Os espaços poéticos na “Evocação do Recife” de Manuel Bandeira Fábio Rolim A 19 de abril de 1886, nasce no Recife, Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho, filho do dr. Manuel Carneiro de Sousa Bandeira, engenheiro, e d. Francelina Ribeiro de Sousa Bandeira. Em 1890 a família do poeta deixa o Recife e vai residir no Rio de Janeiro. Em Petrópolis, onde passa dois verões, fixam-se as primeiras impressões conscientes, de que o poeta se recordará mais tarde. Leitura que lhe fazem de livros de que jamais se esqueceu, entre eles, João Felpudo, Simplício olha pro ar, Viagem à roda do mundo numa casca de noz. Em 1892 volta com a família para Pernambuco. Freqüenta o colégio das irmãs Barros Barreto na rua da Soledade, e depois, como semi-interno, o de Virgínio Marques Carneiro Leão, na rua da Matriz. A esses quatro anos o poeta chama a fase de armação de sua mitologia, em que entram personagens reais como Totônio Rodrigues, d. Aninha Viegas, a preta Tomásia, a rua da União, as ruas da Aurora, do Sol, da Saudade e Princesa Isabel. Escreveu o poeta sobre esse período de sua infância: “Quando comparo esses quatro anos de minha meninice a quaisquer outros de minha vida de adulto, fico espantado do vazio destes últimos em cotejo com a densidade daquela quadra distante”. (Itinerário de Pasárgada) Em 1896 a família muda-se do Recife para o Rio. Durante seis anos mora em Laranjeiras. Não brinca com os moleques da rua mas toma contato com a gente humilde como uma espécie de intermediário entre a sua mãe e os fornecedores, vendeiros, açougueiros, quitandeiros e padeiros. O futuro filólogo Sousa da Silveira, vizinho de Machado de Assis, é seu companheiro de conversas sobre literatura. Durante o período de 1896 a 1902 cursa o externato do Ginásio Nacional (hoje Pedro II). Do contato com Silva Ramos, seu professor, e com o colega Sousa da Silveira, nasce-lhe o gosto pelos clássicos portugueses: decora os episódios de Os Lusíadas. Viajando em um bonde na companhia de Machado de Assis, conversam os dois sobre Camões, e o jovem colegial tem o orgulho de citar para o mestre uma oitava de Os Lusíadas de que este queria lembrar-se e cujas palavras exatas haviam se apagado de sua memória. As leituras nascem da troca de idéias com os colegas que amam a literatura. Lê François Coppée, Leconte de Lisle, Baudelaire, Heredia, Antônio Nobre... Aluno de literatura de Carlos França, ganha do professor, por um trabalho sobre mme. Savigné, o livro La Fontaine et sés fables, de Taine. O professor que mais o impressionava, e com quem os alunos conversavam sobre literatura, depois das aulas de História Universal e do Brasil, é João Ribeiro (“Esse, abriu-me os olhos para muitas coisas”). O poeta publica o seu primeiro poema, um soneto em alexandrinos que sai na primeira página do Correio da Manhã. Parte para São Paulo, em 1903, e se matricula na Escola Politécnica. Preparava-se para ser arquiteto, profissão a que tomou gosto por influência do pai. Toma aulas de desenho de ornato, á noite, no Liceu de Artes e Ofícios. Adoece do pulmão no fim do ano letivo (1904) e abandona os estudos. O poeta volta ao Rio e inicia uma peregrinação em busca de climas serranos. Em 1910, entra em um concurso promovido por Medeiros e Albuquerque na Academia Brasileira de Letras (500 mil-réis para o melhor poema em versos livres; a comissão julgadora não conferiu o prêmio). Lê Charles de Guérin, conhecimento das rimas toantes que seriam empregadas no Carnaval. Escreve seus primeiros versos livres, em 1912, sob a influência de Guillaume Apollinaire, Charles Cros, Mac-Fionna Leod. Em junho de 1913 embarca para a Europa a fim de tratar-se no sanatório de Clavadel. Reaprende o alemão, que estudara no ginásio e trava fortes contatos com poetas simbolistas. Quis imprimir em Coimbra o seu primeiro livro de poesia, a que havia dado o nome de Poemetos melancólicos. Não recebeu resposta de Eugênio de Castro, a quem escreveu sobre isso. Deixando o sanatório, aí esqueceu os originais, não lhe tendo sido possível refazê-los integralmente. Sobrevinda a Grande Guerra, em 1914 volta para o Brasil. Lê Goethe, Lenau e Heine. Anos de meditação sobre a técnica do verso. Em 1916 falece a mãe do poeta. Um ano depois (1917) publica seu primeiro livro, A Cinza das Horas – de nítida influência parnasiana e simbolista – impresso nas oficinas do Jornal do Comércio. Edição de duzentos exemplares, custeada pelo autor (300 mil-réis). João Ribeiro lhe faz um grande elogio em seu artigo de crítica no Imparcial. Em 1918 falece sua irmã, Maria Cândida de Sousa Bandeira, a qual fora sua enfermeira desde 1904. Em 1919, Bandeira publica Carnaval, edição custeada pelo pai. A Revista do Brasil, dirigida por Monteiro Lobato disseca o livro em poucas palavras. João Ribeiro torna a ter para com o poeta expressões de entusiasmo. Carnaval entusiasma igualmente a geração paulista que iniciava a revolução modernista. No ano seguinte, falece o dr. Manuel Carneiro de Sousa Bandeira. O poeta, que morava na rua do Triunfo, muda-se para a rua do Curvelo, nº 53 (hoje Dias de Barros), rua onde já morava Ribeiro Couto. A nova habitação dá-lhe o “elemento de humilde cotidiano”. Diz ainda o poeta: “Não sei se exagero dizendo que foi na rua Curvelo que reaprendi os caminhos da infância”. No Rio, em 1921, conhece Mário de Andrade, com quem já se correspondia. Em 1922 não quis participar pessoalmente (Ronald de Carvalho leu seu poema “Os Sapos”) da Semana de Arte Moderna, por não concordar com a intensidade dos ataques feitos aos parnasianos e simbolistas. Mas nesse mesmo ano vai a São Paulo e faz novos conhecimentos. Por interferência de Goulart de Andrade, em 1924 publica o volume Poesias (A cinza das horas Carnaval, Ritmo dissoluto). No ano posterior colabora com artigos para o “Mês Modernista”, instituído no jornal A Noite. Só o fez mediante a insistência epistolar de Mário de Andrade. Ganha, assim, o seu primeiro dinheiro com literatura: 50 mil-réis por semana. Faz crítica musical para a revista A Idéia. De 1928 a 1930 escreve crônicas semanais para o Diário Nacional, de São Paulo. Em 1930 publica Libertinagem (poemas de 1924-30) com recursos próprios e uma tiragem de quinhentos exemplares. Nesse mesmo ano escreve crítica de cinema para o Diário da Noite, do Rio. Entre os anos 1930-31 escreve crônicas semanais para A Província, do Recife. Em 1935 o ministro Capanema nomeia-o inspetor de ensino secundário. Em 1936 é calorosamente homenageado em seu cinqüentenário. Os amigos fazem editar (201 exemplares) o livro Homenagem a Manuel Bandeira, com poemas, estudos, comentários, impressões sobre o poeta. Trinta e três entre os mais importantes escritores modernos colaboraram nesse livro. A Civilização Brasileira edita Crônicas da Província do Brasil. Selecionadas pelo poeta, que também ouviu Mário de Andrade, em 1937 aparecem as Poesias escolhidas. O Ministério da Educação edita a Antologia dos poetas brasileiros da fase romântica. Pela primeira vez, o poeta tem lucro material com a poesia, ao ser premiado pela Sociedade Felipe d´Oliveira.(cinco contos de réis). Escreveu mais tarde: “Parece incrível, mas é verdade: aos 51 anos, nunca eu vira até aquela data tanto dinheiro em minha mão”. Em 1938 é nomeado pelo ministro Gustavo Capanema professor de Literatura do Colégio Pedro II e membro do Conselho Consultivo do Departamento do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. O MEC edita a Antologia dos poetas brasileiros da fase parnasiana e o Guia de Ouro Preto. Em 1940 é eleito para a Academia Brasileira de Letras. Nesse mesmo ano sai a primeira publicação das Poesias completas, edição do autor, com acréscimo de uma parte de novos poemas, que o poeta chamou Lira dos cinqüent´anos. Publica A autoria das cartas chinesas, e Noções da história das literaturas. Em 1941 começa a fazer crítica de artes plásticas n´A Manhã, do Rio de Janeiro. Organiza uma edição dos Sonetos completos e poemas escolhidos de Antero de Quental, lançada pela Editora Livros de Portugal. Deixa o Pedro II em 1943 e é nomeado professor de Literatura Hispano-americana na Faculdade Nacional de Filosofia. Em 1945 escreve para a Editora Fondo de Cultura Econômica, do México, Panorama de la poesia brasileña, só publicado em espanhol, em 1951. Recebe, em 1946, o Prêmio de Poesia do Ibec (50 mil cruzeiros). Publica Apresentação da poesia brasileira e Antologia dos poetas brasileiros bissextos contemporâneos. Em 1948 sai uma nova edição de Poesias completas com acréscimo do livro Belo belo e nova edição de Poesias escolhidas. Publica também a primeira edição de Mafuá do malungo, versos de circunstância, impressa em Barcelona por João Cabral de Melo Neto. Organiza para a Editora Pongentti uma edição crítica das Rimas de José Albano. No ano seguinte publica Literatura hispano-americana pela Editora Pongetti. Traduz El divino Narciso,de Soror Juana Inês de la Cruz. Publica Obras poéticas de Gonçalves Dias, edição crítica e comentada. Em 1952 publica Gonçalves Dias (biografia). Sai a primeira edição de Opus 10 (Editora Hipocampo). Dois anos depois publica o célebre Itinerário para Pasárgada (edição do Jornal de Letras; projeto de capa Carlos Drummond de Andrade); reeditado com o acréscimo de Poetas e poesias (críticas) pela Livraria São José (1957). Em 1955 publica pelo MEC, 50 poemas escolhidos. Traduz o drama Maria Stuart, de Schiller. Inicia a sua colaboração de cronista no Jornal do Brasil, do Rio, e Folha da Manhã, de São Paulo. Escreve, em 1956, para a Enciclopédia Delta Larouse um estudo sobre “Versificação em Língua Portuguesa”. Traduz a tragédia Macbeth, de Shakespeare, e a tragédia La machine infernale, de Jean Cocteau. Em 1957 traduz as peças June and the Paycock, de Sean O´Casey, e The rainmaker, de N. Richard Nash. A Editora Alvorada lança o livro de crônicas Flauta de papel. Embarca no mês de julho para a Europa em viagem de recreio. Durante os anos de 1957-61 escreve crônicas bissemanais para o Jornal do Brasil, do Rio e Folha de São Paulo. Em 1958 traduz a peça The Matchmaker, de Thorton Wilder, sob o título A casamenteira. A Sociedade dos Cem Bibliófilos edita o volume Pasárgada. Traduz, em 1960, o drama D. Juan Tenório, de Zorrilla. A Editora Dinamene, da Bahia, publica em edições de luxo a Estrela da tarde e uma seleção de poemas de amor sob o título de Alumbramento. Em 1961, traduz para a Coleção Prêmios Nobel da Editora Delta o poema Mireille, de Mistral. A Editora do Autor publica a Antologia poética de Manuel Bandeira. Entre os anos 1961-63 escreve crônicas semanais para o programa “Quadrante” da Rádio Ministério da Educação, algumas publicadas depois no volume Quadrante, da Editora do Autor. No ano seguinte traduz para a Coleção Prêmios Nobel da Editora Delta o poema Prometeu e Epimeteu, de Carl Spitteler. A Editora das Américas, de São Paulo, publica Poesia e vida de Gonçalves Dias. Em 1963 escreve para a Editora El Ateneo biografias de Gonçalves Dias, Álvares de Azevedo, Casimiro de Abreu, Junqueira Freire e Castro Alves. Traduziu para o Teatro Nacional de Comédias a peça Der Kaukasische Kreide Kreis, de Bertolt Brecht. A Editora José Olympio publica Estrela da tarde. Entre os anos 1963-64 escreve para o programa “Vozes da Cidade”, da Rádio Roquette Pinto, crônicas bissemanais, umas para esse programa, outras para o programa por ele próprio lido sob o título de “Grandes poetas do Brasil”. Algumas das crônicas do programa “Vozes da Cidade” foram incluídas no volume do mesmo nome editado pela Distribuidora Record. Em 1964 a Éditions Seghers, de Paris, lançam na coleção Poètes de Aujourd´hui uma antologia de poemas traduzidos para o francês pelo autor e por Luís Aníbal Falcão e Fredy Blank. Traduz a peça O advogado do diabo, de Morris West. Traduz a tragédia de John Ford „Tis Pity She´s a Whore sob o título Pena de ser o que é. Em 1965, traduz as peças Os verdes campos do Éden, de Antônio Gala, A fogueira feliz, de J. N. Descalzo, e Edith Stein na câmara de gás, de Frei Gabriel Cacho. Com Carlos Drummond de Andrade organiza o livro Rio de Janeiro em prosa & verso. André Wllième e Antoni Grosso editam o álbum A morte, treze poemas autografados, com vinhetas do autor e sete litogravuras originais de João Quaglia, tiragem de cem exemplares em papel Petrópolis Martelado, realizado todo o trabalho em litografia pelo processo manual. Em 18 de abril de 1966, o Presidente da República, Marechal Castelo Branco, no octogésimo aniversário de Bandeira, concede-lhe a Ordem do Mérito Nacional. O Presidente oferece almoço ao poeta e convidados no Palácio das Laranjeiras. Em 19 de abril o bardo faz oitenta anos. A Editora José Olympio promove, em sua sede, grande festa em homenagem ao seu grande amigo e editado, “à qual comparecem – em rara demonstração de prestígio e bem-querer ao Poeta – mais de mil pessoas”. Completando a homenagem, a editora publica dois livros: Estrela da vida inteira (poesias completas e traduções de M.B.) e um livro de prosa organizado por seu grande amigo Carlos Drummond de Andrade, Andorinha, andorinha (textos inéditos em livros); e o ensaio de Stefan Baciu, Manuel Bandeira de corpo inteiro (Coleção Documentos Brasileiros). Estrela da vida inteira apareceu com louvação de Rachel de Queiroz, Guilherme de Almeida, Drummond, Gilberto Freyre, Adalgisa Nery, Cassiano Ricardo, Otto Maria Carpeaux, Murilo Mendes, Vinicius de Moraes e Odylo Costa, filho. Introdução crítica de Gilda e Antônio Cândido. Em 20 de abril do mesmo ano, a ABL realiza sessão de homenagem a Bandeira. Em 1º de junho a Assembléia Legislativa do Estado da Guanabara concede a Manuel Bandeira o título de cidadão carioca. Em 27 de outubro recebe o Prêmio Moinho Santista. Entrevistado pelos jornalistas cariocas, Bandeira pilheria: “Como amigo do Rei, protesto: para um poeta com oitenta anos de idade são conferidos apenas 2 milhões de cruzeiros, enquanto dois jovens, Dori Caymi e Chico Buarque de Holanda, recebem, cada um, 20 milhões”. Manuel Bandeira falece no Hospital Samaritano em Botafogo, ás 12h50 do dia 13 de outubro de 1968. É sepultado no mausoléu da Academia de Letras, no Cemitério S. João Batista. Neste trabalho, tentaremos realizar uma pequena análise do poema Evocação do Recife, que foi escrito no Rio de Janeiro em 1925 e publicado no livro Libertinagem em 1930. EVOCAÇÃO DO RECIFE Recife Não a Veneza americana Não a Mauritssatd dos armadores das Índias Ocidentais Não o Recife dos Mascates Nem mesmo o Recife que aprendi a mar depois – Recife das revoluções libertárias Mas o Recife sem história nem literatura Recife sem mais nada Recife da minha infância A Rua da União onde eu brincava de chicote-queimado e partia as vidraças da casa de [Dona Aninha Viegas Totônio Rodrigues era muito velho e botava o pincenê na ponta do nariz Depois do jantar as famílias tomavam a calçada com cadeiras, mexericos, namoros, risadas A gente brincava no meio da rua Os meninos gritavam: Coelho sai! Não sai! A distância as vozes macias das meninas politonavam: Roseira dá-me uma rosa Craveiro dá-me um botão (Dessas roas muita rosa Terá morrido um botão...) De repente Nos longes da noite Uma pessoa grande dizia: Fogo em Santo Antônio! Outra contrariava: São José! Totônio Rodrigues achava sempre que era São José. Os homens punham o chapéu saíam fumando E eu tinha raiva de ser menino porque não podia ir ver o fogo Rua da União... Como eram lindos os nomes das ruas da minha infância Rua do Sol (tenho medo que hoje se chame Dr. Fulano de Tal) Atrás da casa ficava a Rua da Saudade... um sino Do lado de lá era o cais da Rua da Aurora... Capiberibe – Capibaribe Lá longe o sertãozinho de Caxangá Banheiros de palha Um dia eu vi uma moça nuinha no banho Fiquei parado o coração batendo Ela se riu ...onde se ia fumar escondido ...onde se ia pescar escondido Foi o meu primeiro alumbramento Cheia! As cheias! Barro boi morto árvores destroços redomoinho sumiu E nos pregões da ponte do trem de ferro os caboclos destemidos em jangadas de bananeira Novenas Cavalhadas Eu me deitei no colo da menina e ela começou a passar a mão nos meus cabelos Capiberibe – Capibaribe Rua da União onde todas as tardes passava a preta das bananas com o xale vistoso de pano [da Costa E o vendedor de roletes de cana O de amendoim Que se chamava midubim e não era torrado era cozido Me lembro de todos os pregões: Ovos frescos e baratos Dez ovos por uma pataca Foi há muito tempo... A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros Vinha da boca do povo na língua errada do povo Língua certa do povo Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil Ao passo que nós O que fazemos É macaquear A sintaxe lusíada A vida com uma porção de coisas que eu não entendia bem Terras que não sabia onde ficavam Recife... Rua da União... A casa de meu avô... Nunca pensei que ela acabasse! Tudo lã parecia impregnado de eternidade Recife... Meu avô morto. Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro como a casa de meu avô. No poema acima, Manuel Bandeira recorda liricamente a sua terra-natal. Ele revive, por um instante, fatos do passado. Na primeira estrofe do poema, o poeta delimita esse Recife evocado como um espaço íntimo e pessoal do eu-lírico, e não o Recife coletivo, urbano, atual, metrópole. O Recife aqui evocado é um lugar idealizado, perdido e distante no tempo e no espaço. “Recife da minha infância” Esse espaço-tempo, denominado Recife, é um mundo íntimo e singular pertencente a um universo maior, que é o Recife enquanto cidade, capital do estado Pernambuco. O Recife do eu-lírico (espaço poético) é o local onde estão guardadas as memórias de sua infância. Não se trata do Recife dominado pelos holandeses, nem o Recife das revoluções, muito menos o Recife europeizado. Trata-se do Recife das descobertas e fantasias do menino Manuel. O autor nos apresenta uma visão particular do seu mundo. Ele nos leva a passear por um local que até outrora era só seu. No Recife evocado por Bandeira, o mundo de sua infância, os espaços são especiais e singulares porque são os responsáveis pelas memórias do poeta. Esses espaços – a Rua da União, Rua da Saudade, Rua do Sol, Caxangá, Rua da Aurora, casa de Dona Aninha Viegas – guardam os segredos mais íntimos do poeta e que ele decide revelarmo-nos: “A Rua da União onde eu brincava de chicote-queimado e partia as vidraças da casa de Dona Aninha Viegas” “A Rua da Saudade onde se ia fumar escondido” “A Rua da Aurora onde se ia pescar escondido” “Lá longe o sertãozinho de Caxangá/ Banheiros de palha/ Um dia eu vi uma moça nuinha no banho/ Ela se riu/ Foi o meu primeiro alumbramento” “Eu me deitei no colo de uma menina e ela começou a passar a mão nos meus cabelos” A presença de reticências e a disposição tipográfica dos versos: Atrás da casa ficava a Rua da Saudade... ...onde se ia fumar escondido Do lado de lá era o cais da Rua da Aurora... ...onde se ia pescar escondido demonstra que o poeta vai buscar essas recordações no íntimo do seu ser e hesita um pouco em revela-las (o segundo e o quarto versos alinhados na margem direita do papel transmitem a hesitação do poeta). É como se a criança que está escondida dentro do eu-poético ainda temesse por revelar suas travessuras. As recordações trazidas de volta ao coração do eu-lírico, com exceções de algumas tragédias – “Cheia”, “Fogo”, “Meu avô morto” – são recordações de uma infância feliz. Até os nomes das ruas que são citadas pelo vate – “da Aurora, do Sol, da Saudade” – estão intimamente ligados à luz, calor, amanhecer. São nomes por si só poéticos. E o próprio autor reconhece a beleza desses nomes e lamenta o fato de eles talvez não mais existirem: “Como eram lindos os nomes das ruas da minha infância Rua do Sol (Tenho medo de que hoje se chame Dr. Fulano de Tal)” Eram ruas movimentadas, seguras e felizes: “Depois do jantar as famílias tomavam a calçada com cadeiras, mexericos, namoros, risadas/ A gente brincava no meio da rua” “A Rua da União onde todas as tardes passava a preta das bananas... E o vendedor de roletes de cana/ O de amendoim...” Em consonância com o ideário de mundo infantil, o Recife (mundo particular e infantil do poeta) – seu espaço poético: era um local onde se ouvia sons diversos: “Os meninos gritavam” “As vozes macias das meninas politonavam” “Uma pessoa grande dizia” “- Capibaribe” “Ovos frescos e baratos/ Dez ovos por uma pataca” “Um sino” aludia a sabores: “bananas, roletes de cana, amendoim cozido” era repleto de brincadeiras: “chicote-queimado; coelho sai, não sai; cantigas de roda”. refletia a cultura/tradições do povo: “Depois do jantar as famílias tomavam as calçadas com cadeiras, mexericos...” “Os homens punham o chapéu e saíam fumando” (para ver o fogo) “Novenas/ Cavalhadas” era povoado por personagens pitorescos: “Dona Aninha Viegas, Totônio Rodrigues, a preta das bananas, os vendedores de roletes de cana e de amendoim”. provocava emoções: “Eu tinha raiva de ser menino porque não podia ir ver o fogo” “Fiquei parado o coração batendo” “Foi o meu primeiro alumbramento” Todo o poema é marcado por um tom saudosista e nele os espaços diminuem (se tornam mais íntimos do poeta) progressivamente. O primeiro espaço ao qual o poeta faz alusão é a cidade do Recife, na qual está inserida a Rua da União (segundo espaço íntimo do poeta), e nesta, a casa do avô do menino. Casa que se configura como o espaço mais íntimo e saudoso do poeta. Este espaço se apresenta de forma idealizada e fantasiosa. Embora o poeta não apresente descrições objetivas da casa ou do seu cotidiano, ele deixa bem claro que lá viveu bons momentos. Podemos perceber uma sublimação muito forte desse espaço, ao ponto de deduzirmos que o poeta o oculta propositadamente, a fim de não descortinar seu santuário. Espaço esse que morreu com a idade adulta do autor; o eu-poético não possuía consciência da efemeridade do tempo: “Recife... Rua da União... A casa de meu avô... Nunca pensei que ela acabasse! Tudo lá parecia impregnado de eternidade” O eu-lírico finaliza sua obra declarando a destruição de seu mundo infantil e de todas as suas fantasias: “Recife... Meu avô morto. Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro como a casa de meu avô”. Esse poema de Bandeira pode ser considerado como um dos principais estandartes do Modernismo brasileiro tanto pelo fator cronológico (foi escrito em 1925) quanto por características estéticas, formais e temáticas inseridas na obra. Comparando o aspecto formal do poema com a estética parnasiana ou simbolista, podemos afirmar que: o poema possui uma estrutura quase prosaica; os períodos são longos; não há rimas; os versos não obedecem a um padrão rítmico; há excesso de conjunções. No trecho abaixo parece claro que Manuel Bandeira se deu conta de que estava caindo na prosa, ao usar sucessivas conjunções, donde a necessidade de abreviar os versos em unidades de ritmo bem marcado, a fim de assegurar o tom poético do discurso. “A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros/ Vinha da boca do povo na língua errada do povo/ Língua certa do povo/ Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil/ Ao passo que nós/ O que fazemos/ É macaquear/ A sintaxe lusíada” A linguagem empregada pelo autor possui um tom coloquial e emprega dois usos nãoaconselháveis pela gramática normativa: “Me lembro de todos os pregões” “A gente brincava no meio da rua” O tema-gerador do poema é a saudade, porém intrínseco a ele está o cotidiano de uma cidade/ de sua infância; tema muito cultivado e valorizado pelos primeiros modernistas. Bandeira flagrou instantes do dia-a-dia de um Recife que não mais existe e os trouxe para dentro de sua lírica. As referências ao folclore também são muito fortes nesse poema, a exemplo da inserção de um trecho da cantiga de roda “Roseira dá-me uma rosa” e as brincadeiras de rua. Há no poema uma extrema reverência e inserção da oralidade cotidiana. O autor faz uso de sua poesia para legitimar e divulgar os ideais do movimento modernista: “A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros/ Vinha da boca do povo na língua errada do povo/ Língua certa do povo/ Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil/ Ao passo que nós/ O que fazemos/ É macaquear/ A sintaxe lusíada” Para exemplificar a inserção no poema de termos da oralidade, podemos destacar: “A gente brincava no meio da rua” “Lá longe o sertãozinho Caxangá” “Um dia vi uma moça nuinha no banho” “Capiberibe” “...a preta das bananas com xale vistoso de pano da Costa” “É macaquear a sintaxe lusíada” “O de amendoim, que se chamava midubim e não era...” “Dez ovos por uma pataca” Ao afirmar: “A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros/ Vinha da boca do povo na língua errada do povo/ Língua certa do povo”, Bandeira disserta sobre a força vital de uma língua, que reside e se realiza no falar do povo e não na inanição dos livros. E ainda defende a existência de uma língua brasileira: “Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil”. Critica a vã tentativa de os eruditos tentar seguir a sintaxe lusíada: “Ao passo que nós/ O que fazemos/ É macaquear/ A sintaxe lusíada”. Trinta e oito anos após a composição de “Evocação do Recife”, Bandeira compôs um outro poema, intitulado “Recife”, no qual ele personifica o espaço poético (Recife) e conversa com este, relembrando a passagem de sua infância e lamentando a distância que os separou ao longo da sua vida. Este poema apresenta um alto grau de intertextualidade com o primeiro, chegando a ser quase uma releitura do mesmo. Façamos uma leitura do mesmo apenas para fortalecer este pequeno comentário. RECIFE Há que tempo que não te vejo! Não foi por querer, não pude. Nesse ponto a vida me foi madrasta, Recife. Mas não houve dia em que não te sentisse dentro de mim: Nos ossos, nos olhos, nos ouvidos, no sangue, na carne, Recife. Não como és hoje, ]Mas como eras na minha infância, quando as crianças brincavam no meio da rua (Não havia ainda automóveis) e os adultos conversavam de cadeiras nas calçadas (Continuavas província, Recife). Eras um recife sem arranha-céus, sem comunistas, Sem Arrais, e com arroz, Muito arroz, De água e sal, Recife. Um Recife ainda do tempo em que meu avô materno Alforriava espontaneamente A moça preta Tomásia, sua escrava, Que depois foi nossa cozinheira Até morrer, Recife. Ainda existirá a velha casa senhorial do Monteiro? Meu sonho era acabar morando e morrendo Na velha casa do Monteiro. Que já não pode ser, Quero, na hora da morte, estar lúcido Para te mandar a ti o meu último pensamento, Recife. Ah, Recife, Recife, non possidebis ossa mea! Nem os ossos nem o busto. Que me adianta um busto depois de eu morto? Depois de morto não me interessará senão, se possível, Um cantinho no céu, “Se o não sonharam”, como disse o meu querido João de Deus, Recife. Para finalizar este trabalho, gostaríamos de citar alguns fragmentos da introdução que Gilda Antônio Cândido escreveram para a antologia “Estrela da Vida Inteira”, que endossam alguns aspectos levantados neste trabalho. “[...] A nossa atenção é despertada inicialmente pela voz lírica deste Eu que, ao construir os poemas, nos acompanha a cada passo, dando a cada verso o seu timbre e a sua vida. Ela é o produto de componentes que nunca poderemos enumerar, e de que apenas vislumbramos uma ou outra, segundo o ângulo em que nos situamos.Uma delas é, por exemplo,certo tipo de materialismo que o faz aderir à realidade terrena, limitada, dos seres e das coisas, sem precisar explicá-los para além de sua fronteira. É ainda a adesão fervorosa à realidade material do mundo que parece explicar a espontânea naturalidade da sua poesia, que tem a simplicidade do requinte. O amor encarado a partir da experiência do corpo; o espetáculo do mundo visto pela descrição dos seus aspectos imediatos – determinam uma familiaridade que o poeta manifesta em tons menores, quebrando a grandiloqüência, remetendo o peso do drama para os bastidores. Está visto que isto só é possível graças às virtudes da forma, que, baseando-se na capacidade de síntese e, mesmo, de elipse,condensam a expressão e a reduzem ao essencial, domando o sentimentalismo que comprometia os primeiros livros e, às vezes, ronda os outros, ao modo de ameaça distante. E assim, Manuel Bandeira se torna o grande clássico de nossa poesia contemporânea. O seu feitiço consiste em legitimar a sua matéria – que são as casas onde morou, o seu quarto, os seus pais,os seus avós, a sua am, a conversa com os amigos, o café que prepara, os namorados na esquina, o infeliz que passa na rua, a convivência com a morte, o jogo ondulante do amor. Se procurarmos definir as leis obscuras deste universo, arriscaremos, como sempre em tais casos, ser „despachados de mãos vazias‟. Mas não custa fazer hipótese; dizer, por exemplo, que uma das maneiras de entender a sua obra é encará-la como reorganização progressiva dos espaços poéticos, a partir de uma concepção tradicional, até chegar a uma concepção nova, segundo a qual os objetos perdem o caráter óbvio que tinham inicialmente. Este critério se justifica ante a evidente fixação do poeta com os espaços vividos e imaginados: o quarto, a sala, a casa, o jardim, a cidade, a rua; depois, os ambientes de sonho, as paragens remotas, as vastidões da fantasia. Mesmo a dimensão temporal da memória pode, nele, configurar-se espacialmente, como o quarto demolido que, na „Última canção do beco‟, fica „intacto, suspenso no ar‟. Esta evolução permitiu duas conseqüências aparentemente contraditórias: de um lado, a adesão mais firme ao real, reforçando a naturalidade ameaçada pela deliqüescência pós-simbolista; de outro lado, a criação de contextos insólitos, libérrimos, parecidos com os mundos imaginados, mas rigorosos, da arte moderna. E assim veremos, na sua poesia madura, o cotidiano tratado com um relevo que sublima a sua verdade simbólica e, inversamente, o mistério tratado com uma familiaridade minuciosa e objetiva que o aproxima da sensibilidade cotidiana – porque o poeta conquistou a posição-chave que lhe permite compor o espaço poético de maneira a exprimir a realidade do mundo e as suas desvairadas projeções [...]”. BIBLIOGRAFIA: AMARAL, Emília. FERREIRA, Mauro. LEITE, Ricardo e ANTÔNIO, Severino. Novas Palavras. São Paulo: FTD, 2000. BANDEIRA, Manuel. Estrela da Vida Inteira, 20 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993. BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira, 3ª ed. São Paulo: Cultrix. COELHO, Nely Novaes. Literatura e Linguagem, 3ª ed. São Paulo: Edições Quiron, 1980. NICOLA, José de. Literatura brasileira: das origens aos nossos dias, 6ª ed. São Paulo: Scipione, 1989. RAMOS, Maria Luiza. Fenomenologia da Obra Literária, 3ª ed. Rio de Janeiro: ForenseUniversitária, 1974.