UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE
CENTRO DE EDUCAÇÃO, FILOSOFIA E TEOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO, ARTE E
HISTÓRIA DA CULTURA
PAULA FERREIRA TURA
POÉTICAS CORPORAIS: O CORPO NO AMBIENTE NATURAL –
UMA PROPOSTA CONTEMPORÂNEA EM ARTE VISUAL
SÃO PAULO
2013
PAULA FERREIRA TURA
POÉTICAS CORPORAIS: O CORPO NO AMBIENTE NATURAL –
UMA PROPOSTA CONTEMPORÂNEA EM ARTE VISUAL
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Educação, Arte e História da Cultura da Universidade Presbiteriana
Mackenzie, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em
Educação, Arte e História da Cultura.
Orientador: Prof. Dr. Norberto Stori
SÃO PAULO
2013
2
T929p Tura, Paula Ferreira.
Poéticas corporais : o corpo no ambiente natural : uma
proposta contemporânea em arte visual / Paula Ferreira Tura. –
2014.
95 f. : il. ; 30 cm.
Dissertação (Mestrado em Educação, Arte e História da Cultura)
- Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2014.
Referências bibliográficas: f. 88-90.
1. Arte e meio ambiente. 2. Artes visuais. 3. Corpo. 4. Cultura.
5. Natureza.PAULA
I. Título.
FERREIRA TURA
CDD 702.8
1. Arte e meio ambiente. 2. Artes visuais. 3. Corpo. 4. Cultura.
5. Natureza. I. Título.
3
Poéticas Corporais: O corpo no ambiente natural –
uma proposta contemporânea em arte visual
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Educação, Arte e História da Cultura da Universidade Presbiteriana
Mackenzie, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em
Educação, Arte e História da Cultura.
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________________________________________________
Prof. Dr. Norberto Stori – Orientador
Universidade Presbiteriana Mackenzie
__________________________________________________________________________________
Profa. Dra. Petra Sanchez Sanchez
Universidade Presbiteriana Mackenzie
_____________________________________________________________________________
Prof. Dr. Nardo Germano
Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo
4
Afagar a terra. Conhecer os desejos da terra.
Cio da terra, a propícia estação. E fecundar o chão*
* Chico Buarque /Milton Nascimento
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AGRADECIMENTOS
Agradeço a
meu orientador, Professor Doutor Noberto Stori que com generosas observações
pontuais e precisas ajudou-me a adentrar no campo das artes, aguçou o meu olhar e me indicou
possibilidades. Graças às suas observações este trabalho tomou forma e conteúdo.
Agradeço ao Professor Doutor Agnus Valente pelo aceite na composição à banca. Suas indicações
bibliográficas foram essenciais para o desenvolvimento da pesquisa. Foi um grande prazer aprender a ver o
mundo através de seu olhar. Pude apurar meu senso crítico e estético além de repensar condutas.
Agradeço à Professora Doutora Petra Sanchez Sanchez pelas perguntas realizadas. Sem estas jamais
teriam ocorrido reflexões. Sem sua mediação para que eu fosse contemplada com a Bolsa CAPES de
pesquisa foram essenciais para que eu pudesse realizar este trabalho.
Agradeço aos Professores Doutores Nardo Germano e Elcie Fortes Salzano Masini por aceitarem o
convite à suplência para a banca.
Agradeço ao Mack Pesquisa e a CAPES pela concessão de bolsa de estudos que viabilizaram a
realização deste estudo.
Agradeço ao meu marido Wilson Aguiar pela filmagem e fotografia das obras, suas dúvidas,
sugestões e olhar crítico. É através de parceria que nossos laços se fortalecem.
Agradeço ao céu, a terra, à areia, ao sol, ao ar, ao mar, às árvores, às flores, frutos e folhas. Agradeço
ao colorido do mundo, suas texturas, relevos e magnitude. Ainda não existem palavras que possam expressar
a minha gratidão em sentir-me parte deste todo.
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E por todas as filhas e velhas que apoiam o que é bom e
afastam a obediência cega a qualquer supercultura que
premie somente a forma nivelada e deprecie o pensamento
Por elas...abençoadas sejam suas belezas, tristezas e buscas;
que sempre se lembrem de que perguntas ficam sem
resposta, até que sejam consultados os dois modos de
enxergar: o linear e o interior.
(Clarissa Pinkola Estés, p.104-105, 2007)
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RESUMO
Esta pesquisa se utiliza da arte visual para sacralizar o contato do corpo com o ambiente natural. A autora
que é uma artista pesquisadora escolheu a Arte Contemporânea como linguagem para suas intervenções.
Desta forma, a obra foi escrita em Capítulo Único composto por: intervenção proposta pela pesquisadora
com fotos e descrições, seguida de um artista de referência com imagens de seu trabalho e por fim uma
análise do trabalho realizado contendo os conceitos e discussão de argumentos. Assim, estão em Body Art
obras de pintura corporal, impressão corporal, molde de partes do corpo em gesso; em Performance Art o
registro da projeção da sombra do corpo - durante a realização de movimentos de yoga e de projeção da
sombra de folhas de árvores sobre o corpo; o encaixe do corpo em raízes de árvore e em espaços de uma
construção em ruínas; em Arte Povera há a pintura em tronco de árvore, a construção de corpo feminino em
areia com utilização de retalhos e em Land Art há a construção de pequenas árvores de tecido, a grafia na
areia da praia, a construção coletiva de amaciamento de pedras, criação de rastros coloridos e caminhos de
areia e por fim a intervenção com corante em esculturas e desenhos de areia. Todas as propostas artísticas
acontecem em ambiente natural mais precisamente o litoral do Estado de São Paulo em relação ao qual a
autora possui grande conhecimento e afinidade. O corpo, objeto principal deste trabalho sente e transparece a
marca das inquietações que carrega como os padrões sociais impostos de comportamento e de estética, do
tempo acelerado nos grandes centros e do convite à introspecção proveniente do contato com o ambiente
natural. Carrega em si as memórias das escolhas feitas e caminhos traçados. As propostas aqui inclusas
propõem a expressão que falta à fala, exprimem as dores do trajeto reflexivo, o ouvir, o sentir, o contemplar,
o esperar.
Palavras-chave: Arte e Meio Ambiente, Artes Visuais, Corpo, Cultura, Natureza.
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ABSTRACT
This research, through the visual arts sacralizes the contact of the human body with the natural environment.
The author who is an artist-researcher has chosen the Contemporary Art as a language to her proposals. The
dissertation was written in One Chapter composed as: interventions developed by the researcher with photos
and descriptions followed by an artist of reference with images of it´s work and an analysis of the art work
proposed by the researcher with concepts and discussion of arguments. To each posture of Contemporary Art
there is a range of different art pieces to be viewed: Body Art – there is a body painting and imprinting, and
cast´s mold of body parts; Performance Art - there are registration of the shadows produced by the body
during an yoga practice and the projection of the shadow of a tree leave on top of a body and the match of
the body with a tree and a ruin of a building; Arte Povera – there is a branch painted in red and the
construction of a feminine body with sand and cloth; Land Art – there is a construction of little cloth trees,
the drawings on the beach sand, a collective work to make rocks softer, the creation of colorful and sand
paths and the interventions with ink on sand sculptures found at the beach.The body, main object of this
work, feels and become visible the marks of restlessness that carry about the social imposed patterns of
behavior and esthetics and the relation with the natural environment. Carry itself the memories of choices
made and paths coursed. The art proposals here included express what the speech misses, express the pains
of the reflexive path coursed, the listening, the feeling, the contemplation, the process of waiting.
Key words: Art and Environment, Visual Arts, Body, Culture, Nature.
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LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1. Sol Lewitt. Wall Drawing #146. Combinação das duas partes dos arcos azuis dos cantos para os
lados e azul retilíneo, não retilíneo e linhas quebradas,1972
22
Figura 2. Paula Tura. Pintura corporal, 2012
24
Figura 3. Paula Tura. Impressão de tronco, 2012
25
Figura 4. Paula Tura. Pintura corporal, 2013
26
Figura 5. Paula Tura. Impressão de tronco, 2013
27
Figura 6. Yves Klein. Antrhopométrie de l’Époque bleue, 1960
30
Figura 7. Paula Tura. Impressão de corpo, 2012
31
Figura 8. Escarificação africana
33
Figura 9. Escarificação africana
33
Figura 10. Escarificação africana
33
Figura 11. RaioX
33
Figura 12. Paula Tura. Seio, 2012
34
Figura 13. Paula Tura. Ventre, 2012
35
Figura 14. Paula Tura. Mão e braço, 2012
35
Figura 15. Marc Quinn. Self, 2006
37
Figura 16. Paula Tura, Corpo de areia (processo de construção), 2013
38
Figura 17. Paula Tura. Corpo de areia (processo de construção), 2013
38
Figura 18. Paula Tura. Corpo de areia, 2013
39
Figura 19. Ana Mendieta. Silueta Works in Mexico, 1973-1977
41
Figura 20. Paula Tura. Série Yoga: Saudação ao sol, 2012
43
Figura 21. Liu Bolin. Hiding in the city 94: in the woods, 2010
.
Figura 22. Vito Acconci. Step piece, 1970
45
Figura 23. Paula Tura. Encaixe I, 2013
48
Figura 24. Paula Tura. Encaixe II, 2013
48
46
10
Figura 25. Paula Tura. Encaixe III, 2013
49
Figura 26. Paula Tura. Raiz, 2013
51
Figura 27. Paula Tura. Corpo folha I, 2013
54
Figura 28. Paula Tura. Corpo folha II, 2013
54
Figura 29. Franz Krajcberg, Escultura em madeira
56
Figura 30. Paula Tura. Tronco sangrando, 2012
57
Figura 31. Franz Krajcberg. Sem tít ulo, Madeira
61
Figura 32. Paula Tura. Mulher deitada, 2012
62
Figura 33. Paula Tura. Mulher deitada na areia, 2013
63
Figura 34. Leda Catunda. Paisagem com onça, 2009
66
Figura 35. Gustav Klimt. Hope II, 1907-08
66
Figura 36. Paula Tura. Árvores da areia, 2013
68
Figura 37. Paula Tura. Mensagens, 2011
.
Figura 38.. Andres Amador, Clouds
..
Figura 39. Paula Tura. Pedras Macias, 2013
71
Figura 40. Paula Tura. Pedras Macias, 2013
74
Figura 41. Paula Tura. Rastros coloridos, 2013
76
Figura 42. Andy Goldsworthy. Green to yellow leaves
78
Figura 43. Paula Tura. Caminho de areia, 2013
79
Figura 44. Richard Long. A line made by walking, 1967
80
Figura 45. Paula Tura. Buracos, 2013
81
Figura 46. Paula Tura. Gato, 2013
81
Figura 47. Paula Tura. Monstro, 2013
82
Figura 48. Paula Tura. Pé, 2013
82
73
74
11
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
13
INTRODUÇÃO
15
CAPÍTULO ÚNICO
20
CONSIDERAÇÕES FINAIS
85
REFERÊNCIAS
88
APÊNDICE
91
APÊNDICE A – FOTOGRAFIAS
92
APÊNDICE B - DVD
95
12
APRESENTAÇÃO
“Quando o rubor de um sol nascente caiu pela primeira vez no
verde e dourado do Éden,
Nosso pai Adão sentou-se sob a árvore e, com um graveto, riscou
na argila;
E o primeiro e tosco desenho que o mundo viu foi um jubilo para o
coração vigoroso desse homem,
Até o Diabo cochichar, por trás da folhagem: “É bonito, mas será
Arte?” (KIPLING apud MANGUEL, 2001, p.30)
Este trabalho se propõe a estudar a relação do corpo com o ambiente natural através da arte
contemporânea. Apresenta pesquisas de embasamento teórico sobre algumas linguagens artísticas apontando
artistas referenciais; Esta abordagem propõe-se a demonstrar a relação do corpo com o ambiente natural
através de produções artísticas contemporâneas realizadas pela pesquisadora.
São articuladas duas Linhas de Pesquisa desenvolvidas dentro do programa de mestrado em
Educação, Arte e História da Cultura, são elas: Culturas e Artes na Contemporaneidade que possui como
cenário referencial as sociedades contemporâneas e se compromete a investigar as artes em suas expressões
eruditas, populares e folclóricas, em diálogo com as mais diversas expressões; e Linguagens e tecnologias
onde ocorrem pesquisas de cunho histórico-crítico dos processos de comunicação humana, seus impactos nas
áreas das artes, da história e da educação, tendo como eixo as expressões das novas mídias.
Toda pesquisa foi realizada in loco, ou seja, realizada no litoral paulista: Praia de São Pedro e
Enseada no Guarujá, litoral sul de São Paulo, Praia da Baleia e Paúba em São Sebastião e Praia do Perez e da
Lagoinha em Ubatuba, litoral norte de São Paulo. Foram utilizados elementos naturais encontrados nestas
praias, como areia, cogumelos, gravetos, pedras, água do mar, água dos rios, troncos de árvores, flores e
produtos industrializados como tecido, pedras, sais de banho, corante e fita adesiva levados pela autora.
A dissertação é composta de um Capítulo Único intitulado Poéticas corporais: o corpo no
ambiente natural – uma proposta contemporânea em arte visual. Este capítulo aborda aspectos da
história da Arte Contemporânea: Arte Conceitual, Body Art, Performance Art, Arte Povera e Land Art como
embasamento às descrições e imagens do trabalho que vem sendo desenvolvido pela autora. A escolha por
manter um único capítulo para esta dissertação baseia-se no convite ao sutil entrelaçamento entre as
diferentes linguagens contemporâneas aqui abordadas; todas as ações acontecem em ambiente natural (praias
do litoral paulista) e conversam entre si como se pode observar nas ações de Land Art realizadas através de
uma performance do corpo manipulando elementos da natureza pois “nosso corpo e nossa experiência de
nosso corpo continuam a ser o tema (...) – mesmo quando uma obra é formada por várias centenas de
13
toneladas de terra” (KRAUS, 1998, p.333) ou então das práticas de Body Art e Performance Art que recebem
como cenário o ambiente natural.
Algumas das obras que serão apresentadas foram realizadas no ano de 2012, enquanto a autora
cursava as disciplinas optativas: História e Filosofia do Corpo no Ocidente, ministrada pela Profa. Dra.
Marcia Angelita Tiburi, Arte Brasileira e Meio Ambiente com os Profs. Drs. Norberto Stori e Petra Sanchez
Sanchez e Sintaxe da Representação, no programa de Arquitetura e Urbanismo com o Prof. Dr. Carlos
Alonso. Estas obras, motivadas inicialmente pelos conteúdos que estavam sendo apresentados, foram
concebidas com alguma inocência e impulso criativo. Ao longo do tempo a autora aprofundou os conteúdos,
pode conceituar e compreender melhor as obras criadas. Assim, cada obra desta dissertação, ao ser citada,
trará a motivação e o embasamento teórico que levou a autora a concebê-la e o processo de concepção da
mesma.
Todas as propostas apresentadas aqui fazem parte do acervo pessoal da autora, nunca fizeram parte
de exposições de arte ou foram comercializadas. No entanto, vez ou outra estas produções são apresentadas
como parte de workshops ou palestras proferidas pela autora como foi o caso do II Encontro de Pedagogia
Profunda – pedagogia fundamentada em Jung1 realizado em outubro de 2012 no Colégio Sidarta, em Cotia,
SP.
Nessa perspectiva, é importante ressaltar que a autora dedicou-se por muitos anos a ministrar
práticas de yoga e a facilitar vivências com a natureza para grupos, além de obter especializações em yoga e
ecologia. Desta forma, é muito interessada nas concepções existentes sobre o corpo e a natureza em
diferentes áreas de estudo pois entende que o corpo é a matéria que envolve a alma, servindo de campo de
experimentação do mundo. Assim, o corpo é parte do espaço, é extensão do ambiente natural.
1
Carl Gustav Jung – psiquiatra suíço (1875-1962) criador da psiquiatria analítica ou psiquiatria junguiana
14
INTRODUÇÃO
“Quando no céu as estrelas se despedem do firmamento e
adormecem durante o dia, as estrelas da água saúdam ao céu
enterrado no mar iniciando as tarefas do novo céu submarino”.
(NERUDA, 1991, tradução nossa)
Desde criança sou frequentadora assídua do litoral paulista. Não havia nada mais importante para
mim do que o contato com a água, a areia, o céu, o sol. Estar na praia era existir, era saber que eu pertencia a
algum lugar, que minha vida tinha um propósito, que eu estava completa.
O retorno para a cidade era doloroso: Sem a evidência do ciclo do nascer e do pôr do sol, do reflexo
nítido das sombras das árvores e dos corpos no chão, longe do cheiro da maresia, eu frequentemente me
perdia no tempo e no espaço.
A praia sempre acolhe minhas leituras, meus pensamentos, minhas práticas de yoga, minhas longas
caminhadas; restabelece meu corpo e minha mente; me ensina a contemplação; facilita a minha introspecção
e criticidade. O convívio com o litoral torna-se, assim, essencial para a manutenção da minha vida na cidade,
o que é ao mesmo tempo frustrante, pois vem da praia a energia que preciso para manter minhas atividades
diárias longe dela.
A busca por um objeto de pesquisa não poderia ser outro senão o meu contato com a natureza, o
litoral, a praia.
Em minha trajetória profissional obtive graduação em Pedagogia (1992-1995), Especialização em
Yoga (2007-2009), Especialização em Ecologia, Arte e Sustentabilidade (2010-2011) e então ingressei no
curso de Mestrado em Educação, Arte e História da Cultura (2011-2013) objetivando unir Arte e Meio
Ambiente.
Cada vez mais com o olhar voltado para as questões de arte e meio ambiente e em paralelo aos
cursos anteriormente mencionados passei a estudar:
a) Pedagogia Profunda - Jung na Educação, criada e desenvolvida pela francesa radicada no
Brasil desde 1972 Celine Lorthiois, pedagoga e mestre em Psicologia da Educação pela PUC/SP.
Anuncio uma Pedagogia Profunda mas eu poderia também chamá-la de Pedagogia com
Alma, ou Pedagogia para o ser humano inteiro, com sua consciência e seu inconsciente;
Pedagogia para o ser-humano-manifestação-de-vida, manifestação da beleza de estar vivo;
Pedagogia da alegria, que busca expressão por intermédio do nosso viver; Pedagogia para a
realização da dança da verticalidade, a dança de ser um corpo tensionado para o alto, em um
ato de oração do tamanho de uma existência (com os pés sobre a terra, e a cabeça apontada
para o céu)...em um ato de oração do tamanho do nosso gênero humano, desde que optou
pela postura ereta... (LORTHIOIS, 2008, p. 130)
15
b) Vivências com a Natureza (Sharing Nature) – metodologia de atividades com a natureza
desenvolvida por Joseph Cornell, educador e naturalista norteamericano. No Brasil, as Vivências
com a Natureza são difundidas pelo Instituto Romã que conta com Rita Mendonça, bióloga e
socióloga como diretora. Segundo MENDONÇA:
O potencial revolucionário da proposta da Sharing Nature está justamente no fato de
conduzir as pessoas a um contato amoroso com a Natureza, e intensificá-lo e ampliá-lo a
cada prática, de modo a criar alicerces em nossa experiência, ou seja, em nosso corpo e em
nossa alma, preparando-nos para mudanças que conduzam a uma coerência entre o que
sentimos e fazemos. (CORNELL, 1998, p. 15)
A partir destas experiências passei a registrar algumas ações que involuntariamente eu já
desenvolvia, tais como: reproduzir partes do meu corpo em areia e gesso, a produzir colagem e pintura em
tela, a escrever na areia, a pintar objetos encontrados na praia, a fotografar minhas práticas de yoga na praia e
a proporcionar a meus alunos de Yoga algumas vivências que uniam Yoga, Natureza e Técnicas Artísticas
através de workshops ministrados em minha própria escola de yoga ou em parques da cidade de São Paulo.
Esta pesquisa teve como propósito experimentar e construir objetos e imagens carregados de vida, de
emoções, de sensações que possam explicitar a conexão que existe entre Corpo e Natureza. Para tal, faz-se
necessário buscar referenciais teóricos, desenvolver projetos artísticos, permitir a ousadia, ser humilde e
persistente. A pesquisa indica a criação de uma linguagem contemporânea que possa propor o encontro do
homem consigo mesmo; este encontro pode acontecer através da manipulação de objetos exteriores a si, o
que provocaria experimentações sensoriais levando-o a experiências de introspecção e reflexão.
Os movimentos que constituem a arte pós-moderna: Arte Conceitual, Body Art, Performance Art,
Arte Povera e Land Art são fundamentais para a compreensão da relação do corpo da artista quando em
contato com a natureza do litoral paulista bem como da proposta visual que a autora desenvolve, pois
entende que a arte tem a possibilidade de trazer à tona o invisível.
Arte Conceitual
“Não menos considerável, é o conceitualismo, com sua ênfase na eliminação do objeto – que
anteciparam o Minimalismo e a Arte Povera, reagindo contra o formalismo do Pop – e seu interesse sobre o
processo criativo em si (...) quando o discurso corporal está ganhando seu lugar dentro dos distintos códigos
da arte”. (GLUSBERG, 1986, p. 35, tradução nossa). A Arte Conceitual abre desta forma um leque de
possibilidades que irá influenciar as posturas que compõem a Arte Contemporânea uma vez que ao eliminar
o objeto o que se valoriza é o conceito e porque não dizer que desta forma transforma-se assim o conceito em
objeto?
16
Foi o escritor e músico Henry Flynt, em 1961, quem primeiro emprega, de fato, a expressão “arteconceito”. Como nome, a Arte Conceitual é utilizada pela primeira vez através dos textos publicados por Sol
LeWitt (1928-2007) em 1967, em seus “Parágrafos sobre a Arte Conceitual”. Na arte conceitual, a ideia ou
conceito é o aspecto mais importante da obra (...) a ideia torna-se a máquina que produz a arte” (WOOD,
2002, p.38) A fotografia é utilizada com frequência pelos artistas conceituais e considerada por estes como
um recurso central às suas realizações artísticas. Para o artista Joseph Kosuth (1945-) , segundo Wood, a Arte
Conceitual é uma indagação dos fundamentos do conceito de arte (WOOD, 2002, p.43).
Body Art
Escrever sobre o corpo, pintá-lo, cobri-lo de tatuagens,
essa é uma maneira de transformá-lo voluntariamente em
objeto de arte? (JEUDY, 2002, p.89)
Nas palavras de Pires, “o artista se coloca como obra viva, usando o corpo como instrumento”
(2005, p.69). Entendendo o corpo como o meio, o suporte para a arte, a Body Art, pode acontecer com ou
sem o público e geralmente é retratada através de fotografias e vídeos. Fluidos, movimentos, sons, sensações,
forma, gênero, cor podem ser explorados ao máximo neste segmento passando de pinturas corporais ao
sadomasoquismo, perfurações, feridas, queimaduras, podendo chegar a realizações com risco de morte.
Alguns exemplos extremos da Body Art são os artistas Chris Burden2 (1946-) que recebe um tiro, a artista
Gina Pane (1939-1990) que se corta com lâmina de barbear, Cindy Sherman (1954-) que modifica sua
aparência através de cirurgias plásticas para então ser fotografada.
São referências teóricas utilizadas para esta pesquisa os seguintes artistas: Ana Mendieta (19481985), Yves Klein (1928-1962), Marc Quinn (1964-).
2
Chris Burden – artista norteamericano conhecido internacionalmente por suas performances
17
Performance Art
A performance se colocaria no limite das artes plásticas e
das artes cênicas, sendo uma linguagem híbrida que
guarda características da primeira enquanto origem e da
segunda enquanto finalidade. (COHEN, 2011, p.30)
A Arte Performática utiliza-se de diferentes modalidades como dança, teatro, música, literatura tendo
o corpo do artista como objeto central da obra. Os artistas podem realizar performances sozinhos e serem
fotografados ou filmados para apresentação posterior ao público, não sendo necessário assim a participação
direta do mesmo.
Durante os anos 60 e 70 esta vertente artística atraiu uma pequena mas influente plateia que faz
ressoar até hoje, através de registros fotográficos e vídeos, os acontecimentos performáticos da época. Desta
forma, mantém-se latente esse movimento artístico.
O grupo Fluxus é um marco da Arte Performática. Constituído por criticidade e humor, baseado em
Nova York, contava com participantes norte-americanos europeus e asiáticos. Obteve como integrantes Yoko
Ono (1933-), George Maciunas (1931-1978), e Joseph Beuys (1921-1986) entre outros. Beuys contribui com
seu trabalho para o surgimento do movimento “Verde” na Alemanha. Objetiva transformar o trabalho do
artista de mero produto comerciável para o conceito de que as produções do artista são um conjunto de
ações que derivam inteiramente do trabalho do artista. É bem interessante observar o paradoxo que é criado
por estas apresentações para as artes visuais pois as performances possuem em sua maioria crítica às
instituições culturais e são apoiadas por ninguém mais do que estas próprias instituições. Esta dependência
mútua entre a subversão e o capitalismo continuam em debate.
Algumas referências artísticas para esta pesquisa são os artistas Ana Mendieta, Liu Bolin (1973-),
Joseph Beuys, Marina Abramovic (1946-), Carolee Schneemann (1939-), Vito Acconci (1940-), Saburo
Murakami (1925-1996).
Arte Povera
Por fim, percebendo que não ia encontrar ninguém vivo, passou a
procurar os seus ossos para montar os esqueletos em cima dos
desenhos de gente e fazê-los viver novamente (ARAUJO, 1999,
p.29)
Arte Povera ou Arte Pobre é um movimento artístico que se desenvolve na Itália em meados da
década de 60 impulsionada pela utilização de materiais considerados pouco ou nada nobres como: areia,
terra, pedras, galhos, sacos, jornais, tijolo, pedra, papel, etc. Impulsionada pela “força da arte que existe no
radicalismo técnico de seus materiais e métodos de elaboração” (WOOD, 2002, p.60) permeados pelas
questões sociais e culturais da época como o anarquismo, o comunismo, o questionamento do consumo no
mundo ocidental.
18
Ressignificar objetos comuns como obras de arte não seria abrir a possibilidade de reconhecimento
do ser humano massificado como sendo dotado de beleza, merecedor de melhores condições sociais,
políticas e culturais? Não estaria nesta proposta material um resgate para o imaterial – o que eu sinto,
enquanto ser comum, ao ver um objeto de ordem regular ser reconhecido como obra de arte? Sinto-me tal e
qual este objeto podendo ser reconhecido ou não, posso assim (in)validar este reconhecimento porque
tampouco sou obra de arte?
Artistas como Mario Merz (1925-2003), Alighiero Boetti (1940-1994), Michelangelo Pistoletto
(1933-), Giuseppe Penone (1947-), Franz Krajcberg (1921-), Louise Nevelson (1899-1988) são artistas
engajados nesta corrente e voltam seus olhos para os processos industriais e a utilização dos recursos
naturais; são fontes teóricas para esta pesquisa.
Land Art ou Arte da Terra
Não somos um conjunto de significados privados que podemos
escolher entre tornar ou não público aos outros. Somos a soma de
nossos gestos visíveis. Somos tão acessíveis aos outros quanto a
nós mesmos. Nossos gestos são, eles próprios, formados pelo
mundo público, por suas convenções, sua linguagem, o repertório
de suas emoções, a partir dos quais aprendemos os nossos. Não por
acaso, Morris e Serra produziam no exato momento em que os
romancistas franceses declaravam: “Eu não escrevo; sou escrito”
(KRAUS, 1998, p.322)
Land Art é uma linguagem artística que utiliza o próprio ambiente natural como matéria primeira
para sistematização das obras de arte. Solos, árvores, mares, geleiras, montanhas, florestas são a inspiração e
o objeto de trabalho dos artistas deste segmento. Através do Land Art, com seu explícito viés ecológico,
passa-se a compreender o ambiente natural e a paisagem como o espaço passível de discurso político,
cultural, econômico em contraposição a uma noção apenas física e geográfica do espaço. Museus e galerias
de arte, como espaços institucionais passam a ser provocados pela característica de segregação e
confinamento da arte. Seu viés ecológico é explicito.
Devido ao fato de os projetos serem realizados in loco há a dificuldade em trazê-los para os museus e
galerias, a não ser através de fotos ou filmes dos projetos realizados.
Artistas como Robert Smithson (1938-1973), Robert Morris (1931-), Christo & Jeanne-Claude
(ambos nascidos em 1935), Dennis Oppenheim (1938-), Richard Long (1945-), Andy Goldsworthy (1956-)
são fonte de pesquisa para este trabalho.
19
CAPÍTULO ÚNICO
POÉTICAS CORPORAIS: O CORPO NO AMBIENTE NATURAL – UMA PROPOSTA
CONTEMPORÂNEA EM ARTE VISUAL
“O ser humano precisa sentir-se natureza. Quanto mais mergulha
nela, mais sente quando deve mudar e quando deve conservar em
sua vida e em suas relações”. (BOFF, 2004, p.116)
A Arte Contemporânea surge na década de 60. Previamente ao seu surgimento e concomitantemente
ao término da Segunda Guerra Mundial, que devasta parte da Europa, ocorre o movimento ExpressionistaAbstrato (década de 40) em Nova York transferindo o centro artístico da Europa (Paris) para a América
(EUA). Há uma grande concentração de artistas em Nova York ávidos pela liberdade de expressão, o que
ajuda a impulsionar a arte norte-americana.
Dentre os vários artistas que compõem o movimento
Expressionista-Abstrato cita-se: Willem de Kooning (1004-1997), Jackson Pollok (1912-1956), percursor do
Action Painting (Pintura de Ação) e Mark Rothko (1903-1970). Este movimento traz influências do
abstracionismo de Piet Mondriam (1872-1944) e do Construtivismo Russo através de Kazimir Malevich
(1878-1935). Funda-se assim a Escola de Nova York.
A Arte Contemporânea caracteriza-se por apresentar uma ampla disposição para a experimentação,
levando os artistas a realizarem uma verdadeira fusão de linguagens, materiais e tecnologias. Os artistas
contemporâneos, como em toda a história, mostram através de sua arte o pensamento de determinada época,
a sociedade em que estão vivendo, as questões políticas, religiosas, econômicas e sociais que os envolvem.
Uma superfície sem limites de possibilidades foi reduzida a um tipo de receptáculo aonde
cores inautênticas e expressões artificiais, são pressionadas uma contra a outra. Por que não
esvaziar o receptáculo, liberar a superfície?... Por que se preocupar com a posição da linha no
espaço? Por que determinar um espaço? Por que limitar? Uma linha pode apenas ser
desenhada de forma longa, para o infinito; entre todos os problemas de composição ou de
dimensão. Não existe dimensão no espaço aberto. (TAYLOR, apud MANZONI, 2005, p.12.)
Inúmeras são as indagações que abarcam movimentos artísticos e as obras de arte ao longo da
história e no movimento contemporâneo não é diferente. Aos artistas-pesquisadores contemporâneos faz-se
necessário muitas vezes mais perguntar do que responder para que se estabeleça e se esclareça com
propriedade os conceitos e propósitos de suas propostas. Imersos em um ambiente hostil de privilégios
econômicos que tem o poder de contextualizar o que é ou não arte através de marchands e interesses
exclusivos, o artista contemporâneo e suas obras refletem a função da arte como extensão do significado da
vida na Terra: adaptar-se a um mundo que está em constante adaptação seja pelo estímulo do meio ambiente
ou das evoluções tecnológicas propostas pelo ser humano.
20
Com o intuito de embasar as obras desta dissertação, a artista apresentará em seguida as produções
que constituem a proposta Poéticas Corporais fundamentadas pelas linguagens artísticas contemporâneas
com as quais elas dialogam. Cada linguagem artística apresentará obras de artistas que a representam e que
agregam valor as Poéticas Corporais por seu reconhecimento histórico cultural. Ressalta-se que a autora não
se baseou nas obras destes artistas para desenvolver suas peças, no entanto, pode ter se inspirado nos
conceitos e pensamentos destes artistas. Assim, Poéticas Corporais não são releituras das demais obras aqui
inclusas.
Sobre a Arte Conceitual e as Poéticas Corporais
Partimos do pressuposto de que quanto maior for o conhecimento de técnicas, do processo históricocultural, das possiblidades de crítica e reflexão, mais estaremos preparados para trilhar o caminho da obra de
arte. Assim, estabelece-se aqui uma aproximação entre a Arte Conceitual e o conjunto de obras denominadas
Poéticas Corporais.
Para a Arte Conceitual a ideia que leva a concepção da obra pode ser considerada como a obra em si,
pois apresenta a indagação de seus fundamentos e o conceito que deseja expressar:
Já me utilizei da expressão arte conceitual para fazer referência a uma forma histórica de
vanguarda que floresceu no final da década de 60 e ao longo década seguinte. O termo era
correntemente empregado na época, para designar uma multiplicidade de atividades com base
na linguagem, fotografia e processos, as quais se esquivavam do embate que então se
efetuava entre, de um lado, a arte minimalista e várias práticas antiformais e, de outro, a
instituição do modernismo, num contexto de crescente radicalismo cultural e político .
(WOOD, 2002, p. 07)
O conjunto de obras que Poéticas Corporais perpassa a Arte Conceitual ao mesmo tempo que
encontra suas obras delineadas pela Body Art, Performance Art, Arte Povera e Land Art. As obras
enquadradas na designação Poéticas Corporais foram em sua maioria fotografadas e a fotografia foi um dos
marcos da Arte Conceitual que a utilizava como forma de registro. Foi partindo de um conceito trazido de
textos e inquietações que as obras de Poéticas Corporais foram tomando forma, ou seja, em primeira
instância o que havia era um conceito que posteriormente tomou forma.
A seguir obra do artista Sol Lewitt, representante da Arte Conceitual:
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Fig. 1. Sol Lewitt. Wall Drawing #146. Combinação das duas partes dos
arcos azuis dos cantos para os lados e azul retilíneo, não retilíneo e linhas
quebradas,1972. Giz azul, dimensões variáveis. Guggenheim Museum, NY.
Vista da instalação: Villa Menafoglio Litta Panza, Biumo Superiore, Varese,
Setembro 16, 1981. Fotografia Giorgio Colombo, Milano
22
Poéticas Corporais em Body Art
Os projetos artísticos desenvolvidos pela autora em relação à Body Art abrangem a pintura
corporal, a impressão corporal em tecido e moldes de partes do corpo em gesso. “O corpo não para de
exibir seus sinais “naturais”. Escrever sobre o corpo, pintá-lo, cobri-lo de tatuagens, essa é uma
maneira de voluntariamente transformá-lo em objeto de arte?” (JEUDY, 2002, p.89).
A motivação inicial para o desenvolvimento destas obras foram os textos de Michael Foucault
(1977) referentes à Biopolítica e Microfísica do poder. Levando-se em consideração pensamentos
sobre os mecanismos sociais de controle sobre os corpos (sua forma, peso, formas de vestir e portar,
transporte, educação, alimentação), pois "as disciplinas do corpo e as regulações da população
constituem os dois pólos em torno dos quais se desenvolveu a organização do poder sobre a vida"
(FOUCAULT, 1977, p.131); a coisificação dos corpos (a redução do corpo a ele mesmo eximindo
qualquer possibilidade de reflexão acerca de si, do outro, das relações sociais; sobrepondo-se a estas
reflexões apenas as ações referentes às necessidades diárias dos indivíduos).
Preenchida de reflexões sobre estes textos, a autora percebe-se em situação de conflito e
profunda necessidade de expressar sua perplexidade sobre a constituição social na qual está inserida.
Palavras não lhe foram suficientes ou estiveram ao seu alcance para que pudesse ser clara em suas
angústias. Encontrou assim, entre pinceis, tintas, gesso, tecido, fotografia, vídeo um caminho para a
comunicação de seus pensamentos e indignações, afinal, independente do material utilizado, da época
histórica e cultural a arte é sempre atividade de comunicação do que muitas vezes não se consegue
expressar com palavras. Em sua casa, onde tem um pequeno ateliê passa a observar os materiais que
tem e anotar em seu caderno alguns esboços de projetos a serem desenvolvidos. À medida que
discussões acerca dos textos citados eram realizados os projetos deixavam as folhas do caderno para
tomarem corpo, pois “a experiência artística propicia a projeção de informações sensoriais e afetivas.
Faz perceber, participar, estabelecer relações, raciocinar, experimentar hipóteses, tirar conclusões,
intuir...aprender” (RIZOLLI, 2005, p.151).
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Experimentos em Body Art
a) Pintura e impressão corporal
Existem três (03) obras que compõem o título Pintura impressão corporal. A primeira obra é
designada como a.1) Pintura e impressão corporal de tronco em preto a segunda obra a.2)
Pintura e impressão corporal de tronco em vermelho e a terceira obra designada a.3) Pintura e
impressão corporal.
Optou-se por manter o título de Pintura e impressão para estas obras devido ao processo de
pintura do corpo com tinta guache e impressão do corpo em tecido. Embora estas três obras que serão
apresentadas a seguir possuam um processo de concepção similar, poderá o leitor notar as diferenças
visuais e conceituais que cada uma apresenta.
a.1) Pintura e impressão de tronco em preto
Fig. 2. Paula Tura. Pintura corporal, 2012. Fotografia
Will Aguiar. Acervo da artista
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Fig. 3. Paula Tura. Impressão de tronco, 2012. Guache sobre tela, 98 x150cm.
Fotografia Will Aguiar. Acervo da artista
A autora espalhou tinta guache na cor preta sobre seu tronco com as mãos (fig. 2); em
seguida deitou-se no solo e teve seu tronco coberto com tela para pintura (fig. 3). A autora contou
com ajuda para a realização da impressão do seu tronco, ou seja, deitada sentia seu corpo sendo
tocado sobre o tecido; sentia o acariciar das mãos que a tocavam, o calor e a intensidade das mesmas
tendo apenas uma película, sendo esta o tecido, que separavam a pele de seu tronco da pele da mão de
seu auxiliar. Este experimento foi realizado na cidade de São Paulo, na residência da autora.
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a.2) Pintura e impressão de tronco em vermelho
Vestida de sangue deita-se na relva
Empresta o corpo para o mundo ao experimentar o ventre
vivo
Percebe-se mamífero em suas formas
Repete o ciclo da vida e da morte
Sem palavras para descrever sensações envolve-se em
cores na tentativa de compreender-se
(TURA, Paula, 2013)
Fig. 4. Paula Tura: Pintura corporal, 2013.
Fotografia Will Aguiar. Acervo da artista
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Fig. 5. Paula Tura. Impressão de tronco, 2013.
Guache sobre tela, 100 x 105 cm. Fotografia
Will Aguiar. Acervo da artista
A autora atribui a escolha da cor vermelha considerando que esta obtém a qualidade de cor
de sangue pois estando grávida e entendendo-se como mulher em processo de criação, possui uma
quantidade elevada de sangue correndo em suas veias para a manutenção do seu corpo e para a
formação do feto.
A artista utilizou-se de tinta guache, espalhando-a com as mãos (fig. 4) sobre o tronco como
fez com a pintura corporal na cor preta. Novamente deitada teve o tronco coberto com tecido de tela
(fig. 5) e passou pela experiência de ter seu tronco tocado sob o tecido. Com as formas arredondadas
da gestação é notória a diferença da impressão do corpo que neste experimento surge mais
arredondado e volumoso diferenciando-se do formato de “cara de cachorro” que apresenta a
impressão na cor preta.
Este experimento foi realizado na cidade de Ubatuba, litoral norte do estado de São Paulo.
Levando-se em consideração que o processo de Pintura e Impressão de tronco foi realizado
em dois momentos (não gestante e gestante) e locais distintos (cidade e litoral) faz-se estabelecer
algumas reflexões:
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a) o corpo que foi pintado na cor preta é hoje um corpo morto. Entende-se corpo morto por ser um
corpo que nunca havia gestado. O processo de gestar implica em deixar-se moldar para conceber a
nova vida; este novo molde do corpo envolve tomar uma nova forma física de arredondar-se, aquecerse, abaular-se e abrir-se para que o pequeno corpo do bebê saia. Concomitantemente à nova forma
física e gestação do bebê ocorre a morte da mulher gestante tendo como seu último suspiro o
momento do nascimento do bebê para que
nasça com este a
mulher-mãe. Desta forma, as
experiências sensoriais do corpo pintado e impresso na cor preto mantem-se com as memórias
sensoriais de um corpo ávido e satisfeito por uma experiência artística mas, por mais que esta
experiência tenha sido internalizada ela se mantem num nível superficial se se comparada à
experiência de ter o ventre tocado quando preenchido pela gestação de um bebê.
b) despir-se em ambiente natural toma relevância e se sobrepõe ao ambiente fechado uma fez que
propicia a sensação de corpo ilimitado e integrado ao ambiente natural, fresco, repleto de árvores,
flores, folhas, cheiro de relva e habitado por animais como cobras e insetos.
No poema a seguir de autoria de um estudante da cidade de Ubatuba convida-se o leitor a
tecer uma correlação entre: o corpo gestante que está pintado de vermelho (fig. 2 e 3) e que tem um
aumento no fluxo sanguíneo para nutrir a díade mãe-bebê com os costumes dos moradores locais, que
rodeados de natureza tão exuberante são tomados pela avidez da vida urbana que se apresenta no
líquido preto da Coca-Cola embalado por um rótulo vermelho, assim, a Pintura e Impressão corporal
em vermelho (fig. 4 e 5) podem ser comparados ao ritmo e contato com a natureza dos moradores de
Ubatuba e o corpo e impressão de tronco em preto que aqui chegamos a comparar ao de uma mulher
morta é o conteúdo preto e líquido que preenche a garrafa de refrigerante . Quem sabe se esse corpo
preto em forma de líquido também um dia não se transforma em vermelho vivo?
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Em igrejas, favelas, bares
Colégios, festas, em todos os lugares
Colorado
Quando menos se espera
Lá está ele
Sem muita pressa
Com a camisa no peito
A cor do sangue
A cor do respeito
A cor dos ianques
A cor do inferno
No verão ou no inverno
Em contraste com o azul
Simplesmente vermelho
Simples simplesmente
No copo da Coca-Cola
Nos seios de uma garota
Na porta da escola
O vermelho estará sempre presente
Simples simplesmente
Como o vermelho da camiseta
E o vermelho das besteiras”
(WARPECHOWSKI, 1998, p.96)
Em 1960, o artista francês Yves Klein apresenta ao público: “Antropometria do período azul.
Três modelos nuas, cobertas de tinta azul imprimem seus corpos sobre enormes telas seguindo as
ordens do artista enquanto uma orquestra executava a Sinfonia Monótona de Pierre Henri. As modelos
“transformadas em pinceis vivos” segundo Klein, serviam para levar a extremos a Action Painting de
Pollock, originando assim uma via particular e independente” (GLUSBERG, 1986, p.31, tradução
nossa).
O trabalho de Pintura e Impressão de tronco (fig. 2, 3, 4, 5)
tecem uma correlação com a
proposta de Klein no que diz respeito à pintura e impressão do corpo feminino. São propostas
completamente diferentes quando se aborda o processo desenvolvido por Klein uma vez que este
manipula o corpo da modelo como um pincel vivo, com audiência e ao som de música e nas obras de
Pintura e Impressão realizadas pela autora o que se vê são corpos imóveis a espera de uma impressão,
como a matriz de uma gravura. No entanto, tanto Klein como a autora propiciam que estas impressões
corporais ganhem características singulares pois não manipulam as imagens impressas
posteriormente.
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Fig. 6. Yves Klein. Antrhopométrie de
l'Époque bleue, 1960. Galerie internationale
d'art contemporain, Paris, France.
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a.3) Pintura e impressão corporal
Fig. 7. Paula Tura. Impressão de corpo, 2012. Guache sobre
tecido. Fotografia Will Aguiar. Acervo da artista
Utilizando-se de tinta guache na cor preta a autora cobre seu corpo com o auxílio de um
pincel. Retirando excesso de tinta escreve palavras em diferentes partes do corpo sendo:
- face: ódio
- tronco: liberdade
- perna esquerda: angústia
- perna direita: amor
Em seguida realiza a impressão de todo o corpo em um pedaço de lençol de algodão.
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Curiosamente os braços da autora não foram impressos uma vez que diferentemente dos
experimentos anteriores: a.1 e a.2, a autora não contou com auxílio para a impressão do seu corpo e
realizando a impressão sozinha precisou levar em consideração o tempo de secagem da tinta guache
o que exigiu rapidez no ato de espalhar a tinta sobre o corpo, na remoção da tinta com pincel para o
surgimento das palavras e realização da impressão.
Esta obra foi realizada na residência da autora na cidade de São Paulo.
“Ele não queria ver que as cores que espalhava pela tela eram tiradas das bochechas daquela
que estava sentada diante dele” (POE, apud JEUDY, 2002, p. 134). Neste conto Edgar Allan Poe cria
uma cena de onde as bochechas da modelo dão cor ao quadro do pintor. A correlação que se tece entre
este conto e a obra da fig. 7 diz respeito às letras que surgem quando se é retirado o excesso de tinta
passado sobre a pele da autora pois palavras surgem na pele. Ao observar a Impressão Corporal podese ter a sensação de que o corpo, através da pele, suou as cores e formas impressas no tecido. A cor
preta incita sensações escuras, densas, irascíveis e possibilita a imaginação de que em alguns pontos
como olhos, articulações das coxas com o tronco e letras que formam as palavras haviam quaisquer
impedimentos na pele que não permitiram que este suor saísse com fluidez e desta forma manteve
uma mancha branca ou borrada nestas regiões. Com relação às palavras escritas faz-se refletir que
estas poderiam já estar impressas na pele como escarificações (fig. 8, 9, 10) que quando tocadas
permitem que se registrem apenas seus relevos ou contornos devido seu alto relevo. Nas sociedades
primitivas, a prática de inscrição sobre o corpo, as escarificações e as pinturas são práticas que dão
significado cultural à tribo, que exprimem suas características, são práticas que prenunciam a
sociedade da escrita.. As palavras liberdade, angústia, amor e ódio estão impressas neste corpo de
forma a refletir a cultura de onde este está inserido, expressam assim as marcas de anos de
reivindicação por igualdade e diálogo pois a “escrita do corpo simboliza a passagem da natureza a
cultura, mas oferece também a prova do enraizamento da cultura na natureza” (JEUDY, 2002, p.92)
32
Fig. 8
Fig. 9
Fig. 10
Escarificação de tribo africana provocada por corte na pele seguida de cicatrização com a utilização
de planta venenosa para causar a queloide.
Outra ideia que esta Impressão Corporal pode remeter são dos exames de raios-x como se
pode observar:
Fig. 11. Raio-x
Através da visualização das chapas, sempre em branco, observa-se alguma lesão ou pinos
implantados em cirurgias reparadoras. No caso da fig.11 , as palavras que estão gravadas no corpo da
autora e aparecem impressas no tecido (fig. 7) estariam impressas dentro do corpo assim pode-se
33
imaginar que “o invólucro do corpo tem por função esconder essa mecânica que produz a putrefação”
(JEUDY, 2002, p.122) e que apenas de maneira tecnológica estas palavras podem ser vistas uma vez
que são alcançadas através do Raio- X. Interessante pensar que o Raio- X é utilizado na medicina
como uma tecnologia de diagnóstico, que pode mostrar o que esta por trás. Nesta obra, a autora tem a
intenção de explicitar o que sente, de mostrar, de deixar-se ver. Muitas vezes os pacientes com
prescrição para Raio-X não querem saber a leitura dos exames ou entrar em contato com seus
diagnósticos pois isto implicaria em tomar consciência, em saber-se vivo e esta tomada de consciência
indica na direção de uma ação e tomada de decisões. Acredita-se assim que entender o corpo como
matéria formada por peças de encaixe, palpáveis e manipuláveis é um meio de conhecer-se a si
mesmo, de facilitar a nomeação de sentimentos, de nomear as múltiplas identidades do humano, de
entender através da matéria o abstrato ser humano.
b) Moldes de partes do corpo
Fig. 12. Paula Tura. Seio, 2012. Molde em gesso. Fotografia Will
Aguiar. Acervo da artista
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Fig. 13. Paula Tura. Ventre, 2012. Molde em gesso. Fotografia Will
Aguiar. Acervo da artista
Fig. 14. Paula Tura. Mão e braço, 2012. Molde em gesso. Fotografia
Will Aguiar. Acervo da artista
Para a realização destas obras foram utilizados: gesso em pó e água.
Em datas distintas foram realizados os moldes das partes do corpo da autora: seio, ventre,
braço e mão. Foram experimentos solo onde a autora misturou o gesso à água até obter uma mistura
homogênea e em seguida distribuiu esta mistura sobre seu seio, sua barriga e seu braço – mão.
O gesso conta com um tempo de secagem identificado por mudança na
temperatura da
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mistura: ao ser preparada a mistura apresenta-se em temperatura ambiente e quando passa para o
processo de endurecimento vai aquecendo homogeneamente estando pronto para ser retirado do corpo
assim que esfriar.
Indica-se que durante a realização de moldes sobre a pele, que esta seja besuntada com
glicerina ou óleo. A autora não preparou sua pele e desta forma recebeu a mistura direto em seu
corpo, o que solicitou bastante cautela quando da retirada do gesso seco pois os pequenos pêlos que
cobrem a cútis grudaram no gesso endurecido.
“Uma parte do corpo tem sua beleza própria; ela pode fazer parte de um conjunto composto
ou existir soberanamente em seu isolamento” (JEUDY, 2002, p.98). Um corpo em partes é ao mesmo
tempo objeto de fascinação e de repúdio. Ao observar-se um pedaço do corpo imagina-se um corpo
morto, um corpo inteiro ou a imitação de uma parte do corpo? Para existir um corpo é preciso alma?
Quantas partes de um corpo é preciso para que se chame ao corpo de corpo? Uma parte do corpo tem
alma? O corpo tem alma? Os materialistas podem dizer que é o corpo e seu calor que mantem a alma
atada a si, assim, uma parte do corpo não é corpo, pois, é incapaz de manter-se viva por si só. É
preciso que as funções vitais do corpo estejam em pleno funcionamento para que a alma sinta-se
atraída pelo corpo e nele permaneça e exista. Assim, pode-se pensar que sem corpo a alma não existe,
pois, precisa da matéria para fazer-se viva.
Se pensarmos que a morte pode não ser apenas física mas também simbólica, pode-se
imaginar hoje um planeta Terra habitado quase que em sua maioria por mortos. Corpos mortos e
belos deambulando pelas grandes metrópoles embora externamente inteiros, estão internamente
fragmentados. Pode-se também imaginar, neste exercício do pensar, que a alma precisa de alimento
imaterial e este alimento pode ser encontrado no ambiente natural, por isto, aqueles que estão
afastados do contato com a natureza estariam mortos.
Seguindo a ideia da morte simbólica, o pedaço de um corpo pode remeter os pensamentos a
um corpo vivo pulsante e em pleno funcionamento, ao sentido da vida ou a um corpo morto
fisicamente e fragmentado como os corpos estudados nas escolas de medicina. Opta-se aqui por
imaginar que um pedaço de corpo pode nos remeter a ideia da vida. E que vida é esta? Uma vida
arqueológica: que remete ao passado, ao presente, ao futuro? Uma vida cultural: com uma razão de
ser e existir, aos contrapontos de uma sociedade espetacular onde o ideal sobrepõe-se ao real? A uma
vida superficial onde a alteração estética de uma parte do corpo é capaz de produzir mudanças
comportamentais e felicidade imediata?
São muitas as perguntas para poucas respostas o que incita a reflexão pois, “todos os
fenômenos corporais são superiores a nossa consciência, a vida do espirito e a essência da vida
orgânica” (JEUDY, 2002, p. 122) e “o corpo artista é aquele em que aquilo que ocorre ocasionalmente
como desestabilizador de todos os outros corpos vai perdurar” (GREINER, 2006, p.122). Desta forma
faz-se necessário observar as partes.
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Como ilustração aos Moldes de partes do corpo da autora, encontra-se a seguir uma obra do
artista britânico Marc Quinn que fez o molde de sua cabeça utilizando sangue do seu próprio corpo.
Para tal foi retirado cinco litros de seu sangue. A peça é mantida em refrigeração.
Interessante observar que o sangue aproxima a obra da reflexão morte – vida uma vez que sua
coloração é um vermelho pulsante. A cabeça do artista, diferentemente do braço-mão, seio e ventre
apresentados pela autora remete à memória das grandes batalhas greco-romanas onde o que
interessava era ter a cabeça do inimigo apresentada em bandeja de prata. Já um seio nos faz pensar, no
inconsciente coletivo feminino, sobre amamentação ou câncer de mama e o ventre as solicitações
estéticas da moda e a gestação; o braço-mão nos traz referência aos ladrões que nos países do oriente
médio tem estes membros cortados para não mais praticarem furtos. As partes do corpo exercitam
nossos pensamentos sobre culturas. “Se há cultura, é o corpo que o exprime. Tal seria o adágio atual
que outorga ao corpo o lugar de origem da transmissão cultural e de sua perspectivação em tempos
futuros” (JEUDY, 2002, p.76).
Fig.15. Marc Quinn. Self, 2006. Escultura em
sangue do próprio artista 80 3/4 x 25 5/8 x 25
5/8 in. National Portrait Gallery, London, UK
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c) Corpo de areia
Sua areia negra desperta curiosidade
Recebe um corpo que lhe empresta uma forma
Que lhe enfeita com flores perfumadas e pedras brilhantes
Um corpo que sente-se vivo quando sente sua textura
contra a pele
Quando sente o cheiro da maresia que te impregna
Quando te olha e se vê em você
(TURA, Paula, 2013)
Fig. 16. Paula Tura. Corpo de areia, 2013.
(processo de construção)
Fotografia Will Aguiar
Praia do Perez, Ubatuba , SP
Fig. 17. Paula Tura. Corpo de areia, 2013.
(processo de construção)
Fotografia Will Aguiar
Praia do Perez, Ubatuba, SP
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Fig. 18. Paula Tura. Corpo de Areia, 2013. Flores, pedras, cogumelos em areia. Fotografia
Will Aguiar. Praia do Perez, Ubatuba, SP. Acervo da artista
A construção deste trabalho foi realizada na praia do Perez que tem acesso através de uma
trilha que fica entre a praia da Lagoinha e a praia Dura, no litoral sul de Ubatuba. Esta praia foi
escolhida para este trabalho devido à coloração de sua areia que é composta de areia escura e areia
clara.
A artista, deitada de barriga para cima sobre a areia escura, contou com ajuda de um auxiliar
para ter seu corpo contornado . Foi utilizado areia clara sobre areia escura no contorno do corpo,
pedras transparentes que são comercializadas em lojas de jardinagem e decoração, foram colocadas no
contorno da cabeça, flores do tipo maria-sem-vergonha contornaram as mãos e os pés foram
contornados por cogumelos; as flores e os cogumelos foram colhidos in loco no momento da
realização da obra. A região de Ubatuba é bastante úmida, desta forma, cogumelos e plantas se
reproduzem com bastante facilidade.
Ousa-se aqui atribuir através da literatura de Clarice Lispector uma personalidade à areia que
recebe emprestada a forma de uma mulher:
A mulher não recebe transmissões nem transmite. Não precisa de
comunicação.
Depois caminha dentro da água de volta à praia, e as ondas empurram-na
suavemente ajudando-a a sair. Não está caminhando sobre as águas – ah
nunca faria isso depois que há milênios já haviam andado sobre as águas –
mas ninguém lhe tira isso: caminhar dentro das águas. Às vezes o mar lhe
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opõe resistência à sua saída puxando-a com força para trás, mas então a proa
da mulher avança um pouco mais dura e áspera.
E agora pisa na areia. Sabe que está brilhando de água, e sal e sol. Mesmo
que o esqueça, nunca poderá perder tudo isso. De algum modo obscuro seus
cabelos escorridos são de náufrago. Porque sabe – sabe que fez um perigo.
Um perigo tão antigo quanto o ser humano. (LISPECTOR, 1982, p. 85)
Ao sair do mar acomoda-se sobre a areia escura e permite que seu corpo seja adornado com
elementos naturais como flores, pedras, cogumelos. Seu quadril toma uma forma levemente
arredondada para que o ventre aconchegue a vida que carrega. Gradativamente solta o peso do corpo
no chão entregando-se à força da gravidade e assim mescla-se ao ambiente terrestre. Seu novo corpo
com pele de areia continua a brilhar água, sal e sol, e é através deste seu novo invólucro que sente-se
maresia, flor, folhas, água, areia, céu, terra, mar, pedra, concha.
A obra Corpo de Areia é um ritual de metamorfose onde uma mulher nasce a partir da forma
de si mesma. Como ritual, há uma função de transformação, de morte, de descoberta, de efemeridade
uma vez que não é possível que a obra permaneça intacta devido ao ambiente em que está sendo
construída. Este ritual é em si sutil e passível de interferências da ordem do natural.
O Corpo de Areia, depois de construído e contemplado foi apagado pela maré cheia. Os
únicos elementos recuperados pela autora foram as pedras transparentes. Assim, a mulher do conto
que saiu do mar retorna a ele, com a subida da maré, metamorfoseada após liberar-se de condutas e
conceitos morais arraigados que pertencem ao mundo dos humanos e que ela entra em contato quando
recebe um corpo material (de areia).
Ana Mendieta foi uma artista cubana que realizou a série chamada SiluetaWorks in Mexico
(fig.19). Para o desenvolvimento desta série a artista utiliza-se de diversos ambientes e elementos
naturais sempre referindo-se ao corpo. A autora inclui aqui o trabalho desta artista com a intenção de
agregar valor às suas obras desenvolvidas em Body Art pois “o corpo pintado, o corpo como suporte
da expressão artística parece, segundo as histórias da arte, ter como origem as maneiras pelas quais os
homens das sociedades primitivas utilizavam seu próprio corpo para nele escrever sinais” (JEUDY,
2002, p. 92). Há no trabalho da artista Ana Mendieta e da autora sinais explícitos de que o corpo é
suporte da alma e, portanto eterno principalmente quando representado com e por elementos
provenientes da natureza uma vez que esta, a natureza deve ser vista como corpo latente e pulsante e
não como adereço.
40
Fig. 19. Ana Mendieta. Silueta Works in Mexico, 1973-1977. Fotografia19 3/8 x 26 9/16 inches.
The Museum of Contemporary Art, L.A, USA
41
No trajeto desenvolvido pela autora dentro da Body Art percebe-se o esboço do “corpo que
irrompe, o corpo que descobre outros horizontes, o corpo-mundo (...) O desafio é, portanto, político”
(JEUDY, 2002, p. 139-140). E para que este desafio tome mais consistência segue-se com as obras de
Performance Art.
Poéticas Corporais em Performance Art
O artista deixou de ser aquele ser com habilidades
especiais e específicas. É agora um agente do mundo.
(Pereira, 2012, p. 555)
As Performances são veículos de comunicação que podem dramatizar conceitos sem que estes
precisem ser interpretados por interlocutores (mesmo que seja registrada em vídeo ou foto sem
qualquer plateia) uma vez que o artista utiliza seu corpo de forma cênica, exalando emoções,
sentimentos, questionamentos, posicionamentos. Não significa que isto não aconteça em outras
vertentes artísticas mas no caso da Performance não são necessários intermediários, o corpo do artista
fala por si só e pode ser lido pelo espectador diretamente. “A performance se colocaria no limite das
artes plásticas e das artes cênicas, sendo uma linguagem híbrida que guarda características da primeira
enquanto origem e da segundo enquanto finalidade” (COHEN, 2011, p.30).
A artista realizou Performances que propõem a desconstrução do corpo no ambiente natural
como se de alguma forma a realização de experimentos artísticos neste ambiente propusesse um novo
contexto ao corpo. O ambiente natural é composto por incertezas: mudanças climáticas, encontros
inesperados com animais, presença de sons desconhecidos; estas incertezas trazem à tona a
vulnerabilidade humana e a clara falta de controle do homem sobre a vida, fatos que ficam impressos
no corpo, este que é a expressão das emoções e sentimentos.
Experiências em Performance Art
a) Série Yoga: Saudação ao Sol
Na praia da Baleia, no litoral norte do estado de São Paulo por volta das 12:00hs num
domingo de muito sol e poucas nuvens, a autora realizou uma sequência de posturas de yoga chamada
Saudação ao Sol.
42
O critério para a escolha das fotos que compõem esta série foi através da projeção que a
sombra da postura produzia na areia. Escolheu-se desta forma a sombra que mais se aproximava da
postura realizada pelo corpo.
Fig. 20. Paula Tura. Série Yoga: Saudação ao sol, 2012.Fotografia Will Aguiar. Praia da Baleia,
São Sebastião, SP. Acervo da artista
Se bem se utiliza o corpo como matéria prima, não se reduz (o corpo) somente a
exploração de suas capacidades, pois trata-se de abordar outros aspectos, tanto
individuais como sociais, vinculados com o fato principal do artista transformado em
sua obra, ou melhor, do artista como sujeito e objeto indissolúvel de sua arte.
(GLUSBERG, 1986, p.35, tradução nossa)
A Série Yoga: Saudação ao Sol é o registro de uma sequência de “Ásanas, posturas corporais
com nome de animais ou coisas relacionadas à natureza (...) similares ao que conhecemos como
exercícios de alongamento” (ROJO, 2006, p. 54) provenientes da prática do Yoga que podemos
entender como sendo um estado especial da mente, um dos cinco dárshanas ou pontos de vista do
hinduísmo, a união com o Todo.
A intenção do registro desta sequência de movimentos é observar a sombra criada na areia à
medida que o corpo realiza o Ásana. Quando se fala em Yoga ou qualquer outra prática corporal
pensa-se na movimentação prodigiosa e performática que o corpo poderia realizar; e “por que a
43
necessidade constante de álibis para aquilo que nos dá prazer? Se o esporte dá prazer, essa é uma
razão suficiente para praticá-lo” (BERTHERAT, 2002, p.100). Assim, com a ideia de quebrar o
paradigma de ver o corpo em ação a autora passa a registrar a sombra dos movimentos do corpo
projetados na areia, tendo assim um não corpo e um não movimento quando comparados ao registro
do corpo que faz o movimento. Há assim dois corpos, dois eus, duas situações para uma mesma
personalidade. Um corpo eu-objeto-imóvel-pertencente ao além mundo mas que pode pelo
distanciamento observar o mundo e outro corpo sendo o corpo eu-movimento-matéria no mundo que
inspira, expira, sente, interage e é o mundo.
Podemos dizer que há na realização da Série Yoga: Saudação ao Sol, estes dois eu: um corpo e
uma sombra, um corpo ao qual podemos nos referir como sendo uma escultura viva, uma vez que um
dos princípios dos ásanas é a imobilidade, e um não corpo que é a sombra. Sobre o corpo imóvel
pode-se pensar num corpo estátua , objeto de cobiça, inveja e admiração. A sombra, factível de
mobilidade independente do movimento corporal uma vez que conta com fatores externos para sua
projeção, neste caso o sol, é não palpável, imaterial.
A prática do yoga é culturalmente marcada como sendo uma prática transcendental devido
seu caráter meditativo. Faz assim um convite para que as emoções densas sejam sutilizadas, que se
adentre ao mundo das emoções e sentimentos. Observa-se assim que para tal confrontamento interno
seja necessário entrar em contato com o invólucro que acomoda estas emoções e isto se dá
primeiramente através das posturas que colocam o praticante diretamente em contato com seu corpo e
os limites e habilidades que este dispõe. Na prática do yoga, o corpo é a morada da alma e como tal é
invólucro das emoções, assim, é o primeiro a ser desconstruído pois nenhum corpo é igual a outro e
não permite que padrões externos possam subjugá-lo. Ao observar as sombras projetadas na areia, o
corpo perde a exatidão de suas formas: estatura e largura, cor da pele, dos olhos, cabelos, idade, sexo
ficam não identificáveis; se coloca em suspensão as questões culturais e sociais referentes a este corpo
exatamente pela impossibilidade de identificar os detalhes que o compõem.
A natureza quer para nós a beleza da forma, não segundo as manias do momento, mas
de acordo com as leis dela. Não se cansa de criar miríades de seres humanos belos,
virtualmente perfeitos. E todos idênticos. Quero dizer idênticos quanto à essência de
suas estruturas. Por mais que os cinco dedos da mão sejam diferentes quanto à pele
branca ou preta, sob a pele as estruturas da mão são estritamente as mesmas.
Por mais que os pais se deformem os músculos, tenham ideias extravagantes quanto à
forma, acabam dando à luz seres novos, que vêm ao mundo sem sapatos pontudos,
sem espartilhos, de olhos bem abertos, boca sem vincos, crianças que são,
potencialmente, adultos perfeitos. As deformações hereditárias são bem menos
frequentes do que se pensa. Na realidade, os hábitos familiares, e sobretudo o
mimetismo, deformam o corpo bem mais do que o condicionamento da
hereditariedade”. (BERTHERAT, 2002, p.60)
44
Não estaria Liu Bolin3 (fig. 21) com esta sua foto parafraseando o trecho acima de Thérèse
Bertherat4 ?
Fig. 21. Liu Bolin. Hiding in the city no 94: in the woods, 2010.
Fotografia 63cm x 80cm.
A autora e o artista Liu Bolin se utilizaram de ambientes naturais para a realização de suas
obras. O ambiente natural propõe uma reflexão acerca do corpo. Na Série Yoga: Saudação ao Sol, há a
proposta de observar a sombra de movimentos corporais o que propõe um novo corpo, um corpo
composto por areia e portanto, passível de modelagem. Sabe-se que a performance foi realizada às
12:00hs e neste momento o sol estava a pino, se fosse realizada em qualquer outro horário as
projeções do corpo seriam completamente diferentes uma vez que o sol estaria em outra posição. Liu
Bolin mescla sua imagem a de uma árvore, é preciso olhar atento para identificar o artista. O ambiente
3
Liu Bolin – artista chinês conhecido por seu trabalho de camuflagem com o ambiente
4
Thérèse Bertherat – cinesioterapeuta francesa criadora do método Antiginástica
45
natural, em ambos os casos sugere amplitude, não restringe o corpo, pois não possui limites laterais ou
superiores, o corpo na Série Yoga: Saudação ao Sol pode movimentar-se livremente e a árvore de Liu
Bolin não tem impedimentos para crescer. O corpo que está no ambiente natural retoma sua origem
primitiva de contato com a natureza onde as regras não são estabelecidas a partir de pressupostos
sociais ou culturais, pois as mudanças climáticas não são ditadas pelos desejos humanos.
Voltando-se para a questão do movimento e da sombra, a autora apresenta uma performance do
norteamericano Vito Acconci (fig. 22) onde há também a projeção da sombra de seus movimentos na
parede. Com a ideia de enaltecer a questão da desconstrução do corpo inclui-se aqui as fotos desta
performance:
Fig. 22. Vito Acconci. Step piece, 1970. Performance
46
b) Série Encaixes, Raiz e Série Corpo-folha
As fotografias a seguir foram tiradas nas Ruínas da Lagoinha, localizadas na Praia da
Lagoinha em Ubatuba, SP originalmente chamada de Fazenda da Lagoinha. Local de fácil acesso,
recebe a visita de inúmeros turistas durante o verão. As Ruínas da Lagoinha já contaram com
apresentações teatrais e saraus – um deles organizado pela própria autora em agosto de 2011 para sua
monografia no curso de especialização em Ecologia, Arte e Sustentabilidade cursado no Instituto de
Artes da UNESP.
O ubatubense Washington Oliveira em seu livro Ubatuba – documentário (1977, p. 72) conta
que:
Capitão Romualdo, homem bastante abastado e empreendedor, que, além de
possuir vasta cultura de café e cana de açúcar, fazia funcionar seus engenhos,
com o que fabricava aguardente e açúcar mascavo, produtos que embarcava
para o estrangeiro.
Com o seu espírito progressista planejou exportar a aguardente devidamente
embalada, necessitando porém de vasilhame apropriado
Foi quando deu início à construção de uma fábrica de garrafas, nas
proximidades da praia, que não conseguiu concluir, e cujos pilares ainda
permanecem de pé, eretos, atestando o espírito progressista e empreendedor
dos antigos homens ubatubenses.
b.1) Série encaixes
Côncavo e convexo?
Árvore que gera?
Corpo pedra
Corpo árvore?
Poesia na forma
Pedra sobre pedra colada com óleo de baleia
Misturados a conchas trituradas
Formas que acolhem o ventre, a alma, a vida nova e nua
(TURA, Paula, 2013)
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Fig. 23. Paula Tura. Encaixe I, 2013. Fotografia Will Aguiar. Ruínas da Lagoinha,
Ubatuba-SP. Acervo da artista
Fig. 24. Paula Tura. Encaixe II, 2013. Fotografia Will Aguiar. Ruinas da Lagoinha,
Ubatuba-SP. Acervo da artista
48
Fig. 25. Paula Tura. Encaixe III, 2013. Fotografia Will Aguiar. Ruínas da Lagoinha,
Ubatuba-SP. Acervo da artista
A Série Encaixes é composta por três obras que retratam o corpo grávido da autora. As fotos
que compõem o Encaixe I e II (fig. 23 e 24) evidenciam o ventre gestante em encaixe côncavo e
convexo com a cavidade. Para a realização destas duas obras a autora colocou algumas pedras no solo
produzindo um degrau no qual subiu permitindo assim que seu ventre alcançasse a altura necessária
para moldar-se à cavidade. Também foi necessário segurar com as mãos na parede, acima da
cavidade, para manter o corpo estável e imóvel.
A realização do Encaixe III (fig. 25) exigiu que a autora permanecesse agachada e recostada
sobre o tronco de uma árvore permitindo moldar seu ventre à curva de uma das raízes presas ao muro
de pedras.
“A idealização da beleza corporal corresponde, na maioria das vezes, à representação do
corpo imóvel, à escultura, como se em repouso ele inspirasse uma apreensão estética mais poderosa
do que em movimento” (JEUDY, 2002, p. 58) Nestas obras a ideia original estava no moldar-se à
forma da natureza, pensava-se no preenchimento, no molde. As Ruínas da Lagoinha, com o passar do
tempo tornaram-se uma escultura a céu aberto; abandonadas ao acaso, embora tomadas como
patrimônio histórico, já foram outrora cuidadas com zelo mas hoje ficam disponíveis aos visitantes
sem que a grama seja aparada ou suas árvores podadas, desta forma, as ruínas são tomadas como
49
habitat para os animais silvestres e veem crescer aleatoriamente as ervas daninhas, as maria-semvergonha, as raízes e copas das árvores. Serviu assim de cenário perfeito para um corpo que também
se expandia sem qualquer controle, pois, a gestação lhe oferecia quadris largos, ventre arredondado,
pernas grossas e pés gordos o que lhe indicava que estava inserida nos ciclos naturais e que nada,
absolutamente nada poderia conter a expansão de sua nova forma e da vida que se fazia crescer dentro
de si. “Uma performance é um resgate da história no sentido de que ao deixar de lado o estereótipo
corporal, o número de possibilidades de ação pode acontecer das mais variadas formas, dentro da
nossa cultura e sociedade e fora dela” (GLUSBERG, 1986, p.73).
Moldar-se às pedras exigiu imobilidade, equilíbrio e atenção. A autora precisou manter-se
sobre algumas pedras para que seu ventre ficasse à altura da cavidade a qual pretendia preencher.
Foram muitas tentativas de registro até que a angulação ficasse adequada. Mãos tocavam levemente as
pedras geladas para manter o equilíbrio. Imóveis e estáveis as pedras permaneceram como se sempre
estivessem estado ali. Frias e um tanto arredondadas apresentavam musgos e serviam de habitat para
formigas e outros insetos. Ao olhar atentamente pode-se constatar verdadeiras comunidades de
minúsculos seres que passam imperceptíveis ao olhar desatento. Com relação ao Encaixe III (fig.25)
exigiu-se além de concentração, uma disposição física maior para se manter agachada permitindo que
o ventre e a raiz da árvore encontrassem em perfeita angulação.
Os artistas corporais utilizam seu próprio corpo como material para suas
performances, oferecendo obras que de alguma maneira referem-se à arte primitiva e
pré-histórica daquelas culturas em que o ornamento feito sobre o próprio corpo era,
em efeito, uma das primeiras manifestações artísticas. (GLUSBERG, 1986, p. 109,
tradução nossa)
A proposta de moldar-se à natureza surgiu com a intenção de metamorfosear o corpo
transformando-o no objeto com o qual este interage. Inúmeras são as referências culturais em
diferentes linguagens como literatura, música, vídeo que propõem uma conexão do homem com a
natureza, um retorno às origens. Seguem algumas observações sobre os objetos com os quais a autora
interagiu:
- sobre o elemento pedra: sessões espíritas de Umbanda, chamadas de Giras, evocam Xangô
para clamar justiça, pois este é o guardião das pedreiras, muitas vezes oferendas como comidas,
velas, cânticos são realizados nas pedreiras, consideradas a morada desta entidade, em solicitação a
um pedido de ajuda.
- sobre o elemento árvore: “Você já amou uma árvore?” pergunta a escritora Clarissa Pinkola
Estes (ESTES, 2007, p.30). Como seria ser uma árvore? Na prática de yoga há um ásana chamado
postura da árvore, ou vrikshasana. Na proposta do ambientalista Joseph Cornell, de Vivências com a
Natureza, há também uma proposta de jogo para transformar-se em árvore.
50
Outros exemplos poderiam ser dados, no entanto, a questão que se propõe é de que ao
encaixar-se na pedra em côncavo e convexo ou emoldurar o ventre na raiz de uma árvore, que o
corpo possa não apenas preencher estes espaços naturais fisicamente como possa o performer
preencher-se destas substâncias invisíveis que nutrem as pedras, as árvores, o solo, o vento. Que se
possa reverenciar o primitivo, incorporando sua essência na alma e se possível deixando sulcos na
pele para que a impressão do que se experienciou seja explícita. “Por baixo da terra, a árvore
venerável abriga ‘uma árvore oculta’, feita de raízes vitais constantemente nutridas por águas
invisíveis” (ESTES, 2007, p.29)
b.2) Raiz
Raiz que havia em mim sem nunca saber-se existir
Descobre-se brotando de cima abaixo
Confunde-se com musgos, insetos e fungos
Brota firme e lânguida como suas ancestrais
Deliciosamente macia e flexível
Pronta pra fixar-se no tempo
(TURA, Paula, 2013)
Fig. 26. Paula Tura. Raiz, 2013. Fotografia Will Aguiar. Ruínas da Lagoinha,
Ubatuba-SP. Acervo da artista.
51
A obra Raiz foi como a Série Encaixes (fig. 23, 24, 25) realizada nas Ruínas da Lagoinha.
Em continuidade à Série Encaixes, a obra Raiz aprofunda a proposta de moldar-se à natureza. Nesta
proposta, o encaixe do corpo exige que este mantenha a pele em total contato com o elemento natural,
neste caso, a raiz de uma árvore. Na Série Encaixes, o contato da artista com os elementos naturais
eram de apoio para seu equilíbrio pois não havia possibilidades de se encaixar fisicamente à pedra ou
à raiz que envolvia o ventre. Foi necessário manter um distanciamento técnico para que o encaixe do
ventre com a pedra e com a raiz da árvore pudesse acontecer. Por outro lado, a intenção original de
preencher o espaço fisicamente e sair do cenário preenchido com os elementos invisíveis que
constituem o natural se estendem da Série Encaixes para a obra Raiz.
Na obra Raiz, a artista está nua com o corpo colado ao tronco da árvore como que abraçada à
árvore. Sente a textura macia do musgo, a rugosidade da casca da árvore com seus relevos e
abcessos, obstrui o caminho das formigas no transporte de seus alimentos. Tem o olfato inebriado pelo
cheiro da terra úmida, pois estava fechada num cerco de raízes que não permitem o alcance dos raios
solares.
E que árvores! Aquele lugar era mesmo especial. Olhando assim, à primeira vista,
elas pareciam apenas lindas árvores cheias de fruta; mas chegando bem pertinho,
descobria-se que elas eram mulheres- árvores.
Na verdade, aquelas árvores-mães eram mães de verdade. Pelo menos foram, até o dia
em que a aldeia onde elas moravam com seus filhos foi invadida por uma outra tribo
inimiga que, como castigo, matou o marido delas e levou as crianças. E elas ficaram
tão, mas tão tristes por perder os filhos, que resolveram ficar para sempre ali, à espera
deles. Plantadas como árvores, aguardando de braços abertos a volta das crianças.
(FRANCO; CATUNDA 2004, p.91)
O processo de desenvolvimento desta performance solicitou que a performer mantivesse-se
atenta a toda extensão de sua pele, aos cheiros exalados pelo ambiente, aos zumbidos dos insetos.
Sentiu a firmeza e a flexibilidade desta raiz com a qual se abraçava, confidenciou segredos e foi
ouvida, teve a pele acariciada pela leve rugosidade da raiz e o corpo utilizado como ponte para insetos
que a confundiam com uma estátua. Não sabe relatar se ouviu confidências das raízes por não ter o
ouvido treinado para tal ou se porque as raízes como transportadoras de nutrientes são mais
reservadas. Sabe apenas dizer que as árvores pertencem a uma antiga comunidade de mulheres que
protege os segredos mais antigos da humanidade.
A obra Raiz, mais do que um molde à natureza, propicia que sensações táteis, olfativas,
auditivas e visuais aconteçam de forma bastante real, ou seja, estar num ambiente onde há pouco
alcance de luz solar é estar num local úmido, com odores característicos de folhas em decomposição;
estando toda a pele em contato com um objeto firme e flexível onde habitam milhares de seres
52
minúsculos é colocar a sua pele também à disposição destes mínimos seres; os ouvidos são
presenteados com a identificação de inúmeros sons devido ao silêncio do ambiente; e para que todas
estas sensações sejam percebidas, os olhos devem manter-se fechados, pois apenas assim o corpo
encontra seu eixo e os demais sentidos tornam-se passíveis de tomar consciência do que está
acontecendo.
A busca do desenvolvimento pessoal é um dos princípios centrais da arte de
performance e da live art. Não se encara a atuação como uma profissão, mas como
um palco de experiência ou de tomada de consciência para utilização na vida. Nele
não vai existir uma separação rígida entre arte e vida. (COHEN, 2011, p.104)
A performance da obra Raiz solicita introspecção, complacência, contemplação e entrega.
Entrega esta que se relaciona à devolução do corpo ao seu local de origem e pertencimento: o
ambiente natural.
b.3) Série Corpo-folha
Corpo folha voa leve com o vento
Espalha-se pela mata e deixa-se levar
Em sua dança aérea encanta-nos seu ressoar
(TURA, Paula, 2013)
53
Fig. 27. Paula Tura. Corpo folha I, 2012.
Fotografia Will Aguiar. Ruínas da Lagoinha,
Ubatuba-SP.Acervo da artista
Fig. 28. Paula Tura. Corpo folha II, 2012.
Fotografia Will Aguiar. Ruínas da Lagoinha,
Ubatuba-SP. Acervo da artista
54
A série Corpo-folha (fig. 27 e 28) foi a primeira série realizada pela artista nas Ruínas da
Lagoinha seguida das Série Encaixes e da obra Raiz.
A artista, estando no início da gestação, realizou um ensaio fotográfico em meio às árvores.
Subiu em uma das árvores na qual sentou- se e recebeu em seu tronco a projeção da sombra das folhas
da árvore pois “dentre as árvores sobe uma luz grande e pura”. (LISPECTOR, 1997, p.27). Pode-se
imaginar que esta luz grande e pura refletindo através das folhas é a luz do sol, que é a luz da vida.
Luz que reflete no tronco da autora que na condição de gestante a recebe duplamente.
“A árvore pode simbolizar também o próprio cosmo, cujos três níveis ela percorre: o
subterrâneo com suas raízes, o terrestre com seu tronco e seus galhos mais baixos, o celeste com seus
galhos mais altos” (CHEVALIER, 1990, p. 84). A obra Raiz atinge o nível subterrâneo através da
relação entre corpo e a raiz da árvore. A proposta de Corpo-folha abrange o nível terrestre quando o
corpo se acomoda nos galhos baixos da árvore e o celeste quando o corpo é iluminado pela “luz
grande e pura” descrita por Clarice Lispector (1997, p.27).
O foco maior desta performance está na pele da artista, pois esta recebe a projeção da sombra
dos galhos da árvore. “A pele retira do corpo seu status de objeto, no momento em que ela não é mais
percebida como o invólucro das formas. Tal qual uma superfície com seus próprios relevos, ela
transforma o corpo-objeto em corpo-texto” (JEUDY, 2002, p. 84). O corpo passa assim a ser a árvore
uma vez que tatua em seu corpo a representação das folhas da árvore. Em termos psicanalíticos, para
que exista a sombra faz-se necessário a presença da luz. Pode-se imaginar que a sombra é o
inconsciente, a luz a consciência e o corpo é o suporte de ambos. Assim, não há mais distinção entre
corpo e folha, entre corpo e árvore.
Sabe-se que o ideal para a realização das fotos era que o corpo estivesse nu, no entanto,
foi impossível devido a presença de muitos turistas. A artista não tem qualquer impedimento com
relação ao nu, por outro lado, apenas não se sentiu disposta a se deparar com julgamentos morais ou a
justificar seu trabalho frente aos frequentadores do local. Preferiu desta forma, manter-se vestida. A
autora optou por não refazer este trabalho em local que propiciasse o nudismo pois quis manter a
imagem de quando estava gestante.
Poéticas Corporais em Arte Povera
“Eu, indivíduo considerado num nível extrassensorial,
posso refletir-me em qualquer matéria deste mundo. Mais:
a capacidade criativa do homem (um desejo antropológico)
está na transformação da matéria...como produção...a arte é
a relação do deteriorável com a renovação”. (RIZOLLI,
2005, p.146)
55
Fig. 29. Franz Krajcberg. Escultura em madeira
Antes de abordarmos as obras desenvolvidas sob o conceito de Arte Povera falaremos um
pouco sobre o Ecletismo com o intuito de aprofundar ainda mais as obras aqui apresentadas.
O Ecletismo é uma postura na arte que manifesta a livre escolha e combinação de estilos que
não os do próprio artista. Acredita-se que o Ecletismo tenha razões politicas e econômicas mas que
não implica em uma necessidade histórica pois se percebe que o estilo de alguns poucos artistas foi
modificado sendo estas modificações realizadas por um curto período ou relacionado a algumas obras
apenas.
Os artistas que se utilizaram deste processo como Picasso (1881-1973), Gauguin (1848-1903),
Van Gogh (1853-1890), procuravam uma nova linguagem de forma para satisfazer novos anseios e
aspirações em direção a um equilíbrio entre sentimento interior e mundo da experiência exterior, pois,
“o “caminho” todo em qualquer vontade de forma propositada e em direção a um equilíbrio entre o
sentimento interior e mundo da experiência exterior, e a obra de arte funciona como a realização deste
equilíbrio” (READ, 2003, p.48).
Para a composição dos trabalhos aqui apresentados pela autora foram utilizados materiais
simples como vidro, tecido, areia e tinta. Há uma preocupação latente da autora com relação aos
recursos naturais utilizados pelo homem. Esta preocupação projeta-se na escolha dos materiais para a
produção das obras. Um tronco é um belo tronco porque é árvore, é madeira, vira papel e nos permite
56
registrar nele pensamentos, projetos, histórias. Cada elemento da natureza está diretamente conectado
à sustentação da vida do homem na Terra. “Nós comungamos com a natureza diretamente pelo toque,
olfato, paladar, visão e som” (CORNELL, 2005, p.21).
Sendo assim faz-se necessário observar a materialidade escolhida para a composição da obra
de arte. Esta materialidade revela concepções, pensamentos, propostas. A materialidade desperta
emoções. “Sendo o barro um material que faz parte do dia-a-dia da vida do homem, assim como a
natureza, é um material que costuma mobilizar emoções profundas, primitivas e arcaicas” (CHIESA,
2004, p.54).
Para ter uma melhor compreensão da dimensão da Arte Povera a autora viajou até a cidade
de Nova Viçosa, localizada ao sul do estado da Bahia, onde fica o ateliê do artista Franz Krajcberg
(fig. 29 e 30) polonês naturalizado brasileiro . Grávida de três meses a pesquisadora percorreu o
trajeto de ônibus até Vitória e de Vitória até Nova Viçosa percorrendo o mesmo caminho na volta.
Durante o trajeto conheceu inúmeras pessoas e constatou que nenhuma delas sequer havia ouvido
falar de Franz Krajcberg ou conhecia sua obra. A não ser quando chegou a Nova Viçosa onde era
recorrente o nome do artista.
Fig. 30. Franz Krajcberg. Sem título. Madeira
O Sítio Natura como é chamado o ateliê e residência do artista tem frente para a rodovia e
para o mar e é um terreno que foi reflorestado por Franz. O artista que também é ambientalista e
entende a arte como proteção à natureza já denunciou queimadas no estado do Paraná, a exploração de
57
minérios no estado de Minas Gerais, o desmatamento da Amazônia brasileira e defendeu as tartarugas
marinhas que buscam o litoral do município de Nova Viçosa para desova.
Franz Krajberg conta com uma equipe de artesãos que o auxilia em suas produções e uma
equipe de policiais que fazem a sua guarda pessoal e a guarda do Sítio Natura vinte e quatro horas por
dia, sete dias por semana o protegendo de ameaças de morte devido à suas ações em defesa da
natureza. Isto não impede que o Sítio seja sempre visitado por escolas e turistas desde que agendados
previamente.
O Sítio Natura é composto por grande área verde, uma casa na árvore onde mora o artista,
fósseis de baleia, jardins, ateliê e dois grandes espaços circulares onde as obras ficam armazenadas;
muitas destas obras já expostas em diversos museus nacionais e internacionais. Nestes dois grandes
espaços circulares a disposição das obras não nos remete ao glamour produzido pelos curadores
quando montam as exposições em museus ou galerias. No local de armazenamento das obras é
preciso treinar o olhar para enxergar a beleza das peças produzidas uma vez que são provenientes de
material não nobre como galhos, troncos e pigmentos naturais e assim não possuem o reconhecimento
e valorização cultural como os produtos industrializados e consumidos nos grandes centros
comerciais.
Observar as peças ali armazenadas sem qualquer organização estética levou a autora a alguns
questionamentos como:
- O trabalho armazenado no ateliê versus a exposição destes trabalhos: a autora reflete sobre
o olhar do visitante do ateliê; entende que ao visitar a armazenagem das obras no ateliê se faz
necessário o uso de um intermediador, seja uma pessoa, textos explicativos ou estudo prévio sobre o
autor e sua obra, pois apenas um visitante com olhar apurado e ou interessado tem possibilidades de
enxergar que pedaços de madeira trabalhados e pintados, sejam eles grandes ou pequenos, podem ser
reconhecidos como obras de arte mesmo quando não estão dignificados pela chancela dos museus e
galerias que são preestabelecidos socialmente como os locais onde se encontram obras de arte.
Interessa mostrar o que não é visto, ou o que se olha mas não se vê,
O encontro intersubjetivo por meio do olhar deve manifestar-se na interação entre a
força do olhar enquanto vontade, intenção de conhecer e a força reveladora projetada
pela imagem, cuja mensagem deve ser coerente, transparente, para que, fiel a sua
veracidade, consagre novas aprendizagens, novas fontes de conhecimento, novas
interações e a possibilidade de ações, enfim, de transformação. (TURA, 2003, p. 17)
58
Leva-se em consideração para esta afirmação que a madeira utilizada pelo artista Franz
Krajcberg é resíduo de queimadas, portanto objeto não nobre. Faz-se necessário que o visitante saiba
da proposta militante do autor além das técnicas utilizadas previamente para poder entender as etapas
do trabalho como a escolha da peça, lapidação da madeira, queima, origem do pigmento utilizado, o
porquê da escolha da cor e da forma.
- O papel do curador em uma exposição: a autora enaltece esta questão uma vez que a obra de
arte no caso do artista Krajcberg apresenta um viés politico. Muitas de suas obras estão expostas pelo
mundo e em locais abertos. O papel do curador tem extrema importância no entendimento do contexto
em que a obra foi criada para que possa montar uma exposição seja ela em local dignificado, o que
poderia ser até mais fácil, pois culturalmente entende-se que o que é apresentado nestes locais seja
obra de arte mesmo que distante de ser compreendida pela grande maioria das pessoas, no entanto, a
forma como se monta a exposição auxilia na sensibilização de quem a visita. Quando se pensa em
curadoria de obras em locais abertos há uma preocupação maior uma vez que não há seleção de
público como acontece nas galerias e museus, pois as obras em locais abertos estão ali para serem
contempladas por todos e isto é extremamente interessante, pois abrange públicos que podem nunca
ter tido contato com galerias e museus e mesmo assim serem sensibilizados pela obra exposta.
- O espaço fechado como museu, galeria, centro cultura e similares versus a arte para ser vista
e vista por quem: interessante falar sobre espaços expositivos por serem estes locais tão apaixonantes
e ao mesmo tempo tão segregados. São locais que tem o poder de abraçar exposições extremamente
relevantes no que diz respeito à criticidade, que deveriam prezar pelo incentivo e critica a arte,
história e conhecimentos gerais. Por outro lado, são utilizados como locais de expressão da arte com
interesses econômicos uma vez que curadorias estão cada vez mais voltadas para a promoção de
determinados artistas ou do acervo de corporações do que interessados em promover a exposição de
diferentes linguagens artistas que possam levar a discussão de comportamentos sociais, econômicos e
políticos preestabelecidos, afinal, “a imagem, a representação que é a arte, leva o sujeito ao infinito”
(TIBURI, 2004, p.117)
- O olhar do artista que se utiliza do ambiente natural versus o que é visto e compreendido
pelo visitante de em relação à natureza: este tópico pode nos levar a inúmeros pontos, no entanto, a
questão principal é sobre o quão distante os visitantes podem estar da experiência do que é estar
imerso na natureza. Entende-se aqui natureza como ciclos que podem ser as quatro estações do ano, a
gestação, os períodos do dia: manhã, tarde e noite, o respeito ao sono, o comer quando se está com
fome. Não se fala aqui de uma experiência direta com a natureza apenas, pois isto ficaria muito vago
e seria uma experiência que o homem enquanto espécie está absolutamente distante pois não mais
habita cavernas e pode até mesmo estabelecer previsões do tempo. Por outro lado, temos uma
experiência secundária com a natureza e podemos realizar aqui um exercício reflexivo ao
imaginarmos um grupo de pessoas numa praia, o que vemos são pessoas com seus guarda-sóis, suas
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cadeiras de praia, suas bebidas e alguns petiscos. Geralmente os adultos colocam-se sentados em
rodas de conversas enquanto as crianças por sua vez terão baldinhos e outros instrumentos para
brincarem com a areia e justamente por esta ludicidade, as crianças apresentam uma interação maior
com o ambiente natural. No entanto, mesmo os grupos que visitam o litoral com seus comportamentos
sociais da cidade quando em contato com a praia podem sentir com mais nitidez os ciclos ao qual nos
referimos anteriormente pois podem perceber o pôr do sol sem que prédios estejam a sua frente ou
sem que se esteja fechado num transporte público ou preso no trânsito. Pode-se até mesmo contemplar
o pôr do sol se assim se desejar. Pode-se tomar um banho de cachoeira e caminhar por uma trilha,
pode-se relaxar ao som das ondas ou boiar nas águas do mar e desta forma mesmo que
inconscientemente deixar o corpo lembrar-se dos tempos em que se nadava no útero materno. A
questão que se coloca sobre a visita a uma exposição com elementos da natureza é sobre o quanto se
consegue enaltecer através da dignificação e das obras expostas que somos todos parte de um mesmo
ambiente e portanto co-dependentes.
Os objetos contemplados pela pesquisadora nos ateliês visitados eram em suma resíduos de
queimadas transformados em belíssimas esculturas por Krajcberg. Esta contemplação e os
questionamentos aqui colocados encontram apoio em alguns dos tópicos escritos pelo artista Robert
Smithson (1996, p. 377, tradução nossa) a serem discutidos em uma visita sua ao Museu de Boston:
- descentralização de exibições em museus – obras não confinadas em galerias ou parques
- obras em desenvolvimento e não apenas trabalhos finalizados
- arte e ecologia vistos em termos sociais e não apenas como questões estéticas
- mudança na forma de ver a natureza. Natureza como dialética física e não apenas uma representação
condicional
Obviamente que encontrar pensamentos similares em outros artistas é um conforto e ao
mesmo tempo alvo de inquietação, pois se percebe que há uma luta de décadas para que a arte seja
aproximada das pessoas comuns, que não esteja segregada a pequenos grupos, que seja acessível, que
comunique, que sensibilize. Especialmente em se falando de arte que se utiliza de elementos
provenientes da natureza há ainda um caminho longo a ser percorrido uma vez que estes elementos
como as árvores são cada vez mais eliminadas para a criação de grandes pastagens ou ainda para a
construção de edificações. Questões iminentes ao desmatamento estão cada vez mais gritantes, no
entanto, à medida que cresce a inquietação cresce também o número de ouvidos surdos a estes gritos.
Talvez por isto, a arte visual seja um grande empoderador para a transformação da realidade, pois
quem apresenta ouvidos surdos geralmente tem os olhos bem abertos.
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Experiências em Arte Povera
a) Tronco Sangrando
Fig. 31. Paula Tura. Tronco sangrando, 2012. Guache sobre madeira. Fotografia
Will Aguiar. Acervo da artista.
Tronco Sangrando (fig. 31) é o nome dado a um tronco de árvore encontrado na praia de São
Pedro, no Guarujá – litoral sul do estado de São Paulo, que recebeu guache vermelho em suas
ranhuras.
A praia de São Pedro, conhecida por suas ondas e acesso restrito é considerada uma praia
particular muito procurada pelos turistas do litoral sul exatamente por permitir a entrada controlada de
pessoas. Sabe-se que pela legislação este tipo de restrição não pode existir, pois todas as praias devem
ter acesso público. São Pedro permite a entrada de visitantes, no entanto, restrito: a guarita tem hora
para abrir e fechar, ou seja, antes e depois do horário indicado pelo condomínio, apenas moradores ou
pessoas autorizadas por estes tem acesso ao local. No caminho para a praia encontram-se inúmeras
edificações de luxo. Há transporte interno gratuito para os moradores, pois não há vagas de
estacionamento próximo a praia para todos os frequentadores, por isto, há um numero exato de carros
que podem adentrar aquele local; sendo as vagas todas preenchidas faz-se necessário aguardar que um
carro saia para que outro entre.
Há também um único restaurante nesta praia. Curiosamente este restaurante não retorna troco,
ou seja, o consumidor deve gastar todo o dinheiro passado para o caixa caso não tenha dinheiro exato
para pagar o seu consumo.
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Interessante encontrar um tronco na areia nesta praia pois devido ao seu acesso restrito é
absolutamente limpo tanto com relação a água quanto com relação a areia.
Ao caminhar pela praia de São Pedro a autora encontrou um tronco e viu-o chorar o pesar do
controle, do privilégio, do belo apenas para quem pode pagar.
b) Mulher deitada
Fig. 32. Paula Tura. Mulher deitada,
2012. Retalhos de tecido,areia,vidro,
guache, 165 x 60 cm. Fotografia
Will Aguiar. Acervo da artista
Na obra Mulher deitada (fig. 32), o corpo da autora foi contornado (contando com auxílio de
seu marido) a lápis sobre tecido de tela. No contorno do corpo passou-se cola branca e por cima desta
colocou-se areia de praia. Em seguida foram colados retalhos de tecido em forma de círculo da cintura
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para baixo. A cabeça foi contornada com cacos de vidro que a autora coletou de seu carro após um
assalto onde foi quebrado o vidro do banco do passageiro. Com tinta guache preta a autora pintou o
tecido na área sem os retalhos que vai da cabeça até a cintura.
b.1) Mulher deitada na areia
Uma mulher deitada aparentemente é uma mulher passiva
Uma mulher que gera deitada seria uma mulher
duplamente passiva?
E a vida que brota de suas entranhas e vive de sua vida?
Esta mulher deitada tem pensamentos brilhantes em cor e
profundidade
Faz brotar flores raras
Desperta sensações
Motiva existências
É preciso ter cuidado com mulheres que se deitam
voluntariamente
Pois elas são as únicas que sabem como girar a
engrenagem que move o mundo
(TURA, Paula, 2013)
Fig. 33. Paula Tura. Mulher deitada na areia, 2013 .Areia, tecido
e sais de banhoFotografia Paula Tura. Praia do Perez, Ubatuba-SP.
Acervo da artista
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Criando uma releitura da obra Mulher deitada a autora realiza o experimento Mulher deitada
na arei (fig. 33). Desta vez o contorno do corpo da artista foi realizado pela própria autora sobre areia
escura, na mesma Praia do Perez, em Ubatuba-SP onde foi realizada a obra Corpo de areia (fig.16, 17,
18). No contorno do corpo foi colocado areia clara obtida na própria praia. Ampliou-se a área onde se
concentram os retalhos de tecido que desta vez abrangem todo o corpo. Os retalhos foram colocados
um a um sobre a areia sem qualquer fixação. Na cabeça foram utilizados sais de banho na cor azul
diferentemente do primeiro trabalho onde foram utilizados cacos de vidro de carro.
A ideia de refazer a experiência da Mulher deitada em um local aberto deu-se por conta da
possibilidade de pensar a mulher e seu corpo num espaço amplo, considerando que apenas um local
amplo é capaz de abarcar a magnitude da alma feminina. Leva-se ainda em consideração que o corpo
contornado na Mulher deitada não mais existe como ocorreu também na obra de Pintura e Impressão
Corporal na cor vermelho (fig. 4 e 5), pois o corpo contornado na Mulher deitada (fig. 32) não era um
corpo grávido como o da Mulher deitada na areia (fig.33). Interessante é pensar que este corpo não
grávido, modificou-se para o corpo gestante e depois de parido volta a ser um corpo não grávido mas
nunca mais será um corpo virgem de gravidez, portanto, não poderá também ser comparado a figura
da Mulher deitada.
Devido à realização da experiência Mulher deitada na areia dar-se em espaço aberto nota-se,
em comparação com a obra Mulher deitada, as diferenças que enaltecem a ideia de se realizar a
releitura da obra num espaço que possa abarcar a alma e o corpo da mulher:
Mulher deitada
Mulher deitada na areia
Realizado no apartamento da autora em são Paulo
Realizada na Praia do Perez, litoral norte de São Paulo
Contorno do corpo realizado em tela para pintura
Contorno do corpo realizado na areia
Contorno do corpo coberto com areia de praia
Contorno do corpo coberto com areia de praia mais
claro do que a areia escura da Praia do Perez
Cacos de vidro preenchem a cabeça
Sais de banho preenchem a cabeça
Retalhos de tecido contornam o corpo deitado da Retalhos de tecido contornam todo o corpo contornado
cintura para baixo
Auxilio para a realização do contorno do corpo
Contorno do corpo realizado pela própria autora
Obra passível de transporte e exposição
Obra com tempo de duração determinado
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Observa-se desta forma que ambas as obras possuem características comuns como: o uso de
retalhos, o uso de areia e o contorno do corpo da autora; possuem características próprias como:
Mulher deitada : espaço restrito de registro (tela de 1,65cm por 60 cm), cacos de vidro na
cabeça que podem representar um cérebro afiado e reluzente, tinta cobrindo o espaço onde não há
retalhos, retalhos em metade do corpo podendo indicar uma mulher com um corpo em processo de
metamorfose.
Mulher deitada na areia: espaço irrestrito, sais de banho na cabeça que podem representar
pensamentos mais flexíveis? Retalhos ao redor de todo o corpo que podem trazer a ideia de um corpo
macio e grande
Desta forma, a obra Mulher deitada na areia pode representar uma possibilidade de
metamorfose da Mulher deitada? A Mulher deitada na areia é a mulher do campo, a mulher ampla, a
mulher fundida com o ambiente natural enquanto que a Mulher deitada é a mulher que carrega em si a
cultura (sua parte escura, o cérebro de caco de vidro) e o meio ambiente (a parte com retalhos, o corpo
contornado com areia) ainda não fundidos.
Para a “Mulher deitada” e a “Mulher deitada na areia” presta-se a seguir algumas
homenagens, sendo a primeira tirada da literatura de escritora Clarice Lispector, seguidas das obras
dos artistas Leda Catunda (fig.34) e Gustav Klimt (fig. 35):
Lembrou-se de que uma vez, de férias numa fazenda, deitara-se de bruços numa
clareira do matagal, encostando o peito na terra, os membros na terra, só o rosto
virado para o chão era protegido por um dos braços dobrados (...) despertou um
pouco para uma realidade mais objetiva em torno de si, mudou de posição a cabeça
sobre o braço dobrado (...) cansada, exausta, murmurou sem timbre de voz: não
entendo nada. Era uma verdade tão indubitável que tanto seu corpo como sua alma
vergaram-se ligeiramente e assim ela repousou um pouco. Naquele instante era
apenas uma das mulheres do mundo, e não um eu, e integrava-se como para uma
marcha eterna e sem objetivo de homens e mulheres em peregrinação para o Nada. O
que era um Nada era exatamente o Tudo.
Havia desmistificado uma das poucas grandezas de que vivia (...). Pensou: eu nunca
tive a minha dor. (...) Angústia também era o medo de sentir enfim a dor (...).
(...) Levantou-se e tornou a bordar. (LISPECTOR, 1982, p. 66-70)
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Fig. 34. Leda Catunda. Paisagem com onça, 2009. Acrílica sobre
tela e tecido, 280 x 380 cm.
Fig.35. Gustav Klimt. Hope II, 1907-08. Óleo, ouro e platina
sobre tela, 110.5 x 110.5cm. Museum of Modern Art, NY, USA
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Clarice Lispector ao bordar (e porque não pensar que borda uma das mulheres deitadas?)
devaneia sobre a mulher que é, que pode ser, que se angustia, que nada entende. Bem como faz a
autora ao retratar suas mulheres que se transformam ao mudar de espaço ou que foram mudadas pelo
espaço em que estavam. Clarice propõe ser um corpo e uma alma, uma das mulheres do mundo. E
quantas não existem, não é? Cada uma com suas dores, suas angustias, seus retalhos a serem
costurados, seus cérebros ora afiados ora amaciados. Importante é poder bordar para devanear.
Leda Catunda (1961-) também costura, junta pedaços de tecido em suas obras. É uma artista
contemporânea que não serviu de inspiração para as obras da autora mas acalenta as mulheres que a
autora criou com a sua obra Paisagem com Onça (fig. 34) pois apresenta um elemento da natureza de
grande porte e feroz de forma macia e acessível como se dissesse que todos nós temos o direito e o
dever de sermos vorazes, ferozes e íntimos conhecedores do ambiente natural como são as onças.
Gustav Klimt (1862-1918) é pintor do movimento Art Nouveau, século XIX, inspirado nas
formas da natureza como flores, plantas, animais, linhas curvas; este movimento surge em reação à
Arte Acadêmica, ao sentimentalismo e expressões líricas dos românticos e procura adaptar-se às
mudanças sociais e ao ritmo acelerado da vida moderna. A Art Nouveau subverte os princípios da
produção em série que tende aos materiais industrializáveis e o acabamento menos sofisticados.
A inserção de sua pintura Hope II (fig. 35) neste parágrafo que abrange a Arte Povera se deu
primeiramente por ser o retrato de uma mulher e em segundo lugar por sua pintura a óleo
proporcionar para a autora a lembrança da textura e maleabilidade do tecido que a mesma utilizou
para compor a Mulher deitada e a Mulher deitada na areia (fig. 32, 33).
a obra de arte transcende o espaço mecânico que, nela, as noções de causa e efeito
perdem qualquer validez, e as noções de tempo, espaço, forma, cor estão de tal modo
integradas – pelo fato mesmo de que não preexistiam, como noções, à obra
(GULLAR, 1985, p.286)
Para a Mulher deitada e a Mulher deitada na areia ficam aqui o acalento de Clarice Lispector,
Leda Catunda, Gustav Klimt unindo-se agora Gullar que traz a integração das formas, do espaço, do
tempo, das cores. Que as mulheres aqui retratadas possam abraçar imaterialmente todas as mulheres
do mundo e que este abraço desperte a lembrança da conexão que há entre a mulher e o ambiente
natural.
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c)Árvores da areia
Você esta criando árvores na areia? - perguntou um menino que
passava
Sim, acho que é isto o que estou fazendo.
Ah! - ele respondeu
(Diálogo entre a criança e a autora)
Fig. 36. Paula Tura. Árvores da areia, 2013. Sementes, galhos
de árvore, tecido. Fotografia Paula Tura. Praia do Perez,
Ubatuba, SP. Acervo da artista
Há em grande parte do litoral um movimento ecológico em prol da preservação do jundu que
está em extinção devido a grande especulação imobiliária. O jundu é uma vegetação rasteira formada
por gramíneas e arbustos com raízes profundas encontradas nas praias e que preservam a
biodiversidade da zona costeira.
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Nas regiões litorâneas mais preservadas como Ubatuba, é muito comum encontrar o jundu e
árvores de grande porte. Devido às grandes tempestades e vendavais é com bastante frequência que se
encontram galhos de árvores quebrados em tamanhos e espessuras variadas. O acúmulo é tanto que
muitas vezes fica-se na dúvida se os galhos não estariam brotando da areia.
Tendo este cenário como pano de fundo, a autora concebeu a obra Árvores da areia.
Era um dia de céu não muito limpo. Algumas pessoas passavam pela trilha que saia da Praia
da Lagoinha em direção a praia da Fortaleza. Sentada num canto, a autora encapava com fitas e fios
alguns galhos de árvore e pedras coletados ali mesmo na Praia do Perez, em Ubatuba.
O mar estava calmo e propiciava a permanência de crianças no local. Um dos meninos parou
e perguntou se a autora estava criando árvores de areia. Por alguns segundos não houve resposta. Seria
isto mesmo o que estava sendo construído? Não seria apenas um processo de encapar galhos e pedras?
O que aquelas pedras e galhos eram capazes de criar no imaginário de quem observava? A resposta foi
positiva: sim, era isto o que estava sendo feito, estavam sendo criadas árvores de areia e por que não?
A partir do momento que eram encapadas deixavam de serem árvores como as já conhecidas e
poderiam ser qualquer outras árvores, inclusive árvores de areia. E contente ficou o menino que
respondeu com um Ah! como quem quer dizer, bem que eu sabia.
Para elucidar um pouco mais a resposta do garoto ousa-se aqui uma interpretação do Ah!:
- Velho, que nome dais a Deus? – inquiriu o padre.
- Ele não tem nome – respondeu o dervixe
- Os nomes são demasiado pequenos para Deus. O nome é uma prisão, Deus é livre.
- Mas quando desejais chamá-lo – insistiu o padre -, quando tal for necessário, com
que nome o chamareis?
O dervixe abaixou a cabeça, refletiu; finalmente descerrou os dentes:
- Ah! respondeu. Não Alá, mas Ah!, é assim que o chamarei.
(LORTHIOIS, apud LISBOA, 2008, p.158)
Não seria a arte um meio para o encontro do ser humano com o Ah! ? Seja este Ah! uma
experiência mística, um questionamento, uma descoberta, uma vivência para a qual não existem
palavras que possam explicá-la? “pois a arte é capaz de tocar a pessoa no âmago do seu ser, de fazê-la
perceber e irradiar seu centro, de despertar nela o desejo de elevar-se e de se tornar, ela mesma, uma
obra de arte”. (LORTHIOIS, 2008, p. 215).
Não seria a arte o processo de treinar o olhar para que se veja o comum, o que já não é mais
visto, o que é ignorado, o que não é industrializado mas essencial para a existência?
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Poéticas Corporais em Land Art ou Arte da Terra
Piso com os pés descalços na grama, na areia, na lama.
Deixo rastros para que me sigam.
Para que se encontrem.
(TURA, Paula, 2013)
Há a terra e a Terra, a primeira com letra inicial minúscula nos remete a agricultura, ao solo
que se pisa, a segunda nos remete ao planeta, a força da gravidade, aos continentes, aos pólos, as
camadas da atmosfera. Tudo o que acontece na Terra pode ser percebido se observarmos a terra. A
Terra planeta ainda muito misteriosa e abstrata esta presente na terra de barro, de grama, de areia, do
deserto, do cerrado, da geleira, do fundo do mar, pois é a superfície da Terra. Na terra simples e com
“t” minúsculo colhe-se o que se come, enterram-se os mortos, caem de joelhos os suplicantes para que
a Terra como se fosse uma grande estufa composta de vegetação, mares, solo e animais continue a
girar, a ser aquecida pelo sol e a ser utilizada como meio para as relações e aprendizado de seus
habitantes.
O artista, ecologista, e industrial devem desenvolver uma relação entre si, e não
apenas continuar seus trabalhos e produções individualmente (...) O ecologista tende a
ver a arte em termos de passado enquanto a maior parte dos industriais não vê nada
(...) O artista deve aceitar e entrar em todos os problemas reais de confronto entre o
ecologista e o industrial (SMITHSON, 1996, p.379, tradução nossa)
A Arte da Terra é feita com terra, com grama, com pedras, com lama, com água, com folhas,
com conchas, com gravetos, com frutos, com flores. A Arte da Terra pode durar um piscar de olhos ou
um pouco mais. A Arte da Terra pede presença, atenção e integração; pede olhar apurado e reflexão
sobre a relação econômica, política, cultural, social. “Eu vejo a Terra como escultura – sobrevoando a
Terra é como ver áreas pintadas ou pictóricas (...) enquanto no chão é mais volumoso.
É como caminhar por uma escultura” (SMITHSON, 1996, p. 177, tradução nossa).
70
Experiências em Land Art
“- Assim é, meu amigo! Aprende a gravar, na pedra, os
favores que receberes, os benefícios que te fizerem, as
palavras de carinho, simpatia e estimulo que ouvires.
Aprende, porém, a escrever, na areia, as injúrias, as
ingratidões, as perfídias e as ironias que te ferirem pela
estrada
agreste
da
vida.
Aprende a gravar, assim, na pedra; aprende a escrever,
assim, na areia... e serás feliz !” (TAHAN, 1997, p. )
Fig.37. Paula Tura. Mensagens, 2011. Registro em areia. Fotografia Will Aguiar. Praia da
Enseada, Guarujá, SP. Acervo da artista
A ação de registrar pensamentos e movimentos é talvez tão antiga quanto a história da
humanidade. Por onde passa o homem deixa rastros naturalmente. Temos os registros rupestres no
período pré-histórico e nos anos de 1500 d.c, Padre Anchieta escreve trechos de seu Poema à Virgem
nas areias da praia conhecida hoje como Praia de Iperoig/SP, no centro de Ubatuba litoral norte do
Estado de São Paulo. Que criança nunca traçou círculos na areia, ou cavou até o outro lado do mundo,
71
ou ainda construiu castelos com canais irrigados pela água do mar? Que adolescente nunca expressou
sua paixão dentro de um coração de areia durante as férias de verão? Que adulto nunca incentivou
uma criança a iniciar estas descobertas quando na praia?
A artista, motivada pelas recordações de infância e imersa na contemplação dos grifos e
desenhos dos frequentadores da Praia da Enseada, no Guarujá, litoral Sul do Estado de São Paulo, pôs
se a riscar livremente a areia. Esta praia propicia os desenhos em sua areia uma vez que é composta
por areia dura. Este local onde a autora estava é o canto esquerdo da praia, o final desta, onde se
encontra um grande condomínio de apartamentos construído em local que já fora considerado de
preservação ambiental. O trabalho da autora, de escrever no solo se contrapõe ao condomínio de luxo,
aos grandes iates que dali saem decorrentes das águas tranquilas do canto da praia, dos frequentadores
que passam apressados em seu jogging de final de tarde.
A obra realizada pela autora se assemelha, ao se observar a foto (fig. 37) a um cérebro cheio
de massa cefálica representada pelos riscos com a areia em alto relevo. Podem ser os muitos
pensamentos de indignação e perplexidade que a artista carrega consigo. O registro das marcas na
areia foram feitos com os pés da autora e também com um graveto encontrado na própria praia.
A ação de registrar movimentos e pensamentos no solo, nas cavernas, nas árvores, nas pedras
pode acontecer de inúmeras formas: escreve-se, colore-se, reorganiza-se o ambiente natural de acordo
com a intenção de quem o faz. São formas de expressão das mais profundas e espontâneas do ser
humano desde sua mais tenra infância.
Estou tentando encontrar áreas, zonas, regiões, as quais não são sobrecarregadas de
associações. É possível liberar o homem das orientações por objetos. Esta liberdade
não é para ser interpretada. É total. O meio é concreto.
Esta zona inválida ou vazia pode significar o poder de emancipação de uma maneira
contemplativa e concreta, para a realização espiritual (SMITHSON, 1996, p. 179)
Os artistas que se dedicam à Land Art procuram “ambientes sem historicidade, prédios
fábricas em subúrbios, interiores e exteriores retilíneos, superfícies duras e impenetráveis, lugares
comuns que se parecem ser provenientes do futuro, parques industriais sem indústria, novas galerias e
museus sem pintura e escultura, estacionamentos sem carros, shopping centers sem produtos, prédios
de escritórios sem atividades empresariais” (SMITHSON, 1996, p. 362) para que estes intervenham.
Estes espaços promovem no artista a evocação de um procedimento de investigação, uma forma de
agir e pensar e não um meio para a arte ou como sendo o produto final de um processo artístico. O
local escolhido é em si o objeto do diálogo.
Inclui-se aqui a bela obra de um artista norte-americano:
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Fig. 38. Andres Amador. Clouds. Registro em areia. Ocean Beach, San Francisco, USA
a) Pedras Macias
- O que você esta fazendo?
- Estou deixando as pedras macias
- Como?
- Passe sua mão aqui nesta pedra. Como você a sente?
- Dura
- Agora passe a sua mão nela por cima do tecido. Como
você a sente?
- Hum!
(Diálogo entre uma criança e a autora)
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Fig. 39. Paula Tura. Pedras Macias, 2013. Tecido e papel sobre rocha. Fotografia Will
Aguiar. Praia de Paúba, São Sebastião, SP. Acervo da artista
Fig. 40. Paula Tura. Pedras Macias, 2013. Tecido e papel sobre rocha. Fotografia Will
Aguiar. Praia de Paúba, São Sebastião – SP. Acervo da artista
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O desenvolvimento da obra Pedras Macias (fig. 39-40) foi coletivo e aconteceu na Praia de
Paúba, uma pequena praia bem próxima à famosa Praia de Maresias. No dia da construção da obra, o
local estava bastante cheio, o céu azul e o mar muito calmo.
Papel crepom, fitas de cetim, retalhos, lã foram levados para o canto esquerdo da praia. Lá foi
iniciado um processo de “amaciamento” das pedras, colando com fita adesiva (de fácil remoção) os
retalhos de tecido. Crianças passavam e olhavam. Volta e meia retornavam. Ao serem perguntadas se
queriam ajudar a resposta imediata era sim.
A partir do momento que as crianças passaram de observadoras a construtoras da obra a autora
passou ao papel de observadora e fornecedora de material para o trabalho. Quando solicitada ajudava
uma ou outra criança a colocar ou recortar os papeis e fitas adesivas. O que se vê é um trabalho
coletivo de “amaciamento” das pedras onde há troca de experiências através do diálogo e do fazer
junto.
À medida que as crianças começaram a fazer parte da construção da obra passa a acontecer a
construção de outra obra, ou seja, quando a autora está trabalhando sozinha em seu projeto mesmo
levando em consideração que poderia ocorrer a participação de outras pessoas, ela (a autora), está
desenvolvendo a SUA obra. A partir do momento que outras pessoas passam a trabalhar em conjunto
com a autora e esta não direciona a construção do trabalho e passa apenas a fornecer o material a ser
utilizado (respeitando a livre escolha do material), passa a acontecer a construção de uma outra obra
nunca antes imaginada e que se transforma de obra individual para obra coletiva.
Com relação à participação das crianças pode-se afirmar que para elas “o resultado final não
importa muito, é o momento do fazer que encanta” (LORTHIOIS, 2008, p.219). E encanta tanto que
muitas delas eram frequentemente chamadas pelos pais que entendiam que elas poderiam estar
atrapalhando estes desconhecidos que estavam amaciando pedras. Mas incansavelmente as crianças
com seus pequenos e ágeis corpos prontamente retornavam. Ao retornar nem sempre continuavam de
onde haviam parado, pois outra criança poderia ter mudado de lugar um pedaço de tecido colado pela
criança que deixou o local por um tempo.
Absolutamente interessante de se ver era a naturalidade com a qual as crianças utilizavam-se dos
materiais, pois não apresentavam dúvidas estéticas ou juízos de valor sobre bonito ou feio. Apenas
faziam o que lhes parecia melhor. Pode-se dizer que para estas crianças o ato de amaciar as pedras
está na extremidade oposta de julgamentos, afinal, para que as pedras sejam amaciadas elas precisam
ser acariciadas e as pequenas mãos das crianças massageavam levemente as pedras através dos papeis
e tecidos que nas pedras colavam. Assim, amaciar as pedras é acariciar a Terra.
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b) Rastros coloridos
No canto esquerdo da Praia da Lagoinha há a trilha que levou a artista à Praia do Perez para
realizar algumas de suas obras. Esta trilha continua por longos quilômetros e atrai inúmeros turistas. A
autora, que gosta muito deste percurso o escolheu mais uma vez para realizar algumas obras no intuito
de mostrar um pouco mais da beleza do lugar.
Antes de entrar na trilha decidiu realizar a experiência dos Rastros Coloridos (fig. 41); então,
pegou o corante para roupas na cor amarelo (porque não havia pensado naquele momento em levar
anilina comestível o que seria mais indicado por não ser um produto prejudicial ao meio ambiente) e
caminhando agachada e lentamente o espalhou entre dois pontos: das pedras à água. Neste momento
passava um grupo de turistas e uma das moças abordou a artista:
- É pra chamar onça?
- Oi?!
- Moça, isto é pra chamar onça?
- Não, acho que não.
Fig. 41. Paula Tura. Rastros Coloridos, 2013. Corante sobre areia. Fotografia
Will Aguiar. Praia da Lagoinha, Ubatuba – SP. Acervo da artista
76
A autora não entendeu a fala da moça. Não sabia que se demarcavam locais por onde as onças
poderiam passar ou que se poderiam chamar as onças através de rastros. Rastros para chamar onças?
Também nunca ouvira qualquer relato de onças por aquelas bandas. Decidiu então pesquisar algo
sobre as onças e encontrou no livro a Onça protetora (2004, p. 31-39) o seguinte:
- Mãe, mãe, o pai virô onça! Ele não tá mais andando como nóis.
- Cala a boca, menino! Aquilo não é seu pai. Agora, vamo embora depressa.
Vamo vê o nosso povo que há muito tempo nóis não via.
A narrativa da onça desperta no povo Krenak a certeza da existência de uma
proteção invisível que surge quando os membros da tribo conseguem se
reencontrar (...) a história parece dizer que a proteção efetiva se constitui
quando é permitido viver fluindo com o ritmo da própria natureza. Quando
se é livre e natural tal qual a onça. Quando nossos instintos fundamentais são
considerados partes integrantes do nosso ser.
Os Krenak pintam a pele como onça. Este é um gesto ritual e afirmativo de
colocarem sua história, sua liberdade de ser, sua plena maneira de viver
comunitariamente e, por isso, sua proteção à flor da pele.
Quando
nosso
civilizado
mundo
contemporâneo
nos
empurra
vertiginosamente em direção ao isolamento e ao medo, é tempo de
reaprendermos com os Krenak.
A autora ficou pensando então se o seu Rastro Amarelo não seria uma ponte entre o ambiente
natural e as pessoas. Se aquele rastro não estaria propiciando um reencontro entre os membros da
tribo como conta a lenda Krenak; não seria a autora e aquela turista que questionou sobre o chamado
da onça membros de uma mesma tribo? Ou ainda se o Rastro Amarelo propiciasse que cada pessoa
que passasse por ele pudesse encontrar-se com seus instintos fundamentais, aqueles que fluem com o
ritmo da natureza: os ciclos do nascer e pôr do sol, do descanso e do trabalho, do plantio e da colheita.
Poderia ser ainda que o Rastro Amarelo fosse o caminho harmonioso do autoconhecimento.
Curiosamente a autora encontrou no trabalho do artista e ambientalista britânico Andy
Goldsworthy (fig. 42) um caminho de folhas que vai do verde para o amarelo ou do amarelo para o
verde, dependendo do ponto em que se olha para a obra criada com folhas pelo artista. Convida-se
assim o leitor a pensar na possibilidade de que o Rastro amarelo pode-se transformar num rastro verde
e trazer outros inúmeros simbolismos e possibilidades, o que traz ainda mais consistência ao Rastro
amarelo uma vez que para este rastro pensou-se que ao cruzá-lo cada indivíduo seria convidado a
caminhar no encontro aos instintos que fluem com o ritmo da natureza. Assim, ao atribuir-se uma
possibilidade de modificar a cor do rastro, pensa-se que cada indivíduo pode evocar uma tonalidade
que lhe enalteça ainda mais suas características individuais no caminho de busca interior.
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Fig. 42. Andy Goldsworthy. Green to yellow leaves
Como continuidade a estas reflexões a autora dispôs-se a fazer outro rastro:
c) Caminho de areia
“Tudo vive um fluxo contínuo na terra: nela, nada conserva
uma forma constante e definitiva e nossas afeições, que se
apegam às coisas exteriores, passam e se transformam
necessariamente como elas. Sempre à nossa frente ou atrás
de nós, lembram o passado, que não mais existe ou
antecipam o futuro que, muitas vezes, não deverá existir:
nada há de sólido a que o coração se possa apegar”.
(ROUSSEAU, 1995, p.76)
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Fig. 43. Paula Tura. Caminho de areia, 2013. Areia sobre terra.
Fotografia Will Aguiar. Praia da Lagoinha, Ubatuba-SP.
Acervo da artista
Caminho de areia (fig. 43) foi um caminho feito com areia coletada na Praia da Lagoinha.
Não foi feito na entrada na trilha como o Rastro colorido e sim no percurso entre a Praia da Lagoinha
e a praia do Perez. Sobre a terra úmida a artista formou um longo traço com a areia clara que
contrastou com o marrom escuro da terra. Foi um traço mais discreto, realmente um caminho, quase
que imperceptível como o caminho que as formigas fazem e que para ser percebido é preciso atenção.
Aliás, o Caminho de areia encontrou com inúmeras formigas em seu trajeto.
Talvez a proposta deste caminho seja a simples demarcação de um ponto a outro se utilizando
de um material tão leve e fino que é preciso que seus grãos estejam bem unidos para que tenha
consistência e evidência. Talvez seja sempre necessário este contraste do claro com o escuro, do
passado com o vislumbrar do futuro, do olhar sobre e do olhar distanciado propiciando que se
enxergue o fluxo de acontecimentos do presente. Talvez como as formigas que estão sempre juntas a
trabalhar para a sustentação da espécie este Caminho de areia não seja um caminho que propõe
evidenciar não a si próprio, mas a terra que o sustenta.
O artista Richard Long (fig. 44) possui uma obra que nos leva a refletir, como o Caminho de
areia, sobre o caminho que traçamos ao andar, sobre o local que acolhe nossos passos, sobre a direção
que escolhemos seguir.
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Fig. 44. Richard Long. A line made by walking, 1967
d) Intervenções com corante
Sem a sua arte não existo
Dividimos o mesmo espaço em outro tempo
Chego quando você já se foi
Deixo pra você um detalhe no que você me deixou
E feche o buraco, moça, disse o Sr. João, um caiçara que
passava
Não fui eu quem o abriu, eu só o colori - respondi
Feche o buraco mesmo assim, como mãe você deve saber
destas coisas...
(TURA, Paula, 2013)
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Fig. 45. Paula Tura. Buracos, 2013. Corante sobre areia e água salgada. Fotografia
Paula Tura. Praia da Lagoinha, Ubatuba-SP. Acervo da artista.
Fig. 46. Paula Tura. Gato, 2013. Contorno de desenho
com corante. Fotografia Paula Tura. Praia da Lagoinha,
Ubatuba- SP. Acervo da artista
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Fig. 47. Paula Tura. Monstro, 2013. Corante em escultura de areia.
Fotografia Paula Tura. Praia da Lagoinha, Ubatuba-SP. Acervo da artista.
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Fig. 48. Paula Tura. Pé, 2013. Contorno de pegada em areia. Fotografia Paula
Tura. Praia da Lagoinha, Ubatuba-SP. Acervo da artista.
Como frequentadora assídua do litoral, a autora em sua pesquisa propôs-se a passear pela
Praia da Lagoinha em Ubatuba, no litoral norte de São Paulo, em um dia de bastante movimento e
assim postou-se a observar o que os frequentadores estavam criando durante as longas horas que por
ali permaneciam entre banho de mar, banho de sol e brincadeiras na areia. Observou então as obras
acima, anotou o local onde elas estavam sendo construídas e antes do pôr do sol colocou as mãos à
obra interferindo com corante de roupas (o que sabe hoje que deveria ter feito com anilina comestível)
nas obras destes autores anônimos.
Durante a interferência nas obras a autora lançou mão de muitos pensamentos tentando
colocar-se no lugar dos autores imaginando quanto tempo eles levaram
para desenvolver seus
projetos, tentando imaginar sobre o que estavam conversando, se a ideia inicial havia dado certo ou se
mudaram a proposta no meio do caminho, se eram adultos, crianças, jovens, se eram amigos ou
parentes, se estavam ali pela primeira vez ou eram antigos frequentadores.
Com a intenção de deixar um rastro de comunicabilidade entre as obras a autora escolheu
utilizar uma cor única para as intervenções. Salvo a obra Buracos (fig. 45) que conta com a cor roxo,
rosa e amarelo, todas as outras obras sofreram intervenção apenas com a cor roxo. Aliás, a obra
Buracos possui uma característica única: Sr. João, um caiçara que passava advertiu para que os
buracos fossem fechados, pois segundo sua experiência muitas pessoas ao jogarem bola ou
caminharem não enxergam os buracos e se acidentam.
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Sr. João, aliás, um caiçara muito simpático, portando uma sacola nas mãos perguntou a autora
se ela não gostaria de conhecer a Ubatuba de décadas atrás e com muita simpatia abriu um pacote que
continha um álbum com fotografias da década de 60 e 70 inclusive com fotos de seus familiares.
Nestas fotos, a orla que hoje conta com inúmeras casas e prédios era apenas uma extensa faixa de
areia cheia de árvores. Sr. João saudoso contou que agora são mais prósperos, mas que a natureza
abundante lhe faz falta.
A obra Pé (fig. 48) foi uma provocação à autora: como não registrar um pé diante de tantos
pés descalços sobre a areia? Momento de liberdade para os dedos que por fim estão longe dos espaços
confinados e da altura imposta pelos sapatos de salto. Pés que caminham longas distâncias, sentem a
textura dos grãos de areia, a temperatura da água do mar, a carícia da espuma da água marinha. Pés
que balançam quando as pernas estão cruzadas, que chutam bola com as crianças sem qualquer
pretensão de competição. Pés que apoiados sobre pranchas deslizam nas ondas do mar. Pés que “têm a
forma de uma semente (...) Os pés escutam a terra e nos enraízam na matéria” (LELOUP, 1998, p. 32).
E com estes pés,
Na praia eu vou nadar, na praia eu vou ficar.
Na praia eu vou deixar uma pessoa me encantar.
Na praia vou encontrar motivos para sonhar.
Na praia vou brincar, gritar e me apaixonar.
Se eu me apaixonar mais tarde, mais tarde vou casar.
E no momento do casório na praia vou estar.
Meus filhos vão crescer e também vão aprender.
Sempre na praia aparecer.
E quando eu envelhecer na praia eu vou morrer.
Na praia eu vou embora eu e minha história.
Se minha mulher se angustiar na praia vai chorar.
Para lembrar do nosso tempo de brincar e se encantar.
(NOVAES, 2004, p. 23)
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Somos em nossa história, heróis e vilões ao mesmo
tempo. (MENDONÇA, 2005, p. 69)
A realização de uma pesquisa em arte cuja proposta consiste na análise de obras concebidas
pela própria autora é de extrema dificuldade. Exige distanciamento, criticidade e foco. O
distanciamento se fez necessário em todas as etapas do trabalho: na observação das obras
desenvolvidas antes do início da pesquisa, embasamento teórico destas obras e concepção e produção
das novas obras seguindo uma mesma linha de pesquisa e composição. A criticidade precisou ser
pensada com cautela para que as obras não fossem criticadas ao extremo a ponto de serem eliminadas
do projeto, no caso das obras concebidas anteriormente; para as obras subsequentes foi preciso
elaboração sem preciosismo ou apego permitindo sugestões, reflexões e experimentações advindas de
artistas muito mais experientes.
Por outro lado, um trabalho de arte realizado por uma artista que não está no mercado de arte
comercializando suas peças ou realizando esta pesquisa voltada aos interesses econômicos faz de todo
o trabalho algo um tanto curioso. Foram horas de leitura, visitas a exposições, centros culturais,
acervos, viagens, produções e investimento financeiro para que esta pesquisa pudesse acontecer. Foi,
no entanto, através desta pesquisa que a artista exercitou a expressão de suas inquietações sem que
necessariamente precisasse recorrer a oralidade, a exemplo da palestra Corpo Natureza, na qual ao
invés de utilizar os recursos audiovisuais tradicionais optou por mostrar parte do acervo contido nesta
pesquisa e discutir com o público presente sobre os procedimentos,
materiais utilizados e
inquietações que levaram a artista à concepção daquelas obras. O interessante da palestra sobre o
corpo foi partir de dois princípios: expor as obras e esperar que o público questionasse. Não seria isto
o que se espera da arte? Não se espera que seja um processo reflexivo? Foi muito enriquecedor
perceber a importância que o público colocou na possibilidade de experimentar pensar sobre as obras
com a artista presente, de expor as dúvidas sobre a materialidade ao mesmo tempo que podiam falar
sobre a quê ou ao quê aquelas obras lhes remetiam.
Percorrer os caminhos da Arte Contemporânea para compor este trabalho foi uma tarefa
árdua. Há um distanciamento histórico e cultural, há a exigência da compreensão de conceitos, há a
necessidade de compreender o momento histórico que levou à concepção dos movimentos e
estabelecer um paralelo com a situação atual. Exige-se uma reflexão sobre o tempo real e isto é
complexo, pois sempre se faz necessário um tempo para processar e entender o que está acontecendo
socialmente, culturalmente, economicamente na atualidade para - quem sabe?- prever as
possibilidades de desdobramento futuro.
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Falar sobre arte, conceber arte, trabalhar com arte exige compromisso, criticidade e reflexão.
Em tempos de extremo desenvolvimento tecnológico, com velocidade de informação nunca antes
imaginada é fácil nos perdermos nas concepções, afirmações e previsões. Por outro lado, há o tempo
humano, o nascimento, o crescimento, a morte. Existem os ciclos que há milhões de anos se repetem
sem se acelerarem, sem pularem etapas, sem que possam ser substituídos pelas máquinas. Esta
pesquisa procurou deixar este tempo em evidência. Falou da vida e da morte, das transformações, do
tempo, do ambiente natural que nos acolhe e do qual dependemos. Falou-se de yoga, de respiração, de
introspeção, da beleza de uma árvore que de tão comum é ignorada e exterminada. Falou-se de
pegadas e rastros, do corpo que cada um possui e que de tão individual pode tornar-se igual pois tem
funções idênticas e personalidades distintas. Falou-se sobre os animais que continuamos a desenhar na
areia. Observou-se o papel dos espaços reservados às exposições, da importância da curadoria, da
facilitação do acesso à arte. Falou-se de arte. Acima de tudo procurou-se enaltecer a conexão, a
compreensão de que o homem é uma extensão do ambiente natural, que carrega em si: no corpo, na
fala, na memória, o mundo natural do qual é parte.
Nesta pesquisa apresentam-se dois tempos: o tempo tecnológico e o tempo do mundo. Tempos
que continuarão acontecendo em paralelo como acontece com o Rio Negro e o Rio Solimões que
formam o Rio Amazonas. Com características distintas: o Rio Negro de águas escuras e o Rio
Solimões de águas barrentas, correm lado a lado por um extensão de 06 km até que se misturam. Este
fenômeno decorrente da diferença de temperatura e densidade das águas promove um belíssimo
espetáculo da natureza. O Rio Negro, com seus 02 km de velocidade por hora e 22 graus de
temperatura da água pode simbolizar aqui a proposta desta dissertação que apresenta um corpo
reflexivo, poético, respeitador de seu ritmo, leve, metamorfoseado, em comunhão com o ambiente
natural e o Rio Solimões, com seus 06 km de velocidade por hora e 28 graus de temperatura da água
ilustra a intensidade, velocidade, desenvolvimento tecnológico experimentados pelo homem possuidor
de um corpo que aprendeu a viver em outro ritmo, que fez adormecer seu contato com o ambiente
natural, que sobrepõe a matéria ao não palpável. Estes dois rios correm em paralelo por 06 kilômetros
até que suas águas se mesclem. Ousemos então transformar este percurso de 06 kilômetros como
sendo a vida de um homem na Terra, ou seja, em média uns 60 anos; nasce o homem- água que brota
da terra em forma de rio, passa por barragens, depressões, nivelamentos, diversidade de vida aquática,
tem suas cheias e estiagens e corre, sempre corre em direção ao mar, que seria a sua morte pois tem
suas águas doces transformadas em água salgada. Ao longo do caminho realiza escolhas e
aprendizados,
no entanto, é homem, é água, é vida, é pertencente a um único ecossistema
codependente.
Independente do ritmo no qual tenha escolhido viver, este homem é regido pelo ciclo da
natureza: nascimento, crescimento, morte – com um tempo limitado para as experiências e
aprendizados. Esta dissertação propõe o olhar introspectivo, a contemplação do ambiente natural, a
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valorização do não palpável, o cuidado com a ecologia, a simplicidade, as escolhas conscientes. Faz
esta proposta com o intuito de que o percurso até o delta seja consciente, que se possa envelhecer e
olhar para trás para ver o rastro colorido ou o caminho de areia, para que se possa refletir sobre as
pegadas deixadas, que se possa enxergar-se moldado às árvores abraçadas.
Sabe-se que a natureza tem uma força inexplicável que se revela através de maremotos,
vulcões, geadas, furacões, terremotos. Não seriam estas as formas que a natureza se utiliza para
mostrar que está viva? Que alerta o homem a rever o seu ritmo de vida e suas escolhas? Que propõe a
desaceleração, a introspeção e o retorno à semente?
Que a arte possa nos salvar com sua proposta de convidar o ser humano a manter-se no ritmo
natural antes que seja preciso que a própria natureza nos coloque de volta ao eixo pela fúria de
tsunamis. Que a brisa, o entardecer, o banho de mar, as esculturas de areia, os corpos pintados, as
árvores... sejam suficientes.
.
87
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90
APÊNDICES
APÊNDICE A: composto de fotos impressas referentes às obras.
APÊNDICE B: composto de DVD com filmagens das seguintes obras:
- Pintura e impressão de tronco em vermelho
- Corpo de areia
- Mulher deitada na areia
As filmagens contam com o tempo real de execução dos trabalhos com a proposta de imersão
no ritmo do ambiente natural.
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APÊNDICE A
Fig. 1. Paula Tura. Pintura Corporal, 2012. Fotografia
Will Aguiar. Acervo da artista.
Fig. 2. Will Aguiar. Estudo de Pintura Corporal, 2012. Fotografia Paula Tura.
Acervo da artista.
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Fig. 3. Paula Tura. Pé e Mão, 2012. Molde em gesso. Fotografia Will Aguiar.
Acervo da artista.
Fig. 4. Paula Tura. Estudo para a Série Yoga: observação das sombras dos corpos
refletidos na areia da praia, 2012. Fotografia Will Aguiar. Acervo da artista.
93
Fig. 5. Paula Tura. Tronco Sangrando com elementos: tronco em estado de carvão
e cinzas de papel queimado, 2012. Fotografia Will Aguiar. Acervo da artista.
Fig. 6. Paula Tura. Mensagens, 2011. Registro em areia. Fotografia Will Aguiar.
Praia da Enseada, Guarujá, SP. Acervo da artista
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APÊNDICE B
DVD com filmagens de obras descritas nesta dissertação
95
Download

Paula Ferreira Tura - início