7º Encontro Anual da ANDHEP - Direitos Humanos, Democracia e Diversidade
23 a 25 de maio de 2012, UFPR, Curitiba (PR)
Grupo de Trabalho 1 Teoria e História dos Direitos Humanos
Deficiência e Direitos Humanos em debate: história
do movimento social e transformações recentes
César Augusto de Assis Silva
Pós-doutorando Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, bolsista FAPESP
(processo 18896-2)
Coordenador do Grupo de Estudos Surdos e da Deficiência do Núcleo de
Antropologia Urbana da USP (GESD-NAU-USP)
0
Resumo:
A deficiência é uma questão que desde as últimas décadas do século XX tem ganhado
visibilidade crescente e ampla regulação jurídica. 1981 foi definido pela ONU como o
Ano Internacional da Pessoa Deficiente, o que impulsionou a organização política no
tema. Em 2007, o Brasil tornou-se signatário da Convenção Internacional sobre os
Direitos das Pessoas com Deficiência, estando tal tema atualmente no âmbito dos
Direitos Humanos. O mais significativo da Convenção é a ratificação da alteração do
modo de ver a deficiência, que passa do modelo médico para o modelo social. A
intenção deste trabalho é analisar a relação entre deficiência e direitos humanos,
tomando por objeto a emergência da categoria deficiência e o seu uso pragmático, a
história do movimento social em questão e recente colocação do tema deficiência na
pasta dos direitos humanos do Estado brasileiro.
Introdução
Nas últimas décadas, o tema da deficiência ganhou crescente visibilidade e
ampla regulação jurídica em âmbito nacional e internacional. Remonta os anos 1970 a
preocupação da Organização das Nações Unidas (ONU) com o tema, uma vez que
em 1975, tal órgão promulgou a Declaração dos Direitos das Pessoas Deficientes.
Posteriormente, o ano de 1981 foi definido pela ONU como o Ano Internacional da
Pessoa Deficiente, movimento que gerou impacto no Brasil, fazendo da questão um
tema de política pública com repercussão na grande mídia. Recentemente, o marco
internacional mais importante foi a promulgação da Convenção Internacional sobre os
Direitos das Pessoas com Deficiência, em 2006, carta internacional que tem por
objetivo uma completa redefinição nos termos de entendimento da deficiência.
Em âmbito brasileiro, o tema da deficiência ganhou também crescente
visibilidade e normatização nas últimas décadas. Além disso, progressivamente, tal
questão estabeleceu-se como algo relativo aos direitos humanos nas instâncias do
Estado. Preocupação primeira da Educação, posteriormente da Assistência Social,
somente recentemente, em 2003, o tema foi alocado na Secretaria de Direitos
Humanos da Presidência da República. Outro marco importante, sem dúvida, foi a
ratificação da citada Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com
1
Deficiência, em 2007, a qual posteriormente ganhou estatuto de Decreto Legislativo
(186/2008), sendo integrada à Constituição Brasileira e, por fim, tornou-se Decreto
Federal
(6949/2009).
Desse
modo,
está
bem
solidificada
em
organismos
internacionais e no âmbito do Estado brasileiro a regulação do tema deficiência como
uma questão de direitos humanos.
O objetivo fundamental deste artigo é refletir sobre a relação entre os temas
deficiência e direitos humanos. Para tanto, o argumento trata de três questões
articuladas.
Primeiramente, a intenção é tomar por objeto a emergência da categoria
deficiência. A meu ver, tal processo ainda não foi suficientemente descrito e
compreendido no contexto brasileiro. Além disso, apesar de recente, tal categoria está
por demais naturalizada em nosso senso prático, o que muita vezes dificulta a
objetivação dos processos sociológicos de sua invenção e a compreensão do uso
pragmático de tal categoria. A hipótese a ser verificada nesta breve reflexão é que a
emergência de tal categoria é solidária ao processo complexo de gerência do Estado
da parcela da população que recebe tal classificação.
A segunda questão a ser investigada diz respeito aos processos associativos
dos atores sociais que se autodenominam pessoas com deficiência. A intenção é
sistematizar alguns dados sobre a história, que tem se constituído como legitima, da
deficiência e do movimento social em questão no Brasil. Em linhas gerais, baseado no
trabalho primoroso de Lanna Junior1 (2010), é possível pensar alguns períodos dessa
história, a saber, algumas iniciativas inaugurais no Brasil Império no século XIX; no
século XX, a emergência de algumas instituições organizadas pela sociedade civil
para pessoas com deficiência; posteriormente a emergência de associações de
pessoas com deficiência para o lazer, esporte, recreação e ajuda-mutua. Na
sequência, o período que segue aos anos 1980 caracteriza-se por organizações
políticas catalisadas pela democratização no Brasil e o Ano Internacional da Pessoa
Deficiente (1981), bem como pela posterior atuação desse movimento na Assembleia
Constituinte. Nesse processo, de uma certa coalizão unificada “das deficiências” nos
1
Mário Cleber Martins Lanna Junior é historiador (PUC-MG) e compilou o livro História do
Movimento Político das Pessoas com Deficiência no Brasil. O livro faz parte do Projeto
OEI/BRA 08/001 Fortalecimento da Organização do Movimento Social das Pessoas com
Deficiência no Brasil e Divulgação de suas Conquistas e foi produzido pela Secretaria dos
Direitos Humanos da Presidência da República, em parceria com a Organização dos Estados
Ibero-Americanos para a Educação, a Ciência e a Cultura (OEI).
2
primeiros anos da década de 1980, tributária do contexto político, a configuração
resultante foi a organização nacional por área de deficiência em federações
particulares para intervirem de maneira paritária na deficiência em geral. Sendo este
por fim, em linhas gerais, o contorno da deficiência no Brasil.
Em terceiro lugar, após ter refletido sobre a emergência da categoria
deficiência e seu uso pragmático e de ter de modo geral compreendido a conformação
de processos associativos na questão, a intenção é focar na relação entre deficiência
e direitos humanos. Como será evidenciado, a colocação do tema como vinculado aos
direitos humanos está relacionada com a desconstrução de certa visão paternalista,
superprotetora, assistencialista e médica, na qual pessoa com deficiência é alvo de
caridade e cura, para outra visão, na qual pessoas com deficiência é sujeito de
direitos, autônomo e capaz de representação política.
Sobre a categoria deficiência
As categorias deficiência e pessoa com deficiência atualmente são vistas como
as mais legítimas para referir-se a esse tema, tanto por um movimento social
complexo e bem consolidado, como por instâncias do Estado. A Convenção
Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (2006) ratificou o uso
dessas categorias, assim como recentemente houve uma renomeação de instâncias
do Estado, retirando termos como portador de deficiência e portador de necessidades
especiais, para adequação a essa nova terminologia.
Em nosso senso prático, a categoria deficiência já está bastante naturalizada e
cristalizada. Em tese, com certa facilidade algumas sequelas provenientes de
patologias, ou algumas divergências congênitas em relação a um corpo imaginado
como normal, recebem a classificação de deficiência. Apesar de haver algumas
controvérsias com relação ao que pode ser ou não classificado desse modo,
geralmente, tal categoria é operada de maneira auto-evidente, como se deficiência
fosse algo proveniente da natureza, sendo ainda necessário desnaturalizar
minimamente tal categoria.
Apesar de toda busca por uma origem resvalar em uma narrativa sempre
mitológica, é necessário realizar um esforço para compreensão dessa categoria. De
certo modo, nos últimos anos, alguns trabalhos acadêmico-científicos têm constituído
uma narrativa sobre sua origem. O nascimento do termo está vinculado ao contexto
3
inglês do pós Segunda Guerra. Suas vítimas, necessitadas de reabilitação, receberam
a classificação de pessoas deficientes, dando origem ao nascimento do termo
(Rabinow, 1999: 146). De modo que ela possui uma história relativamente curta.
É fato facilmente verificável que as instituições que atualmente são vistas como
vinculadas ao que se inventou como deficiência, historicamente, foram nomeadas por
outras categorias, pois cada dita deficiência (por assim dizer) foi socialmente
elaborada em sua particularidade, não estando historicamente indicializada a uma
categoria geral. É o caso, por exemplo, dos institutos imperais de cegos e surdosmudos, a saber, o Imperial Instituto de Meninos Cegos, fundado em 1854, assim como
o Imperial Instituto dos Surdos-mudos, fundado em 1856. Bem como de outras
instituições do século XX, como exemplo, Associação de Ajuda à Criança Defeituosa
(AACD), fundada em 1950, Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE),
fundado em 1954, entre outras. Tais instituições foram nomeadas de acordo com a
classificação dos sujeitos que elas tinham por alvo, não havendo uma regulação geral
comum que abarcasse todas.
Outro dado a ser considerado, é que uma série de categorias, as quais, hoje
em certos contextos, são tidas como pejorativas e ofensivas, foram legítimas e oficiais
para classificar sujeitos com deficiência (como se diria atualmente). Esta última
categoria opera como termo politicamente correto, substituindo outros. Vejam o caso,
por exemplo, da atual deficiência intelectual. Categorias como retardado, demente,
idiota, cretino, alienado, estúpido, débil mental, mongoloide, outrora legítimas e
oficiais, foram substituída por deficiente intelectual. De modo semelhante, o termo
deficiente físico visa substituir termos como aleijado, manco, torto, coxo, entre outros.
Do mesmo modo, a categoria deficiente visual substitui cego, sendo a primeira
atualmente mais oficial, polida, sendo emprega em contextos institucionais e
impessoais, a segunda é mais antiga, vinculada à caridade, assistência, contextos
religiosos, também afetiva ou ofensiva (Cavalheiro, 2012:57). No caso da deficiência
auditiva, certamente a categoria de nominação oficial mais antiga, surdo-mudo,
atualmente é vista como equivocada, raramente sendo utilizada em termos oficiais,
pois a ideia de mudez não está mais associada à surdez2. Deficiência auditiva e
deficiente auditivo tornam-se categorias mais gerais e oficiais, contudo, devido à
emergência da língua brasileira de sinais (libras) e a afirmação da categoria surdo
2
O fato de algumas pessoas surdas não falarem é resultado de um desconhecimento do som e
não por algum impedimento biológico para falar.
4
(não deficiente), desenhou-se uma nova tensão. Por um lado, surdo tornou-se a
categoria utilizada para falante de libras, enquanto que deficiente auditivo tornou-se
um “outro” desse surdo (em certos contextos, pessoa que não ouve não falante de
libras). Por outro, surdo e deficiente auditivo não deixam de serem englobados pela
categoria deficiente auditivo em geral em instâncias do Estado.
Em linhas gerais, é possível dizer que há a colocação das categorias
deficiência (em geral) e suas manifestações particulares clássicas (visual, auditiva,
física, intelectual e múltipla) como legítimas, corretas, oficiais. Esse processo, que
remonta a história do século XX, tem feito com que as categorias anteriores sejam
vistas como pejorativas, tornando-se elas, como bem exemplificou Cavalheiro (2012)
no caso da cegueira, possíveis categorias de xingamento (ofensivas). Contudo, tal
redesenho da pragmática das categorias é carregada de muitas tensões e
resistências. Como também exemplificou a autora, apesar de deficiente visual imporse como legítima, em certos contextos a categoria cego é vista por alguns autores
como mais precisa, particular, afetiva, sendo a primeira por demais oficial (burocráticoestatal). O caso da deficiência auditiva também é exemplar dessa tensão. Surdo, que
poderia ter sido uma categoria desqualificada e substituída por deficiente auditivo, com
a emergência da libras torna-se uma categoria forte e oposta a deficiente auditivo,
desenhando uma recentíssima fronteira simbólica entre tais sujeitos. Além disso, como
há uma miríade de instituições atualmente vinculadas à deficiência, mas que são
anteriores à formulação dessa categoria geral, elas mantêm a sua nomeação
particular anterior.
Antes da emergência das categorias deficiência, pessoa com deficiência e
deficiente, outras podem ter desempenhado essa função de categoria geral (guardachuva) para abarcar diversas divergências em relação a um corpo tido como normal.
As categorias inválidos, incapazes, aleijados e defeituosos podem ser considerar
como pioneiras desse processo. Apesar de excepcional ser uma categoria
historicamente vinculada à deficiência intelectual, em certa medida ela também foi um
categoria com aplicação mais ampla. Além disso, especial é outra categoria que já
teve a sua posição de normativa e legítima, hoje em dia também em crescente desuso
e alvo de críticas.
Alguns processos gerais deram inicio ao engendramento da ideia de
deficiência. Por um lado, houve a promulgação de cartas gerais das Nações Unidas
que iniciaram esse processo de gerência geral do que seria a deficiência. Por outro, o
5
Centro Nacional de Educação Especial (CENESP), fundado em 1973, foi uma
instância estatal pioneira preocupada com o tema no país. Além disso, o final dos anos
1970 e começo dos anos 1980, foi marcado pelo processo de democratização e
mobilização política de diversos setores da sociedade brasileira, momento no qual
nasceu propriamente o movimento político das pessoas deficientes. Somado a esse
contexto político, o Ano Internacional da Pessoa Deficiente (1981) funcionou como um
catalisador de associações e ativistas políticos dispersos em todo o país. Desse modo,
foi assim que categoria deficiência foi se consolidando como algo que conecta
experiências muito particulares, antes não vinculadas.
No contexto dos primeiros anos da década de 1980, a categoria que se impõe
como legítima foi pessoa deficiente, por influência do Ano Internacional da Pessoa
Deficiente. Como afirma Lanna Junior “a inclusão do substantivo pessoa era uma
forma de evitar a coisificação, se contrapondo à inferiorização e desvalorização
associada aos termos pejorativos usados até então” (2010:17). O uso da categoria
deficiente (sem pessoa) sugere que a pessoa é toda deficiente ou apenas deficiente,
enquanto que a categoria pessoa deficiente reafirma a condição de pessoa, sujeito de
direito. Contudo, a categoria que vinga na legislação pós anos 1980 é portador de
deficiência. Nos anos que seguiram, a categoria deficiência e pessoa deficiente
também passaram por crítica, por remeter a ideia de não eficiência e não eficiente. Por
conta disso, outra categoria emergiu, portador de necessidades especiais, como pode
ser vista na legislação recente sobre o tema.
A categoria especial teve a sua trajetória de êxito. Proveniente da educação, é
o termo ainda utilizado para nomear a educação de pessoas com deficiência, as quais
historicamente precisaram de uma educação à parte, não regular ou comum. Foi a
categoria que nomeou o CENESP, bem como termo que adjetivou as escolas e as
salas para alunos com deficiência (escolas e salas especiais). Além disso, é a
categoria utilizada na Declaração de Salamanca (1994), marco fundamental para
regular a educação na deficiência em uma perspectiva inclusiva, normatizando as
necessidades educacionais especiais, que estão para além das ditas deficiências
(inclui superdotação e qualquer condição de marginalização social). É no bojo desse
processo que se consolida a categoria portador de necessidades especiais.
Contudo, as categorias portador de deficiência e portador de necessidades
especiais também passaram por críticas. De acordo com Lanna Junior “a condição de
portador passou a ser questionada pelo movimento por transmitir a ideia de a
6
deficiência ser algo que se porta e, portanto, não faz parte da pessoa. Além disso,
enfatiza a deficiência em detrimento do ser humano.” (2010:17). O especial também
passou e ainda passa por uma crítica ampla e sistemática. Em tese, todos têm
necessidades especiais, ou seja, a categoria não é específica, funciona mais como um
eufemismo aplicado à deficiência. O movimento passou a criticá-la, pois se busca ser
cidadão, e não especial (idem, ibidem). Além disso, há uma progressiva
desconstrução do que foi historicamente adjetivado como “especial”. A legislação
nacional desde a Constituição Federal vem paulatinamente desmontando as escolas
especiais, vistas por certos agentes como segregacionistas (não integrou e nem
inclui), além de terem um alcance limitado, pois ser urbanas e elitistas. Tal crítica
consolidou um clima favorável à educação de alunos com deficiência em escolas
regulares, o que ganhou os contornos de educação inclusiva, projeto fundamental da
Declaração de Salamanca. De modo que o especial, antes bem demarcado em
territórios como a escola ou a classe especiais, tem sido substituído pelas noções de
acessibilidade, práticas desterritorializadas e dispersas (não somente escolar). Apesar
de especial ser uma categoria bastante consolidada, instâncias estatais intituladas
com tal termo têm sido renomeadas. É importante considerar que esse processo é
acompanhado de muita tensão3.
Desse modo, apesar de a categoria deficiência estar se consolidando desde o
final dos anos 1970 no Brasil, tal processo não foi linear, ele passou por críticas, o seu
uso foi eclipsado, até tornar-se mais sólida nos últimos anos, sendo mesmo, um
retorno, um novo fortalecimento devidamente requalificado. É necessário também
considerar como o sentido da categoria deficiência também passou por uma
reformulação.
Como indicativo da mudança de significado do termo, podemos analisar alguns
exemplos. Na Declaração dos Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU, de
1975, a deficiência está intrinsecamente vinculada à ideia de incapacidade e
anormalidade:
“O termo "pessoas deficientes" refere-se a qualquer pessoa incapaz de
assegurar por si mesma, total ou parcialmente, as necessidades de uma vida
3
Sobre a mobilização política a favor das escolas bilíngües para surdos e contra a inclusão ver
Assis Silva & Assênsio (2011).
7
individual ou social normal, em decorrência de uma deficiência, congênita ou
não, em suas capacidades físicas ou mentais “4
De outro modo, de acordo com Ribas (2003:10), a Organização Mundial de
Saúde, na tentativa de normatizar a questão, publicou em 1980 a Classificação
Internacional dos Casos de Impedimento, Deficiência e Incapacidade, explicando cada
um desses casos.
“O impedimento diz respeito a uma alteração (dano ou lesão) psicológica,
fisiológica ou anatômica em um órgão ou estrutura do corpo humano. A
deficiência está ligada a possíveis sequelas que restringiriam a execução de
uma atividade. A incapacidade diz respeito aos obstáculos encontrados pelos
deficientes em sua interação com a sociedade, levando-se em conta a idade,
sexo, fatores sociais e culturais” (Ribas, 2003:10).
Apesar de não ser muito clara a fronteira entre impedimento e deficiência, o
avanço dessa classificação foi explicitar que a incapacidade não é algo intrínseco ao
corpo com lesão, mas sim produto da interação entre o deficiente e a sociedade. Essa
ideia foi apropriada e ressoa na definição de deficiência da Convenção Internacional
sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (2006), como se lê no item e de seu
Preâmbulo:
“Reconhecendo que a deficiência é um conceito em evolução e que a
deficiência resulta da interação entre pessoas com deficiência e as barreiras
devidas às atitudes e ao ambiente que impedem a plena e efetiva participação
dessas pessoas na sociedade em igualdade de oportunidades com as demais
pessoas”5.
Em termos mais claros, deficiência está sendo afirmada não como algo que
está alocada no corpo individual (que poderia ser visto como sinônimo da lesão), mas
como um produto da interação da pessoa com o ambiente e atitudes. De modo que a
Convenção procurou incorporar a concepção sociológica de deficiência, construída em
oposição ao modelo médico (na qual pessoa com deficiência é um paciente que
demandaria cura).
4
Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/pdf/dec_def.pdf Acesso em 02/05/2012
5
Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d6949.htm
Acesso em 03/05/2012.
8
Outro ponto importante a ser considerado é que não é evidente o que pode ser
ou não classificado como deficiência. Apesar de haver algumas divergências, em
relação a um corpo tido como normal, que são mais facilmente classificadas como
deficiência (como é o caso da cegueira, surdez, amputação, paralisias, etc), outras
tiveram que reivindicar o direito de receberem tal classificação, como foi o caso dos
ostomizados e pessoas com nanismo (por meio do Decreto Federal 5296/2004).
Em síntese, apesar de a categoria deficiência estar bastante naturalizada em
nosso senso prático, a intenção desta reflexão foi objetivar a sua emergência, bem
como o seu uso pragmático. Podemos afirmar que ela é uma categoria recente, que
surgiu e se solidificou conectando instituições para e saberes sobre sujeitos com
corpos divergentes (em relação a um corpo normal sempre imaginado e histórico), os
quais não estavam organizados sob uma categoria geral, pois eram instituições e
saberes voltados para “divergências” particulares. Tal processo desenhou-se com
bastante tensão. Não é completamente evidente quem pode receber tal classificação,
bem como há um tentativa em fazer da deficiência algo que não esteja localizado no
corpo, mas sim, na interação entre corpo e ambientes/atitudes, sendo ela um produto
sociológico.
Processos associativos primários: das instituições “para” e “de” pessoas
com deficiência para a representação política
Para bem compreender o complexo processo sociológico de formulação geral
da deficiência é necessário olhar para cada uma das ditas deficiências – seja ela
proveniente de alguma patologia, sequela de doença ou traço congênito tido como
divergente de um corpo normal – na tentativa de compreender como essas entidades
históricas passaram por um moroso processo de delimitação, classificação,
diferenciação, até a sua formulação mais ou menos estável. Tal processo de
elaboração é solidário da identificação, classificação, separação, segregação de
sujeitos a serem cuidados, investigados, analisados e medidos por especialistas e
cuidadores. Como bem formulou Michel Foucault (2002), o processo de elaboração de
um saber sobre é coextensivo de um poder que separa determinados tipos de sujeitos.
É importante salientar que a classificação e o encaminhamento de um sujeito
para uma instituição não são processos necessários, compulsórios, obrigatórios, pois
em verdade, são procedimentos arbitrários. Contudo, na medida em que formas de
9
regulação, como diagnósticos e tratamentos, estão bem consolidadas, cada vez
menos esses processo tendem a ser arbitrários e instáveis. De outro modo, quanto
menos formuladas estão as fronteiras e delimitações, maior a possibilidade de
diagnósticos posteriormente tidos como trocados, equivocados, confusos, como são
os relatos de pessoas cegas tidas como autistas, ou pessoas surdas tidas como
loucas, o que leva a institucionalização e tratamentos vistos como equivocados.
Assim, além de a noção de deficiência ser produto de um processo mais geral
de gerência de coisas diversas, é importante considerar que cada uma das ditas
deficiências, de igual modo, é efeito de processos sociais muito complexos de
delimitação, classificação, produção de saber sobre, separação e segregação de
determinados tipos de sujeitos. Sem negar a dimensão biológica do corpo, cada uma
das ditas deficiência é em verdades um construto social histórico particular. É
fundamental ter isso em mente para que possamos compreender o quanto a história
das instituições para pessoas com deficiência (como atualmente são referidas)
constituem em verdade a história da deficiência. Tendo por base Lanna Junior (2010),
é possível identificar alguns processos gerais dessa história.
As primeiras iniciativas vinculadas ao que hoje se denomina deficiência estão
relacionadas a praticas de segregação nas famílias e nas Santas Casas. Em 1741 foi
fundado o Hospital dos Lázaros, onde eram segregadas as pessoas com hanseníases,
denominadas leprosa, insuportável ou morfética (idem, pg 22).
No Brasil Império surgem outras instituições. Em 1852 começou a funcionar o
Hospício Dom Pedro II, vinculado à Santa Casa de Misericórdia, no Rio de Janeiro,
para o tratamento de alienados. Em 1854 foi fundado o Imperial Instituto para Meninos
Cegos, atualmente Instinto Benjamin Constant. Em 1856, foi fundado o Imperial
Instituto dos Surdos-Mudos, atualmente Instituto Nacional de Educação de Surdos
(INES). Nessa história, há alguns paralelos que precisam ser ressaltados. Em ambos
os casos ocorreu a vinda de professores provenientes da França – o jovem cego e exaluno do Instituto de Paris José Álvares de Azevedo e o professor surdo e ex-diretor
do Instituto de Surdos-Mudos de Bourges E. Huet – e uma narrativa que sempre evoca
Dom Pedro II como tendo autorizado e incentivado tais empresas. Ambas as
instituições logo passaram a receber alunos provenientes de diversas províncias do
Império e guardam até hoje o estatuto de instituições de referência.
No século XX, por iniciativa da sociedade civil foram fundadas instituições
importantes para essa história, entre elas a Sociedade Pestalozzi, em Canoas-RS
10
(1932) – atualmente são cerca de 150 –, Associação de Assistência à Criança
Defeituosa (hoje Associação de Assistência à Criança Deficiente) (1950), Associação
de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE), no Rio de Janeiro (1954) e algumas
instituições de reabilitação, como Associação Brasileira Beneficente de Reabilitação
(1954), entre outras.
O importante a ser ressaltado é o papel chaves dessas instituições em
estabelecer processos associativos de sujeitos classificados e disciplinados de modo
semelhante. Em verdade, esse processo foi bem mais disseminado e complexo do
que Lanna Junior (2010) pôde demonstrar. Pois há uma miríade de agências que
estão produzindo essa rede associativa. Como exemplo, somente olhando para o caso
da surdez, identifiquei que ao longo do século XX, pelos menos sete congregações
católicas fundaram escolas especiais para surdos, em todo o território nacional em
diversas capitais6 (Assis Silva, 2011). De modo que, apesar do INES ter esse papel
fundamental na história da surdez, a rede onde a libras pode se solidificar está
também vinculada a territórios compostos também por essas outras escolas.
Além disso, como a publicação elaborada no contexto da Campanha da
Fraternidade de 2006 – a qual teve por tema Fraternidade e Pessoa com Deficiência –
demonstrou (CNBB, 2005), em verdade a Igreja Católica, composta por religiosos,
leigos e suas diversas congregações estão intrinsecamente vinculadas ao processo de
fundação de institutos, escolas, asilos para o cuidado, educação e catequese de
diversas, atualmente, ditas deficiências (surdez, cegueira, hanseníase, paralisias), etc.
Essa relação iniciou-se há séculos com a prática de abandonos de bebês em rodas
dos expostos em Santas Casas. A Igreja Católica manteve esse vínculo com as ditas
deficiências, como é possível perceber por meio das instituições Fraternidade Cristã
de Doentes e Deficientes (atualmente Fraternidade Cristã de Deficientes), Arca do
Brasil, Movimento Fé e Luz, Escolas São Rafael e Instituto Padre Chico para cegos,
Associação dos excepcionais São Domingos Sávio, Associação Dom Orione, entre
outras instituições (escolas, institutos, asilos, etc).
6
Entre as congregações católicas e cidades onde atuam, pode-se citar: A Congregação das
Irmãs de Nossa Senhora do Calvário (São Paulo-SP, Rio de Janeiro-RJ e Brasília-DF);
Gualadianos da Pequena Missão para Surdos (Londrina-PR, Cascavel-PR e Campinas-SP),
Irmãs Salesianas do Sagrado Coração (Belém-PA, Fortaleza-CE, Pouso Alegre-MG, ManausAM); Congregação das Irmãs Franciscanas de Nossa Senhora Aparecida (Porto Alegre-RS);
Congregação Sociedade das Filhas do Coração de Maria (Curitiba-PR); Filhas da Providência
para Surdos Mudos (São Paulo), Associação das Obras Pavonianas de Assistência (BrasíliaDF).
11
Essas instituições educacionais, caritativas, assistencialistas, reabilitadoras
para pessoas com deficiência, não raro, funcionaram como instituições totais,
produziram um amplo processo associativo de sujeitos classificados de um mesmo
modo. É na esteira desse processo que passam a emergir instituições de pessoas
com deficiência, algo que infelizmente poucos sabemos. Fundadas e geridas por exalunos ou pacientes de institutos para, essas novas instituições possuem caráter mais
recreativo,
de
lazer,
sociabilidade,
promotor
de
campeonatos
esportivos,
estabelecimento de estratégias para sobrevivência e ajuda mútua, do que um caráter
propriamente político. Como exemplo dessas instituições podemos citar Conselho
Brasileiro para o Bem-Estar dos Cegos (CBEC) (1954), Associação Brasileira de
Surdos Mudos (1930), Associação Alvorada Congregadora de Surdos (1953),
Associação de Surdos Mudos de São Paulo (1954), Clube dos Paraplégicos de São
Paulo (1958), Clube do Otimismo do Rio de Janeiro (1958), entre outras.
Contudo, é essa rede, por um lado devedora de instituições para, e também
potencializada por instituições de, que se traduziu em mobilização política no final dos
anos 1970 e começos dos anos 1980, no bojo da democratização do Brasil e o
ativismo político que caracterizou o período, bem como o incentivo proveniente do Ano
Internacional da Pessoa Deficiente (1981).
Nesse momento nascente do movimento social de pessoas com deficiência
foram realizados três Encontros Nacionais de Entidades de Pessoas Deficientes, em
Brasília (1980), Recife (1981) e São Bernardo do Campo (1983). O que caracterizou o
evento foi o desenho de uma ampla rede que conectou instituições e ativistas políticos,
fazendo emergir um debate sobre a condição de ser deficiente. O tom dos primeiros
encontros foi favorável à Coalizão Pró-Federação Nacional de Entidades de Pessoas
Deficientes, algo iniciado em 1979, bem como a elaboração de uma pauta única das
reivindicações para a deficiência. Contudo, no terceiro encontro, a unidade foi rompida
devido à dificuldade de integrar uma pauta única, dissenso quanto às questões
prioritárias, bem como uma crise de legitimidade de uma representação unificada, o
que levou a definição da organização nacional por área de deficiência.
Esse processo impulsionou a fundação de Federações por área de deficiência.
Como exemplo, em 1981, foi fundado o Movimento de Reintegração das Pessoas
Atingidas pela Hanseníase (Morhan). Em 1984, foi fundado a Organização Nacional
das Entidades de Deficientes Físicos (Onedef) e a Federação Brasileira de Entidades
12
de e para Cegos (Febec)7. Em 1987, A Federação Nacional de Educação e Integração
de Surdos (Feneis). Sendo, em linhas gerais, este o contorno da representação
política da deficiência no Brasil.
Paradigmas da deficiência e Direitos Humanos
O movimento social nascente foi bastante atuante durante a Assembleia
Constituinte (1987). Duas importantes vitórias precisam ser ressaltadas. Ativistas
políticos da deficiência conseguiram que o tema não fosse alocado em um capítulo à
parte, mas que fosse um tema transversal presente em diversos capítulos da
Constituição Federal de 1988, rompendo qualquer intenção segregadora. Além disso,
o tom tutelar foi substituído pela autonomia, fazendo com que deficiência fosse
pensada em termos de igualdade de direitos civis (Lanna Junior, 2010:67).
Nos anos que seguiram, foram constituídas duas instâncias importantes
relativas à deficiência no Estado brasileiro. Em 1986 foi criada a Coordenadoria
Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência (CORDE). Desde 2003
ela faz parte da pasta de Direitos Humanos, estando vinculada à Presidência da
República. Em 2009, a CORDE foi elevada a Subsecretaria Nacional de Promoção
dos Direitos da Pessoa com Deficiência e, a partir de agosto de 2010, alcançou o
status de Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência,
órgão da Secretaria dos Direitos Humanos da Presidência da República. A colocação
da deficiência como tema subordinado à Presidência da República deve-se ao fato de
ela exigir ações interministeriais. A segunda instância importante foi o Conselho
Nacional dos Direitos da Pessoa Portadora de Deficiência (CONADE), em 1999, um
conselho deliberativo fiscalizador de políticas públicas sobre o tema.
Importante considerar que as últimas décadas foram caracterizadas por um
desmonte (limitado a certos contextos) de alguns paradigmas que historicamente
conformaram a deficiência. Entre eles podemos citar o paradigma assistencialista, no
qual a pessoas com deficiência é vista como alvo de caridade, vítimas de sua própria
incapacidade. Outro paradigma é o médico, no qual a pessoa com deficiência é um
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Em 2008, a Federação Brasileira de Entidades de e para Cegos (Febec) e a União Brasileira
de Cegos (UBC) decidiram pela fusão em uma nova entidade, a Organização Nacional dos
Cegos do Brasil (Lanna Junior, 2010: 62).
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paciente que demanda sobretudo cura e reabilitação. De outro modo, nas palavras de
Lanna Junior:
“O modelo social defendido pelo Movimento das Pessoas com Deficiência é o
grande avanço das últimas décadas. Nele, a interação entre a deficiência e o
modo como a sociedade está organizada é que condiciona a funcionalidade, as
dificuldades, as limitações e a exclusão das pessoas. A sociedade cria
barreiras com
relação a atitudes (medo,
desconhecimento, falta de
expectativas, estigma, preconceito), ao meio ambiente (inacessibilidade física)
e institucionais (discriminação de caráter legal) que impedem a plena
participação das pessoas” (2010:16).
É precisamente este o tom da Convenção Internacional sobre os Direitos das
Pessoas com deficiência. Em grande medida, há uma tentativa explícita em fazer da
deficiência um efeito da interação do corpo com lesão e as barreiras sociais (atitudes e
ambientes), condição social que explicaria a não participação igualitária na sociedade
de pessoas com deficiência. A carta revela que a pessoa com deficiência foi alvo de
discriminação em diversas instâncias de sua vida cotidiana, sendo a Convenção uma
normatização que visa garantir igualdade de oportunidades. Além disso, há um esforço
em despatologizar a questão, fazendo da deficiência uma expressão da diversidade
humana. Como corolário, a pessoas com deficiência é afirmada como um sujeito de
direito, autônomo, capaz de representar-se politicamente, não sendo o alvo primordial
de caridade (assistencialismo) e cura (saber médico)
Considerações finais
O trabalho que seguiu ainda foi preliminar. A intenção fundamental foi
desnaturalizar a categoria deficiência, demonstrando o quanto ela é um construto
social que emergiu nas últimas décadas para gerir uma determinada população, assim
classificada. Ela emerge conectando instituições, saberes e sujeitos que estavam
dispersos. Procurei também trazer dados fundamentais dos processos associativos de
pessoas com deficiência, o que resultou mais recentemente no movimento social que
tem pautado questões com muito êxito no âmbito do Estado brasileiro. Por fim,
procurei explicitar diferentes paradigmas do tema e sua colocação na pasta de direitos
humanos do Estado.
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(Coleção Primeiros Passos).
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César Assis Silva (CEBRAP)