O BELO É O BELO É O BELO BELO (A I-MUNDÍCIE NA POÉTICA DE MANUEL BANDEIRA) Por Helaine Christian Alves Santos Aluna do Curso de Mestrado em Teoria Literária (Ciência da Literatura) Dissertação Teoria de Mestrado Literária em apresentada à Coordenação dos Cursos de Pós-Graduação Universidade de em Letras Federal Janeiro. do na Rio Orientador: Professor Doutor Ronaldo Lima Lins. Universidade Federal do Rio de Janeiro Faculdade de Letras Pós-Graduação em Ciência da Literatura Rio de Janeiro, 1º semestre de 2007 EXAME DE DISSERTAÇÃO SANTOS, Helaine Christian Alves. Título: O belo é o belo é o belo belo: a i-mundície na poética de Manuel Bandeira. Rio de Janeiro: UFRJ, 2007. Orientador: Ronaldo Pereira Lima Lins UFRJ/Faculdade de Letras/Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura. Banca examinadora: ________________________________________________________ Prof. Doutor Ronaldo Pereira Lima Lins – Orientador/UFRJ ________________________________________________________ Prof. Doutor Ronaldes de Melo e Souza / UFRJ ________________________________________________________ Profa. Doutora Eleonora Ziller Camenietzki / UFRJ Suplentes: ________________________________________________________ Prof. Doutor Luiz Edmundo Bouças Coutinho / UFRJ ________________________________________________________ Prof. Doutor José Carlos Pinheiro Prioste / UFRJ Rio de Janeiro 2007 2 FICHA CATALOGRÁFICA SANTOS, Helaine Christian Alves. O belo é o belo é o belo belo: a i-mundície na poética de Manuel Bandeira / Helaine Christian Alves Santos; orientador: Ronaldo Lima Lins – Rio de Janeiro: UFRJ, Departamento de Ciência da Literatura, 2007. xi, 180 f., 30cm. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Departamento de Ciência da Literatura. Referências bibliográficas: f. 173-179. 1.Poesia. 2. Manuel Bandeira. 3. I-mundície. 4.Simplicidade. 5. Condição Humana. 6. Hannah Arendt. 7. Pensamento. I. Ronaldo Lima Lins. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Departamento de Ciência da Literatura. III. Título. Rio de Janeiro 2007 3 Para Sílvia, Sandra e Jonathan, bases da minha vida; Para Ronaldo, mestre inigualável; Para Alessandro, paixão inexplicável. 4 O MARTELO As rodas rangem na curva dos trilhos Inexoravelmente. Mas eu salvei do meu naufrágio Os elementos mais cotidianos. O meu quarto resume o passado em todas as casas que habitei. Dentro da noite No cerne duro da cidade Me sinto protegido. Do jardim do convento Vem o pio da coruja. Doce como um arrulho de pomba. Sei que amanhã quando acordar Ouvirei o martelo do ferreiro Bater corajoso o seu cântico de certezas. Manuel Bandeira Lira dos cinquent’anos 5 AGRADECIMENTOS A Deus, combustível do meu pensamento. A minha mãe e minha irmã, que estimularam e apoiaram o meu amor pelos livros. A meu mestre e amigo Prof. Dr. Ronaldo Lima Lins, obrigada por ter sido solidário em tudo, por me ajudar a trilhar esses caminhos. Obrigada pela paciência, amizade, perseverança e compreensão que me foram sempre presentes. Mencionarei o nome da querida Profª Dra. Cinda Gonda, que desde o início de minha vida acadêmica incentivou minhas investidas no campo da literatura. Lembro aqui também do prof. Dr. Luiz Edmundo Bouças, que, sempre muito gentil, me mostrou a humildade do viver. Ao Alessandro, obrigada por você existir na minha vida. Oh, Alezinho! Sem você perto de mim, será que eu riria tanto assim? Ao prof. Milton Flores, superintendente geral da UFRJ, e equipe, pelo auxílio prestado durante todo o curso de mestrado. Não posso esquecer do amigo Osmar Soares, um grande ser humano, daqueles raros que, nas horas difíceis, aparecem. Com ele aprendi a interpretar poemas e a amar mais ainda a poesia. Quero, ainda, agradecer à Luíza Viana e Auá Elizabeth pela leitura integral do texto. Muito obrigada pelos conselhos. Manifesto minha gratidão pelas amigas e amigos que me acompanharam durante minha estada no alojamento da UFRJ: Luciana “Camp”, Luciana “Pavuna”, Renata dos Santos, Roberta, Marilene, Janaína “Letras”, Verônica, “Janinha”, Luciano “observador”, Núbia, Tátia, Alexandre “Big”, “Mosquito”, Joana, Dias, Anderson Daniela, Graziela, Renata Vale, “Mancuso”, Fred, Luana, Luciana Marcelo, Camila, Léo Simone “Geo”, Suzana, Simone Santos, Fabiana “Bibi”, Saulo, Shirley, 6 Viviane, Denilson Rodrigo, André, Fabrícia, “Dedê”, Henrique, Melzaque. Sem Beth, Arley, vocês, Danielle, Bruno, a Juliana, Fabiano, jornada Anne, Rafael, seria muito cansativa. A Alex e à Tânia, pela gentileza de corrigir-me o resumo e traduzi-lo para o inglês. Ao Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré, CEASM, e seus colaboradores, pelo apoio incondicional. Ressalto o valioso encorajamento por parte da equipe do Preparatório ao Ensino Médio. Vocês também foram fundamentais para mim. Ao grupo Musicultura pela convivência cheia de surpresas e experiências ricas. À direção e demais funcionários do Alojamento Estudantil da UFRJ, obrigada pelo carinho. Aos professores, funcionários e alunos da Faculdade de Letras da UFRJ. À direção, coordenação, inspetoria, corpo docente e alunos do Colégio Estadual Infante Dom Henrique, agradeço a compreensão pelas ausências. Reconheço a grande ajuda de minhas estagiárias Érika e Ana Paula, sem as quais não teria conseguido terminar as leituras necessárias para a realização deste trabalho. À equipe da biblioteca da Faculdade de Letras da UFRJ, Maria Inez Oliveto, Ubirajara Mendes, Sebastião Filho, Francisco Filho e Catarina, pela paciência e disponibilidade com que me atenderam. Aos membros da banca examinadora desta dissertação, professores Ronaldes de Melo e Souza, Eleonora Camenietzki, Luiz Edmundo Bouças e José Carlos Prioste, excelentes professores daquela que considero a maior universidade do Brasil. A todos aqueles que, mesmo distantes, torceram por mim. 7 Resumo. O trabalho estuda a i-mundície na poética de Manuel Bandeira. Uma categoria que, a partir da leitura de alguns poemas como “O Bicho”, pode ser entendida como uma forma metafísica de interpretação do mundo. Mas isto quando se toma um traço distintivo da obra, aquele da simplicidade, obtida na escolha das palavras e dos temas. Especificamente: um trabalho com a linguagem que nomeia o não-dito, cujo sentido é revelar o oculto. Assim, a análise e a interpretação descrevem o fenômeno observado. Textos de Adorno, Hannah Arendt, Benjamim, Davi Arrigucci Jr., Jean-Paul Sartre, Ronaldo Lins, André Bueno, dentre outros, oferecem os suportes necessários para as hipóteses a respeito da poética em questão. Na busca pela simplicidade e por estar atento ao movimento do real, o poeta insiste nas imagens dos sentidos, desvelando e revelando o essencial: a vida, que se tornou alienada, frágil e precária num mundo regido pelas mercadorias e suas imagens. Palavras-chave. Poesia. I-mundície. Simplicidade. Alienação. Condição Humana. Pensamento. Abstract. The work studies the I-MUNDÍCIE of Manuel Bandeira’s poetry. A cathegory, that, stemming from the reading of some of his poems, such as “The animal”, can be grasped as a methafisical way of interpreting the world. Yet, this happens when you follow a distinctive trait of the work, the one of simplicity, obtained by the right choice of words and topics. To be more specific: a work with a language that denominates the non-uttered, whose aim is to reveal the ocult. This is the way in which the analises and the interpretation describe the observed phenomenon. Texts created by Adorno, Hannah Arendt, Benjamin, Davi Arrigucci Jr., Jean-Paul Sartre, Ronaldo Lins, André Bueno, among the others, offer the necessary support to the hipothesis referring to the poetry discussed. By searching for simplicity as well as being attent to the movement of THE REAL, the poet insists on the images of the senses, uncovering and revealing the essential: THE LIFE, that has become alienated, fragile and precarious in a world blinded and governed by goods and the images that they create. Key words. Alienation. Poetry. Human condition. I-MUNDÍCIE. Thought. Simplicity. 8 SUMÁRIO RESUMO – ABSTRACT pág.8 INTRODUÇÃO pág.10 CAPÍTULO 1 – A simplicidade como manifestação da i-mundície pág.26 1.1 – O bicho pág.29 1.2 – O moderno encantamento pág.38 1.2 – A simplicidade bandeiriana: o complexo é o não-dito pág.55 CAPÍTULO 2 – Na i-mundície do pátio pág.61 2.1 – Grécia Antiga: a gênese da esfera privada e da esfera pública pág.84 2.1.1 – A esfera privada pág.84 2.1.2 – A esfera pública pág.86 2.1.3 – O social e o político pág.87 2.1.4 – A promoção do social pág.92 2.1.5 – A esfera pública: o comum pág.100 2.1.6 – A esfera privada: a propriedade pág.103 2.1.7 – o social e o privado pág.108 2.2 – A localização das atividades humanas pág.111 2.3 – A alienação do mundo: o i-mundo pág.117 2.3.1 – A alienação do mundo pág.128 CAPÍTULO 3 – A nova poética ou o convite à reflexão pág.143 3.1 – As metáforas e o inefável pág.158 CONSIDERAÇÕES FINAIS – No mundo de Irene pág.167 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS pág.173 ANEXOS pág.180 9 INTRODUÇÃO Neste trabalho, temos como objeto de estudo a poesia de Manuel Bandeira, que se inicia no momento em que sua vida, mal saída da adolescência, se quebra pela manifestação da tuberculose, doença então fatal. O jovem que compunha versos apenas por divertimento ou brincadeira, repentinamente, em vista da obrigatoriedade do ócio, do sentimento de vazio e tédio, começa a fazê-los por necessidade, respondendo à ocasião assustadora e inevitável. Por Davi Arrigucci Jr. (199), sabemos que esse dado da vida do poeta (a experiência marcada pela iminência da morte) é decisivo na configuração da obra poética, mas não é exclusivo e, em si mesmo, está longe de ser unilateral. Ligase à memória da infância, ao imaginário da doença, à descoberta do corpo, do desejo e do amor, à pobreza do filho de família nordestina tradicional em decadência, à solidão do indivíduo isolado como um náufrago num quarto flutuante, onde se protege para sobreviver, recolhendo no dia-a-dia as lembranças dos que se foram. Liga-se também a fatores de outra natureza, português, tais simbolismo, como a tradição vanguardas) e literária outros (lirismo elementos de técnica expressiva, conquistados no trabalho constante pelo domínio da linguagem (a descoberta da poesia nas palavras, o estudo dos princípios de construção do verso tradicional, a aquisição penosa do verso livre, os contatos com a música e 10 as artes plásticas). Além disso, liga-se ainda, podemos dizer, ao contato intelectual que manteve com amigos como Mário de Andrade e Sérgio Buarque de Holanda, dentre tantos outros. Daí se percebe como surge o estilo simples de Bandeira – traço principal de sua poesia. A humildade aparece então de fato como o produto de uma longa e difícil aprendizagem, como o resultado de uma lenta formação humana e artística. O autor de Humildade, paixão e morte comenta que, no caso humilde de Bandeira, a circunstância terrível da doença ilhava o poeta, deixando-o em princípio à margem da vida, condenado à frustração constante de todo desejo, ao “gosto cabotino da tristeza”, à “vida inteira que podia ter sido e que não foi”. Para o teórico, o “acre sabor” de toda essa frustração está de fato presente em sua poesia, mas o que parece definitivo para sua afirmação, amadurecimento e qualidade foi exatamente a progressiva luta para a superação de tudo isso, pelo rompimento do enclausuramento do Eu que nela se observa, por meio de contato da substância mais funda e íntima da interioridade com o mundo exterior1. A iminência da morte em Bandeira, mesmo não sendo um dado exclusivo de sua poesia, parece ser, sem sombra de dúvida, um fator para o seu definitivo projetar-se no mundo, seu agir em favor do mundo. Lembremos do que nos fala Em Humildade, paixão e morte, Davi Arrigucci Jr. mostra como essa processo de objetivação da experiência do poeta pode ser entendido a partir de uma dialética entre o espaço do quarto e o da rua , na sua lírica. 1 11 Deleuze, em entrevista concedida a Claire Parnet, da Tv francesa, entre os anos de 1988 a 1994: Se alguém que se propõe, — nem estou falando do sucesso desta empreitada — mas alguém que quer, que gosta e tem como proposta pensar ou tentar pensar, saber se o fato de ter uma saúde fraca lhe é favorável. Não é que se esteja à escuta de sua própria vida, mas pensar é para mim estar à escuta da vida. Não é o que acontece com si próprio. Estar à escuta da vida é muito mais do que pensar em sua própria saúde. Mas acho que uma saúde fraca favorece este tipo de escuta. Neste sentido, o filósofo aponta a doença como um intensificador da vida, bem como a dor acentua a noção de corpo; a dor nos torna conscientes do ponto que dói, de maneira que, quando se parte o corpo, sua totalidade é prejudicada e não só a parte que é partida. Assim, o que temos? Na iminência da morte – e a morte é o motor da vida – quem se aproxima do poeta é a própria vida, a ponto de celebrar: “O que eu adoro em ti, é a vida!”2 (grifo nosso). Parece responder a uma observação cortante de Cecília Meireles: “A vida é a vigilância da morte”. Bandeira aponta uma necessidade de negligenciar a morte para dar conta de sua tarefa de viver. Em vez de viver em vigilância preocupada, a negligência, inaugurada no adorar, permite a vida, ao que Gilles Deleuze completa: Quando falo em visão da vida, em vida ou em ver a vida, é ser tomado por ela. A doença aguça e dá uma visão da vida. A vida em toda a sua potência, em toda a sua beleza! Estou seguro disso. Mas como ter benefícios secundários da doença? É muito simples. É preciso usá-la para ser mais livre. 2 O poema segue no anexo a este trabalho. 12 Essa fala de Deleuze pode ser complementada com a da própria voz lírica encontrada no último verso do poema “Gesso”. “[...] só é verdadeiramente vivo o que já sofreu.” O Ritmo Dissoluto. Manuel Bandeira Como dissemos, a experiência de poder morrer converte a obra de Bandeira em uma declaração de amor à vida, e no percurso de sua poética uma forma de pensamento é inaugurada a partir do esforço de superação. Daí se desdobra a nossa hipótese: inscrita em no Manuel material Bandeira poético, observamos emergindo a aqui i-mundície3 e ali, em contraponto. Entendemos “i-mundície” como a forma metafísica de interpretação do mundo, em que o mesmo, por intermédio de um trabalho com a linguagem, nomeia o não-dito e revela o que parecia oculto. A idéia de estudar a i-mundície surgiu da leitura de alguns poemas, dentre eles “O bicho”, os quais caminharam para a convergência de uma prova desta ordem. Nestes, o poeta brasileiro, utilizando discurso comum, revela uma preocupação que ultrapassa questões locais: a condição humana. A fixação em transformar fatos cotidianos em matéria de poesia, valendo-se de palavras simples, livre de excessos, denota uma Doravante, serão grafadas algumas palavras, utilizando-se parênteses, tipo itálico de letra, hífens, a fim de ressaltar o valor expressivo de alguns de seus elementos mórficos: prefixos, sufixos, radicais, raízes etimológicas. Além disso, a palavra i-mundície assim se grafará por entendermo-na de modo particular. 3 13 nítida inquietação com o mundo, o qual, devido ao alheamento dos homens e sua conseqüente reificação, perde suas características. Desse modo, o homem não pertence mais ao mundo que produziu; é lançado, então, para o espaço do imundo, porque fora do mundo. Reflexão semelhante subjaz ao pensamento de Hannah Arendt a respeito das relações do homem e meio circundante. Em A Condição Humana, Arendt argumenta que o mundo já existia e continuará a existir depois que dele nos retirarmos. Para a filósofa, o instituições mundo é aquele duráveis conjunto criados pelos de artefatos homens, de e de maneira a permitir que estejam relacionados entre si sem que deixem de estar simultaneamente separados. O mundo não se confunde com a terra ou com a natureza, onde os homens se movem e de onde extraem a matéria com que fabricam suas coisas, mas diz respeito às barreiras artificiais que os humanos interpõem não apenas entre si, mas também entre eles e a natureza. Mundo refere-se, ainda, àqueles assuntos que estão entre os homens, isto é, que lhes interessam quando entram em relação política uns com os outros. Neste sentido, o mundo é também aquele conjunto de instituições e leis que é comum e aparece a todos. Segundo Hannah Arendt, nas modernas sociedades de trabalho e consumo, as barreiras que protegem o mundo em relação aos grandes ciclos da natureza vão sendo constantemente derrubadas em nome do ideal de abundância. 14 Observa que o mundo passa a adquirir caráter instável e inóspito, pois se apresenta quase inteiramente regido pela lógica do trabalho (labor) e do consumo, atividades que definem o homem como animal laborans. A alienação do homem em relação ao mundo tira-lhe totalmente a capacidade de reflexão e julgamento, o faz perder a noção de público e privado. É essa contraposição complementar e indissociável entre a luz do público e as trevas do espaço privado, entre necessidade e liberdade que orienta todo o pensamento político de Arendt. É exatamente o desequilíbrio entre esses pares de opostos interdependentes que confere o fio condutor de sua crítica ao caráter publicitário vazio de uma esfera pública midiática que impõe como inquestionáveis os interesses privados e vitais do animal laborans, ou seja, do homem como mero ser vivo que trabalha e consome, num ciclo fechado e cada vez mais acelerado em que tudo o que se produz está destinado ao consumo. Com base no que podemos escutar dos poemas, bem como nas obras de Espírito, Hannah Arendt, versaremos, A Condição assim, Humana sobre a e A vida do i-mundície. Acrescentaremos a essa reflexão outras teorias que relacionem literatura e sociedade, ou seja, que entendam o texto literário não desvinculado do seu contexto histórico; que problematizem as relações sociais mediadas pelas mercadorias; que questionem o comportamento humano no mundo contemporâneo. Neste sentido, esperamos que textos de Adorno, Benjamin, 15 Sartre, Ronaldo Arrigucci, Lins, dentre André outros, Bueno, nos Antonio Candido, ofereçam os Davi suportes necessários para fundamentarmos nossa proposição. O poema “O Bicho” encontra-se no livro Belo belo, de 1948, sua sétima coletânea. Esta obra é publicada na fase madura de Bandeira, cuja poesia alcança o auge de seu refinamento. A mim me parece bastante evidente que O Ritmo Dissoluto é um livro de transição entre dois momentos de minha poesia. Transição para quê? Para a afinação poética dentro da qual cheguei, tanto no verso livre como nos versos metrificados e rimados, isso do ponto de vista da forma; e na expressão das minhas idéias e dos meus sentimentos, do ponto de vista do fundo, à completa liberdade de movimento [...]4 Formado na tradição dos parnasianos e dos simbolistas, Bandeira sempre procurou formas mais livres5. Embora não tenha se engajado radicalmente na Semana de Arte Moderna, fato que ele mesmo declara no Itinerário, nosso poeta levou ao extremo uma construção poética feita em grande parte com palavras simples Arrigucci, isto e imagens decerto de implica todo dia. De acordo um modo de conceber com a literatura que ultrapassa a mera escolha e, ainda, determina- Citação de Manuel Bandeira em Itinerário de Pasárgada, pág. 62. Cabe lembrar que O Ritmo Dissoluto é o seu terceiro livro de poesias. 5 Segundo Antonio Candido, nos anos de 1910 a 1920 floresceu o Penumbrismo, do qual Bandeira sofreu profundíssima influência. Para o crítico, ele deve ser lembrado não apenas como manifestação final de certas tendências simbolistas, sobretudo a esfumatura das percepções e do sentimento, por meio de um verso discreto e macio, mas como preparação do terreno para o Modernismo, na preferência pelos temas cotidianos e na prática tanto do verso livre quanto dos versos regulares de ritmo liberado. 4 16 se em parte pelo momento histórico e pelos rumos da produção literária da época. Como sabemos, o contexto no qual a referida obra se afirma e amadurece é atravessado por duas guerras mundiais, cujos reflexos atingiram o Brasil. Ao mesmo tempo, é importante lembrarmos que o fato desta obra configurar-se como tal se deve em grande parte à implementação oficial da nova estética: o Modernismo. Parnasianismo, Simbolismo, Penumbrismo, Realismo naturalista: estas tendências formaram um bloco de literatura convencional que marcou o gosto médio no Brasil, permanecendo como padrão da literatura durante muito tempo, até serem repudiadas pelos modernistas. Antonio Candido destaca que o Modernismo não foi apenas um movimento literário, mas foi, como o Romantismo, um movimento cultural e social de âmbito bastante largo, que promoveu porque a reavaliação coincidiu com da outros cultura fatos brasileira, importantes inclusive no terreno político e artístico. Dava a impressão de que, na altura do Centenário da Independência (1922), o Brasil efetuava uma revisão de si mesmo e se abria a novas perspectivas, após as transformações mundiais da Guerra de 1914-1918. Transformações que aceleraram o processo de industrialização e abriram um breve período de prosperidade para o nosso principal produto de exportação, o café. É claro que essa industrialização acelerada deu-se às custas da exploração dos mais pobres, do autoritarismo governamental, mesmo que 17 mascarada sob a figura do “bom velhinho”, e, posteriormente, de outros líderes. O Modernismo, anteriores, assim resultou de como os impulsos movimentos internos e literários externos. As vanguardas francesas e italianas ofereceram modelos adequados para exprimir a nova civilização mecânica e o ritmo das grandes cidades, valorizando as componentes primitivas, que no Brasil faziam parte da realidade. Daí o livro inicial do movimento ser Paulicéia Desvairada (1922), de Mário de Andrade. Nesta obra, a personagem principal é a cidade de São Paulo, em processo transformar-se na de mais desenvolvimento importante do país e prestes pela a potência econômica. Típico da nova era, São Paulo se caracterizava pela massa de imigrantes recebidos desde os anos de 1880 e por um setor culto da oligarquia, que patrocinou as manifestações da vanguarda artística e literária, de que foi um dos centros dominantes. O outro centro foi o Rio de Janeiro, onde a maior tradição urbana havia gerado manifestações culturais mais resistentes, resultando formas menos agressivas de modernização. Em São Paulo teve lugar a histórica Semana de Arte Moderna (1922), que tinha sido precedida por artigos de Menotti Del Picchia e Oswald de Andrade desde 1920 e lançou publicamente a renovação, encarnada por jovens escritores como, além dos dois citados, Mário de Andrade e Guilherme de Almeida, de São Paulo, Manuel Bandeira e Ronald de Carvalho, do Rio de Janeiro, aos quais é preciso juntar os nomes dos pintores Emiliano Di Cavalcanti e Anita Malfatti, do escultor Victor Brecheret, do compositor Villa-Lobos.6 Segundo Antonio Candido, o Modernismo brasileiro foi complexo e contraditório, com linhas centrais e secundárias. Citação de Antonio Candido em Iniciação à Literatura Brasileira. 4ª ed., Rio de Janeiro, Ouro sobre Azul, 2004, pág. 89. 6 18 No entanto, iniciou uma era de transformações essenciais. No início, considerado uma afronta ao bom gosto, o movimento acabou repercutindo nacionalmente, tornando-se fator de renovação e ponto de referência da atividade artística e literária. A fase mais fecunda da literatura brasileira se iniciava, como coloca Candido, pois esta já havia adquirido maturidade para absorver as sugestões das matrizes culturais, produzindo uma literatura própria. A defesa da liberdade de criação e experimentação, começando por atacar a estética acadêmica foi a contribuição fundamental do modernistas, movimento, para tanto, conforme aponta valorizaram na o crítico. poesia os Os temas cotidianos tratados com prosaísmo e quebraram a hierarquia dos vocábulos, adotando as expressões coloquiais mais singelas, mesmo vulgares. Dessa forma, combateram a mania gramatical e pregaram características o regionais, uso da língua incorporando de o acordo com vocabulário as e a sintaxe irregular de um país em que se observava a mistura das culturas e etnias. Cabe lembrar também que estes artistas passaram por cima das diferenças entre os gêneros, deixando de lado formas poéticas regulares, inserindo poesia e insólito na narrativa em prosa, mesclando fantasia e documento, lógica e absurdo. Recorreram, ainda, ao primitivismo e ao português deformado dos imigrantes. Os românticos civilizaram a figura do índio, introduzindo nele os padrões do cavalheirismo tradicional, 19 criando o que Roberto Schwarz chamou de “nacionalismo por subtração”. Em contrapartida, os modernistas procuraram no índio e no negro o primitivismo, que introjetaram nos padrões da civilização convenções dominante acadêmicas como renovação vigentes, compondo e o quebra que se das pode chamar, segundo Márcia Regina Xavier Caseiro, de nacionalismo por soma. Muitos, no entanto, adentraram num artificialismo igual ao dos românticos, principalmente aqueles que se basearam na tradição indígena para alimentar certo patriotismo. Alguns modernistas de São Paulo, convictos disto, se opuseram às tendências cosmopolitas Verde-Amarelo, de um e demolidoras patriotismo e criaram sentimental. As o grupo atitudes desse grupo resultaram, mais tarde, em conservadorismo. Este não foi o caso de Bandeira. Praticamente sozinho entre os modernistas de sua época, resgata o lirismo de uma maneira bem singular, ao utilizar em seus poemas fatos cotidianos que, talvez, outros não quisessem mencionar. Essa atitude nada tem de conservadora visto que, em um momento no qual a humanidade passava por experiências irremediáveis, nada mais há de revolucionário do que a volta ao lirismo como meio de resistência a uma sociedade massificada. Um lirismo em que experiência pessoal e observação do dia-a-dia se fundem, constituindo-se numa ligação profunda do eu com o mundo circundante. 20 Ao voltar-se para o mundo, sua obra desvela e revela o i-mundo,isto é, o não-mundo, entendido aqui como desencanto, ambiente sem coração, impessoal e abstrato, lugar que frustra e leva à renúncia, que empobrece a experiência, administra a vida, fragiliza o indivíduo e, no geral, desumaniza, como enfatiza André Bueno, em Formas da Crise. Um mundo onde o racismo, a fome, a miséria e a alienação se tornaram banais, ou seja, um mundo onde o mal se torna algo banal, devido à ausência de pensamento, como afirmou Hannah Arendt, após cobrir como jornalista o julgamento do oficial nazista Adolf Karl Eichmann (1961), responsável pelo transporte de prisioneiros para os campos de concentração. Nunca se matou tantos civis e tantos inocentes, como nos extremos do “curto século XX”, para usarmos a expressão de Eric Hobsbawm (período que vai de 1914 a 1991), por oposição ao “longo século XIX” (que vai de 1776 a 1914), o qual, segundo o mesmo, foi um período vital para a formação das esperanças e impasses que até hoje nos afetam. O i-mundo aqui se configura como o mundo da indiferença, conforme categoria proposta por Ronaldo Lima Lins, em A indiferença pós-moderna. Neste livro, o teórico a utiliza como sinal do comportamento moderno em qualquer de suas fases, inclusive a atual. Lima Lins questiona o seguinte fato: como pensar que o homem se tornaria indiferente, que o egoísmo invadiria o psiquismo e se imporia como norma, atingindo ricos e pobres, miseráveis e bem-sucedidos? Para o autor, a ilusão de normalidade sugere 21 um estado de calmaria que condiz mal, ou não condiz, com o tumulto subterrâneo responsável pela anomalia. Pensar condição a obra humana de nos Bandeira limites nestes postos termos pela é forma pensar a histórica chamada capitalismo, ou seja, a condição humana frágil e precária cujo contorno atual pode ser observado a partir da banalidade da mais corriqueira vida cotidiana. Nossa interpretação da obra de Bandeira obteve respaldo e consistência mediante a leitura de “Lírica e Sociedade”, de Theodor W. Adorno. Neste artigo, encontramos algumas respostas para nossas inquietações. De acordo com o teórico, essa relação só é possível a partir do momento em que se põe a descoberto pelas formações líricas (mediante o contato com o social) algo essencial, algo do fundamento de sua qualidade. Para ele, a relação com o social não nos deve afastar da obra de arte, mas, ao contrário, inserir-nos mais profundamente nela. Para tanto, nos convida à reflexão. Coloca que o conteúdo de um poema não é apenas a expressão de emoções e experiências individuais. Mas estas não chegam a ser artísticas a menos que consigam participação do geral por meio da especificação da essência de sua forma estética: Não se trata de que o que expressa o poema lírico tenha de ser o diretamente vivido por todos. Sua generalidade não é uma volonté de tous, não é uma generalidade de mera comunicação de que os demais não podem comunicar; o que ocorre é que a inversão no individual eleva o poema lírico ao geral através do processo de tornar manifesto algo não deformado, não apreendido, ainda não associado, antecipando assim, espiritualmente, algo de uma situação na qual nenhuma generalidade má, que é profundíssima particularidade, se vinculasse ao outro, ao humano. O poema 22 lírico espera o geral da individuação sem reservas. E a lírica tem como risco característico o fato de que seu princípio de individuação não garante nunca a criação de algo compulsório e autêntico. A lírica não tem nenhum poder contra o risco de permanecer na acidentalidade da mera existência fragmentada. (Págs. 343-344) Ao tratar do poema lírico, Adorno afirma que a generalidade de seu conteúdo é essencialmente social. Segundo ele, só entende o que diz o poema aquele que percebe na voz do mesmo o elemento de humanidade, até porque a solidão da palavra lírica está prefigurada pela sociedade individualista e atomística, do mesmo modo que, ao contrário, sua força compulsória geral vive da densidade de sua individuação. Deste modo, o teórico chama a atenção para o fato de que a reflexão sobre a obra de arte está autorizada e obrigada a perguntar-se concretamente sobre o conteúdo social e a não se contentar com o vago sentimento de um algo geral e compreensivo. Tal determinação do pensamento não é, como bem menciona, uma reflexão estranha e externa à arte, mas é, antes, exigida por toda formação lingüística. O material desta, os conceitos, não se esgotam na mera contemplação. Para poderem ser contemplados esteticamente exigem sempre que sejam pensados, e o pensamento, uma vez posto em andamento pelo poema, não pode deter-se quando este lhe ordena. Adorno alerta para o fato de que a interpretação social da lírica (como de toda obra de arte), não deve visar, sem mediação, à chamada posição social ou à situação de interesse das obras, e menos ainda de seus autores. Para o teórico, ela 23 deve averiguar como aparece na obra de arte o todo de uma sociedade como unidade em si mesma contraditória; até que ponto fica a obra de arte condicionada à sociedade, e em que medida ela a ultrapassa. Em seus estudos, Adorno propõe que os conceitos sociais não devem ser acrescentados de fora às formações artísticas, mas devem ser conseguidos mediante a observação exata delas. Trata-se, nas palavras dele, de um procedimento imanente. Citando a frase de Goethe, em suas Maximen und reflexionen, segundo a qual “não possuis o que não entendes”, Theodor Adorno vai afirmar que esta não se aplica apenas à relação estética com a obra de arte, mas também à teoria estética: nada que não esteja nas obras, na sua própria formação, legitima a decisão sobre o que o conteúdo delas – o próprio fazer poético – representa socialmente. Para que determinemos isso nos é exigido tanto um conhecimento da interioridade da obra de arte quanto da sociedade que lhe é exterior. Nessa empreitada, é necessário, contudo, estarmos alertas quanto ao conceito de ideologia, como nos adverte o autor de Dialética do Esclarecimento, visto que este conceito se encontra hoje muito desgastado. Assim postula: Ideologia é não verdade, consciência falsa, mentira. Ela se revela no fracasso das obras de arte, sua falsidade em si, e é alvo da crítica. Quando, ao contrário, trata-se de grandes obras de arte cuja essência está na formação e, por isso mesmo, na reconciliação tendenciosa das contradições básicas da existência real, acusá-las de serem ideologia, não só é uma injustiça a seu próprio conteúdo de verdade, como, além disso, uma falsificação do conceito de ideologia. Este conceito não afirma que todo pensamento só 24 sirva para que certos indivíduos apresentem interesses particulares como gerais, mas propõe-se a desmascarar o pensamento decididamente falso e a concebê-lo, ao mesmo tempo, em sua necessidade. (pág.344) Para unicamente Adorno, em a grandeza revelar o das que obras a de ideologia arte consiste oculta. Sua consecução, seu êxito, supera a falsa consciência. Isso posto, perceberemos que a obra de Bandeira nos apresenta um cotidiano configurado, ao mesmo tempo prático e simbólico, real e imaginário, que mistura elementos da longa duração histórica e da atualidade. Esse cotidiano apresentado e representado não é jamais direto, transparente, muito menos legível em suas articulações mais sutis e elaboradas. A poesia bandeiriana apreende o mundo a sua volta de maneira paradoxal, dizendo sem dizer, como desenvolveremos ao longo de nossa dissertação, o que nos faz supor, junto com André Bueno, que talvez seja mais produtiva a hipótese da forma literária como lugar de elaboração, também sutil e complexa, sempre contraditória, desse campo configurado da vida cotidiana. Essas foram as sensações que tivemos ao ler a poesia de Bandeira. Essa dissertação é um pouco a recomposição dessa leitura. 25 CAPÍTULO 1 – A SIMPLICIDADE COMO MANIFESTAÇÃO DA I-MUNDÍCIE Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte? - O que eu vejo é o beco. Poema do beco. Estrela da Manhã Bandeira, ao se ver forçado a abandonar seu apartamento do Curvelo, fala, no Itinerário de Pasárgada, sobre a tristeza que isso lhe causou. Em seu novo apartamento na Morais e Vale, uma rua da Lapa, o poeta, acostumado a contemplar a paisagem do alto, comenta: “Da janela do meu quarto em Morais e Vale podia eu contemplar a paisagem, não como fazia do morro do Curvelo, sobranceiramente, mas como que de dentro dela: as copas das árvores do Passeio Público, os pátios do Convento do Carmo, a baía, a capelinha da Glória do outeiro... No entanto, quando chegava à janela, o que me retinha os olhos, e a meditação, não era nada disso: era o becozinho sujo embaixo, onde vivia tanta gente pobre – lavadeiras e costureiras, fotógrafos do Passeio Público, garçons de café. Esse sentimento de solidariedade com a miséria é que tentei pôr no “Poema do Beco”, [...]” pág.82 Esse depoimento nos revela uma das tendências da obra de Bandeira, o gosto pelo simples. No “Poema do Beco”, percebese que as paisagens consideradas “bonitas”, “belas”, dignas de registro (a baía de Guanabara, o mar, o bairro nobre da Glória) são deixadas de lado para que se apresente o que comumente não se mostra. O poeta relata, no mesmo Itinerário, que esse gosto pelo cotidiano mais simples lhe veio dos 26 tempos do Curvelo, do contato com a gente dali. Observa-se que a mudança não modifica sua postura. Outro fator que influencia Bandeira, fazendo com que opte pela liberdade temática e formal foi o contato com o grupo paulista de amigos (engajados no Movimento Modernista), pelos quais o poeta tinha grande afeição. É possível percebermos nos poemas deste a adesão à nova poética, e que Oswald de Andrade, por exemplo, leva a cabo com total radicalismo: “A poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e de ocre nos verdes da Favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos. O Carnaval no Rio é o acontecimento religioso da raça. Pau-Brasil. Wagner submerge ante os cordões de Botafogo. Bárbaro e nosso. A formação étnica rica. Riqueza vegetal. O minério. A cozinha. O vatapá o ouro e a dança. Manifesto da Poesia Pau-Brasil,18 de março de 1924. Todavia, é na poesia do autor de Belo Belo que idéia e forma fundem-se configurando um todo que, em princípio, dá a impressão de estarmos diante de algo aparentemente simples. É esta relação significativa entre conteúdo e prática específica (configurada num estilo humilde) que caracteriza a lírica em estudo. Procuraremos demonstrar que relações mantêm a forma poética e o conceito daí derivado. Muito se tem escrito sobre a obra de Bandeira, mas o que parece consenso Candido, Sérgio entre os Buarque estudiosos, de Holanda, entre Davi eles Antonio Arrigucci Jr., 27 Gilberto Mendonça Teles, Giovanni Pontiero, Diva Vasconcellos da Rocha e outros, é a constatação da simplicidade. A partir deste dado cada um deles dá rumo à própria interpretação, e, neste caminho, aborda o tratamento de vários temas, o que nos permite observar a pluralidade de focos que irradia da obra. A respeito disso Antonio Candido tem o que dizer. Os poemas de Bandeira, observa, podem ser lidos de vários modos – um seria pensá-los com referência aos dois pólos da Arte, isto é, o que adere estritamente ao real e o que procura subvertê-lo por meio de uma deformação voluntária. Ambos são legítimos e isto denota a maestria com que os faz aceitar como expressões válidas da sua personalidade. Para Candido, o que permite semelhante procedimento é que, entre os dois modos, ou os dois pólos da criação, corre como unificador um Eu que se revela incessantemente quando mostra a vida e o mundo. Assim como em Antonio Candido, nossa atenção também é despertada inicialmente pela voz lírica deste Eu, que, ao construir os poemas, nos proporciona momentos de êxtase e de reflexão, imprimindo em cada verso o seu timbre e a sua vida. Ela é o produto de componentes que nunca poderemos listar, como bem diria o crítico, e de que apenas vislumbramos uma ou outra, segundo o ângulo em que nos situamos. Tomando um traço distintivo de sua forma de expressão – a simplicidade natural – investigaremos os vínculos desse traço estilístico com a conduta de humildade diante da vida e 28 da poesia, empenhando-nos por discernir, auxiliados pelas colocações dos teóricos já mencionados, os efeitos provocados pela obra em questão. 1.1 “O BICHO” Vi ontem um bicho Na imundície do pátio Catando comida entre os detritos. Quando achava alguma coisa, Não examinava nem cheirava: Engolia com voracidade. O bicho não era um cão, Não era um gato, Não era um rato. O bicho, meu Deus, era um homem. O bicho. Belo belo O poema chama a atenção pela maneira natural e simples do eu emprego lírico narrar das palavras algo visto, “bicho”, como “pátio”, podemos notar “catando”, pelo “cão”, “gato”, “rato”, “comida”, “imundície”, além da expressão “meu Deus”. Muitas vezes mal interpretado, o poema, por dar a impressão de total naturalidade, soa ao leitor comum como uma tentativa mal sucedida de participação social. Mesmo Emanuel de Moraes, em seu livro Manuel Bandeira: Análise e Interpretação Literária, chega a declarar que: “Bandeira não soube e talvez quisesse mas não pôde ser um poeta capaz de intencionalmente cantar os grandes temas sociais e políticos. (...) Há poemas como O bicho, de 29 Belo Belo, em que chega a tangenciar a temática da poesia social. Contudo sua apreciação é lírica (grifo nosso). O seu verso não tem a força épica caracterizadora dessas criações (...) Não consigna o seu protesto. Não investe contra a miséria, nem contra as classes dominantes. Não exalta o miserável. O poeta sofre do mesmo modo como sofrera em tantas ocasiões em que os fatos só tinham relação consigo mesmo. Todavia, consegue despertar o leitor para a problemática das desigualdades sociais.” Parece haver apoio à conclusão do crítico nos versos de “Testamento”, de Lira dos Cinqüent’anos: “Sou poeta menor, perdoai! Não faço versos de guerra. Não faço porque não sei.” Tais opiniões não se sustentam se levarmos em conta o que postulou Adorno, em Lírica e Sociedade. Para ele, o conteúdo de um poema não é apenas a expressão de emoções e experiências individuais. Mas estas não chegam a ser artísticas a menos que consigam participação do geral por meio da especificação da essência de sua forma estética. Há em Bandeira essa “participação do geral”, especificamente quando este se refere à sociedade na linguagem conatural ao povo. Logo, de que mais necessita o poema para ser chamado de lírica social? Jean-Paul Sartre, um dos mais veementes teóricos do engajamento social do escritor, em Que é a Literatura?, em momento algum exige do poeta lírico a postura cobrada por Moraes. Para ele, ainda que seja a indignação ou o ódio político a dar origem ao poema, o verdadeiro lírico jamais estará se utilizando das palavras como faria o prosador, mas 30 sim se entregando incondicionalmente à linguagem, como num adentramento “no reino das palavras”, conforme os versos drummondianos nos lembram: “(...) Penetra surdamente no reino das palavras. Lá estão os poemas que esperam ser escritos. Estão paralisados, mas não há desespero, há calma e frescura na superfície intata. Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário. Convive com teus poemas, antes de escrevê-los. Tem paciência se obscuros. Calma, se te provocam. Espera que cada um se realize e consume com seu poder de palavra e seu poder de silêncio. Não forces o poema a desprender-se do limbo. Não colhas no chão o poema que se perdeu. Não adules o poema. Aceita-o como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada no espaço. Chega mais perto e contempla as palavras. Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra e te pergunta, sem interesse pela resposta, pobre ou terrível, que lhe deres: Trouxeste a chave?(...)” Em Sartre, o que se põe em questão é a diferença que este estabelece entre a atividade do lírico e a do prosador. No primeiro capítulo do livro, “O que é escrever?”, o filósofo menciona que, ao contrário do prosador, que ao expor os seus sentimentos, busca esclarecê-los, o poeta deixa de reconhecer os sentimentos e paixões que virtualmente deram ensejo ao poema, pois os entrega à livre ação das palavras, que deles se apoderam e os metamorfoseiam. As palavras, no poema, deixam assim de significar, de remeter a realidades exteriores, como seria próprio do signo; elas não mais significam, mesmo aos olhos do poeta: "A emoção se tornou 31 coisa, passou a ter a opacidade das coisas; é turvada pelas propriedades ambíguas dos vocábulos em que foi confinada". Somente ao romancista (e ao prosador de modo geral) coloca-se a exigência de dotar o universo criado de um movimento que leva à superação das injustiças que esse universo encerra. As implicações que esse movimento tem para o leitor não são evidentemente extensíveis ao leitor de poesia. Para fundamentar seu argumento, o autor de Que é a literatura? expõe algumas indicações sobre a origem de sua atitude em relação à linguagem poética. Originalmente, segundo Sartre, a poesia cria o mito do homem, enquanto o prosador traça o seu retrato. O ato humano, na realidade, é, em certo sentido, um meio, porque é comandado pelas necessidades e solicitado pelo útil. O homem, nesse caso, é alienado pelos seus fins. A poesia, nesse contexto, inverte a relação, pois o mundo e as coisas passam para o inessencial, convertem-se em subterfúgio para o ato, que se torna o seu próprio fim. Dessa maneira, observaremos, por exemplo, que a guerra de Tróia existirá para que Heitor e Aquiles travem combate heróico. abrandam, torna-se indiferente século A XIX, ao ação, proeza sucesso mantém-se da em desligada ou de seus dança. No empreitada, acordo com o a fins, entanto, poeta, que mesmo antes sociedade se em do seu conjunto. Ele não usa a linguagem com a finalidade visada pela prosa, mas deposita nela a mesma confiança do prosador. 32 Já após compactua o com advento a da atitude sociedade do burguesa, prosador, quando o a poeta declara insuportável. Trata-se ainda de criar o mito do homem, mas ele “passa da magia branca para a magia negra”. O homem continua sendo apresentado como o fim absoluto, contudo se atola numa coletividade utilitária quando alcança êxito no seu empreendimento. Não é mais o sucesso e sim o fracasso que, estando em segundo plano no seu ato, permitirá sua passagem ao mito. Apenas o fracasso, ao interromper seus projetos, o devolve a permanece inessencial, si mas mesmo, em continua sua pureza. presente, O agora, mundo como pretexto para a derrota. Para Sartre, a finalidade da coisa é devolver o homem a si mesmo, impedindo-lhe o caminho. Não se trata de introduzir aleatoriamente a ruína e a derrota no curso do mundo, mas antes de só ter olhos para ela. Assim afirma: A empresa humana tem duas faces: é ao mesmo tempo êxito e fracasso. Para pensá-la, o esquema dialético é insuficiente: é preciso tornar ainda mais flexível o nosso vocabulário e as estruturas de nossa razão.(...) normalmente não se consideram as duas faces de Jano: o homem de ação vê uma e o poeta vê a outra. Quando os instrumentos estão quebrados, fora de uso, os planos frustrados, os esforços inúteis, o mundo aparece com um frescor infantil e terrível, sem pontos de apoio, sem caminhos. Ele tem aí o máximo de realidade porque é esmagador para o homem, e, como a ação de qualquer modo generaliza, a derrota confere às coisas sua realidade individual. Mas, por uma inversão prevista, o fracasso considerado como fim derradeiro é ao mesmo tempo contestação e apropriação desse universo (grifo nosso). Contestação porque o homem vale mais do que aquilo que o esmaga; ele não contesta mais as coisas em seu ‘pouco de realidade’, como o engenheiro ou o capitão, mas, ao contrário, em seu excesso de realidade, exatamente por sua condição de vencido; o homem é o remorso do mundo. 33 Apropriação porque o mundo, deixando de ser instrumento do êxito, torna-se instrumento do fracasso. pág 31 Para o filósofo, o mundo passa a servir ao poeta por seu coeficiente de adversidade. O fracasso se transforma em salvação, não como acesso a algum plano do além: por si mesmo ele oscila e se metamorfoseia. Um exemplo é a linguagem poética, que surge das ruínas da prosa. Se se considera que a palavra é uma traição e que a comunicação é impossível, então cada vocábulo, por si só, retoma sua individualidade, tornase instrumento da nossa derrota e receptador do incomunicável: Não que exista outra coisa a comunicar; é que, tendo malogrado a comunicação da prosa, é o próprio sentido da palavra que se torna o puro incomunicável. Assim, o fracasso da comunicação se torna sugestão do incomunicável; e o projeto de utilizar as palavras, contrariado, dá lugar à pura intuição desinteressada da fala. Pág.31 Em “O expressiva Bicho”, para a podemos reflexão encontrar desenvolvida complementação por Sartre: ao referir-se ao malogro humano, “vi ontem um bicho/na imundície do pátio/catando comida entre os detritos”, o poema resgata a dignidade no que ela tem de essencial. O homem vale mais do que aquilo que o aniquila: “O bicho, meu Deus, era um homem”. Em Sartre é o insistente olhar para o fracasso que resgata a dimensão do humano. Em Bandeira é no espaço da i-mundície que, inversamente, o Homem pode redescobrir-se. 34 É claro meramente em Aristóteles), que o significado imitar não uma se ação esgota no do poema não completa ato se (como de resume formulou reconstituir um acontecimento observado num meio paupérrimo. Se essa formação lírica possui um significado mais específico, este não se deve em primeiro lugar ao êxito do procedimento mimético, mas resultaria expressão antes pelo da impregnação mundo social de sua observado e própria forma vivenciado, de como propõe Adorno. Dessa maneira, o aprofundamento na estrutura formal do limita a texto deveria representar, demonstrar com que elementos “O bicho” não lírico-narrativos, se a realidade social de um mendigo, mas se constitui o poema, na própria materialidade lingüística, enquanto expressão estética dessa mesma realidade social. Esta vem filtrada pela participação afetiva do poeta, uma vez que o evento foi concebido “sob um certo ponto de vista” e acolhido “dentro de uma certa tonalidade afetiva”, para usarmos os termos sugeridos por Alfredo Bosi em sua "Interpretação da obra literária"7. É assim que o eu lírico, valoriza quanto pode, com simplicidade, a descrição do ser Em seu ensaio “A interpretação da obra literária”, Alfredo Bosi chama a atenção para o significado dos conceitos de "tom" e "perspectiva" na organização da obra literária. Na perspectiva hermenêutica exposta no ensaio, algo só se tornaria um evento para o sujeito "quando este o situa no seu aqui e o temporaliza no seu agora; enfim, quando o sujeito o concebe sob um certo ponto de vista e o acolhe dentro de uma certa tonalidade afetiva." Mais adiante (p. 283), outra formulação enfatizando a relevância hermenêutica dos conceitos de "tom" e "perspectiva": "A afinação do tom e a busca da perspectiva exata iluminam os dados particulares". Veja-se em especial a reflexão desenvolvida no tópico Perspectiva e tom - in Céu, inferno, São Paulo, Ática, 1988, p. 274-287. 7 35 que observa: “Vi ontem um bicho/ na imundície do pátio/ catando comida entre os detritos.” As palavras selecionadas para narrar o fato é índice da tentativa de aproximação ao objeto. O “eu” ausenta-se para que o leitor acolha o objeto, ao nível da sintaxe da língua, que se faz sujeito do poema (“um bicho/catando comida entre os detritos). No segundo terceto do poema, percebemos que a ação de catar comida é detalhada: “Quando achava alguma coisa/ Não examinava nem cheirava:/ Engolia com voracidade”. Na terceira estrofe, já estamos diante de o bicho e a “voz” de um sujeito não nomeado, porque fala como um sujeito coletivo, busca conhecer pelo processo de exclusão a identidade do bicho. Diva Vasconcellos da Rocha nos chama a atenção para o emprego consciente da ingênua técnica de suspense das adivinhas populares (“O bicho não era um cão/Não era um gato/Não era um rato”). Além disso, há o vocativo clicherizado, meu Deus, muito comum na linguagem corrente. Segue então todo o processo de descrição, e a qualidade desses versos livres - que deixam pressentir a mestria de Bandeira também na arte da prosa, como salientou Arrigucci8 pode ser observada na precisão e expressividade dos verbos, substantivos, advérbios, usados tanto para a descrição como 8 Vale lembrar a observação de Davi Arrigucci Jr. referente à qualidade da "prosa imitada" bandeiriana nos versos livres do poema “O cacto”: "O controle perfeito da nuance exata que se busca, supervisionando o andamento do discurso em percurso contínuo e linear, ajustado precisamente ao assunto, revela de fato a atitude do exímio prosador". 36 para narrar as circunstâncias que envolvem o ser. Notamos aí a precisão vocabular e sua estreita ligação com o tom fundamental do poema. Dessa maneira, revela-se na própria dimensão lingüística trabalhada por Bandeira a proporção do “imundo” em que o sujeito humano está submetido. Ao retratar a imagem do homem remexendo como um animal a lata de lixo à busca de comida, o eu lírico o faz no discurso que julgamos poder chamar, com Erich Auerbach, de expressão do “sermo humilis”, nomeando as coisas indizíveis e essenciais e traduzindo a contemplação inefável suspensa da práxis humana e sustentada pela práxis poética. Como sabemos, Auerbach, em seu humilis, chama a atenção para estudo sobre o essa sermo característica da sublimidade no discurso cristão de se equiparar muitas vezes ao obscuro e ao oculto, mas acentua ao mesmo tempo que também este não é um sublime de que nem todos poderiam participar; ao contrário, a humildade continua sendo o aspecto “onicompreensivo” deste estilo, cuja marca é a vizinhança humana, a imediatez do contato que estabelece, a universal acessibilidade que instaura. De forma análoga, podemos observar que na poesia de Bandeira mesmo o que se oculta paradoxalmente se mostra simples. E o oculto, nesse momento, começa a revelar-se. E a realidade se manifesta como um choque. Surge da estranheza de que, de repente, o familiar é mais que familiar, é o próprio senhor, que se encontra na imundície do pátio, não mais como 37 “ob-jeto”, mas como “abjeto” e “sujeito”, porque lançado fora do “mundo” para o espaço “imundo”. Nessa linha de leitura, a interpretação pode transcender a imanência da história tematizada no poema e apreendê-la também como simbolização da i-mundície, por revelar um estado de coisas que caracteriza o homem moderno. Somente em um mundo marcado pelo consumismo desenfreado é que se acentuam a desigualdade econômica, a alienação, a reificação, todos os problemas sociais. Neste, a confusão entre as esferas pública e privada, a qual, por sua vez, se tornou pública por ser o cerne do único mundo comum que todos compartilham por meio da atividade do labor, como observa Hannah Arendt, desponta para resultados talvez irresolúveis. 1.4 – O moderno encantamento A aproximação ao prosaico e à realidade misturada do cotidiano conduz, como afirma Arrigucci, à utilização de uma nova técnica poética: o verso livre9. A este respeito Davi Arrigucci coloca que, no Brasil, a aceitação do verso livre traz consigo a aproximação ao mundo prosaico e à mescla estilística característica dos modernos, articulando-se com a forma mentis renovadora do movimento modernista, em contacto com as novas correntes artísticas e de pensamento do século XX. Os simbolistas foram os primeiros a experimentar esse novo meio expressivo. São bem conhecidas as raízes simbolistas da poesia moderna. (...) Será preciso esperar, porém, a poesia de Bandeira para que se dê a aclimatação plena da nova técnica, com tudo o que ela implicava. No seu ensaio sobre a poesia de 30, Mário de Andrade, ao lidar com o verso livre enquanto aquisição de ritmo pessoal, chamou a atenção para um aspecto característico de Bandeira, aproximando a rítmica áspera do poeta ao físico do homem, marcando ainda o caráter tipográfico de sua poesia, capaz de dispensar qualquer doçura de ondulação e até de prescindir do som, oferecendo-se à “leitura de olhos mudos”. À parte certo exagero quanto ao som e à ondulação, que Bandeira sabia manipular como bem queria, Mário definiu com a agudeza de grande crítico: “Ritmo todo de ângulos, incisivo, em versos espetados, entradas bruscas, sentimentos em lascas, gestos quebrados, nenhuma ondulação”. 9 38 Segundo o teórico, a princípio Bandeira deve ter se sentido estimulado pela leitura de poetas estrangeiros de sua predileção no momento – Guy Charles Cros, Mac-Fiona Leod, Maerterlinck, Laforgue, Apollinaire e outros. Depois deve ter ido descobrindo por si os recursos e possibilidades do verso livre para sua própria expressão e a de seu tempo, mediante uma relação profunda e orgânica entre o novo meio e a matéria nova que tinha em suas mãos. Arrigucci aponta que a principal característica desse novo meio era precisamente sua estrutura mesclada onde se misturam poesia e prosa, o verso se abrindo para o prosaico, a prosa mudando-se em poesia. Não podemos esquecer que esse deslocamento do foco de interesse literário para o prosaico e a vida de todo dia fazia parte de um contexto mais amplo, dominado pela preocupação com a realidade brasileira. Arrigucci ressalta que esta expressão serviu como uma espécie de farol para uma tentativa de modernizante redescoberta de nossa do país sociedade, e para uma inquietações visão que se radicalizaram, sobretudo, a partir da Revolução de 30 e se impuseram fortemente à consciência dos escritores, dilatando muitíssimo o repertório de seus temas e o alcance de sua linguagem, tocados pelo desejo de novos horizontes. Para o teórico, a nova técnica literária, vinda com os ventos do futuro da poesia moderna, assentou-se aqui provavelmente atraída, entre outras coisas, pelo fascínio modernista com a fala brasileira, isto é, com o discurso falado não artístico, 39 que parecia, porém, brotar idealmente da boca do povo. A imitação do discurso prosaico não organizado artisticamente, como o coloquial brasileiro, é que constitui o procedimento básico no caso de um novo modo de organização artística do tipo do verso livre. Em Arrigucci vamos perceber que, para ele, no Brasil, a busca do prosaico não é, na maioria dos casos, uma crítica de estereótipos da vida moderna e do avanço da reificação, mas ao contrário, um meio de descoberta de ângulos novos da realidade brasileira, encobertos no processo histórico que gerou o atraso econômico-social do país. Segundo ele, nossos escritores, levados pelo desejo de integração nacional e modernização da inteligência brasileira, assimilam a técnica moderna, mas instrumento também mudam-lhe de muito dessemelhantes pesquisa muito e heterogênea e muitas o sentido. conhecimento e vezes de misturada, inéditos até Fazem dela um uma realidade com aspectos então para a consciência crítica nacional, aguçada naquele instante pelo sentimento do atraso e pelo reconhecimento da desigualdade do desenvolvimento entre as várias regiões do país. Arrigucci afirma: Quando Laforgue exclama, lamentando o tédio do dia-a-dia (‘Ah! Que la Vie est cotidienne...’), exprime ironicamente o conflito entre a poesia a que aspira o coração e a trivialidade prosaica do mundo burguês onde vive, o que, aliás, torna mais expressivo o vezo simbolista desta Vida com maiúscula em choque com a tonta banalidade do cotidiano. Bandeira, que decerto aprendeu muito com ele sobre o verso livre, deve também ter aprendido bastante sobre a ironia moderna, de que o poeta de Les complaintes foi um dos arautos. É pela ironia que, em seus lamentos, este resgata a poesia fugitiva do mundo, introduzindo o 40 terra-a-terra em contrastes com as aspirações da alma. Mas Bandeira deu outro rumo a essa espécie de ritmo claudicante do espírito confrontado com a trivialidade da vida burguesa. É bem verdade que tem olho crítico para a rotina tediosa e o desencanto do dia-a-dia burguês, como se vê em “Pensão familiar”, momento poético extraído do cotidiano mais prosaico pela fisga da ironia: um gatinho faz pipi e esconde, com elegância, a mijadinha: É a única criatura fina na pensãozinha burguesa.(pág.58) Ao contrário de Arrigucci, que supõe que: Apesar de próximo das pequenas coisas humildes do cotidiano ou da miséria social da grande cidade, a que se liga com intensa solidariedade, o poeta não as converte, como fizeram os surrealistas, por exemplo, com as coisas antiquadas (as primeiras construções de ferro, as primeiras fábricas, as primeiras fotografias etc.) ou com a miséria social, em instrumentos de um niilismo revolucionário. Ao desentranhar o sublime oculto no cotidiano popular, certamente o poeta libera uma energia, cuja potencialidade política é um fato, mas não o faz com o sentido expresso de ‘mobilizar para a revolução as energias da embriaguez’, conforme disse Benjamin, pág.134, cremos que o rumo que a poesia de Bandeira dá às inquietações do “eu” face ao mundo burguês é peculiar, representando, sobretudo, uma crítica ao alheamento e estereótipos da vida burguesa, e arriscamos aqui designar este rumo revolucionário, pois sua obra instaura uma nova maneira de pensar as coisas, representada obsessivamente pela busca da simplicidade formal, a qual, sob a forma do lirismo, nos aparece como uma forma de resistência a essa sociedade utilitarista. Para Arrigucci, a configuração da obra em estudo mostra que o incansável esforço de atingir um estilo simples liga-se ao fato da tomada de consciência do atraso brasileiro com relação aos outros países. 41 Acreditamos também que a obsessão do poeta pela simplicidade esteja ligada à relação de sua obra e o contexto social amplo, cuja crise também se explica pela persistência de uma ordem injusta, posta sob a forma do capitalismo. Depois de Marx, sabemos que a formação e expansão do capitalismo como um sistema mundial prometem sempre a fartura e a felicidade, mas reproduzem, rigorosamente, a excassez e a vida desumanizada inseparável fartura e de para sua a maioria. contradição felicidade só podem O capitalismo central: existir sua para continua promessa de minorias, em certos países ou regiões avançadas, jamais para o conjunto de países e das populações. As conseqüências de tal brutalidade já sabemos que se manifestam, sobretudo, através da crise cuja forma mais visível é a violência ocupando o cotidiano, como expressão de um mal-estar profundo, de uma cegueira perigosa, misturando os mitos da sociedade do espetáculo e a realidade que desumaniza e brutaliza os excluídos, mas também envolve a todos numa espécie de indiferença pelos demais, como lembra Ronaldo Lima Lins, o que o acompanham os versos de uma ode de Ricardo Reis: “Ouvi contar que outrora, quando a Pérsia Tinha não sei qual guerra, Quando a invasão ardia na cidade E as mulheres gritavam, Dois jogadores de xadrez jogavam O seu jogo contínuo. (...)” 42 Hannah Arendt nos aponta, em A Condição Humana, que estas mesmas conseqüências advêm da diluição entre as esferas pública e privada, uma característica do mundo moderno. O progressivo enfraquecimento das fronteiras entre as esferas pública e privada é algo que experienciamos todos os dias, ainda que nem sempre sejamos capazes de conceituá-los. Programas de TV que expõem ao público a intimidade de seus participantes ou a apropriação privada de bens e serviços públicos são a face mais visível e óbvia de um fenômeno que há tempo parece caracterizar não só a sociedade brasileira, mas todo um modo de vida que marca o nosso tempo. Essa confusão entre esferas que já foram tidas como bastante distintas, ainda que complementares, decorre, para a teórica, da emergência e expansão da esfera social. Após ter presenciado e protagonizado o nazismo, Arendt em seus escritos se toma de um profundo comprometimento com a tradição republicana e democrática de nossa história. Dessa maneira, confere ao termo “política” um novo significado, ou seja, a esfera em que se dá o encontro dos homens e designa tudo o que se relaciona ao seu estar juntos. A política designa muito mais do que o domínio restrito dos governos, das eleições, do comando, das leis. Para entender organização instaurou política na como e o de totalitarismo governo contemporaneidade, a sem (uma forma de precedentes) se filósofa revisitará a 43 história da filosofia a fim de captar as maneiras pelas quais a vida política foi vista nas diferentes épocas. De acordo com ela, os gregos antigos do período clássico compreenderam a esfera política de forma muito avançada, talvez a mais avançada e completa de que os homens já foram capazes em toda sua história. Naquela sociedade, a esfera pública, ou política, era considerada a mais alta forma de vida a que um homem podia se dedicar. Nem a vida doméstica (na família, na administração dos assuntos privados, “econômicos”), nem a vida de prazer , nem a vida dedicada ao acúmulo de riqueza, nenhuma poderia ser tão elevada e completa quanto a vida política. E nenhuma outra permitia, como ela, realizar a dimensão propriamente humana do homem. Nenhuma outra o permitia, a não ser aquela despendida com os iguais10 na esfera pública, no espaço da palavra e da ação, debatendo e decidindo em comum todos os assuntos concernentes à vida coletiva. Para Arendt, a experiência da democracia grega, de gestão coletiva dos assuntos concernentes à vida da cidade, representou a própria descoberta da esfera política no sentido mais completo do termo. Arendt denuncia o fato de que os homens das gerações humanas posteriores alteraram radicalmente a esfera pública e Cabe aqui lembrar que a autora não ignora a existência da escravidão na antiguidade clássica. Para Arendt, a igualdade na esfera política muito pouco tem a ver com o nosso conceito de igualdade; coloca que entre os gregos significava viver entre pares e lidar somente com eles, e pressupunha a existência de “desiguais”; e estes de fato eram sempre a maioria da população na cidade-estado. “A igualdade, portanto, longe de ser relacionada com a justiça, como nos tempos modernos, era a própria essência da liberdade; ser livre significava ser isento da desigualdade presente no ato de comandar, e mover-se numa esfera onde não existiam governos nem governados.”pág. 42 10 44 modificaram profundamente seu sentido. Para ela, foi tão alterado, que chegamos ao século XX e nos deparamos com uma organização política da sociedade – o totalitarismo – que elimina todo o espaço da ação e da palavra, instaurando em seu lugar o controle ideológico, a violência, o extermínio em massa. Para a filósofa, nessa cópia de vida política do presente não há lugar para a deliberação comum, nem para o debate dos assuntos que reclamam a atenção de todos. Nele, a vida política se reduziu ao exercício do voto. Ninguém mais tem clareza sobre sua responsabilidade pelos rumos tomados pelo mundo comum. Todos acreditam que devem apenas se ocupar com sua individualidade, com a esfera privada da família e dos assuntos investimentos particulares. da família se Nesse voltam mundo, para todos seu eu, ou, os no máximo, para a unidade familiar. Hannah Arendt aponta que perdeu-se inteiramente o sentido originário e autêntico, conferido pelos gregos de vida política, que dizia respeito ao cuidado daquilo que era dotado do mais alto valor e merecia, em conseqüência, o mais alto apreço de todos: os “assuntos comuns”, o mundo comum a todos. Perdeu-se, ainda, junto com a vida política autêntica, a própria dimensão coletiva da vida humana: o partilhar de palavras e ações, representado no debate, na construção de projetos coletivos e de lutas conjuntas. Devido coloca que ao a desaparecimento poesia do século da esfera pública, Arendt XX pregou veementemente o 45 encantamento com “pequenas coisas”. Ao explicar as acepções do termo “público”, a filósofa nos esclarece algo que nos ajuda a compreender ainda mais a poesia bandeiriana, aqui estudada. Segundo Hannah Arendt, o termo “público” denota dois fenômenos intimamente correlatos, mas não perfeitamente idênticos. Significa, em primeiro lugar, que tudo o que vem a público pode ser visto e ouvido por todos e tem a maior divulgação possível. Para nós, a aparência – aquilo que é visto e ouvido pelos outros e por nós mesmos – constitui a realidade. Em comparação com a realidade que decorre do fato de que algo é visto e escutado, até mesmo as maiores forças da vida íntima – as paixões do coração, os pensamentos da mente, os deleites dos sentidos – vivem uma espécie de existência incerta e obscura, a não ser que, e até que, sejam transformadas, assim dizer, desprivatizadas de modo a se e desindividualizadas, tornarem adequadas à por aparição pública. Arendt aponta que a mais comum dessas transformações ocorre na narração transposição sinaliza artística que testemunhar de não essa histórias de e, de experiências necessitamos transfiguração. da modo na individuais, forma Toda geral, vez do artista que mas para falamos de coisas que só podem ser experimentadas na privatividade ou na intimidade, trazemo-las para uma esfera na qual assumirão uma espécie de realidade que, a despeito de sua intensidade, elas jamais poderiam ter tido antes. A presença de outros que vêem 46 o que vemos e ouvem o que ouvimos garante-nos a realidade do mundo e de nós mesmos; e, embora a intimidade de uma vida privada plenamente desenvolvida, tal como jamais se conheceu antes do surgimento da era moderna e do concomitante declínio da esfera pública, sempre intensifica e enriquece grandemente toda a escala de emoções subjetivas e sentimentos privados, esta intensificação sempre ocorre às custas da garantia da realidade do mundo e dos homens. A filósofa coloca que, de fato, o sentimento mais intenso que conhecemos – intenso ao ponto de eclipsar todas as outras experiências, ou seja, a experiência de grande dor física – é, ao mesmo tempo, o mais privado e menos comunicável de todos. Não apenas por ser, talvez, a única experiência à qual somos incapazes de dar forma adequada à exposição pública; na verdade Arendt vai dizer que ela nos priva de nossa percepção da realidade a tal ponto que podemos esquecer esta última mais rápido e facilmente que qualquer outra coisa11. Para a autora de A Condição Humana, uma vez que a nossa percepção da realidade depende totalmente da aparência, e portanto da existência de uma esfera pública na qual as coisas possam emergir da treva da existência resguardada, até mesmo a meia-luz que ilumina a nossa vida privada e íntima Aqui Arendt vai colocar que não parece haver uma ponte que ligue a subjetividade mais radical, na qual já somos “identificáveis”, ao mundo exterior da vida. Em outras palavras, para ela, a dor, que é realmente uma experiência limítrofe entre a vida, no sentido de “estar na companhia dos homens”(inter homines esse), e a morte, é tão subjetiva e alheia ao mundo das coisas e dos homens que não pode assumir qualquer tipo de aparência. 11 47 deriva, em última análise, da luz muito mais intensa da esfera pública. Contudo, a filósofa diz que há muitas coisas que não podem suportar a luz implacável e crua da constante presença de outros no mundo público; neste, só é tolerado o que é tido como relevante, digno de ser visto ou ouvido, de sorte que o irrelevante se torna automaticamente assunto privado. Não é que as questões privadas sejam irrelevantes, pois existem assuntos muito relevantes que só podem sobreviver na esfera privada12. O que a esfera pública considera irrelevante pode ter um encanto tão extraordinário e contagiante que todo um povo pode adotá-lo como modo de vida, sem com isso alterar-lhe o caráter essencialmente privado. O moderno encantamento com ‘pequenas coisas’, embora pregado pela poesia do século XX em quase todas as línguas européias, encontrou sua representação clássica no petit bonheur do povo francês. Após o declínio de sua vasta e gloriosa esfera pública, os franceses tornaram-se mestres da arte de serem felizes entre ‘pequenas coisas’, dentro do espaço de suas quatro paredes, entre o armário e a cama, entre a mesa e a cadeira, entre o cão, o gato e o vaso de flores, dedicando a estas coisas um cuidado e uma ternura que, num mundo em que a rápida industrialização destrói constantemente as coisas de ontem para produzir os objetos de hoje, pode até parecer o último recanto puramente humano do mundo. Esta ampliação da esfera privada, o encantamento, por assim dizer, de todo um povo, não a torna pública, não constitui uma esfera pública, mas, ao contrário, significa apenas que a esfera pública refluiu quase que inteiramente, de modo que, em toda parte, a grandeza cedeu lugar ao encanto; pois embora a esfera pública possa ser grande, não pode ser encantadora precisamente porque é incapaz de abrigar o irrelevante. Págs. 61 e 62. Desse modo, o fenômeno da i-mundície é observado na poesia de Bandeira, como dissemos anteriormente, precisamente pelo fato do mesmo efetuar, de forma delicada e sutil, o Hannah Arendt exemplifica sua afirmação se referindo ao amor. Para ela, o amor, em contraposição à amizade, morre, ou, antes, se extingue assim que é trazido a público. Dada sua inerente natureza extraterrena, o amor só pode falsificar-se e perverter-se quando utilizado para fins políticos, como a transformação ou salvação do mundo. 12 48 processo de passagem de um dado factual para a esfera lírica, adotando uma postura que Adorno classifica como típica do artista do mundo moderno. Por não ter espaço nem voz nessa sociedade, o poeta presenciamos obsessão esta pela se volta atitude, simplicidade para o eu. Em notadamente lúcida, transforma-se numa Bandeira pois forma a de chamar-nos a atenção para a necessidade da crítica. Minha grande ternura Pelos passarinhos mortos; Pelas pequeninas aranhas. Minha grande ternura Pelas mulheres que foram meninas bonitas E ficaram mulheres feias; Pelas mulheres que foram desejáveis E deixaram de o ser. Pelas mulheres que me amaram E que eu não pude amar. Minha grande ternura Pelos poemas que Não consegui realizar. Minha grande ternura Pelas amadas que Envelheceram sem maldade. Minha grande ternura Pelas gotas de orvalho que São o único enfeite de um túmulo. Minha Grande Ternura. Duas cançÕes do tempo do beco. O encanto explicitado, no poema “Minha grande ternura”, pelas coisas mais singelas e mesmo grotescas nos faz ver a insistente compulsão pela simplicidade, reiterada pela anáfora, repetição constante do primeiro verso. Para Arendt, essa forma de conceber a poesia traduz um mundo no qual o 49 consumismo tomou conta dos indivíduos, os fazendo esquecer a vida em sua plenitude, alienando-os em relação a si, mas também em relação ao mundo. É importante colocar que, segundo Arrigucci, o processo de deslocamento de um dado factual para o ambiente lírico além de supor uma afinidade entre o poeta e o aspecto da realidade próxima a que se liga, supõe também o reconhecimento da potencialidade literária da circunstância real, de onde retira o elemento incorporado à construção poética. Para o crítico, isto decerto implica um modo de conceber a literatura que tende a ir além da mera escolha individual e é em parte determinado pelo momento histórico e pelos rumos gerais da produção literária do tempo. Esse modo de conceber a literatura não se desprende da direção tomada pela literatura brasileira durante o Modernismo13. Para Davi Arrigucci, uma das características fundamentais do período modernista, quando se define, afirma e enriquece extraordinariamente a obra de Bandeira, sobretudo a partir de Libertinagem, na década de 30, é que a vida de relação, tal como se mostrava no dia-a-dia, se torna matéria literária. A aderência imediata e do do escritor mais “humilde a temas de cotidiano”, sua como realidade o próprio Antonio Candido menciona que o Modernismo brasileiro, de certo modo, abriu a fase mais fecunda da literatura brasileira, que já havia adquirido maturidade suficiente para assimilar com originalidade as sugestões das matrizes culturais, produzindo em larga escala uma literatura própria. 13 50 Bandeira conquista menciona, de obrigatoriedade significa, liberdade de convencional, antes de criação, mais com anteriormente nada, relação dominante, uma à dos temas considerados de antemão poéticos. Segundo Arrigucci, é óbvio que isto representava apenas um deslocamento da convenção, no plano literário, mas implicava muito mais e dele resultava praticamente uma ampliação real do espaço da literatura, que ganhava um terreno até então impenetrável ou pouco percorrido. Misael, funcionário da Fazenda, com 63 anos de idade, conheceu Maria Elvira na Lapa – prostituída, com sífilis, dermite nos dedos, uma aliança empenhada e os dentes em petição de miséria. Misael tirou Maria Elvira da vida, instalou-a num sobrado no Estácio, pagou médico, dentista, manicura... Dava tudo quanto ela queria. Quando Maria Elvira se apanhou de boca bonita, arranjou logo um namorado. Misael não queria escândalo. Podia dar uma surra, um tiro, uma facada. Não fez nada disso: mudou de casa. Viveram três anos assim. Toda vez que Maria Elvira arranjava namorado, Misael mudava de casa. Os amantes moraram no Estácio, Rocha, Catete, Rua General Pedra, Olaria, Ramos, Bom Sucesso, Vila Isabel, Rua Marquês de Sapucaí, Niterói, Encantado, Rua Clapp, outra vez no Estácio, Todos os Santos, Catumbi, Lavradio, Boca do Mato, Inválidos... Por fim na Rua da Constituição, onde Misael, privado de sentidos e de inteligência, matou-a com seis tiros, e a polícia foi encontrá-la caída em decúbito dorsal, vestida de organdi azul. Tragédia brasileira. Estrela da manhã Nos versos de Tragédia Brasileira, extraído de “Estrela da Manhã”, nos deparamos com certo estranhamento pelo fato de 51 o eu lírico narrar um fato cotidiano, aproximando-se do total prosaísmo. Essa fixação por acontecimentos do dia-a-dia, lembra o que Benjamim comenta sobre o prosaico baudelairiano. Em Paris, “capital do século XIX”, Baudelaire, no momento decisivo de formação da lírica moderna, leva muito adiante a proposta romântica de libertação da linguagem poética. Benjamim menciona que há muito tempo já, Victor Hugo afirmara que não havia diferenças entre as palavras elevadas e a linguagem cotidiana, mas nunca se havia ido tão longe nessa direção quanto o autor de Les Fleurs du mal. “Conforme apontou Auerbach, ele infringe toda idéia tradicional da dignidade do sublime poético, aproximando inesperadamente a poesia do terreno do prosaico, não apenas no poema em prosa, forma que ele ajuda a cristalizar após os experimentos importantes de Aloysius Bertrand e Maurice de Guérin, mas até as esferas de máxima seriedade e elevação artísticas, como na do horror sem esperança que se mostra, por exemplo, no poema ‘Spleen’: Quand le ciel bas et lourd pèse comme un couvercle [...]” 14 De acordo com Arrigucci, Benjamim coloca que o prosaico baudelairiano (capaz de trazer o céu para o nível de uma tampa de panela) tem suas raízes precisamente no chão da cidade moderna, na trivialidade do progresso, onde o poeta encontra por resguardada no vezes o “bizarro” aroma ou o surpreendente encanto novo da da beleza feiúra, a mistura de demoníaco e idealidade no grotesco ou no absurdo, portas evasivas e chocantes contra a banalidade do real. 14 ARRIGUCCI Jr, op. cit., p. 93 52 No espaço da cidade, a poesia que se acerca do prosaico das ruas, desse mundo de inumeráveis relações, dominado pelo movimento da multidão informe, sempre infiltrada na visão baudelairiana, tem que conformar-se às tendências contrastantes, às ondulações, aos sobressaltos, aos choques a que se submete o sujeito lírico. Ao analisar a obra de Baudelaire, Walter Benjamim afirma que se deve perguntar como a poesia lírica poderia se fundar sobre uma experiência em que o choque se tornou norma. O apelo ao leitor, no poema inicial de Les fleurs du mal, indicava a dificuldade que, nos meados do século, a poesia lírica enfrentava diante do público: Baudelaire desejava ser compreendido e seu livro conhecerá o último sucesso de massa; no entanto, já a essa altura a lírica só excepcionalmente mantém um contato efetivo com a experiência do leitor. A lírica havia se transformado em sua própria estrutura e Arrigucci aponta que Benjamim, ao buscar compreender experiência do a transformação “hypocrite lecteur”, por com que que passara o poeta a sem disfarce se identificava, na abertura da sua obra, encontra então no jornal um dos indícios daquela alteração profunda, que no momento do despertar da modernidade já definiria os rumos futuros da lírica. De acordo com Arrigucci, a questão colocada por Benjamim se baseava nas mudanças fundamentais ocorridas na vida mental dos indivíduos nas metrópoles do mundo moderno, com o avanço do capitalismo e as transformações da existência material. 53 Assim esclarece: Benjamim aproxima a noção de experiência da duração bergsoniana, tal como aparece em Matière et Mémoire, e, levando em conta a crítica implícita de Proust a Bérgson, também da noção de memória involuntária no romancista, em contraste com a memória voluntária, dependente da inteligência. Comentando o puro acaso que regeria, segundo Proust, as imagens que um indivíduo recebe de si mesmo, ao se assenhorar de sua própria experiência, observa como eventos de nossa vida interior não têm, por natureza, um caráter inelutavelmente privado, somente o adquirindo na medida em que diminuem as chances de se incorporar os acontecimentos exteriores à experiência pessoal. Pág. 94 Para Benjamin, cita Arrigucci, o jornal representaria, exatamente, um dos índices dessa diminuição no espaço da vida moderna. Seu fito seria o oposto, ou seja, o de impedir a incorporação à nossa própria experiência das informações que ele fornece. Para tanto, informação jornalística – sobretudo, a de ausência aponta como novidade, os princípios brevidade, correlação entre clareza as da e, notícias, consideradas isoladamente – contribuem para esse efeito. Iremos observar que em Benjamim a barreira entre a informação e a experiência seria a mesma que impede ainda a entrada dos acontecimentos noticiados no domínio da tradição, os quais, por isso mesmo, não serviriam como matéria-prima do narrador tradicional, trilhador da substância viva acumulada na memória das gerações. Aparando os choques da novidade cotidiana, o jornal interromperia assim o processo pelo qual um leitor poderia narrar um fato, se o tivesse assimilado à sua própria vida. Substituindo a forma tradicional da comunicação que permite ao narrador oral contar histórias, a 54 predominância da informação seria um índice decisivo da degradação crescente da experiência no mundo moderno. Essa degradação é responsável igualmente pela crise da comunicação na lírica, conforme se verifica em Baudelaire e vai se acentuando incorporam problemática em nos seus com o modernos, que, sintomaticamente, versos os traços jornal, na qual dessa se relação espelham as dificuldades da poesia na modernidade. 1.3 – A simplicidade em Bandeira: o complexo é o nãodito A simplicidade bandeiriana é fruto de uma busca incessante por uma linguagem que correspondesse à realidade brasileira, ideário estético do Modernismo. Conforme coloca Antonio Candido, a busca da simplicidade quase popular, em Ritmo Dissoluto, ajudaria esta inclinação, que domina a partir de Libertinagem, apurada e completada pela capacidade de pôr fora o acessório. Bandeira, no Itinerário de Pasárgada, afirmou que seu gosto pelo “humilde cotidiano” lhe teria vindo não propriamente de uma intenção modernista, mas dos tempos de sua moradia no morro do Curvelo, do convívio com a gente pobre que ali vivia, de uma experiência da rua, de uma poesia dispersa num mundo ao rés do chão, em anos decisivos para a formação de sua obra madura. 55 Segundo Davi Arrigucci Jr., essa contradição pode ser compreendida porque a questão é complexa e envolve diversos lados, não dependendo exclusivamente de nenhum, mas da interação da personalidade do poeta com o contexto total, que não implica amálgama apenas da a tradição experiência literária, existencial, mas unindo também o elementos psicológicos, sociais e culturais no sentido mais amplo. A simplicidade que a poesia de Bandeira alcançou pode ser notada tanto ao nível da forma quanto do conteúdo. Podemos percebê-la na escolha dos temas, no tratamento dado a estes e também no uso de algumas palavras essenciais em lugar de outras. Ao este, citar num William livro Empson, decisivo Davi sobre a Arrigucci tradição destaca da que literatura pastoril, cujo estudo soube renovar em profundidade, Algumas versões da pastoral (1935), analisa o conjunto de propriedades convencionais que em geral se toma pela essência do gênero como elementos relacionados numa estrutura particular (no que hoje talvez se pudesse chamar um arquétipo literário), capaz de sobreviver, estendendo-se para além dos limites estritos dos próprios gêneros bucólicos. Essa estrutura consistiria fundamentalmente numa organização do complexo no simples (“putting the complex into the simple”), isto é, num modo recorrente de dar forma, de tal sorte que amplos e intrincados problemas contextuais se articulem num padrão textual simples. 56 Visto nesta perspectiva, como um componente da tradição da pastoral, muitos dos elementos que o poeta aborda em sua obra, a sua “maçã”, o seu “Recife”, o seu “O bicho”, aparecem de fato como um motivo “simplificado” e, no entanto, portador da maior complexidade. De acordo com Arrigucci, no Cântico dos Cânticos, muitas das comparações da amada a elementos do hortus conclusus, do jardim ou do pomar de inspiração edênica, vêm acompanhadas, na tradução latina da Bíblia, da expressão absque eo quod intrinsecus latet, ou seja, “sem falar no que está escondido dentro de ti”. Esta espécie de duplicidade da linguagem, segundo o teórico, que lembra imediatamente a noção de ambigüidade considerada por Empson entre as próprias raízes da poesia, num livro anterior, tem a peculiaridade de sugerir, neste caso, que o melhor não está ainda à mostra, que o maior valor é o que se oculta. Hannah Arendt menciona algo semelhante a respeito da natureza da linguagem em seu livro A vida do espírito. A filósofa parece concordar com alguns filósofos que insistiram que há algo “inefável” por detrás das palavras escritas, algo de que, ciência, quando e pensavam que, e entretanto, não escreviam, resistia a ser tinham clara definido e transmitido para os outros, ou seja, os filósofos insistiram em que havia algo que se recusava a passar por uma transformação que fizesse com que esse algo aparecesse e tomasse seu lugar entre o mundo das aparências do mundo. Assim traduz Arendt sobre a metáfora e o inefável: 57 Em outras palavras, a principal dificuldade parece, aqui, ser que, para o próprio pensamento – cuja linguagem é inteiramente metafórica e cujo arcabouço conceitual depende inteiramente do dom da metáfora, que estabelece uma ponte no abismo entre o visível e o invisível, o mundo das aparências e o ego pensante -, não existe uma metáfora capaz de iluminar de forma razoável essa atividade especial do espírito, na qual algo invisível dentro de nós lida com os invisíveis do mundo. Todas as metáforas extraídas dos sentidos irão desembocar em dificuldades, pela simples razão de que todos os nossos sentidos são essencialmente cognitivos; portanto, concebidas como atividades, essas metáforas têm uma finalidade exterior; elas não são energeia, um fim em si mesmas, mas instrumentos que nos possibilitam conhecer e lidar com o mundo. (pág. 94) A respeito disso, o escritor e filósofo Ronaldo Lima Lins também nos esclarece. De acordo com ele, estamos num terreno marcado pelo desenvolvimento da tecnologia. Há controle e liberdade no exercício desta característica (a necessidade de falar) da qual ninguém escapa. Ressalta que a hipótese que ocultamento: permanece porque se subjacente fala e ao porque fenômeno se é precisa a do falar, mantém-se com todas as forças o não-dito. O teórico chama a atenção para o fato de que o “não-dito” é ainda o que não se fala, o que permanece para ser falado, guardado como elemento de interioridade numa espécie de confronto entre a vida de fora e a de dentro, o que somos forçados a revelar e o que, a despeito de tudo, não revelamos. Para Ronaldo Lins, entre Parmênides (o silêncio) e Heráclito (o falar infinito), adentramos numa época que se afirma pelo último, no entanto, isto não se verifica de uma forma tranqüila. 58 Ao entrarmos na era do discurso infinito, nos deparamos com muitas transformações. Uma delas é a assinalada por Lima Lins, a do advento do aparelho de reprodução vocal. Segundo o escritor, a necessidade de falar, um ingrediente da natureza humana, além de uma fonte de saber (como dizia Heráclito), surge então a partir de postulados da modernidade política e se alimenta deles. O estranhamento que se observa entre a realidade e a maneira como a experimentamos parece então vir daí. O estudo sobre a necessidade de falar irrompeu a partir do exame minucioso dos problemas da verdade, da mentira e da revelação. Ali, Ronaldo Lima, traçando um percurso que buscou nas origens as noções aí implicadas, destaca o papel de Santo Agostinho como modelo e destaca também as formas laicas de concepção dos conceitos referidos, tudo isto de acordo com o panorama fornecido pela modernidade, a partir do século XVIII. Essa necessidade de estudar as origens provocou uma retomada dos modelos gregos de Parmênides e de Heráclito, em que um privilegiava a verdade como produto do absoluto do silêncio e o outro situava a mesma no falar infinito. Dessa forma, o cultural autor atrás intentou de um debruçar-se laceramento no sobre qual a as modernidade idéias de verdade, de mentira e de revelação se associam à necessidade de falar. 59 Assim como em Arendt, Empson, o Rei Salomão, do Cântico dos Cânticos e Ronaldo Lima Lins, observamos que Bandeira tem consciência desse algo indizível que a linguagem não apreende, apesar de viver em um mundo no qual a falsa noção de linguagem, e, por sua vez, a de verdade, prevalece ( o discurso que apropriar da tudo diz, linguagem tudo do sabe). senso Desse comum, de modo, um ao se fato do cotidiano, o “eu” os opera de tal modo que faz surgir algo novo, algo que precisa ser sempre pensado. 60 CAPÍTULO 2 - NA I-MUNDÍCIE DO PÁTIO Este fundo de hotel é um fim de mundo! Aqui é o silêncio que tem voz. O encanto Que deu nome a este morro, põe no fundo De cada coisa o seu cativo canto. Ouço o tempo, segundo por segundo, Urdir a lenta eternidade. Enquanto Fátima ao pó de estrelas sitibundo Lança a misericórdia do seu manto. Teu nome é uma lembrança tão antiga, Que não tem som nem cor, e eu,miserando, Não sei mais como o ouvir,nem como diga. Falta a morte chegar... Ela me espia Neste instante talvez, mal suspeitando Que já morri quando o que eu fui morria. Noturno no morro do encanto. Opus 10 Observamos, no texto, a relação que o eu lírico mantém entre os espaços de dentro e de fora. Sozinho, lamenta-se da distância que o separa de alguém. O título “Noturno no morro do encanto” refere-se à composição vocal ou instrumental de cunho melancólico destinado às serenatas, em voga no século XVIII, o noturno. Diferente dos demais quanto à métrica, o poema é um soneto, uma composição fixada pelo poeta italiano Petrarca. Para este, o soneto acrescenta a brevidade, de ordem material e a organicidade, de ordem espiritual, porque não se trata apenas de escrever catorze versos distribuídos em dois quartetos e dois tercetos para obter o soneto: é preciso que as estrofes obedeçam a uma coerência de concepção e pensamento - da qual a "chave de ouro" é a conclusão de um silogismo. Petrarca propôs-lhe o modelo paradigmático e por ele se guiaram outros, mas, com o correr dos tempos, o 61 esquema canônico passou a aceitar modificações de estrutura. Mesmo parnasianos como Olavo Bilac, admitiam variações. Em Bandeira, o uso do soneto não se dá por acaso. Se considerarmos que o poema é um lamento de um “prisioneiro”, dentro de um quarto de hotel, faz sentido utilizar uma forma fixa para evidenciar tal fato – a necessidade metro, estrofação é emblema da rigidez que vive um alheado do distanciado mundo, de sobre tudo, o não monte. só Aqui, vê-se presencialmente, de rimas, “cativo”, o homem mas des- integrado na vida, pois lastima-se: “já morri quando o que fui morria”. As palavras “mundo”, “encanto”, “cativo”, “coisas”, “canto”, parecem ser a chave para a interpretação do poema, uma vez que apontam para uma estética dos lugares, os sentidos que o homem e as coisas no mundo adquirem em relação aos seus lugares, seus papéis. Se o morro é do encanto, propõe não só o encantamento, mas a alocação nos cantos, o isolamento, por isso, o poeta lamuria-se: está dentro, isolado. A atitude que até então vinha tomando, a de trazer para perto o cotidiano, a magia das coisas simples, não mais o satisfaz. É um poema sobre a passagem do tempo, o qual tem por empresa constituir todas as coisas, tudo se fez no tempo e se desfaz nele mesmo e por ele mesmo, assim: “teu nome é uma lembrança tão antiga”; o poeta recorre à memória para resgatar o que se perde, consciente de que ele mesmo se alheia no mundo, se perde, pois o que ele foi “já morria”. Na verdade, a volta ao soneto sinaliza a vigência dessa perda; 62 poeta livre e celebrador de Libertinagem, o Bandeira de Opus 10 vê-se no direito de lançar mão da forma tradicional de poesia, tanto para problematizar questões estéticas como para revelar o alienamento do homem no mundo. No espaço do quarto, o poeta encanta-se, pois assume o canto como lugar e como “canto”, ao cantar. E desencanta-se diante do espaço público, que tomou sentidos distintos dos planejados para o homem. Ao perceber a i-mundície, que o afeta e afeta a todos, a denuncia, chamando a atenção para a perda de espaços propriamente humanos. As reflexões que ora aqui apresentamos se fazem relevantes, haja vista o contexto mundial em que estamos inseridos. De informação, o hegemonia de acordo fim da uma com Ari guerra Roitman15, fria – superpotência a com revolução a única da decorrente – e a internacionalização da economia impuseram um novo equilíbrio de forças nas relações humanas e sociais que parecem jogar por terra as antigas aspirações de solidariedade e justiça distributiva entre os homens, tão presentes nos sonhos, utopias e projetos políticos nos últimos dos séculos. Ao contrário: o novo século – cuja arrogância chegou ao extremo de considerar-se o ponto final, senão culminante da história – promove mundial, uma brutal multiplicando concentração a de desigualdade renda e em âmbito banalizando de maneira assustadora a perversão social. A humanidade que ora 15 ROITMAN, Ari. O desafio ético. RJ, 2000. 63 descobrira e privilegia até hoje a razão humana, parece ao mesmo tempo negá-la. Todos os dias acompanhamos na televisão, nos jornais e revistas as catástrofes climáticas e as mudanças que estão ocorrendo, rapidamente, no clima mundial. Nunca se viu mudanças tão rápidas e com efeitos devastadores como tem ocorrido nos últimos anos. A Europa tem sido castigada por ondas de calor de até 40 graus centígrados, ciclones atingem o Brasil (principalmente a costa sul e sudeste), o número de desertos aumenta, fortes furacões causam mortes e destruição em várias regiões do planeta e as calotas polares estão derretendo (fator que pode ocasionar o avanço dos oceanos sobre cidades litorâneas). O que pode estar provocando tudo isso? Os cientistas aquecimento são global está unânimes em afirmar relacionado a que todos o estes acontecimentos. De clima acordo mundial com os noticiários afirmam que este de Tv, pesquisadores aquecimento global do está ocorrendo em função do aumento de poluentes, principalmente de gases derivados da queima de combustíveis fósseis (gasolina, diesel etc), na atmosfera. Estes gases (ozônio, gás carbônico e monóxido de carbono, principalmente) formam uma camada de poluentes, de difícil dispersão, causando o famoso efeito estufa. O desmatamento e a queimada de florestas e matas também colaboram para este processo. Os raios do Sol atingem o solo e irradiam calor na atmosfera. 64 Como esta camada de poluentes dificulta a dispersão do calor, o resultado é o aumento da temperatura global. Embora este fenômeno ocorra de forma mais evidente nas grandes cidades, já se verifica suas conseqüências em nível global. É fácil provavelmente imaginarmos a conduta os motivos equivocada desta de catástrofe; grande parte da humanidade, derivada de sua maneira de pensar; os homens parecem que não se vêem mais pertencendo à natureza, a este mundo. As conseqüências são reais e assustadoras. Entre elas, encontramos o aumento do nível dos oceanos. Com o aumento da temperatura no mundo, está em curso o derretimento das calotas polares. Ao aumentar o nível da águas dos oceanos, podem ocorrer, futuramente, a submersão de muitas cidades litorâneas; o crescimento e surgimento de desertos. O aumento da temperatura provoca a morte de várias espécies animais e vegetais, desequilibrando vários ecossistemas. Somado ao desmatamento que vem ocorrendo, principalmente em florestas de países tropicais (Brasil, países africanos), a tendência é aumentar cada vez mais as regiões desérticas em nosso planeta; o aumento de furacões, tufões e ciclones: o aumento da temperatura faz com que ocorra maior evaporação das águas catástrofes dos oceanos, climáticas; potencializando as insuportáveis estes ondas tipos de de calor: regiões de temperaturas amenas tem sofrido com as ondas de 65 calor. No verão europeu, por exemplo, tem se verificado uma intensa onda de calor, provocando até mesmo mortes de idosos e crianças. O protocolo de Quioto, acordo internacional que visa à redução da emissão dos poluentes que aumentam o efeito estufa no planeta, entrou em vigor em 16 fevereiro de 2005. O principal objetivo temperatura global prática, que o é nos que ocorra próximos vivenciamos é anos. uma a No diminuição da entanto, na generalizada corrida consumista, em que cada vez mais todos precisam ter tudo e, para tanto, sacrifica-se a natureza, extraindo-lhe mais do que poderia suportar... Este relato é apenas um exemplo do que hoje observamos. Vê-se, ainda, a crescente onda de violência, a extrema pobreza a que muitos são submetidos, os escândalos políticos em nível mundial... Vivemos em um mundo no qual o pensar é relegado a segundo plano. Pensar, hoje, ainda é tarefa de poucos. O exercício do pensamento parece adormecido nos indivíduos. A arte e a literatura como “conhecimento” crítico da realidade estão desaparecendo. A sociedade do espetáculo parece ganhar força a cada dia que passa. A vida na caverna pós-moderna é aterrorizante. Dizer vida na caverna pós-moderna equivale a dizer, conforme André Bueno, em Formas da Crise, vida nas sociedades urbanas do capitalismo avançado, apontando para a própria 66 forma da crise da condição humana na época em que estamos vivendo. É sinônimo de uma cegueira profunda, pessoal e coletiva, que Saramago16 aborda no Ensaio sobre a cegueira, mostrando civilização ali e como são barbárie, frágeis a os aparente limites que naturalidade separam da vida cotidiana a se repetir e as bruscas alterações que levam os personagens (supostos cidadãos) à degradação, à bestialidade. Como Bueno bem demonstra, no livro de Saramago pode-se falar de vida na caverna pós-moderna, mergulhada o tempo todo em simulacros, em imagens da mercadoria, a se repetir num presente veloz, vazio, de onde se ausentaram as vidas e a memória das gerações passadas. E pode-se entender ainda a atualidade da citação que abre o livro, tirada do livro VII da República17, de Platão: “Que estranha cena descreves e que estranhos prisioneiros. São iguais a nós.” No Ensaio sobre a cegueira, sabemos que os personagens, acometidos por uma cegueira branca, são excluídos da cidade, confinados, retornando a um estado quase que primitivo. Voltam à cidade, caminham pelas ruas, passam pelas praças onde se vendem milagres, por fim enxergam de novo. Mas, ao final do livro, cegos eles estavam e, restituídos à visão, cegos continuavam. A narrativa de Saramago põe em movimento as vidas e os impasses de pessoas comuns – o oleiro Cipriano Algor, sua filha Marta, seu genro Marçal Gacho, a viúva Isaura – fazendo-as mover-se entre campo e cidade, artesanato e indústria, trabalho manual e trabalho mecânico, valores de uso e valores abstratos de troca. 17 No livro VII, da República, Platão utiliza uma alegoria, o Mito da Caverna, para explicar sua teoria do conhecimento. Mostra como somos prisioneiros do mundo sensível, das imagens e das sombras do que parece ser a verdade, vivendo na escuridão e na ignorância. 16 67 O texto de Saramago nos indica a necessidade de pensar e criticar a vida na “caverna pós-moderna”. Criticar os simulacros, a cegueira, o senso comum, e tudo mais que dá a forma do capitalismo e da condição humana em nossa época. O livro A Sociedade do Espetáculo, de Guy Debord, também nos permite compreender o momento atual como sendo o auge do fetiche da mercadoria em escala mundial, tornando tudo imagem e espetáculo, abolindo os valores de uso e deixando à mostra apenas a segundo superfície Debord, vazia do tornou-se a valor forma de troca. final do A imagem, fetiche da mercadoria. A Bueno, sociedade a forma do espetáculo mais forte do é, nas palavras capitalismo de André avançado, uma expansão da indústria da cultura, como a pensaram Adorno e Horkheimer em seu exílio nos EUA durante a segunda guerra. Desse modo, em A sociedade do espetáculo, o que se trata é de entender os profundos efeitos desse processo expansivo do capitalismo relação ao e das trabalho, tecnologias à saúde, à na vida cotidiana educação, ao (em lazer, à cultura, à própria organização da vida social e histórica). Quando afirmamos que a literatura é um exercício do pensamento, desejamos, com tal proposição, resgatar o lugar da arte, e da literatura especificamente, no âmbito das necessidades básicas do ser humano. Um lugar que se encontra constantemente ameaçado pela tirania das imagens e, sobretudo, pela expansão da indústria cultural. 68 De acordo com Adorno e Horkheimer, em Dialética do esclarecimento, a técnica da indústria cultural levou apenas à padronização e à produção em série, sacrificando o que fazia a diferença entre a lógica da obra e a do sistema social. No entanto, isso não deve ser atribuído a nenhuma lei evolutiva da técnica enquanto tal, mas à sua função na economia atual. Desse modo, a necessidade que talvez pudesse escapar do controle central já é recalcada pelo controle da consciência individual. Adorno e Horkheimer irão, em brilhante ensaio, apontar a massificação das obras de arte e a transformação público destas igualmente em mercadoria, massificado. Tudo consumidas isto dentro por um de um sistema no qual a lógica do lucro é determinante. Para chegar ao conceito de “indústria cultural”, Adorno discorda de Benjamim quanto à postura deste com relação ao advento do cinema. Menciona que a função possivelmente revolucionária do cinema na visão benjaminiana desconsidera certos elementos fundamentais, que desviam sua argumentação para conclusões ingênuas. Embora devendo a maior parte de suas reflexões a Benjamin, Adorno procura mostrar a falta de sustentação de suas teses, na medida em que elas não trazem à luz o antagonismo que reside no próprio interior do conceito de “técnica”. Segundo Adorno, passou despercebido a Benjamin que a técnica se define em dois níveis: primeiro “enquanto qualquer coisa determinada intra-esteticamente” e, segundo, “enquanto 69 desenvolvimento exterior às obras de arte”. O conceito de técnica não deve ser pensado de maneira absoluta: ele possui uma origem produção histórica em série e e à pode desaparecer. homogeneização, Ao as visarem técnicas à de reprodução sacrificam a distinção entre o caráter da própria obra de arte e do sistema social. Por conseguinte, se a técnica passa a exercer imenso poder sobre a sociedade, isso ocorre, segundo Adorno, graças, em grande parte, ao fato de que as circunstâncias que favorecem tal poder são arquitetadas pelo poder dos economicamente mais fortes sobre a própria sociedade. Em decorrência, a racionalidade da técnica identifica-se com a racionalidade do próprio domínio. Essas considerações evidenciariam que, não só o cinema, como também o rádio, não devem ser tomados como arte. “O fato de não serem mais que negócios – escreve Adorno – basta-lhes como ideologia”. Enquanto negócios, seus fins comerciais são realizados por meio de sistemática e programada exploração de bens considerados culturais. Tal exploração Adorno chama de “indústria cultural”. Esse termo foi empregado pela primeira vez em 1947, ao publicar Dialética Horkheimer. Theodor do Esclarecimento, Adorno, numa em série parceria de com conferências radiofônicas, pronunciadas em 1962, explicou que a expressão “indústria cultural” visa a substituir “cultura de massa”, pois esta induz ao engodo que satisfaz os interesses dos detentores dos veículos de comunicação de massa. Os 70 defensores entender da que expressão se trata “cultura de algo de massa” como uma querem cultura dar a surgindo espontaneamente das próprias massas. Para Adorno, que diverge frontalmente dessa interpretação, a indústria cultural, ao aspirar à integração vertical de seus consumidores, não apenas adapta seus produtos ao consumo das massas, mas, em larga medida, determina o próprio consumo. Interessada nos homens apenas enquanto consumidores ou empregados, a indústria cultural reduz a humanidade, em seu conjunto, assim como cada um de seus elementos, às condições que representam seus interesses. A indústria cultural traz em seu bojo todos os elementos característicos do mundo industrial moderno e nele exerce um papel específico, qual seja, o de portadora da ideologia dominante, a qual outorga sentido a todo o sistema. Vinculada à ideologia capitalista, e sua cúmplice, a indústria cultural contribui eficazmente para falsificar as relações entre os homens, bem como dos homens com a natureza, de tal forma que o resultado final constitui uma espécie de antiiluminismo. Considerando-se, diz Adorno, que o iluminismo tem como finalidade libertar os homens do medo, tornando-os senhores e liberando o mundo da magia e do mito, e admitindose que essa finalidade pode ser atingida por meio da ciência e da tecnologia, instauraria o tudo poder do levaria homem a crer sobre a que o ciência iluminismo e sobre a técnica. Mas ao invés disso, liberto do medo mágico, o homem tornou-se vítima de novo engodo: o progresso da dominação 71 técnica. Esse progresso transformou-se em poderoso instrumento utilizado pela indústria cultural para conter o desenvolvimento da consciência das massas. A indústria cultural, nas palavras do próprio Adorno “impede a formação de indivíduos autônomos, independentes, capazes de julgar e de decidir conscientemente”. O próprio ócio do homem é utilizado pela indústria cultural com o fito de mecanizá-lo, de tal modo que, sob o capitalismo, em suas formas mais avançadas, a diversão e o lazer tornam-se um prolongamento do trabalho. Para Adorno, a diversão é buscada pelos que desejam esquivar-se ao processo de trabalho mecanizado para colocarse, novamente, em condições de se submeterem a ele. A mecanização conquistou tamanho poder sobre o homem, durante o tempo livre, e sobre sua felicidade, determinando tão completamente a fabricação dos produtos para a distração, que o homem próprio não tem trabalho. acesso O senão suposto a cópias conteúdo e não reproduções é mais que do uma pálida fachada: o que realmente lhe é dado é a sucessão automática de operações reguladas. Em suma, diz Adorno, “só se pode escapar ao processo de trabalho na fábrica e na oficina, adequando-se a ele no ócio”. Tolhendo a consciência das massas e instaurando o poder da mecanização sobre o homem, a indústria cultural cria condições cada vez mais propícias para a implantação do seu comércio fraudulento, no qual os consumidores são continuamente enganados em relação ao que lhes é prometido, 72 mas não cumprido. Exemplo disso encontra-se nas situações eróticas apresentadas pelo cinema. Nelas, o desejo suscitado ou sugerido pelas imagens, ao invés de encontrar uma satisfação correspondente à promessa nelas envolvida, acaba sendo satisfeito com o simples elogio da rotina. Não conseguindo, como pretendia, escapar a esta última, o desejo divorcia-se de sua realização que, sufocada e transformada em negação, converte o próprio desejo em privação: A indústria cultural não sublima o instinto sexual, como nas verdadeiras obras de arte, mas o reprime e sufoca. Ao expor sempre como novo o objeto de desejo (o seio sob o suéter ou o dorso nu do herói desportivo), a indústria cultural não faz mais que excitar o prazer preliminar não sublimado que, pelo hábito da privação, converte-se em conduta masoquista. Assim, prometer e não cumprir, ou seja, oferecer e privar, são um único e mesmo ato da indústria cultural. A situação erótica, conclui Adorno, une “à alusão e à excitação” a advertência precisa de que “não se deve, jamais, chegar a esse ponto”. Tal advertência evidencia como a indústria cultural administra o mundo social. Criando “necessidades” ao consumidor (que deve contentar-se com o que lhe é oferecido), a indústria cultural organiza-se para que ele compreenda sua condição de mero consumidor, ou seja, ele é apenas e tão-somente um objeto daquela indústria. Desse modo, instaura-se a dominação natural e ideológica. Marc Jimenez, comentador de Adorno, 73 pondera que tal dominação tem sua mola motora no desejo de posse constantemente renovado pelo progresso técnico e científico, e sabiamente controlado pela indústria cultural. Nesse sentido, o universo social, além de configurar-se como um universo hermeticamente de “coisas”, fechado. constituiria Nele, todas as um espaço tentativas de liberação estão condenadas ao fracasso. Em Hannah Arendt, observamos o mesmo tom de crítica, embora sob uma outra perspectiva, mas que não significa de todo uma oposição de pensamento. Ao observar e protagonizar eventos que perpassaram o século XX (e que nos marcam até hoje), como o nazismo, por exemplo, a mesma entendeu que quando há tais eventos que promovem rupturas em nossa existência, impedindo que o mundo permaneça sendo a casa que nos acolhe e abriga, precisamos urgentemente compreendê-los, para que possamos nos reconciliar com esse mundo e voltarmos a nos sentir em casa nele. Face aos horrores de seu tempo, dos quais é ao mesmo tempo testemunha e sobrevivente, a pensadora nos convoca ao exercício do pensamento como meio de fazermos as escolhas necessárias para a obtenção harmonioso. Nesse sentido, o de um mundo pensamento mais justo arendtiano e parece tratar, como diria André Bueno, daquilo que na vida cotidiana é ou pode vir a ser um mundo de relações solidárias, pessoais e comunitárias, que dê satisfação e permita encontros, que fortaleça o indivíduo, aproximando-se muitíssimo do 74 pensamento de Manuel Bandeira, caracterizado neste trabalho como uma declaração de amor à vida. Arendt denuncia a i-mundície a partir de uma análise da condição humana, em seu livro homônimo A Condição Humana, cujo título provisório, como se pode ler numa carta sua a Jaspers datada de 6 de agosto de 1955, era Amor Mundi, amor pelo mundo. Neste livro, como na maior parte de sua vasta obra, ela prioriza as experiências políticas fundadoras, greco-romanas, numa atitude teórica de retorno à Antigüidade que jamais implicou exemplos desinteresse de gregos pelo e presente. romanos, os Inspirando-se povos que nos forjaram as principais experiências e conceitos da política ocidental, Arendt promoveu uma severa crítica da filosofia política, a qual, segunda ela, não teria sido capaz de transmitir e preservar o conteúdo das experiências políticas genuínas e originárias contidas na polis e na res publica. Em A Condição humana, ao desenvolver uma espécie de fenomenologia inovadora da liberdade, da ação política e do espaço público, a mesma procurou trazer à luz do presente as determinações democráticas e republicanas essenciais da política. Não se tratava de retornar ao passado para transformá-lo em modelo a ser repetido no presente, pois o que ela realmente buscava no passado era algo ainda novo. Em suma, buscava um conjunto de experiências voltadas para a felicidade pública e para o prazer da ação e do discurso em comum, as quais, pensava, 75 ainda encontravam ressonância no presente, a despeito do esgotamento e da crise política em nosso tempo. A Condição Humana, de Hannah Arendt foi leitura fundamental para nosso entendimento a respeito do fenômeno da i-mundície, nomeado por Bandeira, em sua obra poética. Neste livro, Arendt se propõe a discutir a questão “o que estamos fazendo”, abordando somente o que chamamos de manifestações elementares manifestações dizem da respeito condição àquelas humana. Essas atividades que, tradicionalmente, e, segundo a opinião corrente, estão ao alcance de todo ser humano. Por isto, dentre outras razões, a atividade de pensar (a mais alta e talvez a mais pura atividade de que os homens são capazes) não se inclui nas considerações da referida obra. Seu último livro A vida do espírito tratará então dessa questão. É importante lembrar que a autora, ao discutir o labor, o trabalho e a ação (atividades da condição humana), reconsidera a condição humana à luz das experiências novas por que a humanidade está passando. Ao mencionar o lançamento de um satélite artificial ao universo, em 1975, a filósofa chama a atenção para o fato de que a alegria que tomou conta de todos face a este evento não foi triunfal: não foi orgulho nem assombro ante a enormidade da força e proficiência humanas. Essa reação foi de alívio face o primeiro “passo para libertar o homem de sua prisão na terra”. 76 Para ela, esse tipo de sentimento vem se tornando comum e só revela que os homens estão a décadas à frente das descobertas por ele feitas. O que ela quer dizer é que, neste caso, a ciência apenas realizou o que os homens haviam antecipado em sonhos. Hannah Arendt chama a atenção para a reação dos homens com o evento do lançamento do satélite porque, antes, ninguém na história da humanidade jamais havia concebido a terra como prisão para o corpo dos homens nem demonstrado tanto desejo de ir, literalmente, daqui à lua (embora os cristãos tenham chamado esta terra de “vale de lágrimas” e os filósofos tenham visto o próprio corpo do homem como prisão da mente e da alma). Pergunta-se: Será que a tão “famosa” emancipação e a secularização da era moderna, que tiveram início com um afastamento, não necessariamente de Deus, mas de um deus que era o pai dos homens no céu, termina com um repúdio ainda mais funesto de uma terra que era a mãe de todos os seres vivos sob o firmamento? (p.10) Arendt conseqüências vai então que advêm colocar do para desejo nós humano de algumas se das fugir da “prisão terrena”, que, em outras palavras, é o desejo de fugir à condição humana. Segundo a autora, este desejo leva a ciência a se esforçar por tornar “artificial” a própria vida, por cortar o último laço que faz do próprio homem um filho da natureza. Esse mesmo desejo se manifesta na tentativa de criar a vida 77 numa proveta, no desejo de misturar “sob o microscópio” o plasma seminal congelado de pessoas comprovadamente capazes, a fim de produzir seres humanos superiores e alterar-lhes o tamanho, a forma e a função. E mais: esse desejo (o de fugir à condição humana) talvez esteja presente na esperança de prolongar a duração da vida humana para além dos limites dos cem anos. Nesse instante, ela fala de sua visão do homem do futuro, um homem que parece motivado por uma rebelião contra a existência humana tal como nos foi dada – dom gratuito vindo do nada, secularmente falando, que ele deseja trocar, assim dizendo, por algo produzido por ele mesmo. Não há razão para duvidar de que o homem seja capaz de realizar a troca já referida, nem de ser capaz de destruir toda a vida orgânica da terra. O que se impõe é: em que direção os homens desejam usar seu novo conhecimento técnico e científico? Para Arendt, essa questão não pode ser resolvida por meios científicos, pois é uma questão política de primeira grandeza e, desse modo, não pode nem deve ser decidida por cientistas profissionais. Para tanto, ela vai explicar que sua preocupação com o assunto a tratar diz respeito ao fato de que, embora tais possibilidades pertençam ainda a um futuro muito remoto, os primeiros efeitos colaterais dos grandes triunfos da ciência já se fizeram sentir sob a forma de uma crise dentro das próprias ciências naturais. O problema tem a ver com o fato 78 de que as “verdades” da moderna visão científica do mundo (mesmo que demonstradas em fórmulas matemáticas e comprovadas pela tecnologia) já não se prestam à expressão normal da fala e do raciocínio. Segundo Arendt, não se sabe ainda se esta situação é definitiva; mas pode ser que algum dia todos nós, que nos pusemos a agir como habitantes do universo, jamais cheguemos a compreender, ou seja, a pensar e a falar sobre aquilo que, no entanto, somos capazes de fazer. “Neste caso, seria como se o nosso cérebro, condição material e física do pensamento, não pudesse acompanhar o que fazemos, de modo que, de agora em diante, necessitaríamos realmente de máquinas que pensassem e falassem por nós.” (pág.11) Parece que esta é a preocupação básica de Arendt ao estudar a condição humana. Ela alerta para o fato de que se realmente for comprovado esse divórcio definitivo entre o conhecimento (no sentido moderno de know-how) e o pensamento, então passaremos, sem dúvida, à condição de escravos indefesos, não tanto de nossa máquina quanto de nosso knowhow, criaturas desprovidas de raciocínio, à mercê de qualquer engenhoca tecnicamente possível, por mais mortífera que seja. Arendt ressalta que mesmo que deixemos de lado essas conseqüências incertas, a situação descrita criada pelas ciências tem grande significado político, pois sempre que a relevância do discurso entra em jogo, a questão torna-se política por definição, pois é o discurso que faz do homem um ser político. 79 Arendt explica porque talvez seja prudente duvidar do julgamento político de cientistas, enquanto cientistas. Segundo ela, essa dúvida não se deve à falta de caráter nem à ingenuidade destes. Para ela, essa dúvida advém do fato de que habitam um mundo no qual as palavras perderam o seu poder. E ressalta que tudo o que os homens fazem, sabem ou experimentam só tem sentido na medida em que pode ser discutido. Assim menciona: Há linguagens que ficam além da linguagem e podem ser de grande relevância para o homem no singular, mas os homens no plural, ou seja, os homens que vivem e se movem e agem neste mundo, só podem experimentar o significado das coisas por poderem falar e ser inteligíveis entre si e consigo mesmos. p. 15 Outro evento que a filósofa considera ameaçador é o advento da “automação”. Este evento dentro de algumas décadas esvaziará, provavelmente, as fábricas e libertará a humanidade do seu fardo mais antigo e mais natural: o fardo do trabalho e da sujeição à necessidade. Percebemos que aqui ela vai tratar de mais um aspecto da condição humana. Ela diz que a rebelião contra esse aspecto é tão antiga quanto a história de que se tem registro. Lembra também que a isenção do trabalho não é novidade; já foi um dos mais arraigados privilégios de uma minoria. Neste progresso segundo caso, científico e as Arendt coloca conquistas da que parece técnica que o serviram 80 apenas para a realização de algo com que todas as eras anteriores sonharam e nenhuma pôde realizar. No entanto, para Arendt tudo isto é apenas aparência, pois a era moderna trouxe consigo a glorificação teórica do trabalho, e resultou na transformação efetiva de toda sociedade em uma sociedade operária. Enfim, Arendt se propõe a analisar as capacidades humanas gerais decorrentes da condição humana, e que são permanentes, isto é, que não podem ser irremediavelmente perdidas enquanto não mude a própria condição humana. Já por outro lado, a finalidade da análise histórica (histórica porque a autora aborda a era moderna e, no decorrer do livro, as várias constelações dentro da hierarquia de atividades, tais como as conhecemos através da história do ocidente) é pesquisar as origens da alienação no mundo moderno, o seu duplo vôo da terra para o universo e do mundo para dentro do homem, a fim de que se possa chegar a uma compreensão da natureza da sociedade, tal como esta evoluíra e se apresentava no instante em que foi suplantada pelo advento de uma era nova e desconhecida. Em A Condição Humana, Hannah Arendt tematiza os três conceitos fundamentais que constituem a gênese de seu estudo: labor, trabalho e ação18. Quanto ao labor, ele é necessário à 18 A contemplação é o último elemento conceitual dos estudos arendtianos. Consiste na relação do homem com o mundo físico na tentativa de apreender leis eternas semelhantes às leis da 81 sobrevivência biológica e efetiva-se na atividade do animal laborans, o qual, a partir de um estágio primitivo de existência, vivia isolado dos outros seres humanos regendo-se apenas pelos ditames fisiológicos da vida animal. Em relação ao trabalho (produção), ele é o estágio do homo faber que produz objetos duráveis (técnicas) partilhando o seu saber de “fabrico” com principal da outros vida homens. humana em A ação é sociedade. a característica Os homens agem e interagem uns com os outros no seio de uma vida política em sociedade. Só a ação é a única característica da essência humana que depende exclusivamente da contínua presença de outros homens. Arendt enquadra o labor e o trabalho (produção) no domínio da esfera privada, enquanto a ação está exclusivamente no plano da esfera pública (política). O privado é o reino da necessidade. O público é o reino da liberdade. A ação (política) nunca é equivalente a um trabalho necessário à sobrevivência biológica ou à produção técnica. A ação é uma atividade interativa mediada pela linguagem da pluralidade de opiniões no confronto político e efetivada através da retórica. Para Arendt, a evolução da sociedade, a assimilação da ação pelo social privado, o uniformismo das atividades humanas e o conseqüente conformismo demonstram bem até que Matemática e da Física. Este conceito é tematizado em A vida do Espírito. Compreende reflexão filosófica e religiosa. 82 ponto se perdeu a distinção entre a polis (esfera pública) e o oikos/idion (esfera privada). A sociedade atual representa a extensão da esfera privada doméstica ao espaço público da política. Este Modernidade aspecto central verificando-se a é visível assimilação a partir da da igualdade, outrora circunscrita ao espaço político, pela esfera privada. A igualdade moderna e contemporânea rejeita a praxis (ação) e a lexis (discurso) constituintes da comunidade política, valorizando o conformismo e uniformização do comportamento. Assim coloca: “Esta igualdade moderna, baseada no conformismo inerente à sociedade e que só é possível porque o comportamento substituiu a ação como principal forma de relação humana, difere, em todos os seus aspectos, da igualdade na cidade-estado grega. Pertencer aos poucos iguais (homoioi) significava ter a permissão de viver entre pares; mas a esfera pública em si, a polis, era permeada de um espírito acirradamente agonístico: cada homem tinha constantemente que se distinguir de todos os outros, demonstrar, através de feitos ou realizações singulares, que era o melhor de todos (aien aristeuen). Em outras palavras, a esfera pública era reservada à individualidade; era o único lugar em que os homens podiam mostrar quem realmente e inconfundivelmente eram. Em benefício dessa possibilidade, e por amor a um corpo político que a propiciava a todos, cada um deles estava mais ou menos disposto a compartilhar do ônus da jurisdição, da defesa e da administração dos negócios públicos.” Pág.51 Conseqüentemente, o homem reduz-se a um produto quantitativo condicionado, isto é, o objeto primordial das análises cientifistas das ciências sociais e em particular do behaviorismo, economia "matemática" e estatística. 83 Arendt afirma que o agir interativo da esfera política aparece absorvido pelos interesses privados da intimidade. Deste modo, a esfera social deixa de estar submetida à hierarquia do Poder. A política perde a personalidade da democracia grega transformando-se numa vontade geral burocrática. A conservação da vida e a desigualdade inerentes à esfera doméstica passam a ter interesse para a ação política. Do mesmo modo, as teorias políticas do Absolutismo acentuavam que o Estado, na figura do Rei, deveria assegurar o direito cidadãos. de propriedade Contrariamente e a a acumulação estas de concepções, riqueza as dos doutrinas socialistas, desde Proudhon a Marx, defendem a abolição da propriedade privada e a distribuição da riqueza num sistema de produção cooperativista de base comunitária. Ora, Arendt embora aceite o princípio revolucionário marxista, segundo o qual a força de trabalho é a origem da propriedade, rejeita os regimes socialistas e em particular as teses de Marx referentes à ditadura do proletariado, prevendo o perigo do totalitarismo da massa proletária. 2.1 - Grécia Antiga: a gênese da esfera privada e da esfera pública 2.1.1 A esfera privada A esfera privada é a esfera da casa (oikos), da família e daquilo que é próprio (idion) ao homem. Baseia-se em 84 relações de parentesco como a phratria (irmandade) e a phyle (amizade). Trata-se de um reino de violência em que só o chefe da família exercia o poder despótico sobre os seus subordinados (a sua mulher, filhos e escravos). Não existia qualquer discussão livre e racional. Os homens viviam juntos subordinados exemplo: por necessidades alimentação, e carências alojamento, biológicas segurança face (por aos inimigos). A necessidade motivava toda a atividade no lar: o chefe da família proporcionava os alimentos e a segurança face a ameaças internas (por exemplo: revoltas de escravos) e externas (outros senhores que quisessem destruir uma dada casa e família), a mulher era propriedade do chefe da família e competia-lhe procriar e cuidar dos filhos, os escravos ajudavam o chefe da família nas atividades domésticas. Na esfera privada, existia a mais pura desigualdade: o chefe da família comandava e os outros membros da família eram comandados. O chefe da família não era limitado por qualquer lei ou justiça. Assegurando a manutenção da ordem doméstica, exercia um poder totalitário sobre a vida e a morte. Na esfera privada, o homem encontrava-se privado da mais importante das capacidades - a ação política. O homem só era inteiramente humano se ultrapassasse o domínio instintivo e natural da vida privada. 85 2.1.2 A esfera pública Esta é a esfera do comum (koinon) na vida política da polis. Baseia-se no uso da palavra e da persuasão através da arte da Política e da Retórica. Para Aristóteles, a esfera pública era o domínio da vida política, que se exercia através da ação (praxis) e do discurso (lexis). Os cidadãos exerciam a sua vida política participando nos assuntos da polis. Vencer as necessidades da vida privada constituía a condição para aceder à vida pública. Só o homem que tivesse resolvido todos disponibilidade igualdade sem os assuntos para da participar qualquer coação. casa num e da reino Todos são família de teria liberdade iguais (não e há desigualdade de comandar e de ser comandado) e todos são livres em expressar as suas opiniões. O poder da palavra através da persuasão (a prática da retórica) substitui a força e a violência da esfera privada. Os cidadãos livres e iguais da esfera pública da polis opõem-se, assim, às relações de dominação e de propriedade sobre os subordinados do oikos19. Deixar o lar e a família manifestava a mais importante virtude política - a coragem. No oikos, o homem defendia a Apesar da essência pública da política, Arendt afirma que a linha divisória entre a esfera privada e a esfera pública desaparece ocasionalmente em Platão e Aristóteles. Para Platão, as experiências da vida privada podem ser transferidas para a vida na polis. E Aristóteles, seguindo Platão, defendeu que a origem histórica da polis estava ligada à superação das necessidades do oikos e somente a finalidade última da vida boa na polis (a felicidade) transcende a insuficiência biológica da casa e da família. 19 86 sua sobrevivência biológica. Na polis, o homem tinha de ter coragem para servilismo arriscar do amor a à própria vida. A vida vida libertando-se boa, que do Aristóteles identificava com a ação política, significava a libertação do homem face às esferas do animal laborans e do homo faber efetivando-se através da virtude da coragem e da eudaimonia (vida boa). Ter coragem era a condição para aceder à vida política afirmando uma individualidade discursiva e contrariando a mera socialização imposta pelas limitações da vida biológica privada. Ser cidadão da polis, pertencer aos poucos que tinham liberdade e igualdade entre si, pressupunha um espírito perante os de luta: outros cada que era o cidadão procurava melhor exibindo, demonstrar através da palavra e da persuasão, os seus feitos singulares, isto é, a polis era o espaço de afirmação e reconhecimento de uma individualidade discursiva. 2.1.3 O social e o político Hannah entre a Arendt ação salienta humana e que vida existe em comum uma na relação mútua comunidade ou sociedade. Este fato é um dos motivos da incorreta tradução da expressão animal político, formulada por Aristóteles, como animal social. político. Para Todavia, Aristóteles, os tradutores o homem e é um animal comentadores de Aristóteles, desde Sêneca até S. Tomás de Aquino, traduziram incorretamente animal político por animal social. Esta 87 substituição do político pelo social é a conseqüência da concepção latina da sociedade como uma sociedade da espécie humana, na qual os homens se associam para viver juntos em função de fins específicos (por exemplo: para dominar os outros ou para cometer um crime). Deste modo, existe uma diferença substancial entre a polis dos gregos como espaço de afirmação da política, através da liberdade e igualdade dos cidadãos, e a sociedade dos romanos como um espaço de dominação do poder imperial sobre os cidadãos e restantes súditos do Império Romano. Arendt evidencia as posições de Platão e Aristóteles, para os quais o termo social significava apenas a vida em comum das espécies animais, enquanto limitação da vida biológica. A sociedade era uma característica biológica do animal humano e de outras espécies animais. A política tanto para Platão, como para Aristóteles era a única característica essencialmente Aristóteles humana. Para significava característica principal Arendt, somente e única a da o animal político existência condição de humana, de uma que consistia na ação política dos cidadãos da polis num espaço de liberdade e igualdade. Mediante a política, o homem tinha a possibilidade de escapar à organização instintiva e biológica da casa e da família. Paralelamente à incorreta tradução de animal político como animal social, os latinos traduziram erradamente a noção 88 de homem como um ser vivo dotado de fala, formulada também por Aristóteles, como animal racional. Segundo Arendt, Aristóteles queria apenas indicar não a faculdade racional de fala, mas a capacidade dos cidadãos da polis confrontarem opiniões através do discurso. Contrariamente, todos os que viviam fora da polis (mulheres, crianças, escravos e bárbaros) estavam impedidos não da faculdade de falar, mas do poder de discursarem publicamente uns sobre os outros confrontando opiniões. Para Arendt, a confusão entre o social e o político decorre da moderna concepção da sociedade, a qual encara a política como um espaço de regulação da esfera privada. O Estado nacional tende a regular a vida doméstica mediante uma "economia nacional", "economia social" doméstica coletiva". Atualmente, a ou "administração economia política do Estado nação efetiva-se no controle do poder estatal sobre a família e a administração doméstica do lar. Trata-se de um processo contraditório, pois originariamente a economia pertencia ao domínio do chefe da família e a política à cidadania na polis. A esfera privada da família, fenômeno pré-político na Grécia Antiga, controlado transformou-se pelo conseqüentemente, a num monopólio de esfera privada "interesse um e Estado a esfera coletivo" soberano; pública correlacionam-se reciprocamente. Na época contemporânea, Marx 89 recebeu dos modernos economistas políticos a idéia que a política é uma função da vida social e o pensamento, o discurso e ação são superestruturas dependentes da infraestrutura econômica. Para Arendt, esta situação anula a dualidade clássica entre esfera privada e esfera pública. Porém, durante oposição, embora diferente, entre a Idade Média, enfraquecida a esfera e privada ainda com do uma social existia uma localização e a esfera pública do político. Após a queda do Império Romano, o poder religioso da Igreja Católica fornecia um substituto para a cidadania anteriormente outorgada pelo governo municipal. Mas por mais "profana" que se tornasse a Igreja Católica existia uma comunidade de crentes unidos pela fé em Cristo. O sagrado monopolizava feudalismo, vilãos e a vida social verifica-se dos servos a da e a vida absorção gleba política. Com o da esfera privada dos pelo senhor feudal que centraliza o poder na esfera pública do feudo (que incluía o castelo, a vila e as propriedades dos vilãos). O senhor feudal administrava a justiça aplicando as leis na esfera privada e na esfera pública. Comparativamente, o chefe de família da Grécia Antiga só conhecia a lei e a justiça na polis. Na esfera privada da casa e da família, isto é, nas primeiras formas de efetivação do social, o chefe da família grega podia dominar os escravos, a mulher e as crianças sem qualquer limite judicial ou legal. 90 A transferência dos moldes familiares (e primeiramente sociais) da esfera privada para a esfera pública institucional manifesta-se nas corporações profissionais da Idade Média - os guilds, confréries e compagnons - e mesmo nas primeiras companhias comerciais onde estava presente, desde a origem etimológica, a idéia de uma partilha de bens materiais privados (tais como o pão e o vinho) no domínio público. Na Idade Média, o significado da expressão "bem comum" não estava ligado à política. Mas apenas à reciprocidade de interesses materiais e espirituais entre os vários indivíduos. Estes só podiam conservar a sua individualidade privada quando um deles se encarregava de garantir os interesses partilhados pela comunidade. A existência desta situação explica-se devido a uma mentalidade cristã, que reconhecia o bem comum extensível à vida privada e à vida pública20. Deste modo, segundo Arendt o pensamento medieval, que concebia a política e a família subordinados ao fim divino, foi incapaz de compreender o abismo originário entre a esfera privada e a esfera pública. Arendt assegura que Maquiavel foi o único autor pósclássico que reconheceu a separação entre a esfera privada e a esfera pública. Em O Príncipe, Maquiavel defende, tal como os gregos, a coragem como uma qualidade política essencial. E Nas primeiras comunidades cristãs "todos os crentes viviam unidos e possuíam tudo em comum. Vendiam terras e outros bens e distribuíam o dinheiro por todos, de acordo com as necessidades de cada um. (...)" (Atos dos Apóstolos, 2, 44-45) 20 91 procura restaurar a identidade clássica da política através da figura do Condottieri (mercenário), o qual passa da privacidade das circunstâncias naturais existentes em todos os indivíduos para o domínio público do Principado. 2.1.4 A promoção do social Para social. os O gregos, social não existia situava-se um tanto na conceito esfera unívoco privada de das relações da casa e da família, como na esfera da participação política. Arendt assinala um fator fundamental que contribuiu para a promoção do social: a subordinação da esfera pública aos interesses privados dos indivíduos. Conseqüentemente, os meios deste processo foram: o desenvolvimento das atividades artísticas privadas (romance, a música e a poesia); a estereotipização do comportamento no conformismo da sociedade (vontade geral, convenções sociais dos salões, burocracia, economia, invisível", comunistas estatística, multidão enquanto behaviorismo, numerosa, coação da cientismo, doutrinas comunidade "mão socialistas e totalitária, sociedade de massas, promoção do labor a interesse público). O que chamamos de ascensão do social coincidiu historicamente com a transformação da preocupação individual com a propriedade privada em preocupação pública. Logo que passou à esfera pública, a sociedade assumiu o disfarce de uma organização de proprietários que, ao invés de se arrogarem acesso à esfera pública em virtude de sua riqueza, exigiram dela proteção para o acúmulo de mais riqueza. (Pág. 78) 92 Arendt critica comportamentos a sociais, estereotipização que negam conformista a dos espontaneidade da opinião. Esta tendência verifica-se desde o século XVIII até à atualidade. O posicionamento: conformismo o político da sociedade constitui adota o um duplo receptáculo dos interesses domésticos e nas relações sociais desaparece a pluralidade da discussão política em virtude de uma vontade geral normalizada. Ora, para Arendt a política e a história são o campo da multiplicidade de ações possíveis devendo o homem abolir o conformismo e exercitar uma vida activa pluralista. A passagem das preocupações da esfera privada da família e da casa para o domínio da política anulou a oposição clássica entre a polis e o oikos. A esfera privada atual teve a sua origem nos últimos períodos do Império Romano. Numa época em que, devido à desagregação do Império, os cidadãos procuravam afirmar os seus direitos privados (nomeadamente o direito de propriedade) no espaço público como resposta aos ataques dos bárbaros. Na modernidade, o privado opunha-se à esfera da sociabilidade e da esfera política situando-se no domínio do individualismo. No século XVIII, Rousseau defendeu que os esfera sentimentos comum artísticas do privados social. privadas O deveriam ser desenvolvimento nomeadamente a música, preservados das a da atividades poesia e o 93 romance aprofundaram a relação entre a sociabilidade e a individualidade. Assim postula Arendt: O primeiro eloqüente explorador da intimidade – e até certo ponto seu teorista – foi Jean-Jacques Rousseau; e é típico que ele seja o único grande autor ao qual ainda hoje nos referimos freqüentemente pelo primero nome. Jean-Jacques chegou à sua descoberta mediante uma rebelião, não contra a opressão do estado, mas contra a insuportável perversão do coração humano pela sociedade, contra a intrusão desta última numa região recôndita do homem que, até então, não necessitara de qualquer tipo de proteção especial. A intimidade do coração, ao contrário da intimidade da moradia privada, não tem lugar objetivo e tangível no mundo, nem pode a sociedade contra a qual ela protesta e se afirma ser localizada com a mesma certeza que o espaço público. Para Rousseau,tanto o íntimo quanto o social eram, antes, formas subjetivas da existência humana, e em seu caso, era como se Jean-Jacques se rebelasse contra um homem chamado Rousseau. O indivíduo moderno e seus intermináveis conflitos, sua incapacidade de sentir-se à vontade na sociedade ou de viver completamente fora dela, seus estados de espírito em constante mutação e o radical subjetivismo de sua vida emocional nasceram dessa rebelião do coração. Não resta dúvida quanto à autenticidade da descoberta de Rousseau, por mais duvidosa que seja a autenticidade do indivíduo que foi Rousseau. O surpreendente florescimento da poesia e da música, a partir de meados do século XVIII até quase o último término do século XIX, acompanhado do surgimento do romance, a única forma de arte inteiramente social, coincidindo com um não menos surpreendente declínio de todas as artes mais públicas, especialmente a arquitetura, constitui suficiente testemunho de uma estreita relação entre o social e o íntimo. (Pág. 49) Os românticos, Rousseau e Tocqueville reagiram contra a tentativa da sociedade nivelar o individualismo negando a discussão crítica, pois no fundo o íntimo privado e a sociedade constituíam formas de valorização da subjetividade individual. Na perspectiva de Rousseau, os homens agem sempre numa vontade geral que unifica a opinião pública, mesmo que inicialmente tenham opiniões divergentes. Antes da 94 desintegração da família nuclear, que ocorreu principalmente a partir do século XVIII, o chefe da família exercia um poder despótico controlando os membros da família e do lar evitando a desunião e afirmando uma opinião única detentora do interesse comum. O modelo de governo do chefe da família foi adotado na esfera política pelo poder despótico do Rei. Mas posteriormente com o liberalismo [e os ideais da Revolução Francesa] o poder político transforma-se numa "espécie de governo de ninguém", isto é, numa vontade geral consubstanciada no espaço público burguês dos salões, cafés e clubes, bem como na democracia parlamentar. Neste contexto, a burocracia assume um controle despótico nas relações sociais uniformizando o comportamento humano perante a administração pública. Arendt destaca implicitamente que este "governo de ninguém" significa apenas uma vontade geral podendo conduzir a um poder tirânico na repressão das minorias. Deste modo, não existe ausência de governo, mas um poder desligado da pessoa do Rei e concentrado numa vontade geral unitária. Esta última aparece democracia direta posteriormente "normalização" existência efetivada de na da (no inicialmente período democracia conduta convenções da na tentativa Revolução Francesa) representativa. social, predefinidas Rousseau nos de Nesta defende salões e da a alta sociedade do século XVIII. 95 Do mesmo modo, também na sociedade de classes do século XIX e mais recentemente no século XX com a sociedade de massas, a ação individual de afirmação de uma racionalidade discursiva foi absorvida por uma sociedade unitária, que uniformizou o privado e o público através da supremacia do social. Contrariamente ao modelo grego de oposição entre o oikos e a polis defendido por Arendt, a política passou a preocupar-se com a esfera privada, ou seja, o social privado adquiriu um estatuto anteriormente política ligada doméstica de ao ao ação lar, serviço política. A transformou-se do economia, em conformismo economia privado. A estatística, instrumento da nova economia, tende a reduzir o homem a um produto quantitativo remetendo a história para um conjunto de leis automáticas objetivas que não podem ser contrariadas pela pluralidade de opiniões subjetivas. O behaviorismo reduz a atividade humana a estímulos e respostas condicionados sociedade, que previamente está na definidos. base da O cientificismo economia matemática, da do behaviorismo, da estatística e mesmo da burocracia, pressupõe uma uniformização da rotina do cotidiano e a transformação das ciências sociais em "ciências do comportamento" matemático. Arendt vai criticar o despotismo das multidões numerosas defendendo o modelo político da polis grega em que a ação política era individual e estava restrita aos cidadãos. 96 Os economistas liberais defenderam que a base da economia seria uma harmonia de interesses na comunidade, uma "mão invisível" que coletivamente regularia os interesses individuais. Contrariamente, Marx afirmou que a sociedade é a história da luta de classes e que só na esfera comunista o homem seria igual ao seu semelhante completamente livre e sem Estado. Para Arendt, embora Marx na revolução do proletariado recuse o conformismo, a sociedade comunista recai num novo conformismo em que a liberdade individual é absorvida pela vontade da comunidade. Na perspectiva de Arendt, Marx errou ao prever que somente uma revolução poderia provocar a decadência do Estado e que a sociedade comunista significaria um reino de liberdade. Ora, conforme Arendt, o Estado enquanto espaço político deve resistir à uniformização do social pelos interesses privados, e o "reino de liberdade" somente pode existir no confronto das opiniões públicas. A autora de A Condição Humana lamenta que atualmente a conduta social da sociedade de massas, no seu esforço de promover o político e o privado a uma uniformização do comportamento consumista, tenha conduzido ao conformismo do social negando a pluralidade da discussão. De fato, na sociedade de massas, o homem garante a sua sobrevivência no despotismo de uma única opinião desprovida da discussão racional pela ação política da palavra e da persuasão. Para Arendt, esta situação pode conduzir ao totalitarismo, à 97 destruição da política e da própria humanidade. A sociedade de massas é guiada pela atividade do labor. Na sociedade de massas, o animal laborans adquiriu o estatuto de assalariado (ou em termos marxistas “proletário”); procura apenas a subsistência da sua vida e da sua família pelo mero consumo, interessa-se pelo trabalho material naturalmente admitido longe de qualquer produção técnica, ação política ou vida contemplativa. conduziu o Deste espaço modo, público a promoção social da política a um pelo labor processo de afirmação da sobrevivência biológica. Os condicionalismos da vida orgânica transformaram-se em interesse social e político. A divisão do trabalho, enquanto multiplicidade da manipulação, foi o modo de efetivação da vida orgânica do animal laborans, isto é, o trabalho adquiriu excelência (uma virtude classicamente ligada à esfera política) tal como se verifica nas teorias marxistas e leninistas que valorizam a condição laboral do proletariado, e conseqüentemente a sua produção material, como base do interesse coletivo. Segundo Arendt, a excelência apenas pode existir na ação política através do incorporou confronto a de excelência opiniões. na esfera A promoção privada do do social labor. A promoção do labor à coisa pública libertou o trabalho da sobrevivência biológica e incorporou-o na praxis política. Os fatores que favoreceram a promoção do labor a interesse da sociedade e da esfera pública foram, sobretudo, os seguintes: a desagregação entre as capacidades técnicas do trabalho e o 98 desenvolvimento humanístico (o animal laborans é incapaz de reconhecer o valor humanístico da política como meio de excelência e autopromove o valor do trabalho como meio de sobrevivência biológica capaz de atingir a esfera pública); a subordinação do labor às explicações das ciências físicas e, conseqüentemente, a separação entre ciências físicas e ciências sociais. É interessante citarmos estes trechos de A Condição Humana: A excelência em si, arete como a teriam chamado os gregos, virtus como teriam dito os romanos, sempre foi reservada à esfera pública, onde uma pessoa podia sobressair-se e distinguir-se das demais. Toda atividade realizada em público pode atingir uma excelência jamais igualada na intimidade; para a excelência, por definição, há sempre a necessidade da presença de outros, e essa presença requer um público formal, constituído pelos pares do indivíduo; não pode ser a presença fortuita e familiar de seus iguais ou inferiores. Nem mesmo a esfera social – embora tornasse anônima a excelência, enfatizasse o progresso da humanidade ao invés das realizações dos homens e alterasse o conteúdo da esfera pública ao ponto de desfigurá-lo – pôde aniquilar completamente a conexão entre a realização pública e a excelência. Embora nos tenhamos tornados excelentes naquilo que elaboramos em público, a nossa capacidade de ação e de discurso perdeu muito de sua antiga qualidade desde que a ascendência da esfera social baniu estes últimos para a esfera do íntimo e do privado. Esta curiosa discrepância não passou despercebida do público, que geralmente a atribui a uma suposta defasagem entre nossas capacidades técnicas e nosso desenvolvimento humanístico em geral, ou entre as ciências físicas, que alteram e controlam a natureza, e as ciências sociais, que ainda não sabem como mudar e controlar a sociedade. A parte outras falácias do argumento, tantas vezes apontadas que seria ocioso repetilas, esta crítica refere-se apenas a uma possível mudança na psicologia dos seres humanos – os seus chamados padrões de comportamento -, não uma mudança do mundo em que eles habitam. E esta interpretação psicológica, para qual a ausência ou a presença de uma esfera pública é tão irrelevante quanto qualquer realidade tangível e mundana, parece bastante duvidosa em vista do fato de que nenhuma atividade pode tornar-se excelente se o mundo não proporciona espaço para o seu exercício. Nem a educação nem a engenhosidade nem o talento pode substituir os elementos 99 constitutivos da esfera pública, que fazem dela o local adequado para a excelência humana. (Pág. 59) 2.1.5 A esfera pública: o comum O termo "público" reporta, segundo Arendt, para dois fenômenos distintos embora correlacionados, como já destacamos no capítulo 1 deste trabalho. Em primeiro lugar "público" centra-se na idéia de acessibilidade: tudo o que vem a público está acessível a todos: pode ser visto e ouvido por todos. Quando divulgamos um pensamento ou um sentimento através de uma estória, bem como quando divulgamos experiências artísticas individuais, o privado torna-se de acesso público. A garantia deste fenômeno depende de uma condição essencial: os outros têm de partilhar a realidade do mundo e de nós mesmos. No entanto, para Arendt, há sentimentos que não podem ser inteiramente divulgados aos outros no espaço público: a dor física e o amor. O encantamento por "pequenas coisas" pode parecer insignificante, mas constitui o sentimento de um povo em que o bom senso pelos pequenos objetos contraria o processo de industrialização. Em segundo lugar, o termo "público" centra-se na idéia de comum. A realidade do mundo tem um negócios bem comum ou humanos, na interesse medida comum em que do é artefato e dos partilhado por indivíduos que se relacionam entre si. Com a sociedade de 100 massas, o homem perdeu a capacidade de viver em comum limitando-se ao mero consumo. Arendt assinala que a filosofia cristã do vínculo da caridade, tematizado por Santo Agostinho a partir da mensagem de Cristo, é o único princípio capaz de unir as pessoas criando um mundo extraterreno que aceita o amor ao próximo como forma de evitar a condenação do mundo. Para Arendt, as comunidades cristãs foram incapazes de criar uma esfera política própria. Contudo, nas ordens monásticas a esfera pública manifestava-se na adoção comum de regulamentos [por exemplo: a regra de S.Bento] que proibiam a excelência e o orgulho defendendo a humildade da ação evangélica. A negação da política como fenômeno terreno que não durará eternamente está subjacente à concepção cristã do mundo. Para os cristãos, a queda do Império Romano foi a constatação de que toda a política desligada da submissão à onipotência cristã é efêmera. A recusa cristã do mundo terreno produziu na atualidade um efeito inverso: verifica-se a intensificação do materialismo e a conseqüente formação de uma sociedade das massas consumistas desligadas do espírito da comunhão. Arendt defende, contra o consumo da sociedade de massas, uma comunhão dos interesses individuais pela política, que transcenda o espaço da ação e se afirme de forma estrutural como fenômeno para além da vida. Neste sentido, Arendt ultrapassa a salvação da alma como bem comum dos cristãos 101 salientando a função fundamental da ação humana (política) que sobrevive à história quando se manifesta como presença no espaço público. Na Antiguidade, os homens ingressavam na vida pública através da ação política para alcançarem notoriedade e, assim, escaparem ao anonimato da vida natural da esfera privada. Esta garantia de notoriedade da esfera política conduzia à intenção de ser lembrado para além da morte. A laicização da preocupação esfera pública metafísica) é (e um conseqüente indício perda da significativo do desaparecimento da esfera pública clássica21. De fato, apesar da separação entre a tradição no domínio da religião e a política no domínio do interesse público, tanto a polis grega, como a res publica dos romanos eram herdeiras de uma concepção metafísica, que consagrava a imortalidade da ação como a maior prova de valor político. Ressalta a opinião de Adam Smith segundo a qual a admiração pública que se efetiva na vaidade consumista e a posterior recompensa monetária são intermutáveis possuindo a mesma natureza: ambos são processos subjetivos que tendem a tornar objetiva a esfera pública através de formação de status. Esta objetividade do status manifesta-se no poder do dinheiro como prontamente 21 satisfação transformadas das em necessidades assunto público. individuais Mas, para Para Arendt, alguns filósofos e os defensores da vida contemplativa são os únicos que ainda procuram reabilitar a perspectiva metafísica da imortalidade no espaço público. 102 Arendt, a sociedade de massas, empenhada no mero consumo e na subjetividade privada da dos interesses família e da privados, casa, nunca bem como poderá a esfera substituir a pluralidade de opiniões na esfera pública da política. A esfera pública do comum não resulta da igualdade da natureza humana, mas fundamentalmente de um objeto comum - a política - que interessa a todos os indivíduos ainda que sob perspectivas diferentes. Assim se compreende a pluralidade de opiniões no espaço político. Quando o interesse comum da política se transforma no interesse único privado do regime tirânico e da sociedade de massas surge a destruição da comunhão na esfera pública criando-se as condições para o aparecimento do totalitarismo. Especificamente, a sociedade de massas destrói a esfera privada e a esfera pública: impede a pluralidade de opiniões num espaço público comum; exclui os homens da casa e da família enquanto refúgios perante o mundo. 2.1.6 A esfera privada: a propriedade No recinto da esfera privada, a autora de A Condição Humana realiza uma explicação dos conceitos de propriedade e riqueza inerentes à esfera da família e da casa. Afirma que só com a garantia da propriedade privada e da riqueza necessária à subsistência biológica o homem poderia escapar à escravidão e ultrapassar as à pobreza necessidades tornando-se, da vida assim, natural e capaz aspirar de à 103 cidadania na polis. Arendt destaca que a mentalidade cristã e o socialismo contribuíram para a desagregação da propriedade e da riqueza, elementos clássicos da esfera privada. O cristianismo encara a propriedade e a riqueza de forma nãoindividualista, mas como bens partilháveis em comunidade. O socialismo no seu conjunto defende um modelo cooperativista de administração da propriedade e da riqueza. Segundo Arendt, viver na esfera privada significava estar privado de ser ouvido e visto por todos numa comunidade política em que os indivíduos partilham objetivamente uma ação política num espaço comum - a polis. A esfera privada limitava-se a um interesse pessoal circunscrito aos condicionalismos da sobrevivência biológica na família e na casa. Na Antiguidade, os romanos compreenderam que a esfera privada e a simultaneamente. esfera A esfera pública privada deveriam coexistir oferecia atividades "espirituais" como o estudo das ciências e das artes, embora nunca pudesse substituir a ação política na condução dos assuntos públicos. Todavia, enquanto os romanos nunca sacrificaram a esfera privada face à maior importância do espaço político (destacando que os escravos encontram no lar um refúgio e uma educação), os gregos, ao contrário, denotaram sempre na esfera privada da casa e da família a ausência da essência da condição humana - a ação política. 104 O aparecimento do cristianismo contribuiu para a quase extinção da idéia que o lar era um espaço íntimo de privação. Para os cristãos, quer na esfera privada da casa e da família, quer na esfera pública da política o homem procurava o amor ao próximo para obter a salvação e evitar a condenação. Os afazeres da casa e da família deveriam servir para obter o bem-estar material da comunidade desprovido das honras e do poder, pois a humildade de ação e do sentimento constituía a principal premissa da caridade evangélica. Na perspectiva cristã, a principal função da política era proporcionar o bem-estar e evitar a privação na casa e na família. Esta responsabilidade cristã da política visava enquadrar o espaço público à luz de uma soteriologia que evitasse o pecado. Conforme Arendt, o ideal cristão e as teses de Marx partiam de um aspecto comum: a crença que a política não era onipotente. Para os cristãos, a política era um mal necessário, mas sempre subordinado à teologia. Para Marx, o Estado e a política devem ser extintos sendo substituídos por um modelo [ficção] comunista. A decadência da esfera pública da polis não foi a conseqüência direta do cristianismo e do marxismo, foi antes o fato da economia doméstica se transformar em economia política do Estado nação. A decadência da esfera pública foi acompanhada da ameaça da destruição da esfera privada nomeadamente da propriedade. 105 Arendt critica o equívoco da relação entre, por um lado, a riqueza e, por outro lado, a pobreza enquanto inexistência de propriedade. De fato, o surgimento de sociedades ricas, mas em que não existe propriedade privada demonstra o equívoco da associação entre propriedade e riqueza22. Desde a Antiguidade, ser proprietário significava que o indivíduo possuía uma parte do mundo e chefiava uma família. Ou seja, o indivíduo tinha o controle sobre uma parte da população e do território, elementos estes que constituíam no seu conjunto juntamente com os outros elementos do Estado (o Poder, os órgãos do Estado e a lei) o fundamento do corpo político. Ser privado da propriedade significava ficar impedido de garantir a subsistência do lar e da família (perdendo igualmente a cidadania e a proteção implicava necessariamente da lei), a perda enquanto da ser pobre propriedade e não da cidadania. Na polis grega, a lei pública regulava a liberdade dos cidadãos na sua ação política separando-se da lei natural do mais forte confinada à família e à casa. Arendt menciona que a lei da polis pressupunha a aplicação da ação política a uma espécie de muro separador entre o terreno comum da política e o processo biológico do oikos e não ao ato de legislar nem a um conjunto de proibições. Ou seja, a lei era a lei dos cidadãos da polis e nunca a lei da casa e da Arendt está a pensar, seguramente, nos regimes socialistas e comunistas. No entanto, embora nesses regimes os cidadãos participem na "renda anual da sociedade" não existindo propriedade privada é incerto que possam ser qualificados como sociedades ricas comparativamente aos regimes capitalistas. Só uma análise económica, sociológica e estatística estrutural do tecido produtivo desses regimes poderia avaliar a existência de sociedades ricas. 22 106 família. Neste contexto, a propriedade assegurava um lugar próprio de necessidade subjetividade natural, um individual lado oculto e sem de o domínio qual o da homem deixaria de ser verdadeiramente humano. A existência da riqueza privada constituía um meio pelo qual o homem não estava dependente de um senhor, mas podia ele próprio empenhar-se na sua subsistência. A riqueza não significava apenas a acumulação de bens materiais, mas um processo capaz de evitar a pobreza e a escravidão libertando o homem do labor e oferecendo-lhe a possibilidade de superar a necessidade natural, pois só assim seria possível alcançar a plena liberdade na ação política. Contudo, quando o homem procurava ampliar a propriedade, para além da subsistência, sacrificava a disponibilidade necessária para a cidadania na polis. Até a era moderna, a propriedade era um lugar sagrado. A riqueza da propriedade agrícola estava associada à proteção dos deuses. Porém, na modernidade, a propriedade perdeu o caráter sagrado sendo expropriada em favor de uma burguesia e aristocracia em contínua ascensão. Esta situação explica-se, segundo Arendt, porque a propriedade privada era contrária à acumulação de riqueza desejada pela classe capitalista. A filósofa termina a temática em torno da esfera privada com a tese de Proudhon, segundo a qual a propriedade é um roubo. Para Proudhon, a propriedade privada, na medida em que impede 107 a entreajuda e a produtividade social existente na acumulação de riqueza por parte da classe trabalhadora, deve ser abolida e substituída por um sistema de propriedade cooperativista. 2.1.7 O social e o privado A Modernidade acentuou a promoção do social. A esfera pública, verdadeiro instrumento de sociabilidade, passa a proteger a esfera privada da riqueza e da propriedade da casa. Arendt salienta que, para Bodin, o Rei deveria garantir a propriedade dos seus súbditos. Arendt questiona as concepções modernas da propriedade apontando que a riqueza inerente à propriedade destina-se unicamente ao uso e ao consumo. Deste modo, quando a riqueza se transforma na acumulação de capital, o privado passa a ter supremacia e invade o domínio político. O governo moderno, que protegia a esfera privada da luta de todos contra todos, era a única instância considerada comum. Mas no fundo, o Estado protegia sempre os interesses privados dos mais fortes tal como diagnosticou Marx, no Manifesto do Partido Comunista. Arendt vai mais longe e afirma que mais grave do que isso foram os seguintes fatores: a extinção da diferença entre a esfera privada e a esfera pública tal como existia no mundo grego; a transferência das preocupações privadas para a política; a valorização da esfera privada como fenômeno basicamente social. 108 Na transformação da esfera privada, a propriedade adquire um significado móvel podendo ser trocada e consumida por outros, isto é, o social justifica a perda do poder privado sobre os objetos23. Arendt enfatiza a concepção revolucionária de Marx sobre a propriedade. Para Marx, a propriedade pertence verdadeiramente àqueles que realizam a força de trabalho - os proletários. Desde que a riqueza se tornou coisa pública, a propriedade privada passou a estar ameaçada. Locke constatou o perigo do desaparecimento da propriedade privada e defendeu que sem a propriedade privada de nada serve o comum. O desaparecimento da esfera privada e a sua substituição pela onipresença do social corresponde à eliminação dos aspectos comuns (não-privativos) da esfera privada. Por um lado, as posses privadas da subsistência natural inerentes à família e à casa que usamos e consumimos deixam de ser necessárias ao mundo comum. E, por outro lado, a propriedade privada deixa de ser um refúgio seguro contra a publicidade do espaço público. Ora, para Arendt, respeitar a propriedade privada é o único meio de assegurar um lugar próprio e seguro. Os corpos políticos pré-modernos estavam conscientes destas características não-privativas da esfera privada, mas limitaram-se a proteger a separação entre a posse privada e a política comum tornando-se incapazes de 23 Este fenômeno coincide com o desenvolvimento do comércio, da burguesia, bem como com o advento da Revolução Industrial. 109 proteger a esfera privada da expansão crescente do social. Por outro lado, as modernas teorias políticas e econômicas defendem que o governo deve proteger a propriedade privada favorecendo a acumulação intromissão do espaço indicando que as de público medidas do riqueza. Arendt político na socialismo critica esfera e do a privada comunismo acentuam ainda mais a decadência da propriedade privada e da própria esfera privada. Por fim, aponta que desde os primórdios da história até à atualidade, corporais mulheres, da o homem procurou subsistência crianças e na esconder esfera as necessidades privada. trabalhadores Escravos, sempre foram marginalizados e mantidos fora do espaço público. Porém, os movimentos da emancipação dos trabalhadores (por exemplo: o sindicalismo) e das mulheres (por exemplo: os movimentos feministas) pertencem a um momento revolucionário em que as funções corporais e os interesses naturais pelo mundo material passam a ser divulgados publicamente. Neste sentido, Arendt realça o fato dos vestígios restritos da intimidade privada (por exemplo: alimentação, procriação, trabalho do animal laborans), modernamente transformados em interesse público, ainda estarem dependentes das necessidades da vida corporal. 110 2.2 - A localização das atividades humanas As atividades humanas localizam-se, segundo Arendt, em dois planos: o plano da vida activa que compreende o labor (trabalho para a subsistência biológica), trabalho (trabalho enquanto produção mediante a técnica) palavra e a e ação persuasão (confronto na esfera opinativo pública da política e o plano da vida contemplativa (reflexão religiosa e filosófica do espírito). Neste último ponto da temática a respeito da esfera privada e da esfera pública, Arendt escolhe o exemplo da bondade cristã para demonstrar que a esfera privada subsistência teológica não se ocupa biológica, que defende mas o somente pode amor do adotar ao necessário uma próximo à perspectiva como garantia escatológica. Mas tal como afirma a referida autora, se por um lado, a bondade cristã é praticada individualmente por um cristão em relação a outro, também é certo que ela não encontra refúgio na esfera privada íntima, pois sempre que é divulgada publicamente desaparece o móbile de uma bondade desinteressada por amor ao próximo. Deste modo, a teologia cristã defende que os indivíduos, ao agirem por bondade, devem fazê-lo evangélica sem testemunhas sobre-humana24. num Mas, espírito por de ocultar humildade as suas atividades o homem foge do espaço público da participação "Guardai-vos de fazer as vossas boas obras diante dos homens, para vos tornardes notados por eles. De contrário, não tereis nenhuma recompensa do vosso Pai que está nos Céus. Quando, pois, deres esmola, não toquem trombeta diante de ti, como fazem os hipócritas, nas sinagogas e nas ruas, a fim de serem louvados pelos homens.” (Mt 6, 1-2). 24 111 política. Maquiavel, contrariamente à teologia cristã, defendeu que a bondade pode destruir a esfera política. A glória está na base do poder político. A política versa sobre as relações de poder e nunca sobre a maldade ou bondade das ações humanas, pois os homens agem sempre na busca da glória e são violentos por natureza. Arendt conclui sublinhando que Maquiavel critica também a corrupção da Igreja proveniente desta se ocupar de assuntos profanos. E mesmo a Reforma é perigosa, porque os novos movimentos religiosos protestantes ao defenderem uma resistência passiva ao mal legitimam a liberdade absoluta dos governantes. Esta breve consideração que fizemos ao pensamento arenditiano, a respeito do obscurecimento entre as esferas pública e privada, nos mostra em que medida a condição humana está ameaçada, sobretudo se levarmos em conta o desaparecimento da esfera pública ou a sua deturpação. Esta confusão entre as esferas dá lugar ao não-mundo, à i- mundície, na medida em que o termo “público” significa o próprio mundo, uma vez que é comum a todos nós e diferente do lugar que nos cabe dentro dele. Este mundo, porém, não é idêntico à terra ou à natureza como espaço limitado para o movimento dos homens e condição geral da vida orgânica. Antes tem a ver com o artefato humano, como já indicamos, com o produto de mãos humanas, com os negócios realizados entre os que, juntos, habitam o mundo feito pelo homem. De acordo com 112 Arendt, conviver no mundo significa essencialmente ter um mundo de coisas interposto entre os que nele habitam em comum, como uma mesa se interpõe entre os que se assentam ao seu redor; pois, como todo intermediário, o mundo ao mesmo tempo separa e estabelece uma relação entre os homens. A esfera pública, enquanto mundo comum, reúne-nos na companhia um dos outros e ao mesmo tempo evita que colidamos uns com os outros por assim dizer. No entanto, o alheamento em massa impede que se veja o desastre. Para Hannah Arendt, o que torna tão difícil suportar a sociedade de massas não é o número de pessoas que ela abrange, ou pelo menos não é este o fator fundamental. Antes, é o fato de que o mundo entre elas perdeu a força de mantê-las juntas, de relacioná-las umas às outras e de separá-las. Em Bandeira, a obsessão em nomear os fatos, utilizando linguagem simples, livre de excessos, chama a atenção para uma crise sem precedentes na história da humanidade, a imundície, a exacerbado, qual que se retira evidencia a todos diante da condição do consumismo humana, e os aliena. O poema “Satélite” nos faz ver de que modo o poeta opera a crítica ao excesso consumista, tomando a lua em seu sentido literal, “satélite”, despida de toda adjetivação porque “desmetaforizada”, “demissionária de atribuições românticas”. Há, portanto, uma nítida rejeição ao mundo utilitarista e sua supervalorização das coisas, o que traz a idéia de 113 superfaturação, característica do sistema capitalista. Ouvimos, então, o desabafo: “Fatigado de mais-valia / gosto de ti assim: / coisa em si, / Satélite”. Fim de tarde. No céu plúmbeo A Lua baça Paira Muito cosmograficamente Satélite. Desmetaforizada, Desmistificada, Despojada do velho segredo de melancolia, Não é agora o golfão de cismas, O astro dos loucos e dos enamorados, Mas tão-somente Satélite. Ah Lua deste fim de tarde, Demissionária de atribuições românticas, Sem show para as disponibilidades sentimentais! Fatigado de mais-valia, Gosto de ti assim: Coisa em si, - Satélite. Satélite. Estrela da Tarde A leitura, assim, procede, pois o que se observa é que a era moderna substituiu a ação pela fabricação, uma vez que a imprevisibilidade dos resultados e a irreversibilidade dos feitos característicos da ação a fazem inútil a um mundo preocupado com produtos e lucros. Como nos mostra Arendt, para o fabricante do século XIX, a função do Estado é a defesa dos que têm alguma propriedade contra os que não têm nenhuma, e não a pluralidade humana. Atentemos, ainda, para o fato de que a inversão cristã entre ação e contemplação foi útil a esses fabricantes: é necessário primeiro a idéia do 114 objeto para prescinde lucros depois da se construí-lo. ação, mas não multiplicassem, da a Por isso, a contemplação. estabilidade fabricação Para que política os era necessária, o que é frontalmente contrário à ação, a qual, por natureza, é irreversível e instável. Desde os tempos antigos que a irreversibilidade da ação é combatida com o perdão: o perdão prejudiciais liberta de indefinidamente seu o o que ato processo age que com a das conseqüências poderiam reação prorrogar do ofendido. Contemporâneo ao perdão é a faculdade de fazer promessas para combater a imprevisibilidade: a promessa cria um espaço de certeza entre os homens por meio do acordo firmado. Enfim, as normas representam acordos que fundam a paz na comunidade dos agentes. Apesar disso, a era moderna, que primeiro transformou a ação em fabricação e depois aboliu a diferença entre o trabalho e o labor-consumo, perdeu por inteiro a fé nas potencialidades da ação, que, por sua vez, sempre fundou a comunidade existência da política dando-lhe um significado: o estar com os outros. Arendt menciona que o homo faber, com sua insistência na relação entre meios e fins e na prática de apropriação contínua de riqueza para a acumulação dessa mesma riqueza, deixou-se levar pelos valores criados pelo mercado, passando a duvidar da existência de valores absolutos e universais ou de valia intrínseca das coisas e objetos. Se não há mais padrões universais, resta ao fabricante isolado de seus 115 semelhantes voltar-se para si mesmo. Não temos mais a concepção de um mundo comum e perdemos o senso comum, que é uma forma de vermos o mundo, típica da Antigüidade. O mundo instrumentalizado do homo faber, já sem significado, perdeu lugar, em nossos tempos, para o mero existir, para a satisfação das necessidades corpóreas. Atualmente, o que se faz é procurar a felicidade do maior número de pessoas em detrimento da conservação do mundo comum. Neste século, lembra Arendt, com a perda da fé na vida eterna e em si mesmo, o homem reduziu a felicidade ao interesse único e exclusivo da manutenção de sua vida. A preocupação com a própria sobrevivência foi o que resultou a esse homem que perdeu a fé, o mundo comum, a capacidade de pensar e de agir. Nessa sociedade automatizada, se espera dos homens um comportamento uniforme, um comportamento de seres que laboram sociedade para dos consumidores, laborando: a satisfação homens daqueles todas as que de suas laboram que é consomem atividades necessidades. a sociedade para humanas A dos continuarem voltaram-se à categoria da manutenção da vida em abundância. O único valor é o consumo, pois somente ele pode satisfazer as nossas necessidades: o que não serve para consumir e ser consumido não tem significado nem valor. 116 2.3 – A alienação do mundo: o i-mundo A moderna sociedade, na qual localizamos a i-mundície, requer de seus participantes uma atitude automática, como se a vida individual houvesse se extinguido, restando como única escolha ativa cobrada do indivíduo, o consentimento deixar-se manipular, “deixando a vida deste em levá-lo”, como explicita a música de um cantor de MPB25. Percebemos, então, os sujeitos urbanos afastados de si mesmos e do mundo, tantas vezes não suportando as pressões e frustrações a que são submetidos. Alheios a si mesmos e distanciados do mundo urbano que não reconhecem como seu, mas como algo separado, estranho, esses sujeitos sociais viveram e vivem moderna o que podemos chamar e contemporânea de criada mal-estar pelo na metrópole capitalismo26, como pensaram Marx e Freud. Isolado ou absorvido na massa, esse sujeito urbano continua alienado, estranho a si mesmo e ao mundo que habita. Em meio às agitações, à velocidade das informações, o indivíduo parece, então, não encontrar tempo para pensar. Acreditamos, com isso, que essa “falta” de pensamento, observada presente 25 26 nos nas homens, é sociedades conseqüência urbanas da alienação, capitalistas e a tão elas O cantor em referência é Zeca Pagodinho, com a música “Deixa a vida me levar”, de 2005. Expressão emprestada de André Bueno em Formas da Crise. 117 inerente. Dessa maneira, é de fundamental importância ocuparmo-nos de tal expressão. Aqui, nos reservamos a expor algumas colocações de Feuerbach, Marx, Guy Debord e Hannah Arendt a respeito da alienação levando em e suas conta conseqüências a contribuição no de mundo cada contemporâneo, um para nossa compreensão do fenômeno. Ao iniciar o capítulo I de A sociedade do espetáculo, Debord cita um trecho27 do livro de Feuerbach, “A Essência do Cristianismo”. Feuerbach foi o filósofo que investigou sobre o modo como se formam as religiões, isto é, o modo como os seres humanos sentem necessidade de oferecer uma explicação para a origem e a finalidade do mundo. O filósofo designou o fato dos homens se alienarem com o nome de “alienação”. Ao buscar uma explicação para a origem e finalidade do mundo, os homens projetam fora de si um ser superior dotado das qualidades que julgam as melhores, mas as fazem existir ele nesse ser supremo como superlativas, isto é, é onisciente, onipotente, pode tudo, sabe tudo, está em todos os lugares. Os homens, pouco a pouco, se esquecem de que foram os criadores desse ser e passam a acreditar no inverso, ou seja, que esse ser foi quem os criou e os governa. Passam, então, a O trecho é este: “E sem dúvida o nosso tempo...prefere a imagem à coisa, a cópia ao original, a representação à realidade, a aparência ao ser...Ele considera que a ilusão é sagrada, e a verdade é profana. E mais: a seus olhos o sagrado aumenta à medida que a verdade decresce e a ilusão cresce, a tal ponto que, para ele, o cúmulo da ilusão fica sendo o cúmulo do sagrado.” 27 118 adorá-lo, prestar-lhe culto, temê-lo. Não se reconhecem nesse Outro que criaram. Em latim, “outro” significa alienus. A alienação é, dessa forma, o fenômeno pelo qual os homens criam ou produzem alguma coisa, dão independência a essa criatura como se ela existisse por si mesma e em si mesma, se deixam governar por ela como se ela tivesse poder em si e por si mesma, não se reconhecem na obra que criaram fazendo-a um ser–outro, separado dos homens, superior a eles e com poder sobre eles. Karl Marx, filósofo que, junto com Engels, escreveu o Manifesto Comunista, interessou-se pelo estudo de Feuerbach, investigando sobretudo a alienação social. Enfim, desejou compreender os motivos pelos quais os homens ignoram que são criadores da política, da sociedade, da cultura, ignoram serem agentes da história. Comentadora de Marx, Marilena Chauí enfatiza que este quis entender por que os homens acreditam que a sociedade não foi instituída por eles, mas por vontade e obra dos deuses, da Razão, da Natureza, ao invés de perceberem que são eles próprios que, em condições históricas determinadas, criam as instituições sociais como a família, relações de produção e de trabalho, relações de troca, linguagem oral, linguagem escrita, escola, religião, artes, ciências, filosofia – e as instituições políticas – leis, direitos, deveres, tribunais, Estado, exército, impostos, prisões. O filósofo denominou a 119 ação sociopolítica de práxis e o desconhecimento de sua seres não se origem e de suas causas de alienação. Ele se reconhecem pergunta como por sujeitos que os sociais, humanos políticos, históricos, como criadores e agentes da realidade na qual vivem. Por que, além de não se perceberem como sujeitos e agentes, esses homens se submetem às condições sociais políticas, culturais, como se elas tivessem vida própria e os governassem, em lugar de serem controladas e governadas por eles. Pergunta-se por que existe a alienação social. Para compreender o fenômeno da alienação, Marx estudou o modo como as sociedades são produzidas historicamente pela práxis dos homens. Ele observou que uma sociedade, historicamente, começa sempre por uma divisão, e esta organiza todas as relações sociais que serão instituídas a seguir. É a divisão social do trabalho. Os indivíduos, lutando pela sobrevivência, agrupamse para explorar os recursos naturais. As tarefas para a exploração são divididas. Há as tarefas dos homens adultos e das mulheres adultas, as tarefas dos homens jovens e das mulheres jovens, as das crianças e dos idosos. Com essa divisão, organizam a primeira instituição social, a família, na qual o homem adulto, qualificado como o pai, torna-se chefe e domina a mulher adulta, sua esposa e mãe de seus filhos, que são também dominados pelo pai. 120 A partir daí, essas famílias instituídas trabalham e trocam entre si os produtos do trabalho. E uma segunda instituição social surge, a troca, ou melhor, o comércio. Algumas famílias adquirem terras melhores que outras, gados e colheitas em maior quantidade que as outras. Ficam, por sua vez, mais ricas. As mais pobres, por não conseguirem produzir tanto vêem-se obrigadas a trabalhar para as mais ricas em troca de produtos para sobreviverem. Uma terceira instituição social surge: o trabalho servil, que vai desembocar na escravidão. Estas famílias mais poderosas se reúnem e decidem controlar o conjunto de famílias, distribuindo entre si os poderes e excluindo outras do poder. Surge, então, a quarta instituição social que é o poder político, de onde virá o Estado. Nesse ínterim, os homens já começaram a explicar a origem e a finalidade do universo, já elaboraram mitos e ritos. As grandes alguns de seus famílias, membros ricas, autoridade poderosas, exclusiva conferem para a narrar mitos, celebrar ritos. Dessa forma, outra instituição social é criada, a religião, dominada por sacerdotes saídos das famílias poderosas. Estes, por terem a autoridade para se relacionar com o sagrado, se tornam muito temidos, venerados pelo restante da sociedade. Constituem um novo poder social. Uma nova instituição também é formada: a guerra, que se inicia quando os vários grupos de famílias dirigentes 121 disputam entre si terras, animais e servos. Deste modo, os vencidos se tornam escravos dos vencedores, e o poder econômico, social, militar, religioso e político se concentra cada vez mais em poucas mãos. Marx, desta maneira, observou que a sociedade nasce pela estruturação de um conjunto de divisões: divisão sexual do trabalho, divisão social do trabalho, divisão social das trocas, da riqueza, do poder econômico, do poder militar, do poder religioso e do poder político. Essa divisão se efetiva pelo fato de que em todas as instituições sociais uma parte detém poder, riqueza, bens, armas, idéias etc, enquanto outra parte não possui nada disso, estando subjugada à outra, poderosa, instruída. A estrutura fundamental das sociedades como “divisão das classes sociais” é revelada porque o conjunto estruturado de divisões torna-se multiplica-se em cada muitas vez mais outras complexo, divisões, sob numeroso a forma e de numerosas instituições sociais. Marx determinou de condições materiais da vida social esse conjunto (simples e complexo) de instituições nascidas da divisão social. São materiais porque se referem quais os homens ao conjunto de práticas sociais pelos garantem sua sobrevivência por meio do trabalho e da troca dos produtos do trabalho e que constituem a economia. Marx ainda designou como modos de produção a variação das condições materiais de uma sociedade. De acordo com o 122 filósofo, a História é a mudança, passagem ou transformação de um modo de produção para outro. Essa mudança acontece de acordo com as condições econômicas, sociais e culturais já estabelecidas e não por vontade livre dos homens nem por acaso. Elas podem ser alteradas de maneira também determinada, graças à práxis humana diante de tais condições dadas. Marx afirmou que os homens fazem a História, mas a fazem em condições determinadas, eles a fazem mas não sabem. Dessa forma, podemos concluir que a alienação social é o desconhecimento das condições histórico-sociais concretas em que vivemos, produzidas pela ação humana também sob o peso de outras condições históricas anteriores e determinadas. Segundo Marilena Chauí28, há aí uma dupla alienação: por um lado os homens não se reconhecem como agentes e autores da vida social com suas instituições, mas por outro lado e ao mesmo tempo, julgam-se indivíduos plenamente livres, capazes de mudar suas vidas individuais como e quando quiserem, apesar das instituições sociais e das condições históricas. No primeiro caso, não percebem que instituem a sociedade; no segundo, ignoram que a sociedade instituída determina seus pensamentos e ações. Em vista de tudo o que foi exposto acima, percebemos que a obra de Debord constitui-se num diálogo intenso com o CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo, ed. Ática, Marilena Chauí mostra, baseando-se em Marx, que a alienação econômica, na qual os produtores não se reconhecem como produtores, nem se reconhecem nos objetos produzidos por seu trabalho, é um dos fenômenos existentes nas sociedades modernas ou capitalistas. Chauí distingue ainda outros dois tipos de alienação: a alienação social e a intelectual (resultante da separação social entre trabalho material e trabalho intelectual). 28 123 trabalho de ferrenha a Marx sobre essa a alienação sociedade social alienada. O e uma crítica desvelamento dessa sociedade se dá, em A Sociedade do Espetáculo, da mais dura forma. Debord, ao colocar que toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculo, nos prepara para mais adiante inserir qual o econômica na realidade considerada conceito vivem os de alienação indivíduos. parcialmente social e ele, a Segundo apresenta-se em sua própria unidade geral como um pseudomundo à parte, objeto de mera contemplação. Depreendemos aí a alienação do homem, que parece hipnotizado diante das imagens que ele mesmo constrói. De acordo com Debord, o espetáculo domina os homens quando a economia já os dominou totalmente. É o reflexo fiel da produção das coisas, e a objetivação infiel dos produtores. Verificamos que o teórico, ao fazer esta afirmação, analisa a fase atual da sociedade capitalista. A atualidade de seu livro, publicado em 1967, é muito significativa, haja vista o contexto em que nos encontramos hoje. Conforme assinala Debord, a primeira fase da dominação da economia sobre a vida social acarretou, no modo de definir toda realização humana, uma evidente degradação do ser para o ter. A fase atual, em que a vida social está totalmente tomada pelos resultados acumulados da economia, leva a um 124 deslizamento generalizado do ter para o parecer, do qual todo o “ter” efetivo deve extrair seu prestígio imediato e sua função última. O que se percebe na obra em questão é que há uma denúncia à transformação do mundo real em imagens. E quando isso acontece, as simples imagens tornam-se seres reais e motivações eficientes de um comportamento hipnótico. Marx já tinha analisado o modo de produção capitalista e suas causas e efeitos; Debord, por sua vez, fará um apanhado dessas causas para explicar o seu conceito de “sociedade do espetáculo”. Segundo o autor, a separação é o alfa e o ômega do espetáculo. A trabalho a e institucionalização formação de da classes divisão tinham social construído do uma primeira contemplação sagrada, a ordem mítica de que todo poder se cerca ordenamento interesses desde cósmico dos a e senhores, origem. ontológico explicou O sagrado que e justificou correspondia embelezou o o aos que a sociedade não podia fazer. Dessa forma, todo poder separado foi espetacular, mas a adesão de todos a tal imagem imóvel significava apenas o reconhecimento comum, na pobreza, de um prolongamento imaginário da atividade social real, ainda amplamente percebida como condição unitária. Debord adverte que já o espetáculo expressa o que a sociedade pode fazer, mas nessa expressão o permitido opõe-se de todo ao possível. Para ele, o espetáculo é a conservação 125 da inconsciência na mudança prática das condições de existência: Ele é seu próprio produto, e foi ele quem determinou as regras: é um pseudosagrado. Mostra o que ele é: o poder separado desenvolvendo-se em si mesmo, no crescimento da produtividade por meio do refinamento incessante da divisão do trabalho em gestos parcelares, dominados pelo movimento independente das máquinas; e trabalhando para um mercado cada vez mais ampliado. Toda comunidade e todo senso crítico dissolveram-se ao longo desse movimento, no qual as forças que conseguiram crescer ao se separar ainda não se encontraram. (p.25) Essa separação de que fala Debord diz respeito principalmente à separação do homem de si mesmo. Indivíduo isolado coletivamente, cuja realidade individual tornou-se social, diretamente dependente da força social, moldada por ela. O homem vai se separar de si mesmo a partir do momento em que ocorre uma separação generalizada deste e o que ele produz. Isto unitário acarreta sobre a na perda atividade de todo realizada, ponto toda de vista comunicação pessoal direta entre os produtores. A alienação do espectador em favor do objeto contemplado se expressa da seguinte maneira: quanto mais ele contempla menos vive; dominantes quanto da mais aceita necessidade, reconhecer-se menos compreende nas imagens sua própria existência e seu próprio desejo. O espetáculo na sociedade corresponde, para Guy Debord, a uma fabricação concreta da alienação. A expansão econômica 126 é, sobretudo, a expansão dessa produção industrial específica. A alienação, que estava em seu núcleo original, cresce com a economia que se move por si mesma. Dessa forma, devido a essa alienação, o homem separado de seu produto produz, cada vez mais e intensamente, todos os detalhes de seu mundo. Vê-se, então, paulatinamente mais separado de seu mundo. Essa crescente alienação do homem leva, conseqüentemente, Desse modo, ao ver-se à separação deste do que produz. separado de seu mundo, mais ele se separa da vida. Ao considerar o conjunto do movimento histórico que pôde edificar a ordem existente, o teórico vai mencionar que este mesmo conjunto começa a dissolvê-la. A separação generalizada do indivíduo é causada ainda pela espetacularização da mercadoria. Debord postula que o mundo presente e ausente que o espetáculo faz ver é o mundo da mercadoria dominando tudo o que é vivido. Segundo ele, o mundo da mercadoria é assim mostrado como ele é, pois seu movimento é idêntico ao afastamento dos homens entre si e em relação a tudo que produzem. Eis aí a separação, fator constitutivo do espetáculo, de que trata Debord. Percebemos, dessa forma, que o espetáculo é a realização técnica do exílio, para o além das potencialidades do homem; a cisão será, então, consumada em seu interior. Diante deste 127 fato, promessas de novos horizontes se tornam quase que inviáveis. Em Arendt, o fenômeno da alienação se dá primeiramente devido a uma separação diferentemente de do homem em relação ao mundo, Marx, que prioriza a alienação do sujeito em relação ao eu. A perspectiva marxista discursa sobre a possibilidade do homem não se reconhecer como agente político e nesse deslize capitalista. desfacelamento desumanizar-se, Arendt configura de elos seus servir o com terror o à macroestrutura humano espaço, com dado os no outros homens, com o Deus abandonado pela era moderna e pela quebra das instituições: o individualismo como regra e prática é a receita da indiferença alienante da condição humana. 2.3.1 - A alienação do mundo No capítulo VI, “A Vita Activa e A Era Moderna”, de A Condição Humana, a filósofa relembra que a descoberta da América, a reforma e a invenção do telescópio são marcos que determinam a modernidade. Contudo, afirma que o sinal da modernidade é a alienação em relação ao mundo e não a alienação em relação ao ego, como pensava Marx. De acordo com Arendt, a descoberta de um novo continente e a ameaça da tranqüilidade religiosa pela reforma demonstram acontecimentos grandiosos perante uma simples invenção de um telescópio. No entanto, esse instrumento passaria a ser o 128 primeiro aparato puramente cientifico que causaria um grande impacto para a modernidade: o de tornar viável a expansão dos limites territoriais para além de uma Terra povoada. A alienação é compreendida aqui como um afastamento, exprimindo a idéia de algo que está separado de outra coisa ou que é estranho a essa coisa, como por exemplo, o rompimento de mim na medida em que não posso compreender ou aceitar a mim mesmo, ou o não reconhecimento do pensamento em relação à realidade. A alienação é fundamental para compreender a Era Moderna. Essa afirmação se justifica em virtude da natureza secular da alienação, que não se confunde com a mundanidade, a qual diz respeito ao enfático interesse das coisas do mundo ou a uma atitude perda dos de antigos fé. Esta secularização cristãos, a qual é vincula-se demonstrada à nos escritos bíblicos, “dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”, tendo aqui uma separação entre Igreja e Estado, apresenta entre um Religião homem e Política. voltado para A história dentro de moderna si mesmo, inaugurando a alienação como forma de se relacionar com o mundo, ressalta Arendt. Na terceira Meditação de Descartes, parece haver confirmação da idéia arendtiana da alienação do homem que se volta para si e se desprende do exterior, dos sentidos: Fecharei agora os olhos, tamparei meus ouvidos, desviar-me-ei de todos os meus sentidos, apagarei mesmo de meu pensamento todas as imagens de coisas corporais, ou, ao menos, uma 129 vez que mal se pode fazê-lo, reputá-las-ei como vãs e como falsas. Segundo Arendt, o processo de alienação humana em relação ao mundo, historicamente, é aprimorado no período do declínio do mundo objetivamente agrários com para a feudal o e da evento criação formação da da do Estado expropriação mão de obra dos do Nação, grupos sistema capitalista. Esta nova estrutura econômica precisava de uma classe trabalhadora voltada exclusivamente para as necessidades da vida, conjugado com o fato da sua liberdade de apropriação. Ressalta que este processo desencadeou a apropriação, gerando uma estrutura de exploração fundamentada no acúmulo de riquezas para o processo vital da vida humana. Com isso criou-se uma classe de despojados e expropriados, afetados pelo ato de serem privados daquilo que lhe pertenciam, sendo-lhes tomada a propriedade ou a posse da terra pela simples conveniência de uma nova necessidade pública, desvinculada da terra ou desapropriada do auxilio da família. Com as mudanças da estrutura social, a proteção familiar foi substituída pela classe social, que passava a exercer esse papel protetor. Essas alterações ocorridas na modernidade Galileu são acentuadas colocou-se, então, com o como advento o do Telescópio. confirmador desta descoberta inovadora , a tese de que a Terra gira em torno do Sol, isto pelo fato da comprovação empírica dessa teoria. Com 130 isso, mostrando que seu instrumento visual serviu de complemento para a representação dos pensamentos tanto de Nicolau Copérnico, Giordano Bruno e Kepler. Hannah Arendt chama a atenção descoberta do telescópio colocou para o fato de que a em dúvida a noção de universo finito e geocêntrico. A concepção desse evento no mundo levou a conhecimento uma humano, efervescência que de introduziram descobertas na do busca do conhecimento da verdade a instrumentalização no processo de investigação científica. O temor e esperança, conseqüentemente, passaram a andar juntos. Isto porque os sentidos são passíveis de erros e para o homem falar da terra, ele precisava de um ponto fixo, seguro, que não mais se encontrava na Terra e nem no Sol. O ponto de Arquimedes enquanto referência externa ao próprio homem, se perde. Arendt percebe que a unificação do Universo pelo aparato tecnológico de instrumentos científicos, levou à criação de leis válidas e um ponto arquimediano além da Terra ou mesmo além do sol, sendo ele de caráter indeterminado e em movimento no Universo. É importante frisar que, segundo Arendt, não é o Renascimento e sim a alienação do mundo, do distanciamento do homem em relação ao mundo, que caracteriza a Era Moderna. Pensar o Universo do ponto de vista do pertencimento do homem a Terra, o fez criar leis cósmicas que imitassem a sua 131 atividade terrena. A alienação como separação ou mesmo como um processo de expropriação e mapeamento do mundo permitiu a ciência moderna fazer uso de uma linguagem simbólica não espacial do infinito. Inaugurando um novo olhar do homem diante dos fenômenos transformá-la passou naturais. a Destruir conferir a a capacidade Terra ou humana de “criar” o milagre da vida, termo antes empregado apenas à ação divina. E do ponto de vista arquimediano este fato pode ser entendido como uma força transmundana, universal e causadora da vida na Terra. Esse Universo passou a ser medido por instrumentos humanos. Segundo Arendt “não são idéias, mas eventos que mudam o mundo” e o autor do evento moderno, neste caso, foi Galileu e não Descartes. Esse, consciente de que as leis de Galileu eram válidas, repensou a sua filosofia e a condicionou na hipótese das teorias de Galileu. Descartes e os filósofos da época moderna, que levaram a descoberta de Galileu ao nível do pensamento, registraram o choque derivado deste novo ponto de vista. Por outro lado, Arendt menciona que a filosofia moderna foi fundada representou a pela reação dúvida cartesiana, filosófica à que descoberta na época, referida. O aumento veloz da força e do conhecimento humano é atribuído ao progresso das ciências naturais. Contudo, segundo a 132 autora, a esse progresso, também se atribui o comprovado aumento do desespero humano. O amor pelo mundo foi a primeira vítima da alienação do mundo na era moderna. A autora traça um paralelo entre a alienação do mundo que determinou o curso da evolução da sociedade moderna e a alienação da Terra que caracterizou a ciência moderna. A alienação da Terra libertou a matemática da geometria sujeitando esta ao tratamento algébrico que reduziu dados sensoriais e movimentos terrestres a símbolos matemáticos. Para a autora, o significado da revolução de Copérnico e da descoberta do ponto de vista arquimediano demorou a se revelar. A linha divisória entre a era moderna e a contemporânea está na distinção da ciência que vê a natureza de um ponto de vista universal ( dominando-a completamente) e da ciência (assumindo que o importa risco de processos cósmicos destruição). Nessa para natureza transposição se revela a capacidade de destruição do homem. Observamos que Arendt aponta para uma conexão entre a alienação do homem e o subjetivismo da filosofia moderna. A filosofia moderna começou com o omnibus dubitandum est de Descartes, ou seja, com a dúvida. Mas a dúvida inaugurada por este é inclusiva e visa um fim fundamental, e significou em princípio a reação a uma nova realidade, a invenção do telescópio. A autora parte da observação de que foi o telescópio e não a razão que alterou a concepção física do 133 mundo. A partir daí, o ser e a aparência estão separados definitivamente o que pressupõe a necessidade de se colocar tudo em dúvida. A principal característica da dúvida cartesiana é a universalidade, que percorre os sentidos, a razão e a fé. A dúvida cartesiana não duvidava simplesmente de que a compreensão humana fosse acessível a toda a verdade ou que a visão humana fosse capaz de tudo ver; para ela, a inteligibilidade à compreensão humana não constitui demonstração de verdade, tal como a visibilidade não constitui prova de realidade. (p. 288). A filosofia moderna volta-se contra a tradição. A autora aponta dois problemas na filosofia cartesiana. A primeira corresponde à dúvida em relação à realidade e ao mundo (não se pode confiar os sentidos, o senso comum, a razão); a segundo se relaciona com a condição humana. Para ela, esses problemas da filosofia cartesiana estão presentes em toda a modernidade. Arendt ressalta que a introspecção para Descartes deve produzir a certeza. Nesse processo o homem descobre que traz dentro de si mesmo a certeza da própria existência, o “Penso, logo existo”. Nesse sentido, a solução cartesiana é a transferência do ponto arquimediano para o próprio homem. A transferência do ponto de vista arquimediano para a mente do homem possibilitou a “libertação” deste da condição humana de ser um habitante da terra. Nas ciências naturais, a dúvida cartesiana foi amenizada pela transferência do ponto 134 arquimediano para dentro do homem; por outro lado, a “matematificação” da física promoveu a renúncia dos sentidos pelo homem na aquisição do conhecimento o que fez com que se trabalhasse com experimentações configurações cientificas matemáticas. são Dessa realidades forma criadas as pelo homem. A dúvida de Descartes atingiu o cerne da ciência física uma vez que não só a natureza e o Ser não se revelam aos sentidos, mas também não são imaginados pelo raciocínio puro. Neste momento, a autora aponta que a mais grave conseqüência espiritual das descobertas da era moderna, e, ao mesmo tempo, a única que não poderia ser evitada, foi a inversão da ordem hierárquica entre a vita contemplativa e a vita activa. Para ela, a experiência fundamental que existe por trás da inversão de posições entre a contemplação e a ação foi precisamente que a sede humana de conhecimento só pôde ser atenuada depois que o homem depositou sua fé no engenho das próprias mãos. Afirma, neste aspecto, que a experiência fundamental dessa inversão foi o resgate da fé na ação humana. Por outro lado, desde o divórcio da aparência e do ser, a verdade científica e a verdade filosófica separaram-se, aquela não mais precisa ser eterna tampouco compreensível ou adequada ao raciocínio humano. A filósofa lembra que a mudança que ocorreu no século XVII foi mais radical do que se pode perceber da simples 135 inversão da ordem tradicional entre a contemplação e a ação. Essa inversão tinha a ver apenas com a relação entre o pensar e o fazer, ao passo que a contemplação, no sentido original de contemplar a verdade, foi inteiramente abolida. Até porque pensamento e ação não são a mesma coisa. Concebia-se, tradicionalmente, o pensamento como a maneira mais direta de se chegar à contemplação da verdade. Desde Platão, e talvez desde Sócrates, o pensamento era compreendido como um diálogo interior no qual o homem fala consigo mesmo (eme emauto). A inatividade interior é completamente diferente da passividade, a completa quietude na qual a verdade finalmente se revela ao homem. Arendt comenta que o escolasticismo medieval, que via a filosofia como serva da teologia, teria parecido interessante a Platão e Aristóteles; ambos, em contextos diferentes, viam nesse processo dialógico de pensar um modo de preparar a alma e levar a mente à contemplação da verdade situada além do pensamento e da fala. Uma verdade que era arrheton, impossível de ser comunicada através de palavras, como citou Platão, ou que se localizava além do discurso, como afirmou Aristóteles29. Dessa forma, a inversão que ocorreu na era moderna não consistiu em promover a ação à posição outrora ocupada pela contemplação como o mais alto estado de que os seres humanos são capazes. A inversão tinha Hannah Arendt chama a atenção para o fato de que a tradução inglesa corrente de Ética a Nicômaco distorce o significado porque interpreta logos como “razão” ou “argumento.” 29 136 a ver somente com a atividade de pensar que, daí por diante, passou a ser a serva da ação. De acordo com Arendt, o fato de termos perdido de vista o radicalismo desta inversão é devido a uma outra, com a qual se identifica freqüentemente e que desde Platão domina a história do pensamento ocidental. Assim coloca: Quem quer que leia a alegoria da Caverna na República de Platão à luz da história grega logo percebe que a periagoge, a ‘viravolta’ que Platão exige do filósofo, constituía na verdade uma inversão da ordem do mundo homérico. Não é a vida após a morte, como no Hades homérico, mas a vida comum na terra que é situada numa ‘caverna’, num submundo; a alma não é a sombra do corpo, mas o corpo é que é a sombra da alma; e o movimento fantasmal e sem sentido atribuído por Homero à existência inerte da alma no Hades após a morte é agora comparada às ações sem sentido de homens que não deixam a caverna da existência humana para contemplar as idéias eternas visíveis no céu.”p.305 Ao mencionar tal frase, Arendt tem por interesse apenas o fato de que a tradição platônica do pensamento filosófico e político começou original com determinou pensamento nas uma em inversão, grande quais a e que parte as filosofia esta inversão correntes ocidental de caía automaticamente sempre que não era animada por um forte e original impulso filosófico. Desde então a filosofia vem sendo dominada por uma troca de posições infinda, tais como idealismo e materialismo, transcendentalismo e imanentismo, realismo e nominalismo, hedonismo e ascetismo. A inversibilidade de todos esses sistemas é o que importa para 137 a autora, o fato de que podem ser “virados de cabeça para baixo”, ou de “pés para cima” a qualquer momento sem precisar de eventos históricos ou alterações dos elementos estruturais envolvidos. Os conceitos permanecem os mesmos, não importa o lugar que ocupem nas várias ordens sistemáticas. Para Arendt, é essa mesma inversão, a mesma tradição, o mesmo jogo intelectual com um par de antíteses que comanda, até certo ponto, as famosas inversões modernas das hierarquias espirituais, como a de Marx, que virou de cabeça para baixo a dialética de Hegel, ou a de Nietzsche, que reavaliou o sensual e o natural em comparação com o supra-sensual e o sobrenatural. A inversão tratada por Arendt, que foi uma conseqüência das descobertas completamente de Galileu, diferente. Para é, portanto, ela, a de convicção natureza de que a verdade objetiva não é dada ao homem e que ele só pode conhecer aquilo que ele mesmo faz não resulta do ceticismo, mas de uma descoberta demonstrável e, portanto, não leva à resignação, mas a uma atividade redobrada ou ao desespero. Cabe lembrar que a perda do mundo na filosofia moderna, cuja introspecção descobriu a consciência como sentido interior com o qual o indivíduo sente seus sentidos, e verificou que ela era antiga a única suspeita segurança dos da filósofos realidade, difere em ao relação muito mundo e da aos outros seres que com eles compartilhavam o mundo; o filósofo, agora, já não volta as costas a um mundo de enganosa 138 perecibilidade para encarar outro de verdade eterna, mas volta as costas a ambos e se recolhe dentro de si mesmo. E o que descobre na região do ser interior é o constante movimento das percepções sensoriais e da atividade mental e não uma imagem cuja permanência conclui dizendo pode ser observada e contemplada. A autora que a influência e a importância da filosofia diminuiram na modernidade; depois que Descartes baseou sua filosofia nas descobertas de Galileu, a filosofia parece condenada a seguir sempre um passo atrás dos cientistas e suas descobertas. Os filósofos tornaram-se epistemologistas, preocupados com uma teoria global da ciência que os cientistas não necessitavam ou, na visão hegeliana, “porta-vozes através dos quais o estado de espírito geral da época era expresso com clareza conceitual.” O fazer e o fabricar - prerrogativas do homo faber foram as primeiras atividades da vita activa a serem promovidos à posição antes ocupada pela contemplação. Desde a criação do relacionado telescópio, com o o progresso desenvolvimento da científico manufatura de está novos utensílios e instrumentos. A antiga posição humilde que o homo faber ocupava na hierarquia das capacidades humanas foi invertida. Por outro lado, qualidades próprias do trabalho, como a produtividade e a criatividade, tornaram-se ideais na era moderna. Outro elemento que contribui para o deslocamento de hierarquia é a busca da compreensão do processo e, 139 conseqüentemente, a mudança no objeto da ciência que passa da natureza para a história. A vitória do homo faber não podia permanecer restrita ao emprego de novos métodos nas ciências naturais – a experimentação e a matematização da pesquisa. A alienação do mundo atingiu o trabalho, a reificação e a fabricação de coisas. O rompimento com a contemplação foi consumado com a introdução do conceito de processo na atividade da fabricação. A fabricação ocupa a posição antes ocupada pela ação política. Arendt lembra aqui que a procura em esclarecer o processo desacreditou a contemplação como meio de se alcançar a verdade. A retirada da contemplação das atividades humanas significativas promoveu o homo faber a fazedor e fabricante e não a homem de ação. Na modernidade, a motivação humana reduziu-se ao princípio da utilidade. O conceito de processo alterou a mentalidade do homo faber, adquirindo nova habilidade na fabricação de instrumentos e perdendo referências em relação à atividade de fabricação. Para a autora, a fabricação era a atividade da vita activa que mais poderia perder com a eliminação da contemplação. A fabricação percebe os processos como meios secundários. O fracasso do homo faber revela-se na rapidez em que o princípio da utilidade é substituído pelo princípio da felicidade. Arendt cita: 140 Esta radical perda de valores dentro do limitado sistema de referência do homo faber ocorre quase automaticamente assim que ele se define, não como o fabricante de objetos e construtor do artifício humano que também inventa instrumentos, mas se considera primordialmente como fazedor de instrumentos e ‘especialmente (um fazedor) de instrumentos para fazer instrumentos’ que só incidentalmente também produz coisas. Se é possível aplicar neste contexto o princípio da utilidade, deve referir-se basicamente não a objetos de uso, e não ao uso, mas ao processo de produção. Agora, tudo o que ajuda a produtividade e alivia a dor e o esforço torna-se útil. Em outras palavras, o critério final de avaliação não é de forma alguma a utilidade e o uso, mas a ‘felicidade’, isto é, a quantidade de dor e prazer experimentada na produção ou no consumo de coisas. (p. 322) Os reflexos da derrota do homo faber são sentidos nas transformações da física em astrofísica e das ciências naturais em ciências universais. Aqui, Arendt esclarece o motivo que levou o Labor a alcançar a mais alta posição entre as atividades da capacidade humana, para tanto aponta que a inversão de hierarquia ocorreu num contexto de sociedade cristã em que a prioridade da vida é uma verdade axiomática. Dessa forma a inversão de posição da ação e da contemplação coincide com a inversão entre a vida e o mundo que, segundo a autora, é o ponto de partida do desenvolvimento moderno. O processo de secularização, a dúvida cartesiana e a perda da vida individual mortal são fatores que influenciaram a vitória do animal laboran. Na modernidade, o processo vital assume a posição que ocuparam o corpo político e a vida individual respectivamente na antiguidade e na Idade Média. Na verdade, segundo a autora, no surgimento da sociedade, ocorre uma afirmação da vida da espécie. A ação desaparece num contexto de humanidade socializada, restando-se a força 141 natural – o processo vital. Nessa realidade o labor mostra- se a única atividade necessária para garantir a continuidade da vida. Em contrapartida, na atualidade, o Labor parece designar de forma ambiciosa o que estamos fazendo no mundo, uma vez que, neste sociedade último de estágio detentores de da sociedade emprego”, de o operários, funcionamento “a é automático. A autora teme que a atividade humana termine numa passividade estéril, afirmando que “a ação passou a ser uma atividade limitada a um pequeno grupo de privilegiados; e os poucos que ainda sabem o que significa agir talvez sejam ainda menos numerosos.” Ao mesmo tempo, sinaliza que a atividade de pensar ainda é possível, e ocorre onde quer que os homens vivam em liberdade política. 142 CAPÍTULO 3 – A NOVA POÉTICA OU O CONVITE À REFLEXÃO Vou lançar a teoria do poeta sórdido. Poeta sórdido: Aquele em cuja poesia há a marca suja da vida. Vai um sujeito, Sai um sujeito de casa com a roupa de brim branco muito [bem engomada, e na primeira esquina [passa um caminhão, salpica-lhe o paletó [ou a calça de uma nódoa de lama: É a vida. O poema deve ser como a nódoa do brim: Fazer o leitor satisfeito de si desespero. dar o Sei que a poesia é também orvalho. Mas este fica para as menininhas, as estrelas alfas, as [virgens cem por cento e as amadas que [envelheceram sem maldade. Nova Poética. Belo Belo A “Nova Poética” propõe uma diferente e revolucionária construção do real, se entendemos “poiesis”, “poética” por obra, mundo, criação, fabricação, realidade, verdade. Os versos “sujos” que se nos mostram têm por único afã sujar, manchar, deixar a nódoa do diferente no límpido terno branco da indiferença, da mesmice e mesmidade da vida circunscrita ao “i-mundo”. O que a teoria do poema vem trazer é a inauguração de um novo mundo, dada não pela i-mundície, mas pela sujeira; e a sujeira transgride, pois se interpõe como uma cor que se confunde ao que até então era intacto, limpo, branco, de brim. A sujeira é a proposição da transformação, e a maneira poética de contemplar qualquer possibilidade de 143 práxis revolucionaria. Ao lançar a teoria, a transpõe imediatamente para o episódio prosaico de “sair de casa”, deparar-se com o trivial, “o caminhão da esquina” e devotarse à fatídica frase que encerra o sentido da “nova teoria poética”: “É a vida.” Assim, o verso sentencial e grave, muito presente na boca dos que querem consolar os que não se contentam, ilumina-se no interior do texto, impõe-se como lei: a vida é a vida, e a vida é sujar-se, chocar-se com as surpresas do dia-a-dia, propor-se a ações de positividade ante um mundo que se dissolve em degradação e impureza. A vida é sujar-se com o desconforto, para, paradoxalmente, desertar o i-mundo e re-fazer o mundo. Mesmo a vida sendo “também orvalho”, mesmo a vida sendo também poesia “para menininhas”. Ante o desorganizado espectro do mundo hoje, é preciso sujeira. E não é por acaso que este poema faz parte da coletânea de Belo Belo. A concepção que o eu lírico tem do fazer poético deve ser algo que provoque o choque, o estranhamento. É justamente essa sensação que experimentamos ao ler as poesias de Bandeira, o que se nos apresenta como um apelo consciente ao exercício do pensamento. Ao despertar-nos para o fenômeno da i-mundície, a obra bandeiriana abre possibilidades para, junto com ele, pensarmos o mundo. Conforme vimos, os homens querem sempre fugir à condição humana e não medem as conseqüências, por não terem, ou melhor 144 não exercerem, o pensamento crítico. A questão é que todos os homens possuem essa capacidade, no entanto, não se lembram mais disso, conforme disse certa vez Hannah Arendt em A vida do Espírito. A alienação tomou conta de todos. Como demonstramos, o fenômeno da alienação geral pode estar relacionado com uma ausência de pensamento dos indivíduos. Os homens se esqueceram que pensam. A mudança no modo de produção das sociedades ocidentais foi acompanhada pelas mudanças nas maneiras do homem ver e sentir o mundo. De acordo com Hannah Arendt, em A vida do espírito, a idéia de progresso que acompanhou essas transformações nasceu como produto de enormes avanços do conhecimento científico, uma verdadeira avalanche de descobertas, ao longo dos séculos XVI e XVII. ... é bem provável que, depois de invadir as ciências, a inexorabilidade inerente ao próprio pensamento – cuja necessidade nunca pode ser mitigada – tenha levado os cientistas a descobertas renovadas, cada qual delas, por sua vez, dando lugar a uma nova teoria, de tal forma que os que foram pegos nesse movimento ficaram sujeitos à ilusão de um processo sem fim – o processo do progresso. Não devemos nos esquecer aqui que a posterior noção de um aperfeiçoamento infinito da espécie humana, tão destacado no Iluminismo oitocentista, estava ausente nos séc. XVI e XVII, séculos mais pessimistas nas avaliações sobre a natureza humana. Parece-me entretanto óbvia e de considerável importância uma das conseqüências desse desenvolvimento. A própria noção de verdade – que de alguma forma sobreviveu a tantos momentos cruciais de nossa história intelectual – sofreu uma mudança decisiva: ela foi transformada, ou melhor, partida em uma enorme corrente de veracidades, cada uma das quais, a seu tempo, reivindicando validade geral, ainda que a própria continuidade da pesquisa implicasse algo meramente provisório. Esse é um estranho estado de coisas. 145 Pode até sugerir que, se uma dada ciência acidentalmente atingisse seu objetivo, isso absolutamente não interromperia o trabalho dos pesquisadores naquele campo, eles seriam lançados para além de seu objetivo pelo simples momentum da ilusão do progresso infinito, uma espécie de semblância derivada de sua própria atividade. (págs 43-44) É interessante notar a exposição da filósofa sobre uma possível causa da transformação da verdade em veracidade: A transformação da verdade em mera veracidade deriva primeiramente do fato de que o cientista permanece ligado ao senso comum através do qual nos orientamos em um mundo de aparências. O pensamento retira-se – radicalmente e por sua própria conta – deste mundo e de sua natureza evidencial, ao passo que a ciência se beneficia de uma possível retirada em função de resultados específicos. (pág.44) O que percebemos é que Arendt estabelece uma distinção entre pensamento e ciência, conhecimento. O conhecimento, para ela, sempre busca a verdade, mesmo se essa verdade, como nas ciências, nunca for permanente, mas uma veracidade provisória que esperamos trocar por outras mais acuradas à medida que o conhecimento progride. Esperar que a verdade derive do pensamento significa confundir a necessidade de pensar com o impulso de conhecer. O pensamento pode e deve ser empregado na busca de conhecimento; mas no exercício desta função, ele nunca é ele mesmo; ele é apenas servo de um empreendimento inteiramente diverso. Pensamos que essa sede desenfreada de conhecimento, com conseqüências em todas as esferas da vida do homem, talvez tenha feito adormecer neste o hábito de pensar por si mesmo, 146 acarretando uma espécie de ausência generalizada de pensamento. Mas o que é o pensar? A que idéia de pensamento nos referimos? Hannah Arendt, em A vida do espírito30, apresenta o que, segundo ela, são as três atividades básicas do espírito: o pensar, o querer e o julgar (retomando, assim, as idéias de Imannuel Kant). Para ela, essas atividades se relacionam, apesar de não se ocuparem das mesmas questões. A faculdade de pensar não é igual a de escolher, nem a de julgar. O pensamento, para Hannah Arendt, lida com invisíveis, com representações de coisas que estão ausentes. O juízo se ocupa com particulares e coisas ao alcance das mãos. Nesse caso, como essas faculdades se interrelacionam, então o juízo, o derivado do efeito liberador do pensamento, realiza o próprio pensamento, tornando-o manifesto no mundo das aparências, onde nunca estamos sós e estamos sempre ocupados para poder pensar. Segundo Arendt, a manifestação do vento do pensamento não é o conhecimento, é a habilidade de distinguir o certo do errado, o belo do feio. E isso, nos raros momentos em que as É importante lembrar aqui, em nota, que, ao tratar o pensar desvinculado de seu aspecto político, Hannah Arendt não nega que nossos modos de pensar estejam seriamente envolvidos por essa crise do mundo moderno (o que envolve aspectos políticos, econômicos, etc). Ela insiste no simples fato de que, “por mais seriamente que nossos modos de pensar estejam envolvidos nessa crise, nossa habilidade para pensar não está em questão”. De acordo com a autora, somos o que os homens sempre foram – seres pensantes. Com isto ela que dizer que os homens têm uma inclinação, talvez uma necessidade de pensar para além dos limites do conhecimento, de fazer dessa habilidade algo mais do que um instrumento para conhecer e agir. 30 147 cartas estão postas sobre a mesa, pode, sem dúvida, prevenir catástrofes, ao menos para o eu. Vale lembrar que a preocupação de Arendt com as atividades espirituais tem origem em duas fontes bastante distintas e o impulso imediato derivou do fato dela ter assistido ao julgamento de Eichmann31 em Jerusalém. Coloca que o homem em julgamento era um homem bastante comum, banal e não demoníaco provenientes de ou sua monstruoso. falta de As suas pensamento, atitudes eram irreflexão, não havia nele nenhum sinal de firmes convicções ideológicas ou de motivações especificamente más. Menciona, com isto a expressão banalidade do mal, apesar de não sustentar nenhuma tese. No entanto, sabe que esta expressão se opõe à tradição de pensamento filosófico/literário/teológico, que vêem o mal como algo demoníaco. Tudo que confrontado procedimentos com de era pronunciado situações rotina, para parecia por as Eichmann, quais indefeso e não seus quando havia clichês produziam uma espécie de comédia macabra. Hannah Arendt sentiu-se interessada em refletir sobre essa “ausência de pensamento” (observada em Eichmann), a qual é uma experiência muito comum em nossa vida cotidiana, em que dificilmente temos tempo e muito menos desejo de parar e pensar. Eichmann, como sabemos, foi o responsável pela logística dos campos de concentração, na época do nazismo. 31 148 Este interesse pela “ausência de pensamento” a levou a questionar algumas coisas: “Será possível que o problema do mal e do bem, o problema da nossa faculdade errado, esteja para distinguir conectado com o que nossa é certo faculdade do de que é pensar?” (pág. 6) Logo após responde que não, se pensarmos no sentido de que o pensamento pudesse ser capaz de produzir o bem como resultado, como se a “virtude” pudesse ser ensinada (diferentemente de hábitos e costumes, que podem). A filósofa tinha se deparado com a ausência de pensamento que não provinha nem do esquecimento de boas maneiras e bons hábitos, nem da insanidade mental ou moral. Para ela, o que se impunha era a seguinte questão: “a atividade do pensamento como tal está dentre as condições que levam os homens a se absterem de fazer o mal, ou será mesmo que ela realmente os condiciona contra ele? Será que esta hipótese se reforça por tudo que sabemos sobre a consciência, ou seja, que uma “boa consciência” em geral só é apreciada por pessoas realmente más ao passo que somente “pessoas boas”são capazes de ter uma má consciência?” Utilizando a linguagem kantiana, Arendt revela que tendo sido aturdida conceito, para por ela um fato era que lhe impossível pôs deixar na de posse de levantar um a questão (quaestio júris) e se perguntar com que direito ela o possuía e utilizava. 149 Arendt coloca que, entretanto, certas dúvidas se renovaram dentro dela, dúvidas advindas das questões morais que têm origem na experiência real (tanto as respostas tradicionais que a “ética” ofereceu para o problema do mal, quanto as respostas mais amplas que a filosofia tem para a questão do que é o pensar). Essas dúvidas lhe perseguiam desde o término de seu último livro “A condição humana”, no qual a autora diz analisar o problema da ação. O que a perturbava, neste caso, foi que o próprio termo que tinha adotado em suas reflexões sobre este assunto, a saber, a vita activa, havia sido cunhado por homens dedicados a um modo de vida contemplativo e que olhavam deste ponto de vista para todos os modos de vida. Visto desta ótica, o modo ativo de vida é “laborioso”, o contemplativo é pura quietude; o modo de vida ativo dá-se em público e é devotado às necessidades do próximo, enquanto o contemplativo dá-se no deserto e é devotado à visão de Deus. Em “A condição humana”, Arendt traça o percurso da atividade do pensamento no sentido de apresentar que a idéia pela qual a contemplação constitui o mais alto estado do espírito é tão antiga quanto a filosofia ocidental. Desde Platão a Aristóteles, o pensamento visa à contemplação e nela termina, e a própria contemplação não é uma atividade, mas uma passividade. 150 Nas tradições da Era Cristã, o pensamento, quando a filosofia tornou-se serva da teologia, passou a ser meditação e a meditação passou novamente a terminar na contemplação (e a contemplação aqui não consistia na atividade de esforço do conhecimento da verdade como em Platão e Aristóteles, mas na antecipação de um estado futuro). Já na era moderna, o pensamento tornou-se servo da ciência, principalmente. E Arendt acrescenta que este, mesmo tendo ganho muito em atividade, dentro do princípio de que o homem só pode conhecer aquilo que ele mesmo produz, foi a matemática que passou a ser a ciência das ciências. Para Hannah Arendt, o que a interessava no estudo sobre a Vita Activa era que a noção de completa quietude da vita contemplativa era totalmente avassaladora que, em comparação com ela, todas as diferenças entre as diversas atividades da vita activa desapareceriam. Diante dessa “quietude”, na qual já não era importante a diferença entre laborar e cultivar o solo, o próprio Marx, em cuja obra e em cujo pensamento a questão da ação teve um papel tão crucial, utiliza a expressão “práxis” simplesmente no sentido daquilo que o homem faz em oposição àquilo que o homem pensa. No entanto, Arendt estava ciente de que era possível olhar para diferente. seguintes esse assunto Finaliza, questões: de então, “o que um “A ponto de condição estamos vista totalmente humana” fazendo com quando as nada 151 fazemos a não ser pensar? Onde estamos quando, mesmo rodeados por outros homens, não estamos com ninguém, mas apenas em nossa própria companhia?” É necessário ressaltar que a mesma sabe das dificuldades que irá enfrentar ao levantar tais questões. Isto porque estas questões parecem pertencer ao que se costuma chamar “filosofia” ou “metafisica”, que são dois campos de investigação que, todos sabem, caíram em descrédito. E esse descrédito não preocuparia tanto Arendt se se devesse apenas aos ataques do positivismo e do neo positivismo (segundo Carnap, a metafísica deveria ser vista como poesia, mas essa comparação é feita no sentido dele pretender subestimar a poesia). Heiddeger e o próprio Aristóteles já estabeleciam essa comparação. As dificuldades de Arendt com as questões metafísicas são produzidas menos por aqueles para quem essas são questões “sem sentido” do que pela própria parte dos que estão envolvidos com a mesma (metafísica). Um exemplo disto é que assim como a crise na teologia atingiu seu clímax quando os teólogos começaram a discutir a proposição “Deus está morto”, também a crise na filosofia e na metafísica veio à luz quando os próprios filósofos começaram a declarar o fim da filosofia e da metafísica. Arendt, antes de expor sobre algumas vantagens da atual situação (a do descrédito da filosofia/metafísica), explica o que realmente quer dizer quando observa que a teologia, a filosofia e a metafísica chegaram a um fim. Segundo ela, não 152 é Deus que certamente está morto (pois nosso conhecimento é muito pequeno quanto o que temos sobre a própria existência de Deus); o que parece ter morrido foi a maneira pela qual Deus foi pensado a há milhares de anos, ou seja, o pensamento tradicional sobre Deus. E isto também vale para o fim da filosofia/metafísica. De acordo com Arendt, não é que as velhas questões tão antigas quanto o próprio aparecimento do homem sobre a terra tenham se tornado “sem sentido”, mas a maneira pela qual foram feitas e respondidas perdeu a razoabilidade. Com a exemplificação acima, a autora afirma que o que chegou ao fim foi a distinção básica entre o sensorial e o supra-sensorial, juntamente com a antiga noção de o que quer que não seja dado aos sentidos (Deus, ou o Ser, ou as Idéias) é mais real, mais verdadeiro, mais significativo do que aquilo que aparece, que está não apenas além da percepção sensorial, mas acima do mundo dos sentidos. Para Arendt, o que está morto não é apenas a localização de tais verdades eternas, mas a própria distinção. Essa morte vai implicar no seguinte: uma vez descartado o domínio do supra-sensível, fica aniquilado o seu oposto, como bem observou Nietzsche numa passagem de “O crepúsculo dos ídolos”. Arendt coloca que, segundo o filósofo (este utilizava a expressão “mundo verdadeiro” em vez de Deus), nós abolimos o mundo verdadeiro, mas junto com ele abolimos também o mundo das aparências. 153 Arendt faz aqui uma observação interessante. A primeira é que menciona que, uma vez que o equilíbrio sempre precário entre os dois mundo está perdido, não importa se o “verdadeiro mundo” aboliu o “mundo aparente”, ou se foi o seu contrário; rompe-se todo o quadro de referências em que nosso pensamento estava acostumado a se orientar. Nestes termos, nada mais parece fazer muito sentido. Arendt alerta, ainda, para o fato de que os sistemas de doutrinas que nos foram transmitidas pelos grandes pensadores, mesmo que falácias metafísicas, não podem ser simplesmente descartadas como puro absurdo. As falácias metafísicas, contêm, assim, as únicas pistas que temos para descobrir o que significa o pensamento para aqueles que nele se engajam. Há, pois, algumas vantagens nessa situação. A autora lembra que a vantagem seria ainda maior se não fosse ela acompanhada de modo quase inevitável por uma crescente dificuldade em nos movermos em qualquer nível no domínio do invisível. Até porque, embora nunca tenha havido muito consenso sobre o tema da metafísica, pelo menos um ponto sempre foi tomado como certo – o de que esta disciplina lidava com objetos que não eram dados à percepção sensorial, e que sua compreensão transcendia o pensamento do senso comum, que deriva da experiência sensível e que pode ser validado por meios e testes empíricos. É importante Parmênides até o incluir fim da aqui que filosofia Arendt todos frisa os que de filósofos 154 concordaram em que para lidar com esses assuntos, o homem precisa separar seu espírito dos seus sentidos, isolando-o tanto do mundo tal como é dado por esses sentidos quanto das sensações – ou paixões – despertadas por objetos sensíveis. Desse modo, o filósofo retira-se do mundo das aparências e começa a fazer parte do mundo dos poucos. Para Arendt, essa distinção entre os homens comuns e os “pensadores profissionais” perdeu qualquer cabimento. E é aí que vai residir a segunda vantagem da atual situação dos que se engajam na atividade do pensamento. Segundo a filósofa, se a habilidade de distinguir o certo do errado (como ela sugerira anteriormente) estiver relacionada com a habilidade de pensar, então se deveria “exigir” de toda pessoa sã o exercício ignorante, do pensamento, inteligente ou não importando estúpida essa quão erudita pessoa ou seja. (O próprio Kant – sozinho, nesse ponto, entre os filósofos – aborrecia-se com a opinião corrente de que a filosofia fosse apenas para uns poucos). Arendt faz uma última ressalva que considera crucial em nossa investigação a respeito do significado do pensamento. Coloca que Kant traçou uma distinção entre Vernunft (razão) e Verstand (intelecto). Essa distinção só foi possível após o filósofo ter descoberto o “escândalo” da razão, ou seja, o fato de que nosso espírito não é capaz de um conhecimento certo e verificável em relação a assuntos e questões sobre os quais, no entanto, ele mesmo não se pode impedir de pensar. 155 Mas independentemente do interesse existencial que os homens tomaram por essas questões (embora Kant acreditasse que todos se preocupavam com a vida após a morte), o filósofo mostrava-se muitíssimo consciente de que a “necessidade urgente” da razão não só é diferente, mas é mais do que a mera busca e o desejo de conhecimento. Nesse ponto, Arendt coloca que a distinção entre as duas faculdades, razão e intelecto, coincide com a distinção entre duas atividades espirituais completamente diferentes: pensar e conhecer, e dois interesses bem distintos: o significado (1º caso) e a cognição (2º caso). Embora houvesse insistido nessa distinção, Kant estava ainda tão fortemente tolhido pelo enorme peso da tradição metafísica que não pôde afastar-se de seu tema tradicional, ou seja, daqueles tópicos que se podiam provar incognoscíveis; e embora justificasse a necessidade da razão pensar além dos limites do que pode ser conhecido, permaneceu inconsciente com relação ao fato de que a necessidade humana de refletir acompanha quase tudo o que acontece ao homem, tanto as coisas que conhece como as que nunca poderá conhecer. Por tê-la justificado unicamente em termos dessas questões últimas, Kant não se deu conta inteiramente da medida em que havia liberado a razão, a habilidade de pensar. Afirmava, defensivamente, que havia achado necessário negar o conhecimento...para abrir espaço para a fé. Mas não abriu espaço para a fé, e sim para o pensamento, assim como não negou o conhecimento, mas separou conhecimento de pensamento.( pág.13) A partir do que Kant escreveu sobre a eliminação dos obstáculos que a razão cria para si própria, a autora afirma que este obstáculo origina-se no intelecto e nos critérios, inteiramente justificados, que o próprio intelecto estabeleceu para seus propósitos, ou seja, para saciar nossa necessidade de conhecimento e cognição. 156 Conforme Hannah Arendt, se Kant e outros pensadores não prestaram muita atenção ao pensamento como uma atividade ( e às experiências do ego pensante) foi porque, apesar de todas as distinções, eles estavam exigindo o tipo de resultado e aplicando o tipo de critério para a certeza e a evidência, que são os resultados e os critérios de cognição. A necessidade da razão não é inspirada pela busca da verdade, mas pela busca do significado. Isto, porque o pensamento e a razão têm justificativa para transcender os limites da cognição e do intelecto. Enfim, Arendt afirma que as descobertas de Kant, cujo efeito liberador foi extraordinário sobre a filosofia alemã, abriram espaço para o pensamento especulativo. No entanto, esse pensamento voltou a tornar-se o campo de um novo tipo de especialistas presos à noção de que o “assunto próprio” da filosofia é o “conhecimento real do que verdadeiramente é”. Estes especialistas, liberados por Kant da velha escola dogmática e de seus exercícios estéreis, construíram não apenas novos sistemas, mas uma nova “ciência”. Um exemplo, para Arendt, é o do filósofo Hegel, que escreveu Fenomenologia do Espírito, que se propunha como “ciência da experiência da consciência”. Estes episódios empalideceram precipitadamente a distinção kantiana entre o interesse da razão pelo incognoscível e o interesse do intelecto pelo conhecimento, até porque esses novos especialistas, ao buscarem o ideal cartesiano de certeza, acreditaram, como se 157 nunca tivessem ouvido falar em Kant, que os resultados de suas especulações tinham o mesmo tipo de validade que os resultados dos processos cognitivos. 3.3 As metáforas e o inefável Na obra de Bandeira percebemos muito daquilo que André Bueno aponta quando se refere à tradição crítica brasileira do século XX. É uma tradição que nos ensina a olhar a vida cotidiana e o habitante comum da cidade de um jeito simples, direto, sem pompas e circunstâncias. Que apresenta um olhar democrático, pois não se colocam de fora, no alto, com alguma variação arrogante e elitista do desprezo pelas “massas”, pelas “multidões” anônimas. Concordamos com Bueno quando este assinala, em Formas da Crise, que percebe em Mário de Andrade, em Oswald de Andrade, em Carlos Drummond, em Manuel Bandeira e João Cabral, a forma literária que confere sentido complexo às tensões históricas e sociais: entre passado e presente, campo e cidade, litoral e sertão, modernização e atraso, a herança do Brasil Colônia em choque com os dados recentes da modernização. Em resumo, um apuro formal, uma competência técnica, uma imaginação criadora muito potente, mesmo quando se abriga na aparente simplicidade do coloquial, do mais cotidiano estar no mundo e na cidade. 158 Nomeando as coisas simples, a obra em estudo desvela o não-dito, latente na história, permitindo-nos, assim, pensar ainda hoje econômicos não e contradições, só o Brasil políticos, mas também em bem e, seus como aspectos sociais, suas profundas em principalmente, os limites impostos à condição humana numa sociedade como a nossa. Foi o que nos aconteceu ao lermos o poema O bicho, cujo significado nos legou o conceito de i-mundície. Neste, somos levados a pensar que, metidos no processo histórico do capitalismo, os sujeitos não poderiam ter, desde logo, imagens transparentes de si mesmos e da vida social. No entanto, através da forma literária, operada pela metáfora (O bicho, meu Deus, era um homem), abre-se a possibilidade da percepção crítica reificada, o que existente. Enfim, e consciente nos indica como já da uma totalidade maneira afirmamos de antes, alienada e superar o abre-se a possibilidade do pensar criticamente. Isto nos faz voltarmos a Arendt. Ao tratar a questão do pensamento, a filósofa menciona a profunda ligação deste com a natureza da linguagem. Salienta que ao tratarmos o pensamento como algo inalcançável a nossa visão, temos em nós o desejo de “vê-lo”, ou melhor, conhecê-lo. De acordo com Arendt, esse desejo é bastante comum aos seres humanos: assim como os seres que aparecem e habitam o mundo de aparências têm em si o ímpeto de se mostrarem, os seres pensantes (ainda que pertencentes 159 ao mundo das aparências, mesmo depois de haverem dele se retirado mentalmente) têm em si o ímpeto de falar, e, assim, tornar manifesto aquilo que, de outra forma, não poderia absolutamente pertencer ao mundo das aparências, isto significa, em outras palavras, que as atividades mentais, invisíveis e ocupadas com o invisível, tornam-se manifestas somente através da palavra. Se afirmar que quem o pensa discurso precisa é uma falar, podemos, necessidade do então, espírito, espírito32 entendido aqui como os pensamentos de nossa razão. Ao mencionar a palavra discurso, lembrando aí Aristóteles em De anima, Arendt ressalta que o Logos, do discurso coerente, não é a verdade ou a falsidade, mas sim o significado. As palavras em si não são verdadeiras nem falsas, então o Logos é o discurso no qual as palavras são reunidas para formar uma sentença que seja síntese. Implícita totalmente no ímpeto significativa da fala em está virtude da busca do a significado, e não necessariamente a busca da verdade. Para Arendt, pensamentos palavras assemelham-se. significativas Desse modo, em uma si vez mesmas e que se assemelham, seres pensantes têm o ímpeto de falar, seres falantes têm o ímpeto de pensar33: Hannah Arendt faz uma distinção entre espírito e alma. Alma, para ela, são as paixões de nosso aparato emocional. 33 Arendt lembra que Aristóteles, em De anima, em nenhum momento da discussão da relação que a linguagem mantém com o pensamento, levanta a questão da prioridade; não decide se o pensamento é a origem da fala, tomado o discurso como mero instrumento de comunicação de nossos pensamentos; ou se o pensamento é uma conseqüência do fato de que o homem é um animal falante. 32 160 De todas as necessidades humanas, a “necessidade da razão” é a única que jamais poderia ser adequadamente satisfeita sem o pensamento discursivo; e o pensamento discursivo é inconcebível sem palavras já significativas, antes que um espírito viaje, por assim dizer, através delas – (poreuesthai dia logon / Platão). A linguagem sem dúvida serve também para a comunicação entre os homens; mas, aí, sua necessidade vem simplesmente do fato de que os homens, seres pensantes que são, têm a necessidade de comunicar seus pensamentos; os pensamentos, para acontecer, não precisam ser comunicados; mas não podem ocorrer sem ser falados – silenciosa ou sonoramente, em um diálogo, conforme o caso. (pág.77) Observamos em Arendt a profunda interconexão de linguagem e pensamento, a que faz referência e isto nos faz suspeitar de que não há possibilidade de existir um pensamento não-discursivo34. É preciso dizer que mesmo intrinsecamente ligada ao pensamento, a linguagem (único meio pelo qual é possível tornar manifestas as atividades espirituais) não é de modo algum tão evidentemente adequada à atividade do pensamento quanto a visão o é para sua tarefa de ver. Hannah Arendt coloca que isto vocabulário já espiritual. Todas palavras se dá pronto tomam originalmente porque para seu as nenhuma língua necessidades vocabulário concebidas para de da tem um atividade empréstimo corresponder ou às a experiências do sentido, ou a outras experiências da vida Neste momento, Arendt nos elucida quanto a esse aspecto: há, sim, possibilidade de existir um pensamento não-discursivo. Este se aplica a civilizações em que o signo escrito, em lugar da palavra falada, é decisivo, e em que, conseqüentemente, o pensamento em si não é discurso silencioso, mas sim um lidar mental com imagens. A China é um exemplo dessas civilizações. É claro que, segundo Arendt, o que nos distingue dos chineses não é o nous, mas sim o logos, nossa necessidade de explicar e de justificar com palavras. 34 161 comum. No entanto, este empréstimo jamais se dá ao acaso ou é arbitrariamente simbólico ou emblemático. Segundo Arendt, toda linguagem filosófica, e a maior parte da linguagem descobre uma poética, percepção é metafórica35. intuitiva de Toda metáfora similaridades em dessemelhantes. Mas essa similaridade não está presente em objetos diferentes similaridade de sob outros relações, como necessita de quatro termos. aspectos, numa mas analogia é que uma sempre Arendt, baseando-se em Kant, coloca que este diz que essa fala por analogia, em linguagem metafórica, é o único modo pelo qual a razão especulativa (que Arendt chama de pensamento) pode se manifestar. A metáfora fornece ao pensamento abstrato e sem imagens uma intuição colhida do mundo das aparências, cuja função é a de estabelecer a realidade de nossos conceitos, como que desfazendo a atividades do retirada espírito do mundo, (Arendt pré-condição salienta que para isso as é relativamente fácil desde que nosso pensamento simplesmente responda aos apelos de nossa necessidade de conhecer e compreender o que é dado no mundo de aparências, isto é, desde que permaneçamos dentro das limitações do raciocínio do senso comum36). Metáfora aqui é entendida não no sentido simples do dicionário. Arendt quis dizer com essa passagem que o que precisamos para o pensamento do senso-comum é de exemplos que ilustrem nossos conceitos: tais exemplos são adequados porque nossos conceitos são extraídos das aparências – são meras abstrações. É complemente diferente quando a necessidade da razão transcende os limites de um dado mundo e nos leva ao mar incerto da especulação, em que não pode ser dada nenhuma intuição adequada a idéias da razão. 35 36 162 A metáfora entrará no momento em que a necessidade da razão transcende os limites de um dado mundo. A metáfora realiza a transferência – metapherein – de uma genuína e aparentemente impossível metabasis eis allo genos, a transição de um estado existencial, aquele do pensar, para outro, aquele do ser uma aparência entre aparências; e isso só pode ser feito através de analogias. (pág. 80) É interessante expormos aqui a passagem na qual a filósofa cita o exemplo que Kant oferece de metáfora bemsucedida. O filósofo descreve o estado despótico como uma simples máquina, um moedor manual porque “é governado por uma vontade despótico individual e um e absoluta...” moedor manual não Pois há, entre um decerto, estado qualquer semelhança, mas há semelhança nas regras segundo as quais refletimos sobre essas duas coisas e sobre sua causalidade. E acrescenta que nossa linguagem está cheia de apresentações indiretas desse tipo, um assunto que não foi suficientemente analisado até agora e que merece uma investigação mais profunda. Ao examinar mais de perto as várias formas de que a linguagem dispõe para estabelecer uma ponte sobre o abismo entre o domínio do invisível e o mundo das aparências, Arendt oferece a seguinte descrição geral: Da sugestiva definição aristotélica da linguagem como emissão sonora e significativa de palavras que já em si são sons com significado que se assemelham a pensamento, conclui-se que pensar é a atividade do espírito que dá realidade àqueles produtos do espírito inerentes ao 163 discurso e para os quais a linguagem, sem qualquer esforço especial, já encontrou uma morada adequada, ainda que provisória, no mundo audível. Se falar e pensar nascem da mesma fonte, então o próprio dom da linguagem poderia ser tomado como uma espécie de prova, ou talvez mais como um sinal de que o homem é naturalmente dotado de um instrumento capaz de transformar o invisível em uma aparência. A terra do pensamento de Kant – Land des Denkens – pode nunca aparecer ou se manifestar aos olhos do corpo; manifesta-se, com todo tipo de distorção, não só para nosso espírito, mas também para os ouvidos do corpo. E é nesse contexto que a linguagem do espírito, através da metáfora, retorna ao mundo das visibilidades para iluminar e elaborar melhor aquilo que não pode ser visto, mas que pode ser dito. (pág. 84) Com a afirmação acima, Arendt quer demonstrar que é por meio de analogias, metáforas e emblemas que o espírito se prende ao mundo. São estes fios que garantem a unidade da experiência humana. Corpo e espírito, pensamento e experiência sensível são feitos um para o outro. Isto significa, para a autora, que se a linguagem mundo do das pensamento é aparências independentemente das essencialmente insere-se necessidades de metafórica, no nosso o pensamento corpo e das reivindicações de nossos semelhantes que de algum modo nos fazem retroceder. O ego pensante jamais abandona de todo o mundo das aparências. É a linguagem que, ao se prestar ao uso metafórico, trânsito em nos torna assuntos capazes de pensar, não-sensíveis, isto pois é, de permite ter uma transferência de nossas experiências sensíveis. Logo, não há dois mundos, pois a metáfora os une. A filósofa ressalta, ao dizer que a linguagem é o único meio no qual o invisível pode tornar-se manifesto em um mundo de aparências, que a mesma não é tão adequada para exercer 164 aquela função. A filósofa sugeriu, então, que a metáfora pode curar o defeito. Mas lembra que a cura temos seus perigos e jamais chega a ser completamente adequada. Este perigo está na evidência que a metáfora evidência inquestionada metáforas, para Arendt, fornece, apelando da experiência podem, portanto, para sensível. ser usadas a As pela razão especulativa, que, na verdade, não as pode evitar, mas quando elas científico, evidência invadem, são como usadas plausível é (e para sua se tendência, abusa teorias delas) que, na o raciocínio para fornecer realidade, são hipóteses a serem provadas ou refutadas pelos fatos. No entanto, mesmo sendo usadas pela razão especulativa, Arendt coloca que alguns filósofos insistiram que há algo “inefável” por detrás das palavras escritas, algo de que, quando pensavam e não escreviam, tinham clara ciência, e que, entretanto, resistia a ser definido e transmitido para os outros. Para Arendt, o pensamento está fora de ordem porque a busca do significado não produz qualquer resultado final que sobreviva à atividade, que faça sentido depois que a atividade tenha chegado ao fim. A única metáfora que se pode conceber para a vida do espírito é a sensação de estar vivo. A atividade do pensamento é vida. Terry Eagleton, em Teoria da Literatura: uma introdução, assinala, nesse aspecto em comum acordo com o pensamento de Arendt, que toda linguagem é inevitavelmente metafórica, 165 operando por tropos e figuras; é um engano acreditar que qualquer linguagem é literalmente literal. A filosofia, o direito, a teoria política, funcionam por metáfora tal como os poemas, e portanto são tão ficcionais quanto os poemas. Como as metáforas são essencialmente “desembasadas”, simples substituições de uma série de signos por outra, a linguagem tende a trair a sua própria natureza fictícia e arbitrária, exatamente naqueles pontos em que se propõe a ser mais intensamente persuasiva. A “literatura” para o filósofo é a área em que essa ambigüidade é mais evidente – na qual o leitor se vê suspenso entre um significado “literal” e outro, figurativo, incapaz de escolher entre os dois e, portanto, lançando a um abismo lingüístico sem fundo por um texto que se tornou “ilegível”. Todavia, Eagleton ressalta que as obras literárias são, num certo sentido, menos enganosas do que outras formas de discurso, condição porque retórica – implicitamente o fato de reconhecem que aquilo sua que própria dizem é diferente daquilo que fazem, de que todas as suas pretensões ao conhecimento funcionam através de estruturas figurativas que as tornam ambíguas e indeterminadas. O filósofo aponta que as obras literárias insinuam uma natureza irônica. Outras formas de escrita são tão figurativas e ambíguas quanto ela, mas procuram passar por verdade inquestionável. 166 CONSIDERAÇÕES FINAIS - NO MUNDO DE IRENE Irene preta Irene boa Irene sempre de bom humor. Imagino Irene entrando no céu: - Licença, meu branco! E São Pedro bonachão: - Entra, Irene. Você não precisa pedir licença. Irene no céu. Libertinagem Se Irene é “preta”, é “boa”; se está “sempre de bom humor”, entra no céu “sem pedir licença”. Com essa possível subordinação de experiências, o poema nos leva a considerar a necessidade da quebra de barreiras entre “os mundos” que se puseram válidos no decorrer da história da humanidade. Aqui, ele trabalha pela desestabilização das hierarquias de poder: que subordinam o negro à condição de renegado e periférico, que preparam para a mulher e para o pobre lugares de exclusão e dependência. Num sentido mais amplo, pode ser lido também como o resgate do homem à sua condição humana dada na terra. O buscar, empenho no de retorno Bandeira do parece alienado ao ser uma lugar por tentativa ele de outrora abandonado, a poética dos lugares – surgida na preocupação com o gueto, com o mendigo comedor de lixo, com os meninos carvoeiros, com as mulheres prostituídas da Lapa... Ao 167 promover a entrada de Irene, com todos os seus predicados “preta, boa, sempre de bom humor”, o poeta não se prende ao simbolismo tradicional de a bondade ser pré-requisito à entrada no céu, mas atrela a esse traço de Irene o que antes era, num mundo de i-mundície, o fator discriminatório: Irene é preta! Assim, imaginação poética a partir – dessa “Imagino intervenção Irene entrando dada no pela céu” – Bandeira realoca o ser renegado ao esquecimento em seu lugar no mundo: o céu, que é a instância do enlevo espiritual, o contato com o êxtase divino, o prêmio para os que passaram no mundo por prazer, jornada difícil. caracterizado num Mais santo que isso, é “bonachão” comemorar e na o fala irreverente de Irene: “Licença, meu branco!”. O poema coroa a quebra de fronteiras, a desconstrução dos limites entre os homens; e aqui, mais profundamente, o humano e o divino gozam do mesmo status, falam no mesmo tom, a ponto de São Pedro deslizar, como o povo, no uso do vernáculo: “Entra, Irene. Você não precisa pedir licença”. Neste sentido, observamos que o céu, tão distante no conceito metafísico da existência, “baixa” ao âmbito terreno, porque Irene, sem precisar de elos ou redenção, está mesmo redimida de sua i-mundície por sempre ter bom humor. Como Arendt tinha dito sobre a felicidade angustiada dos homens quando do lançamento do satélite “Sputnik”, a felicidade que se dava pela possível fuga do homem da terra, aqui, na estrutura do mundo de Irene, os homens felicitam-se 168 por poderem compartilhar o mesmo espaço: brancos e negros, homens e mulheres. O céu de Irene é o mundo possibilitado pela arte, que se constrói pelo respeito ao outro e aproximação entre os distantes pelo diálogo. No céu de Irene não há silêncio, lá, como em Pasárgada, todos falam e são ouvidos. A onomástica, recriação do outra mundo por paixão Irene, de Bandeira, nome que justifica significa a “paz”, “conciliação”. Bandeira propõe mais uma vez o encontro de doxas (leis) paralelas. O mundo de Irene combate o mundo “imundo” em que se dá o preconceito racial, um dos sintomas da alienação, que tiram daqui e dos seres o direito ao lugar. Irene é mulher e não precisa pedir licença, não se submete aos ditames patriarcais e raciais. São Pedro é “seu”; ela se “apossa” dele pelo uso do vocativo “meu branco” – o que de maneira nenhuma requer a sujeição. Antes, o uso do termo diz respeito à intimidade entre os diferentes, de modo que a diversidade se justifica: Irene é amiga de São Pedro e não há distinções de importância. “Irene no céu” é, de certa forma, emblemático para a hipótese levantada por nós a respeito da poética bandeiriana: a constatação da evidência de um mundo contaminado pela sujeira; e o resgate dos alienados ao lugar abandonado. Isso porque Irene, aceitação, ao ser inerente ao considerada, mundo é humanizada. alienado, se Sua desfaz, não e a 169 imundície tão acostumada a aparecer, é expurgada, se “ireniza”. O mundo de Irene está todo feito da ação-chave para a construção de novos sentidos da vida e da existência: os homens consideram-se “desmetaforizada”, em sua “coisa em “mesmidade”. si” do poema Como a lua “Satélite”, os homens nesse mundo branco e preto são eles mesmos, entregues à sua condição de humanos, e são em si, envoltos em compreensão e distantes da disputa e concorrência desenfreada que caracteriza a sociedade consumista e descartável da era moderna. No longo percurso deste texto, a visão desse caminho encerrado na poesia de Manuel Bandeira, em que o mundo se descobre i-mundo, e o que se considerava alheio ao mundo se realoca no espaço dos seres, só foi possível devido à operação, por nossa parte, da crítica dialética. Por essa crítica, utilizada por pensadores tais como Hannah Arendt, Marx, Benjamim, Adorno, André Bueno, Ronaldo Lima Lins, Antonio Candido, dentre tantos outros, sabemos que o mundo da imaginário diretamente, mercadoria urbano como de e de suas massas, transparências imagens, não assim pode legíveis ser e como o pensado articuladas, acessíveis à consciência de qualquer um, colocado em qualquer posição da vida social. De acordo com André Bueno, a força da divisão social do trabalho, da fragmentação, do trabalho alienado, do valor de 170 troca, do fetiche da mercadoria e da própria ideologia atravessa em todos os sentidos o cotidiano histórico e a consciência dos sujeitos. Portanto, essas imagens são opacas, lacunares, invertidas, manipuladas, jamais diretas e transparentes. Para o teórico, ler diretamente as imagens que a sociedade capitalista urbana cria de si mesma, de suas classes, de seu sentido e de seus valores, de seus objetivos e fins, é o mesmo que endossar uma ilusão. Dessa forma, o trabalho do pensamento crítico passa, precisamente, pelas maneiras indiretas, mediatizadas, construídas com cuidado, de se desmontar os simulacros e ilusões que acompanham, necessariamente, o mundo urbano da mercadoria e das imagens de massa da mercadoria. Por outro lado, o simulacro promovido pela arte não se dá pelo caminho do engano, mas esclarece o espectador quanto aos mecanismos de obediência aos ditames desse ambiente. A metáfora, por exemplo, como material da palavra poética, vai na contramão do fascismo da língua, conforme sugere Roland Barthes. Na busca pela simplicidade e por estar atento ao movimento do real, o poeta insiste nas imagens dos sentidos, para, a partir daí, desvelar e revelar o essencial: a vida. Não a vida vista de seu ponto puramente biológico, mas a vida em sua totalidade, que implica união completa das capacidades humanas que ora nos referimos; união entre o agir e o pensar. Eis o que promove a poética de Bandeira. 171 Fica, realizadas, então, a para certeza nós, de a que partir uma das outra leituras imaginação aqui da realidade continua sendo possível, tornando menos pobre e precário o mundo da alienação, das mercadorias e de suas imagens. E, lembrando Benjamim, há que se chegar um dia em que a obra de arte não precisará aliviar nossos anseios: a própria vida será artística! Finalizamos com Bandeira: Morre o teu sonho? Neste instante, o pensamento acabrunha o meu ser como um pesar medonho. Ah, por que temo assim? Dize: neste momento Morre teu sonho? 172 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADORNO, T.W. & HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Trad. Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. ADORNO, Theodor. Notas de Literatura. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1973. ANDRADE, Oswald de. Do Pau-Brasil à antropofagia e às utopias. 2ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1979. ARENDT, Hannah. A condição humana. 6ª ed. Trad. 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O que eu adoro em ti, Não é a tua graça musical, Sucessiva e renovada a cada momento, Graça aérea como o teu próprio pensamento, Graça que perturba e que satisfaz. O que Não é Não é E meu eu adoro em ti, a mãe que já perdi. a irmã que já perdi. pai. O que eu adoro em tua natureza, Não é o profundo instinto maternal Em teu flanco aberto como uma ferida. Nem a tua pureza. Nem a tua impureza. O que eu adoro em ti – lastima-me e consola-me! O que eu adoro em ti, é a vida. Madrigal melancólico. O ritmo dissoluto. 180