AS TRANSFORMAÇÕES DO PENSAMENTO NA BAIXA IDADE
MÉDIA E AS MUDANÇAS NA ARTE
SESTITO, Eloiza Amália Bergo
OLIVEIRA, Terezinha1
É comum ouvirmos conceitos que se referem ao período medieval como a “Idade
das Trevas”, caracterizando esse período histórico como quase isento de transformações na
forma de ser, viver, agir e pensar das sociedades. Isso porque frequentemente, uma forma
de pensar é analisada a partir do que outros dizem sobre ela, e não conforme ela foi
concebida, em resposta às necessidades materiais e espirituais do tempo que se originou.
Muitas vezes aprendemos por meio de olhares que já se distanciaram da gênese de sua
concepção.
Entretanto, basta acurarmos o olhar para a produção artística da Idade Média para
ficarmos maravilhados com seus afrescos, mosaicos, baixos relevos, vitrais entre outros.
Seria possível que essas produções não tenham acompanhado as transformações nas
formas de viver, pensar e agir dessas sociedades? São apenas resultados de obras
milagrosamente criadas a partir da inspiração genial de um artista?
Propomo-nos neste texto, refletir um pouco sobre as transformações no pensamento
filosófico da baixa Idade Média, sua influência na arte e consequentemente na educação.
Nossa análise se concentrará na expressão artística das pinturas. Uma vez que as imagens
tinham a função educativa, nosso objetivo é compreender em que medida as
transformações das idéias filosóficas influenciaram as pinturas e ambas a maneira de
pensar da sociedade medieval.
Entendemos a arte como a manifestação da experiência estética construída
socialmente, que ocorre em cada período como a expressão da vida dos homens de seu
tempo. Expressão que é representada em formas estéticas. Respostas subjetivas ao
movimento material e de ideias que são engendrados no cotidiano humano. Toda obra
1
Professora do Departamento de Fundamentos da Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação
da Universidade Estadual de Maringá.
1
artística traz consigo uma intenção, porém esta ocorre de forma complexa e harmoniza os
acontecimentos, sentimentos, ideias ou objetos, dispondo-se às características da matéria
que se articula segundo o imaginário (SESTITO, 2009). Assim tanto transformações
materiais e tecnológicas, quanto as concepções e idéias são coadjuvantes fundamentais na
criação do artista.
Ghisalberti (2001) assinala três períodos medievais: A alta Idade Média ( do séc. VI
ao séc. IX ) que corresponde ao período de formação dos reinos bárbaro-romanos e do
feudalismo, no Ocidente e pela permanência do Império bizantino e formação dos Estados
eslavos, no Oriente. E, ainda pela forte expansão e progressiva consolidação do Islã no
Mediterrâneo.
Por idade média central (séculos IX-XIII), o autor caracteriza o período marcado
pela transformação geral das relações entre o Oriente e o Ocidente, de uma grande
renovação cultural e econômica no Ocidente. Neste período o feudalismo é superado,
ocorre a fundação das universidades e por meio das cruzadas estabelece-se novas
modalidades de conflitos com o Islã.
E ainda como baixa Idade Média (séc. XIII ao séc. XVII) o autor descreve um
período que “assiste ao encontro entre as pressões particularistas das nações e as
instituições universalistas do império e do papado, bem como ao nascimento dos Estados
Nacionais europeus, enquanto a cultura se expande com o surgimento de novos clássicos”
(GHISALBERTI 2001, p. 12).
Nossa
proposta
é
concentrarmos
nas
mudanças
ocorridas
no
período
correspondente à baixa Idade Média (sec XIII ao séc. XVII). Muitas mudanças ocorreram
na forma de viver do homem europeu deste período. Influenciado pelas novas relações de
sobrevivência ou novas formas de produzir a vida. O período correspondente aos séculos
XII e XIII foi marcado por profundas mudanças de ordem social, política, econômica e
cultural. Consequentemente a expressão artística também reflete tais mudanças seja na
arquitetura, pintura ou escultura. Floresce a arte gótica em contraposição ao estilo anterior,
marcado pelo estilo Românico e Bizantino. Estilos fortemente impregnados da influencia
Oriental. No plano intelectual floresce a criação das universidades, com o pensamento
aristotélico presente na filosofia Escolástica. No campo da economia destaca-se a produção
2
agrícola excedente, que aquece a atividade do comércio e melhora as condições de
subsistência e de vida.
No século XIII, a Europa enche-se sobretudo de homens. Os antigos
campos cultivados expandem-se, outros novos surgem nos terrenos
baldios. E assim foram reabsorvidas de vastas extensões desertas que
tantos obstáculos representaram para as comunicações. O campo europeu
criou-se ao longo dos séculos XII e XIII. Ganhou então os aspectos que
ainda hoje conhecemos. Não será indispensável, numa reflexão sobre a
história das artes européias, abrir lugar para essa obra de arte imensa e
diversa, que são as paisagens? (DUBY 2002, p. 71)
A indagação do autor nos faz refletir de como relação do homem com a natureza
para sobrevivência, o transforma em sua maneira de ser e pensar. A forma de representar
essa natureza também se modifica.
O estilo românico que prevaleceu até esse período se caracterizava pelo forte
simbolismo, onde o artista não se empenhava na imitação de formas naturais a intenção era
a disposição dos símbolos sagrados. Segundo Gombrich (1995) essa despreocupação com
as formas naturais conferia ao artista uma liberdade em expressar sentimentos e
acontecimentos muitas vezes violentos e cruéis da vida dos mártires religiosos, de uma
forma irreal e com uma estética puramente ornamental. Assim dispensava-se a ilusão de
espaço, a realidade de cores, ou movimentos e volumes.
Entretanto o mesmo autor afirma ainda que mesmo com a grande influência do
estilo Oriental sobre o Ocidental, o que difere este último é sua inquietude e busca de
novas soluções.
O estilo românico não sobreviveu sequer ao século XII. Mal os artistas
tinham conseguido construir com êxito as abóbodas de suas Igrejas e
disposto as estátuas de uma nova e majestosa maneira, quando uma idéia
revolucionária fez as igrejas normandas e românicas parecerem
desgraciosas, pesadas e obsoletas. A nova idéia nasceu na França
setentrional. Era o aparecimento do estilo gótico. (GOMBRICH 1995, p.
185)
Assim em paralelo e como conseqüência de transformações das idéias e das
relações dos homens daquele período verifica-se uma grande mudança nas concepções das
3
formas artísticas. Nosso objetivo então é nos determos um pouco mais na representação
humana na pintura e a concepção de homem concebida pelos intelectuais dessa época.
As necessidades sociais que se apresentavam aos homens dos séculos (XIII – XVI)
impunham uma nova forma de pensar o próprio homem e a natureza. Há um novo
sentimento de pertencimento à sociedade, de concepção do indivíduo. Podemos afirmar
que se origina aqui a concepção burguesa de indivíduo.
Ghisalberti (2001) apresenta os autores que inauguram o pensamento moderno:
Duns Stocus, Guilherme de Ockham e João Buridano. O autor afirma que o mundo
medieval constituiu-se no arcabouço para o mundo moderno. As mudanças foram lentas,
mas a construção da concepção de indivíduo foi se constituindo ao longo dos séculos.
Não há mudança material sem mudança espiritual, ou seja, o mundo mental que
parte dos autores, e o material que se configura na produção da vida, não estão dissociados.
Ghisalberti (2001) afirma que devemos estudar a Idade Média em seu contexto histórico,
relacionando-a com a sucessão dos eventos que nos dão testemunho as diversas fontes
chegadas até nós: línguas, construções, artes.
Nesse período os ensinamentos dos mestres universitários, foram fundamentais na
constituição de uma nova forma de ver o intelecto, ou o conhecimento. Com o
ressurgimento das cidades, com as necessidades do comercio e da indústria. Os intelectuais
surgem com função de ensinar por meio da reflexão, de início nas escolas urbanas e depois
nas universidades (LE GOFF 1991). Nessa perspectiva as transformações nas formas
artísticas desse período estão ligadas às transformações intelectuais.
Guilherme de Ockham foi considerado o iniciador da vida moderna. Foi atribuído a
ele o precursor do nominalismo, que deve ser entendido como “uma teoria do uso rigoroso
dos termos (mentais ou conceitos, orais e escritos) que respondem às características
peculiares da lógica e da linguagem” (GHISALBERTI 2001, p. 45). Na apresentação do
autor Ockham reivindicou o primado do indivíduo e por isso introduziu uma nova visão no
campo da ontologia, da filosofia da natureza e da política. Buscou explicações para as
questões de seu tempo e esclarecer duas instâncias que sempre pareceram opostas, a fé e a
razão. Ockham concebe assim, Deus como o onipotente criador infinito e o homem
também com poderes criadores, por meio do conhecimento e da razão, embora finito.
4
O Absoluto divino, criador onipotente de todo os cosmos finito,
totalidade perfeita do ser, subtraído a todo devir, transcendência pura que
não pode ser sondada pelo pensamento humano, mas apenas por aquele
que revelando-se a si próprio decide dar-se a conhecer. O autor absoluto,
este finito, é uma minúscula projeção sobre um ponto da circunferência
dessa esfera perfeita. É o indivíduo, qualquer que seja pertencente ao
mundo do devir, do movimento espaço-temporal. Surgido do insondável
ato de liberdade, por meio do qual o Criador fez surgir o mundo do nada
inicial. O indivíduo possui a força de ser ele mesmo pela sua
irrepetibilidade, a sua característica singular que o impede de perder a
identidade e consistência. (GHISALBERTI 2001, p. 46 grifo nosso)
São exatamente essas características da figura humana ressaltadas na citação do
autor que começam a ser transfiguradas na representação artística e apontam para a gênese
do estilo renascentista ainda no âmago na sociedade medieval. Esse novo artista que se
configurava já no século XIII, a caracterização de um mundo real passível de ser
observado, conhecido e reproduzido começa ser admissível em sua criação. Fato que hoje
nos parece normal o artista assentar-se a frente de algo do mundo real e começar a esboçálo. Na Idade média o artista seguia padrões previamente estabelecidos, de como representar
os símbolos sagrados. Seu aprendizado começava frequentemente, junto a um mestre, que
determinava os espaços que precisavam completar para posteriormente aprender a
desenhar a Santa Virgem, um apostolo, um rei. “mas em sua carreira jamais se defrontaria
com a necessidade de apanhar um livro de esboços e desenhar algo a partir da vida real”
(GOMBRICH, 1995 p. 198).
Esse interesse pela vida real acentua-se mais no século XIV onde a filosofia de
Ockham dentre outros, evidencia a distinção entre o profano e o sagrado, as coisas do céu e
as coisas da terra. Entre o que é imperceptível do que pode ser percebido por meio dos
sentidos. O mundo real, o qual o homem deve conhecer para melhor regê-lo, trata-se do
conhecimento por meio da observação, da experiência sensorial e do raciocínio lógico.
O homem é chamado para explorá-lo livremente, usando as faculdades
intelectuais e sensíveis de que Deus o dotou. E mais ainda, o príncipe,
encarregado de manter na terra a ordem e a justiça. Para bem governar ele
terá que referir-se aos ditos filosóficos, à Política de Aristóteles, cujas
adaptações eram compostas pelos sábios, para lhes facilitar a tarefa.
(DUBY 2002, p.104)
5
Tal concepção de mundo está intimamente ligada à expansão da economia e dos
limites geográficos ampliados, além das singularidades na natureza e as novas formas de
vida proporcionadas pelo acúmulo de dinheiro. A representação naturalista do mundo
busca exatamente definir um espaço de liberdade junto ao sagrado. O homem por meio da
capacidade que Deus o conferiu tem a capacidade de recriar esse mundo. “Seja como for, o
que Duns Escoto e Guilherme de Ockham ensinavam relaciona-se muito intimamente
como fortalecimento do Estado, do qual dependia na época o mais vigoroso, o mais
audacioso da criação artística” (DUBY 2002, p. 105).
Nesse contexto surgem as encomendas aos artistas. Obras que deveriam refletir o
poderio e os favores que o mecenas possuía e distribuía em seu governo.
Vejamos a imagem de uma Iluminura do século XV.
http://www.artrenewal.org/pages/artwork.php?artworkid=24630&size=large acessado em 20/07/2010
1412-1416
Iluminação em pergaminho
13,6 x 22,5 cm
(5,35 "x 8,86 ")
Museu Conde ( Chantilly, França)
Propomos a partir de uma análise observar a imagem e reconhecer nela as
transformações ocorridas naquele momento. Em um primeiro lugar vamos descrever a
imagem, O que vemos? Vemos várias pessoas como que em um cortejo, cavalgando em
uma paisagem de muitas árvores ao fundo, com um castelo também ao fundo
6
O que aparece de inovador nesta imagem em relação ás outras imagens do
medievo, é o efeito tridimensional do espaço. Essa tridimensionalidade é conseguida por
meio da diminuição e da sobreposição das formas. É perceptível também a perspectiva
linear em algumas formas como no castelo ao fundo. Outro efeito de tridimensionalidade é
obtido também no volume das formas com a gradação das cores causando um leve efeito
de claro escuro, no drapeado dos tecidos, nos rostos e nos objetos.
As cores são fortes e vibrantes, com o uso do azul em profusão. Há também um
leve efeito de movimento causado pela inclinação dos corpos. Entretanto a verticalidade da
linha central em contraposição a horizontalidade dos planos, transmite um efeito de
equilíbrio, simetria e estaticidade.
Neste momento faz-se necessário perguntarmos, porque vemos? Esta imagem tratase de uma das ilustrações de um calendário das Mui Ricas Horas do Duque de Berry, o
qual encomendou aos irmãos Limbourg.
O príncipe cuja encomenda os Irmãos de Limbourg executaram, exigia
que ficassem claramente visíveis os emblemas de sua dominação e de seu
poder, de arrecadar impostos, mas também a imagem dos prazeres que o
bom governo tem o dever de dispensar e que ele próprio distribuía,
generoso entre os membros de sua corte (Duby 2002, p.105).
É uma iluminura, representa o mês de maio, do calendário, em que retrata os
festejos anuais da primavera celebrados pelos cortesãos. A novidade trazida pelo artista é a
graciosidade e a riqueza de detalhes das figuras, roupas elegantes, detalhes dos ornamentos
e elementos decorativos, leveza e delicadeza. Realidade nos gestos e expressões onde as
pessoas parecem se comunicar entre si. Podemos afirmar a intenção do artista em
representar uma cena real. Aqui registramos a observação do mundo real e a representação
da natureza. Embora ainda de forma simbólica. “Suas árvores não são reais, copiadas da
vida real, mas renques de árvores simbólicas, colocadas uma ao lado da outra”
(GOMBRICH 1995, p. 218). Os rostos também seguem esboços padrões, porém já
guardam características individuais.
Percebemos nesta imagem as transformações ocorridas nas formas de representar a
natureza e a vida humana. O interesse deslocara-se da forma de narrar por meio da imagem
uma história sagrada para registrar cenas da vida real. A observação e conhecimento
7
construídos pelos mestres daquela época levaram o artista a mudar sua técnica. O que antes
era seguido por fórmulas para representar as principais figuras religiosas.
Agora o artista deveria ser capaz de realizar estudos da natureza. Recria o mundo
como nos ensinamentos de Ockham. As transformações das idéias claramente registradas
na produção artística de seu tempo. Reflexões artísticas com soluções estéticas e plásticas
do pensamento emergente. Doravante seria necessário adotar o caderno de esboço e a
busca da representação fiel à natureza foi incansável, pois seu trabalho de agora em diante
seria julgado por essa fidelidade. Assim a apreciação de uma obra passou lentamente da
leitura de uma história sagrada, para o deleite das formas da natureza.
REFERÊNCIAS
DUBY, Georges. História Artística da Europa – A Idade Média – Tomo I. São Paulo:
Paz e Terra, 2002.
MENDES, Claudinei Magno Magre e OLIVEIRA, Terezinha (Org). Formação do
Terceiro Estado: As Comunas Coletânea de textos: François,Guizot, Augustin Thierry e
Prosper de Barante. Maringá – PR. EDUEM. 2005.
GHISALBERTI, Alessandro. As Raízes Medievais do pensamento moderno. Porto
Alegre. EDIPUCRS, 2001.
GOMBRICH, E H. A História da Arte. 16 ª ed. LTC Ed. Rio de Janeiro. 1995.
LE GOFF, Jacques. LE GOFF, Jacques. Mercadores e Banqueiros na Idade Média. São
Paulo: Martin Fontes, 1991.
SESTITO, Eloiza Amália Bergo. TRAJETÓRIAS PARTILHADAS: As transformações
dos conceitos de arte e cultura que norteiam a prática pedagógica dos professores de Arte
do Ensino Médio da Rede Estadual de Maringá. (Dissertação de Mestrado). Programa de
Pós Graduação em Educação da Universidade Estadual de Maringá. Maringá/PR. 2009.
8
Download

as transformações do pensamento na baixa idade média e as