor e aos ataques dos
adversários. A “casca-grossa” é portanto um embrutecer: daí podermos pensá-la
como uma espécie de avesso do “verniz” e da sensibilidade refinada
característicos do processo civilizador (Elias, 1994).
Eu era um moleque de dezesseis anos e fazia “taparia” com os adultos, tomava
cada porrada... E tinha uns doidos que gostavam de dar porrada, então
aproveitavam que era teu amigo pra te dar uns tabefes naquela hora, que tava
liberado. Eu inclusive tenho um problema no pescoço, minha hérnia de disco foi
muito em função de um “triângulo” [estarngulamento que se dá com as pernas]
que dei no Rodrigo. Ele era meu amigo, muito mais forte que eu, encaixei o
triângulo, o bichinho tava babando, não queria bater de jeito nenhum... Ele ia
apagar, ele não ia bater e ia apagar, mas antes de apagar ele pegou, me levantou
e me deu um “bate-estaca” [golpe traumático, proibido em campeonatos: consiste
em levantar o adversário e arremessá-lo de volta com as costas no solo, usando
para isso o peso do próprio corpo]. Mas por esse lado foi bom fazer jiu-jitsu, você
fica mais cascudo para enfrentar certas dificuldades, pra enfrentar certos medos.
(Rogério, 30 anos, ex-praticante de jiu-jitsu.)
O lutador de jiu-jitsu é obrigado a conviver com a dor do desgaste físico e
das contusões, e a superá-la. Ter a “casca grossa” é, portanto, uma necessidade,
uma exigência que a prática do esporte impõe naturalmente, e que alguns logram
65
vencer. Mas para além da necessidade da couraça endurecida, há toda uma
dimensão psicológica que a acompanha e, porque não dizer, a envolve. Pois a
“casca grossa” é sobretudo uma construção de si a ser constantemente apresentada
e reiterada a outrem; é, ao mesmo tempo, uma disposição e um estímulo psíquico
fundamental, principalmente se levarmos em conta que uma academia de jiu-jitsu,
qualquer uma, é um espaço hipermasculino, cuja atmosfera encontra-se permeada
por um ethos ligado à virilidade. Assim sendo, uma “distância regulamentar” deve
ser sempre observada em seu interior. Se por um lado o brasileiro em geral se
mostra aberto e receptivo ao contato corporal (abraços, beijos no rosto etc.), por
outro continua refém da herança machista ibérica e uma cultura patriarcal – o
ideal do “homem de verdade” (Nolasco, 1997), do “homem com agá maiúsculo”,
do “homem não chora”. Com isso quero dizer que, numa academia de jiu-jitsu,
não apenas maiores intimidades físicas devem ser evitadas, como seria normal
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supor: também o falar abertamente de si, a confissão de intimidades sentimentais
de cunho pessoal, pode ser mal visto ou interpretado. Nesse sentido, a “casca
grossa” funcionaria também como um recurso de sociabilidade. Ser um sujeito
durão, “fechado”, de poucas mas firmes palavras, poderia ajudar na aceitação do
indivíduo pelo grupo.
Para um lutador de jiu-jitsu, o ideal seria possuir uma casca tão grossa que
deixasse de ser pele humana. Não sem razão, metáforas que associam o corpo do
lutador à máquinas são bastante comuns entre praticantes de lutas, e no jiu-jitsu
não é diferente. São muitas as gírias que o demonstram 33 . Quando um lutador
domina o outro completamente, diz-se que ele “passou o carro” ou ainda que
“atropelou” seu adversário; quando, num vale tudo, a vitória vem rápida e
avassaladora, comenta-se que “fulano tratorizou beltrano”. No idioma das artes
marciais ligadas ao vale-tudo, tratorizar é verbo, conjugado um sem número de
vezes nas principais publicações que tratam do esporte 34 . Desnecessário
33
A relação metafórica homem/máquina entre lutadores já havia sido percebida e explicitada por
Wacquant. Em sua etnografia com praticantes de boxe de uma academia em Chicago, o autor
deixa claro que “a metáfora mais comum que os lutadores usam para falar de seus corpos é a de
uma máquina ou motor que precisa constantemente ser regulado e cuidado de maneira adequada
(...)” (1998: 75).
34
A revista Tatame, a principal publicação do gênero no Brasil, estampa em suas capas diversos
exemplos do uso deste vocabulário: “Minotauro atropela Zulú” (edição 123, maio de 2006),
“Paulão tratoriza Chonan” (edição 127, setembro de 2006), “Macaco tratoriza Godói” (edição 128,
outubro de 2006), “Fedor tratoriza filho de Rei Zulú” (edição 119, janeiro de 2006).
66
mergulhar em maiores interpretações: a imagem que o termo evoca é
suficientemente auto-explicativa.
O corpo do lutador não é apenas máquina; seguindo Wacquant (1998) uma
vez mais, poder-se-ia dizer que é também ferramenta e arma. Para o lutador
profissional, o corpo é seu instrumento de trabalho, a ferramenta através do qual
constrói sua carreira e ganha o seu salário, e quanto a isso não há muito mais o
que dizer. O corpo-ferramenta não interessa muito aqui; o corpo-arma, sim.
Voltarei a este ponto no próximo capítulo. Por ora, restam outras observações a
fazer antes de enveredar numa discussão centrada na violência que advém do uso
do corpo-arma entre lutadores.
Não é apenas como máquinas que os lutadores de jiu-jitsu gostam de
imaginar a si mesmos. Toda uma dimensão que remete à animalidade está também
presente em muito da simbologia que perpassa o universo desta luta. Os primeiros
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e mais óbvios exemplos estão nos símbolos utilizados pelas academias: dois
buldogues babando sangue em rota de colisão (Carlson Gracie), um “demônio da
Tasmânia” de quimono (Barra Gracie), um leão (Gávea jiu-jitsu), entre outros.
Mas, sem dúvida, o exemplo mais claro desta identificação com a animalidade
reside na predileção de muitos lutadores por cães de temperamento bravo,
especialmente os da raça pitbull. Alguns chegam a extremos, como cortar as
orelhas do animal, para que não sejam mordidas em brigas, e aplicar doses de
anabolizantes, para fazer crescer massa muscular e torná-lo mais agressivo. De
qualquer forma, é certo que se instala ali uma relação metonímica 35 – a parte pelo
todo –, de maneira que homem e fera encontram-se absolutamente identificados
um com o outro. É quase como se tais lutadores quisessem transcender o humano,
superá-lo, deixá-lo para trás; como se o discurso que vai nas entrelinhas de seus
corpos fortes e tatuados, o subtexto presente na coleira que os conecta aos seus
bichos de estimação estivesse silenciosamente dizendo “nós somos mais do que
homens, somos homens-máquinas-feras”.
Mas é preciso considerar que, entre os praticantes de jiu-jitsu, o homem-cão
reflete a imagem de uma minoria. Claro, é uma imagem forte e simbólica o
suficiente para ser cristalizada em estereótipo – daí “pitboy” –, mas ainda assim é
uma imagem que faz jus somente a uma pequena parcela do universo maior de
35
Agradeço a forma criativa com que o prof. Luiz Eduardo Soares chamou a minha atenção sobre
este ponto.
67
lutadores. Na verdade, o traço mais distintivo dos praticantes de jiu-jitsu, o sinal
externo que lhes é mais comum e através do qual é mais fácil identificá-los, são as
orelhas deformadas pelos treinamentos.
No jiu-jitsu, o constante atrito com o quimono e o tatame atingem de modo
mais dramático a cartilagem das orelhas, que, se maltratadas o bastante, incham
com o sangue. É um fato corriqueiro, decorrência natural do tipo de treinamento
que é feito no tatame, e que os lutadores chamam de “estourar a orelha”. Não há
como evitá-lo. A única opção é usar um protetor de orelha, extremamente
desconfortável. Porque incômodos, protetores deste tipo são utilizados somente
depois que a orelha “estoura”, a fim de evitar danos maiores, não no dia-a-dia de
treinamento. O certo é que trata-se de uma lesão dolorida, desagradável.
Quanto mais treino, mais atrito; quanto mais atrito, mais sangue, e maior a
deformação – há lutadores que não conseguem usar fones de ouvido. Vem daí o
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apelido “orelha de repolho”: de fato, certas orelhas ficam tão deformadas que se
parecem com qualquer coisa (uma couve-flor, talvez), menos com uma orelha.
Uma vez “estourada”, há pouco a se fazer. O primeiro e mais imediato
procedimento consiste em espetar uma seringa na orelha “estourada” e tentar
drenar o sangue logo após a feitura da lesão, o que é conhecido como “punção”. O
segundo procedimento é uma operação plástica.
A orelha “estourada” é sinal de dedicação e experiência, espécie de atestado
de entrega do lutador à luta – aí sua importância simbólica. Não é sem motivo,
pois, que muitos alunos novatos de jiu-jitsu friccionem deliberadamente suas
orelhas nos quimonos ou nas faixas, a fim de produzir a lesão que garante o
inchaço. Orelhas “estouradas” são símbolos, e seria tentador enxergar nelas
“verdadeiras medalhas que conferem maior destaque aquele que ostentar o
pavilhão auricular mais devastado” (Sabino, 2004: 315), como fez outro
antropólogo. As coisas se passam de forma mais matizada, contudo. O que
confere maior destaque a um lutador de jiu-jitsu é a técnica dentro do tatame
(aliada ao condicionamento físico e sobretudo à “raça”) ou, em certos casos, a
habilidade de luta na rua. A orelha deformada é claramente um signo distintivo
que, pelo menos em tese, atesta a assiduidade e experiência do lutador. Mas não é,
por si só, sinônimo de potência. De nada adianta ter “orelha de repolho” e ser
finalizado por alunos menos graduados nos treinos. Isso, aliás, é o pior dos
mundos para um praticante de jiu-jitsu: ter os atributos físicos de um “casca-
68
grossa”, mas, na verdade, ser uma “franga”, um atleta que é facilmente superado
pela maioria dos seus companheiros ou adversários.
O corpo do lutador de jiu-jitsu apresenta ainda outros sinais distintivos 36 ,
mas nenhum é tão singular, recorrente e visivelmente impactante como a orelha
“estourada”. Ela é a garantia de que um lutador de jiu-jitsu não passará
desapercebido como tal. Neste sentido, a orelha deformada parece confirmar as
teses de que a identidade encontra-se cada vez mais inextricavelmente atrelada ao
(ou fundamentalmente inscrita no) corpo do indivíduo e, ao mesmo tempo, apoiar
a idéia de que, nesta cultura somática em que vivemos, “a aparência virou
essência, os ‘condenados da aparência’ são privados da capacidade de fingir,
dissimular, esconder os sentimentos, as intenções, os segredos,
capacidade
presente na cultura da intimidade que se tornou obsoleta” (Ortega, 2006: 47). No
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mesmo diapasão, Jurandir Freire Costa argumenta que
a cultura somática, ao esvaziar a moral dos sentimentos em benefício da moral do
corpo e das sensações, privilegiou a clareza da vontade e da aparência física, em
prejuízo da obscuridade do desejo e da profundidade emocional. Com isso, veio a
privar o sujeito de um potente mecanismo estabilizador do sentimento da
identidade, qual seja, a capacidade de dissimular a sua intimidade do olhar do
outro (Costa, 2004: 198).
Resulta daí que, nesta perspectiva, estamos permanentemente expostos ao
olhar invasivo do outro. Assim sendo, nos tornamos inseguros, frágeis,
procurando a todo custo submergir na normalidade, a fim de evitar atrair atenção
(Ortega, 2006). Ocorre que, para um lutador de jiu-jitsu que ostenta orelhas
“estouradas”, é virtualmente impossível esconder o sinal de sua diferença, e assim
camuflar-se em meio a normalidade reinante. Sua intimidade, em grande parte, já
está exposta ao olhar do Outro 37 . O elemento bizarro de sua aparência é suficiente
para atrair olhares, pois
36
Poder-se-ia citar a grossura da musculatura do pescoço e o uso do cabelo “raspado”, isto é,
cortado à máquina, bastante curto. O cabelo, diz-nos DaMatta (1997: 34) evocando um estudo de
Leach, é um elemento humano com conotações diversas, “associado que está ao luto, à disciplina,
à castidade e à agressão libidinal”. Cabelos curtos, por exemplo, seriam indicativos de disciplina;
já a cabelereia farta e desgrenhada seria um sinal de descaso, rebeldia ou crítica em relação às
normas sociais. No caso específico do jiu-jitsu, contudo, penso que não se pode desprezar a razão
utilitária. Cabelos curtos são uma necessidade da prática do esporte: fios longos atrapalham nos
treinamentos, pois o lutador está a todo momento tendo o fundo da gola de seu quimono segurado
(com força, diga-se) por seu oponente.
37
Há que se notar também que a orelha também pode ser lugar de distinção sexual. DaMatta
(1997: 38), rememorando os tempos de infância e adolescência, diz-nos que “ter pêlo na orelha era
69
o rosto é, de todas as partes do corpo humano, aquela onde se condensam os
valores mais elevados. Nele cristalizam-se os sentimentos de identidade,
estabelece-se o reconhecimento do outro, fixam-se as qualidades da sedução,
identifica-se o sexo, etc. (...) O valor ao mesmo tempo social e individual que
distingue o rosto do resto do corpo, sua eminência na apreensão da identidade é
sustentada pelo sentimento que o ser inteiro aí se encontra. A infinitésima
diferença do rosto é, para o indivíduo, o objeto de uma incansável interrogação:
espelho, retratos, fotografias, etc. (Breton, 2007: 71)
Em alguns casos, este despertar de olhares, causado pela deformação que
exibe no rosto, pode ser exatamente aquilo que o lutador deseja. E isso por dois
motivos: o orgulho de fazer parte de uma “tribo”, cujo símbolo máximo de
pertencimento é justamente a orelha inchada, e a mensagem de intimidação que
ela veicula. Com efeito, ao se deparar com uma orelha “estourada” numa festa ou
boate, qualquer jovem carioca de classe média ou alta já sabe, de antemão, com
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quem está falando. Ou seja, sabe que está lidando com um lutador de jiu-jitsu,
possivelmente um “casca-grossa”. Mas a mensagem tácita da marca corporal do
lutador não se completa sem um dado de ambigüidade; por um lado, atua no
sentido de impor respeito ou mesmo temor, por outro, serve como o primeiro e
mais imediato sinal que dispara o gatilho do estigma, do estereótipo que
acompanha os praticantes desta arte marcial. Ao reconhecer uma “orelha de
couve-flor”, dificilmente alguém imaginará que trata-se de um sujeito pacato, um
atleta que restringe o uso de sua técnica somente ao tatame. Mais provável que
pense “olha lá o ‘pitboy’, troglodita porradeiro”.
Pode acontecer de ser exatamente isso o que deseja o lutador de jiu-jitsu, ao
menos em alguns casos. Se Mary Douglas está correta em afirmar que “o corpo
humano reproduz em escala reduzida os poderes e os perigos que se atribui à
estrutura social” (Douglas, 1971 apud Breton, 2007: 70), então a análise da
construção corporal do lutador de jiu-jitsu poderia ser fonte de elucidação ou
apreciação de certos aspectos da sociedade brasileira. Nesse sentido, o corpo-arma
do lutador – cujo maior símbolo é a orelha estourada e não, como se poderia
pensar à primeira vista, os músculos inchados – inscreve-se na problemática
analisada por DaMatta (1983) sobre a tensa relação que se desenrola no Brasil
sinal de masculinidade e de malvadeza”. Além disso, vale lembrar que por muito tempo a orelha
masculina adornada por um brinquinho de ouro foi tida como signo de homossexualidade
(Trevisan, 1997).
70
entre a moral universalisante e igualitarista das leis e a moralidade baseada nas
teias de relações sociais. Transitando por entre uma superfície que postula a
igualdade, mas por sobre um pano de fundo baseado na hierarquia, não raro
acabamos por temer a primeira, lançando mão de artifícios que visam reforçar a
segunda. Vejamos: músculos inchados ou definidos, algo que qualquer
frequentador de academia de ginástica pode ter, são no mais das vezes fruto de
uma preocupação estética, embora eventualmente possam também servir como
arma de intimidação. Mas a orelha estourada, para além do bizarro que introduz
na aparência do indivíduo, expressa o pertencimento a um grupo social cuja
reputação encontra-se notadamente marcada pela violência e agressividade
desmedidas, por vezes gratuitas. Nesse registro, a orelha estourada, convertida em
uma espécie de “você sabe com quem está falando?” não-discursivo, porém
visualmente explícito, poderia ser entendida como um artifício usado para
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introduzir a hierarquia em situações de uma igualdade “intolerável” – uma fila
para usar o banheiro ou pagar o consumo no interior de uma boate, por exemplo38 .
Aí sua utilidade: o “você sabe com quem está falando?” não mais como pergunta,
mas sim como afirmação initerrupta e silenciosa, apenas ligeiramente mais
enfática em seu tom provocativo: “você sabe com quem está falando...”
O fantasma da homossexualidade e as “marias-tatames”
O jiu-jitsu é um esporte de contato corporal, por assim dizer, bastante
íntimo. Um armlock (chave de braço), por exemplo, exige que se segure o braço
do adversário por entre as pernas, pressionando-o de encontro à região pélvica.
Uma técnica de imobilização conhecida como “sessenta e nove” consiste
literalmente em sentar a bunda no rosto do oponente e deixar o peso do corpo
impedir-lhe o movimento, contando para isso com o auxílio de uma firme pegada
no quimono na altura do quadril. Desnecessário arrolar mais e mais exemplos. No
jiu-jitsu, o contato com as partes íntimas não ocorre somente por excesso de
descuido ou maldade (“golpe baixo”), mas é antes uma necessidade mesma da
38
Tais exemplos não foram mobilizados ao acaso: tratam-se de duas das situações que mais
causam brigas em casas noturnas no Rio de Janeiro. A título de ilustração, veja-se o depoimento de
um dos representantes da boate DaDo Bier, na Barra da Tijuca: “Outro dia, um deles [“pitboys”]
quis sair sem pagar a conta. Quando chamamos sua atenção, ele cuspiu na cara do meu gerente e
quebrou o braço de um segurança. É um animal!” (Fonte: Jornal do Brasil, edição de 12/09/1999).
71
prática. É tão comum que o lutador sequer chega a preocupar-se com isso –
exceto, é claro, quando o adversário é uma mulher.
Não está claro até que ponto pode-se imputar a esta característica natural do
esporte a preocupação constante, por parte de seus praticantes, em afirmar a
própria masculinidade. Mas como divorciar uma coisa da outra? Com efeito, uma
das principais gozações que o lutador de jiu-jitsu escuta de amigos que não
partilham de sua paixão por esta arte marcial é “ah, mas então você gosta de se
agarrar com homem no chão!”. Essa gozação, como deixa entrever Cecchetto
(2004), atravessaria jovens de todas as classes sociais:
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Certa vez, em meio a uma conversa com os rapazes na praça, toquei, com muitas
reservas, no assunto da homossexualidade entre os funqueiros. Numa súbita
mudança de um grupo para outro grupo, o líder da galera, meu principal
informante, parou e disse: “No funk não tem esse negócio não. Exemplo: esse
negócio de homem ficar agarrando homem nessa parada do jiu-jitsu não tem nada
a ver. É muita vacilação! (Cecchetto, 2004: 126.)
Trata-se de uma desconfiança travestida de piada, que, aliás, tem lá sua
razão de ser. O praticante de jiu-jitsu retira prazer do fato de agarrar-se a homens
suados e rolar com eles no tatame em posições as mais diversas, o que para muitos
é suficiente para lançar uma sombra de dúvida sobre suas preferências sexuais.
Implícita na provocação, o questionamento: “Não se esconderia aí, na exigência
do esporte, uma tendência homossexual, um tesão ainda que inconsciente pelo
corpo masculino?”
O lutador de jiu-jitsu é obrigado a conviver com esta desconfiança, ainda
que no mais das vezes ela se faça em tom jocoso, de brincadeira, e não em forma
de um comentário “sério” ou acusação aberta. Poder-se-ia evocar, mas com algum
cuidado, a análise de Radcliffe-Brown (1973) sobre as relações de “parentesco por
brincadeira”, que podem se dar entre membros de uma mesma família ou grupo
social e também entre clãs ou tribos diferentes. Radcliffe-Brown nota que “a
caçoada inclui sempre amistosidade e antagonismo” (1973: 132), mas que seu uso
pode servir como instrumento de criação de familiariade, de “licença”, tornandose assim uma maneira de evitar o confronto aberto e garantir o equilíbrio de uma
determinada relação. Tal argumento parece se aplicar no caso da piada sobre a
suposta inclinação homossexual que atravessaria a prática do jiu-jitsu: evita-se o
ataque direto sem contudo deixar de se dizer o que pensa, e isto de tal maneira a
72
criar uma atmosfera de relativa camaradagem, que só dificulta ainda mais as
coisas para o praticante de jiu-jitsu. Pois ele sabe que está sendo alvo de uma
piada, sabe também que a pessoa muito provavelmente acredita que a piada de
fato corresponde à realidade, e, se for só um pouco perspicaz, sabe ainda que uma
reação enérgica de ofensa só faria confirmar as suspeitas que lhe pesam nos
ombros.
Muito bem: uma academia de jiu-jitsu é um espaço hipermasculino não
apenas porque exige imensos sacrifícios ao corpo do lutador, ou porque este, para
obter o reconhecimento de seus pares, deve mostrar-se sempre um “guerreiro”
que, ao superar constantemente a si próprio – a dor, as contusões, os exercícios –
pavimenta o caminho para superar os adversários. Uma academia de jiu-jitsu é um
espaço hipermasculino também porque os praticantes, perseguidos que são –
inclusive e sobretudo por si próprios – pela idéia de “gostarem de se agarrar a
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outros homens”, preocupam-se ao máximo em afastar qualquer vestígio de
“afetação”, qualquer possibilidade de associação com uma homossexualidade que
os treinamentos diários insistem em “colar” à prática do esporte. Os corpos
masculinos, que se pretendem fortalezas invioláveis, desfrutam de grande
intimidade no tatame. São tocados, apalpados, agarrados, imobilizados uns por
sobre os outros – daí o fantasma da homossexualidade. Como todo fantasma,
também este não precisa necessariamente se materializar para causar pavor.
Não sem razão, numa academia de jiu-jitsu são bastante comuns
brincadeiras de tapas, safanões, petelecos e todo tipo de sopapos. Inversamente,
demonstrações públicas de afeto tais como abraços ou beijos são algo raras 39 . E,
mais importante, “mulher” é assunto que nunca se esgota. No tatame, há sempre
alguém a contar uma aventura sexual na noitada, a tecer elogios à forma física de
uma participante mais desinibida do reality show “Big Brother”, à última capa da
revista “Playboy” ou à uma beldade qualquer em destaque na mídia. Incontáveis
vezes presenciei acaloradas discussões sobre a melhor maneira de se “comer” uma
mulher (isto nos termos mais educados), ou sobre “comer” muitas mulheres sem
39
E isso não apenas na academia, mas também na rua. Por exemplo: pouco antes do carnaval,
houve um desfile de blocos na Lapa, ao qual eu e um grupo de amigos e amigas, quinze pessoas ao
todo, decidimos comparecer fantasiados de noivas. À certa altura, avistei, em meio a multidão, o
Professor – tênis, bermudão, camisa do Flamengo sem manga e cordão prateado no pescoço. Ao
me ver naquele estado, abriu os braços e, num misto de incredulidade, bronca e gozação, disparou:
“Mas que porra é essa?!” Ignorei a pergunta e lhe dei um abraço, e pela reação instintiva de
afastamento de seu corpo tive a certeza de que o havia deixado algo desconfortável.
73
levantar a suspeita da namorada, ou ainda sobre como continuar a “comer” muitas
mulheres, inclusive a namorada, caso esta descubra a traição. Mas não se trata
apenas de um machismo manifesto, acompanhado de uma forte afirmação da
heterossexualidade. Trata-se também de um anti-homossexualismo explícito.
Certa vez ouvi o Mestre proclamar: “tirando matar, roubar e dar a bunda, eu faço
de tudo”. Ao incluir a orientação sexual entre os princípios basilares de sua noção
do que é certo ou errado, o Mestre nos dá uma boa idéia do grau de importância
que concede à sua própria heterossexualidade e, por extensão, do grau de repulsa
que nutre pela homossexualidade.
O assunto seria desprovido de maior interesse não fosse o envolvimento de
muitos lutadores de jiu-jitsu em episódios de agressões a homossexuais. Sabemos
obviamente que tais agressões não são exclusividade de lutadores de jiu-jitsu e
“pitboys”. Não é preciso conhecer trabalhos acadêmicos (Silva, 2007; Perlongher,
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1987) para reconhecer que, de um modo geral, a sociedade brasileira mostra-se
altamente intolerante para com suas minorias sexuais. A leitura regular dos jornais
é mais do que suficiente para comprová-lo. 40 Mas, no Rio de Janeiro, os ataques
de “pitboys” a frequentadores de lugares gays (como os bares da rua Farme de
Amoedo, em Ipanema, ou a boate Dama de Ferro, na Lagoa, bairros da Zona Sul
da cidade) são tão comuns que merecem o destaque na mídia e o horror da
população, embora seja difícil precisar onde termina uma coisa e começa a outra.
Quando um fantasma (ou paranóia, se quisermos adotar o jargão psicanalítico)
leva apenas a uma sociabilidade um pouco mais virilizada numa cultura
notadamente machista, como é o caso da brasileira, não há maiores motivos para
preocupação. Mas quando, no entanto, vira caso de polícia, então temos um
problema.
É bastante conhecido o fato de que homens são socialmente levados a
acreditar que a força, a agressividade e o poder de subjugar são por excelência os
meios através dos quais se alcança o sucesso profissional e social; implícita aí está
a noção de que o “funcionamento apropriado de uma sociedade depende da
inculcação de padrões agressivos de comportamento em jovens meninos”)
40
Segundo dados do Grupo Gay da Bahia, a cada dois dias um gay, bissexual, travesti ou
transgênero é assassinado no Brasil. (Fonte: Jornal O Globo, edição de 21 de setembro de 2007.)
74
(Brittan, 1989: 7; tradução minha 41 ). Mas, no caso do jiu-jitsu, seria insuficiente
afirmar que os jovens lutadores estariam somente fazendo o possível para se
encaixar num padrão de comportamento que é socialmente instaurado e exigido.
Ou seja, não basta a constatação de que, como diria Bourdieu, eles são
“dominados por sua dominação”. Pois não se trata somente de uma vigilância
constante contra intimidades corporais ou sensibilidade afetiva entre homens, mas
sim de uma repulsa exacerbada à figura do homossexual. São muitos os fatores
que o estimulam, mas se tivéssemos que resumir a questão diríamos simplesmente
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que isto ocorre sobretudo porque
a imagem vacilante da própria pessoa é garantida pela contra-imagem do grupo
desprezado. Como Sartre demonstrou em sua descrição do anti-semita, uma pessoa
se legitima através do ódio a figura que institui como oposto de si própria. O
branco despreza o negro e nesse próprio ato confirma sua própria identidade como
pessoa com direito a demonstrar desprezo. Da mesma forma, um homem passa a
acreditar em sua própria virilidade dúbia ao cuspir sobre o homossexual (Berger,
1976: 175; grifo meu).
De algum modo e em algum nível, que não cabe aqui especular, é seguro
que a auto-imagem do lutador de jiu-jitsu vacila, ao menos no que diz respeito à
questão da sexualidade. O recurso à agressão de homossexuais é um dos
expedientes utilizados para tentar aplacar tal incerteza (e que, paradoxalmente,
acaba por reforçá-la). Outro expediente, temos razões para suspeitar, pode ser a
adoção de um comportamento agressivo e mesmo desrespeitoso em relação às
mulheres, que passaremos a discutir adiante.
Sabemos comuns os relatos de meninas que foram “agarradas pelos cabelos”
ou mesmo agredidas porque se recusaram a beijar rapazes em festas ou boates.
Em depoimento a um jornal, uma jovem carioca declarou que “...em uma festa, só
porque eu não quis ficar com um deles [“pitboys”], fui puxada pelo cabelo até
quase cair deitada no chão. Parecia que estava num ringue (...)”. (Fonte: Jornal do
Brasil, edição de 12/09/1999, pg. 56.) O machismo levado ao extremo, a idéia de
que mulheres não passariam de apêndices dos homens, o suposto direito destes em
abusar da violência física no trato cotidiano – ora, tais atitudes infelizmente não
são novidades, e não será preciso evocar Nelson Rodrigues para lembrar-nos
disso. Mas talvez fosse interessante ter o cronista fluminense em mente para
41
No original: “The implication is that a society’s proper functioning depends upon the
inculcation of aggressive patterns of behaviour in young boys”.
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pensar no reverso da medalha, isto é, no papel desempenhado pela mulher
desejosa de (e atraída por) submissão e maus tratos. Com isso quero dizer que há
um importante ator nesta discussão acerca dos “pitboys” que, ao que me é dado
saber, até agora não mereceu a devida atenção: a “maria-tatame”, menina cuja
preferência afetiva e sexual recai sobre lutadores de jiu-jitsu, geralmente fortes e
de faixa graduada.
As “marias-tatames” surgiram no rastro da explosão do jiu-jitsu, quando o
esporte virou moda entre a juventude da zona sul carioca. Subitamente, ser um
campeão de jiu-jitsu passou a ser algo reconhecido de maneira positiva não apenas
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entre seus praticantes, mas também entre as meninas daquela geração:
Porque eu acho que tinha um lance também das mulheres se encantarem pelo cara
que dava mais porrada, pelo cara que era o campeão de jiu-jitsu. Tanto é que
tinha as maria-tatame e tal. Tinha muito isso. Tinha muito isso. Tinha muito isso.
Eu me lembro, eu até participava de briga e tal, mas eu não era, tipo assim, tão
brigão, eu não era o brigão da night. Só que eu andava com os brigões da night.
Mas eu era competidor, competia muito. Eu me lembro de eu ganhando um
campeonato de tarde, “ah maneiro, ganhei um campeonato”. Campeonato
carioca, brasileiro, um campeonato desses importante, e aí eu fui sair pra
comemorar. Quando eu chegava à noite no lugar, já sabiam que eu tinha ganhado
o campeonato e a mulherada já tava em cima, não por quem você é, ou pelo seu
papo, ou pela sua aparência, mas porque tu ganhou o campeonato, tu se tornou
importante dentro daquela meiuca. Até, é uma coisa muito engraçada, os
campeonatos eram cheio de mulher. Você ia competir, parecia que tava na praia,
posto nove [Ipanema], tipo assim, todo mundo assistindo. Chegou uma época que
a coisa ficou tão popular, dentro da zona sul e barra da tijuca, que as meninas
deixavam de ir à praia pra ir assistir o campeonato de jiu-jitsu. Uma doidera, né?
Durante muito tempo, ficou uma coisa super in, super na moda. (Eduardo, 30
anos, faixa-preta de jiu-jitsu.)
Conversando com ex-lutadores que viveram o boom do jiu-jitsu no Rio de
Janeiro na década de 90, aproveitei para assuntar sobre suas relações com
meninas. Todos reconheceram a deselegância dos métodos então empregados,
mas não sua inadequação. Foram veementes ao afirmar, à maneira de economistas
lembrando que “sem demanda não há oferta”, que muitas meninas autorizavam e,
em última análise, exigiam tal comportamento. Mais uma vez, o que transparece
aqui é uma filosofia da eficiência, por assim dizer.
Isso foi uma outra coisa que... Os caras do jiu-jitsu, você ouvia muitas histórias
dos caras que batiam em mulher, que esculachavam mulher, os caras tiravam onda
com isso. E eu vou te falar: muitas mulheres aceitavam isso. Você chegava e dava
um tranco na mulher, a mulher ficava contigo. Você chegava “oi tudo bem” e blá,
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blá, blá, a mulher não ficava contigo, às vezes nem olhava na tua cara. Tinha que
dar um catranco, pegava pelo braço, chega aqui e tal, aí elas ficavam com você...
Isso rolou e acho que ficou muito na cultura do Rio de Janeiro, tanto que você sai
daqui e as pessoas falam os cariocas “tocam” pra caralho, e realmente, a gente
“toca” muito. Eu acho que hoje menos, tá mais respeitoso, mas antes era muito
assim, neguinho pegava a cabeça da mulher e beijava a mulher na marra, e elas
beijavam... Então tinha um pouco de culpa delas. (João, 35 anos, ex-praticante de
jiu-jitsu)
Durante um destes relatos – foram muitos: optei por transcrever somente os
mais significativos –, surpreso com a cena descrita por meu entrevistado, não me
contive e, interrompendo-lhe a fala, perguntei: “E isso tudo que vocês faziam não
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dava merda?”
Se elas não gostassem, ia dar merda. Mas não dava. Não dava, não dava
nenhuma. Então elas gostavam, aceitavam. Eu acho até que as pessoas, a garotada
masculina, a gente buscava muito isso porque a mulherada gostava disso. Hoje em
dia, eu vejo que o jiu-jitsu e tal, as lutas saíram um pouco de moda, e o surfe
voltou, né. O surfe era da década de 70, deu uma caída, quando a nossa geracão
chegou, e voltou mais com força agora. O que acontece? Hoje em dia é a mesma
coisa, a menina ela acha legal o cara que pega onda bem, vai pra praia, fica
assistindo, então os caras ficam disputando entre si pra ver quem pega onda
melhor. Então é uma coisa muito mais saudável que na nossa época, que a gente
ficava trocando porrada pra ver quem era melhor, né? (Bruno, 29 anos, expraticante de jiu-jitsu.)
Não é meu objetivo entrar na questão de se hoje em dia o quadro descrito
nas entrevistas teria amainado ou retraído, se o surfe teria voltado à moda, se os
rapazes de fato estão mais gentis ou corteses com as meninas. No que concerne ao
esforço aqui pretendido, dirigir o olhar à “maria-tatame” é relevante na medida em
que permite apreciar parte significativa do processo de construção de identidade
do “pitboy”. Sabemos que tal processo se desenrola nas múltiplas e fragmentadas
experiências que dão forma à interação social, aquilo a que comumente nos
referimos como sendo as diversas esferas que compõem nossas vidas – a família,
o trabalho, as amizades, as relações amorosas e assim por diante. Como assinala
Zaluar, “toda identidade social constrói-se opondo-se a outras num caleidoscópio
de identificações que ficam longe da idéia de identidade como algo igual a si
mesmo, uno, completo e definitivo” (1985: 87). A identidade não é nem jamais
poderia ser um construto exclusivamente pessoal, não obstante todos os apelos
românticos em favor da autonomia, diferenciação e auto-criação do sujeito. Ao
contrário,
77
a identidade só existe no espelho, e esse espelho é o olhar dos outros, é o
reconhecimento dos outros. É a generosidade do olhar do outro que nos devolve
nossa própria imagem ungida de valor, envolvida pela aura da significação
humana, da qual a única prova é o reconhecimento alheio. Nós nada somos e
valemos nada se não contamos com o olhar alheio acolhedor, se não somos vistos,
se o olhar do outro não nos recolhe e salva da invisibilidade (...) (Soares, 2004:
137).
E que melhor e mais relevante espelho para um adolescente com os
hormônios em ebulição do que o olhar de uma menina? Isto posto, é fácil perceber
a importância da “maria-tatame”. Ao reconhecer – e sobretudo desejar – a
potência, a virilidade e mesmo a agressividade do lutador, a “maria-tatame”
devolve, embebida em elogio, a auto-imagem que ele tanto se esforça para
cultivar. Aprovando tal imagem, admirando-a, contribui sobremaneira para sua
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fixação. É talvez o estímulo mais poderoso para o jovem ainda em formação,
inseguro e sedento de reconhecimento. A questão então passa a ser observar por
que isso se dá, ou seja, entender as motivações que levam uma parcela das
adolescentes de classe média e alta do Rio de Janeiro a eleger tal modelo de
masculinidade como objeto de desejo. Seria descabido desconfiar que haveria aí
um paralelo com a atração que certas meninas da zona sul demonstram ter por
traficantes das favelas cariocas? Tratar-se-ia apenas do flerte com a excitação e o
risco, de resto algo comum a adolescentes? Ou de uma vontade de potência, ainda
que alheia e por isso mesmo danosa?
Responder a tais indagações de modo minimamente satisfatório implicaria
em escrever uma outra dissertação, entrevistando outras pessoas e mobilizando
outra bibliografia. Deixo aqui a sugestão de pesquisa e sigo em frente. É preciso
avançar no caminho proposto.
Sobre valentia e o não levar desaforo para casa
Conversas sobre situações conflituosas, relatos de brigas ou de pancadarias
generalizadas são relativamente comuns dentro de uma academia de jiu-jitsu. A
freqüência com que ocorrem, no entanto, não posso precisar, mesmo porque em
diversas ocasiões introduzi o tema da porrada com o intuito (não declarado) de
perceber como os praticantes de jiu-jitsu se relacionam com ele. Por outro lado,
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estaria mentindo se não dissesse que tais conversas muitas vezes começaram
espontaneamente, sem qualquer estímulo de minha parte.
Escutei de tudo um pouco. Ouvi, por exemplo, um depoimento de Marcelo,
28 anos, faixa-marrom, assumindo que, na adolescência, brigava bastante na rua,
por motivo pouco ou nenhum. Disse, contudo, que depois de haver aprendido jiujitsu, as brigas cessaram, confirmando neste caso a tese de que artes marciais em
geral costumam “pacificar” o praticante, quer pelo exercício do auto-controle
mental e corporal que inexoravelmente desenvolvem no indivíduo, quer pela
oportunidade de sublimação da agressividade que oferecem em seus treinamentos.
Por outro lado, vi o Mestre gabar-se de ter perseguido, derrubado e punido com
socos e cotoveladas um ladrão que momentos antes havia ferido violentamente
uma senhora numa avenida movimentada, em plena luz do dia. Notei em sua fala
não o elogio à violência em si, mas sim ao senso de “fazer justiça com as próprias
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mãos”, de usar o jiu-jitsu para tirar um assaltante das ruas. À exceção deste relato,
não presenciei ninguém se vangloriando de haver se envolvido em alguma briga
de rua, ou de ter “saído na porrada” em festas, boates ou que tais.
Na verdade, o que despertou meu interesse foram menos os relatos de brigas
– escassos, de qualquer modo –, do que histórias de situações conflituosas. Tais
histórias me permitiram observar um comportamento que classificaria não como
deliberadamente violento, no sentido do emprego da força física como recurso
primeiro e mais imediato, mas sim como profundamente atravessado pela recusa a
qualquer possibilidade de deixar sem resposta uma suposta agressão verbal ou
atitude desrespeitosa. Numa conversa informal durante um treino, o Mestre
contou uma história que ilustra bem este ponto.
Sucedeu certa vez que, ao voltar para casa em sua lambreta (carregando no
guidom as sacolas das compras feitas havia pouco no supermercado), o Mestre
tomou uma pequena contramão numa rua pouco movimentada. Um pedestre, que
atravessava a rua olhando para o lado de onde vinham os carros, assustou-se com
a súbita proximidade da lambreta e protestou: xingou repetidas vezes o motorista
a plenos pulmões. O Mestre tentou argumentar, disse que não havia passado assim
tão perto dele, e que portanto não havia necessidade de reagir daquela maneira.
Mas o pedestre, muito irritado, prosseguiu em sua fúria de berros e impropérios:
“Seu babaca irresponsável, fazendo merda no trânsito!”.
79
“Aí mermão, tu tá com algum problema em casa?”, retrucou o Mestre, agora
já irritado e subindo o tom de voz. “Tá maluco? Porra, já te disse que não passou
perto, eu tava devagar, tô cheio de compras, minha filha tá me esperando em casa,
e tu vai ficar me xingando desse jeito?”
O Mestre não é exatamente um sujeito de porte físico avantajado, muito
pelo contrário. Sua pouca estatura não inspira medo. Talvez por isso o pedestre
tenha resolvido levar adiante a discussão: veio andando em sua direção, o dedo
em riste, os xingamentos piorando a cada passo. Precavido, o Mestre desmontou
de sua lambreta. Então o pedestre deu-lhe, literalmente, uma “peitada”. Tomou em
resposta um sonoro tapa na cara. Atônito, recuou um pouco.
“Cara, na boa, vai pra casa”, disse-lhe calmamente o Mestre. Não adiantou
em nada: a bochecha em brasa o havia enfurecido ainda mais.
“Eu vou te pegar! Eu vou te pegar, seu filho da puta!”
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“Ué, vem pegar agora.”
“Eu vou te matar!”
“Então porque não mata agora? Estamos só nos dois aqui, eu e você, quer
melhor oportunidade que essa? Não disse que vai me pegar? Então, eu tô aqui,
vem me pegar”.
Possivelmente assustado com a confiança com o que aquele sujeito baixinho
respondia aos seus desafios, e provavelmente intuindo que não seria uma boa idéia
levá-los adiante, o pedestre recuou. Foi se afastando lenta mas progressivamente,
sem contudo deixar de gritar os xingamentos e ameaças. Aí o golpe de
misericórdia:
“Sabe porque tu não vem me pegar? Tu não vem me pegar porque tu é um
gordinho broxa e bundão! É isso mesmo! Tu é um gordinho broxa e bundão!”
Subiu na lambreta e deixou o assunto para trás.
Chama a atenção a maneira através da qual o Mestre encerrou a discussão:
diante da recusa por parte de seu oponente em levar a discussão às vias de fato,
proclama sua absoluta inferioridade. A ordem dos fatores aqui, penso, é de suma
importância. O primeiro alvo a ser depreciado é o corpo, a forma física de seu
interlocutor: “tu não vem me pegar porque tu é um gordinho...”. Um gordinho, um
sujeito fora de forma, alguém que não tem a saúde ou os recursos físicos
suficientes para encarar uma briga de rua: eis a primeira razão enunciada pelo
Mestre para justificar-lhe a covardia, a recusa em se envolver em um confronto
80
violento. Por outras palavras, a percepção do corpo é fonte primordial de distinção
entre eles – atleta, o Mestre mantém os músculos em forma, o fôlego em dia. Sabe
que pode contar com o próprio corpo caso precise dele em uma situação limite,
como é o caso de uma “porrada”. O corpo é, portanto, o território primeiro onde o
Mestre proclama sua superioridade.
Dando seqüência ao trabalho de demolição das qualidades masculinas de
seu oponente, o Mestre o diz não apenas um gordinho, mas um “gordinho broxa”.
Com efeito, que melhor e mais visível exemplo de potência corporal masculina do
que justamente a capacidade de obter ereção? Importa aí menos a desqualificação
de uma função puramente física (a ereção em si), do que o índice de virilidade que
ela encarna. No imaginário machista, virilidade é um dos pilares fundamentais da
masculinidade, e o pênis, seu principal ator e parâmetro. Não à toa o falo é
comumente associado a um objeto de agressão, portanto “idealizado e lido como o
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pau, a pica, a espada, o mastro, a marreta, o canhão, o porrete, a pistola etc”
(DaMatta, 1997: 39). Neste registro, um homem “broxa”, incapaz de cumprir seu
papel de satisfazer sexualmente uma mulher, não pode ser um homem por inteiro,
ou um “homem de verdade”. A acusação de “broxa”, portanto, veicula uma
dúvida ou desconfiança quanto à masculinidade do gordinho, como se o Mestre
estivesse dizendo “você não é homem o suficiente para sair na porrada comigo”.
Tendo destituído seu adversário de atributos masculinos e das qualidades
físicas necessárias à decisão de encará-lo numa briga, o Mestre mira na única
província que restava atacar, qual seja, suas qualidades psicológicas ou
comportamentais. Por isso (ou talvez por causa disso), o sujeito que lhe dirige os
impropérios é, além de “gordinho” e “broxa”, também um “bundão”. Ora,
segundo a perspectiva do Mestre, alguém que berra e xinga sem razão, que diz
que vai “pegar”, que vai “matar”, mas termina por sair de fininho, deixando
descumpridas suas ameaças, este alguém só pode ser um frouxo, um covarde, um
otário. É interessante notar que, mesmo fazendo diretamente alusão a uma
qualidade psicológica, esta última acusação se dá através de uma gíria que referese a um atributo físico eminentemente feminino. Este o cerne da questão, já que
se o falo era o símbolo oficial, a marca registrada e o sinal exterior do masculino,
a nádega, o rabo, o traseiro, o lolô, o cu, o lorto, a mala, o fiofó, o rabo, a bunda
representavam o outro lado da medalha. Pois era nesta zona que repousava (...) o
inverso da masculinidade. O seu lado lado obscuro, interior e oculto. A dimensão
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reveladora de tendências insuspeitadas como a feminilidade, a impotência e a
covardia: quem é que queria ser um “bundão” ou ser um “broxa”? O seu plano
frágil e marginal: quem é que queria ser um “bunda-suja”? O ângulo que de certo
modo dotava o corpo do homem de um pedaço antimasculino – uma parte macia e
semi-aberta, que o inferiorizava e o igualava às mulheres (DaMatta, 1997: 41).
Assim, a conotação da gíria “bundão” se apóia numa distinção de gênero, a
moleza do corpo feminino se refletindo na indecisão ou falta de firmeza que seria
típico das mulheres, em contraste com a rigidez que caracterizaria a atitude e o
corpo masculino. Mais ainda, remete à idéia de passividade, qualidade tida como
feminina (ou homossexual), diametralmente oposta portanto ao ideal de atividade
que atravessa todo o edifício da construção social da masculinidade 42 (Goldberg,
1987; MacRae, 1986).
Esta história foi contada no tatame. Outros alunos também a escutaram, e
reagiram a ela. Não me lembro de haver escutado alguém dizendo algo como
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“porque você não enfiou logo a porrada no cara?", ou qualquer coisa do gênero,
mas também não ouvi nenhum comentário do tipo “porque você simplesmente
não acelerou a lambreta e deixou o gordinho falando sozinho?”. Pareceu-me
bastante evidente que um código de conduta estava em questão ali, e o código de
conduta de um lutador de jiu-jitsu, se por um lado não é impulsionado pela
fixação em machucar os outros fisicamente, como supõe a histeria coletiva que se
criou em torno deles, por outro também não se mostra muito favorável a assumir
uma postura mais conciliatória, uma atitude que contemple o “deixar para lá”. No
episódio, ficou bastante nítida a disposição do Mestre em não levar (o que em sua
opinião era um) “desaforo para casa”. Esta mesma disposição, pude notar em
muitas histórias de brigas e pancadarias que me foram contadas durante as
entrevistas com ex-lutadores de jiu-jitsu. Eis o melhor exemplo:
Então eu acho que também acontecia o seguinte. Você não sai pra brigar. Mas
qualquer coisinha, se neguinho esbarra em você, você já diz “porra mermão, que
porra é essa? Se liga aí, cumpadi!”. Sabe, tipo assim, você já tá predisposto a não
levar desaforo pra casa. Não é nem levar desaforo pra casa: você não vai é sair
por baixo de uma discussão. Se o cara fala “qual foi?”, fodeu. “Como é que esse
cara me diz ‘qual foi’? Qual foi o caralho! Qual foi o quê, mermão!”. Se o cara
pede desculpa, beleza. Mas se o cara começa a enfrentar, pronto: “ah, eu vou
42
Entre jovens cariocas, é comum também escutar que “fulano é um cuzão”, significando que
trata-se de um “frouxo”, alguém sem disposição para a briga, e também que “fulano peidou”, isto
é, acovardou-se, fugiu à luta de maneira vergonhosa.
82
matar esse cara aqui”. É o famoso “porra, perdeu a noção do perigo?”. (Marcelo,
30 anos, ex-lutador de jiu-jitsu.)
Contudo, a expressão mais cristalina, ou a tradução mais perfeita deste ethos
atravessado pela noção de valentia a virilidade, encontrei-a não nas entrevistas ou
conversas informais com os colegas de academia, mas nas páginas da revista
Tatame, a principal publicação sobre jiu-jitsu e vale-tudo do Brasil. Trata-se de
uma coluna, cuja freqüência é incerta, assinada por Ramirez Escobar. Reproduzo
aqui o artigo em versão integral, apenas adicionando alguns parênteses
explicativos. O leitor há de desculpar a extensa citação; ocorre que, para a melhor
compreensão do argumento que venho desenvolvendo, o texto merece ser
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apreciado por completo.
Brincando de Lutar (por Ramirez Escobar)
Depois de pagar o mico de me vestir de Power Ranger no Natal, meu filho me
colocou em mais uma calça justa. Sempre brinquei de luta com o moleque e, por
motivos óbvios, ele me acha o mais forte dos samurais! Pois bem, no início do ano,
a mãe colocou ele no Judô. Era o menor da turma e rapidamente se tornou o
mascote da garotada. Só que de uns tempos para cá ele começou a machucar
alguns coleguinhas durante os treinos. Mesmo a quilômetros de distância, a culpa,
como não podia deixar de ser, acabou recaindo sobre mim. A mãe diz que ele
herdou a grossura do pai e o professor dele, para minha surpresa, resolveu entrar
em uma análise psico-comportamental do Ramirinho. E do alto dos seus 20 anos o
professorzinho chegou a brilhante conclusão de que meu filho bate nos colegas
durante os treinos porque eu bato nele quando brincamos de luta!
Não vou esconder que fiquei puto quando minha mulher veio me falar sobre o
assunto. Principalmente porque notei um certo brilhinho em seu olhar ao me
contar a opinião do professor de Judô. Saquei tudo na hora. Não satisfeito em
criticar a maneira como eu educo meu filho, o safado ainda queria comer a minha
mulher! Sem deixar pistas, passei a estimular o moleque a apavorar ainda mais
durante as aulas. Para minha mulher, falava que o problema era do professor, que
não tinha domínio sobre a turma. Até que um dia o professor-psicólogo teve outra
“brilhante sacada”. Resolveu pedir para o Ramirinho convidar o pai para fazer
uma aula. Ele e a mãe tanto me encheram o saco que acabei aceitando tal convite.
Faltavam dez minutos para a aula das crianças começas quando cheguei à
academia, ainda de terno. Coloquei meu quimono, amarrei minha faixa-preta na
cintura e fui para a sala. Mal entrei no dojô e o professorzinho gritou: “o papai
esqueceu de cumprimentar o Jigoro Kano”. As crianças riram, eu voltei para a
porta da sala e reverenciei um retrato velho que estava na parede. Dei mais três
passos e ele perguntou: “O papai é faixa preta de Judô?” Ao responder que minha
faixa preta era de jiu-jitsu ele me jogou uma faixa branca e pediu para trocar.
Olhei para o meio dos olhos dele e saquei o que estava acontecendo na hora. O
cara resolveu tirar onda com a minha cara na frente da minha família. Minha
vontade era de quebrar ele ali mesmo, mas segurei a onda. Não satisfeito o
judoquinha de merda começou a aula dizendo que ia aproveitar a presença de um
lutador experiente para demonstrar algumas técnicas avançadas de projeção.
Olhei para um lado, para o outro e deduzi que ele estava se referindo a mim.
Durante mais de dez minutos o sem-vergonha me usou de sparring para me jogar
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de tudo quanto foi maneira no tatame. A cada vez que eu me esborrachava no chão
ele dizia o nome da técnica e a criançada batia palmas. Em uma das quedas, cai
de frente para a platéia de pais, que para minha surpresa era enorme. Mais tarde
descobri que o safado do professor mandara bilhete avisando aos pais que haveria
demonstração. Mas o que mais me incomodou foi ver, no meio do público, a cara
de admiração com que minha mulher assistia ao professor espancar o seu marido.
A partir dali eu confesso que perdi o controle.
Na queda seguinte, aproveitei que o mané permaneceu em pé segurando meu
braço e o puxei para a guarda. Dominei braço e cabeça e disse para a platéia: “o
nome desse estrangulamento é triângulo. Corta a circulação de oxigênio para o
cérebro. Reparem como ele vai ficando roxo. Se [o professor] não bater [sinalizar
desistência], apaga”. Quando o professorzinho parou de resistir e finalmente
bateu, eu abri o triângulo e fui direto para um arm-lock [chave de braço]
invertido. Narrei mais uma vez o nome da técnica para a turma e a platéia e dei
uma estalada maldosa no braço dele. O cara bateu mais uma vez e soltou um
grunhido de dor. Aí eu fiquei de joelhos e dei a mão como se fosse ajudá-lo a se
levantar. Ele segurou e eu gritei “Olha o kataguruuuuuuma” e joguei o cara de
costas no tatame.
Eu ainda tinha mais técnicas para mostrar mas percebi que tanto a platéia quanto
as crianças estavam meio assustadas. Então levantei, peguei minha faixa preta de
volta e agradeci o convite do professor, que aquelas alturas tava meio torto. Dei
uma piscadela de olhos para minha mulher e saí. Só estranhei o fato de ninguém
ter batido palmas para as técnicas que eu demonstrei... bando de puxa-sacos!
(Fonte: Revista Tatame, edição 122, abril de 2006, p.58.)
O texto é bastante revelador de um modo de perceber as coisas
profundamente atravessado por um ideal machista de masculinidade, no qual
incluem-se questões (a virilidade, o não levar desaforo para casa) ligadas a esta
particular forma de ethos guerreiro que venho examinando. Em primeiro lugar, o
que seria uma constatação um tanto óbvia a um professor de judô – a de que uma
criança tende a reproduzir o comportamento que aprende dentro de casa –
transforma-se numa ameaça conjugal, numa possibilidade de adultério, sem que
haja qualquer indício mais concreto que aponte nesta direção. Um tanto
paranoicamente, Ramirez intuiu, através apenas da percepção de um suposto
“brilhinho no olhar” de sua esposa, que o “safado queria comer a [sua] mulher”.
Assim procedendo, transformou automaticamente o professor de judô em um
rival, potencialmente danoso à estabilidade de seu casamento. O que faz Ramirez
então? Reage ao estereótipo de lutador violento de jiu-jitsu de maneira que
termina por reforçá-la, primeiro estimulando o filho a bater nos coleguinhas de
treino, depois dando uma verdadeira surra no professor de judô, deixando toda a
platéia, inclusive sua mulher, claramente constrangida, assustada.
Em que pese o desmedido de sua reação, não se pode deixar de observar
que, ao convocar Ramirez para uma demonstração pública de técnicas de judô na
84
qual serviria como sparring, e sem o avisar explicitamente que tal se sucederia, o
professor de judô provocou de fato uma situação no mínimo desconfortável.
Estava em jogo ali uma disputa de autoridade, mediada neste caso pelo papel da
mulher de Ramirez. O professor de judô pretendia “dar uma lição” a Ramirez e,
mais ainda, fazê-lo na frente de seu filho de tal modo que este percebesse que seu
pai afinal não era nenhum super-herói, mas antes um mortal comum, igual a
todos, e portanto passível de ser derrotado. Aqui, mais uma vez, encontramos a
recusa em deixar sem resposta uma atitude considerada desrespeitosa (“Olhei para
o meio dos olhos dele e saquei o que estava acontecendo na hora. O cara resolveu
tirar onda com a minha cara na frente da minha família.”), acompanhada da
afirmação da própria superioridade frente ao seu adversário (“do alto dos seus 20
anos o professorzinho chegou a brilhante conclusão...”, “o judoquinha de merda
começou a aula dizendo...”, “aproveitei que o mané permaneceu em pé segurando
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meu braço...”). Como afirma Cecchetto, “é sobre a emasculação de outros que se
constrói um tipo de masculinidade hegemônica” (2004: 66); não é sem razão,
pois, que (assim como no confronto com o “gordinho broxa e bundão” contado
pelo Mestre) Ramirez, ao sentir ameaçado seu status de macho dominante, tenha
sentido a necessidade de desqualificar seu oponente em termos de virilidade e
potência corporal.
É sem dúvida redundante, mas nem por isso desnecessário, lembrar que toda
arte marcial confere poder, inscrito no corpo do indivíduo que a pratica. Ao
mesmo tempo, o ensino de artes marciais é tradicionalmente acompanhado de
uma filosofia, em geral pautada por princípios de não agressão e respeito ao
próximo, como é o caso do Judô, do Caratê e do Kung Fu, entre outras. Mas o jiujitsu brasileiro, como pudemos verificar através dos muitos depoimentos e
histórias veiculados na revista Gracie Magazine, nasce e se consolida como uma
arte marcial com um objetivo (um tanto sui generis) claramente definido, qual
seja, provar-se a mais eficaz em brigas de rua. Trata-se, neste caso, de uma
filosofia da eficiência, da competência e habilidade de usar o corpo-arma levados
ao seu grau máximo.
Se, com Pierre Clastres, lembrarmos também que “o guerreiro é, antes de
tudo, sua paixão pela guerra” (2004: 284), seremos levados a reconhecer que uma
tal filosofia da eficiência em confrontos violentos não fica de pé sem um estímulo
psicológico, um estado de espírito que só pode ser atravessado pela valentia, pela
85
disposição constante para a briga. Que os membros da família Gracie tenham
sempre exibido tal comportamento, não é novidade para ninguém. Também não o
é o fato de que muitos praticantes de jiu-jitsu igualmente revelem temperamento
mais intempestivo ou mesmo agressivo, talvez não tanto porque eles assim o
queiram, mas porque o podem. Este ethos guerreiro, que é a um só tempo parte da
atmosfera das academias de jiu-jitsu e uma de suas condições de possibilidade,
pude experimentá-lo em todo o seu vigor durante a adolescência. Contudo, não foi
exatamente com esta realidade com que me deparei quando voltei a praticar jiujitsu para a feitura desta pesquisa, na mesma academia de outrora. Práticas como
“taparia”, “bloqueio” e “baile funk” desapareceram dos treinamentos rotineiros de
jiu-jitsu – é significativo, por exemplo, que em sua etnografia entre lutadores de
jiu-jitsu, Cecchetto (2004) não faça qualquer menção a estes tipos de treinamento.
Na verdade, tais práticas não desapareceram, apenas profissionalizaram-se, e isto
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porque, com a explosão das competições de vale tudo, a porrada profissionalizouse. Atualmente, o MMA é a melhor oportunidade de bons salários para atletas de
jiu-jitsu; não sem razão, há na academia um horário exclusivamente dedicado à
preparação para este tipo de competição, do qual só podem participar alunos de
graduação mais elevada (faixa marrom ou preta) que desejam se profissionalizar.
Em resumo, o jiu-jitsu havia mudado. A faixa etária de boa parte de seus
praticantes também. Perguntado a este respeito, o Professor respondeu-me que
Antigamente eu chegava de olho roxo em casa, numa brincadeira dessas
[“taparia”], chegava pra minha mãe e não falava que era o jiu-jitsu, com medo
dela me tirar. Hoje em dia, não. Hoje em dia você faz uma “taparia” com uma
criança aqui, como a gente fazia, a mãe vai ver a marca, “quê que é isso?” Vai vir
aqui, é processo, tira da academia. Na nossa época, as mães liberavam mais,
tinham menos medo de violência. E outra coisa: quando a gente começou, a faixa
etária era dezesseis anos pra baixo. Hoje em dia, o cara de trinta anos não quer
tomar tapa na cara, pular carniça. O cara sai do trabalho, vai pra faculdade e vem
treinar, ele não quer vir aqui pra se matar, pra depois dar um rola [um treino
propriamente dito]. Antigamente não tinha neguinho de trinta anos, a maioria era
molecada, dava oito treinos direto. Hoje em dia, nego dá dois [treinos] e morre.
São outros tempos.
Foram os tempos atuais do jiu-jitsu que tentei captar em minha etnografia.
Há algo de paradoxal nesta tentativa, como apontei já na introdução deste
86
trabalho 43 . Meu objetivo era entender a relação entre jiu-jitsu e violência, relação
esta que se cristaliza na ação dos “pitboys”. No entanto, minha experiência em
campo acabou por não autorizar a feitura de uma associação direta, do tipo causa e
efeito, entre jiu-jitsu e “pitboys”. Mas não foi somente o jiu-jitsu e seus
praticantes que mudaram. Desde que foi criado, também o termo “pitboy” teve o
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seu uso alterado. Falaremos sobre isso no próximo capítulo.
43
A este respeito, vale lembrar que a segunda metade da década de noventa marcou o auge do jiujitsu, seu grau máximo de popularidade entre os jovens da zona sul carioca. Em outras palavras, o
jiu-jitsu estava definitivamente na moda. Como todo fenômeno de moda, o jiu-jitsu comportou um
sinal de distinção entre classes e engendrou sua própria decadência: no momento mesmo em que
se tornou dominante, começou a deixar de ser moda (Simmel, 2005).
3
Na Rua
“... que o cão acorrentado traz a fera no avesso”
Raduan Nassar, Um copo de cólera
Se buscamos entre as aspas da literatura a partida para este segundo
capítulo, é em função da pertinência da imagem que evocam, da acuidade da
metáfora que delineiam. Acaso não vivemos desde sempre deitados em berço
esplêndido, numa espécie de paraíso terrestre benfazejo, livre de rigores e
intempéries? Não gostamos de imaginar a nós mesmos através dos tempos como
um povo pacato e alegre, em nada afeito à discriminação por cor, etnia ou
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religião? Para dizê-lo logo, e de uma vez: este mito, o da nossa “não-violência
essencial” (Chauí, 2003: 47), é justamente a corrente que aprisiona a imagem que
construímos a nosso respeito. Os exemplos são muitos e por demais conhecidos;
por ora, limito-me a lembrar que quase nenhum brasileiro se diz racista, mas todos
conhecem alguém que o é 1 . Podemos ser tudo, menos pacatos.
Mas os brasileiros parecem gostar de olhar no espelho e nele ver refletida a
imagem de um povo pacífico, que não celebra o confronto e as artes da guerra.
Talvez por isso um fenômeno como a violência praticada por “pitboys” cause
tamanho estranhamento e choque. No capítulo anterior, acompanhamos a história
do desenvolvimento do jiu-jitsu pelas mãos da família Gracie e do ethos guerreiro
a ele associado. Acompanhamos também a atmosfera no interior de uma academia
– os treinamentos, as conversas, as eventuais rixas, os sacrifícios e identificações
corporais dos lutadores, os conflitos, os medos e paranóias. A partir de agora, o
foco deste trabalho muda. Passa a apontar diretamente o olhar para o problema da
violência associado aos chamados “pitboys”.
Antes, porém, de nos determos mais demoradamente neste assunto, é
preciso contextualizá-lo. Este não é um trabalho sobre história ou política, mas é
preciso tomar a ambas como ponto de partida, a fim de embasar a discussão que
se segue. A emergência dos “pitboys”, isto é, de bandos de jovens de classe média
1
Schwarcz, Lilia Moritz. Do Brazil, Brasil. Disponível no site www.companhiadasletras.com.br.
88
e alta que, sem motivação aparente, começaram a depredar boates e espancar
outros jovens na noite do Rio de Janeiro, não é um fenômeno que ocorreu num
vazio atemporal ou vácuo histórico. Portanto, faz-se necessário observar a título
de introdução, sem a pretensão de aprofundar exaustivamente o tema, a atmosfera
social e histórica dentro do qual a eclosão de tal fenômeno foi possível.
3.1
Contextualizando a discussão: breve painel da violência no Brasil
A história política da construção do Estado brasileiro não autoriza ou dá
ensejo a qualquer tipo de visão romantizada quando se trata de pensar questões
relativas à violência e sociabilidade no Brasil. Basta recuar um pouco no tempo, a
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fim de flagrar o estabelecimento de uma ordem autoritária e hierarquizante, para
comprová-lo. Voltemos, pois, ao século XIX, mas apenas para lembrar
brevemente certos pontos basilares desta discussão, a saber: que a singular
acomodação do modelo ibérico de organização institucional e estatal no Brasil
significou o desenvolvimento de um capitalismo comercial e patrimonialista
(Faoro, 2001); que a natureza agrária e escravocrata de nosso sistema produtivo e
econômico impunha limites à crescente pressão ao estabelecimento de práticas
verdadeiramente liberais no Brasil, dado que sua plena adoção significaria investir
contra a exclusividade da terra, que a tudo sustentava (Viana, 1991); que, do
ponto de vista da garantia dos direitos básicos do indivíduo e acesso à cidadania, a
manutenção de um Estado autoritário, forte e centralizado era uma escolha tão
discutível quanto uma necessidade consensual, posto que a descentralização
favorecia o despotismo das oligarquias locais, às quais não interessava estimular a
participação popular na política senão para perpetuar seu poderio e dominação; e
que, para encerrar o raciocínio numa chave tocquevilleana, um Estado altamente
centralizado como o brasileiro não apenas tendeu a inibir a iniciativa individual
como tampouco criou as condições para a solidificação dos ideais democráticos.
Poder-se-ia também, se fosse o caso, dar seqüência ao argumento a fim de lembrar
a indistinção entre público e privado, o clientelismo e a mediação através do
favor, adentrar o século XX seguindo os rastros de nossa modernização
89
conservadora, e tomando sempre a precaução de apontar, de tempos em tempos,
os abismos entre o povo e os processos de participação política.
Assim procedendo, acabaríamos por resgatar toda a longa história de
omissão do Estado brasileiro, toda a grande obra das relações personalistas e da
manutenção do poder entre as elites e, é claro, a exclusão política engendrada em
seu seio. Mas este não é o meu intuito aqui, e nem poderia ser, dado o escopo
deste trabalho. Antes, considero mais produtivo e mesmo vantajoso para os meus
objetivos saltar uma vez mais no tempo e aterrissar num Brasil que, de forma cada
vez mais acelerada, começava a deixar para trás sua estrutura fundamentalmente
agrária para transformar-se em um país urbano e industrializado.
Malandragem, medo, criminalidade
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Como é sabido, no Rio de Janeiro dos anos de 1940 à 1960 os crimes
tinham motivações ou características que hoje classificaríamos como românticas.
Não quero com isso dar a entender que considero tal período uma “época de ouro”
ou algo do gênero, assim incorrendo no equívoco da idealização do passado. Mas
parece inegável que, naquele tempo, a violência era menos banalizada, talvez pela
vigência de uma espécie de “código de honra” que incluísse o respeito pela vida
humana (Ventura, 1994). Era raro a um assalto seguir-se uma morte. Ao mesmo
tempo, o criminoso era visto por uma ótica notadamente mais macia e
complacente (Anjos, 2003).
À época, era corrente entre os intelectuais a idéia do bandido bom, heróico,
verdadeiro baluarte de resistência à injustiça, à exploração econômica, aos
ditames do capitalismo. Não são poucas as representações que o ilustram. No
cinema, o Bandido da Luz Vermelha, de Sganzerla, ou o Rio 40 Graus, de Nelson
Pereira dos Santos; nas artes, Hélio Oiticica proclamava: “seja marginal, seja
herói”; no teatro, a Ópera do Malandro, de Chico Buarque; no jornal, a “defesa
militante do ethos da malandragem” aliada à celebração do universo da
contravenção nas páginas de O Pasquim (Soares, 2000: 24-25). A figura do
malandro – atuando nas brechas do sistema legal, equilibrando-se entre o crime e
a lei, jamais tendo na transgressão desta sua primeira opção – transformava-se no
alter ego da parcela mais radical da intelectualidade (Zaluar, 1994).
90
Mas não apenas o malandro: havia, de modo geral, uma atmosfera de
tolerância em relação ao crime, de sorte que um violento protesto popular era
valorizado por sua qualidade transgressora. Criou-se assim, de forma quase
imperceptível, uma cultura dissimulada, esquiva, que se generalizou pelo tecido
social da sociedade, especialmente na cidade do Rio de Janeiro. No conjunto, tal
estado das coisas não deixou de se afigurar em um problema, pois se por um lado
o elogio à malandragem e ao ethos maior que a englobava pode ser encarado
como a celebração da criatividade e da esperteza com vistas a fazer valer as
relações pessoais em prejuízo da lei fria e generalizante, por outro poderia
significar a “negação dos princípios elementares de justiça” ou “o descrédito das
instituições democráticas” (Soares, 2000: 25-26).
Tais instituições, a bem da verdade, nunca dependeram muito de fatores
externos para se verem desacreditadas no Brasil. Após vinte e um anos de regime
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autoritário, o País enfim retomou o rumo da democracia. Houve inegáveis
avanços: o reconhecimento das liberdades civis e públicas, a diminuição da
distância e dos ruídos na comunicação entre a sociedade e o Estado, a ampliação
dos canais de participação política, a melhoria na transparência na tomada de
decisões políticas, a conquista de eleições livres e diretas. Tudo isso, no entanto,
não se fez acompanhar da instauração efetiva e plena do Estado de Direito. O
Estado não conquistou na prática o monopólio legítimo da força. A ineficiência do
sistema penal ficou patente, bem como a falência do modelo carcerário. A
impunidade, a violação dos direitos humanos em delegacias e presídios,
assumiram feições escandalosas e brutais. Em suma, à restauração da práxis
democrática correspondeu um expressivo aumento de violência, e isto em suas
diversas facetas: violência no interior da família, entre os jovens, na escola, no
trabalho, no campo, nos espaços urbanos em desordenada expansão (Adorno,
1995).
O retrato desta época é bem conhecido: o Brasil crescia e se modernizava, o
chamado “milagre econômico” fazia surtir seus efeitos, o Produto Interno Bruto
aumentava, assim como a miséria e a desigualdade. Em 1950, 70% da população
brasileira vivia no campo; em 1980, a proporção já se encontrava invertida, com
70% da população morando em cidades (Soares, 1999). Não é sem motivo,
portanto, que questões relacionadas à criminalidade em contextos urbanos
começam a entrar na pauta das políticas públicas. Sintomaticamente, surge nas
91
cidades um novo tipo de ordenamento espacial – os enclaves fortificados,
“espaços privatizados, fechados e monitorados, destinados a lazer, trabalho e
consumo” (Caldeira, 2000: 13) – e, com ele, um novo estilo de vida atravessado
pelo medo e por seu efeito mais imediato, a segregação. A segurança, direito do
cidadão e dever do Estado, torna-se um serviço cada vez mais privatizado, sujeito
às regras do mercado, o que não deixa de se configurar num desafio ao monopólio
do uso legítimo da força. Como assinala Caldeira (2000), este é um momento
privilegiado para se observar a estreita ligação entre formas urbanas e formas
políticas, posto que os princípios de igualdade e liberdade de circulação, que
inspiraram a idéia de espaço público moderno, são, na incipiente democracia
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brasileira, substituídos pela prática da separação e do controle de fronteiras.
No novo tipo de espaço público, as diferenças não devem ser postas de lado,
tomadas como irrelevantes, negligenciadas. Nem devem também ser disfarçadas
para sustentar ideologias de igualdade universal ou de pluralismo cultural. O novo
meio urbano reforça e valoriza desigualdades e separações e é, portanto, um
espaço não-democrático e não-moderno” (Caldeira, 2000: 12).
No bojo deste processo de agravamento da crise do Estado e urbanização
segregada veio a explosão da criminalidade e o aumento da sensação de
insegurança que inexoravelmente a acompanha. Entretanto, “ao contrário do que
se poderia prever, o volume de notícias sobre crimes nos meios de comunicação
de massa não traduz o crescimento ou a redução dos índices de criminalidade
construídos pelas organizações policiais” (Rodrigues, 1993: 39). Dito de outro
modo, ao aumento ou diminuição da criminalidade não necessariamente
corresponde uma maior ou menor exposição do assunto na mídia. Este não é o
lugar para se examinar em detalhes o papel da mídia na construção do medo, salvo
para chamar a atenção para o fato de que “o sentimento de insegurança, que se
encontra no coração das discussões sobre o aumento da violência, raramente
repousa sobre a experiência direta da violência” (Michaud, 1989: 13). Um
habitante de uma grande cidade brasileira não necessariamente sente-se inseguro
porque foi vítima de um ato violento: basta que seja suficientemente persuadido a
acreditar que pode a qualquer momento tornar-se vítima para que o sentimento de
92
insegurança nele se instale. Ou seja, não importa tanto a ocorrência do crime, mas
a percepção que se cria dele 2 .
E
porque
exaustivamente
discutida
e
noticiada,
porque
fixada
indelevelmente no imaginário social, a criminalidade urbana necessitava de
explicação. Num primeiro momento, a sociologia se ocupou da tarefa buscando
relacionar violência, modernização via capitalismo autoritário e aumento da
pobreza. Contudo, o surgimento de pesquisas empíricas que comprovavam que o
crescimento da violência podia ser observado também quando as condições de
vida melhoravam implicaram necessariamente em uma mudança de foco
(Carvalho, 2000). Abandonou-se a ligação estrita entre miséria e crime: o esforço,
então, concentrou-se mais na delinqüência, no desregramento derivado de causas
como a ausência de uma cultura cívica estabelecida. O enfrentamento da
problemática associada à violência através do viés economicista permaneceu
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ainda assim hegemônico, mas a ele vieram somar-se reflexões de cunho mais
político.
Nesse registro, a violência pode ser entendida não como diretamente
derivada do enfraquecimento do poder aquisitivo das camadas mais populares,
embora esteja a ele associado, mas sim “como o resultado da privação de
liberdade que impediu os desiguais de lutarem por seus direitos e por sua
incorporação à cidade” (Carvalho, 2000: 48). O ponto de partida é o
reconhecimento de que
a histórica inexistência de nexos entre os interesses das grandes massas cariocas e
uma esfera estatal democratizada produziu, ao longo do tempo, um padrão de
ética social coerente com as estreitas dimensões da comunidade política. Assim, à
“escassez de cidade” corresponderia um comportamento predatório e belicoso,
associado à satisfação privada de interesses e permeável à liderança de patronos,
inclusive daqueles ligados à contravenção e ao crime (Carvalho, 2000: 48-49)
Historicamente alijados de participação não apenas na arena política, mas na
definição do que conta como político – excluídos portanto de qualquer influência
2
Nesse sentido, episódios de violência de grande exposição midiática e dramaticidade plástica
(como o do ônibus 174 ou do assassinato do menino João Hélio, ambos no Rio de Janeiro),
funcionam como catalisadores do sentimento de insegurança. Sabemos que estatisticamente a
cidade não se tornou mais violenta depois de tais episódios, mas a sensação que se estabeleceu foi
exatamente esta. Para um exame mais abrangente do modo como as imagens da criminalidade
foram elaboradas ao longo da história no Rio de Janeiro, ver Rodrigues, 1993.
93
na construção do Direito – os segmentos populares acostumaram-se a ver no
Estado um ator que opera somente no interesse das elites. A marginalização
política dificultou sobremaneira a introjeção do sentimento de se fazer parte de
uma comunidade que partilha de uma trajetória coletiva. Tampouco ajudou a
legitimar politicamente a atuação do Estado. Eis o resultado: um Estado em crise,
incapaz de prover as mínimas condições de assistência e atuando com pouca ou
nenhuma legitimidade, viu sua autoridade fragmentada e o seu monopólio
legítimo da força substancialmente reduzido, abrindo assim espaço para o
fortalecimento de inúmeras microssociedades que operam segundo leis próprias.
Por outras palavras, a organização social passa a se reger de uma maneira cada
vez mais autônoma em relação ao quadro político-institucional. A cidade e seus
recursos, tornados escassos, transformam-se em objetos a serem disputados entre
os seus habitantes, não importando aí a legalidade dos meios empregados.
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Qualquer semelhança com o estado hobbesiano que os jornais se esforçam por
noticiar todos os dias não será mera coincidência.
A sociologia havia feito muitos avanços na compreensão dos mecanismos
de produção e reprodução da violência. Restava, contudo, descobrir quem eram e
como viviam aqueles setores populares cujo senso de organização social regiamse por códigos outros que não o do Estado. Tal empresa começou a ser levada a
cabo por Alba Zaluar (1985), em seu estudo etnográfico na Cidade de Deus. Com
efeito, Zaluar logrou ter acesso a uma realidade até então conhecida apenas pelos
jornais – a violência no dia-a-dia de uma grande favela –, e nos franqueou este
acesso. Surpreendeu o fim da malandragem, o bandido tomando o lugar do
malandro (ou o malandro tornando-se bandido, como no caso de Mané Galinha).
Identificou, nos meandros de um cotidiano atravessado por adolescentes armados,
policiais corruptos e pelo esporádico confronto entre eles, o surgimento de uma
nova ética, da razão cínica e utilitária – desfazendo assim a antiga imagem do
bandido bom, heróico. Percebeu que o tráfico de drogas, tornado empresa
altamente lucrativa, atuava como um sistema de socialização concorrente ao do
trabalho convencional, trabalho este que se revelou ambíguo em idéia e valor 3 .
3
Zaluar assinala que, entre jovens moradores de Cidade de Deus, o trabalho adquire sinal
negativo, associado a uma vida inteiramente desperdiçada em esforço sobre-humano, “vida
escrava”; já entre pais de família, é tido como um valor moral, que dignifica na medida em que
“põe comida na mesa”. Trata-se portanto, ela conclui, não de uma “ética do trabalho”, no sentido
normalmente associado à ética protestante, mas sim de uma “ética de provedor”.
94
Atestou, enfim, o estado de total desamparo no qual se encontram os moradores
de uma das maiores favelas do Rio de Janeiro.
Voltamos assim ao ponto onde começou esta introdução. Hoje, como ontem,
a massa popular só não se considera completamente ignorada e desprezada pelo
poder público, porque, afinal, o aparato policial vez por outra se faz presente,
achacando, atirando a esmo e matando, produzindo as notícias desta que ficou
conhecida como uma “guerra particular”. 4 Não é preciso muito para reconhecer
que o histórico de relacionamento do Estado com a população carente parece não
haver se alterado tanto ao longo do último século. Basta lembrarmos dos
bestializados de José Murilo de Carvalho (1987), ou da revolta contra a
obrigatoriedade da vacina em 1904 (Pamplona, 2003), para perceber como o
Estado foi sempre visto ou como uma entidade distante, ausente e
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descomprometida, ou como um intruso grosseiro e indesejado. Assim é que,
ao longo de mais de cem anos de vida republicana, a violência em suas múltiplas
formas de manifestação permaneceu enraizada como modo costumeiro,
institucionalizado e positivamente valorizado – isto é, moralmente imperativo –, de
solução de conflitos decorrentes de poder, de privilégio, de prestígio. Permaneceu
atravessando todo o tecido social, penetrando em seus espaços mais recônditos, e
se instalando resolutamente nas instituições sociais e políticas em princípio
destinadas a oferecer segurança e proteção aos cidadãos. Trata-se de formas de
violência que imbricam e conectam atores e instituições, base sob o qual se
constitui uma densa rede de solidariedade entre espaços institucionais tão díspares
como família, trabalho, escola, polícia, prisões, tudo convergindo para a
afirmação de uma sorte de subjetividade autoritária na sociedade brasileira
(Adorno, 1995: 301; grifo meu).
Autoritarismo e igualitarismo: a dupla mensagem na sociedade brasileira
A questão da violência no Brasil não se deixa apreender sem o dado de
ambiguidade e contradição que a informa e constitui. Trata-se da problemática
convivência entre os ideais de uma cultura política que se quer democrática com
uma cultura autoritária que remonta à nossa herança ibérica. Poderíamos voltar a
Gilberto Freyre (2003; 2005) e lembrar, por entre as casas-grandes e senzalas,
sobrados e mocambos, seus antagonismos em equilíbrio (Araújo, 2005).
Poderíamos também retomar não apenas as raízes do Brasil tais como Sérgio
Buarque de Holanda (2005) as via, isto é, transplantadas de solo ibérico para o
4
Para uma crítica das implicações (e omissões) do documentário de João Moreira Salles e Kátia
Lund, ver Ribeiro, 1995.
95
cultivo numa terra onde “todos são barões”, mas também seus rizomas (Veloso e
Madeira, 2000). Mas um esforço nesta direção fugiria aos objetivos e excederia as
limitações deste trabalho.
Tal problemática constitui o cerne da obra de Roberto DaMatta. Na frase
tantas vezes citada, DaMatta procurou “saber o que faz do brasil, Brasil”. E
procurou fazer isso valendo-se de um misto de sociologia francesa clássica e
antropologia estruturalista, sem com isso deixar de reconhecer o componente
romântico que esta última às vezes traz em seu bojo. 5 Nesta perspectiva, o
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primeiro ponto a se considerar é que,
tendo como fio condutor uma interpretação do Brasil claramente delineada,
podemos acompanhar o desenrolar de seu trabalho [de DaMatta] como uma
tentativa de se manter totalmente afastado de qualquer visão substantiva
(essencialista) de uma identidade nacional ou de um caráter brasileiro, a partir de
uma proposta de entendimento da construção desta identidade enquanto (um)
processo que se faz enquanto uma estória que, nós brasileiros, contamos sobre
nós, a nós mesmos (Sinder, 2003: 420).
Esta “interpretação do Brasil claramente delineada” estrutura-se em termos
de pares de oposições complementares: indivíduo e pessoa, casa e rua. Tal
dualismo seria decorrência do paradoxo constitutivo da vida da nação, a
convivência simultânea de valores modernos, típicos do universalismo burguês, e
de estruturas sociais tradicionais, como o personalismo e a hierarquia. Este o
dilema brasileiro: na esfera pública, no espaço da “rua”, o Estado impessoal e
burocrático governando por força de lei gerais; no âmbito privado, no espaço da
“casa”, a vigência do sistema de relações personalistas e dos códigos de relações
sociais dela decorrentes. Por outras palavras, a sociedade brasileira repousaria
sobre o “berço esplêndido das leis universalizantes”, mas teria no interior de seu
corpo um forte “esqueleto hierárquico”. Por um lado, tem-se em teoria o elogio de
um igualitarismo individualista, e por outro, a prática que o desacredita e
desautoriza. Ao apontar esta dicotomia – “somos iguais, mas diferentes” – Da
Matta (1983) propõe uma distinção básica para o entendimento de nossas relações
sociais: a separação entre “indivíduo”, para quem a lei se aplicaria de modo
rigoroso, implacável, e “pessoa”, privilegiada somente pelo fato de estar
5
Um bom exemplo de como o romantismo, na visão de DaMatta, atravessaria o trabalho de campo
na antropologia está em “O Ofício de Etnólogo, ou como ter Anthropological Blues”. (In: A
Aventura Sociológica. Nunes, Edson de Oliveira (org.) Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978)
96
devidamente inserida num sistema não menos privilegiado de relações sociais.
Seguindo a mesma linha, “casa” e “rua”, na perspectiva damattiana, devem ser
entendidas como categorias sociológicas, como atores sociais e não apenas palcos,
como “espaços morais” e não meramente físicos.
Estaríamos, por assim dizer, a meio caminho entre um igualitarismo
radicalmente universal, tal como encontrado nos Estados Unidos, e uma
hierarquização fixa e intransponível, caso da Índia. O que nos caracterizaria seria
justamente a união destas duas cosmologias, em quase tudo antagônicas; e não é
por outra razão que, segundo DaMatta, “o segredo de uma interpretação correta do
Brasil jaz na possibilidade de estudar aquilo que está ‘entre’ as coisas. Seria a
partir dos conectivos e das conjunções que poderíamos ver melhor as oposições,
sem desmanchá-las, minimizá-las ou simplesmente tomá-las como irredutíveis”
(Matta, 1997: 25).
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Nesta altura, caberia perguntar: como se daria a mediação entre estas
oposições? DaMatta não nega que, numa sociedade hierárquica, de passado
colonial e escravocrata como a brasileira, haja conflito. Afirma, entretanto, que
não gostamos de reconhecê-lo, avessos que somos às suas manifestações. Toda
sorte de conflito, dirá DaMatta enfaticamente, será resolvida primordialmente pela
via da negociação, a violência irrompendo apenas em ocasiões limites, quando
tivessem falhados todos os outros meios de negociação. 6 Mestres na arte de
conciliar e efetuar transações equilibradas, tendemos a encarar o conflito
declarado e aberto, algo relativamente comum em sistemas igualitários, como uma
prática que choca-se frontalmente com o nosso personalismo hierquizado e
hierarquizante.
Neste ponto, a expressão “Você sabe com quem está falando?” revela-se
instrumental poderoso. Ali onde teóricos mais tradicionalistas, muito afeitos às
“grandes questões” de classe e exploração econômica, enxergariam uma
expressão idiomática sem maiores significações, DaMatta viu a cristalização de
um rito autoritário usado para restaurar a ordem hierárquica numa situação onde
esta se encontra ameaçada ou abalada. Rito autoritário e por isso mesmo
indesejável, na medida em que expõe ou revela uma situação conflituosa. Se o
6
Veja-se, como mais um exemplo, a seguinte passagem: “o que fazemos, parece-me, é impedir a
todo custo a individualização que conduziria ao confronto direto, inapelável, impessoal, binário e
dicotômico entre brancos e pretos, inferiores e superiores, dominantes e dominados, etc.” (Da
Matta, 1983: 150).
97
princípio do igualitarismo ameaça se fazer valer, há sempre a possibilidade do uso
“Você sabe com quem está falando?” para colocar as coisas nos seus devidos
lugares.
O raciocínio de DaMatta alargou as possibilidades de entendimento do
7
Brasil , e talvez um dos melhores exemplos da fertilidade de sua perspectiva
esteja na obra de Luiz Eduardo Soares (1999; 2000). Soares chama a atenção para
a questão da dupla mensagem (double bind) resultante da hibridização da cultura
brasileira à qual DaMatta se refere, isto é, a junção entre a cultura personalista,
baseada na hierarquia, e o ethos moderno do individualismo burguês.
A química perversa que esta combinação precipita perpassa todo o tecido
social brasileiro, mas atinge de modo mais dramático os despossuídos. Um
exemplo basta. Imaginemos, diz Soares, uma criança pobre, moradora de um
grande centro urbano brasileiro. Na escola, recebe uma educação universalizante,
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na qual aprende os valores do individualismo moderno: que o exercício da
cidadania é um direito básico, que todos são iguais perante a lei etc. Em casa, o
processo de aprendizado destes valores continua através dos meios de
comunicação de massa, em mensagens publicitárias, novelas e que tais. Mas se
imaginarmos também que esta mesma criança tem uma mãe que trabalha como
empregada doméstica, então desde a infância ela será iniciada nas regras do jogo
da hierarquia, pois
a empregada será chamada pelo seu primeiro nome, esperar-se-á dela que faça
suas refeições na cozinha, que não use os elevadores e as entradas principais dos
prédios (isso ainda acontece, apesar de leis recentes o proibirem), e que trabalhe
mais horas do que o que seria regular, já que não há um acordo que claramente
estabeleça horários de trabalho, obrigações e direitos (até agora, mas isso esta
mudando) (Soares, 1999: 230).
7
Como é sabido, a obra de DaMatta marcou uma mudança de perspectiva nos estudos sobre o
Brasil. Escrevendo numa época em que as ciências sociais brasileiras encontravam-se imersas em
vocabulário marxista, empenhadas no desenho de amplos painéis macrosociológicos sobre
questões como integração de território e de estratos (Sinder, 2003), DaMatta lança mão de uma
análise culturalista para, na interpretação de rituais, festas e particularidades de nosso cotidiano,
buscar entender a “gramática profunda” da sociedade brasileira. Com efeito, a publicação de
Carnavais, Malandros e Heróis (1978), seu livro mais conhecido e criticado, logrou estabelecer
uma revalorização dos estudos antropológicos sobre o Brasil. Depois dele, temas como futebol e
samba, por exemplo, não seriam mais considerados como mera frivolidade, desprovidos de maior
significação e portanto desnecessários ao entendimento das questões relevantes do país, mas como
vias de acesso à compreensão da singularidade brasileira.
98
O problema, contudo, não está apenas na manutenção de um duplo padrão
de relações sociais, que desestabiliza as expectativas dos agentes e se impõe de
acordo com a vontade dos segmentos mais poderosos da sociedade. O problema
está também no fato de que a responsabilidade e a proteção aos subalternos, que
necessariamente acompanham as relações de tipo hierárquico, tendem a
desaparecer face ao avanço do universalismo das leis. Para as classes dominantes,
os códigos relacionais baseados no personalismo hierárquico funcionam como um
instrumento “para a conservação e naturalização da desigualdade, assim como
para a legitimação do darwinismo social”. Para a vasta maioria da população
brasileira, pobres e excluídos, funciona “opondo obstáculos à melhoria da auto-
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estima, da cooperação social e da participação política” (Soares, 1999: 231).
Temos assim o pior dos dois mundos: o pior da hierarquia, da qual escapam os
valores que envolvem mutualidade e só se conservam as diferenças e suas
conseqüências, como o exercício de poder e a afirmação da autoridade; e o pior
da formalidade moderna, típica do domínio racional-legal, na ordem liberaldemocrática, que é a indiferença, a disposição permanente e irrestrita a maximizar
benefícios individuais, e a renúncia legítima à responsabilidade pelo outro.
(Soares, 2000: 34-5.)
Mas, adverte Soares, não nos enganemos quanto a um ponto. A
complexidade da dupla mensagem e a realidade que ela engendra não é uma
espécie de degrau ou etapa inevitável a ser superada logo adiante, na realização
futura da modernidade. Da mesma forma, a violência não é uma espécie de
doença que eventualmente assolaria o corpo sadio da sociedade brasileira. Muito
ao contrário: o double bind já é a nossa maneira de sermos modernos, e a
violência, tal como a experimentamos no Rio de Janeiro, é “o modo de ser
contemporâneo da sociedade brasileira” (Soares, 2003:11).
Escolhendo palavras mais duras, poder-se-ia evocar Walter Benjamim
(1994) a fim de afirmar que este modo de ser de nossa sociedade seria nada menos
que o estado de exceção tornado regra. Pois trata-se de um estado cuja idéia de
“normalidade” abrange a naturalização da desigualdade social, a adoção
praticamente inquestionada da lógica da guerra, a ausência às vezes mínima de
respeito à vida humana – um estado enfim que, ao passar ao largo do Estado de
Direito, desacredita e repele muitos dos valores que nos distinguem enquanto
homens civilizados. Civilizados? Mas não teria sido verdade que, à medida em
99
que o Estado apropriou-se do monopólio legítimo do uso da força, o
temperamento irascível e fisicamente orientado dos homens, que estimulava o uso
da violência e glorificava as artes da guerra, se viu lenta e gradualmente
substituído pelo uso selecionado do cálculo e da polidez? (Elias, 1994). Não
haveria, portanto, uma correspondência entre a monopolização da violência e a
racionalização e psicologização dos comportamentos sociais? Colocando as coisas
deste modo, e tendo em mente o que foi dito acima, parece lícito perguntar se não
estaríamos testemunhando, por assim dizer, uma espécie de avesso do processo
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civilizador. Pois é certo que
à restauração do predomínio do confronto físico sobre a arbitragem estatal
tenderiam a corresponder os seguintes fenômenos: declínio da racionalidade
estratégica institucionalmente regulada; deterioração dos instrumentos de cálculo
social; afastamento das pautas psicológicas de juízo; aumento do poder de atração
de valores associados à força pessoal ou à capacidade individual de controlá-la
em benefício próprio; ampliação de condições para o estabelecimento da
hegemonia cultural de éticas adaptáveis ao império da violência, capazes,
portanto, de operar com noções e valores que, por exemplo, cultuem heroísmos,
culpabilizem algozes, depreciem mediações institucionais e possam oferecer
critérios de juízo compatíveis com a necessidade de preservar um mundo regido
pela busca da sobrevivência em contexto altamente competitivo (Soares, 2003: 22).
Se tudo isto de fato ocorre, então nada nos impediria de afirmar que, no
Brasil, o processo civilizador coexiste com o seu oposto simétrico 8 . Mas, e isto é
importante, o avesso de tal processo não é, como muitos gostam de pensar, algo
exclusivo de favelas, periferias, ou do cotidiano dos rotos e miseráveis cuja
existência insistimos em ignorar. Se há algo que os “pitboys” não nos deixam
esquecer, é justamente disso.
3.2
Imagens da barbárie: os discursos sobre “pitboys”
Manual do pitboy
Para ser um pitboy: 1. Ande sempre em grupo, pois você não é capaz de raciocinar
com sua própria cabeça, ou não é capaz de assumir sozinho os seus atos; 2.
Ataque sempre em condições numéricas superiores às da vítima (cinco pitboys
8
Devo esta observação ao prof. José Carlos Rodrigues.
100
para cada vítima); 3. Para vítimas, escolha as pessoas mais indefesas que você
encontrar, mulheres, pessoas de nível social mais baixo etc.; 4. Se “sujar”, nunca
assuma que você participou do ato; 5. Se não der para enganar, arranje uma
desculpa idiota para justificar seu ato de barbárie, tipo “pensei que ela fosse uma
prostituta”; 6. Demonstre covardia em seus atos.
Carta enviada por Dayse Pinheiro Cordovil da Rocha ao jornal O Globo,
publicada em 9/7/2007.
O desabafo da leitora, o transbordamento da indignação que a levou a enviar
uma carta a um jornal, explica-se em função de um crime cometido havia duas
semanas, crime este que mobilizara intensamente os meios de comunicação e
provocara grande comoção pública. Trata-se do episódio do roubo e agressão
sofridos pela empregada doméstica Sirley Dias de Carvalho Pinto, de 32 anos.
Sirley foi atacada de madrugada, quando esperava um ônibus na avenida Lúcio
Costa, na Barra da Tijuca. Além de ter sua bolsa roubada – perdendo assim um
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celular, R$ 47, um guarda-chuva, um agasalho e quatro chaves –, a doméstica foi
agredida a socos, chutes e cotoveladas por um grupo de cinco rapazes, todos
moradores de condomínios de classe média-alta da Barra da Tijuca, que voltavam
de uma festa em uma boate em São Conrado. Ouçamos Sirley:
Foi tudo muito rápido. Eles puxaram minha bolsa, e, quando eu me desequilibrei e
caí, começaram a chutar. O alvo deles era só a cabeça. Estou com um dos braços
roxo (o direito) porque tentei proteger meu rosto. Teve uma hora em que levei um
chute muito forte, no lado esquerdo do rosto, e tudo escureceu. Pensei que ia
morrer, e eles não paravam de bater. Foram muito cruéis, pareciam estar
drogados. Eles ainda agrediram outras duas senhoras antes de ir embora (fonte:
site do jornal O Globo; publicado em 24/6/2007).
Descobertos graças a perspicácia de um taxista, que anotou a placa do
veículo dos agressores e a entregou à polícia, os jovens foram presos e autuados
por tentativa de latrocínio, isto é, roubo seguido de morte. Na delegacia, “os
jovens riam e diziam que nada aconteceria a eles porque, no Rio de Janeiro, é
comum matar e roubar sem que haja conseqüências” (fonte: site do jornal O DIA,
publicado em 24/6/2007). Um dos acusados tentou justificar o ato afirmando que
havia confundido Sirley com uma prostituta. O pai de outro rapaz envolvido, não
obstante a visível gravidade dos ferimentos sofridos pela doméstica, tentou
amenizar o delito, declarando que “mulheres ficam roxas por qualquer coisinha”.
A revolta e a condenação pública do ato criminoso crescia à medida que os
jornais estampavam manchetes sobre o desenrolar do episódio. Em todas elas,
101
falava-se em mais um caso de ataque de “pitboys”. Sirley, diziam as manchetes,
havia sido agredida por “pitboys”; na delegacia, os “pitboys” não mostravam
arrependimento; o último “pitboy” que restava identificar acabara de ser detido, e
assim por diante. O que nenhuma manchete esclarecia, contudo, era se os tais
“pitboys” praticavam jiu-jitsu ou qualquer outra arte marcial. Na extensa
cobertura jornalística que se sucedeu, a palavra “jiu-jitsu” não foi mencionada
uma vez sequer. Mas as imagens dos rapazes na delegacia, veiculadas nos
noticiários, não deixavam dúvidas. Nelas não se viam corpos musculosos, cabelos
raspados ou orelhas deformadas, e sim biotipos magros, compleições físicas que
em nada remetiam à imagem de um lutador de jiu-jitsu. Como, então, explicar o
emprego do termo “pitboy” pela imprensa? A definição de “pitboy” não estaria
necessariamente atrelada à prática de alguma arte marcial, em especial o jiu-jitsu?
Quando surgiu, o neologismo “pitboy” servia para designar os lutadores que
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com freqüência provocavam brigas na noite do Rio de Janeiro. Com o tempo, no
entanto, o termo perdeu sua associação direta com o jiu-jitsu, passando a designar
qualquer indivíduo de classe média e alta, não necessariamente praticante de
alguma arte marcial, que fosse pego envolvido em atos criminosos (agressão,
vandalismo, roubo etc.). Em 2004, uma reportagem da Folha de São Paulo
assinalava que os “pitboys” seriam “jovens de classe média, alguns deles
praticantes de artes marciais, que saem à noite para brigar” (fonte: site da Folha de
São Paulo, publicado em 4/5/2004). Vale notar que o primeiro elemento usado na
definição da categoria “pitboy” é sua classe social, ficando em segundo plano a
adesão a alguma arte marcial. Atualmente, e isto o episódio da agressão à
doméstica Sirley deixa bastante claro, pode-se dizer que o termo “pitboy” é
utilizado menos como estereótipo do “lutador brigão” do que como uma categoria
de acusação que abarca a delinqüência entre jovens de classe média e alta de uma
maneira geral.
O primeiro (e até aqui único) trabalho a iluminar e explorar este ponto é o
de Bruno Cardoso 9 . Apoiando-se na labelling theory de Howard Becker (1977),
Cardoso analisa de forma minuciosa a cobertura que três ataques de “pitboys”
mereceram nos jornais cariocas, entendidos como “canais de fofoca”. Sua
primeira contribuição está em lembrar que, ao nos depararmos com o fenômeno
9
Cardoso, Bruno de Vasconcelos. Briga e Castigo: sobre pitboys e “canais de fofoca” em um
sistema acusatório. Dissertação de Mestrado – IFICS, UFRJ: 2005.
102
da violência praticada por “pitboys”, devemos logo de saída ter em mente que não
estamos lidando com um fato social em estado bruto, se é que existe algo como
um “fato social em estado bruto”, mas sim com uma complexa trama de
articulação discursiva sobre tal fenômeno. Pois empregar o termo “pitboy”
significa, antes de mais nada, fazer reverberar um estereótipo. E estereótipos,
como práticas significantes que são, não se limitam a “identificar categorias gerais
de pessoas – contêm julgamento e pressupostos tácitos ou explícitos a respeito de
seu comportamento, sua visão de mundo ou sua história (Freire Filho, 2004: 47).
Mais que uma imagem distorcida, porque reduzida, de uma determinada realidade,
o estereótipo é um construto através do qual se organiza o discurso do senso
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comum.
Como forma influente de controle social, [estereótipos] ajudam a demarcar e
manter fronteiras simbólicas entre o normal e o anormal, o integrado e o
desviante, o aceitável e o inaceitável, o natural e o patológico, o cidadão e o
estrangeiro, os insiders e os outsiders. Tonificam a auto-estima e facilitam a união
de todo “nós” que somos normais em uma “comunidade imaginária”, ao mesmo
tempo em que excluem, expelem, remetem a um exílio simbólico tudo aquilo que
não se encaixa, tudo aquilo que é diferente. (Freire Filho, 2004: 48)
O estabelecimento de um rótulo, de uma imagem estereotipada – o “pitboy”
– fez mais do que cristalizar em uma palavra, por assim dizer, um certo dado da
realidade. Se Becker tem razão em afirmar que “o desvio não é uma qualidade que
exista no próprio comportamento, mas na interação entre a pessoa que comete um
ato e aqueles que respondem a ela” (1977: 64; grifo meu), então a criação de um
categoria de acusação deve afetar profundamente a forma como que uma
sociedade se relaciona com um determinado desvio. O estudo do fenômeno dos
“pitboys”, acredito, pode servir como ilustração para aquilo que Foucault (1996)
tinha em mente quando afirmava que um discurso não apenas representa um
objeto, mas constrói este objeto no processo mesmo de representá-lo.
Contudo, a maior contribuição da pesquisa de Cardoso está em mostrar,
através da análise dos discursos midiáticos dos atores envolvidos em episódios de
ataques de “pitboys”, como a pressão popular por uma punição dura e imediata –
isto é, a demanda por “justiça” –, pressão esta capitaneada por empresários morais
(Becker, 1977), acaba resultando no atropelo dos próprios procedimentos sobre os
quais a justiça, agora sem aspas, está fundamentada. Nos três casos analisados em
103
seu trabalho, ocorreu uma mudança na tipificação criminal do delito cometido
pelos jovens que se envolveram em brigas: uma vez formalmente acusados de
“formação de quadrilha” e “tentativa de homicídio”, conseguiu-se sua detenção
imediata. Assim, fica evidente que o objetivo não é fazer valer a lei, mas sim dar
o exemplo, afirmar enfática e publicamente que tal delito não será tolerado. O
problema está em que, para fazer isso, é preciso torturar a lei, aplicá-la de modo
indevido porque excessivamente rigoroso.
Já se vê o curto-circuito. Ali onde as instituições supostamente deveriam
agir no sentido de desarmar a engrenagem que separa “indivíduos” e “pessoas”
(DaMatta, 1983), engrenagem esta que garante penas mais brandas (isso quando
as há) a quem “tem conhecimentos” ou “costas quentes”, Cardoso flagra a
reprodução de sua lógica, de seu modus operandi. Pois ao mobilizarem forças
para “dar o exemplo”, as autoridades desrespeitam as próprias leis que pretendem
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validar: colocam-se, assim, acima delas. O caso do promotor público Márcio
Mothé é paradigmático deste expediente. Ao jornal O Globo, declarou sua revolta
contra as atitudes dos “pitboys”, afirmando que estes, “quando se envolvem em
violência e são detidos já chegam perguntando: ‘Você sabe com quem está
falando?’” 10 . Mas, indignado com a atitude desrespeitosa de “pitboys” que teriam
mandado beijinhos para uma câmera de televisão, Mothé “não pensou duas vezes.
Deu vários telefonemas que culminaram com a prisão dos quatro na manhã
seguinte, graças a um mandato expedido depois que os acusados foram indiciados
pelos crimes de lesão corporal grave e formação de quadrilha” 11 . Para punir
exemplarmente os “pitboys” abusados, Mothé não se valeu do respeito à lei, mas,
ao contrário, do jeitinho que lhe estava ao alcance, de sua posição como “pessoa”
de grande influência – enfim, de um “você sabe com quem está falando?” às
avessas (Cardoso, 2005). Sem perceber, ajudou a corroborar e perpetuar uma
prática que tanto se esforça para corrigir.
Há ainda outra problemática implícita nisto que estamos a examinar: a
questão do pânico moral suscitado pela violência dos “pitboys”. Não é difícil ver
que o objeto do pânico moral não é tanto a ação dos “pitboys” em si, mas a
imagem da violência e da deliquência encarnada no interior de uma classe social
que, pelo menos em tese, distinguiria-se justamente pela ausência destas
10
11
Jornal O Globo, edição de 4/4/2004; apud Cardoso, 2005: 105.
Jornal O Globo, edição de 29/3/2004; apud Cardoso, 2005: 105.
104
qualidades. Como assinala Cardoso, “a força com que a fofoca sobre o assunto é
produzida (e reproduzida) mostra que, a indignação e a exigência de ‘castigo’ aos
jovens desviantes, aparece como um mecanismo inconsciente de afirmação das
fronteiras comportamentais entre as classes” (2005: 104; itálico do autor). Em
palavras simpes e diretas: há no Brasil a tendência a pensar que a violência
brutalizada, feita com as próprias mãos, é exclusiva das classes populares e dos
miseráveis. Por isso o escândalo, por isso o espanto: o desvio não seria condizente
com a posição social do desviante. A própria Sirley Dias, depois de agredida,
pontificou: “Esses garotos não tinham necessidade de fazer isso, eles têm de
tudo…” 12 . A premissa na qual fundamenta-se tal surpresa e indignação é a de que
o grau de violência no comportamento de um indivíduo seria inversamente
proporcional ao tamanho de sua renda familiar.
De outra forma, como explicar satisfatoriamente a enorme visibilidade que
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as brigas envolvendo lutadores de jiu-jitsu alcançaram na mídia? Descartar o fator
classe na construção do pânico moral em torno dos “pitboys” equivaleria, por
exemplo, a afirmar que um tiroteio ocorrido na Rocinha repercute da mesma
forma na imprensa que um tiroteio ocorrido numa favela da baixada fluminense. E
sabemos bem que há uma grande, uma enorme diferença entre balas perdidas
atingindo barracos de uma favela da baixada fluminense, e balas perdidas
atingindo apartamentos luxuosos em São Conrado 13 . Não gostamos de admiti-lo,
é verdade – mas não podemos negá-lo. Mas o curioso é que os próprios
praticantes de jiu-jitsu têm consciência disso. Não esperava encontrar um
depoimento que apontasse nesta direção, mas foi justamente o que aconteceu
quando perguntei ao Professor por que, em sua opinião, o estereótipo do “pitboy”
nascera associado ao jiu-jitsu:
A diferença é essa, muita gente de classe média e alta começou a fazer jiu-jitsu.
Quem disse que o pessoal da luta livre e do muai thai não briga? Só que eles vão
lá e brigam no Via Show, numa boate longe... O pessoal do jiu-jitsu começou a
brigar em boate da Zona Sul. Aí machucava o filho de um advogado, ia pra
imprensa. Machucava filho de uma atriz, filho de um político. Então sempre teve
briga de muai thai, de luta livre, mas o cara que briga lá no Raio de Sol, na Tijuca,
não vira notícia. Agora, o cara que quebra a Baronetti [boate em Ipanema] vai
virar notícia. Acho que é isso que ficou muito na mídia contra o jiu-jitsu.
12
Fonte: site do jornal O Globo, publicado em 24/6/2007.
Agradeço às aulas do professor Paulo Jorge da Silva Ribeiro, que chamaram minha atenção para
estas questões. Dou-lhe total crédito pelas idéias inspiradoras; os equívocos que por ventura delas
aqui decorrem, contudo, são por minha conta.
13
105
Mas seria injusto atribuir somente à imprensa todo o trabalho de
esterotipagem, de construção discursiva do “pitboy”. Também alguns trabalhos
acadêmicos contribuem para tanto, ainda que (gostaríamos de acreditar)
involutariamente e em menor escala. Senão, vejamos. Em “Cartografias da cultura
da violência”, Glória Diógenes afirma que
o objetivo do lutador [de jiu-jitsu] é, interminavelmente, testar seu corpo, sua
capacidade de resistência, a vencer ou a utilizar. Identificar a eficácia do seu
corpo-ferramenta e testar o controle e os limites entre o corpo-arma e corpoexplosivo. A esfera da cidade é identificada pelo lutador como um ampliado
tatame (...)” (1998: 176; grifo meu).
Como vimos no primeiro capítulo, nos tatames de jiu-jitsu não são
permitidos golpes traumáticos. O uso da violência é estritamente controlado:
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pode-se encaixar uma chave de braço ou um estrangulamento em seu adversário,
mas se ele sinalizar a desistência, você é obrigado a afrouxar o golpe
imediatamente, e então a luta recomeça. Além disso, práticas como a “taparia” e o
“bloqueio” não fazem mais parte do cardápio de treinamentos. O tatame não é,
pois, o espaço da “porrada”, do “vale tudo”: é o espaço de um esporte que, como
qualquer outro, só é possível porque existem regras que o definem. Obviamente,
trata-se de um esporte cujos ensinamentos podem ser de bastante utilidade em
uma briga de rua, mas o esporte em si não é violento, dado que não permite o uso
de golpes traumáticos. Por esta razão, não faz sentido afirmar que um lutador de
jiu-jitsu “encara a cidade como um enorme tatame”; aquela não é, de modo algum,
mera extensão deste. Além disso, testar o corpo e a capacidade de resistência é um
dos objetivos do lutador, e não o único e exclusivo objetivo – um adolescente
pode aprender jiu-jitsu para bater nos outros em festas e boates, ou para evoluir
tecnicamente até graduar-se faixa-preta, ou ainda migrar para o MMA e viver de
competições, ou, quem sabe, apenas para fazer um exercício que lhe dê um bom
talho ao corpo.
Implícita nesta e em outras passagens do trabalho de Diógenes está o que eu
chamaria de uma retórica alarmista, algo compreensível quando se trata de
abordar um fato social cujas manifestações empíricas parecem beirar o limite da
civilidade e do racionalismo. Compreensível, sem dúvida, mas de pouca utilidade.
Não precisamos de afirmações como “de algum modo, o corpo-arma branca do
106
lutador transmuda-se em corpo-arma explosiva, pronta para matar” (Diógenes,
1998: 175; grifo meu) para avançar na compreensão do problema. Não há
vantagem alguma em confundir algum grau de delinquência com psicopatia
desmedida, em transformar jovens que gostam de brigar em verdadeiros
assassinos, esperando apenas uma oportunidade para tirar a vida de alguém.
Mas é difícil escapar à tentação de tomar a exceção pela regra, e de emitir
um julgamento calcado no mais baixo denominador comum. Veja-se a seguinte
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passagem:
Nas academias, os praticantes de jiu-jitsu (fisiculturistas, veteranos ou não), são
os que enumeram o maior número de confissões com agressões físicas ou
homicídios. O Rio de janeiro é a capital nacional dos praticantes de tal arte
marcial. Em 1999, existiam mais de 400 academias que ensinavam o jiu-jitsu: o
maior número em todo o país (Veja, 3/02/1999). No verão do mesmo ano, em um
espaço de poucos meses, a imprensa noticiou a morte de duas pessoas envolvidas
em brigas provocadas por lutadores dessa arte marcial.. (...) O culto à agressão
gratuita é outra característica deste grupo. “Se o camarada fica me olhando, vou
lá perguntar o que é. Dependendo da resposta, arrebento a cara dele” (Rodrigo,
19 anos, estudante). Além das tatuagens, outra característica desta “tribo urbana”
são os dedos levemente tortos com nódulos nas juntas de tanto dar socos, a mão
calejada de musculação e a cabeça raspada ostentando apenas um topete. Estes
jovens vão a boates e bailes nos finais de semana com o intuito de brigar. Toda
segunda-feira é possível encontrar nos vestiários das academias integrantes deste
grupo contando suas proezas. Vão aos bailes em bando, dirigindo suas
caminhonetes – este é outro objeto de adoração desta tribo que preza carros
grandes e fortes –, apressam-se em consumir bebidas energéticas à base de
cafeína e aminoácidos misturadas com uísque e vodka; quando já estão agitados
começam a mexer e agarrar as mulheres e aí então inicia-se a pancadaria.
Frequentemente acabam nas delegacias de polícia, mas como são de classe
abastada nada a eles acontece, pois subornam policiais ou ligam para pais e
conhecidos influentes que os soltam. São também aficcionados por campeonatos
de vale-tudo (competições em um ringue em que só é proibido enfiar o dedo no
olho do adversário ou mordê-lo) e lutas de boxe (Sabino, 2004: 315; grifos meus).
O trecho acima é na verdade parte de uma nota de rodapé de uma tese de
doutorado – um excelente trabalho, diga-se – sobre fisiculturismo. Ao mobilizá-lo
para a discussão aqui proposta, meu objetivo não é o de criticar a validade da tese
como um todo, o que aliás seria totalmente descabido e injusto, mas somente
observar a violência contida na representação de um fenômeno como este dos
“pitboys”. Em um mesmo parágrafo, encontram-se algumas das generalizações
que compõem o estereótipo dos lutadores de jiu-jitsu tornados “pitboys”:
tatuagens, cabelos raspados, orelhas deformadas, carrões potentes, bebidas
energéticas misturadas com álcool, pancadarias em boates. Mas ocorre que “o
107
culto a agressão gratuita”, ao contrário do que é afirmado, não é “outra
característica do grupo”, isto é, dos praticantes de jiu-jitsu como um todo. Os
dedos “levemente tortos com nódulos nas juntas” não são de “tanto dar socos”,
golpe que aliás não faz parte do repertório de técnicas praticadas numa academia
de jiu-jitsu, mas sim efeitos da enorme quantidade de força dispendida na
“pegada”, isto é, no ato de segurar o sempre grosso e áspero quimono do
adversário. O vale-tudo não é uma competição onde “só é proibido enfiar o dedo
no olho do adversário ou mordê-lo”, pelo menos não desde o final da década de
90. Entretanto, o que salta aos olhos é afirmação de que, nos vestiários das
academias, é comum encontrar lutadores de jiu-jitsu enumerando “confissões com
agressões físicas ou homicídios”. Sem dúvida, parece bastante plausível que
lutadores de jiu-jitsu não tenham muitos pudores de se gabar das porradas que
distribuem em outrem (repito intencionalmente o plural empregado na citação
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original). Mas outra coisa, inteiramente distinta, são estes mesmos lutadores
confessarem abertamente que mataram alguém durante um final de semana. Isto
não soa nem um pouco convincente, e arrisco a dizer que, se tal tivesse mesmo
ocorrido, Sabino provavelmente teria se alongado um pouco mais no relato e
citado textualmente a fala do informante, tamanho o choque que lhe teria causado.
A distância entre a confissão de uma agressão e de um assassinato é simplesmente
grande demais para não causar um estranhamento mais profundo.
Para além dos efeitos de esterotipagem e do uso de uma retórica alarmista,
há outra importante característica no interior da trama de articulações discursivas
sobre “pitboys”. Trata-se da busca da explicação do fenômeno através do que
poderíamos chamar de o “discurso da falta”. Nessa perspectiva, a violência das
brigas e confusões acionadas por “pitboys” é sempre encarada como efeito ou
reflexo de algum tipo de ausência: de estrutura familiar, de educação (“limites”),
de leis mais severas, de segurança nas casas noturnas, de professores de jiu-jitsu
adequadamente formados, ou de todos estes fatores combinados. Como seria de se
esperar, tais discursos se fazem repercutir com maior frequência nos jornais,
especialmente nos dias posteriores a um episódio de agressão de “pitboys”,
quando as seções de “cartas dos leitores” transformam-se então em terreno fértil
para sua análise. Os exemplos são muitos e diversos, e seria desnecessário
esmiuçar todos aqui – sobretudo quando tivemos a sorte de encontrar todas estas
“faltas” condensadas numa única reportagem.
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108
Nem sempre acompanhados de um pitbull, eles têm em comum com a fera a
violência gratuita e padecem, também, de extremo preconceito em relação às
minorias, além de uma falta total de perspectiva de vida. “Eles não sabem o que é
Brasil, não tem noção de realidade. Vivem num mundo à parte”, dia a jovem F.V.,
vítima de um desses tipos. (...) Preocupado, o campeão Rillion Gracie atribui o
mau uso do jiu-jitsu à proliferação de academias, muitas vezes sem o controle da
federação. “Infelizmente, muitos professores desconhecem a história do jiu-jitsu e
são despreparados para dar aula”. (...) Para o psicanalista Wilson Amendoeira, a
questão é muito mais ampla. A sociedade está doente – e o pitboy é apenas um dos
indícios. É preciso deitar a sociedade em um grande divã, para encontrar a cura e
evitar outras tragédias. “A gente vê na clínica a dificuldade das pessoas de
compreenderem o que está se passando neste mundo, que tem como valores
máximos o individualismo, o sucesso a qualquer preço, a falta de compromisso
social. É preciso resgatar a solidariedade, o apreço pelo outro” (...) A ação
pautada no imediatismo é confirmada pela psicóloga Tereza Góes de Monteiro:
“A falta de perspectiva faz com que alguns regridam a um estado quase infantil, de
querer imediatamente o brinquedo preferido.” (...) O advogado de Mariângela
Massaro [mãe de um rapaz vítima de “pitboys”], Nélio Andrade, acha que a
certeza da impunidade e a falta de limites impostos pelos pais são fatores que
colaboram para o quadro de violência. “Os filhinhos de papai partem do princípio
de que nada vai ocorrer, porque têm grana para pagar a fiança. A família tem que
ser a primeira a impor limites”, lembra ele. (Fonte: Jornal do Brasil, edição de
12/09/1999; itálicos meus)
Seguindo a cartilha que recomenda explorar “todos os lados” da questão, a
matéria começa acusando a “falta total de perspectiva” que caracterizaria a vida
de um “pitboy”. Mobiliza em seguida o depoimento de uma vítima (“eles não têm
noção da realidade”) e a opinião de um conhecido membro da família Gracie
(“professores despreparados”). Na sequência, requisita os saberes científicos da
psicanálise e psicologia (falta “compromisso social e solidariedade”, falta
“perspectiva”). E encerra com o ponto de vista de alguém que conhece a
legislação e o sistema penal, um advogado (“certeza da impunidade” e “falta de
limite imposto pelos pais”). Tudo somado, eis o remédio: se a sociedade brasileira
fosse menos individualista e mais solidária de uma maneira geral; se os jovens de
classe média e alta tivessem mais “perspectivas” (seja lá o que isso signifique); se
vivessem todos em famílias devidamente estruturadas, que lhes dessem “limites”
(quais exatamente, nunca é dito); se praticassem jiu-jitsu somente com professores
pedagogicamente “responsáveis” e muito conscientes da filosofia da arte marcial
criada pela família Gracie; se tivessem a certeza de que, caso espancassem alguém
na rua, seriam severa e irreversivelmente punidos pela lei – enfim, se tudo isso
viesse a se tornar realidade, aí então não teríamos “pitboys”. Mas, se tudo isso de
109
fato acontecesse, não seria a realidade: seria o melhor dos mundos. E no melhor
dos mundos não há crime de espécie alguma, porque não há o quê os motive 14 .
Não vivemos no melhor dos mundos. Portanto, ao lidar com a manifestação
incômoda da violência, deveria ser mais produtivo dirigir o olhar não para o quê
esta manifestação nos diz sobre o que nós não encontramos em nossa sociedade,
mas sim para aquilo que de fato nós podemos encontrar 15 .
3.3
Enfim, porrada: depoimentos de “ex-pitboys” e seguranças de casas
noturnas
E, com efeito, não estaríamos desde o início deste trabalho procurando
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justamente levar a cabo uma tentativa de examinar o fenômeno dos “pitboys” em
suas positividades? Começamos por esmiuçar, no interior das academias de jiujitsu, a emergência de um sistema que se retroa-alimenta: a idéia de superioridade
técnica, ingrediente fundamental na formação da identidade da arte marcial que
carrega o sobrenome Gracie, exigia sua provação constante em lutas e brigas, que
por sua vez exigiam a manutenção de uma série de dispositivos a que chamamos
de ethos guerreiro, ethos este que, com o tempo, tornou-se ele mesmo ingrediente
fundamental da identidade dos praticantes do jiu-jitsu. Inferimos daí aquilo que
chamamos de “filosofia da eficiência”, e suas repercussões na pedagogia de uma
aula de jiu-jitsu. Observamos a construção de um certo ideal de masculinidade nos
treinamentos diários de jiu-jitsu, isto é, as práticas da“taparia”, “bloqueio” e “baile
funk” como partes integrantes do rito (mais amplo) de passagem à idade adulta,
“pseudo-iniciações” que visavam transformar meninos em homens. Atentamos
para a inscrição corporal de uma subjetividade moldada por este ethos guerreiro: a
“casca-grossa”, construção de si que atua como recurso de sociabilidade, e a
orelha “estourada” – símbolo máximo de pertença –, uma espécie de “Você sabe
com quem está falando?” não-discursivo. Apreciamos a problemática que envolve
a questão da homossexualidade – que o lutador de jiu-jitsu é perseguido pelo
14
Esta idéia, e a argumentação que a sustenta, tomo-a emprestada do artigo “Cidade de Deus e
suas discursividades”, do professor Paulo Jorge da Silva Ribeiro (2006).
15
Aqui, não faço mais do que seguir o conselho do professor José Carlos Rodrigues, conselho este
que foi decisivo na maneira de pensar e escrever esta dissertação.
110
fantasma de sentir prazer em agarrar-se a outros homens. E abordamos, ainda que
de forma necessariamente breve e inconclusiva, questões que tangenciam todo
este debate sobre virilidade e masculinidade, como por exemplo a importância do
sucesso de lutadores brasileiros (sobretudo Royce e Rickson Gracie) em eventos
de vale tudo para a afirmação da auto-imagem dos praticantes de jiu-jitsu, e a
importância do estímulo dado pelas “marias-tatames” à solidificação de uma idéia
de masculinidade profundamente atravessada por maneiras que poderíamos
chamar de grosseiras, rudes.
As entrevistas com ex-lutadores de jiu-jitsu – entre os quais, alguns que na
adolescência poderiam ser considerados “pitboys” – e seguranças de casas
noturnas e eventos, fizeram emergir importantes questões que devem contribuir
para o aprofundamento da discussão. A racionalidade empregada no ato de sair na
porrada; o fato de fazê-lo como um jogo/brincadeira (“play”), no sentido que lhe
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dá Huizinga (2005); o descontrole controlado das emoções (Featherstone, 1995) e
o componente de risco que acompanham a briga; a necessidade de visibilidade e a
identificação com um modo de ser associado à violência do crime organizado; a
afirmação da hierarquia que delimita fronteiras de classe, traduzida no emprego da
expressão “sabe com quem está falando?”; todas estas questões serão discutidas a
partir dos relatos dos entrevistados. Vejamos, pois, como se articulam em relação
aos “pitboys”.
Racionalidade e cálculo
Conforme observado, no início da década de 90 os praticantes jiu-jitsu eram
treinados técnica e psicologicamente para se convencerem de que eram
fisicamente superiores não somente em relação a outros homens, mas sobretudo
em relação a adeptos de outras artes marciais. O ethos guerreiro dominante (e
exigido), o necessário endurecimento até a obtenção da “casca-grossa”, a
disposição em não “levar desaforo para casa”, a confirmação da supremacia da
técnica em eventos de MMA, tudo convergia para a criação desta sensação de
superioridade. De fato, Hélio Gracie parece ter alcançado seu objetivo, o de “criar
um veículo para dar segurança às pessoas”:
111
O jiu-jitsu te deixa muito mais autoconfiante. Eu pelo menos sentia que eu não
apanharia de ninguém, entendeu? Pra mim, podia ser do tamanho que fosse. Tudo
bem, se treinasse jiu-jitsu também e fosse grande pra caralho, aí fodeu. Mas se o
cara é leigo, mesmo o cara sendo grande, se você tiver experiência, você consegue
segurar o cara, e pelo menos não apanha. Então tinha essa autoconfiança em
você, isso é fato. (Rafael, 31 anos, ex-lutador de jiu-jitsu.)
A mesma opinião é compartilhada por outro ex-praticante de jiu-jitsu:
E o jiu-jitsu funcionava né, cara? O pior de tudo era isso, o jiu-jitsu funcionava
pra cacete. Em briga de rua, a eficiência é absurda. Quando eu via duas pessoas
que não treinavam, que não sabiam jiu-jitsu, brigando, eu me lembro de falar
“caramba, eu enfio a porrada nesses caras muito rápido, muito rápido”. É
impressionante, o jiu-jitsu é muito eficiente. (Rogério, 30 anos, ex-praticante de
jiu-jitsu)
Há nisso um dado de suma importância: porque treinado numa técnica de
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defesa pessoal que acredita ser insuperável, o lutador de jiu-jitsu sente-se
razoavelmente seguro para se envolver numa briga. Este discurso, o da eficácia da
técnica em confrontos violentos, é relevante na medida em que aponta para uma
característica que normalmente não se costuma associar aos “pitboys”, a
racionalidade. É comum pensarmos que o “pitboy” que espanca alguém numa
boate sem qualquer motivação aparente esteja agindo como um “animal” – meio
homem, meio cão pitbull – completamente desprovido de razão e consciência.
Não obstante, as coisas se passam de modo diverso: o “pitboy” sabe o quê está
fazendo. Não quer isto dizer que o “pitboy” aja sempre de maneira premeditada –
por exemplo, ir a uma boate já com o intuito de provocar briga –, embora isto
eventualmente aconteça, como veremos na sequência. Quer dizer, isto sim, que ele
conhece com precisão de detalhes o repertório de movimentos que deve executar
caso se envolva em alguma confusão ou pancadaria: sabe exatamente o quê deve
ser feito e, mais importante, como fazê-lo. Nesse sentido, o que se pretende aqui é
chamar a atenção para o cálculo ou a racionalização que envolve o domínio do
uso do conjunto de técnicas corporais fornecido pelo jiu-jitsu 16 .
16
Tal racionalização empregada no ato de brigar parece se coadunar com o diagnóstico de
cientistas sociais quanto à crescente atenção dispensada à aquisição de controle e peritagem
corporal de si (Breton, 2003; Ortega, 2006), e ao recurso calculado de comportamentos
transgressores (o uso de drogas sintéticas, no caso) entre jovens de classe média e alta do Rio de
Janeiro (Almeida e Eugenio, 2006). O primeiro ponto, de relevo teórico, remete-nos à observações
sociológicas de validade mais ampla. O segundo, a um estudo antropológico de cunho empírico
que se debruça sobre o mesmo universo de indivíduos pesquisados neste trabalho. Voltaremos a
este ponto logo adiante.
112
O cara que sabe brigar, que vai sair conscientemente na porrada, ele traça uma
estratégia. Mesmo que seja uma coisa rápida na cabeça dele, ele é estratégico. Ele
não faz aquilo sem pensar. “Eu vou entrar assim, dar pisão, depois baianar”... Ele
não entra assim “ah que se foda, vou entrar de qualquer jeito”. Você entra já
pensando. Mas ele não tá pensando nas consequências que aquilo pode ter. O cara
que é porradeiro é inconsequente por natureza. Eu acho que isso aí acontece
muito. (Rafael, 31 anos, ex-praticante de jiu-jitsu)
Mencionamos anteriormente alguns dos principais estudos que apontam
para a crescente importância do corpo na construção da identidade do sujeito.
Vimos, ainda que de passagem, algumas das implicações deste processo, isto é, o
surgimento da bioidentidade e da biossociabilidade que a informa e acompanha.
Vimos também que a preocupação do indivíduo com o corpo é levada ao extremo
não por uma escolha meramente individual, mas por toda uma cadeia de pressão
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advinda da transformação da saúde (mental inclusive: o bem estar) e do ideal da
boa forma em um bem a ser consumido. Assim, não é de se estranhar que a
preocupação e o controle do próprio corpo assumam, nos dias atuais, caráter
eminentemente ascético.
Mas o que importa ressaltar é que o caráter ascético da construção corporal
do sujeito supõe a idéia de um self reflexivo, ou seja, um indivíduo totalmente
consciente e vigilante de si. Cuidados médicos, higiênicos e estéticos: a
construção da identidade pessoal é permeada pela observação e controle de todas
as variáveis que afetam o corpo. Assim, o vocabulário que acompanha a aferição
do desempenho do corpo ganha,
também uma conotação moral; uma nova
ideologia, o healthism (Ortega, 2006; Bezerra Jr., 2002 17 ). O indivíduo que
constrói a si próprio de maneira ascética, ao mesmo tempo em que persegue a
obtenção do corpo perfeito ou ideal, busca a experiência de uma vida regrada,
calculada. Eis aí o imperativo da disciplina contrapondo-se aos imperativos do
prazer e hedonismo (tão propalados pelos teóricos da vida pós-moderna). A
necessidade de dietas rigorosas, sexo seguro e trabalho exaustivo do próprio corpo
constrangem o princípio da fruição do prazer sem limites. Hoje, diz Ortega
(2006), o sujeito hodierno seria não tanto a imagem do consumismo ou
17
Benilton Bezerra Jr. define o healthism como “uma ideologia que combina um estilo de vida
hedonista (maximização de prazeres e evitação de desprazeres) com uma obsessiva preocupação
com práticas ascéticas cujo objetivo, longe de buscar excelência moral, elevação espiritual ou
determinação política, é otimizar a vida pelo cuidado com a aparência de saúde, beleza e fitness,
atendendo assim ao que parece ser a imagem do sujeito ideal atual (2002: 233-4).
113
hedonismo desvairados, mas antes do controle ascético de si. Em parte, esta
também é a imagem do lutador de jiu-jitsu tornado “pitboy”. Pois a ele não seria
possível envolver-se frequentemente em brigas e pancadarias sem a necessária
confiança em sua habilidade e potência de luta, confiança esta que só é adquirida
mediante o adestramento do próprio corpo em treinamentos exaustivos.
A idéia de que jovens cariocas de classe média e alta se valem da
racionalidade e da constante peritagem de si durante a adoção de um
comportamento tido como transgressor ou desviante, foi anteriormente explorada
por Almeida e Eugenio (2006) em um estudo sobre o consumo de drogas
sintéticas em festas raves e boates do Rio de Janeiro. As autoras demonstram
como o tradicional discurso que procura explicar o uso de drogas – ancorado em
noções negativistas como “fuga da realidade” ou perda de si – não se aplica no
caso do universo pesquisado. Pois, no trabalho de campo, não se depararam com
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jovens desejosos de renúncia ao mundo à sua volta, mas justo o inverso: jovens
que buscavam o acesso à intensidade do momento, a potencialização das
sensações corpóreas vividas no instante. Mais ainda, constataram que o consumo
de ecsasty é feito segundo um código pragmático de gerenciamento da
experiência: há que se saber (ou aprender) o ambiente certo para ingerir a droga, a
dose a ser consumida, o horário apropriado, bem como conhecer inúmeros
“macetes” indispensáveis à perfeita fruição de seus efeitos, a saber, evitar o
consumo de álcool, beber água para compensar a desidratação causada pela
elevação da temperatura corpórea, mascar chiclete para aliviar os dentes
“trincados” etc.
Algo de semelhante pode ser dito no caso dos “pitboys”, não apenas em
função da aquisição da competência técnica, do uso calculado do corpo, do
trabalho de gerenciamento de si, ou ainda da premeditação do comportamento
transgressivo, mas também e sobretudo em função da procura pela intensidade
vivida no instante – a diversão, a excitação do risco, a adrenalina.
Uma vez fomos numa festa grandona lá na Barra. Tava eu, o Márcio, o Claudio, o
André. Aí na saída, mó galera, né, e tal, inclusive tava o Fulano e o Beltrano [cita
os nomes de dois conhecidos lutadores atuais de vale tudo, um deles membro da
família Gracie; na época do relato, contudo, eram adolescentes]. Tinha uma
galera. E de repente passa um cara jogando bola, e o André chegou e saiu
correndo pra brincar de bola com o cara, mas o cara dá um “come” [drible] no
André. O André é ruim de bola. Aí ele vai e “come” no André de novo. Aí
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114
neguinho sacaneia “ahhhh, André!”. Aí daqui a pouco o André sai puto atrás do
cara, dá um chute na perna do cara, e ele reclama “pô, quê isso, quê isso...” e
bota a bola debaixo do braço, “não, pára com isso”. Aí meio que morreu a
parada. Aí a gente viu que os amigos do tal cara iam “juntar” o André, só que eles
não viram que o André tava com a gente. Aí um cara começou a discussão com o
André, e nós chegamos “que porra é essa, vocês vão querer juntar o nosso
camarada?”. Aí os caras já amansaram totalmente, e nisso que os caras já
amansaram totalmente o Fulano [hoje lutador de vale-tudo] saca um protetor de
boca, botou o protetor lá e eu falei “porra, tu veio preparado mesmo pra parada,
que marra é essa...”. Botou o protetor de boca dele, aí chegou o [outro atleta que
hoje luta vale-tudo, da família Gracie]. Já tinha meio que morrido a confusão, os
caras viram que não iam juntar o André, e ele também não queria brigar. Aí o
Gracie chega colando uma cotovelada na cara de um deles, abriu um corte, e aí
neguinho se empolgou e começou a bater nos caras. Dessa vez eu nem me meti, só
fiquei olhando. Porque ali não tinha razão... Eu não gosto dessas covardias. Os
caras brigaram, pá, pá, pá, aí sairam correndo, e neguinho saiu correndo atrás do
caras, e eu falei “caralho, quê isso!”, correndo atrás dos caras no
estacionamento... Aí os malucos entraram no carro, ligaram o carro, sairam meio
que cantando pneu, sairam meio que passando perto de um amigo nosso,
“caralho, queria me atropelar!”, aí neguinho botando mais pilha ainda, só que
chegou na hora de pagar o estacionamento, tinha fila... Mermão... Neguinho
chegou e des-tru-iu o carro dos caras, brother... Neguinho estourou o vidro do
carro, neguinho chutando os vidros do carro, as lanternas, batendo nos caras
dentro do carro, quebrando tudo, pau, pau, pau! Mas como os caras nem sairam,
neguinho não machucou tanto os caras. Mas, porra, quê isso? Sem razão. Lá
atrás, por causa de uma bola... Foi foda. Do nada. (João, 35 anos, ex-praticante
de jiu-jitsu.)
Emoção e risco
Quando a briga parece inevitável, prestes a explodir, o jovem tira do bolso
um protetor de boca, desses que se usam em lutas de boxe. Coloca-o: está pronto
para o confronto. Para além da óbvia constatação de que o rapaz saiu de casa já
com o intuito de se envolver em uma briga, o espanto: ele o faz com um grau
inimaginado de expertise. Ciente dos riscos, mas disposto a corrê-los, ele emprega
um recurso inusitado, para dizer o mínimo, a fim de garantir a si próprio alguma
proteção. Caso a porrada termine por lhe ser desfavorável, poderá voltar para casa
com um corte no supercílio, um nariz que sangra, um olho inchado. Mas os dentes
haverão de permanecer intactos.
Featherstone refere-se ao conceito de Wouters (1987) de “descontrole
controlado das emoções” como um “nível superior de controle das emoções”
(Featherstone, 1995: 116) 18 . Com isso, dá a entender que tal descontrole se passa
18
É pertinente notar que Elias utiliza a mesma expressão, com conotação semelhante, para se
referir ao esporte: “Um dos principais traços fisionómicos das sociedades altamente diferenciadas
115
apenas na superfície: sua condição de possibilidade, aquilo que o permite e
autoriza, é na verdade sua antítese, a capacidade de gerência de si. Colocar-se à
prova, jogando com os limites das próprias emoções e tateando suas regiões
fronteiriças, exige um sujeito competente em termos de autocontrole emocional,
um sujeito que confie em si mesmo a ponto de se permitir tal comportamento. A
idéia é útil para se pensar o problema da violência associada aos “pitboys”, por
razões diversas.
De saída, a ressalva: não se trata aqui de procurar em dispositivos
psicológicos as motivações ou raízes de fatos sociais. O cálculo e a racionalidade
envolvidos no “descontrole controlado das emoções” são, como espero haver
demonstrado, socialmente construídos. Além disso, vale observar que este
descontrole não é assim tão descontrolado muito em função de fatores externos ao
sujeito. É raro o jovem lutador meter-se sozinho numa briga, como se verá nos
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depoimentos de ex-praticantes de jiu-jitsu e seguranças de casas noturnas.
Normalmente, ele está acompanhado de uma “galera” 19 , cuja influência em sua
vida é num certo sentido contraditória.
A: Naquela época, rolava muita pressão da galera da academia para você sair
junto com eles, arrumar confusão em boate, essas coisas?
Túlio: Cara, com quinze anos você é muito influenciável, você não consegue
contestar dez pessoas assim, na cara, você não consegue chegar lá e argumentar
porque... Tem a pessoa que sabe o que é certo e errado, e sai fora. Mas essas
assim eram poucas, e acabavam sendo excluídas. A maioria das pessoas era
influenciável, eu várias vezes acabei indo fazer merda com a galera e dizia “vou
ficar olhando só”. Pura babaquice, porque se você tá olhando, você tá
participando, é crime, se você for ver lá no código penal, é crime. (Túlio, 34 anos,
ex-lutador de jiu-jitsu.)
e abastadas do nosso tempo é o facto de apresentarem uma variedade de actividades de lazer
superior a qualquer outra sociedade que se possa imaginar. Muitas dessas ocupações de lazer, entre
as quais o desporto nas suas formas de prática ou de espetáculo, são então consideradas como
meios de produzir um descontrolo de emoções agradável e controlado. Com frequência, elas
oferecem (embora nem sempre) tensões miméticas agradáveis que conduzem a uma excitação
crescente e a um clímax de sentimentos de êxtase, com a ajuda dos quais a tensão pode ser
resolvida com facilidade (...) (Elias, 1997: 73; grifo meu).
19
Há uma preocupação metodológica que não deve ser desprezada aqui. Como assinala Magnani
(2000), é preciso tomar o cuidado de não observar uma “tribo urbana” como estando isolada de
todas as demais redes de interações e relações sociais; há que se considerar os múltiplos
pertencimentos dentro dos quais se insere um indivíduo de uma grande cidade. Neste sentido, o
jovem “pitboy” não é exclusivamente “pitboy” em tempo integral: ele deverá ser, por exemplo,
também um integrante de uma torcida organizada, frequentador de um determinado point de praia
etc. Se não averiguamos com maior profundidade tais interseções, não foi por ignorá-las, mas por
falta de espaço e tempo: um tal esforço excederia em muito as possibilidades desta dissertação.
116
Por um lado, a galera contribui para expor o jovem a riscos, pois, para ser
aceito, ele deverá constantemente provar-se um “casca-grossa”. Mas uma vez
acolhido, o indivíduo passa a contar com a galera como um mecanismo de
proteção. Ao se envolver numa briga, o jovem sabe que contará com a apoio dos
amigos caso as coisas se compliquem seriamente. Há sempre a possibilidade de se
machucar, é claro, mas não há o risco de não ser ajudado numa situação realmente
difícil: se estiver “apanhando” demais, os amigos hão de interceder e decretar o
fim da briga. E caso sofra um infortúnio ainda maior – digamos, ser linchado por
um outro grupo rival –, não faltarão punhos dispostos a vingá-lo. “Galera”, assim,
é também sinônimo de segurança 20 .
Com efeito, o rapaz que sai à noite para se divertir portando no bolso da
calça jeans um protetor de boca, este rapaz está antes de mais nada disposto a
experimentar (e superar) o medo, a agitação nervosa que atravessa os instantes
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imediatamente anteriores ao início da briga, ali onde reside a incerteza, onde as
possibilidades ainda estão em aberto. O script tantas vezes ensaiado pode afinal
cumprir-se: o rapaz deverá tentar um ou dois socos, encurtar a distância e levar
seu adversário ao chão para então subjugá-lo, esmurrando-o impiedosamente ou
fazendo-o desmaiar por meio de um estrangulamento. Mas tal desfecho, neste
estágio, não é de todo certo, embora seja provável. Algo pode sair “errado”: o
adversário pode lhe acertar um golpe decisivo e certeiro – uma cotovelada na
têmpora, um soco na ponta do queixo –, que o faça tombar desacordado. Isto, até
o mais hábil lutador de jiu-jitsu é obrigado a reconhecer.
A consciência do perigo da derrota, da possibilidade do fracasso, é
comprovada pela própria necessidade de carregar consigo o protetor de boca.
Toda vez que está prestes a começar uma briga, toda vez em que se coloca na
situação de estarem os punhos, os seus e os de seu oponente, cerrados, esperando
apenas a decisão de fazer o primeiro movimento, o rapaz sabe-se correndo um
20
Mas é forçoso reconhecer que hoje a situação não é mais a mesma. O aumento da incidência de
crimes com armas de fogo contibuiu para mudar substancialmente o quadro. Veja-se, por exemplo,
o seguinte depoimento: “Eu andava com muita gente esquentada, eu participei de muita briga,
muita briga mesmo. E era esquentado também, às vezes... E as pessoas eram esquentadas também,
todo mundo era esquentado naquela época. Mas era uma época também que eu acho que não tinha
muito esse negócio de tiro, facada, que hoje em dia é uma coisa muito maior. Era mais aquela
coisa de se estressar por causa de mulher, a minha mulher, a sua mulher, blá, blá, blá, trocava
umas porradas, uns tapas e no dia seguinte tudo bem. Era mais o negócio de briga mesmo”.
(Marcelo, 30 anos, ex-lutador de jiu-jitsu.)
117
risco 21 . O exato momento que antecede o início da porrada, que de algum modo
requer o desencadeamento de uma tempestade emocional furiosa, contém algo de
paradoxal: se se deixar conduzir pela raiva cega, pelo desejo e ambição de triturar
seu oponente o quanto antes – concentrando-se exclusivamente nos fins, não nos
meios –, o rapaz arrisca botar tudo a perder. Ele deverá, assim, manter sob estrito
controle o descontrole de suas emoções, tarefa de resto facilitada pela prévia
introjeção de um saber corporalmente apreendido que aflora, automático, no
decorrer da luta.
O recurso ao protetor de boca revela, a um só tempo, a vontade premeditada
de “sair na porrada” e o medo em fazê-lo quando a hora chegar. Expõe a
consciência da disposição de praticar a violência e a consciência do receio em
sofrê-la. Mas é senão esta última – a consciência que se liga ao medo, ao risco, ao
azar, ao imponderável – que seduz e estimula o lutador. Sem a excitação do risco,
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brigar não teria graça 22 . E o risco, segundo José Machado Pais,
...pode ser um recurso usado para transcender a natureza anódina do cotidiano.
(...) Um risco toma-se, não surge por acaso. Implica um desafio, uma escolha ativa
baseada no cálculo ou na confiança; uma avalização dos limites que separam o
sucesso do insucesso. Por isso, o risco funciona como uma espécie de “filtro
hermenêutico” dos atos a que se relacionam (Pais, 2006: 11-12).
Como assinala Rodrigues (2006), o gosto pelo desafio adquire sentido
quando se observa o fascínio que os homens demonstram em submeterem-se à
provações extremadas, a ultrapassarem limites e convenções. Numa equação,
poder-se-ia dizer: quanto maior o risco, maior o feito, maior o reconhecimento
que dele se extrai.
Por representarem simbolicamente limites, fronteiras entre o social comum e o
cósmico extraordinário, as ousadias materializadas nas provações físicas, nos
exageros, nos transes, nas abstinências, nos êxtases, nas viagens, nos retiros e
reclusões, nos silêncios impostos, nas mortes simbólicas ou reais... muitas vezes
figuram de modo positivo nos mitos e nos rituais de constituição dos poderes e dos
poderosos. A experiência simbólica dos limites é fonte de poder. (Rodrigues, 2006:
166; grifo meu.)
21
Agradeço ao prof. Luiz Eduardo Soares por haver chamado minha atenção sobre este ponto.
Duas ressalvas. A primeira é que o uso do termo “graça”, que remete à diversão, ao prazer, é
proposital. (Veremos, na sequência, o porquê). A segunda é que a presente reflexão sobre a
adoção de práticas arriscadas é largamente inspirada, para dizer o mínimo, em estudo do prof. José
Carlos Rodrigues (2006) sobre os “pingentes”, os assim chamados “surfistas de trem” cariocas.
22
118
Nesse ponto, caberia perguntar: e o que há de racional nisso? Precisamente
nada. Mas a relação entre segurança e risco não é tão antagônica quanto faz
parecer. Acaso não vivemos em meio a uma epidemia de obsessão pelo bem estar
– planos de saúde, vitaminas, dietas, cirurgias plásticas, terapias variadas etc. – ao
mesmo tempo em que assistimos à popularização de esportes ditos radicais, como
o rafting (canoagem em corredeiras), base jumping (salto de pára-quedas de
prédios e penhascos), bungee jumping (salto de pontes com o uso de elásticos),
tow in surfing (surfe em ondas gigantes, possível apenas com o auxílio de jet skis),
etc.? (Rodrigues, 2006). Outro modo de colocar a questão é avaliar a relação entre
a busca da extensividade, isto é, o desejo de prolongar a vida ao máximo, e a
procura por intensividade, que privilegia o momento e a fruição do instante em
detrimento dos impactos negativos a longo prazo. Mais uma vez, onde se
esperaria antagonismo, encontramos complementaridade. Os surfistas deslizam
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por sobre vagalhões oceânicos de até trinta metros de altura, mas o fazem com
pranchas criadas com material de última geração, coletes especiais que incluem
reserva de oxigênio e uma equipe de resgate de jet skis e helicópteros. Jovens
cariocas de classe média e alta consomem drogas sintéticas cujos danos ao cérebro
são suficientemente conhecidos e alardeados, mas de maneira geral o fazem
tomando todos os cuidados para não perder “a linha” e o emprego 23 . “Pitboys”
promovem brigas e pancadarias, mas, da mesma forma, o fazem no mais das
vezes de modo a garantir para si razoável nível de proteção ou segurança.
No ato de “sair na porrada”, a adrenalina se conjuga com a frieza, o cálculo
e a competência se confundem com a experiência simbólica, o investimento na
intensividade não anula a preocupação com a extensividade. Em suma, razão e
emoção não divergem, coincidem. O que nos remete ao trabalho de Eric Dunning,
realizado com Norbert Elias. Dunning distingue dois tipos de violência: a
violência racional ou instrumental, “meio de assegurar a realização de um objetivo
dado”, e a violência afetiva ou expressiva, “subordinada a ‘um fim em si mesmo’
emocionalmente agradável e satisfatório” (Dunning, 1997: 330). Pretendo
argumentar que a violência praticada por “pitboys” é simultaneamente racional e
23
Almeida e Eugenio (2006) destacam dois importantes aspectos do gerenciamento de si que
informam o uso de ecsasty entre jovens cariocas. O primeiro, que na gíria é referido como “perder
a linha”, é o absoluto repúdio a qualquer sinal exterior que denote exagero na dose (“ficar com os
olhos revirando”) ou a inexperiência em suportar ou saber aproveitar os efeitos da droga (“bad
trip”). O segundo é o cálculo do uso da droga de modo a não compremeter a vida profissional do
usuário (por exemplo, não tomar ecsasty em dia de semana ou no domingo).
119
afetiva, instrumental e expressiva. Racional e instrumental porque é de fato um
meio de alcançar um determinado objetivo – vingar a namorada desrespeitada,
sair de uma boate sem pagar a bebida consumida, provar-se mais homem que os
outros homens e assim por diante. Expressiva e afetiva porque, como veremos,
apresenta-se também como um fim em si mesmo – divertir-se.
A: E o pessoal gostava de sair todo mundo junto para dar porrada nos outros?
Rogério: Tinha aquela questão de galera, tanto de academia quanto de bairro. Na
época tinha modinha de galera. “Ah, vamos pegar os caras de Botafogo”. Eu
nunca fui de me envolver muito nisso não. Mas tinha muito esse lance de sair na
porrada na night. E normalmente quem saía na porrada na night era galera de jiujitsu, justamente por causa desse lance de se achar macho. Chegava lá, “achava
que era maneiro sair cobrindo o cara de porrada, dar cabeçada, dar baiana, jogar
o cara na mesa”. (Rogério, 30 anos, ex-lutador de jiu-jitsu.)
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Diversão: a “guerra”e o jogo
Assim como o cálculo e a racionalidade se fazem presentes não apenas no
momento da briga, mas antes no interior da academia, também o componente
afetivo atravessa, primeiro, o treinamento. No início dos anos 90, época em que o
jiu-jitsu popularizou-se, a simulação da porrada nos treinos era, para muitos
lutadores, uma prática sobretudo lúdica. Apesar dos potenciais riscos, de contusão
ou derrota, “taparias” e “bloqueios” não podem ser corretamente entendidas sem
que se observe a atmosfera prazerosa que as envolvia.
Treinei algumas vezes vale-tudo com o pessoal da Carlson Gracie. Eles faziam
treino de vale-tudo nos finais de semana, às vezes me chamavam pra ir porque eu
também tinha feito boxe e muai thai. Os caras ficavam amarradões, porque eles
queriam alguém que soubesse socar, pra bater neles. Cara, era o seguinte. Era de
sunga, eles botavam luva em mim e eu tinha que largar a mão neles, e eles tinham
que me imobilizar só usando o jiu-jitsu. Era basicamente isso. E como eu tinha
noção de jiu-jitsu e sabia mais ou menos o quê eles iam fazer, eu era um bom
treino pra eles. Não era bobo no jiu-jitsu, e sabia bater. (Lucas, 32 anos, exlutador de jiu-jitsu.)
Acontecia também de grupos de amigos reunirem-se, nos finais de semana,
para simularem lutas de vale-tudo em tatames improvisados na área de lazer de
algum prédio ou casa de um dos integrantes:
Às vezes a gente até combinava no final de semana, tinha um tatame aqui em casa,
e o pessoal vinha e o pau comia, era “taparia” direto... Até que uma vez o meu pai
120
chegou de fora, e trouxe umas luvinhas, dessas de vale-tudo, que você consegue
segurar, porque deixa os dedos soltos. Aí, mermão, aí foi a festa. Dava pra socar e
pra segurar, botava o tatame e treinava porrada. Era a diversão da galera, né.
Uma vez a gente chegou até a armar um mini-campeonato de vale-tudo só da
galera, só entre amigos, mas acabou não rolando. (João, 35 anos, ex-lutador de
jiu-jitsu.)
Um campeonato informal de vale-tudo disputado entre amigos só é possível
quando todos os envolvidos vêem na simulação da porrada uma brincadeira-jogo
(“play”) no sentido que lhe dá Huizinga (2005) 24 ; uma diversão que, por mais que
acirre o espírito de competição – afinal, ninguém gosta de apanhar –, não deve ser
por si só suficiente para exaltar os ânimos e despertar animosidade. Segundo
Huizinga, o jogo é anterior à cultura e também superior e autônomo em relação a
ela 25 , o que todavia não significa que uma forma específica de brincadeira-jogo,
como esta a que procuro observar, não possa se desenvolver em função de
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disposições sociais ou culturais historicamente determinadas. Dizer o oposto seria
dizer que o elemento lúdico que permeia a relação de lutadores de jiu-jitsu e
“pitboys” com a briga estaria desde sempre absolutamente inscrito em algo como
uma “natureza humana”, não sendo em nenhuma medida um construto cultural.
O jogo é uma função significante; tem um determinado sentido. No jogo, há
sempre algo “em jogo”, que “transcende as necessidades imediatas da vida e
confere um sentido à ação” (ibidem: 4). O jogo, contudo, é irracional: suas
principais características, afirma Huizinga, residem na intensidade da prática, no
poder de fascinação que ela exerce e no divertimento que proporciona aos que
dela participam. A intensidade a fascinação não nos soam muito estranhas como
qualidades inerentes à um confronto violento, como no caso de uma briga. Temos
maior dificuldade, no entanto, em aceitar a idéia de que nela possa haver
divertimento. Mas é exatamente isto o que se passa:
A: Como é que eram os papos, as conversas dentro da academia? Vocês falavam
sobre as porradas que aconteciam?
24
Ao trazer Huizinga para a presente discussão, meu objetivo é tão somente mobilizar suas idéias
sobre as características fundamentais do jogo para pensar a prática da porrada entre “pitboys”.
Portanto, deixarei de lado suas observações a respeito da tranformação sofrida pelo jogo nas
sociedades modernas, criticadas, aliás, por Elias e Dunning (1997). De acordo com estes autores,
Huizinga não teria efetuado “nenhuma tentativa para analisar a sociogénese desta suposta
transformação, nem para a relacionar rigorosamente com as suas fontes sociais estruturais” (Elias e
Dunning, 1997: 309).
25
“Os animais”, afirma, “não esperaram que os homens os iniciassem na atividade lúdica”
(Huizinga, 2005: 3).
121
Marcelo: Sabe o que eu me lembro? Eu me lembro de papos assim: “A noite foi
irada. Peguei três mulher e saí na porrada”. Tipo foi o auge da noite, entendeu?
Pegou três mulher e saiu na porrada! [risos] Se só tivesse pegado três mulher, sem
sair na porrada, não era tão legal. Então, a porradaria era uma coisa
importantíssima, assim. É muito doido. (Marcelo, 30 anos, faixa-preta de jiu-jitsu.)
O principal do relato, segundo me parece, é este “o auge da noite”. O auge é
o clímax, o momento de maior excitação, o gozo. O dado que de imediato chama
a atenção é o prazer, a satisfação retirada da prática da violência. Porém, note-se:
trata-se de um elemento lúdico no interior de uma atividade mais ampla, lúdica
em toda sua extensão, a noitada. Não há como entender a briga destacada deste
que é seu contexto imediato. Ela é parte de um roteiro de diversão noturna que
inclui mulheres (o plural aqui respeitando a fala do entrevistado), bebidas e,
eventualmente, toda sorte de atos de vandalismo, tudo isso fazendo parte daquilo
que os jovens chamam simplesmente de “zoação”. Não foi sem razão que um dos
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entrevistados, sem que eu houvesse dito ou insinuado nada a respeito, contou o
seguinte episódio:
Porra, a gente fazia muita merda! Pichava muro de neguinho, pulava de prédio em
prédio... Numa dessas, todo mundo quietinho, tava pulando o muro pra invadir um
prédio, quando de repente, sei lá se a grade tava mais pra fora, o cara começa a
gemer “uhhhhhh, ahhhhhh” e todo mundo “cala a boca, porra!” [risos]. O cara
continuava “uoooohhhhhhh”, e nego fazia “shiiiiii, fica quieto porra! Tá
maluco?”. Mermão, a parada foi a seguinte, eu só vi a calça jeans do cara ficando
marrom, tava manchando, parecia que tinha cagado nas calças. O cara espetou o
saco na parada! Espetou o saco no ferrinho da grade... [mais risos] A gente caiu
fora e avisou pro porteiro “aí, tem um cara com o saco preso, enganchado lá na
grade, ajuda lá”. (Túlio, 34 anos, ex-lutador de jiu-jitsu.)
Em outra ocasião, perguntei se não acontecia também de a “galera” sair para
“zoar” com prostitutas e homossexuais:
Ah, isso rolava também. Tinha um amigo meu que era mestre nessa merda. Eu tava
dentro do carro uma vez com ele, quando ele se pendurou pro lado de fora e
encheu as costas de um cara com uma “tapetada”. [A “tapetada” consiste em
enrolar o tapete de borracha do chão do automóvel e usá-lo como um porrete.]
Não era nem puta não, era um maluco num ponto de ônibus, em pé, voltando da
noitada. Tomou uma senhora “tapetada” nas costas e gritou “aaaahhhhhh”. Mas,
porra, isso não é maneiro. Você agredir assim, por nada... E teve uma outra vez
também, neguinho encostou o carro e chamou as piranhas assim “Aí, chega aí”.
Começaram a falar com elas e tal tal tal, aí daqui a pouco eles falaram alguma
coisa pra elas colarem o rostinho perto da janela do carro... E o cara pega o
extintor e rááááááááá, dá uma extintorada na cara das malucas, saqualé? Aí as
mulher “arf arf arf”, tossindo mal, porra, aquela porra é tóxica, neguinho mandou
122
uma extintorada na cara, como não entra? As mulher “arf, arf, arf”, passando mal
ali 26 . (Marcos, 31 anos, ex-lutador de jiu-jitsu.)
Nesse sentido, a porrada não seria exterior à “zoação” característica do
circuito noturno de tais jovens, mas, ao contrário, parte integrante dele. Pode-se
portanto dizer que a briga, no registro específico que estamos a observar, insere-se
dentro de um contexto eminentemente lúdico, cujas características incluem a
infixidez, o deslocamento contínuo e frenético (espécie de zapping pelas
alternativas disponíveis na noite, geralmente à procura dos bares ou boates que
estejam “bombando”, isto é, bem frequentados), a comunicação regida por
princípios de fisicalidade (“chegar” nas mulheres, “pegar” as mulheres), a
disposição constante de “ir para a guerra”, ou seja, comportar-se de modo a beijar
o maior número possível de bocas na mesma noite (Almeida e Tracy, 2003). Esta
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última metáfora, a da guerra,
sintetiza de modo radical o modus operandi das subjetividades atravessadas pelos
regimes da fisicalidade. Nessas circunstâncias, afetos são disparados, olhares e
toques físicos convertem-se em armas de guerras. A “máquina de guerra nômade”
atinge sua intensidade paroxística através dos agenciamentos afetivos, que
culminam na prática da “pegação”. Boate é essencialmente “pegação”, é guerra,
esgrima e combate de olhares, aproximações entre massas corporais, projéteis
disparados, arremessos. No setting das espacialidades da night, enfim, as
economias internas e suas formas de inteligibilidade são balizadas pela condição
de “guerra permanente” (Almeida e Tracy, 2003: 91).
Não se trata de entender a “guerra” como um estado de espírito belicoso e
sempre alerta, mas antes como uma disposição em atirar-se, em tentar interações
diversas e ousadas sem receio ou pudor, tudo estando regido pelo princípio da
26
Por coincidência, os jornais cariocas de 5 de novembro (2007) noticiaram um caso semelhante
de agressão a prostitutas, ocorrido na Barra da Tijuca. O site do jornal O Globo informa que um
grupo de rapazes teria jogado fumaça de extintor de incêndio em prostitutas e travestis da avenida
Lúcio Costa, na Barra da Tijuca: “Os jovens contaram na 16ª DP (Barra da Tijuca) que queriam se
divertir assustando as prostitutas. (…) Quando elas se aproximaram do veículo, eles lançaram o pó
do extintor de incêndio. Os três disseram que estão arrependidos. ‘Nós fizemos uma coisa muito
errada e estamos arrependidos. Até pedimos desculpas a elas lá fora (em frente à delegacia). Mas
não agredimos ninguém. Somos bem diferentes daqueles caras que agrediram uma mulher há
algum tempo por que acharam que ela era prostituta [refere-se ao episódio da doméstica Sirley
Dias]. A gente está careta. Não bebemos nada e nem estamos drogados, fizemos foi uma enorme
besteira’, disse Fernando, que dirigia seu carro, um Fiesta, quando ocorreu o crime. Já o pai de
Fernando teve uma atitude bem diferente. Para ele, os jovens ‘não fizeram nada demais’: ‘Eles não
fizeram nada demais, tem gente que faz coisa pior. Foi apenas uma brincadeira de crianças.
Qualquer um já passou por isso quando adolescente. Não entendo por que os jornalistas estão
interessados nessa história’, disse o pai, que também se chama Fernando.” (Fonte: site do jornal O
Globo, publicado em 5/11/2007.)
123
fisicalidade. Mas o clima de aventura, de roleta russa afetiva, não deixa de incluir
um prazer pelo risco, um gosto pelo desafio. Assim, que melhor coroação para
uma noite de “guerra” bem sucedida – três, quatro mulheres? – do que uma boa
porrada? O grand finale, para não deixar dúvidas: a afirmação paroxística da
própria potência e virilidade, a confirmação do status do macho dominante. O
auge da noite.
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O fulano [diz o nome de um jovem membro da família Gracie] era um cara que
começava uma briga por nada. Via que tava uma rolando um bate-boca, chegava e
dizia “vamos começar logo essa porra” e bum!, colava uma porrada na cara de
um, e aí começava a brigar geral. Uma vez ele falou abertamente pra mim, cara, a
gente tava numa casa de praia, e neguinho conversando e dizendo pra ele “porra
mermão, tem que parar de brigar, tem que parar com essa história, tá mandando
mal, tá queimando filme”. E ele falou “porra cara, vocês não gostam de sair na
night pra pegar mulher? Então, eu gosto de sair pra brigar, eu gosto de brigar”.
Isso ficou na minha cabeça. (João, 35 anos, ex-praticante de jiu-jitsu.)
Como foi dito, “ir para a guerra”, em ambos os sentidos, implica em correr
riscos. Em toda guerra, em toda brincadeira-jogo, o elemento de tensão ocupa um
papel importante, posto que tensão significa incerteza, acaso. As qualidades do
jogador-guerreiro são postas à prova, e nisso reside boa parte do atrativo da
“guerra”. “A essência do espírito lúdico”, assevera Huizinga, “é ousar, correr
riscos, suportar a incerteza e a tensão. A tensão aumenta a importância do jogo, e
esta intensificação permite ao jogador esquecer que está apenas jogando”
(Huizinga, 2005: 59). Mas como pode um sujeito que confessa explicitamente
gostar de sair para brigar, de ferir pelo prazer de ferir, estar “apenas” brincando ou
jogando? Como pode a barbárie ser lúdica? A brincadeira-jogo não seria, por
definição, oposta à seriedade?
De fato, o jogo é diemetralmente oposto à seriedade. Isso, contudo, não
significa nem que o jogo é necessariamente cômico, nem que algumas de suas
formas não possam ser sérias, ou envoltas em sisudez. “ O jogo é um combate e
um combate é um jogo. (...) O fato é que é possível um jogo ser mortal sem por
isso deixar de ser um jogo, o que constitui mais uma razão para não se estabelecer
separação entre os conceitos de jogo e de competição” (Huizinga, 2005: 47). Não
é por outro motivo que muitas das histórias de brigas e pancadarias me foram
contadas com um misto de leveza e descontração. Inúmeras vezes os entrevistados
desandavam a rir durante os relatos.
124
A: Conta aí mais alguma história de briga.
Lucas: Teve uma outra confusão também muito engraçada. Aconteceu na frente da
academia com um faixa preta nosso, pirado da cabeça, todo estressado,
pequenininho, mas bom de briga. Tava se estressando com um ônibus, “num sei o
que, vai tomar no cu”, fechou o ônibus, saiu do carro, parou o trânsito. “Desce aí,
mermão, desce aí que eu vou enfiar a porrada, não sei o quê”. Porra, era o ônibus
da polícia federal, cara! Os caras desceram, “como é que é?”, “tu vai dar
porrada em quem?”. Tipo, levaram o cara pra delegacia, ficou horas na
delegacia, esculacharam ele, tomou tapa na cabeça, se ferrou todo. Mas é uma
história que as pessoas “riam muito”. (Lucas, 32 anos, ex-lutador de jiu-jitsu.)
Resumindo o que foi dito até aqui, o jogo é irracional, mas jogado
racionalmente. É uma prática lúdica, porém nada impede que seja séria e
competitiva. Fascina e diverte, apesar (ou por causa) da tensão que a atravessa.
Mas há outras qualidades distintivas do jogo que, segundo Huizinga, são
igualmente importantes, a saber: o jogo é desinteressado: a satisfação obtida
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advém da própria realização do jogo; o jogo é levado a cabo dentro de um
determinado espaço, durante um determinado tempo, ambos isolados da vida
cotidiana; o jogo tende a criar um sentido de comunidade, que permanece mesmo
depois de acabado o jogo; o jogo é uma atividade livre, voluntária; o jogo “cria
ordem e é ordem” (ibidem: 13), isto é, exige uma ordem cuja desobediência
implica em seu encerramento ou dissolução. Todas estas qualidades estão
presentes na porrada tal como praticada por “pitboys”. Pois a porrada pode ser
exercida de livre e espontânea vontade, apenas pelo prazer de “sair na porrada”;
está geralmente inscrita num contexto lúdico e festivo (a “guerra”, a noitada), que
escapa ao cotidiano; favorece um sentimento de pertencimento à uma determinada
“tribo”; e por último, mas não menos importante, a porrada é sim regida por
regras, pelo menos idealmente.
Há uma espécie de código de honra tácito que envolve a porrada, e o fato de
que seja muitas vezes desrespeitado não significa que não imponha certos
constrangimentos. O primeiro e mais óbvio exemplo envolve uma distinção de
gênero: mulheres brigam agarrando-se umas aos cabelos das outras, e arranhandose mutuamente. Homens, não. Homens utilizam mãos, cotovelos, joelhos, pés e a
própria testa para golpear. Daí que puxar o cabelo do adversário ou arranhá-lo é
uma prática mal vista, considerada quase como um recurso desesperado, uma
“apelação”. Em termos ideais – é bom que isso seja frisado –, a porrada é quase
como um duelo, dado que requer mínima igualdade de condições entre os
contendores. (É quase desnecessário lembrar que a porrada só se desenrola sem o
125
recurso à uma arma, branca ou de fogo: se se sacar de uma arma, acaba a porrada.)
A diferença de tamanho entre os envolvidos é aceitável: o magro pode desafiar o
corpulento, e vice-versa, desde que a discrepância não seja escandalosa. O que
não pode haver é superioridade ou inferioridade numérica de alguma parte. O
“mano a mano”, como se diz na gíria nativa, é um suposto fundamental da
porrada. Se dois ou mais indivíduos se unirem para agredir apenas um, a ação
resultante não será entendida como uma porrada, mas antes como uma covardia
que, ao contrário de afirmar a masculinidade dos brigões, a mancha e
desacredita 27 . Mais: a briga “justa” deve iniciar de forma também “justa”. Para ser
inteiramente aceitável, ou isenta de críticas e objeções quanto à sua legitimidade,
a briga não deve nunca iniciar (ou, em alguns casos, acabar) com uma
“emboscada”, um golpe que atinja o adversário desprevenido. A isto – um soco
pelas costas, um “mata-leão” de surpresa –, chamam de “crocodilagem”, também
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uma forma de covardia, um indício de fraqueza. Estes dois pontos ficaram
bastante nítidos em várias das histórias de brigas contadas nas entrevistas. Destaco
a seguir os dois melhores exemplos:
O Bruno era porradeiro, mas nunca fez jiu-jitsu. Fazia capoeira. Sempre foi contra
o jiu-jitsu. Teve uma porrada dele antológica. Foi irada. Parecia filme, tipo Van
Damme. A galera do colégio, tinha a galera do bem e a galera do mal. A galera do
bem era do bem porque era a nossa, e a outra era a galera do mal. A gente tava
no Resumo da Ópera, aí passa a galera do mal na nossa frente, e o maluco assim ó
[empina o nariz], todo cheio de marra. Depois a gente descobriu que eles eram a
galera do bem e a gente que era do mal. Mas enfim. Aí o Bruno gritou: “Mas que
ridículo, hahahaha!” Aí o maluco: “Tá falando com quem, mermão?” “Tô falando
contigo mesmo, cumpadi”. Começou aquele empurra, “vai se fuder!”, pá rá rá, o
[judoca, hoje bastante conhecido] Flávio Canto separou: “Vocês não vão brigar
aqui não, vão pegar mulher, porra!”. Aí veio o segurança e expulsou todo mundo.
Aí expulsou todo mundo e neguinho falou “ah, mermão, agora a porrada vai
comer”. A gente tava com uma galera, os caras tavam a galera deles, mas nego se
respeitou e tal, e aí nego começou a falar: “ Aí ó, ninguém vai juntar!, ninguém
vai juntar!”. Abriu uma roda, chovendo pra caralho, todo mundo molhado, abriu
uma roda, neguinho gritando “bora Bruno, bora!”. E além de capoeira, o Bruno
27
Assim, poder-se-ia dizer que, no caso da agressão sofrida pela doméstica Sirley Dias, apesar dos
cinco rapazes terem “dado porrada” na vítima, o ato em si não constitui “uma porrada” no sentido
em que estou propondo. Se tivessem voltado para casa sem serem descobertos, os agressores não
diriam depois aos seus amigos algo como “ontem nós saímos na porrada com uma puta num ponto
de ônibus”. Eles diriam “ontem nós enfiamos a porrada numa puta”, ou simplesmente “ontem nós
‘juntamos’ uma puta...” .“Juntar”, na gíria, é o ato de muitas pessoas agredirem uma só,
normalmente mal visto entre praticantes de jiu-jitsu, pelo menos em teoria. Afirmam que aqueles
que “juntam” alguém na verdade não se “garantem” individualmente. Há portanto uma distinção:
“dar porrada” é simplesmente bater em alguém, o que pode ser feito de forma covarde; “entrar na
porrada” é o contrário: apanhar, levar a pior; e “sair na porrada” refere-se a uma briga com
qualidades de duelo, embora se possa dizer também que “uma galera saiu na porrada com a outra”.
126
sempre foi bom pra caralho de boxe tailandês, tinha os braços compridos, a mão
dele vinha no joelho, parecia um primata. Brigava bem, boa envergadura. E o
cara, o cara era ruim de jiu-jitsu, era ruim de boxe. O Bruno deu uma aula de
boxe, vinha e batia “um, dois, três”, e saía, depois entrava “um, dois, três”, e saía,
todas as porradas estalando na cara do cara. O cara não conseguia “cinturar” ele
de jeito nenhum, não conseguia levar pro chão. O cara era tão mongol que
conseguiu pegar a perna do Bruno, o Bruno deu as costas pra ele, e ele não fez
nada, não pegou no mata-leão, e a gente gritando “porra Bruno, não dá as
costas!” Eu sei que acabou a briga, o cara não aguentava mais apanhar. Meio que
pediu pra encerrar, e nego aceitou, deixou morrer a parada. O cara tava todo
inchado, todo fudido, cheio de galo em tudo quanto era parte do rosto. (Eduardo,
30 anos, ex-lutador de jiu-jitsu)
Neste caso, as “galeras” se respeitaram, e a porrada fluiu dentro da
“normalidade”. Apenas dois jovens se enfrentaram, e a desistência de um foi
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acatada pelo outro. Mas nem sempre as coisas se passam desta maneira:
Fui pra Maresias, eu, Bento e o Mateus. Já era umas seis da manhã, fomos pegar o
carro. Aí passa uma picape, na caçamba tava o fulano [conhecido lutador de valetudo de São Paulo], aí quando passa pela gente ele dá umas porradas na lataria,
pedindo pra parar. Aí parou uns quinze metros na nossa frente. Aí o cara “algum
problema aí?”, e a gente “problema nenhum”. Ele “é, porque aqui não tem pra
carioca não”. “A gente sabe disso, tamo aqui curtindo a noitada de vocês,
respeitando a área de vocês e tal... São seis horas da manhã, tamo indo dormir, só
isso”. “Não, é bom mesmo não ter problema, os cariocas são cheios de marra tal
tal tal”. O fulano falou mais algumas merdas, tirou mais algumas ondas e a gente
engoliu tudo. Aí nisso sai de dentro do carro um dos alunos dele, e começa a falar
“aí fortinho, tu tá cheio de marra”, aí eu falei “mermão, cheio de marra o quê? Tá
maluco? Só quero ir pra casa dormir, tô cansado, só isso”, aí no que eu falo isso
ele “mermão o caralho, não sou teu irmão porra nenhuma” e eu “porra, qual é a
parada, tá querendo arrumar confusão à toa?”, aí ele veio vindo pra cima, tentou
me dar um chute, eu bloqueei, falei “não quero brigar”, aí ele veio me dar um
soco, eu saí do soco, e começo a bater nele: bum! Entrei com um diretão, ele
desnorteou, bum bum bum, entrei com vários socos. Já fiz jiu-jitsu anos, sei que o
cara vai tentar agarrar a minha perna. Não deu outra, ele quis me agarrar e eu
bum bum bum, soco soco soco, travei aqui, agarrei o cara, cotovelada nas costas
dele, soco na cara, e ele não conseguia me puxar e tal, sem me tirar o equilíbrio.
Aí o fulano, que tava com uma bota de gesso, chega por trás e pum!, me chuta a
cara. Dá um chutão na minha cara, caralho, eu não vejo mais nada, tudo preto, eu
não sei nem como eu consegui ficar de pé, só fechei a guarda e fiquei sentindo os
caras me dando porrada, bum bum bum, e tudo preto, preto, preto, assim, fechado,
os caras me batendo, eu não sei nem quem me bateu. Eu sei que quando eu
consegui ver um vulto eu me agarrei, meti a cara no peito do cara, pra proteger,
até que chegou uma galera e conseguiu separar a briga. Aí fiquei com os dois
olhos roxos, não tive nenhum traumatismo craniano nem nada, mas fiquei duas
semanas todo inchado. Crocodilagem. Crocodilagem. Covardia pura. Porra,
chutão na cara com bota de gesso! (Túlio, 34 anos, ex-lutador de jiu-jitsu.)
Duas observações, para encerrar. Primeiro, vale notar que a porrada também
se encaixa em todas as categorias de jogos propostas por Roger Caillois (1967;
127
apud Rodrigues, 2006). Ela é a um só tempo jogo de expressão (dramatização,
ritualização), jogo de sorte, jogo de competição (desafio, duelo) e jogo de
vertigem (que inclui sedução, fascínio). Segundo, e voltando uma vez mais a
Huizinga, há um último aspecto da porrada-jogo-brincadeira que resta apreciar
com maior atenção. Segundo Huizinga, a função do jogo pode ser definida por
seus dois vetores fundamentais: “uma luta por alguma coisa ou a representação de
alguma coisa” (Huizinga, 2005: 16; itálicos do autor). Estas duas funções, porém,
podem se misturar. Um jogo pode representar uma luta, ou se tornar uma luta para
representar alguma coisa. De volta à pergunta inicial: o que está em jogo durante o
jogo?
Arma, Visibilidade, Respeito
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À certa altura de sua introdução à “A busca da excitação”, escrito com Eric
Dunning, Norbert Elias pergunta:
... o que acontece se as condições na sociedade em geral não dotam todos os
sectores com formas de controlo suficientemente fortes de modo a conterem a
excitação, se as tensões na sociedade em geral se tornarem tão intensas que
anulem as formas de controlo individual contra a violência e, de facto, introduzem
um jacto de descivilização, se induzem sectores de uma população a sentirem a
violência como algo agradável? (Elias e Dunning, 1997: 88-9).
Não teria sido precisamente isto que ocorreu no Brasil a partir da década de
oitenta? Ao pensar o ato de “sair na porrada” como diversão, como um jogobrincadeira, dissemos que não se poderia entendê-lo devidamente sem que se
observasse o contexto imediato – a “guerra”, a noitada –, também lúdico, no qual
geralmente está inscrito. Mas é preciso observá-lo em seu contexto ainda mais
amplo, que favoreceu este “jato de descivilização” de que fala Elias e que
permitiu que a violência fosse sentida e praticada de forma agradável. Os
sentimentos, as emoções, não obstante a mitologia romântica que se criou em
torno deles, não são apenas províncias obscuras enterradas no fundo da psique
individual de cada um. São também construtos sociais (Abu-Lughod e Lutz,
1990).
Não haveria de ter sido mera coincidência o fato de que uma arte marcial
que surgiu e se estabeleceu permeada por uma filosofia da eficiência em
128
confrontos violentos de rua tenha se tornado moda entre a juventude abastada da
zona sul carioca ali no início da década de noventa. A coincidência se torna tanto
mais improvável quando se tem em mente que a prática de um determinado
esporte é em si mesma um mecanismo de diferenciação de classe social.
Modalidades esportivas que simbolizam “a força pura, a brutalidade e a
indulgência intelectual” são geralmente associadas às classes populares; outras,
como o golfe e a equitação, conferem “lucros de distinção” a seus praticantes
(Bourdieu, 1983: 149-150). Por esta razão, “os esportes populares mais
tipicamente populares, como o boxe ou a luta livre, acumulam todas as razões
para repelir os membros da classe dominante” (Bourdieu, 1983: 150). Mas este
raciocínio – o de que esportes que exigem sacrifícios ao corpo, a ponto de colocálo em risco, são geralmente associados às classes populares –, deve ser
relativizado no caso do jiu-jitsu. Nos anos noventa, grande parte dos jovens de
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classe média e alta do Rio de Janeiro não queria jogar tênis, golfe, ou praticar
equitação. Queria lutar jiu-jitsu.
É sem dúvida tentador enxergar a popularização do jiu-jitsu no Rio de
Janeiro como uma resposta ao sentimento generalizado de insegurança que, desde
os anos oitenta, vinha se fixando quase que diariamente nas manchetes dos
jornais 28 . Dito de outro modo, é tentador entender o sucesso do jiu-jitsu como
uma espécie de reflexo do fracasso da atuação do Estado e da fragilização de seu
monopólio legítimo do uso da força. Contudo, para que uma tal afirmação pudesse
ser feita de maneira rigorosa, seria necessário recolher evidências empíricas que a
comprovasse. Se as classes média e alta carioca tivessem de fato passado a
encarar o espaço público da cidade como um território hostil e perigoso,
verdadeira “terra de ninguém”, e se em função dessa percepção houvessem
instado seus filhos a praticarem uma arte marcial para aprender a se defender,
então seriam duas as alternativas: ou as academias de diferentes artes marciais
(judô, caratê, aikidô, kung fu, tae kwon do, hapkidô, muai thai etc.) teriam
registrado um expressivo aumento do número de adeptos, o que caracterizaria um
28
Esta parece ser a perspectiva de Cecchetto, em seu trabalho “Violência e estilos de
masculinidade”. À certa altura, a pesquisadora assevera que “a emergência dessas práticas [a
violência de funkeiros e “pitboys”] é explicada pela identificação de um processo em curso no
país: a dessensibilização da sociedade para questões referentes à vida humana e à violência. As
razões localizam-se na possível fragilização do monopólio estatal da força e no crescente poder
adquirido pelo crime organizado, impondo um ideal de masculinidade agressivo e destruidor”
(Cecchetto, 2004: 108).
129
boom dos esportes de luta como um todo, ou, ao contrário, teriam “perdido”
adeptos justamente para o jiu-jitsu. O recurso aos dados das confederações das
modalidades de lutas, neste caso, mostrar-se-ia de pouca utilidade, pois a maioria
dos praticantes de artes marciais não participa de campeonatos, não estando
portanto oficialmente registrada. A solução consistiria em levantar, de academia
em academia, o histórico dos dados referentes à flutuação do número de alunos, e
compará-los. Não é difícil imaginar: quantas academias teriam produzido e
arquivado um tal registro?
Mas a dificuldade de se obter estes dados, ou talvez sua pouca
confiabilidade, não é a razão que nos leva a deixar de lado esta hipótese. Via de
regra, a lógica marxista tende a enxergar os fenômenos sociais em termos de
oposição, não de complementaridade; e, para os objetivos deste trabalho, talvez
fosse mais interessante ou produtivo pensar não numa atitude de reação dos
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jovens de classe média e alta à sensação de insegurança instalada com a ascensão
do crime organizado, mas sim numa identificação destes jovens com muito do que
caracteriza o comportamento e a estética dos grupos marginalizados. Em termos
mais simplórios, quase vulgares, poderíamos dizer que, embutida na explosão do
jiu-jitsu e no aumento da violência praticada por “pitboys” que se seguiu, estaria
uma afirmação do tipo “eu (jovem de classe média e alta) quero ser como você
(marginal, traficante) ”, e não algo como “eu quero me proteger de você”. Seria,
por exemplo, mera coincidência, o fato de praticantes de jiu-jitsu nomearem de
“baile funk” um tipo de treinamento que, como vimos, consiste na prática ritual de
troca de socos, tapas e pontapés entre dois grandes grupos de jovens?
Não há como subestimar o fato de que, em determinado momento, a por
assim dizer cultura da favela entrou na moda, e de uma forma inédita. Ao lado do
desde sempre presente samba, somaram-se o hip hop e sua denúncia de cunho
social, o funk proibidão e sua apologia ao tráfico de drogas e ao sexo. As batidas e
letras de artistas como Racionais MC’s, Dj Marlboro, Tati Quebra Barraco, Mr.
Catra, entre outros, invadiram festas e Ipods da zona sul. No cinema, uma safra de
filmes que inclui “Cidade de Deus”, “O Invasor”, “Carandiru” e “Ônibus 174”,
para ficarmos apenas em alguns exemplos, derramou sobre as retinas dos
espectadores novas representações sobre as favelas e a violência a ela associada.
Não vou longe a ponto de dizer que a denúncia da miséria operada pelo cinema
termina sempre por espetacularizar o mal, assim contribuindo inadvertidamente
130
para o aumento do fascínio que ele exerce (embora isto eventualmente possa
acontecer). Da mesma forma, prefiro evitar afirmar que “vivemos em uma cultura
em que o espetáculo dita as normas de cidadania, organiza as relações sociais,
estabelece valores, formata as identificações” (Kehl, 2004: 103), ainda que
reconheça a força e a pertinência do conceito do Debord (1997) para pensar o
mundo atual. Contornando a discussão sobre o espetáculo, limito-me apenas à
chamar a atenção para aquilo que mais parece mais relevante aqui: que os
adolescentes de classe média e alta passaram a dispor de uma nova estética com a
qual se identificar, mesmo que no mais das vezes estivessem se identificando com
esterótipos veiculados na mídia e não com as manifestações culturais em si 29 .
“Mas como toda estética comporta uma ética”, diz Maria Rita Kehl (2004: 102),
“a escolha do modelo da periferia faz alguma diferença. É como se só fosse
possível encontrar alternativa para a falta de sentido da vida pautada pelo
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consumo identificando-se com aqueles que não têm recursos para consumir”.
Seria ingênuo negar a importância do consumo e da moral do espetáculo na
estruturação do modo de vida nas sociedades contemporâneas (Freire Costa,
2004). Mas seria igualmente duvidoso atribuir-lhes a maior parcela da culpa no
que diz respeito à formação de identidades juvenis desviantes. Não há, penso,
como responsabilizar diretamente o consumismo e o espetáculo pelo fato de que
meninas da zona sul tenham começado a subir os morros cariocas para manter
relações sexuais e afetivas com traficantes de drogas, tampouco pelo ingresso dos
filhos da classe média no mundo do crime, cujo caso mais famoso é o do bandido
Pedro Dom, executado pela polícia. Como vimos, é antiga no Rio de Janeiro uma
certa atmosfera de complacência ou mesmo admiração em relação a
comportamentos marginais ou transgressores. O espetáculo atualizou imagens nas
quais se inspirar, slogans para repetir: “Dadinho é o caralho, meu nome é Zé
Pequeno!”.
São muitas as particularidades que diferenciam “pitboys” e excluídos
tornados marginais. O tráfico de drogas é um sistema de socialização que concorre
com a via normal do trabalho, da rotina levada dentro dos parâmetros da lei
29
Nesse sentido, o caso do funk parece o mais evidente. Como lembra George Yúdice (1997), após
os arrastões ocorridos nas praias cariocas em outubro de 1992 a mídia não cessou de ventilar, de
forma um tanto histérica, uma imagem do funk como um movimento absolutamente atrelado à
violência, e nada além. Deixou, assim, de apresentá-lo em sua diversidade de facetas – por
exemplo, como um “estilo de festas orgiásticas”, como havia percebido Hermano Vianna (apud
Yúdice, 1997: 43).
131
(Zaluar, 1985). Ao colocar uma arma na cintura, o jovem traficante declara-se
publicamente um marginal, condição que em geral o acompanha até a sua morte,
no mais das vezes precoce. Mas isso não impede que se pense em possíveis
semelhanças de comportamento entre “pitboys” e traficantes. Senão, vejamos.
Com a etnografia de Alba Zaluar (1985), aprendemos que, na favela, a facilidade
em adquirir armas de fogo provoca uma reviravolta na hierarquia de autoridade: o
adolescente, porque “maquinado”, isto é, dotado de um instrumento que lhe
garante poder de coerção, passa a desafiar e mesmo mandar nos adultos. E o faz
sem pestanejar. Ao invés de se valer da conversa macia, da lábia habilidosa, como
o malandro de antanho, ele simplesmente emite uma ordem de comando, que deve
ser atendida sob pena de se iniciar um conflito aberto. Ora, e não é exatamente
esta uma das características mais marcantes dos “pitboys”?.30 A diferença, no
caso, é que o lutador tem no próprio corpo a arma que intimida, que garante a
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capacidade de subjugar o Outro.
Ao sacar uma arma e anunciar o assalto numa esquina qualquer, o jovem
que é pobre, estigmatizado, ignorado e excluído, sai da condição de invisibilidade
que lhe foi socialmente imposta, tornando-se, no momento mesmo em que faz do
Outro sua vítima, um sujeito que cria a si próprio, que exige respeito e se impõe
(Soares, 2004). “A arma”, escreve Luiz Eduardo Soares (2004: 141), “será o
passaporte para a visibilidade”. Não apenas se fazer visível: o jovem marginal
deseja também reconhecimento, que é sempre dado pelo olhar do Outro, olhar este
que atua no processo de construção de sua identidade. Nesta perspectiva,
traficantes e marginais diferem de “pitboys”, dado que estes são pessoas
“visíveis”: não precisam bater nos outros em festas e boates para ter sua existência
reconhecida socialmente. Mas talvez precisem fazê-lo para obter algum
reconhecimento dentro de seu próprio grupo – para que, com o respeito
conquistado através das provas de coragem e potência de luta, possam olhar a si
mesmos no espelho e nele ver refletida a imagem dos elogios que lhes foram
30
São muitos os relatos que o confirmam: “pitboys” que começam brigas em boates porque não
querem ficar na fila, ou que agarram mulheres à força, ou ainda que pensam estar sendo
“encarados” por alguém e partem direto para a agressão. Recentemente, o jornal O Globo
(5/3/2007) noticiou mais um caso que ilustra bem este ponto. Acompanhado de um amigo
identificado como “Pato Rouco”, o lutador João Paulo Saraiva, ao ser barrado no pub Wood
Lounge, em Niterói (o lugar estava reservado para uma festa particular), agrediu três seguranças
com um pedaço de madeira, chegando a quebrar mesas e cadeiras no interior do estabelecimento.
132
dispensados. A arma de que os “pitboys” se utilizam é também o passaporte para a
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visibilidade.
Teve uma porrada numa boate. O cara queria porque queria brigar comigo. Eu
não queria brigar com o cara. Mas ele queria, falava que eu tinha pichado a casa
dele, mas era mentira. Aí chegou mó galera, ficou aquela berraria “ninguém vai
juntar o cara!”. O cara chegou e botou o dedo na minha cara: “mermão, se eu
não te pegar hoje eu vou te pegar em qualquer lugar”. E o cara era alto, maior
que eu, só que magro. Aí eu falei “mermão, tira a mão da minha cara, cumpadi”.
Quando eu falei isso, abriu um clarão, o cara veio vindo andando já assim, e eu
recuando, e um amigo meu do meu lado, na minha orelha, dizendo “qualé Marcos,
não corre não, não corre não, pega, pega, pega!”. Eu falei “ah, que se foda,
porrada!”. Porque, imagina, época de galera, se você fugir, porra, acabou você.
Ali eu tinha certeza que eu ia tomar porrada, mas pelo menos eu não ia manchar
minha imagem, que não existia também, mas na epoca você pensa que tem. Enfim,
resumindo, caí na porrada com o cara, me dei bem, não enfiei a porrada, mas
fiquei por cima, dei uns socos na cabeça. Aí nego separou. O que aconteceu? No
dia seguinte, a notícia espalhou. Virei o rei do meu bairro, os malucos sinistros
babando o meu ovo, os malucos sinistros do morro pelando o meu saco, “caralho,
Marcos é sinistro, eu sabia que esse moleque era bom, não sei o quê”. Porra, só
faltaram me carregar no colo, maneiro pra caralho. Na semana seguinte, na
mesma boate, o cara tava lá de novo. Mas tinha milhões de neguinho do meu
bairro lá fora, me garantindo, entre aspas, porque na verdade eles tavam lá
querendo ver confusão. Aí vem esse maluco e diz, “aê, morreu, morreu”
[“morreu” significa algo como “o problema acabou” ou “está tudo bem entre
nós”]. Então tipo assim: essa briga fez com que eu ficasse muito respeitado até em
outros bairros. Por exemplo, tinha uma galera do Leblon que arrumava confusão
com todo mundo, mas não comigo. Os caras me respeitavam, e 80% disso foi por
causa daquele dia, porque o cara era maior que eu, porque eu enfrentei, eu não
“peidei”. (André, 29 anos, ex-lutador de jiu-jitsu.)
A preocupação em “não manchar a imagem” já é a construção de uma
imagem. Tal como o traficante que se impõe exibindo o fuzil e a disposição
constante para o enfrentamento com a polícia ou grupos rivais, o “pitboy” se faz
temido e respeitado, inclusive (ao menos é o que o entrevistado alega, neste caso)
entre “os malucos sinistros do morro”, através da prontidão em demonstrar
valentia no uso do corpo-arma. Respeito, admiração – e regalias. Sair na porrada
pode significar também vantagens impensadas para os vencedores.
Era louco, porque tinha um negócio de respeito. A gente ia muito pra Campos de
Jordão. A gente tava lá uma vez e aí rolou uma briga com um menino paulista que
era já famoso em São Paulo por brigar e tal. E acabou que ele se estressou com a
gente lá, não sei o que, e era uma época que não ia muito carioca pra Campos de
Jordão. Aí rolou uma porradaria fenomenal, não sei o que, botaram a gente pra
fora, rolou porradaria na chuva. Um amigo meu que estava comigo acabou
enfiando a porrada nesse cara, que era até muito maior que ele. Aí todo mundo
ficou, tipo assim, encantado pela gente, porque parece que o cara era um saco em
133
São Paulo, entendeu, o cara perturbava todo mundo. A gente ficou uns quinze dias
lá “de patrão”, todo mundo tratando a gente bem. E a boate em Campos de
Jordão era muito cara, e a gente não pagava mais, os seguranças botavam a gente
pra dentro de graça. (Rafael, 31 anos, ex-lutador de jiu-jitsu.)
Como se vê, a porrada não é apenas fonte de diversão, excitação. É também
fonte de lucros de distinção. Luiz Eduardo Soares assinala que “ainda que por
motivos ilusórios e passageiros, o crime dá prazer, fortalece a auto-estima,
proporciona a fruição do respeito e da admiração que advém do pertencimento a
um grupo, permite o acesso ao desejo das gurias (...)” (Soares, 2004: 158). Podese dizer o mesmo no caso dos “pitboys”: a porrada dá prazer (é lúdica), fortalece a
auto-estima (a idéia de superioridade), proporciona a fruição do respeito e da
admiração que advém do pertencimento a um grupo (a galera), e permite o acesso
ao desejo das gurias (“marias-tatames”). Tendo isso em mente, podemos retornar
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a Pierre Clastres a fim de observar que, ao fim e ao cabo, nossos guerreiros da
night e soldados do tráfico talvez não estejam assim tão distantes dos guerreiros
de tribos indígenas amazônicas:
Os guerreiros são portanto homens jovens. Mas por que os jovens são a tal ponto
apaixonados pela guerra? Onde se origina sua paixão? O que faz, em uma
palavra, o guerreiro querer se expor? É, como já vimos, o desejo de prestígio, que
somente a sociedade pode reconhecer ou recusar. Tal é o vínculo que une o
guerreiro à sua sociedade, o terceiro termo que põe em relação o corpo social e o
grupo dos guerreiros, determinando desde o início uma relação de dependência: a
realização de si do guerreiro passa pelo reconhecimento social, o guerreiro não se
pode pensar como tal se a sociedade não o reconhece como tal. A realização da
façanha individual não é senão uma condição necessária para a aquisição de um
prestígio que somente o assentimento social confere. (...) O amor à guerra é uma
paixão secundária, derivada de uma paixão primária: o desejo mais fundamental
de prestígio. A guerra é aqui o meio de realizar um fim individual: o desejo de
glória do guerreiro, que é em si mesmo sua própria finalidade. Vontade não de
potência, mas de glória: tal é o guerreiro, homem para o qual a guerra constitui
de longe o meio mais rápido e mais eficaz de realizar sua vontade (Clastres, 2004:
286-7).
Malandragem e Delinqüência
Clastres nos remete a um curioso paradoxo: quando apreciada em seu
conjunto, uma sociedade pode não se mostrar exatamente guerreira em sua
essência; mas ela pode, contudo, admirar alguns de seus membros justamente por
qualidades que se ligam às artes da guerra. Assim, pode acabar estimulando-os,
134
ainda que inadvertidamente, a adotarem um comportamento inclinado nesta
direção. Transporte-se o raciocínio para o Brasil, prestando atenção sobretudo na
aura de positividade entranhada naquilo que chamamos de malandragem, e está
aberto um fértil campo para a análise.
A etnografia de Alba Zaluar (1985), como já foi dito, flagrou o fim da
malandragem tal qual se conhecia nos anos sessenta. Aquele malandro, que aliava
transgressão e mediação, que não vivia propriamente nem dentro nem fora da lei,
mas numa espécie de entre-lugar, aquele malandro já não havia mais. Mas
sabemos que a malandragem, mais ampla, não caiu em desuso junto com o
mocassim branco; apenas transformou-se, adquiriu novo colorido, e também
novos usos. Hoje, não é descabido afirmar que a pior pecha para o jovem
brasileiro de uma grande cidade como o Rio de Janeiro é a de “otário”. Ninguém
quer ser um otário: e quem não é otário deve ser malandro em alguma medida.
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Mas o jovem de classe média e alta não aprende a ser malandro na rua, ainda que
deseje identificar-se com esse tipo de malandragem. A rua, experimentada
coletivamente no pertencimento a uma galera, apenas complementa o aprendizado
da malandragem que se inicia dentro de casa, com a própria família.
Os adolescentes ricos convivem com essa criminalidade soft dentro, ou perto, de
suas próprias casas. É o pai que oferece caixinha ao guarda para escapar a uma
multa por excesso de velocidade, ou vai à escola pedir a cabeça do professor que
reprovou, por razões justas, seu filho. Os pais que se apavoram quando um filho
começa a fazer amizade com os favelados da vizinhança são os mesmos que
contratam e demitem empregados sem pagar direitos trabalhistas e oferecem
suborno aos fiscais da Receita que descobrem as irregularidades de suas empresas
(Kehl, 2004: 104).
Neste ponto, reencontramos os argumentos de DaMatta sobre a separação
entre indivíduos e pessoas, e de Luiz Eduardo Soares sobre o double bind na
sociedade brasileira. A lei vale para os outros, para os indivíduos, para os otários.
Acima dela, o verdadeiro malandro 31 , a pessoa que se insere numa teia
31
Penso que seria no mínimo curioso um estudo sobre ditos populares que envolvem a figura do
malandro. De cabeça, lembro de alguns poucos: “malandro é o gato, que já nasce de bigode”;
“malandro é o Batman, que usa as cuecas por cima das calças”; “malandro é o pato, que já nasce
com os dedos colados para não usar anel”; “malandro é o gato, que quer mais é que o mar pegue
fogo para comer peixe frito”. Tudo somado, eis a imagem do malandro: um indivíduo do sexo
masculino, experiente e tarimbado, que, como todo super-herói, tem dupla personalidade; um
sujeito que, por não sucumbir à rotina da vida ao lado de uma única mulher, possui tantas quantas
for capaz de administrar; e, ao mesmo tempo, um sujeito que sempre sabe tirar proveito de uma
situação, por mais estranha e adversa que lhe pareça.
135
privilegiada de relações sociais. Malandro que é malandro entra sem pagar, e não
espera em fila. Raro o malandro que não se julgue onipotente.
Ninguém pagava ingresso ou consumação de porra nenhuma. Tinha festinha, uma
parada legal pra fazer na night? Ou a gente pulava, ou passava debaixo da grade,
dava uma idéia no segurança, sei lá, arrumava um jeito. Várias vezes a galera
entrava nas paradas sem pagar, ou então neguinho arrumava uma cartela de
consumação, e enchia a lata, ficava “doidaralhasso” [bastante bêbado], e não
pagava porra nenhuma. E se nego encrencava a gente quebrava a porra toda.
Ninguém queria pagar pra entrar, isso era acabar com a nossa imagem. (Bruno,
29 anos, ex-lutador de jiu-jitsu.)
A lógica utilitária, é claro, não explica tal comportamento. Nascido em
família rica, é certo que não faltasse dinheiro ao entrevistado para se divertir na
noite. Mas o que lhe sobrava era sobretudo a disposição em não deixar as regras
valerem para si, transitar ao largo delas. Agir como pessoas normais, “isso era
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acabar com a nossa imagem”. Assim, otário não é somente o indivíduo correto,
que acata as contingências naturais da vida em sociedade. Otário é aquele que
dispõe de recursos para se mover por sobre tais contingências, mas não o faz; é
aquele que tem a alternativa de “sair por cima” de uma situação, mas não a
aproveita.
Teve outra porrada num evento no Riocentro... Eu tinha ido comprar uma cerveja,
de repente só escuto um pá!, e um cara gritando “ahhhhhhhh!”. Era o Guilherme,
que tinha dado um tapa na cara de um cara. Mas um tapão mesmo, estalou alto
pra caralho. Aí a porrada comeu, porradaria generalizada, neguinho foi expulso
pelos seguranças, e lá fora a porrada continuou. O Guilherme montado no cara,
dando socão na cara, daqui a pouco o cara que tá embaixo dele grita “Pára!
Pára! Pára!” Aí neguinho até assustou, o cara gritando daquele jeito... O
Guilherme até saiu de cima dele, e o cara gritando “Pára! Pára! Pára!”. Daqui a
pouco o cara puxa uma arma, aponta pro Guilherme e diz “Você não vai mais me
bater! Você não vai mais me bater!”. Ele falou “Caralho, mermão, você tava o
tempo todo armado e entrou na porrada... Seu otário!”. E ele: “você não vai bater
mais em ninguém, seu merda!”. “Eu sou um merda? Merda é você, que tava
armado, não fez nada e entrou na porrada”. Aí vem um PM, trava a arma do cara,
prende o cara. Levou o cara preso. O cara entrou na porrada, e ainda foi preso.
(João, 35 anos, ex-lutador de jiu-jitsu..)
A cultura da malandragem é uma das pontes que, lançando um fio invisível
por sobre o abismo que separa a cidade partida, facilita a identificação de jovens
da elite com o mundo da criminalidade dos miseráveis, justamente porque provê a
aqueles uma boa desculpa ou justificativa para agirem como estes – afinal, como
pode um otário ter sucesso num mundo de malandros? Em alguma medida, a
136
malandragem ajuda no flerte com a delinquência, não tanto pela vontade e
expectativa de se obter vantagens materiais, mas antes pelo imperativo de ser mais
malandro que a própria malandragem. Nesse sentido, talvez fosse possível falar na
existência de afinidades eletivas entre o ethos da malandragem e aquilo que venho
chamando de ethos guerreiro. A porrada praticada como duelo é um jogo, uma
diversão e um teste, mas também uma necessidade de auto-afirmação e
reconhecimento. A porrada utilizada como meio de agressão despropositada e
covarde, acompanhada de roubo ou vandalismo, embora também atravessada pela
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dimensão do lúdico, comporta e sinaliza algo diferente.
Eu tava na inauguração da Slavia [boate na Barra da Tijuca, praticamente
destruída no dia mesmo em que abriu as portas: o caso ficou famoso, e foi assunto
nos jornais por vários dias], quando quebraram a porra toda. O negócio foi o
seguinte, o carinha do jiu-jitsu chegou na mulher e ela “ah, sai daqui e tal”, e ele
“sua vagabunda!”, ela foi, tacou-lhe o copo de cerveja na cara dele, ele foi e deu
um tapão nela, veio o amigo dela, aí fodeu. Começou a pancadaria, veio os
seguranças, neguinho enfiando a porrada nos seguranças, porra, quem tava
doidão começou a brigar. Cara, velho oeste. Nego pegava cadeira e arremessava
no bar, pau!, e os barmans desesperados. Porra, e era caro pra caralho, e eu
pensei, “não vou pagar porra nenhuma nessa merda!”, aí fiquei perto da porta,
porque sabia que a confusão ia chegar na porta. Quando chegou perto da porta eu
saí pulando, me meti no meio da confusão, comecei a pular e a gritar “êêê!,
uoooouuuuuuuuu!, aê porraaaaaa!”. Depois eu fui reparar que tinha mais uns dez
que nem eu, assim, aproveitando a porrada pra sair sem pagar. Neguinho lá fora
comemorando porque tinha saído sem pagar. Aí os caras conseguiram fechar a
porta. Aí eu olho lá pra dentro e vejo o meu camarada querendo sair. Porra,
Rubens! Deu mole. Mermão, tinha um cara maluco... O cara pegou o computador
de cadastro que fica na porta, o cara pegou e falou “mermão, se não abrir a porta
eu vou arremessar essa porra na porta!” E nego “calma, deixa o computador aí,
bota essa porra no chão”. E ele “abre logo essa merda, senão eu vou jogar essa
porra!”. Enfim, zuniu o computador na porta, mas o fio da tomada prendeu, levou
tudo junto, abriu a porta e neguinho começou a berrar e começou mó galera a
sair. Aí virou selvageria total. A grade que tem pra organizar fila, neguinho
arremessou no vidro. Veio carro de polícia e o caralho. Mas nego quebrou tudo.
Tinha o promoter do evento que tentava apartar, e ficava dizendo [faz voz de
“crianção”] “pô gente, não vamos brigar, calma aí, vai”. Aí vinha um neguinho e
pau!, dava um tapa na cara dele. E ele “pô, não faça isso”, e outro maluco
chegava e pau!, colava um na cara dele. Agora é engraçado, mas na hora foi foda.
(Marcelo, 30 anos, ex-lutador de jiu-jitsu.)
Uma mulher desrespeitada e agredida, uma pancadaria iniciada, uma boate
absolutamente vandalizada, depredada: “nego quebrou tudo”. Um episódio como
este não é tão comum quanto o “quebra-quebra” de ônibus e trens, por exemplo,
mas nem por isso menos significativo. Segundo DaMatta, o “quebra-quebra” dos
transportes coletivos – o elo de ligação entre a casa e a rua, o “ponto final de uma
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massificação que todos tentam evitar” (DaMatta, 1993: 194) – pode ser entendido
como uma forma extremada dos trabalhadores ganharem visibilidade, uma espécie
de “sabe com quem está falando?” coletivamente vocalizado. Mas como entender
o “quebra-quebra” promovido não por “indivíduos”, e sim por “pessoas” (para
usar os termos de DaMatta), cujo alvo é um lugar de acesso no mais das vezes
restrito, selecionado? O vandalismo de “pitboys” dirige-se contra o palco mesmo
da “guerra”: não apenas quebrar o Outro, o grupo rival, mas quebrar o espaço
onde a “quebração” se dá, o teatro de operações da “guerra”. Trata-se não de um
lugar de humilhação, o denominador comum mais baixo de uma vida de
privações, mas justo o contrário, um lugar de diversão, de fruição das benesses de
uma vida de abundância. Poder-se-ia enxergar aí, no excesso, no transbordamento
– de dinheiro, de potência corporal, de liberdade, de sensação de impunidade etc.
– uma pista para o entendimento do vandalismo de “pitboys”. Mas isto, no fim das
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contas, equivaleria a fazer uso daquilo que chamei de “discurso da falta”, apenas
invertendo o sinal. Mais interessante, e também mais assustador, é imaginar o
“quebra-quebra” como o jogo-brincadeira da porrada levado ao seu grau
paroxístico e covarde. Estantes repletas de garrafas de bebidas, mesas, cadeiras,
espelhos, portas, computadores, aparelhagem de som e luz – nada disso revida.
Prostitutas, indivíduos que esperam, sozinhos, um ônibus na madrugada, também
não. Sofrem com “extintoradas” e “tapetadas” às quais via de regra não têm como
reagir.
Chegamos enfim ao ponto onde o “pitboy” se iguala ao marginal:
Tem uma história de um amigo meu da academia, casca-grossão, sinistrão e tal.
Tava voltando doidão da night, dirigindo o carro. Doidão. Parou num sinal, sei lá
que horas eram, aí pára um cara do lado dele, um entregador de pizza, não lembro
qual pizza era. O cara cheio de pizza. Ele abriu uma porta, “dá uma pizza aê!”. E
o cara “que isso, mermão, posso dar não.” Aí o maluco sentou uma “pranchada”
[soco ou tapa] no cara, deu umas porradas nele, pegou as pizzas e saiu fora.
(Rogério, 30 anos, ex-lutador de jiu-jitsu.)
Como no epsiódio da doméstica Sirley, o que se vê é uma agressão seguida
de roubo cuja motivação não se liga à promessa de lucros materiais. Ao servir de
instrumento para a consumação do roubo, o corpo-arma perde sua conotação
metafórica e ganha materialidade. É como um revólver apontado para o rosto: o
que ele coloca em ação é uma ordem de comando despótica e inegociável.
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Escrevendo sobre a relação entre a cultura narcísica e a crise ética que seriam
características de nosso tempo, Jurandir Freire Costa assinala que a delinquência
arrogante pressupõe “o absoluto desprezo pelo estatuto de pessoa que tem seu
semelhante (...). Engravatado ou de pés descalços, o delinqüente arrogante
irrealiza o mundo, considerando-se acima da lei e desafiando, de maneira
grotesca, todos que não queiram converter-se em apêndice de sua onipotência”
(apud Rodrigues, 1993: 62). Seria interessante ter isto em mente ao ler o (longo)
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trecho da entrevista abaixo:
Teve uma viagem pra Oktoberfest que foi muito louca. A gente fretou um ônibus,
eram quartenta e oito pessoas, sendo que trinta e cinco caras da academia.
Mermão, foi um vandalismo que me impressionou, saía do controle direto. Isso faz
uns dez, doze anos, eu acho. Só sei que a gente era muito moleque, dezoito,
dezenove anos, já não tinha muita consciência... A galera era surreal, era cada
coisa surreal. Porque, tipo assim, apesar da gente se envolver em briga e tal,
ainda existia a lei de honestidade. Eu não saía dando tapa na cara de uma pessoa
a troco de nada. Se o cara mexeu comigo, ou com a minha mulher, ou se esbarrou,
se olhou de cara feia, aí tu responde, o cara responde de novo, aí briga, né, uma
coisa mais assim. Mas nessa viagem eu vi coisas surreais.
A situação começou a perder o controle quando a gente entrou na cidade, os caras
do ônibus abriam a janela, mermão, cospiam em todo mundo, mostravam a bunda,
ia xingando as velhas na rua... Mal a gente entrou na cidade, uma viatura
encostou na gente: “A gente vai escoltar vocês até o hotel”. A gente chegou na
cidade escoltado até o hotel. Tudo bem. Aí beleza, no primeiro dia a gente foi pra
“night” e já sairam várias brigas, eram vários grupos, com várias brigas. E a
gente fez uma camisa que era o símbolo de um homem, numerado atrás, um, dois,
três, quatro, cinco, seis, pulava o vinte e quatro e ia até quarenta e oito. Era tanta
confusão que o pessoal de lá comecou a associar que quem tava com aquela
camisa era brigão. E aí tinha uns cinco ou seis da nossa excursão que não eram de
confusão, e os caras assim “porra, a gente não vai usar essa camisa não”, ficaram
com medo de usar a camisa. “Não vai usar a camisa, mermão? Vai entrar na
porrada! Como é que não vai usar camisa?” Tipo assim, os caras eram obrigados
a usar a camisa também, entendeu?
Mas o negócio saiu do controle, porque, tipo assim... Eu me lembro que uma noite
o dono do hotel chamou a gente e disse “vocês estão quebrando armário, tá dando
briga na porta, nego tá xingando, os outros hóspedes estão reclamando, não sei o
que”. E o cara reclamando, reclamando, reclamando, reclamando. Aí no dia
seguinte a gente foi almoçar e eu falando, “cara, a gente tem que diminuir o ritmo,
não tá dando, muita briga”. A gente ia almoçar num restaurante perto do hotel, ia
sentar pra ver o que a gente podia fazer, porque tava dando muita confusão, daqui
a pouco a gente escuta um barulho e... “Vai tomar no cu, não sei o quê, blá, blá,
blá!” E a gente “caralho!”. Quando a gente olhou tinha um outro amigo nosso,
que hoje não tem nada ver com isso, mas na época era um louco, jogando uma
garrafa dentro do negócio, xingando o filho do dono do restaurante, dando um
tapa na orelha do cara. Aí me sai o dono do restaurante com uma arma atrás dele,
correndo assim, pra acertar o tiro. E a gente olhando aquilo, fudeu, que que a
gente vai fazer? E o outro correndo em zigue zague, depois conseguiu se esconder
e tal.
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O relato prossegue:
Tem várias histórias dessa viagem. Me lembro uma vez a gente andando na rua, aí
um camarada nosso tava puto, cheirou lóló, sei lá o que ele fez, e ficou louco.
Tinha um cara passando e ele pau!, chute na barriga... Chute na barriga, soco na
cabeça, porrada! Tipo, o cara tava passando, entendeu, naquela hora... Outra vez,
tinta também um cara passando na rua, nego vai e pega o cara no mata-leão, o
cara apagou, e se cagou todo na calça. Umas coisas assim... Sinistro. Um outro
dia, a gente tava fazendo a contagem da galera no ônibus. Aí quando a gente
olhou... “Motorista, o que que tá acontecendo?” E o motorista: “Tem dois garotos
ali atrás no ônibus, que falaram que não vão sair não, e não são da excursão”. Aí
eu olhei, e era só psicopata, todo mundo de cabeça raspadinha, e dois malucos que
não eram da excursão falando que não iam sair do ônibus. Aí a gente olhou pros
caras, a gente se olhou, aí eu falei, “pô, beleza, os caras tão errado”. Aí foi
aquilo: “galera, tem dois caras lá no fundo que falaram que não vão sair do nosso
ônibus não”. Mermão, parece que os dois eram amigos de um menino que tava no
ônibus. E aí os caras “pô, fala aí, cara”, pedindo pro cara defender eles, e o
amigo deles “pô, foi mal, mas eu não posso te ajudar não”. Os caras tiveram que
abrir a janela, tiveram que pular, porque nego já tava dando soco, enfiando a
porrada, e os caras pulando da janela.
Teve uma outra também, eu tava andando, aí o cara veio e me deu um esbarradão,
veio pra me acertar, bum! Aí eu falei “quê isso?” Aí o cara: “que isso o quê,
cumpadi?” Começou aquela discussão, mas o cara meio que começou a baixar a
bola, e eu disse “então tá tudo certo”. Quando eu fui apertar a mão do cara, pra
parada “morrer”, vem um amigo meu e pá!, dá uma morra [soco] de lado no cara.
O cara caiu, e o cara era grande... Quando eu vi tinha um outro amigo dele, a
porrada ia estancar geral, mas a polícia tava bem junto, e separou. Pegou os dois,
levou pra delegacia e tal. Aí botaram os caras dentro da cela, e falaram assim,
olha que loucura: “aí, vale-tudo, quem ganhar, sai”. O nosso amigo era um louco
que brigava pra cacete, meteu a porrada no cara, então ele saiu, e o outro ficou lá,
todo fudido. Voltou com a orelha desse tamanho, acho que tomou uma cachaçada
na orelha. Aí eu falei “qual foi? que houve?”, e ele disse “porra, o policial disse
que era vale-tudo, eu enfiei a porrada no cara e saí, mas ele falou que se ver
alguém mais brigando com essa camisa, ele vai aleijar o cara”. Tipo, a polícia
falou que ia aleijar a galera que tava com a nossa camisa!
Resumindo, deu a maior merda, fomos expulsos da cidade. A polícita bateu lá no
nosso hotel, e a gente saiu da cidade que nem entrou, com a polícia escoltando o
nosso ônibus. (Marcelo, 30 anos, ex-lutador de jiu-jitsu.)
De tudo, um pouco: idosas xingadas nas ruas, bundas exibidas em público,
transeuntes covardemente agredidos sem qualquer motivação, pancadarias
iniciadas por razão pouca ou nenhuma, vale-tudo informal disputado dentro da
cadeia, quartos de hotel vandalizados, restaurantes depredados... O próprio
entrevistado distingue a violência aceitável ou “justa” – o que ele chama de “lei da
honestidade” – da violência “surreal”, que ele viu diante dos olhos e da qual
tomou parte em alguma medida. Interessante também observar a atuação da
polícia. Escolta o ônibus na entrada e na saída da cidade, coloca um dos “pitboys”
na cadeia apenas para fazê-lo lutar um “vale-tudo” – será que os policiais
140
realmente pensaram que isso seria uma espécie de castigo? –, ameaça “aleijar”
quem do grupo tornasse a brigar. Deter os brigões, autuá-los por lesão corporal ou
agressão, e abrir um processo criminal contra eles, ou seja, levar a cabo o trabalho
que compete à polícia, nada disso é feito. O que nos põe a pensar: como trabalham
as pessoas que lidam diretamente com “pitboys”? O quê teriam a dizer sobre suas
ações e comportamento? Seguindo esta pista, iremos nos deparar agora com os
depoimentos de quem está do outro lado da “guerra”, os seguranças de boates,
festas e eventos do Rio de Janeiro.
Os seguranças: “você sabe com quem está mexendo?”
A atuação de seguranças em boates e casas noturnas do Rio de Janeiro
equivale, num certo sentido, ao de uma força policial. Os seguranças devem zelar
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pelo patrimônio, coibir o uso de drogas, fazer valer as normas do estabelecimento
(pagar consumação, entrar em fila) e as regras de convivência social, e, quando a
situação exigir, mediar conflitos, apartar brigas e impedir excessos de violência.
No confronto com “pitboys”, seguranças têm algumas das atribuições da polícia,
mas sem a autoridade e a legitimidade desta. Podem vigiar e reprimir, mas não
podem punir. Estabeleceu-se entre ambos uma relação algo paradoxal: pois os
“pitboys” são os maiores inimigos dos seguranças e, ao mesmo tempo, razão de
seus salários. Quanto menos “pitboys” existissem, menor seria a necessidade de
seguranças e, consequentemente, menor a oferta de empregos. Mas os seguranças
parecem não se importar muito com isso. Preocupam-se mais com o tanto de dor
de cabeça que os filhos da classe média e alta amiúde lhes causam na noite
carioca.
A: Quando e como você começou a trabalhar de segurança?
Maurício [dono da empresa]: Fui segurança de porta de boate por muito tempo.
Trabalhei na Calígula, separei muita briga. Comecei com vinte e dois anos,
trabalhei até os trinta. Tô com quarenta e quatro, depois que virei dono da
empresa, parei. Fiz muito baile de carnaval, Iate Clube, baile no Escala. Década
de oitenta, década boa...
A: E como era naquela época?
Maurício: Sempre teve turma. Tinha a turma da [rua] Toneleiros, o pessoal do jiujitsu dos Gracie arrumavam confusão, sempre tem esses playbozinhos, filhinho de
papai. Hoje o pessoal chama de “pitboy”, mas isso sempre teve... Naquela época,
tinha o pessoal da Prado Júnior, ia pros bares e não respeitava mulher casada, e
você tinha que usar energia pra botar pra fora. E sempre com álcool na cabeça.
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Alguns faziam luta, e eles queriam desafiar todo mundo. Vou te falar a verdade:
nos anos oitenta a segurança batia muito mais do que bate hoje. Ah, na minha
época, você batia mais. Hoje não. Hoje tem direitos humanos, bé bé bé. Arrumava
confusão, ia pra delegacia. Naquela época a autoridade era mais autoridade. Fez
coisa errada? entra na porrada, bota no xadrez. Se fosse nos anos oitenta, os
“pitboys” não iam tirar essa onda toda. Os seguranças batiam muito mais.
A: E hoje em dia a segurança não pode mais bater por que?
Maurício: Porque, de repente, as coisas viram contra o segurança. Então ele tá lá
pra tirar o elemento, o cara vai e conta outra história. E a delegacia hoje, a
polícia com defensoria em cima... Direitos humanos, bé bé bé... Vira contra o
trabalhador. Antigamente, não. Fazia coisa errada, sabia que ia ser posto pra
fora, e se resistisse, entrava na porrada mesmo. No meu tempo a gente batia muito
mais. Esse negócio de direitos humanos, bé bé bé, a imprensa também fazendo
reportagens, tudo isso prejudica o trabalho do segurança. Porque eu não acredito
que um segurança vá bater numa pessoa sem motivo. Se o cara fizer alguma coisa
errada, vai ser convidado a se retirar, e pronto. E ninguem é retirado com flores
ou pedido de “por favor”. Aí lá na frente o cara conta outra história na delegacia,
e quer processar a segurança. Então hoje tem que ter mais tato pra trabalhar. Nos
anos oitenta e noventa, não tinha tato não. O pau comia. Tempo bom que não volta
mais.
De saída, a constatação: sempre houve galera, jiu-jitsu, bebedeira, briga
iniciada sem motivo. Nada disso é novidade, ou exclusividade da juventude de
hoje. “Pitboys” já existiam antes dos anos noventa; apenas não haviam sido ainda
rotulados como tais. Nesse sentido, o relato é interessante na medida em que
desautoriza qualquer idealização do passado, e aí se inclui a ação dos próprios
seguranças. Sem mecanismos que garantissem controle legal (defensoria pública)
e visibilidade social (a mídia), e sem um por assim dizer discurso de
constrangimento à violência que atravessasse a ambos (direitos humanos), a
porrada estava livre para se desenrolar de maneira ainda mais sangrenta. É curioso
reparar que, nas três vezes em que utiliza a expressão “direitos humanos”,
Maurício acrescenta um “bé bé bé” logo em seguida, como que insinuando tratarse de um “blá blá blá” inócuo e desnecessário. Quase como se dissesse: na noite,
os tão propalados direitos humanos não ajudam em nada, ou melhor, só ajudam os
“porradeiros”, os encrenqueiros 32 . E isto nos leva a uma outra observação: tal
como o “pitboy”, o segurança deve ser alguém que sabe dar porrada (e, em
alguma medida, alguém que gosta de dar porrada). Este ponto fica particularmente
32
O que faz lembrar o discurso de boa parte da sociedade – talvez a maior parte, infelizmente – em
relação a atuação da polícia nas favelas cariocas. Com muita frequência, lê-se nos jornais artigos e
cartas de leitores que afirmam que, no atual estado das coisas, defender os direitos humanos
equivale a defender marginais. Recentemente, o debate em torno destas questões foi alimentado
pela polêmica causada pelo filme “Tropa de Elite”, e pelas interpretações que se lhe foram feitas.
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explícito no tom saudosista que encerra o depoimento: aqueles bons tempos, em
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que o “pau comia” sem que se fizesse escândalo, não voltam mais.
A: Mas e hoje em dia? Fale um pouco do trabalho de vocês.
Rodrigo: A gente aqui faz de tudo. Boate, festa paga, casamento, formatura, festa
de quinze anos, qualquer serviço de eventos. Pela nossa experiência, briga mesmo
dá muito mais em festa de 15 anos ou formatura, entendeu? E lógico que aonde
tem álcool as pessoas se excedem um pouco né? Às vezes tem briga em casamento,
mas no geral é mais coisa de moleque mesmo. Que que acontece? São grupos, né,
grupos de amigos, que ou já vão alcoolizados, já bebem antes de ir pra festa e lá
ainda consomem mais álcool, ou lá mesmo, por falta de controle do organizador
do evento, até porque é difícil você controlar, quer dizer, bebem em excesso,
bebem cerveja, consomem aquele energético, aquele Redbull, aquelas outras
latinhas que têm, e aí eles ficam transtornados. E aí o quê acontece? São garotos
novos, alguns fazem musculação, fortezinhos, outros fazem lutas, e aí um mexe
com a menina do outro, ou então já vê um grupo que tem uma rixa e aí começam a
briga, né. Às vezes o efetivo da segurança é pouco, eles são muitos, pra gente
separar a briga é complicado, e de vez em quando tem que botar pra fora, né? Nós
somos seguranças, maiores de idade, eles são adolescentes, aí você vai pegar um
garoto desses e você tem que usar de energia, ou então eles agridem a gente, e nós
não somos pagos pra apanhar, entendeu? Nós temos que usar a força com eles,
entendeu? E aí mais na frente eles vão dizer que nós é que agredimos eles,
entendeu?
A: Você mencionou que alguns dos jovens são lutadores. Vocês sabem identificar
qual jovem é lutador, ou que tipo de arte marcial eles fazem?
Wanderley: Ah, eles mesmos se identificam, diz que faz jiu-jitsu, já pra ameaçar o
outro. É mais jiu-jitsu... Eu vou ser sincero, eu trabalhei muito na noite, é raro a
gente ver um judoca fazendo isso.
Anderson: É, jiu-jitsu, luta livre.
Gesias: Você vê pela orelha, pelo tipo físico do rapaz, atarracadinho, fortinho.
Você não vê um atleta de natação fazendo isso, você não vê um atleta de judô
fazendo isso. É mais uma turma, e também não são atletas né, porque o verdeiro
atleta não arruma confusão. E é mais na Barra [da Tijuca, bairro da Zona Oeste],
na Barra tem rixa.
A: Na Barra tem mais rixa?
Anderson: Molecada, dezessete, dezoito anos, eles vão pra academia, malham. Aí
um é da academia Gracie, o outro é... Esqueci o nome da academia, aí eles quando
se encontram, se pegam, acham que a festa é uma rinha de galo.
Até aqui, nenhuma novidade: a adolescência, o álcool, o jiu-jitsu, a orelha
estourada, a galera, e as rixas entre as galeras. A entrevista prossegue:
A: Conte umas histórias de pancadaria em festas.
Rodrigo: Ih, rapaz, são tantas... Foi num evento na Terra Encantada [parque de
diversões na Barra da Tijuca], um pessoal do jiu-jitsu. Aí chegaram e “ih, a festa
tá boa” [faz sinal de quem está falando no celular]. Fulano chamou, chegou a
galera deles, ficaram num cantinho. Daqui a pouco, pá, começaram a brigar. Em
vez de brigar entre eles mesmos, não, saem batendo em quem tiver em volta, e aí
não querem saber se é homem, mulher, criança, eles são covardes. Aquilo que
fizeram com essa senhora no ponto de ônibus [refere-se ao episódio da doméstica
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Sirley Dias], aquilo não é mentira não, é verdade, acontece mesmo. E quando
saem, vão quebrando placas de sinalização, são vândalos. Quando a polícia não
chega a tempo pra deter eles, eles saem correndo. E vão que nem pipoca, de uma
festa pra outra.
Anderson: Mas aí, nessa festa do Terra Encantada mesmo, deu problema. Deu
problema, e acabou que um outro segurança nosso, o Francis, acabou batendo
muito num rapaz. Mas é aquela coisa, o pau comendo, você vai fazer o quê? Aí
sabe o que aconteceu? Numa outra festa, já tinha passado um tempo, o Francis
tava fazendo a segurança e o rapaz tava na festa. Sabe o que ele fez? Ligou pra
casa dele, chamou o pai, a mãe e sei lá mais quem, e daqui a pouco tava todo
mundo na festa. Aí a mãe do moleque pegou ele, deu uma “baiana” nele...
A: A mãe deu uma “baiana” no segurança?!
Anderson: A mãe! Tirou o sapato e ficou dando na cara dele. Ele não esperava, a
mulher veio, pá, derrubou ele, aí veio o pai, depois o moleque, seguraram ele, e
ela tirou o sapato e ficou dando na cara dele, assim ó, pum pum pum, com o salto
na cara dele. Ficou todo arrebentado, a cara desse tamanho, abriu a testa, tomou
até ponto.
A: Acontece muito de vocês se machucarem nas brigas?
Wanderley: Não acontece muito não, quer dizer, de vez em quando algum colega
nosso toma um prejuízo, toma um soco, fica com o olho roxo, meio inchado, coisa
assim. Mas machucar mesmo é mais raro, não é Maurício? [Maurício faz sinal de
positivo com a cabeça]. Mas teve... O Silvano, numa festa no Le Buffet, festinha de
quinze anos. Não, era formatura. Tomou uma cadeirada, quebrou a mão. Eu já vi
festa de quinze anos em que o namorado da menina aniversariante espancou o pai
da garota. O garoto tava bêbado que nem um gambá. Ele não gostou do jeito que o
coroa falou com ela. Só que é pai, né? Aí ele foi lá e desceu a porrada no coroa. Se
não fosse a gente ter chegado em cima da hora, tinha machucado o velhinho ainda
mais. Festa acontece de tudo, é imprevisível.
A vingança do “pitboy” choca pelo inusitado: ao invés de ligar para os
amigos a fim de reunir o maior número possível de integrantes da galera para
bater no segurança, o que, convenhamos, seria a coisa mais lógica a se fazer, o
jovem chama os próprios pais. Mas os pais não chegam para dar uma lição de
moral no segurança ou levá-lo até uma delegacia, que é o que tradicionalmente se
espera que eles façam. Mãe e pai juntam-se ao filho no intuito de vingá-lo do
mesmo modo como a galera faria, isto é, tentando devolver a agressão física. Ao
agirem como “pitmamãe” e “pitpapai”, os pais do rapaz recusam para si o papel
que lhes cabe – o de responsáveis –, assumindo assim o papel de “amigos” do
próprio filho, como se fossem membros de sua galera. Eis aí um bom exemplo
daquilo que Maria Rita Kehl (2004) chama de teenagização da cultura ocidental.
Para a autora, a delinquência juvenil seria como que um reflexo de uma sociedade
em que evita-se a todo custo exercer o papel do responsável, do adulto, da
autoridade encarregada de representar a lei diante dos mais jovens.
144
Em uma sociedade em que o adolescente é erigido à posição de ideal para todas as
idades, os adultos passam a sofrer de má consciência diante de sua experiência de
vida. Se a regra é viver com a disponibilidade, a esperança e os anseios de quem
tem 13, 15 ou 17 anos, que fazer da seletividade, da desconfiança e até mesmo da
consolidação de um certo perfil existencial mais definido, inevitáveis para quem
viveu 40 ou 50 anos? O adulto que se espelha em ideais teen sente-se
desconfortável ante a responsabilidade de de tirar suas conclusões sobre a vida e
passá-las a seus descendentes. Isso significa que a vaga de “adulto”, na nossa
cultura, está desocupada. Ninguém quer estar “do lado de lá”, o lado careta do
conflito de gerações, de modo que o tal conflito, bem ou mal, se dissipou. (...) Não
que os pais “de antigamente” soubessem como os filhos deveriam enfrentar a
vida; mas pensavam que sabiam, e isso era suficiente para delinear um horizonte,
constituir um código de referência – ainda que fosse para ser desobedecido (Kehl,
2004: 96).
Não cabe aqui discutir os detalhes e as implicações desta tese; não estamos
no âmbito da psicologia familiar neste trabalho. Se fiz questão de evocá-la, foi
apenas porque o exemplo da “pitfamília” me pareceu sua tradução mais perfeita,
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sua cristalização mais evidente, e também porque, afinal, trata-se de uma
dimensão que não pode ser de todo ignorada. O conflito de gerações à qual Kehl
se refere parece haver mudado de feições, e isto fica outra vez evidente se
lembrarmos dos últimos instantes do relato de Wanderley – um rapaz agredindo o
pai da namorada no dia de sua festa de quinze anos. Mas sigamos adiante na
entrevista:
Gesias: Aquela festa no Museu Histórico Nacional... Teve um convidado que numa
festa antes, ele saiu bêbado, cheiradão, saiu agredindo todo mundo, nós fomos lá e
tiramos ele. Aí o seu fulano [promoter do evento] pediu pra gente ir lá e botar ele
pra fora. A gente foi lá e botou ele pra fora. Aí nesta festa, ele entrou, viu a gente e
não falou nada. Aí quando ele saiu, saiu bêbado, quando ele me viu, ele tava com
um copão de uísque, jogou em cima de mim, na minha cara. A sorte é que pegou
no ferro do portão, mas os cacos chegaram a pegar no meu rosto. Assim, do nada,
do nada, a gente tava parado... Aí seguramos ele, não podia fazer nada, só botar
ele pra fora.
A: E dá muito processo?
Anderson: Não, não porque nós temos um tato. A gente tenta imobilizar. Nada de
agredir. Primeiro a gente convida pra se retirar. Aonde tem um brigando, vai dois
seguranças, aonde tem dois, vai quatro, e se houver uma agressão, eles nos
agrediram primeiro, e nós revidamos. Aí você vai pra delegacia, não dá nada. O
próprio delegado também já está escaldado, porque é tanto caso, os caras já
sabem. E eles quando chegam na delegacia, eles desrespeitam até a autoridade. Se
bobear, eles batem com o pé no policial militar, se o policial for bobão... Naquele
evento do fotógrafo da Gisele Bundchen lá no [hotel] Copacabana Palace..
A: Mario Testino?
Anderson: Isso. Já era tarde. O cara bebeu, mas esse já tinha uma idade, uns
trinta e poucos anos, foi convidado a se retirar da festa. Aí ele tava saindo, e viu
um operacional do Copacabana [funcionário do Hotel], colou um soco nele, deu
mais um tapa, aí nós seguramos ele, chamamos uma viatura, a viatura chegou e
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nós botamos ele dentro da viatura. Aí ele no banco de trás conseguiu arrebentar o
vidro, e espancou os dois policiais, só parou quando chegou mais um apoio.
Agrediu um sargento e um soldado. A gente não quer levar pra delegacia, não é
nossa função, a gente perde tempo. Agora, quando a coisa é muito braba, aí sim,
aí não tem jeito, tem que fazer boletim de ocorrência.
Maurício: Mas a gente não quer essas coisas, não que machucar, não quer levar
pra delegacia. Isso não é bom negócio pra gente. O que a gente quer é imobilizar,
separar a briga, e botar pra fora. Só isso.
A: Vocês disseram que o objetivo inicial é imobilizar o agressor. Vocês tem algum
treinamento para fazer isso?
Maurício: Claro, defesa pessoal. Todos eles são treinados na academia, pra se
formar segurança. Sabe dar um mata-leão, uma chave de braço, sabe imobilizar.
Não tem ninguém bobo. Bobo não pode fazer este tipo de festa. Bobo não pode
trabalhar. A gente tem uma turma de elite, todo mundo grande que nem eu ou esse
cara aqui [aponta para Rodrigo, um “armário” de quase dois metros de altura].
Bobo não pode não, em festa de 15 anos, ou desses empresários aí... A gente não
está lá pra ser saco de pancada.
A: Outra coisa que eu reparei muito foi que vocês falam muito sobre álcool e
drogas, maconha, cocaína....
Anderson: Eles cheiram muito, não tem esse negócio não, é de quinze anos, vinte e
cinco anos, cinquenta anos, não tem essa não. Moleques de doze, treze anos, no
estacionamento, fazendo sexo, e a gente tem que tirar e infelizmente é filho de
fulano de tal... É moleque fumando maconha na entrada do evento perto do
segurança. Eu trabalhei numa festa no Recreio dos Bandeirantes que tava um
pessoal fumando maconha num cantinho assim, aí eu fui lá e chamei o responsável
do evento, o dono da casa, e avisei que tinha uma molecada fumando maconha na
casa dele. “Ah, deixa que eu vou resolver isso aí”. Ele saiu da festa, foi lá na
entrada, na porta da casa, pegou a maconha dos caras, fumou, e voltou pra casa.
É complicado. Nós estamos ali pra quê então?
Maurício: Olha, é difícil eles arrumarem confusão de cara limpa. Às vezes até tem,
é o encrenqueiro nato. Mas no geral eles têm que tomar ou álcool ou as drogas. É
moleque que cheira, moleque fuma, dezesseis, dezessete anos, sai pra rua, sai pra
vida. Se você for o mais esperto, o mais inteligente da turma, leva eles pra onde
quiser. Eles são bobos. Eles bebem e se tornam valentes, aí se tornam problema
pra gente. Se o cara tiver cheirado muito, você vai bater nele três, quatro horas
seguidas, e ele vai ficar em pé ali. Não sente nada. Quer dizer, no dia seguinte é
claro que sente, mas na hora, fica ali, apanhando, mas continua indo pra cima.
Tem que bater muito nele, pra ele arrear.
A: E eles só brigam em bando?
Maurício: Acontece de tudo. Tem muita briga em bando, o cara que sai na porrada
sozinho é mais raro. Claro, acontece também de juntar um grupo pra bater, pra
espancar os outros. Mas olha, eu já vi muita briga começar por causa de um cara
que mexe com a namorada do outro. O cara bêbado que mexe com todas as
meninas na pista de dança, esse cara vai entrar na porrada. Em festa de quinze
anos tem muito, briga de ciúme. Sempre tem um doidão fazendo merda, passando a
mão na mulher dos outros. Esse cara vai apanhar.
Alguns pontos merecem ser destacados. Quando perguntei “e dá muito
processo?”, tinha em mente saber se as brigas e confusões acabavam sendo
registradas na polícia, se eram levados adiante os trâmites legais. A pergunta “e dá
muito processo?” é significativamente diferente da pergunta “e vocês são muito
processados?” – mas foi esta última que o segurança respondeu, não a primeira.
146
Anderson entendeu que eu perguntara se eles, seguranças, eram “processados”
com frequência. Respondeu negativamente, como seria de se esperar – pouco
provável que dissesse “é, volta e meia a gente gosta de abusar da violência,
estamos cheios de processos nas costas!” –, e na sequência enfatizou que “o
próprio delegado também já está escaldado”, com isso querendo dizer que o
número de processos penais era reduzido porque os delegados de polícia,
acostumados que estão às badernas promovidas por “pitboys” na noite, sabem que
são estes que iniciam as brigas e que, se eventualmente saem machucados, não
terá sido por excesso de vigor por parte dos seguranças. Em outras palavras,
Anderson estava defendendo a si e aos seus pares das frequentes acusações de
truculência que lhes são feitas. Estava defendendo o quanto de energia física os
seguranças “são obrigados” a empregar em caso de briga, porque “pitboys” não
respeitam sequer a polícia. Afinal, diz ele, se o policial, que é como que a
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personificação da lei e da autoridade, for “bobão”, acaba com o olho roxo, a
viatura destruída e precisando chamar reforço. E o que é um “bobão” senão um
“otário”? Não sem razão, quando perguntado sobre o tipo de treinamento os
seguranças possuem, Maurício (o dono da empresa), responde: “Não tem ninguém
bobo. Bobo não pode fazer este tipo de festa. Bobo não pode trabalhar.”
Segurança também que ser malandro, ou não trabalha como segurança.
Outro ponto relevante é a afirmação de que aos seguranças não interessaria
reclamar a intervenção da polícia. Repito as palavras de Maurício: “Isso não é
bom negócio pra gente. O que a gente quer é imobilizar, separar a briga, e botar
pra fora. Só isso.” Por quê isso acontece é um caso a se pensar. Podemos aventar
algumas hipóteses. Talvez os seguranças evitem chamar a polícia, instaurar um
inquérito e ir à justiça tanto por receio de confrontar jovens de famílias ricas e
influentes quanto por acreditarem que, no fim das contas, tal recurso de nada
adiantará – a crença na impunidade reinante no Brasil. Talvez tenham medo de
atrair atenção negativa para si e para os organizadores do evento ou donos das
boates para o qual trabalham; possivelmente sejam até instados por estes últimos a
permanecerem tão silenciosos quanto possível. Que dono de boate ou promoter
gostaria de ter seu nome, ou de sua empresa, nos jornais toda vez que uma briga
ocorresse em um de seus eventos? Mas deixemos as especulações de lado. Mais
interessante é simplesmente observar que este modus operandi por parte das
empresas de segurança, ao fim e ao cabo, só faz agravar o problema do qual
147
reclamam, pois o fato de não levar “pitboys” à delegacia na maioria das vezes em
que se envolvem em brigas contribui para a mantê-los afastados dos braços da
polícia e da lei. Contribui, assim, para aumentar a impunidade – que ajuda na
reprodução do comportamento violento típico de “pitboys”, que por sua vez
reforça a necessidade de contratar seguranças experientes e treinados...
E, como se não bastassem todas as dificuldades, às vezes os próprios donos
das festas concorrem para desautorizar e desacreditar o trabalho dos seguranças.
São conviventes com certas transgressões – fazer sexo pelos cantos, fumar
maconha – que em tese caberia aos seguranças reprimir. Esta tolerância tácita (e
exigida) em relação a alguns comportamentos desviantes coloca o trabalho dos
seguranças “entre a cruz e a espada”; são pagos para garantir a observância da lei,
da moral e dos bons costumes, mas nunca podem estar completamente seguros se
devem de fato fazê-lo. A regra geral não é tão geral assim. Tudo depende da
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ocasião, do caso particular, depende de quem esteja fumando a maconha ou
fazendo sexo. Eis, uma vez mais, ecos da convivência dos valores do
igualitarismo e do personalismo, ecos do double bind que lhe subjaz. As
ambiguidades daí resultantes, que desestabilizam expectativas, se expressam no
questionamento de Anderson: “É complicado. Nós estamos ali pra quê então?”.
Ainda no mesmo trecho da entrevista, cabe ressaltar, apenas a título de
registro, o quanto de brigas ocorrem em função das meninas, ou melhor, do
comportamento inadequado em relação a elas (“...eu já vi muita briga começar por
causa de um cara que mexe com a namorada do outro. O cara bêbado que mexe
com todas as meninas na pista de dança, esse cara vai entrar na porrada”). Já foi
explicitada aqui a importância do papel das meninas na construção da identidade
dos jovens, e também o quanto muitas delas acabam contribuindo em alguma
medida para a disseminação de um estilo de masculinidade algo brutal e violento.
Com efeito, o depoimento do segurança vem apenas confirmar o de um expraticante de jiu-jitsu, que aponta nesta mesma direção 33 . Parafraseando o
33
Diz o relato: “O negócio é o seguinte: você provoca a confusão. Vai lá o menorzinho do grupo,
chega e mexe com uma mulher, a mulher diz “não, não”, o cara chega e diz “sua vagabunda!” Tem
sempre um amigo da mulher pra defender, e aí fodeu. Ou então o cara chega na mulher, sei lá, tá
doidão e sai chegando nas mulher de geral, e alguma hora ele vai chegar numa mulher que tá
acompanhada. Aí pronto, o namorado da mulher não gosta, e começa a porrada. Porque ninguém
gosta de ver a sua mulher sendo “cinturada” por um outro malandro, né? Isso é uma coisa que dá
raiva mesmo, e aí tem mais é que encher os cornos do cara de porrada. Isso é uma história que rola
milhões de vezes, porrada por causa de mulher. E quandos os dois caras estão com uma galera, aí
generaliza a porrada, acaba a festa”. (Túlio, 34 anos, ex-lutador de jiu-jitsu.)
148
conhecido dito popular, poder-se-ia dizer que por trás da maioria das brigas
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envolvendo homens, sempre há uma mulher.
A: Eles desafiam muito vocês?
Gesias: Nossa, e como! A gente pode dizer que são pessoas, não sei se por causa
da criação ou da classe social, são pessoas abusadas, que não respeitam, não são
disciplinados, não sabem que numa festa tem que haver limites, e que a segurança
está lá para o bem de todos. Eles não respeitam a gente, debocham da segurança,
e você às vezes tem que usar da força.
A: Eles debocham da segurança?
Rodrigo: Ôôôô!
Gesias: Debocham e muito! Chegam logo dizendo: “você sabe com quem está
mexendo? Eu sou filho daquilo, daquilo outro”. Então é complicado, né? Então
essas festas da zona sul, essa garotada, eles querem pular o muro, invadir o lugar,
e a gente tem que ficar atento a isso também. Então eles ingerem álcool na hora,
ou até as vezes já chega drogado, jovens de quinze anos fumando maconha.
Depois não respeitam nem os mais velhos, e o pai mandando “fulaninho, pára com
isso”, e ele não querendo saber, não respeitando, querendo brigar. É uma classe
de jovens complicada, que dá trabalho.
Wanderley: Falou tudo: é uma classe de jovem abusada. A palavra certa é
abusada. Não respeitam, saem às vezes humilhando a gente, entendeu? A onda dos
moleques hoje em dia é encarar os seguranças. “Ele chega assim e diz o seguinte:
me bate. Encosta a mão em mim que eu vou chamar o meu pai e vou te processar”.
Esses caras se acham o dono de tudo, eles não respeitam nada não, você diz que
não pode passar e o cara passa, nem olha na tua cara, nem te responde, nem
nada... Você fala com eles e eles ignora você.
Que inferir do trecho acima? A radiografia é nítida: tratam-se de jovens
abusados – e o abuso aqui poderia remeter à idéia de excesso vislumbrada
anteriormente –, que se valem de sua condição social privilegiada para debochar,
desrespeitar e humilhar aqueles que são pagos para interditar o vale-tudo de suas
diversões noturnas. São jovens que fazem uso do rito “você sabe com quem está
falando?” de que fala DaMatta (1983), apenas com uma sutil porém significativa
diferença: ao invés de perguntar se o segurança “sabe com quem está falando”,
indagam se ele “sabe com quem está mexendo”. Significativa não somente porque
remete à dimensão de fisicalidade que é característica do discurso da atual
juventude carioca (Almeida e Tracy, 2003), mas porque tal dimensão empresta
uma conotação ainda mais belicosa e autoritária à expressão como um todo. O
segurança não está só “falando”: ele está “mexendo”, o que já é um passo além.
Pois é possível “falar” com uma pessoa sem no entanto “mexer” com ela – mas
mexer com alguém pressupõe uma animosidade, uma atitude agressiva que vai
149
além de um enfrentamento verbal, uma disposição de ultrapassar a fronteira da
palavra mais ríspida. O “você sabe com quem está mexendo?” é um “você sabe
com quem está falando?” ainda mais explícito no que este veicula de conflito, de
hierarquização de lugares sociais. Daí o desafio, que é também quase um pedido:
“me bate”. Se o segurança “encostar a mão” no rapaz, sofrerá as consequências
por haver cometido o supremo pecado de ter se esquecido de que, no Brasil, nem
todos são iguais, e que ele, um indivíduo, não deveria jamais ter “mexido” com
uma pessoa.
Situação curiosa, esta que se coloca. Por um lado, os filhos da classe média
e alta identificam-se com os marginalizados do crime organizado e disso retiram
alguma fruição (nem que seja apenas de ordem estética). Por outro, na hora de
concretizar a experiência da violência, não hesitam em fazer uso de um rito que
reforça as fronteiras de classes. Uma vez mais, eis-nos diante da velha máxima:
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sim, nós somos iguais – mas, veja bem, somos diferentes. Afinal, otário é aquele
que tem os recursos necessários para transitar por sobre os constrangimentos do
sistema, mas não os aproveita. Otário é quem tem a possibilidade de ficar “por
cima”, mas escolhe jogar de igual para igual.
Carnaval em Iriri. Tava eu, Marcos e Luciano, só nós três dessa vez. Tamo
andando pela rua, indo pra muvuca. A gente ouviu uma confusão, tinha mó
galerão, um cara meio que pulando pra brigar com um cara que a gente conhecia,
que tava sozinho. O cara ia ser juntado. Aí a gente falou “ó Dudu, se quiser
brigar, briga, a gente não deixa ninguém entrar”, só que quando eles começaram
a brigar, um outro neguinho quis dar um chute no nosso camarada, aí a gente
segurou ele no mata-leão... Aí estancou. Aí mermão, foi a maior porradaria que eu
já participei na minha vida, porque foi monstra a parada. Era coisa de vir um cara
e você pá pá pá, bomba, e o cara caía. Aí virava pro lado, vinha outro e você bum
bum bum, o cara caía, virava pro outro lado e mais um... Eu briguei com muita
gente aquela noite, foram vários e vários... Marcos brigou com vários, Luciano
com vários. Daqui a pouco eu olho pro lado e um cara pega um daqueles caixotes
de madeira de feira e plau, estoura na cabeça do Marcos. Meio filme, você quase
que vê em câmera lenta aquela caixa explodindo na cabeça do Marcos, mas o
Marcos ficou de pé, e o cara assustou “porra, estourei uma caixa de madeira na
cara desse cara e não deu nada”. Aí o Marcos começou a bater no cara, do outro
lado o Luciano agarrado no pescoço de um cara, socando a cara dele. Aí eu entrei
num bar, muito pequeno mesmo, balcãozinho, um metro e meio no máximo, daqui
a pouco eu olho e vejo que tem dois caras me olhando, um deles apóia a mão no
bar e me chuta o peito, e eu “caralho”! Aí começei a trocar [socos] com os dois
malucos, pá pá pá pá, porrada com os dois, os caras saíram do bar, um deles tava
pegando uma mesa, mas era uma mesa enorme de madeira, pesada, então o cara
“uuuuuhhhhh”, fazendo a maior força, demorando pra caralho, aí eu “ah não!”,
só empurrei e a mesa plá!, caiu em cima do cara. Acabou que todo mundo foi
preso. Foi foda porque os caras eram de lá, por isso não parava de vir gente, a
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gente batia, batia, batia, mas não parava de vir “minhoco”. No final das contas, o
Marcos arranhou um pouco a testa e o Luciano machucou um pouquinho a canela,
só isso. Os caras tomaram um prejuízo forte. “A gente passou uma noite lá na
delegacia, presos, no dia seguinte a gente conseguiu sair porque o pai do Luciano
é juiz, e realmente não tinha acusação nenhuma”. Tinha um advogado porta de
cadeia pedindo pra gente dar uma grana pra ele subornar o delegado de plantão,
que não estava de plantão. “Aí o pai do Luciano ligou pro delegado e mandou
‘aonde você está, que você deveria estar de plantão na delegacia, e você não está,
então por favor você trate de ir pra delegacia soltar o meu filho e os amigos
dele’”. O delegado foi lá, soltou, e afinal de contas não tinha acusação contra a
gente, foi agressão mútua. Não foi uma agressão nossa contra eles, foi mútua,
então ou processa todo mundo que tava envolvido na briga, ou não processa
ninguém. Soltaram a gente, a gente encontrou os caras depois na rua, mas não
aconteceu nada. (Marcos, 31 anos, ex-lutador de jiu-jitsu.)
4
Considerações finais: Na Academia
A primeira implicação de uma pesquisa que aborda um tema relacionado à
violência é o comprometimento do próprio pesquisador. Se se abstém de emitir
quaisquer juízos de valor, escrevendo de modo a buscar apenas uma descrição
mais acurada do problema, corre o risco de ser acusado de perigosa complacência
relativista – afinal, dirão alguns, “não tomar posição alguma já é tomar uma
posição”. Se condena velada ou abertamente seu objeto de estudo, é provável que
venha a ser criticado por haver adotado postura demasiadamente parcial, o que
poderia comprometer a validade científica de suas conclusões. Assim, os
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problemas que o pesquisador necessariamente têm de enfrentar são de natureza
metodológica e política. Quem escreve sobre violência, mesmo que sem a
intenção declarada de propor qualquer espécie de solução ou remédio, deve estar
ciente de que seu texto estará inexoravelmente inserido em um debate mais amplo,
debate este que é em última instância político.
Fazer etnografia é, há já algum tempo, enveredar por seara espinhosa.
Edward Said, por exemplo, percebe nas obras dos principais teóricos da
antropologia “uma voz culta, elegante, exploradora, com autoridade, que fala e
analisa, acumula provas, teoriza, especula sobre tudo – exceto sobre si mesma”
(Said, 2003: 121). Interessa à Said não tanto o discurso antropológico em si, mas
suas condições de possibilidade, as relações de poder dentro das quais ele é
engendrado e das quais depende para se afirmar. Said, é claro, não foi o único.
Inúmeros autores, de filiações intelectuais as mais diversas, juntaram-se à crítica
das implicações do modo hegemônico (pensemos em Geertz) de fazer etnografia,
pois
a noção de que as culturas são “textos” a serem interpretados pelo etnógrafo
confere a ele uma enorme autoridade como decifrador e hipertrofia sua presença
no texto etnográfico. Os acontecimentos do campo e as outras vozes tendem
sempre a recuar no texto em prol das convicções do escritor e de sua retórica.
(Caiafa, 2007: 158-9.)
152
Assim, os antropólogos se viram obrigados a repensar o modo de descrever
ou representar (esta a palavra crucial) seus objetos de estudo. Escrevendo sobre
esta recente movimentação no interior da antropologia, Janice Caiafa (2007)
enumera algumas das principais preocupações que passaram a nortear a escrita
etnográfica, a saber: atentar sempre para o processo de othering, isto é, de
produção exótica do Outro, risco que acompanha toda etnografia; valorizar o
momento do campo e, ao mesmo tempo, acabar com os excessos de interpretação
tão caros à hermenêutica; enfraquecer as fronteiras entre as vozes dos nativos e a
do pesquisador, de modo a ter em mãos um relato polifônico, de enunciação
coletiva; e procurar, tanto quanto possível, não “criar mais obstáculos do que o
inevitável entre o leitor e a experiência de contato com o outro e com suas
palavras” (Caiafa, 2007: 169). Tudo somado, diz-nos Caiafa, o antropólogo
produziria um relato etnográfico em alguma medida semelhante a um romance de
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Dostoiveski, no qual via de regra “o narrador não sabe muito mais que os
personagens” (Caiafa, 2007: 166).
Quer me parecer que um tal movimento, ao fim e ao cabo, teria a pretensão
de unir na feitura da etnografia o desejo por objetividade com o desejo por
solidariedade, para usarmos os termos de Richard Rorty (2002). Segundo Rorty,
existem dois modos fundamentais de os seres humanos reflexivos darem sentidos a
suas vidas, colocando-as em um contexto mais amplo. O primeiro modo
estabelece-se através da narração da estória de sua contribuição para a
comunidade. Essa comunidade pode ser a comunidade histórica atual na qual eles
vivem, ou outra comunidade atual, distante no tempo ou no espaço, ou ainda uma
comunidade totalmente imaginária que consista talvez de uma dúzia de heróis e
heroínas selecionados da história, da ficção ou de ambos. O segundo constrói-se a
partir da descrição de si mesmos com estando em relação imediata com a
realidade não-humana. Essa relação é imediata, à medida que ela não deriva de
uma relação entre uma tal realidade e suas tribos, ou nações, ou a lista imaginada
de seus membros. Eu diria que estórias do primeiro tipo exemplificam o desejo por
solidariedade, e que estórias do segundo concretizam o desejo por objetividade.
(Rorty, 2002: 37.)
É uma boa pretensão de se ter, acredito. Mas, no caso desta dissertação,
quase impossível de se colocar em prática. Pois como escrever imbuído de um
espírito solidário para com jovens que divertem-se agredindo, muitas vezes
covardemente, outras pessoas? Contudo, sei que alguns podem ler este trabalho
como excessivamente tolerante em relação à contribuição do jiu-jitsu para a
eclosão do fenômeno “pitboy”, haja visto que, como foi dito já na introdução,
153
retornei ao tatame frequentado na adolecência esperando encontrar “pitboys” –
mas eles não estavam lá, o que aliás me deixou algo frustrado.
De fato, a premissa que fundamenta meu raciocínio é a de que o jiu-jitsu em
si mesmo não pode ser responsabilizado pelo surgimento dos “pitboys”, embora
esteja direta e inextricavelmente ligado a tal fato. Mas não houve, e acredito que
isto tenha ficado suficientemente claro, o intuito de empreender qualquer espécie
de “defesa” desta modalidade de luta ou de seus praticantes. Aonde o leitor mais
crítico poderia enxergar solidariedade, peço que enxergue a tentativa de alguma
objetividade: minha experiência em campo, repito, não autorizou a feitura de uma
associação direta, do tipo causa e efeito, entre jiu-jitsu e “pitboys”. O jiu-jitsu,
como qualquer outra arte marcial, é um conjunto de técnicas corporais que confere
aos seus praticantes um tipo de poder fisicamente orientado, cujo emprego
depende em última análise do indivíduo que o domina. E indivíduos, sabemos,
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não existem isoladamente: vivem em meio a um emaranhado de teias de
significados que teceram para si próprios. Portanto, o que interessa é apreciar as
especificidades das relações sociais que, dentro de uma determinada sociedade e
época, autorizam ou reprimem o uso de poderes físicos como os conferidos por
uma arte marcial. Foi precisamente esta a tentativa desta pesquisa.
E, além disso, não interessa buscar culpados. Estariam os Gracies, e
diversos faixas-pretas formados em suas academias, cientes de sua contribuição ao
desenvolvimento do fenômeno “pitboy”? Parece bastante plausível. Haveria como
que uma crise de educação, uma crise de valores no seio da sociedade, que faz
com que muitos jovens sejam criados sem qualquer tipo de instância repressora de
seus instintos e vontades, crise esta agravada pela moderna ideologia do consumo
e por aquilo que se convencionou chamar de moral do espetáculo? Sem dúvida.
Vivemos em meio a um caldo de cultura ibérico, que autoriza e legitima um
sistema de relações hierárquicas na estrutura, porém igualitárias na superfície? É
inegável. Não seria parte deste sistema a certeza da impunidade, a percepção da
falência dos processos legais, a pouca energia da justiça na punição de delitos
como os levados a cabo por “pitboys”? De fato. Contudo – e este é o ponto –,
como reunir estes e outros aspectos analisados neste trabalho de modo a saber
medir o peso e a influência específica de cada um? Se tivesse que responder esta
questão, confessaria abertamente não saber como hierarquizar as causas, motivos
e influências para a ação de “pitboys”, e acrescentaria que uma tal operação talvez
154
fosse mesmo irrelevante, indesejável, ou simplesmente impossível. De um ponto
de vista pragmático (Rorty, 1994; 2002), o melhor que se pode fazer é tentar uma
redescrição da interação entre os fatores que compõem a intrincada malha de
relações sociais, econômicas e políticas que se imbricam no fenômeno
pesquisado.
Foi também por esta razão que evitei observar os “pitboys” apoiado no
“discurso da falta”. O intuito, desde o início, era o de tentar apreender as múltiplas
experiências de lutadores de jiu-jitsu e “pitboys” em suas positividades. Assim, a
“falta” de uma filosofia no jiu-jitsu, tantas vezes denunciada por seus praticantes,
revelou-se uma filosofia em si mesma, a da eficiência, que é parte de um sistema
mais amplo de formação (daquilo que chamei) de um ethos guerreiro, cujo
desenvolvimento e manutenção é uma das condições de possibilidade da própria
eficiência. O treinamento do jiu-jitsu – que incluía práticas como a “taparia”, o
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“bloqueio” e o “baile funk”, pseudo-iniciações também inscritas na lógica da
eficiência –, e o contato corporal íntimo que ele exige, se mostrou um “fantasma”
de conotações homoeróticas que, captado na piada que se faz sobre o esporte,
persegue o lutador. A “casca-grossa” e a orelha “estourada”, tradicionalmente
pensados apenas como gíria e símbolo de pertença, converteram-se em
importantes dispositivos da construção de si, respectivamente um recurso de
sociabilidade e um “você sabe com quem está falando?” não discursivo. No ato de
“sair na porrada”, que supõe-se desprovido de racionalidade e de regras,
encontramos uma brincadeira-jogo, expressão racional e afetiva de uma violência
que, inserida num contexto lúdico (a “guerra”), é no mais das vezes praticada sob
um cálculo preciso que conjuga risco e adrenalina, reconhecimento e glória. No
uso do corpo-arma para roubar, depredar, vandalizar – característico de num
comportamento já claramente inclinado à uma malandragem marginal –,
surpreendemos um dos elos de identificação de “pitboys” com a violência do
crime organizado. Mas, ao mesmo tempo, vimos o quanto esta identificação tem
limites: os limites da própria malandragem, que obriga ao uso do “você sabe com
quem está mexendo?” e quaisquer outros recursos disponíveis para “sair por cima”
de uma situação e seguir sem ser importunado pela polícia ou pela lei.
Abri este trabalho com Foucault, e a impossibilidade da linguagem em
precisar o quer que seja. Deixo-o com Mario Quintana, que diz assim: “o fato é
um aspecto secundário da realidade.”
5
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Capitulo 1: No Tatame