Politicas de ação afirmativa no serviço público brasileiro:
possibilidades e medidas para um serviço público diverso e inclusivo
Autores: Luiz Alberto dos Santos y
Regina Luna Santos de Souza
Seudónimo: KinichahauIxChel
Introdução
A gestão pública moderna coloca um grande desafio aos agentes políticos e administrativos: sopesar, a
um só tempo, os princípios meritocráticos que devem regê-la, com vistas a maior eficiência, e, por
outro lado, as demandas do sistema social e politico, sobretudo do ponto de vista da superação das
desigualdades históricas no que se refere à composição do serviço público e ao acesso a cargos
públicos, inclusive os de direção superior.
A Carta Iberoamericana da Função Pública1, aprovada pela V Conferencia Iberoamericana de
Ministros de Administración Pública y Reforma del Estado em Santa Cruz de la Sierra em junio de
2003, e respaldada pela XIII Cumbre Iberoamericana de Jefes de Estado y de Gobierno, em
novembro de 2003, coloca de forma expressa esse dilema.
Ao enunciar os critérios orientadores, que inspiram os enunciados da Carta, destaca o documento o
“impulso de políticas ativas para favorecer a igualdade de gênero, a proteção e integração das
minorias, e em geral a inclusão e a não discriminação por motivos de gênero, origem social e etnia,
incapacidade e outras causas”. Entre os princípios reitores de todo o sistema de função pública, que
devem inspirar as políticas de gestão e emprego e os recursos humanos e serem observadas em todas as
práticas concretas de pessoal, enumera a Carta:
“Igualdad de todos los ciudadanos, sin discriminación de género, raza, religión, tendencia política u
otras.
Mérito, desempeño y capacidad como criterios orientadores del acceso, la carrera y las restantes
políticas de recursos humanos.
Eficacia, efectividad y eficiencia de la acción pública y de las políticas y procesos de gestión del
empleo y las personas.
Transparencia, objetividad e imparcialidad.
Pleno sometimiento a la ley y al derecho.”
E, em relação à gestão dos processos de acesso ao emprego público – aqui considerado como gênero
das relações de trabalho no serviço público – aponta a referida Carta os seguintes princípios:
“Libre concurrencia, de acuerdo con unos requisitos generales de acceso al empleo público y sin más
restricciones que las derivadas del perfil de competencias, que en todo caso deberá corresponderse
con los requerimientos funcionales del puesto.
Elección del mejor candidato, de acuerdo con los principios de mérito y capacidad.”
E por fim, prevê que as regulações da função diretiva deverão incorporar
1
http://www.clad.org/documentos/declaraciones/cartaibero.pdf/view, acesso em 30 jun 2012.
1
“Reglas de acceso al cargo que garanticen la profesionalidad mediante la utilización de criterios de
capacidad y mérito, haciendo asimismo posible el nivel de confianza requerido en cada caso por la
naturaleza de la función.”
Note-se que, não obstante o postulado inicial de favorecer a igualdade de gênero, a proteção e
integração das minorias, e em geral a inclusão e a não discriminação por motivos de gênero, origem
social e etnia, incapacidade e outras causas, a Carta não proporcionou diretrizes específicas ou
orientações sobre como assegurar esses objetivos mediante medidas destinadas a ampliar a presença,
nos cargos e empregos públicos, de representações de gênero, minorias étnicas ou pessoas com
deficiência, não obstante tenha enfatizado diferentes aspectos da politica de gestão de pessoas e da
administração como um todo.
Trata-se, efetivamente, de tema de difícil abordagem, e que requer a contextualização de cada situação,
e a compreensão da dimensão do problema, para compreensão de suas possibilidades de enfrentamento.
Segundo a OCDE (2009), a experiência dos seus países membros com a promoção da diversidade no
serviço público é mista. Embora políticas de longo prazo e prioridades tenham sido postas em prática
em muitos deles, os resultados alcançados foram desiguais. Muitos países têm reconhecido a
necessidade de completar o recrutamento tradicional e os mecanismos de promoção com medidas
específicas para compensar as desigualdades sociais na entrada, que decorre das desigualdades das
classes sociais e dos preconceitos culturais inevitáveis em todos os processos de recrutamento e
promoção. Conforme a OCDE (2009),
“(…) It is now recognised that employers tend to recruit and promote staff who are similar to them or
at least to their value system.
294. Diversity programmes usually target women, persons with different cultural or ethnic
backgrounds, and disabled persons. The emphasis on diversity is not only an issue of equity but also of
efficiency and effectiveness. Recognising the value of diversity is the first step towards a sound
diversity policy which does not oppose diversity and merit. Countries are striving to mainstream
diversity policies into daily human resource management processes and to change the culture from
seeing diversity as a problem to considering it an opportunity and a value. Apart from programmes
aimed at employing disabled workers, quota systems and affirmative action programmes are rare.
295. In addition to legislative and regulatory measures, countries are emphasising better
understanding of diversity issues (surveys, exit interviews), equal access to training to prepare for
public service examinations, mentoring programmes to favour careers of minority groups, and changes
to recruitment systems. Most countries are also putting some emphasis on improving diversity at senior
management levels, where the weaknesses are the most visible. This can help improve diversity in the
public service.”2
Percebe-se que, em países com sérias clivagens étnicas, linguísticas ou religiosas, as ações afirmativas
são mais frequentes no sentido de garantir ao jurisdicionado uma Administração que reflita mais a
composição social e que a represente de forma proporcional. Na Bélgica, por exemplo, em que se
avançou sobremaneira na gestão de pessoal com base nas competências, define-se como missão do
Serviço Público Federal:
Sur la base d'une concertation approfondie avec ses clients, le politique et avec le monde
professionnel, le SPF Personnel et Organisation élabore une politique RH* fédérale dynamique et
stratégique, et fournit des produits et des services qui répondent à leurs besoins, attentes et tendances
respectifs.
2
OECD Reviews of Human Resource Management in Government: Brazil . OECD: Paris, 21 May 2010, 312. P.
2
En tant que partenaire, le SPF Personnel et Organisation soutient et accompagne ses clients dans la
réalisation de cette politique sur le terrain, de manière à ce qu’ils puissent assurer de manière
optimale les services que leurs propres clients attendent d’eux, tout en étant un employeur de choix
pour les collaborateurs et les candidats collaborateurs.
Dans le respect des compétences de chaque niveau de pouvoir, le SPF Personnel et Organisation
accomplit en tant qu’acteur national, un certain nombre de missions légales et de coordination qui ont
des répercussions sur la politique du personnel de chacun de ces niveaux.
Entre as competências selecionadas para orientar não apenas o recrutamento como todo o percurso da
carreira, está o domínio das duas línguas nacionais: o francês e o holandês, representativos
respectivamente da Walonie e de Flandres. É um exemplo em que a meritocracia foi desenvolvida a
partir de uma conciliação de interesses políticos – e muito recentemente estabelecida em formato mais
sistematizado, com a implementação da Reforma Copérnico.
Tal orientação também se reflete na preocupação com a formação da Administração Pública no
Canadá, com o respeito à cultura francesa e inglesa e sua representação pelo bilinguismo. Na Comissão
Europeia, por outro lado, a preocupação é a de ter um quadro burocrático diversificado, que inclua
servidores advindos de todos os países-membros. Em um relatório mais recente, de 2011, relata-se que
foram realizados pelo menos quatro mil recrutamentos, representando cerca de 16% do total de
servidores ativos e temporários da Comissão Europeia, além de 595 agentes contratados, ao fim do
período de transição, tudo isso sem maiores rupturas e conflitos. Além disso:
Besides the on-going transitional period for Romania and Bulgaria, the Commission is a truly
European institution today. Compared to earlier enlargements and given its size, the EU-10
enlargement is a great success for the Commission. The lessons learnt will help future enlargements
and integration of new staff in general, to the advantage of recruits from all 27 Member States.3
No Brasil, um intenso debate tem se desenvolvido nos últimos anos, notadamente a partir da
Conferência das Nações Unidas Contra o Racismo, Discriminação e Xenofobia e Intolerância
Relacionada, ocorrida em Durban em 2001, com vistas à implementação de medidas com a finalidade
de ampliar a diversidade e inclusão social de minorias, bem assim para a promoção da igualdade de
gênero e promoção das pessoas com deficiência. Foi a partir desse período que algumas ações
inclusivas foram incorporadas ao repertório da Administração Pública Brasileira, como veremos
adiante, ainda que dissessem respeito às contratações realizadas sem a necessidade de observar o
disposto no artigo 37 da Constituição Brasileira – obrigatoriedade de realização de concurso público.
Esse debate intensificou-se, em 2012, com a decisão do Supremo Tribunal Federal que considerou
válida a adoção de cotas raciais para ingresso em instituições de ensino superior, consolidando a ideia
de que é papel do Estado promover a inclusão de segmentos menos favorecidos mediante políticas de
ação afirmativa.
Há que se discutir os limites entre a promoção da inclusão na Administração Pública e a necessidade de
garantir que seus quadros sejam selecionados em pé de igualdade e de forma meritocrática.
Nesse contexto, a presente monografia, apresentada ao XXV Concurso del CLAD sobre Reforma del
Estado y Modernización de la Administración Pública 2012 "Una Administración Pública Diversa e
3
The 2004 enlargement and commission recruitments - How the Commission managed the recruitment of staff from 10 new
member states situation at the end of the EU-10 transition period. Final Report, issued on
http://ec.europa.eu/civil_service/docs/qabd_1946_eu-10_recruitments_en.pdf, ultimo acesso em 1 de julho de 2012.
3
Inclusiva" pretende oferecer uma abordagem do caso brasileiro, à luz das limitações constitucionais e
de aspectos sociais e culturais, e das medidas que vem sendo adotadas no âmbito do Governo Federal
para atender ao princípio da ampliação da igualdade no contexto da governança democrática, bem
como aos princípios da impessoalidade, eficiência e legalidade que regem a Administração Pública.
Perfil do serviço público federal
Embora o Brasil não tenha, historicamente, implementado de forma ampla um serviço público
orientado pelos princípios da meritocracia, e que as experiências de instituição de um serviço público
de raízes burocráticas segundo o tipo ideal descrito por Max Weber (1982, 1997) sejam mais recentes,
não se pode considerar que a Administração Pública Brasileira não respeite esses limites.
Em Weber, a burocracia está associada ao desenvolvimento moderno da função pública. Em “A
Política como Vocação” (1918) o sociólogo alemão (1982:108-109) considera que esse
desenvolvimento exigiria um grupo de trabalhadores intelectuais especializados, altamente qualificados
e preparados para o desempenho de sua tarefa profissional, animados por um sentimento de honra
estamental, em que se realça o sentimento de integridade, sem a qual até mesmo as funções puramente
técnicas do aparato estatal seriam postas em risco. A burocracia é a manifestação organizacional do
espírito racional.
Em “Economia e Sociedade” (1999a: 145-146), Weber afirma que a administração burocrática é, por
toda a parte, a forma mais racional de exercício da dominação, “porque nela se alcança tecnicamente o
máximo de rendimento em virtude de precisão, continuidade, disciplina, rigor e confiabilidade – isto é,
calculabilidade tanto para o senhor quanto para os demais interessados – intensidade e
extensibilidade dos serviços, e aplicabilidade formalmente universal a todas as espécies de tarefas”. O
seu crescimento e aplicação ao todas as formas de associação modernas em todas as áreas constitui “a
célula germinativa do moderno Estado ocidental”, sendo “pura e simplesmente inevitável para as
necessidades de administração de massas (de pessoas ou objetos)”. Assim, só existiria escolha possível
entre “burocracia” e “diletantização” da administração, e o grande instrumento de superioridade da
administração burocrática é o conhecimento profissional, o que leva a uma cada vez maior
especialização da burocracia em face do desenvolvimento econômico.
Entre as principais características da organização burocrática ideal descrita por Weber, está o princípio
da divisão do trabalho, lastreado nas qualificações dos responsáveis por cada papel. A divisão do
trabalho, assim como a especialização das funções, se faz, na burocracia, de maneira racional,
sistemática e coerente, e o exercício da autoridade é realizado em termos de cargos abstratamente
definidos e não de pessoas.
O pressuposto, para Weber, dessa instituição, é o recrutamento baseado no mérito, que atende,
sobretudo, ao princípio da eficiência, e a aferição das capacidades e qualificações, notadamente
mediante “provas”, se constitui em diferencial relevante em relação à administração patrimonial.
Assim, somente é legítima a investidura do servidor público – burocrata – quando seu mérito é
regularmente aferido, e, particularmente, no ingresso, por meio de procedimentos impessoais que
levem em conta, tão somente, as habilidades, conhecimentos e qualificações para o exercício da função.
Outros autores, como Evans, destacam a importância da implementação de uma burocracia
meritocrática para que o Estado supere a fase predatória, e a coerência corporativa que existe quando se
implementa essa burocracia dá ao Estado a capacidade de resistir às incursões por meio da mão
invisível, da maximização individual:
4
“Um recrutamento meritório altamente seletivo e uma carreira de longo prazo criam um compromisso
e um sentido de coerência corporativa. O agudo contraste entre o caráter weberiano do Estado
desenvolvimentista e o caráter pré-burocrático e patrimonial do Estão predatório reforma a
proposição de que a ineficiência pode ser atribuída mais à escassez do que ao excesso de burocracia”.
(Evans, 2004:92)
Assim, a existência desse corpo profissional, meritocrático e “insulado”, ou afastado das pressões de
ordem política, é necessária ao atendimento do interesse geral da sociedade, revertendo em ganhos para
todos, e não apenas para o próprio indivíduo.
Lastreada nesses princípios, a Constituição Federal de 1988, dando fecho ao período autoritário
iniciado em 1964, estabeleceu alguns princípios fundamentais a serem doravante observados, dotados
de algum grau de rigidez, para que não se verificasse o ocorrido nos períodos anteriores. Entre esses,
acham-se os incisos I, II e V do art. 37 da Carta Magna, que estabelecem:
“I - os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos
estabelecidos em lei, assim como aos estrangeiros, na forma da lei;
II - a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de
provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na
forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre
nomeação e exoneração;
V - as funções de confiança, exercidas exclusivamente por servidores ocupantes de cargo efetivo, e os
cargos em comissão, a serem preenchidos por servidores de carreira nos casos, condições e
percentuais mínimos previstos em lei, destinam-se apenas às atribuições de direção, chefia e
assessoramento;”
Não obstante, passados quase 24 anos da vigência da Constituição, o serviço público federal ainda é
marcado pela herança cultural e política de seu processo de constituição no período autoritário, e a
aderência ao sistema do mérito é, ainda, muito desigual, notadamente quando considerado o quadro
geral das diferentes esferas de governo e tipos institucionais.
Não se pode esquecer que o Governo Brasileiro, em 2002, implantou um Programa Nacional de Ações
Afirmativas que contempla, entre outras medidas administrativas e de gestão estratégica, respeitada a
legislação em vigor, as seguintes:
I - observância, pelos órgãos da Administração Pública Federal, de requisito que garanta a realização
de metas percentuais de participação de afrodescendentes, mulheres e pessoas portadoras de
deficiência no preenchimento de cargos em comissão do Grupo-Direção e Assessoramento Superiores
- DAS;
II - inclusão, nos termos de transferências negociadas de recursos celebradas pela Administração
Pública Federal, de cláusulas de adesão ao Programa;
III - observância, nas licitações promovidas por órgãos da Administração Pública Federal, de critério
adicional de pontuação, a ser utilizado para beneficiar fornecedores que comprovem a adoção de
políticas compatíveis com os objetivos do Programa; e
IV - inclusão, nas contratações de empresas prestadoras de serviços, bem como de técnicos e
consultores no âmbito de projetos desenvolvidos em parceria com organismos internacionais, de
dispositivo estabelecendo metas percentuais de participação de afrodescendentes, mulheres e pessoas
portadoras de deficiência.
5
O Decreto n. 4.228, de 2002, que instituiu esse Programa, ainda dispõe os seguintes princípios para sua
implementação:
I - propor a adoção de medidas administrativas e de gestão estratégica destinadas a implementar o
Programa;
II - apoiar e incentivar ações com vistas à execução do Programa;
III - propor diretrizes e procedimentos administrativos com vistas a garantir a adequada
implementação do Programa, sua incorporação aos regimentos internos dos órgãos integrantes da
estrutura organizacional da Administração Pública Federal e a conseqüente realização das metas
estabelecidas no inciso I do art. 2o;
IV - articular, com parceiros do Governo Federal, a formulação de propostas que promovam a
implementação de políticas de ação afirmativa;
V - estimular o desenvolvimento de ações de capacitação com foco nas medidas de promoção da
igualdade de oportunidades e de acesso à cidadania;
VI - promover a sensibilização dos servidores públicos para a necessidade de proteger os direitos
humanos e eliminar as desigualdades de gênero, raça e as que se vinculam às pessoas portadoras de
deficiência;
VII - articular ações e parcerias com empreendedores sociais e representantes dos movimentos de
afrodescendentes, de mulheres e de pessoas portadoras de deficiência;
VIII - sistematizar e avaliar os resultados alcançados pelo Programa e disponibilizá-los por
intermédio dos meios de comunicação; e
IX - promover, no âmbito interno, os instrumentos internacionais de que o Brasil seja parte sobre o
combate à discriminação e a promoção da igualdade.
Tal ação, no entanto, não pode ser considerada suficiente para provocar modificações consideráveis na
estrutura do serviço público federal brasileiro. No que diz respeito ao perfil da força de trabalho, esse
quadro se reflete nos quantitativos de servidores por gênero e faixa etária e nível de instrução (Tabela
1). Segundo o Censo 2010 do IBGE, apesar de corresponderem a 51% da população brasileira, somente
45,6% dos servidores públicos Federais do Poder Executivo são mulheres.
É preciso lembrar, porém, que a inserção tardia das mulheres no mercado de trabalho, à luz das regras
sociais que tratavam a mulher como cidadão de segunda classe, sequer dotado de todos os direitos civis
até recentemente. No Brasil, o direito de votar em eleições somente foi reconhecido às mulheres em
fevereiro de 1932, com o novo Código Eleitoral instituído por Getúlio Vargas, embora, ainda as
tratasse de forma diferenciada, ao caracterizar o voto feminino como facultativo.
Apenas em 1962, com a aprovação do Estatuto da Mulher Casada, foi abolido o conceito de
“incapacidade feminina”, consagrando-se o direito de a mulher exercer livremente uma profissão, o que
foi decisivo para o seu ingresso no mercado de trabalho e a conquista de espaços até então quase
exclusivos dos homens. No plano internacional, a Declaração Universal dos Direitos Humanos
reconheceu em 1993 os direitos das mulheres, no item 18 do Programa de Ação de Viena.
Outros dois instrumentos, adotados em 1979 (Convenção da ONU sobre a Eliminação de Todas as
Formas de Discriminação contra a Mulher, ratificada pelo Brasil em 1984) e 1994 (Convenção
Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (ratificada pelo Brasil em
1995) demonstram quão recente é o quadro institucional voltado a reconhecer os direitos das mulheres.
Ainda assim, não se percebe, no quadro atual da força de trabalho do Poder Executivo, situação
gravemente desvantajosa às mulheres: nada menos do que 45,9% dos cargos de nível superior são
ocupados por mulheres, o que demonstra o enorme avanço obtido em sua luta pela ocupação de
espaços no mundo do trabalho.
6
Mas esse quadro é bastante mais problemático quando se considera a presença das mulheres em cargos
de alta direção no Poder Executivo Federal. Apesar do enorme avanço da presença feminina na gestão
pública, as mulheres, no Brasil, ainda ocupam uma proporção de cargos bastante inferior à de países da
OCDE. No total de funções comissionadas e cargos em comissão, considerados todos os níveis
hierárquicos, segundo o Boletim Estatístico de Pessoal do Ministério do Planejamento, as mulheres
ocupam 43,95% do total de 87.171 cargos e funções. Mas, quando considerados apenas os cargos de
direção superior do Grupo-Direção e Assessoramento Superiores e de Natureza Especial (CNE), o
quadro muda significativamente.
Assim, como demonstra a Tabela 2, enquanto no total as mulheres ocupam 42,77% dos cargos de
direção e assessoramento superiores – não incluídos os cargos de Ministro de Estado – essa
participação se reduz para apenas 12,73% no segundo nível mais elevado da hierarquia, e para 21,96%
no terceiro nível hierárquico, onde estão concentradas as principais competências de formulação de
políticas e capacidade decisória em alto nível.
Segundo ao OCDE (2009), considerando apenas os cargos de nível DAS-5 e DAS-6, conforme dados
de 2009, apenas 21,9% das posições nesses níveis eram ocupadas por mulheres, enquanto, nos países
membros da Organização, verificavam-se taxas de até 37,7% (dados de 2005). Embora o número,
segundo ao OCDE, não seja elevado quando comparado ao de alguns países, ele vem aumentando
desde 2000, assim como tem aumentado a proporção de mulheres em cargos em comissão de níveis
imediatamente inferiores no mesmo período.
No plano ministerial, o quadro sofreu impacto direto da eleição, pela primeira vez na história do Brasil,
em 2010, de uma mulher para o cargo de Presidente da República, com 55,7 milhões de votos. Em seu
primeiro discurso como Presidenta eleita, Dilma Rousseff destacou a sua condição e afirmou:
"Eu gostaria muito que os pais e as mães das meninas pudessem olhar hoje nos olhos delas e dizer:
sim, a mulher pode. (...) Recebi de milhões de brasileiros e brasileiras talvez a missão mais importante
da minha vida, e esse fato, para além da minha pessoa, é uma demonstração do avanço democrático
do Brasil, porque pela primeira vez uma mulher presidirá o Brasil".4
Tal fato teve, como resultado imediato, não somente a afirmação da importância da presença feminina
na política e na administração, mas, também, a elevação do número de titulares de ministérios do sexo
feminino. Em abril de 2012, dez mulheres compunham o ministério, composto por 37 pastas com nível
ministerial. Entre elas, porém, figuram a Chefe da Casa Civil, a Ministra Chefe da Secretaria de
Relações Institucionais e a Ministra do Planejamento, Orçamento e Gestão, postos de extrema
relevância no Governo.
Do ponto de vista da composição etária, o serviço público federal ressente-se, ainda, da situação
constituída antes de 1988, e da ausência de uma política de recomposição da força de trabalho nas
décadas de 1990 e 2000. Assim, é significativa a proporção de pessoas com mais de 50 anos de idade
no quadro de pessoal do Poder Executivo, situação que vem se agravando, mas em menor intensidade
nos últimos três anos, como mostra o Gráfico 2.
Com efeito, a participação de servidores ativos com mais de 50 anos de idade passou de 21,8% em
2000 para 40,6% em 2011, e, considerada a faixa etária superior – servidores com mais de 56 anos de
idade, constata-se, segundo a tabela 1, que 20,19% dos servidores acham-se nessa condição. No Brasil,
a Constituição admite, em regra, a limitação de idade para o ingresso no serviço público civil. Trata-se
4
http://eleicoes.uol.com.br/2010/ultimas-noticias/2010/10/31/em-1-discurso-como-presidente-eleita-dilma-diz-sim-amulher-pode.jhtm
7
de um sistema aberto, em que o ingresso em cargo de carreira não se submete a um limite de idade,
podendo haver, mediante concurso público, o ingresso com praticamente qualquer idade, desde que o
candidato logre a aprovação no processo seletivo. Enquanto países como Reino Unido, França e outros
adotam regras que limitam o ingresso de candidatos com idade superior a, por exemplo, 24 ou 46 anos,
no Brasil, não é rara a aprovação de candidatos com idade superior a essa.
Nos termos da Constituição Federal, não se admite a discriminação por motivo de idade ou sexo para
admissão em empregos, vedação que também se aplica aos concursos públicos, dada a remissão
constante do art. 39, § 3º. A Constituição quis impedir que tais fatores fossem tomados, só por si, como
causas de discriminação, mas não é inconstitucional estabelecer limite de idade quando o concurso
destinar-se a determinados cargos ou empregos cujo desempenho requeira esforços físicos ou cause
desgastes incompatíveis com faixas etárias mais elevadas.
Tampouco o STF ou a doutrina entendem a vedação de fixar limite de idade como absoluta:
“A jurisprudência do STF firmou-se no sentido de que a norma constitucional que proíbe tratamento
normativo discriminatório, em razão da idade, para efeito de ingresso no serviço público, não se
reveste de caráter absoluto, sendo legítima, em conseqüência, a estipulação de ordem etária quando
esta decorrer da natureza e do conteúdo ocupacional do cargo público a ser provido” (Rec. em
Mandado de Segurança STF nº 21.045/94, Relator Min. Celso de Mello).
A Emenda Constitucional nº 19, de 1998, por sua vez, com o fim de afastar dúvidas quanto a essa
possibilidade, instituiu a previsão de que a lei poderá “estabelecer requisitos diferenciados de
admissão quando a natureza do cargo o exigir”.
Assim, do ponto de vista da gestão, é problemático o ingresso no serviço público, em certos casos, o
ingresso de indivíduos que terão pouco tempo de carreira pela frente, até adquirir o direito à
aposentadoria voluntária, ou até atingirem o limite de idade para aposentadoria compulsória (70 anos).
Tal fato impacta diretamente no planejamento da força de trabalho, e na própria gestão das carreiras e
seus processos de desenvolvimento, gerando, muitas vezes, tensionamentos entre as expectativas de
indivíduos que ingresso com idade elevada no serviço público, ou que passam a pertencer a carreiras
cuja média etária é inferior à sua e que, por força de sua expectativa, têm dificuldades em aceitar as
limitações temporais ao curso da carreira.
Com efeito, desse ponto de vista, o perfil da força de trabalho, sob o prisma etário, é um problema. A
maior parte dos países da OCDE enfrenta, hoje, situações de envelhecimento da força de trabalho, e os
impactos previdenciários têm levado inúmeros países a promover reformas com o fim de retardar as
aposentadorias ou reduzir os benefícios previdenciários dos servidores. O Gráfico 3 demonstra a
situação, em comparação com o Brasil, segundo dados de 2009.
Assim, não somente se nota uma elevação significativa do número de servidores com mais de 50 anos
de idade, como o fato de que apenas 6 países – Itália, Islândia, Suécia, Bélgica, Alemanha e Estados
Unidos – detinham numero de servidores nessa faixa etária superior à do Brasil. E, no caso brasileiro, a
situação é ainda mais crítica em 2012, quando 40,6% dos servidores já se encontram com mais de 50
anos.
Do ponto de vista da inclusão com base em critérios raciais, trata-se que merece abordagem cuidadosa,
dadas as próprias dificuldades conceituais do termo “raça”, bem como dos aspectos históricos
envolvidos. Aspecto a dificultar a análise é, também, a ausência de dados censitários ou amostrais
8
sobre a distribuição racial da população brasileira no serviço público, e, particularmente, a inexistência
de dados específicos sobre a administração pública federal.
No cômputo geral da população, segundo a Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios do IBGE,
em 2008 a população do Brasil alcançava cerca de 190 milhões de habitantes, com um crescimento
próximo a 20,0 % sobre o ano de 2008. Desse total, negros e pardos alcançavam 50,6% da população
total, enquanto os brancos seriam 48,4%. Note-se que, entre 1998 e 2008, ou seja, num intervalo de dez
anos, a proporção de brancos caiu de 54% para 48,4%, enquanto a proporção de pardos aumentou de
39,5 para 43,8% e a de negros, de 5,7 para 6,8¨%.
Tal crescimento, evidentemente, demonstra não o crescimento absoluto de indivíduos pardos ou
negros, mas uma modificação na postura de auto-reconhecimento: mais indivíduos audodeclararam-se
negros ou pardos, evidenciando maior consciência ou identidade racial do que em períodos anteriores.
O Censo de 20105, pela primeira vez, identifica a população negra ou parda como majoritária: do total
de 190,755 milhões de habitantes, nada menos do que 82,77 milhões se declararam pardos, e 14,57
milhões, negros.
Ainda segundo o IBGE 6, em março de 2009, segundo dados da Pesquisa Mensal de Emprego - PME, a
desigualdade em termos de inserção no mercado de trabalho de negros e pardos é um indicador da
situação dessa parcela da sociedade, que pode ser verificada através da taxa de desocupação. Para
negros e pardos, essa taxa era de 10,1%, superior à taxa de desocupação dos brancos (8,2%).
A desigualdade também se manifesta em termos de escolaridade: 5,5% das pessoas pretas ou pardas
com 10 a 17 anos de idade não frequentavam escola, enquanto para os brancos o percentual era de para
4,8%. Entre os que tinham acima de 18 anos) 10,0% frequentavam ou já frequentaram curso superior,
contra uma taxa de 28,7% para os brancos. Considerando as características de trabalho, por posição na
ocupação, a categoria de trabalhadores domésticos foi a que apresentou a maior participação de pretos
ou pardos (61,6%), e, na construção civil, pretos ou pardos correspondiam a 59,6% das pessoas
ocupadas. No tocante aos rendimentos habituais, pretos ou pardos recebiam em março de 2009, em
média, 51% do rendimento auferido pelos brancos.
No tocante à presença no serviço público, estudo do IBGE de 2006 apontava, genericamente, a
existência de uma proporção de 36,9% de brancos em atividades como educação, saúde, e serviços
sociais, administração pública e seguridade social, contra 35,2% de negros e pardos, sendo a
concentração ainda maior nos estados do centro-sul do país (Tabela 4). Tais elementos sugerem, com
efeito, a existência de uma sub-representação racial de negros e pardos, além de índios – que sequer são
considerados nas estatísticas oficiais - no quadro geral da força de trabalho do serviço público federal.
Finalmente, no tocante às pessoas com deficiência, a Constituição de 1988 previu, expressamente, no
art. 7º, inciso XXXI, a proibição de qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão
do trabalhador portador de deficiência. E, ademais, o art. 37, inciso VIII, determinou que “a lei
reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e
definirá os critérios de sua admissão”.
Tal disposição foi, inicialmente, regulamentada pela Lei nº 8.112, de 1990, que no seu art. 5º, previu
que “às pessoas portadoras de deficiência é assegurado o direito de se inscrever em concurso público
para provimento de cargo cujas atribuições sejam compatíveis com a deficiência de que são
5
6
http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/caracteristicas_da_populacao/resultados_do_universo.pdf
http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/indicadores/trabalhoerendimento/pme_nova/marco2009.pdf
9
portadoras; para tais pessoas serão reservadas até 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas no
concurso.”
Na prática, o índice tem sido fixado pelos respectivos editais de convocação, em média na proporção de
5% dos totais das vagas previstas para cada cargo ou emprego público. Dadas as dificuldades de
caracterização técnica quanto aos níveis de deficiência física capazes de justificar o acesso às vagas
reservadas, os órgãos recorrem a laudos periciais médicos ou atestados e exames clínicos que
comprove a deficiência física e atestem a espécie e o grau ou nível da deficiência. Em casos
específicos, como o de portadores de paralisia cerebral, há também visita domiciliar de junta médica
especializada, para aferir a capacidade de resposta desses eventuais candidatos.
Por força dessas dificuldades, inexistem dados consolidados relativos à proporção de pessoas com
deficiência no serviço público federal. No entanto, estudo realizado por Pagaine7 apurou que, em 73
concursos públicos entre os anos de 2005 e 2007, totalizando 3.046.162 candidatos, 14.595 (0,47%)
candidatos se declararam portadores de deficiência. Do total de inscritos, 44,60% eram do sexo
masculino, e o restante 55,40%, de mulheres. Todavia, entre os portadores de deficiência, a proporção
masculina era de 37,75%, revelando uma menor participação feminina de mulheres com deficiência
nos certames.
O estudo apontou que haveria, entre as pessoas com deficiência, a tendência a procurarem o acesso a
cargos e empregos públicos com idades superiores aos demais participantes, o que poderia estar
associado a fatores como problemas na trajetória escolar, ocorrência de formação escolar tardia,
egressos da EJA, desemprego em decorrência de preconceito no setor privado, etc.
Outro fator relevante apontado pelo Estudo foi a importância das cotas para o acesso aos cargos
públicos. Nos casos analisados, a classificação dos candidatos deficientes demonstrou que, sem elas,
mesmo alcançada a nota mínima exigida para aprovação – que é a mesma, independentemente da
condição do candidato - não haveria o acesso ao serviço público, ou essa possibilidade seria remota,
face ao número de vagas e candidatos por vaga: de fato, os candidatos selecionados pelas cotas têm
desempenho médio inferior aos selecionados pela seleção normal. Tal conclusão prevalece tanto para
cargos de nível superior quanto para cargos de nível intermediário, demonstrando a importância desse
mecanismo para a inclusão das pessoas com deficiência no serviço público.
Como destaca a OCDE (2009), o Brasil é estruturalmente um país heterogêneo, com desafios
importantes em matéria de igualdade de oportunidades entre as diversas minorias sociais. A maior parte
das dificuldades vem de diferenças nos níveis de renda, educação, nível socioeconômico e origens
(urbana, rural, popular ou aristocrática).
Políticas já vêm sendo, há muito, adotadas para mitigar essas desigualdades, mas os efeitos ainda não
se fazem notar com a devida intensidade no perfil da força de trabalho do Poder Executivo Federal, o
que permite inferir que, nos demais níveis de governo, a situação pode ser ainda mais prejudicial aos
grupos que demandam proteção e políticas públicas para a sua inclusão social e superação da
desigualdade.
7
Pagaime, Adriana. “Pessoas com deficiência: concursos públicos e cotas”. Estudos em Avaliação Educacional, Fundação
Carlos
Chagas,
São
Paulo,
v.
21,
n.
45,
p.
127-144,
jan./abr.
2010.
http://www.fcc.org.br/pesquisa/publicacoes/eae/arquivos/1559/1559.pdf
10
Aspectos constitucionais das políticas de ação afirmativa
A Constituição Federal já prevê, expressamente, no seu art. 37, VIII, a adoção de políticas de ação
afirmativa para as pessoas com deficiência, na medida que determina que a lei reserve percentual dos
cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua
admissão. Tal postulado, porém, não é assegurador da pura e simples investidura em cargo público,
dispensando a comprovação dos requisitos de qualificação para o exercício do cargo, nem assegura
direito ao cargo pela simples posse da condição de deficiência.
Quanto a esse aspecto, o Poder Judiciário já vem consolidando entendimento que compatibiliza a
adoção de ações afirmativas com os demais princípios constitucionais que visam assegurar tanto a
moralidade do provimento dos cargos públicos, quanto o atendimento ao princípio da eficiência. E de
se destacar o seguinte julgado do Superior Tribunal de Justiça:
"RECURSO ORDINÁRIO EM MS Nº 18.669 - RJ (2004/0104990-3)
RELATOR: MINISTRO GILSON DIPP
RECORRENTE: FERNANDO MONNERAT MOTTA
ADVOGADO: TEREZINHA DE JESUS MACEDO MOTTA E OUTRO
T.ORIGEM: TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 2ª REGIÃO
IMPETRANTE:
DESEMBARGADOR
PRESIDENTE
DO
TRIBUNAL
REGIONAL FEDERAL DA 2ª REGIÃO
RECORRIDO: UNIÃO
EMENTA:ADMINISTRATIVO - CONCURSO PÚBLICO – ANALISTA JUDICIÁRIO ESPECIALIDADE ODONTOLOGIA – CANDIDATO DEFICIENTE - PRETERIÇÃO - OCORRÊNCIA
- INOBSERVÂNCIA DO ART. 37, § 2º DO DECRETO Nº 3.298/99 – RELATIVIZAÇÃO DO
PRINCÍPIO DA ISONOMIA - ALTERNÂNCIA ENTRE UM CANDIDATO DEFICIENTE E OUTRO
NÃO, ATÉ QUE SE ATINJA O LIMITE DE VAGAS PARA OS PORTADORES DE DEFICIÊNCIA
ESTABELECIDO NO EDITAL - RECURSO CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO.
I - A Constituição Federal, em seu art. 37, inciso VIII assegura aos portadores de deficiência física a
reserva de percentual dos cargos e empregos públicos. A Administração regula a situação através da
Lei nº 8.112/90 e do Decreto nº 3.298/99, estabelecendo que serão reservadas até 20% (vinte por
cento) das vagas oferecidas no concurso, bem como que o número de vagas correspondente à reserva
destinada à pessoa portadora de deficiência deve estar inserta no Edital, respectivamente.
II - Estatui o brocardo jurídico: "o edital é a lei do concurso". Desta forma, estabelece-se um vínculo
entre a Administração e os candidatos, igualmente ao descrito na Lei de Licitações Públicas, já que o
escopo principal do certame é propiciar a toda coletividade igualdade de condições no ingresso ao
serviço público. Pactuam-se, assim, normas preexistentes entre os dois sujeitos da relação editalícia.
De um lado, a Administração. De outro, os candidatos. Com isso, é defeso a qualquer candidato
vindicar direito alusivo à quebra das condutas lineares, universais e imparciais adotadas no certame.
III - O candidato portador de deficiência física concorre em condições de igualdade com os demais
não-portadores, na medida das suas desigualdades. Caso contrário, a garantia de reserva de vagas
nos concursos para provimento de cargos públicos aos candidatos deficientes não teria razão de ser.
IV - No caso dos autos, o impetrante, primeiro colocado entre os deficientes físicos, deve ocupar uma
das vagas ofertadas ao cargo de Analista Judiciário - especialidade Odontologia, para que seja
11
efetivada a vontade insculpida no art. 37, § 2º do Decreto nº 3.298/99. Entenda-se que não se pode
considerar que as primeiras vagas se destinam a candidatos não-deficientes e apenas as eventuais ou
últimas a candidatos deficientes. Ao contrário, o que deve ser feito é a nomeação alternada de um e
outro, até que seja alcançado o percentual limítrofe de vagas oferecidas pelo Edital a esses últimos.
V - O tratamento relativamente diferenciado, ou por outro lado, a "preferência" que se dá aos
deficientes físicos foi o modo que encontrou o legislador constituinte de minorar o déficit de que são
acometidos. A convocação da candidata deficiente para participar do Curso de Formação, ao invés do
impetrante, consiste na obediência às normas que regem a situação.
VI - Recurso conhecido e provido. Documento: 504417 - Inteiro Teor do Acórdão - Site Certificado DJ: 29/11/2004 Página 1 de 13."
Já no que tange às demais desigualdades, há sérias controvérsias a respeito de sua possibilidade
jurídica. Com efeito, o art. 37, II ao exigir o concurso público para ingresso em cargo efetivo ou
emprego permanente, não está acompanhado de igual dispositivo constitucional estabelecendo exceção
que permita a adoção de ações afirmativas que permitam facilitar, mediante o estabelecimento de cotas,
o ingresso de mulheres,idosos ou representantes de minorias étnicas.
Com efeito, o que se tem por inconstitucional, em decorrência do mesmo princípio, é a vedação da
discriminação negativa, ou seja, a fixação de limites de idade para ingresso no serviço público,
ressalvados os casos em que a idade a partir de certo patamar seja incompatível com o próprio
exercício do cargo, como em algumas carreiras na Segurança Pública. Da mesma forma, não se admite
a vedação de que candidata do sexo feminino participe de concurso, exceto se a condição para
exercício da função seja expressamente incompatível com o gênero, por requisito de força física, por
exemplo.
Ora, vedada a fixação de critério que impeça a participação de indivíduo idoso, desde que capacitado,
também é incompatível com a regra constitucional a reserva de vaga que privilegie o indivíduo em
função da idade, cabendo ao edital, todavia, em certos casos, fixar requisitos de qualificação que,
eventualmente, podem favorecer ao mais idoso, como a exigência de títulos tais como anos de
experiência profissional em determinada atividade.
No tocante ao sexo, se não é permitido fixar cotas por gênero para acesso à carreiras públicas mediante
concurso público de ampla concorrência, nada impede que o acesso aos cargos em comissão ou funções
de confiança, de livre nomeação e exoneração, sejam direcionados para que determinada proporção
venha a ser atingida, desde que, como critério geral, o ocupante detenha as qualificações para o
exercício do cargo.
No tocante à fixação de cotas raciais, o debate é bem mais intenso e complexo. A adoção de ações
afirmativas baseadas em critério racial remonta à década de 1960, quando os Estados Unidos da
América introduziram esse mecanismo no contexto de políticas governamentais que buscavam a
superação do preconceito e da desigualdade racial, de que são exemplos a segregação racial e a
doutrina “separados mas iguais”, superada no plano constitucional apenas a partir da decisão da
Suprema Corte no caso Brown v. Board of Education. Tal doutrina justificou, por longo período, a
segregação racial naquele país até a histórica decisão conduzida em 1954 pelo Justice James Warren ,
quando a Suprema Corte, motivada pelo inconformismo de pequenos grupos de cidadãos e que se
viabilizou como questão nacional a partir da atuação de um grupo de interesses, moldou a política
12
pública ao considerar inconstitucionais leis estaduais que davam suporte legal à segregação racial,
dando um novo fôlego às lutas dos movimentos pelos direitos civis dos negros nos Estados Unidos.
Para tanto, foi decisiva a participação da National Association for the Advancement of Colored People
(NAACP), mais antiga organização não-governamental dos Estados Unidos de defesa de direitos civis
ainda em atividade, que atua como grupo de pressão voltado à defesa dos interesses e direitos da
população afro-americana, e de seus advogados, entre eles o futuro Justice Thurgood Marshall,
primeiro afro-descendente a integrar a Suprema Corte naquele país.
O histórico brasileiro é, sem dúvida, distinto, ainda que a tese da “democracia racial” venha sendo,
desde os anos 1990, desconstruída em nosso país, a partir da realização de estudos que procuram
demonstrar que, com efeito, a população negra sofreu, até recentemente, os efeitos de medidas
discriminatórias e a restrição de acesso a direitos, de que resultam os graves índices de pobreza,
marginalização e preconceito ainda hoje existentes.
Segundo Vieira Jr. (2005),
“estudos e pesquisas têm demonstrado, especialmente a partir da análise da legislação imperial
brasileira compreendida no período de 1822 a 1851, que o Estado brasileiro, além de patrocinar a
escravidão por motivos econômicos, políticos, sociais e culturais, promoveu seu aprofundamento e sua
institucionalização por intermédio de atos oficiais que conformaram um sistema de restrições aos
direitos fundamentais dos negros e de sua preterição em benefício de outros segmentos sociais”.
Ademais, aponta Vieira Jr. , ocorreu, até a década de 1930, uma tentativa de “branqueamento” da
sociedade brasileira, materializada na negação dos direitos aos negros, libertos ou nascidos livres e na
tentativa de redução da proporção de negros na população total brasileira, por meio de incentivos à
imigração europeia e da restrição à imigração de negros e asiáticos.
E, apesar das inúmeras leis de conteúdo antirracista na história republicana, apenas em 1989 as práticas
discriminatórias e racistas foram criminalizadas pela Lei nº 7.716, de 1989 – conhecida como Lei Caó,
que regulamentou o inciso XLII do art. 5º 8 da Constituição Federal de 1988, tendo sido, até então, sido
tais condutas tratadas com menor rigor pelo Estado.
Tal quadro estaria a justificar a adoção de ações afirmativas. Segundo Vieira Jr.
“Na verdade, não há como isolar os fundamentos para a adoção de ações afirmativas, bem como os
efeitos decorrentes de sua adoção. Quando ações afirmativas são adotadas promove-se, de certa
forma, a igualdade substantiva, mitigam-se as desigualdades na apropriação de bens fundadas em
bases raciais, projeta-se positivamente a imagem dos negros, reparam-se os danos causados pela
escravidão e por eventuais sistemas segregacionistas posteriores.”
Para Vieira Jr.,
“a adoção de ações afirmativas por parte do Estado como forma de reparação dos danos que
persistem desde a escravidão e ainda hoje são constatáveis tem a vantagem adicional de contribuir
para a conformação de uma sociedade multicultural e pluriétnica”. E, ainda, “a adoção de ações
afirmativas pelo Estado, além de reparar danos atuais e prestar contas com a história, promove a
8
XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei;
13
inclusão, a integração e o convívio de diferentes; é, por sua vez, um claro compromisso do Estado com
a conformação de uma sociedade diversificada e plural.”
A polêmica sobre a adoção de cotas no Brasil como instrumento de ação afirmativa foi recentemente
abordada pelo Supremo Tribunal Federal, ao apreciar Ação de Descumprimento de Preceito
Fundamental – ADPF, ajuizada pelo Partido Democratas – DEM, contra atos da Universidade de
Brasília e outras instituições públicas de ensino superior que instituíram cotas raciais para acesso ás
vagas nos cursos superiores.
Em abril de 2012, o STF julgou improcedente pedido formulado Partido Democratas – DEM contra a
instituição de sistema de reserva de 20% de vagas no processo de seleção para ingresso de estudantes,
com base em critério étnico-racial.
Ao apreciar a ação, o STF9 examinou o princípio constitucional da igualdade em seu duplo aspecto:
formal e material. Rememorou-se o art. 5º, caput, da CF, segundo o qual ao Estado não seria dado fazer
qualquer distinção entre aqueles que se encontrariam sob seu abrigo. Frisou-se, entretanto, que o
legislador constituinte não se restringira apenas a proclamar solenemente a igualdade de todos diante da
lei, mas teria buscado emprestar a máxima concreção ao princípio para assegurar a igualdade material a
todos os brasileiros e estrangeiros que viveriam no país, consideradas as diferenças existentes por
motivos naturais, culturais, econômicos, sociais ou até mesmo acidentais.
Assim, conforme o voto do Relator, Ministro Ricardo Lewandowsky, para efetivar a igualdade
material, o Estado poderia lançar mão de políticas de cunho universalista mediante ações de natureza
estrutural; ou de ações afirmativas, voltadas a atingir grupos sociais determinados, por meio da
atribuição de certas vantagens, por tempo limitado, para permitir a suplantação de desigualdades
ocasionadas por situações históricas particulares. Para o STF, a adoção de políticas que levariam ao
afastamento de perspectiva meramente formal do princípio da isonomia integraria o cerne do conceito
de democracia, levando a uma superação, ainda que transitória, de concepção estratificada da
igualdade.
Considerou a Suprema Corte brasileira, porém, que esse desiderato somente seria alcançado por meio
da denominada “justiça distributiva”, que permitiria a superação das desigualdades no mundo dos fatos,
por meio de intervenção estatal que realocasse bens e oportunidades existentes na sociedade em
benefício de todos, e que o modelo constitucional pátrio incorporara diversos mecanismos
institucionais para corrigir distorções resultantes da incidência meramente formal do princípio da
igualdade. A adoção de ações afirmativas “consistiria em técnica de distribuição de justiça, com o
objetivo de promover a inclusão social de grupos excluídos, especialmente daqueles que,
historicamente, teriam sido compelidos a viver na periferia da sociedade”.
Esse conceito, segundo o voto do Relator, incluiria medidas especiais e concretas para assegurar o
desenvolvimento ou a proteção de certos grupos, com o fito de garantir-lhes, em condições de
igualdade, o pleno exercício dos direitos do homem e das liberdades fundamentais. Entre elas, incluirse-iam diversas modalidades empregadas em vários países tais como a) a consideração do critério de
raça, gênero ou outro aspecto a caracterizar certo grupo minoritário para promover sua integração
social; b) o afastamento de requisitos de antiguidade para a permanência ou promoção de membros de
categorias socialmente dominantes em determinados ambientes profissionais; c) a definição de distritos
eleitorais para o fortalecimento de minorias; e d) o estabelecimento de cotas ou a reserva de vagas para
integrantes de setores marginalizados.
9
STF. ADPF 186/DF, rel. Min. Ricardo Lewandowski, 25 e 26.4.2012. (ADPF-186)
14
O acesso em condições diferenciadas ao ensino superior não seria, assim, contrário ao princípio da
igualdade de acesso e permanência na escola, previsto no inciso I do art. 206 da Constituição Federal,
permitindo-se que o mérito dos concorrentes que se encontrariam em situação de desvantagem com
relação a outros, em virtude de suas condições sociais, seja aferido segundo ótica não puramente linear.
Tais políticas não poderiam ser examinadas apenas sob o enfoque de sua compatibilidade com
determinados preceitos constitucionais, isoladamente considerados, ou a partir da eventual vantagem de
certos critérios sobre outros, mas, sim, à luz do arcabouço principiológico sobre o qual se assentaria o
Estado, desconsiderados interesses contingenciais.
Nesse sentido, entendeu o Relator que critérios objetivos de seleção, empregados de forma estratificada
em sociedades tradicionalmente marcadas por desigualdades interpessoais profundas, acabariam por
consolidar ou acirrar distorções existentes, perpetuando a inacessibilidade dos grupos marginalizados
aos de poder político e social. Por isso, o acesso às universidades públicas deveria ser ponderado com
os fins do Estado Democrático de Direito, considerando-se ainda que as aptidões dos candidatos
deveriam ser aferidas de maneira a conjugar-se seu conhecimento técnico e sua criatividade intelectual
ou artística com a capacidade potencial que ostentariam para intervir nos problemas sociais.
Para tanto, seria legítima a consideração de critérios étnico-raciais ou socioeconômicos, para assegurar
que a comunidade acadêmica e a sociedade fossem beneficiadas pelo pluralismo de ideias, um dos
fundamentos do Estado brasileiro (CF, art. 1º, V). O voto do Relator abordou, ainda, o fato de que em
sociedades contemporâneas que passaram pela experiência da escravidão, repressão e preconceito,
ensejadora de percepção depreciativa de raça com relação aos grupos tradicionalmente subjugados, a
garantia jurídica de igualdade formal sublimaria as diferenças entre as pessoas, de modo a perpetrar as
desigualdades de fato existentes. O reduzido número de negros e pardos detentores de cargos ou
funções de relevo na sociedade resultaria da discriminação histórica que as sucessivas gerações dos
pertencentes a esses grupos teriam sofrido, ainda que de forma implícita.
Assim, os programas de ação afirmativa seriam forma de compensar essa discriminação culturalmente
arraigada, que teriam, ainda, como resultado, a criação de lideranças entre os grupos discriminados,
capazes de lutar pela defesa de seus direitos, além de servirem como paradigmas de integração e
ascensão social. Discorreu o voto do Relator, ainda, sobre o papel integrador da universidade e os
benefícios das ações afirmativas, que atingiriam não apenas o estudante que ingressara no sistema por
intermédio das reservas de vagas, como também todo o meio acadêmico, dada a oportunidade de
conviver com o diferente. Considerou, ainda, que que as políticas de ação afirmativa não configurariam
meras concessões do Estado, mas deveres extraídos dos princípios constitucionais. Assim, as cotas
encontrariam amparo na Constituição.
No entanto, tais programas de ação afirmativa deveriam ter natureza transitória, e, na medida em as
distorções históricas fossem corrigidas, não haveria razão para a subsistência dos programas de
ingresso nas universidades públicas. Caso contrário, poderiam converter-se em benesses permanentes,
em detrimento da coletividade e da democracia.
Em seu voto, o Min. Luiz Fux acresceu que a política das cotas atenderia, à saciedade, o princípio da
proporcionalidade, na medida em que erigiria a classificação racial benigna, a qual não se compararia
com discriminações, destacando a existência no ordenamento jurídido de normas diversas voltadas à
promoção da igualdade racial, tais como a Lei 10.558/2002, que estatui o Programa de Diversidade na
Universidade, ao definir como objetivo implementar e avaliar estratégias para promoção do acesso ao
ensino superior; a Lei 10.678/2003, que cria a Secretaria Especial de Políticas de Promoção de
15
Igualdade Racial; e) a Lei 12.288/2010, que institui o Estatuto da Igualdade Racial, ao estipular que, no
âmbito do direito à educação, a população afrodescendente deverá receber do Poder Público programas
de ação afirmativa; e, ainda, a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação Racial, de 1969, internalizada no ordenamento pátrio pelo Decreto 65.810/69.
O Min Joaquim Barbosa, em seu voto, destacou que as ações afirmativas definir-se-iam como políticas
públicas voltadas à concretização do princípio da igualdade material e da neutralização dos efeitos
perversos da discriminação racial, de gênero, de idade, de origem nacional e de compleição física.
Afirmou, ainda, que as ações afirmativas constituiriam a mais eloquente manifestação da ideia de
Estado diligente, daquele que tomaria iniciativa, que não acreditaria na força invisível do mercado, as
quais objetivariam robustecer o desenvolvimento econômico do país, à proporção que a universalização
do acesso à educação e ao mercado econômico teria, como consequência inexorável, o crescimento
macroeconômico, a ampliação generalizada dos negócios, ou seja, o crescimento do país como um
todo.
O Min. Cezar Peluso frisou o dever ético e jurídico de o Estado e a sociedade promoverem a
solidariedade e o bem de todos sem preconceito racial e erradicarem a marginalização. A política de
ação afirmativa em questão seria experimento realizado pelo Estado, cujo sucesso poderia, ao longo do
tempo, ser controlado e aperfeiçoado. No tocante à questão do mérito pessoal, afirmou que essa
alegação ignoraria os obstáculos historicamente opostos aos esforços dos grupos marginalizados e cuja
superação não dependeria das vítimas da marginalização, mas de terceiros. Nesse sentido, o
merecimento seria critério justo, porém apenas em relação aos candidatos que tivessem oportunidades
idênticas ou assemelhadas. Em relação ao suposto incentivo ao racismo que as cotas proporcionariam,
lembrou que a experiência, até o momento, demonstraria a inocorrência desse fenômeno ou a sua
manifestação em escala irrelevante.
Da mesma forma, o Min. Marco Aurélio entendeu harmônica com a Constituição e com os direitos
fundamentais nela previstos a adoção temporária e proporcional do sistema de cotas para ingresso em
universidades públicas, considerados brancos e negros. Declarou que a prática das ações afirmativas
pelas universidades públicas brasileiras denotaria possibilidade latente nos princípios e regras
constitucionais aplicáveis à matéria. Para o Ministro, o art. 208, V10, da CF deveria ser interpretado de
modo harmônico com os demais preceitos constitucionais, de sorte que a cláusula “segundo a
capacidade de cada um” somente poderia referir-se à igualdade plena, tendo em vista a vida pregressa e
as oportunidades que a sociedade oferecera às pessoas. Ressaltou que a meritocracia sem “igualdade de
pontos de partida” seria apenas forma velada de aristocracia.
Finalmente, o Min. Celso de Mello considerou que a adoção de tais cotas seria harmônica com o texto
constitucional e com os compromissos assumidos pelo Brasil na esfera internacional, a exemplo da
Conferência de Durban; da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação Racial; da Declaração Universal dos Direitos da Pessoa Humana; dos Pactos
Internacionais sobre os Direitos Civis, Políticos Econômicos, Sociais e Culturais; da Declaração e do
Programa da Ação de Viena.
A extrapolação dessa discussão para a instituição de cotas para ingresso no serviço público, em
concursos públicos, no entanto, não pode ser feita de imediato. Ainda que presentes, em tese, os
mesmos fundamentos sociais e de mérito que fundamentam a ação afirmativa por meio de cotas para o
acesso ao ensino superior, a investidura em cargo público submete-se a norma que, em nosso
10
V - acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um;
16
entendimento, tem conteúdo mais restritivo e limitador da liberdade tanto do legislador quanto do
administrador.
Não se desconhece o fato de que, no Estado do Rio de Janeiro, foi instituiu, em 2011, por meio de
Decreto do Chefe do Poder Executivo, reserva de 20% das vagas em concursos públicos do estado do
Rio a candidatos que se autodeclararem negros ou indígenas. Também os estados do Paraná e do Mato
Grosso do Sul adotaram sistema de reservas de vagas com critério racial.
A Câmara Municipal de Contagem em Minas Gerais aprovou, ainda em 2004, lei municipal dispondo
sobre a reserva de 12% das vagas oferecidas em concursos públicos efetuados pelo Poder Público
Municipal.
Ademais, na prefeitura do Rio de Janeiro, a Lei nº 4.978, de 09 de dezembro de 2008, estabelece como
estratégia de combate ao racismo e de incentivo às ações afirmativas para afro-descendentes a reserva
de 20% das vagas de cargos em comissão e estágios em órgãos da Administração Direta e Indireta da
Prefeitura do Rio de Janeiro sendo 10% das vagas reservadas para homens e dez por cento para
mulheres. Tampouco, porém, se desconhece o fato de que o Tribunal de Justiça do Espírito Santo
declarou a inconstitucionalidade da lei do município de Vitória que estabelece reserva de 30% das
vagas em concursos públicos para afrodescendentes.
A mesma Lei 4.978, do Rio de Janeiro, foi julgada parcialmente inconstitucional pelo Órgão Especial
do Tribunal de Justiça. Foram declarados inconstitucionais somente os artigos 3º, 5º e 6º da lei que
dispõem, respectivamente, sobre a reserva de, no mínimo, 20% das vagas dos cargos em comissão nos
órgãos da Administração Direta e Indireta da Prefeitura Municipal do Rio para afro-descendentes,
sendo 10% para homens e 10% para mulheres; sobre as atribuições legais do Conselho Municipal de
Defesa dos Direitos do Negro (CONDEDINE); e sobre as despesas da execução da lei. Há, assim, um
grau de incerteza considerável, a respeito da validade de cotas para ingresso no serviço público, como
medida de ação afirmativa.
Mais do que a própria fixação de reserva de vagas em concursos de âmbito nacional, a serem providas
mediante a) aprovação em concurso público; e b) classificação obtida em número de vagas
especificamente reservadas para indivíduos afrodescendentes ou indígenas; e c) aferição dessa
condição, mediante autodeclaração ou meio idôneo para a sua verificação, esbarra o sistema na
eventual ruptura ao princípio da igualdade de acesso a todos os cidadãos aos cargos públicos e, ainda,
na necessidade de adoção de critério de razoabilidade que justifique essa medida.
Assim, por exemplo, seria necessário estabelecer um critério para a “temporalidade” da adoção da ação
afirmativa, mas qual seria ele? A fixação de um quantitativo que refletisse a proporção de negros,
pardos e índios na composição demográfica brasileira, até que se atingisse o percentual necessário para
isso?
Vale destacar, aqui, o entendimento de Maurício Pereira da Silva 11, em Dissertação de Mestrado
apresentada em 2003:
11
Maurício Pereira da Silva. O ACESSO AO SERVIÇO PÚBLICO POR CRITÉRIO RACIAL. Um Estudo sobre Ação
Afirmativa, Justiça, Igualdade e Mérito no Direito Brasileiro. DISSERTAÇÃO DE MESTRADO. CURSO DE DIREITO.
Programa de Pós–Graduação em Direito Econômico e Social. Pontifícia Universidade Católica do Paraná-PUCPR. Curitiba,
Agosto de 2003
17
“Daí se impor outra conclusão: sob pena de excesso legislativo, censurável por ofensa ao princípio da
proporcionalidade, nenhuma ação afirmativa de inclusão de grupos socialmente desprestigiados, tais
como os discriminados pela cor da pele, poderá se estender no tempo mais do que o necessário para
que os seus objetivos sejam (razoavelmente) alcançados, o que exigirá o estabelecimento de um termo
ad quem para a vigência dessas políticas. Disso parece ter-se ocupado o legislador, até o presente
momento. Uma crítica por ofensa à razoabilidade ou proporcionalidade pode ser dirigida a
programas de quotas raciais que as estabeleçam em percentual além de um parâmetro razoável —
que em absoluto deve corresponder do que representada a fração social prestigiada, porque não se
trata de representação —, já que aí poderá estar sendo vulnerado o princípio da própria igualdade
formal e o mérito, que a Constituição preserva como consectário daquele. Uma regra de moderação
se impõe aí, apesar do entusiasmo com que se lançam legisladores bem intencionados, para não impor
um sacrifício desnecessário ao princípio da Igualdade, que se quer prestigiar.”
A experiência estadunidense, paradigma para essa discussão, revela que, antes de reconhecer a
obrigatoriedade ou compulsoriedade das políticas de ação afirmativa, o que ocorreu foi o
reconhecimento de sua possibilidade.
Nos casos Grutter v. Bollinger e Gratz v. Bollinger, objeto de apreciação da Suprema Corte em 23 de
junho de 2003, a Corte considerou constitucional, por cinco votos a quatro, a adoção de cotas raciais
pela Universidade de Michigan, sob o argumento de que a Universidade tinha interesse em assegurar a
diversidade étnica e racial em seu corpo de alunos. Esse interesse seria suficiente para justificar a
adoção das cotas, na medida em que apenas quando o corpo estudantil contém uma “massa crítica” a
minoria estudantil pode expressar-se livremente sem o temor de ser esterotipada; uma massa crítica de
estudantes membros dessa minoria é crucial para o fim dos estereótipos, e para que essa minoria possa
assumir um papel de liderança na vida pública de forma equilibrada com os demais grupos majoritários
na sociedade.
O interesse social na diversidade, assim, seria o fator determinante das ações afirmativas mencionadas,
num contexto em que a discriminação racial permeou até recentemente a vida pública e privada do
país. No Brasil, porém, altamente miscigenado, e sem tal cultura explícita de discriminação, e à luz dos
princípios constitucionais e da igualdade de acesso por eles assegurada aos cargos e empregos públicos,
medidas distintas da adoção de cotas – quer para mulheres, quer para negros, pardos e índios – parecem
melhor atender ao interesse público, sem prejuízo aos demais princípios constitucionais.
Medidas em curso e suas limitações
O sistema político e administrativo brasileiro vem buscando dar, ao tema da inclusão e da diversidade,
tratamento consistente. Relativamente à inclusão no mercado de trabalho, o Decreto nº 914, de 6 de
setembro de 1993, no Capítulo III, artigo 5º, aponta as Diretrizes da Política Nacional para a Integração
da Pessoa Portadora de Deficiência (Brasil, 1993). Em 25 de agosto de 2009, foi promulgada pelo
Decreto nº 6.949, de 2009, a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e
seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007, que prevê, em seu art.
29, relativo à participação das pessoas com deficiência na vida política e pública, que
“Os Estados Partes garantirão às pessoas com deficiência direitos políticos e oportunidade de exercêlos em condições de igualdade com as demais pessoas, e deverão:
a) Assegurar que as pessoas com deficiência possam participar efetiva e plenamente na vida política e
pública, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, diretamente ou por meio de
18
representantes livremente escolhidos, incluindo o direito e a oportunidade de votarem e serem
votadas, mediante, entre outros:
(...)
ii) Proteção do direito das pessoas com deficiência ao voto secreto em eleições e plebiscitos, sem
intimidação, e a candidatar-se nas eleições, efetivamente ocupar cargos eletivos e desempenhar
quaisquer funções públicas em todos os níveis de governo, usando novas tecnologias assistivas,
quando apropriado;”
Trata-se da primeira Convenção promulgada pelo Brasil com efeito de emenda á Constituição Federal.
Não obstante, o Congresso Nacional bem debatendo medidas complementares, de que é exemplo a
aprovação pela Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados, em março de
2012, do Projeto de Lei 5218/09, do deputado Paulo Pimenta (PT-RS), que define em 15% o percentual
dos cargos ou empregos públicos a serem providos, em cada concurso, por candidatos com deficiência.
Embora prevesse, inicialmente, o mínimo de 5%, o relator, Deputado Eduardo Barbosa (PSDB-MG),
propôs a fixação do percentual em 15%, tomando com base dado do IBGE, que indicaria que as
pessoas com deficiência representam 14,5% da população brasileira, de acordo com dados do Censo de
2000. O projeto ainda prevê que as nomeações para os cargos e empregos previstos no edital serão
feitas com fiel observância da proporção de vagas reservadas para candidatos com deficiência.
Segundo a OCDE (2009), além do desempenho, foco no cliente e eficiência, promover a diversidade no
serviço público é outro valor que chama a atenção. Destaca a entidade que, de fato, o Brasil não tem
uma história de discriminação legal com base na raça ou etnia, mas tem sérias dificuldades em termos
de equidade no acesso à riqueza e educação. Tal fato, descaca a OCDE, conduziu a uma falta da
diversidade social no serviço público, bem como a desequilíbrios de gênero no acesso a cargos e a
dificuldades de acesso de pessoas deficientes.
Para a entidade, o governo federal tem uma responsabilidade especial na área da diversidade social e
deve liderar o processo, mas a sua atual política de diversidade parece fraca comparada com o de
muitos países membros da OCDE. Assim, o governo precisaria “salientar que a diversidade social é
importante não apenas para fins de capital, mas também para promover a eficiência e eficácia. Ele
também precisa deixar claro que o mérito de absorção, tal como atualmente definido por
conhecimentos básicos e habilidades acadêmicas, enquanto promove a igualdade de acesso aos serviços
públicos, não significa, necessariamente, a equidade e menos ainda a promoção da diversidade.
Embora, afirma a OCDE, as políticas de cotas não sejam possíveis no Brasil por razões constitucionais,
“financiar o treinamento para a participação nos concursos públicos de grupos minoritários, rever os
preconceitos culturais nos exames e promover diferentes conjuntos de habilidades nos exames poderia
ajudar a promover a diversidade. Programas de aconselhamento profissional e tutoria, planejamento do
plano de carreira e o desenvolvimento e oferta de qualificações para categorias minoritárias poderiam
ajudar na gestão pós-absorção da diversidade”.
Consideramos tal proposta não somente viável, mas mais adequada ao contexto brasileiro. E, com
efeito, medidas nessa direção vem sendo adotadas. Desde 2002, o Ministério das Relações Exteriores
adota medidas nessa direção para ampliar a representação afrodescendente no serviço exterior
brasileiro. Por meio do Concurso do Programa de Ação Afirmativa do Instituto Rio Branco, que forma
a diplomacia brasileira, lançado em 2002, o Programa de Ação Afirmativa do Instituto Rio Branco –
Bolsa Prêmio de Vocação para a Diplomacia visa proporcionar maior igualdade de oportunidades de
acesso à carreira de diplomata e de acentuar a diversidade étnica nos quadros do Itamaraty.
19
Essa iniciativa procura investir na capacitação de candidatos afrodescendentes à carreira de diplomata,
por meio de concessão de bolsas de estudos, com duração de dez meses, destinadas a custear cursos e
aulas preparatórios ao Concurso de Admissão à Carreira de Diplomata, além da aquisição de livros e
material didático. A iniciativa e promovida em parceria com o CNPq (Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e com a participação da Secretaria Especial dos Direitos
Humanos, da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial e da Fundação Cultural
Palmares. Em 2012, o programa completou dez anos de existência, sendo executado anualmente, tendo
como negros e pardos, segundo nomenclatura do IBGE, que tenham-se graduado em qualquer curso
superior reconhecido pelo MEC, ou que, na prática, ainda faltem cursar os três últimos semestres.
Também em 2002, foi instituído, pelo Decreto nº 4,228, de 13 de maio, no âmbito da Administração
Pública Federal, o Programa Nacional de Ações Afirmativas, voltado a contemplar, medidas
administrativas e de gestão estratégica, destinadas a propiciar a observância, pelos órgãos da
Administração Pública Federal, de requisito que garanta a realização de metas percentuais de
participação de afrodescendentes, mulheres e pessoas portadoras de deficiência no preenchimento de
cargos em comissão do Grupo-Direção e Assessoramento Superiores – DAS, a observância, nas
licitações promovidas por órgãos da Administração Pública Federal, de critério adicional de pontuação,
a ser utilizado para beneficiar fornecedores que comprovem a adoção de políticas compatíveis com os
objetivos do Programa; e a inclusão, nas contratações de empresas prestadoras de serviços, bem como
de técnicos e consultores no âmbito de projetos desenvolvidos em parceria com organismos
internacionais, de dispositivo estabelecendo metas percentuais de participação de afrodescendentes,
mulheres e pessoas portadoras de deficiência.
Tramita, ainda, no Senado Federal, projeto de lei destinado a instituir, formalmente, e como regra
obrigatória, as cotas raciais e sociais para ingresso nas universidades públicas e nas instituições federais
de ensino técnico de nível médio. A aprovação da medida tornaria obrigatório programa de ação
afirmativa que, atualmente, somente depende da discricionariedade das universidades públicas. Embora
cercado de grande polêmica, e sem abordar o tema da qualidade da educação no Brasil, o projeto de lei,
já aprovado pela Câmara dos Deputados, teve sua tramitação reforçada pela decisão do Supremo
Tribunal Federal antes mencionadas.
A proposta é apoiada por diferentes grupos de interesse, entre eles representantes indígenas. Segundo a
representante indígena Rosane Fernandes Kaingang, mestranda em direitos humanos, a aprovação
dessas ações afirmativas é meio efetivo para a superação da exclusão social indígena e redução das
diferenças: "Se queremos melhorar a qualidade de vida dos povos indígenas, temos que pensar em
medidas específicas para as minorias, índios, negros e pobres." Não obstante, opõem-se à proposta
intelectuais, antropólogos outros cientistas sociais, além de setores do Congresso.
Não obstante, medidas de outras espécies vem sendo adotadas, como a criação pelo governo do Estado
da Bahia, em junho de 2012, do Grupo de Trabalho Pró-Equidade de Gênero e Raça, que tem como
finalidade implementar, entre outras ações, os programas de educação corporativa envolvendo a
temática diversidade de gênero e raça. De acordo com o presidente do GT, Antônio Carlos Lordelo, o
grupo visa, entre outras ações, garantir a equidade de tratamento nos processos seletivos de
recrutamento e seleção de pessoal, com destaque para diversidade de gênero e raça, e introduzir nos
programas de saúde do servidor público linhas de mapeamento de moléstias de perfil racial, sexual e
doenças profissionais. Ademais, o Governo baiano, seguindo o exemplo do Governo Federal, criou as
secretarias da Promoção da Igualdade Racial (Sepromi) e de Políticas para as Mulheres (SPM).
No âmbito Federal, em agosto de 2009 o Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão coordenou o
primeiro Fórum sobre Discriminação e Preconceito dentro da administração pública. A Fundação
20
Escola Nacional de Administraçao Pública - ENAP estabeleceu uma mesa-redonda de pesquisa sobre a
Diversidade e Formação em Escolas Governamentais. Pesquisas estão sendo realizadas com vistas não
somente à realização de diagnósticos, mas à consolidação de propostas que possam contribuir para a
melhor efetivação dos princípios e políticas voltados à ampliação da diversidade.
Conclusão
A concretização do princípio da igualdade, do qual a diversidade na função pública é corolário, é tema
complexo e desafiador. Trata-se de questão da maior importância para que seja afastada do mundo
jurídico a norma apenas aparentemente conforme o princípio da isonomia. Nesse sentido, a
jurisprudência e a doutrina têm avançado, como esclarece Maren Guimarães Taborda:
“O mandato da igualdade só vincula concretamente o legislador se a fórmula ‘há que se tratar
igualmente aos iguais e desigualmente os desiguais’ é interpretada como uma exigência de conteúdo,
ou um mandato de igualdade material, obrigando o legislador à criação de um direito igual para
todos. O princípio da igualdade na lei torna-se, assim, um postulado de racionalidade prática: ‘para
todos os indivíduos com as mesmas características devem prever-se, através da lei, iguais situações ou
resultados jurídicos’ (Canotilho, J. J. Gomes, Direito Constitucional, p. 563). No entanto, esse
postulado não diz muito, uma vez que o legislador poderia fazer qualquer discriminação sem estar,
necessariamente, violando-o. Por essa razão, o Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, por
exemplo, já em suas primeiras decisões, considerou ser evidente a vinculação do legislador ao
princípio da igualdade - igualdade na formulação do direito - tratando de conduzir a questão da
igualdade material à da “valoração correta”, isto é, a de saber-se o que é uma legislação correta,
razoável ou justa, com a ajuda do conceito de arbitrariedade, agregando ao postulado a expressão
‘essencial’, de modo que o legislador está proibido de tratar(a) o igual desigualmente; (b) o
essencialmente igual desigualmente e (c) o essencialmente igual arbitrariamente desigual...” (in O
princípio da igualdade em perspectiva histórica: conteúdo, alcance e direções. Revista de Direito
Administrativo, vol.. 211, jan-mar 1998, p. 260)
Neste sentido, não podem o administrador e a lei estabelecer diferenciações desprovidas de
razoabilidade, a pretexto de coibir a fraude apenas presumida, e apenas com base no arbítrio do
legislador, uma vez que assim estaria afrontando a vedação de tratamento arbitrário desigual aos
essencialmente iguais, como é o caso de lei que, restringindo o direito ao salário-maternidade,
condicione o pagamento do benefício à satisfação do requisito de carência. Na mesma linha, acrescenta
José Souto Maior Borges acerca da natureza dessa proteção:
“A rigor, a igualdade diante da lei somente postula que a aplicação da lei corresponda sempre à sua
incidência. Daí o seu caráter formal: nada prescreve sobre a igualdade como o conteúdo da própria
lei aplicada. A tônica é aí na inexceptualidade da aplicação concreta da norma, sempre que
ocorrentes os seus pressupostos fáticos.
Não é essa contudo a única igualdade a que se refere o art. 5º da CF. Porque esse dispositivo trata da
igualdade não só ante a lei, mas também como um conteúdo da legislação que lhe é integrativa.
Vincula-a, numa relação sintática de supra e subordinação, no tocante ao seu conteúdo, isto é, ao
próprio âmbito material da validade da norma (igualdade na lei, igualdade contenutística - diria
Pontes de Miranda). De tal sorte que, se considerado o preceito constitucional, o ato legislativo ou
administrativo de sua aplicação incorrerá em inconstitucionalidade. A igualdade na lei é igualdade
material; somente existe quando a lei prescreve um tratamento igualitário. Será a igualdade, em tais
condições, ‘matéria’ do ato legislativo.
21
A CF, no seu artigo 5º, não enuncia apenas a igualdade formal de todos diante da aplicação da lei.
Não se circunscreve a anunciar o direito à reta aplicação da lei tributária, entendida como a
adequação entre norma de conduta e conduta normada. Adequação a ser procedida no ato de
aplicação pelos juizes e tribunais. Tal limitação, um amesquinhamento do princípio, somente poderia
prevalecer se o art. 5º estancasse a formulação do direito à isonomia na parte inicial de seu
enunciado: “todos são iguais perante a lei” (e não na lei).” (in Significado da Isonomia na
Constituição de 1988, Revista Trimestral de Direito Público, nº 15/1996, Malheiros, p. 31-32).
Conclui o Ilustre Jurista que, nessas condições, o direito à isonomia amparado pelo art. 5º da CF se
aperfeiçoa pela predeterminação constitucional do seu âmbito de validade incluindo “a) a igualdade
perante a lei, mais b) igualdade na lei, mais c) a vedação de distinções de qualquer natureza.
Este tem sido o entendimento também do Excelso Pretório, como exemplifica o Acórdão no Mandado
de Injunção nº 58, Relator o Exmo. Sr. Ministro Celso de Mello:
“MANDADO DE INJUNÇÃO - PRETENDIDA MAJORAÇÃO DE VENCIMENTOS DEVIDOS A
SERVIDOR PÚBLICO (INCRA/MIRAD) - ALTERAÇÃO DE LEI EXISTENTE - INOCORRÊNCIA DE
SITUAÇÃO DE LACUNA TÉCNICA - A QUESTÃO DA INCLUSÃO DE BENEFÍCIO COM OFENSA
AO PRINCÍPIO DA ISONOMIA - MANDADO DE INJUNÇÃO NÃO CONHECIDO.
O princípio da isonomia, que se reveste de auto-aplicabilidade, não é - enquanto postulado
fundamental de nossa ordem político-jurídica - suscetível de regulamentação ou complementação
normativa. Esse princípio - cuja observância vincula, incondicionalmente, todas as manifestações do
Poder Público - é de ser considerado, em sua, em sua precípua função de obstar discriminação e
extinguir privilégios (RDA 55/114), sob duplo aspecto: a) o da igualdade na lei e b) o da igualdade
perante a lei. A igualdade na lei - que opera numa fase de generalidade puramente abstrata constitui
exigência destinada ao legislador que, no processo de sua formação, nela não poderá incluir fatores
de discriminação pela ordem econômica. A igualdade perante a lei, contudo, pressupondo lei já
elaborada, traduz imposição destinada aos poderes estatais, que, na aplicação da norma legal, não
poderão subordiná-la a critérios que ensejem tratamento seletivo ou discriminatório. A eventual
inobservância desse postulado pelo legislador imporá ao ato estatal por ele elaborado e produzido, a
eiva da inconstitucionalidade.” (D.J de 19.04.98, p. 4580) (grifo nosso)
A múltipla dimensão do princípio da isonomia albergado na cláusula pétrea do art. 5º da CF impede,
portanto, o conteúdo desigual da legislação, caso contrário, como salienta José Souto Maior Borges,
não haveria igualdade no sentido jurídico-positivo.
O Brasil é signatário de importantes convenções e tratados, voltados à promoção da diversidade e
inclusão das minorias. A Conferência das Nações Unidas Contra o Racismo, Discriminação e
Xenofobia e Intolerância Relacionada, ocorrida em Durban em 2001, destaca entre esses
compromissos:
“13. We acknowledge that slavery and the slave trade, including the transatlantic slave trade, were
appalling tragedies in the history of humanity not only because of their abhorrent barbarism but also
in terms of their magnitude, organized nature and especially their negation of the essence of the
victims, and further acknowledge that slavery and the slave trade are a crime against humanity and
should always have been so, especially the transatlantic slave trade and are among the major sources
and manifestations of racism, racial discrimination, xenophobia and related intolerance, and that
22
Africans and people of African descent, Asians and people of Asian descent and indigenous peoples
were victims of these acts and continue to be victims of their consequences;
14. We recognize that colonialism has led to racism, racial discrimination, xenophobia and related
intolerance, and that Africans and people of African descent, and people of Asian descent and
indigenous peoples were victims of colonialism and continue to be victims of its consequences. We
acknowledge the suffering caused by colonialism and affirm that, wherever and whenever it occurred,
it must be condemned and its reoccurrence prevented. We further regret that the effects and
persistence of these structures and practices have been among the factors contributing to lasting social
and economic inequalities in many parts of the world today;12
Finalmente, a OCDE, em 2009 reconhecia o sucesso das medidas implementadas pelo Brasil para
honrar tais compromissos:
Finally, in a diverse country like Brazil, the Federal Government should be an example of good
practice in the field of the promotion of diversity. While equality and transparency are relatively
ensured in rigid rules about recruitment and careers, they are not necessarily conducive to increased
diversity. Policies that have rightly aimed to increase the level of competences in government will only
increase the issue in the future. Brazil could follow the example of many OECD countries in
establishing equal opportunity policies for disadvantaged groups and women. Special policies for
disabled people have been put in place already.
(…)
302. As a country with serious difficulties in the heterogeneous access to wealth and education, Brazil
inevitably has diversity challenges in the public service, in addition to imbalances in gender access to
senior positions and difficulties of access to the public service by handicapped persons. Building on the
experience of OECD countries, Brazil first needs to establish the value added of diversity (in terms of
gender, social backgrounds,) not only in terms of equity but also in terms of the government’s role in
maintaining and strengthening social cohesion and setting an example as an employer for the rest of
the country. The government should stress that diversity measures are to be temporary until diversity
practices are a standard part of the daily functioning of public organisations. Second, the value of
diversity in terms of the efficiency and effectiveness of policy making and service delivery needs to be
recognised. Diversity campaigns will be important to raise awareness of these issues both in
government and in settings such as universities. Then of course, there is a need to understand in depth
the impediments to diversity through diversity audits and voluntary surveys. Progress has to be
monitored and accountability developed through managerial reporting.
307. Given the flexibility in recruitment at the DAS level, there is no doubt that DAS positions could
constitute fertile ground for a diversity policy, especially for women. The government could give itself
targets for recruitment of minority groups and women at each DAS level, report on such targets, show
good practices, promote recruitment methods that are not biased against these groups, and promote
coaching of those groups and women.”
As políticas ora em fase de implementação e os debates que são travados no Brasil sobre ações
afirmativas refletem não somente a complexidade do tema, mas o enorme desafios de promover a
inclusão de grupos desfavorecidos tendo em vista os princípios e limites constitucionais, a necessidade
de promover a eficiência da gestão pública e qualificar a força de trabalho, sem gerar distorções e
artificialismos.
Trata-se de dilemas para toda a América Latina, cuja herança colonial, escravista, machista e autoritária
demanda estudos adicionais e um processo de mudança cultural. Todavia, não se deve perder de vista
12
http://www.un.org/WCAR/durban.pdf
23
os sucessos já alcançados e as políticas em curso, que resultam das demandas e pressões sociais mas
também dos compromissos dos governos latino-americanos com a Carta da Função Pública e o
aperfeiçoamento da democracia.
Bibliografia
BORGES, José Souto Maior. Significado da Isonomia na Constituição de 1988, Revista Trimestral de
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Referencias Biográficas
Primeiro autor
Nome: Luiz Alberto dos Santos
Cargo: Subchefe de Análise e Acompanhamento de Políticas Públicas Governamentais
Instituição: Casa Civil da Presidência da República
Endereço: Palácio do Planalto, 4. andar
Telefone: (61) 3411-1458
Endereço eletrônico: [email protected]
Segundo autor:
Nome: Regina Luna Santos de Souza
Cargo: Coord. Geral de Gestão por Resultados
24
Instituição: DEDDI - SEGEP – Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão
Endereço: Esplanada dos Ministérios, Bl. C, 8. Andar, sala 862
Telefone: 061 20201995
Fax: 061 2020 1710
Endereço eletrônico: [email protected]
TABELAS E GRÁFICOS
Tabela 1
Quantitativo (força de trabalho) dos Servidores Públicos Federais Civis Ativos do Poder
Executivo por escolaridade do cargo e sexo, segundo os grupos de idade (Faixa Etária)
Posição - Mar/2012
Grupos de
Idade
(faixa
etária)
Até
20
anos
De 21 a 25
anos
De 26 a 30
anos
De 31 a 35
anos
De 36 a 40
anos
De 41 a 45
anos
De 46 a 50
anos
De 51 a 55
anos
De 56 a 60
anos
De 61 a 65
anos
De 66 a 70
anos
Mais de 70
anos
Total
%
Superior
Masc
1
1.677
12.082
19.152
17.140
15.488
16.613
16.666
16.420
9.311
3.017
74
127.64
1
25%
Intermediário
Fem
Total
Masc
Fem
Auxiliar
Total
Masc
Sem informações
Fem
Total
Masc
Fem
Total
Total
Masc
Fem
%
Total
1
2
432
258
690
2
2
4
49
12
61
484
273
757
0,15%
1.678
3.355
5.197
3.699
8.896
37
8
45
1.367
2.924
4.291
8.278
8.309
16.587
3,23%
24.404
10.631
9.361
19.992
49
15
64
3.923
5.609
9.532
26.685
27.307
53.992
10,50%
36.817
9.847
8.386
18.233
40
21
61
2.332
2.453
4.785
31.371
28.525
59.896
11,65%
32.087
9.059
7.565
16.624
787
442
1.229
1.931
1.559
3.490
28.917
24.513
53.430
10,39%
29.080
10.329
9.209
19.538
2.474
1.005
3.479
1.663
1.256
2.919
29.954
25.062
55.016
10,70%
33.139
20.659
20.501
41.160
3.430
1.595
5.025
1.770
1.619
3.389
42.472
40.241
82.713
16,08%
32.422
25.461
22.178
47.639
3.336
1.714
5.050
1.579
1.350
2.929
47.042
40.998
88.040
17,12%
26.725
18.745
12.653
31.398
2.480
1.460
3.940
1.214
855
2.069
38.859
25.273
64.132
12,47%
4.369
13.680
7.836
5.043
12.879
1.217
992
2.209
694
330
1.024
19.058
10.734
29.792
5,79%
1.193
4.210
2.276
1.676
3.952
481
384
865
300
109
409
6.074
3.362
9.436
1,83%
22
96
52
38
90
36
20
56
168
57
225
330
137
467
0,09%
10837
6
236017
120524
100567
221091
14369
7658
22027
16990
18133
35123
279524
234734
514258
100,00
%
21%
46%
23%
20%
43%
3%
1%
4%
3%
4%
7%
54%
46%
100%
12.32
2
17.66
5
14.94
7
13.59
2
16.52
6
15.75
6
10.30
5
Fonte: SRH/MPOG – Boletim Estatístico de Pessoal nº 192 – Abril de 2012.
25
Tabela 2
Ocupação de Cargos de Direção e Assessoramento Superiores por gênero – Poder Executivo –
abril de 2012
NÍVEL
DAS 1
DAS 2
DAS 3
DAS 4
DAS 5
DAS 6
CNE
TOTAL
HOMEM
3970
3336
2258
2161
737
167
48
12677
%
55,24%
54,66%
54,27%
63,54%
71,55%
78,04%
87,27%
57,23%
MULHER
3217
2767
1903
1240
293
47
7
9474
%
44,76%
45,34%
45,73%
36,46%
28,45%
21,96%
12,73%
42,77%
TOTAL
7187
6103
4161
3401
1030
214
55
22151
Fonte: SRH/MPOG – Boletim Estatístico de Pessoal nº 192 – Abril de 2012.
Tabela 3
Distribuição da população ocupada por cor ou raça, grupamento de atividade e RM – 2006
* Coeficiente de Variação igual a 15,8 **Coeficiente de Variação igual a 17,9
FONTE: IBGE, Coordenação de Trabalho e Rendimento, Pesquisa Mensal de Emprego.
26
Gráfico 1 – Porcentagem de mulheres em cargos superiores em países da OCDE em 2005 e no
Brasil (Poder Executivo) em 2008
Fonte: OCDE, 2009
Gráfico 2 - Poder Executivo - servidores civis ativos com mais de 50 anos- 2000-2011
Fonte: Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão
27
Gráfico 3 - Percentagem de Servidores do Governo Central com 50 anos de idade ou mais (2000,
2005 e 2009) – OCDE e Brasil
Source: 2010 OECD Survey on Strategic Human Resources Management in Central/Federal
Governments.
28
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Politicas de ação afirmativa no serviço público - siare