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Brasília no contexto local e regional: urbanização e crise1
Aldo Paviani*
EM HOMENAGEM A MILTON SANTOS:
Brasília é, ao mesmo tempo, uma capital política e um
canteiro de construção. Surgiu como um canteiro de
construção e continuou sendo, após a instalação, ali,
dos três poderes do governo brasileiro. Brasília é, também, uma cidade “artificial” e uma grande cidade, uma
capital de país subdesenvolvido (Milton Santos, 1965).
Brasilia in local and regional context: urbanization and crisis
The paper deals with the role
played by Brasilia in the development process
of the central-western region of Brazil.
Considering that the capital city is now
experiencing a severe urban crisis, the author
sets forth a series of solutions for dealing
with it. First, it is proposed that management
of urban development should be permanent
in order to minimize the perverse effects of
socio-spatial exclusion, one of the main causes
of the present urban crisis.
Second, it is suggested that the multi-nucleated
model of urbanization followed so far should
be abandoned and replaced by projects which
favor multi-dwelling housing programs.
There should also be more concern with the
environment so as to improve quality of life.
What is really needed is a better and more
democratic project of distribution of goods
and services.
Keywords:metropolis,urban,management,
Brazília.
Resumo
O artigo analisa o papel de Brasília no desenvolvimento do Centro Oeste. Considerando
que a cidade vem passando por uma crise urbana expressiva, propõe-se alternativas, concebidas
para um plano de gestão capaz de enfrentar os desafios de um projeto de alterações profundas
no espaço urbano. Em primeiro lugar o estabelecimento de um horizonte permanente de gestão
do DF a fim de minimizar os efeitos do processo de exclusão sócio-espacial, um dos principais
fatores da origem da crise urbana da capital. Em segundo lugar o abandono do modelo
polinucleado de urbanização em favor de projetos que privilegiem as habitações coletivas. Dar
prioridade à preservação ambiental com o objetivo de melhorar a qualidade de vida da população.
Em suma um projeto de melhor distribuição democrática dos bens e serviços.
Palavras-chave: metrópole, gestão urbana, Brasília.
Adaptado do artigo apresentado no seminário “Brasília: passado, presente e futuro”, Brasília, 19 a
21 de setembro de2001.
2
Professor Titular, aposentado, e Pesquisador Associado do Departamento de Geografia e do Núcleo
de Estudos Urbanos e Regionais/CEAM, da Universidade de Brasília.
1
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Introdução
Nas décadas de 50 e 60, geógrafos, economistas, urbanistas e outros profissionais
interessavam-se por estudos a respeito da área de influência das cidades, quanto às redes e
interconexões regionais; analisavam a estrutura interna das cidades, isto é, os respectivos planos
urbanos e suas funcionalidades. Na abordagem de temáticas sobre Brasília, passadas quatro
décadas de sua inauguração, pode-se considerar lacunosa a literatura sobre o papel desempenhado
pela Capital no âmbito da região Centro-Oeste3. Quanto ao papel da Capital no contexto local,
há uma enormidade de dissertações de mestrado e de teses de doutorado (no Brasil e no exterior),
além de coletâneas editadas a partir de debates havidos no Senado Federal, na Universidade de
Brasília e em outros órgãos, desde os anos 70.4 Assim, Brasília tem sido mais analisada como
Capital federal do que como cidade que desempenhou um papel importante no desenvolvimento
do Centro-Oeste brasileiro. Nos primórdios de Brasília, não se tentou implantar para a Capital
a regionalização propugnada por François Perroux e Jacques Boudeville nos enfoques da teoria
dos “pólos de crescimento”.
Mesmo antes de o governo JK ter iniciado as obras de Brasília, havia um ideário para o
Centro-Oeste no bojo da “Marcha para o Oeste” do governo Vargas. Nesse sentido, Brasília demarcou
um tempo inicial para a efetiva “marcha para o Oeste”, pois no Plano de Metas de JK diversos
projetos dinamizaram a região, possibilitando a efetiva implantação da Capital. Entre estes projetos
citam-se: ampliação da malha rodoviária, implantação de hidrelétricas, novos aeroportos, indústria
naval e, logicamente, construção e transferência da Capital em pouco mais de três anos.
Durante a construção do Plano Piloto de Brasília, de Lúcio Costa, constatou-se que
não poderia abrigar as levas de imigrantes,5 sobretudo daqueles que passaram a trabalhar nos
canteiros de obras. Por isso, antes mesmo de concluírem o núcleo central da Capital, os construtores abriram novos espaços urbanos, iniciando com Taguatinga, em 1958. Com isso, a
cidade de hoje, polinucleada, é bem diversa da que foi esmeradamente projetada, não mais
podendo ser apontada como o modelo brasileiro de “planejamento urbano”. O fracasso do
planejamento urbano se materializa nas dezenas de núcleos esparsos no território, denotando
apartação e exclusão sócio-espacial. Em outras palavras, o intenso trabalho de mais de quatro
décadas dos construtores urbanos não resultou em uma democrática apropriação social dos
bens e serviços socialmente produzidos. As tensões sociais geram urbanização em constante
conflito e crise. Não se trata o espaço em um contexto de totalidade, compreensivamente6. Ao
contrário, a gestão incrementalista, ao atender uma dada clientela, paternalisticamente, exclui e
desatende outros grupos, gerando contradições e controvérsias não esperadas para uma cidade
que nasceu como modelo do urbanismo racionalista, depositária das esperanças do planejamento
urbano. Ressalte-se ser esse não apenas um fracasso local ou regional, mas uma falência nos
programas e projetos não levados a cabo com êxito no espaço nacional.
3
Ver de Santana, R. N. e Farret, R. A Rede Urbana da Região Geo-econômica de Brasília. Brasília, EcoUrb/UnB, 1975.
4
Em 1974, o Senado promoveu o I Seminário de Estudos dos Problemas Urbanos de Brasília, editando
os trabalhos e debates. Em 1984, na UnB, se realizaram seminários dos quais resultou a Coletânea
Brasília, Ideologia e Realidade – Espaço Urbano em Questão, Ed. Projeto/CNPq. A partir de 1987,
com a obra Urbanização e Metropolização – A gestão dos Conflitos em Brasília, inaugurou-se a
Coleção Brasília, da Editora UnB, com sucessivas publicações nos anos 80 e 90.
5
- Ver artigo de Ferreira, I. C. B. e Paviani, Aa. “As correntes migratórias para o Distrito Federal”.
Revista Brasileira de Geografia, Rio de Janeiro, 35 (3): 133-162, 1973.
6
- Ver artigo de nossa autoria “Urbanização: impactos ambientais da população”. Apresentado no II
Seminário para Jornalistas sobre População. Curitiba, 18 a 22 de fevereiro de 1992.
Brasília no contexto local e regional: urbanização e crise
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A transferência da Capital
Sociólogos, historiadores e geógrafos, entre outros, já se ocuparam exaustivamente
da controversa questão da transferência da Capital para o interior do país. Para o cientista
político Benício Viero Schmidt “Brasília (...) nasceu da intenção do soberano e serve a fins
essencialmente políticos” (SCHMIDT, 1985: 32)7, no que concorda o geógrafo José William
Vesentini: “a interiorização da Capital federal possui uma conotação geopolítica” (VESENTINI,
1986: 62)8. Para esses autores, a interiorização é alimentada por proposta que remonta aos
“inconfidentes mineiros”, se mantém até o fim do Império e se robustece na República. Por
questões de espaço, remetemos os interessados a esses autores porquanto ambos dissecam a
história da transferência: gestões, vantagens e desvantagens, polêmicas, motivações e interesses,
desde o século XVIII até as medidas concretas do governo JK na década de 50, com a abertura do
grande canteiro de obras para a construção do Plano Piloto de Brasília.
Todavia, a transferência da Capital havia sido antecedida da implantação do projeto
para a capital mineira em fins do século XIX e da capital goiana, nos anos 30 do século XX.
Assim, a expansão do povoamento para o interior foi-se consolidando no bojo do ideário da
“Marcha para o Oeste”, ao tempo do governo Vargas e visava incorporar ao mercado do Brasil
industrializado um hinterland cujas terras começavam a ser produtivas. A ferrovia chegava ao
interior de São Paulo, de Minas Gerais, de Mato Grosso e de Goiás e o mercado incorporava
cada vez maiores territórios. Da “Marcha para o Oeste” de Vargas para os “anos
desenvolvimentistas” de Juscelino Kubitschek foi um passo. O país crescia, sua população
passava dos 50 milhões de habitantes e a indústria se ampliava com os incentivos do governo
federal. Criava-se um mercado para os produtos nacionais, reproduzindo-se rapidamente os
capitais investidos. Por isso, o mercado pressionava para a incorporação de novos territórios,
tanto para ter acesso a matérias primas como para interiorizar o consumo de bens como o da
indústria automobilística implantada nos anos 50.
Segundo Farret, “a construção de Brasília, ao contrário das justificativas simplistas,
constitui-se num passo lógico dentro do processo de acumulação que impõe determinados
padrões de divisão social e espacial do trabalho. A política territorial nada mais seria que a
intermediação do Estado nesse processo” (FARRET, 1985: 19)9. A intermediação ou a intervenção estatal sempre desempenhou papel primordial na urbanização brasileira, sobretudo a partir
dos anos 50, quando uma retomada do processo de industrialização afetou a organização sócioespacial. Assim, de acordo com Schimidt, “a atual (dos anos 80) política urbana brasileira tem de
ser compreendida como um conjunto complexo de programas e ações dirigidas para a eliminação
dos obstáculos à completa socialização do espaço urbano através da reprodução expandida do
capital” (...) e que “a intervenção estatal aparece, assim, como um ‘corretivo’ capaz de criar as
condições materiais para a supremacia capitalista desejada...” (...), sendo que “a crescente
importância da intervenção estatal na sociedade brasileira, em sua totalidade, tem atraído substancial
atenção dos estudiosos, especialmente durante o recente período de rápido crescimento econômico
e taxas altíssimas de urbanização” (SCHMIDT, 1983: 13 e 14).10
7
Schmidt, Benício Viero. “Brasília como centro político” In Paviani, Aldo (org.) Brasília, Ideologia
e Realidade: Espaço Urbano em Questão. São Paulo, Ed. Projeto/CNPq, 1985.
8
Vesentini, José William. A Capital Geopolítica. São Paulo, Ed. Ática, 1986.
9
Farret, Ricardo Libanez. “O Estado, a questão territorial e as bases da implantação de Brasília”. In
Paviani, Aldo (org.). Brasília, Ideologia ...(op. cit.).
10
Schmidt, Benício Viero. O Estado e a Política Urbana no Brasil. Porto Alegre, Ed. da Universidade/
UFRGS/L&PM, 1983.
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Estado e setores privados uniram-se para o “ciclo desenvolvimentista” que, com o
“Plano de Metas” de JK, incentivaram setores para o investimento na “indústria de base”,
siderúrgica e metal-mecânica e naval, bem como a estruturação de malha rodoviária para as
necessárias conexões entre as capitais estaduais e o interior e vice-versa. Brasília, como “MetaSíntese” foi um passo decisivo, mas controverso. Enquanto construíam-se os edifícios e a
Esplanada dos Ministérios ganhava forma, a movimentação financeira de materiais de construção impulsionava cidades ao longo das rodovias. Neste aspecto, Goiânia constituiu-se em um
trampolim para o abastecimento dos canteiros de obras, ao mesmo tempo em que a indústria de
materiais de construção ganhava impulso, beneficiando igualmente Anápolis. Brasília, todavia, foi o grande trampolim para efetivar mudanças no Centro Oeste. Em seus primórdios a
Capital demandava materiais de construção de Minas e de Goiás. Foi Milton Santos quem
melhor captou o trinômio que envolvia Brasília: sua construção, por “vontade criadora”; a
“dualidade” sócio-espacial e o “subdesenvolvimento” que envolviam (e envolvem) a Capital.
Essas questões foram assim desenvolvidas por Milton Santos:
“Brasília é, ao mesmo tempo, uma capital política e um canteiro de construção.
Surgiu como um canteiro de construção e continuou sendo, após a instalação,
ali, dos três poderes do Governo brasileiro. Brasília é, também, uma cidade
“artificial” e uma grande cidade, uma capital de país subdesenvolvido. Cidade
“artificial” surgiu de uma vontade criadora que haveria de se manifestar na
prévia definição de diversos aspectos materiais e formais. A intenção que presidiu
à sua criação é que orientaria aquela vontade criadora. Brasília já nascia com
um destino predeterminado: ser “a cabeça do Brasil”, o “cérebro das mais
altas decisões nacionais”. Capital administrativa e canteiro de obras, essas
duas realidades - a realidade planejada e a realidade condição para a primeira
- vão contribuir para lhe dar uma fisionomia, um ritmo de vida, um conteúdo.
(...) O subdesenvolvimento comparece como um elemento de oposição, diante
daquela “vontade criadora”, modificando os resultados esperados. Reduz as
possibilidades de uma rápida construção da cidade; refletindo-se sobre as
atividades principais, explica as demais funções, o quadro, a fisionomia atual, a
estrutura e os problemas; e é o responsável pela “dualidade” de Brasília, que
tanto a aproxima das demais capitais latino-americanas. Vontade criadora e
subdesenvolvimento do país são, pois, os termos que se afrontam na realização
efetiva de Brasília. É da sua confrontação que a cidade retira os elementos de sua
definição atual”.11
Passados os anos JK, seguiram-se crises, como a renúncia do presidente Jânio Quadros
e os tempos complicados de seu vice, o presidente Jango Goulart. Enquanto minavam-se as bases
políticas desse governo, esboçavam-se planos para a tomada do poder, numa aliança de militares
com empresários temerosos de um “governo sindicalista”. Nessas crises, ganha força um ideário
geopolítico com amplo leque de ações para a soldagem das forças conservadoras. Essas forças
contraditoriamente se alimentaram nas trocas de apoios com setores militares e empresariais dos
Estados Unidos da América, sem cortar os liames com tendências nacionalistas de alguns militares
brasileiros. Nesse caldo controverso, ganha destaque a intervenção estatal. Como afirma Vesentini:
“uma ação estatal sobre o espaço, tal como a transferência da cidade-capital, possui sempre uma
- Santos, Milton. A Cidade nos Países Subdesenvolvidos. Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira,
1965, pp. 54 e 55.
11
Brasília no contexto local e regional: urbanização e crise
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dimensão política; e se essa ação, ademais, for alicerçada no saber geopolítico, essa política é
claramente voltada para o controle social, para o reforço da dominação. E o discurso geopolítico,
sem dúvida alguma, constituiu um dos pré-requisitos básicos para a transferência da Capital
federal do Rio de Janeiro para Brasília” (VESENTINI, 1986:61).
Brasília, recém inaugurada, é abalada pelas crises políticas referidas, que puseram
em cheque a permanência da Capital no Planalto Central. Sucessivos boatos sustentavam a
volta do Poder federal para o Rio de Janeiro. Todavia, com o golpe de 1964, os militares viram
em Brasília a possibilidade de aplicar teorias geopolíticas e instaurar o grande “projeto de
integração nacional”. De fato, ao longo dos governos militares tomaram-se medidas efetivas
para a consolidação da Capital como a transferência de órgãos federais do Rio para Brasília, a
manutenção da rodovia Belém-Brasília e a implantação do megalômano projeto da Transbrasiliana.
Todavia, foi no governo Geisel que Brasília passou a ter foros de cidade aceita internacionalmente
com a obrigatoriedade da transferência do corpo diplomático do Rio para a Capital federal. Com
isso, a geopolítica ganha força e a cidade cresce aceleradamente.12
Desenvolvimento em “manchas de óleo”?
A respeito de regionalização, nos anos 50, pensava-se em “desenvolvimento regional”
a partir de “pólos de crescimento”, sob as teorias elaboradas por François Perroux, posteriormente difundidas por Jacques Boudeville. Na base desse ideário, as regiões seriam desenvolvidas a partir de cidades bem equipadas e com poder de polarização. Elas teriam capacidade de
difundir inovações, tecnologia e provocar produção/consumo com efeito de esparramamento, à
semelhança de “manchas de óleo”. Tanto é assim que no relatório do urbanista Lúcio Costa já
estipulava que “... esta (a cidade de Brasília) não será, no caso, uma decorrência do planejamento
regional, mas a causa dele: a sua fundação é que dará ensejo ao ulterior desenvolvimento planejado
da região. Trata-se de um ato deliberado de posse, de um gesto de sentido ainda desbravador,
nos moldes da tradição colonial” (C0STA, 1965; 343).13
Na realidade, o desenvolvimento não se deu como idealizado na teoria da polarização.
O que ocorreu foi um efeito de aglomeração em centros já existentes, como no caso do Distrito
Federal (DF) e em Goiânia. A capital de Goiás possuía poder de aglomeração, pois nos anos 50 e
60 desempenhou um papel importante como entreposto de materiais para a construção de
Brasília e de insumos e tecnologias para uma agricultura que se ampliava, sobretudo, no chamado
“Mato Grosso de Goiás”. Nesse sentido, tanto Brasília como Goiânia incentivaram a produção
de grãos, como a soja, o milho e o feijão, bases para a alimentação de uma população que crescia
em razão das oportunidades de trabalho no DF, em Anápolis e Goiânia. Mas, não há como
sustentar que o desenvolvimento da agricultura ou dessas cidades se deu por “efeitos de
12
O acompanhamento da urbanização no Distrito Federal (DF) encontra-se registrado em inúmeros
trabalhos científicos publicados a partir de 1985 como “Brasília, Ideologia e Realidade: Espaço
Urbano em Questão”. São Paulo, Ed. Projeto/CNPq e, a partir de 1987, sob o patrocínio da Coleção
Brasília, da Editora UnB, com diversas coletâneas como Urbanização e Metropolização – A Gestão
dos Conflitos em Brasília (1987), Brasília – A Metrópole em Crise (1989), A Conquista da Cidade –
Movimentos Populares em Brasília (1991) e Brasília – Gestão Urbana: Conflitos e Cidadania (1999),
Brasília: Controvérsias Ambientais (no prelo).
13
Costa, Lúcio. “Relatório sobre o Plano Piloto de Brasília”. In IBAM Leituras de Planejamento e
Urbanismo. Rio de Janeiro, IBAM, 1965.
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esparramamento” (trickle down effects) ou de “barragem” (backwash effects), como teorizavam
os “desenvolvimentistas”. Havia, isto sim, determinações históricas do capitalismo brasileiro
para que a agricultura do Centro Oeste se ampliasse. Na divisão nacional e regional do trabalho
foram esses papéis atribuídos às cidades pré-existentes à Brasília. Com a Capital, essa divisão se
ampliou e se consolidou. Como bem percebeu Farret, “na divisão do trabalho entre as áreas rurais
e urbanas, às primeiras correspondeu o lócus da produção, enquanto que, às últimas teve assento
a burocracia. Os pólos regionais desempenharam o papel de locus da intermediação e distribuição
mercantil (a esfera da circulação) e da administração pública” (FARRET, 1985: 21).
Observando-se as décadas transcorridas, pode-se constar que, autonomamente, a agricultura recebeu os estímulos do mercado e ocupou terras novas e/ou desenvolveu territórios já
agricultados; as cidades pequenas não ganharam impulsos do “desenvolvimento” tal como
apregoado pelos “experts” e as cidades com potencial de crescimento, Goiânia e Brasília,
incharam para além das expectativas. Nada que sustente a teoria dos “pólos de desenvolvimento” para o caso de ambas, pois o crescimento delas foi endógeno, o que fez crescer as
respectivas malhas urbanas com o surgimento de favelas e ocupações ilegais de terras públicas, sobretudo no caso da Capital federal14, como se verá.
De “cidade planejada” à metrópole polinucleada
Em 1985, havíamos cunhado para Brasília o epíteto de “Metrópole Terciária”, sob a
constatação do status de grande cidade assumido pela Capital. A base para que a denominássemos de metrópole estava no fato de que ela possuía:
a) Significativa massa populacional. Em 1985, estimava-se que havia atingido a casa dos
1.500.000 habitantes, o que lhe conferia porte metropolitano, equiparando-se às demais
metrópoles brasileiras;15
b) Complexidade funcional por ser sede do governo federal e por ter atraído considerável
número de empresas comerciais, de serviços e algumas indústrias;
c) Capacidade de interagir com cidades de um largo território à sua volta, delas atraindo populações em movimentos de commuting, isto é, trabalhadores que se deslocam diariamente da
periferia para a Capital e vice-versa.
O que havia sido idealizado para a Capital era um plano piloto “fechado”, no qual se
estipulara uma população de 500 mil habitantes quando inteiramente ocupado. Esse patamar
populacional tinha sua razão de ser na função de Capital federal. Em sua apreciação, um dos
membros do júri, Sir William Holford, assim justificou o teto populacional: “Não creio que se
possa projetar uma cidade-capital para ser aumentada indefinidamente. Se o centro, o sistema de
tráfego, os parques e os edifícios públicos são adequados para uma população eventual de meio
milhão a 600.000 pessoas, serão inadequados para uma população de um milhão ou um milhão e
meio. Portanto, é preciso haver alguma limitação do crescimento da cidade-mãe, uma vez
alcançado o tamanho mais aconselhável; e os desenvolvimentos posteriores, especialmente dos
14
A respeito, ver artigo de Malagutti, Cecília Juno “Loteamentos clandestinos no Distrito Federal:
Caminhos alternativos para a sua aceitação”. In Paviani, Aldo (org.) Brasília – Gestão Urbana:
Conflitos e Cidadania.Brasília, Ed. UnB, 1999.
15
Ver “A metrópole terciária”, In Paviani, Aldo (org.) Brasília Ideologia e ... (op. cit., p.57).
Brasília no contexto local e regional: urbanização e crise
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centros agrícolas e industriais, devem ser planejados, a fim de que eles atuem como cidades
satélites e de apoio dentro da região” (grifos nossos).16
É notório que governos e empresas têm apostado no crescimento da “cidade-mãe” e
dos núcleos que, no passado, recebiam a denominação de “cidades-satélites”. Em raras ocasiões se tentou agir para que houvesse “alguma limitação do crescimento da cidade-mãe”.
É justamente a questão das cidades-satélites, nesse início de século XXI, que deve
reter a atenção de todos os que se preocupam com:
1 – o crescimento populacional por migrações ou crescimento vegetativo;
2 – a expansão urbana pela via de variados tipos de loteamentos, privados e públicos;
3 – o crescente desemprego e lacunas de trabalho.
Essas problemáticas possuem impactos mais pronunciados nas cidades-satélites, afetando em menor grau o Plano Piloto de Brasília. Assim, enquanto o Plano Piloto, a cada censo,
tem população menor, as cidades-satélites incham. Essa inchação obriga o governo do DF a
abrir novos aglomerados como Samambaia, Santa Maria, Recanto das Emas e outros que tiveram seus perímetros ampliados como Ceilândia e Riacho Fundo, por exemplo. Para amparar
essa constatação, basta verificar que no início dos anos 90 Brasília possuía 9 regiões administrativas, enquanto em fins de 2000 elas já eram 19. A população que, no início da década
passada era de 1.515.889 habitantes17 somavam 2.043.169 habitantes18, no início desta década.
Não se tem estatísticas confiáveis sobre qual o montante de imigração nesse total populacional.
Também não há estatísticas de quantos dos que aqui residiam na década passada voltaram a
migrar para outras regiões do país. Mas é certo que, cada vez com maior intensidade, a população cresce por incremento vegetativo.
Assim, boa parte da população que irá ser fixada nos novos “assentamentos” é
de nascidos no DF e que procuram um lugar para morar e trabalhar. O déficit habitacional
também cresce pela demanda endógena ou então, engrossam os que procuram os loteamentos
em cidades goianas, próximas ao limite interestadual. Em pesquisas anteriores nas cidades ou
loteamentos goianos, ficou clara a ligação entre os moradores dessas localidades e o DF em termos
de trabalho, compras e/ou procura de bens e serviços como escolas, hospitais, etc. Não há,
portanto, respeito aos limites entre o DF e Goiás para essa população “flutuante”, que pela
manhã migra para Brasília e pela tarde/noite retorna ao local de residência em Goiás. Com esses
movimentos pendulares, a população faz crescer a necessidade de se pensar em ente metropolitano
para a gestão dos serviços comuns e a organização sócio-espacial. As relações e inter-relações
estão caracterizadas tal como as de outras metrópoles, cujos núcleos possuem cidades-satélites à
sua volta, com alto sentido complementar. Já indicamos a criação de uma Área Metropolitana de
Brasília (AMB) com a demarcação de 9 cidades do estado de Goiás. Dessa forma, as
cidades goianas teriam status de cidades-satélites no mesmo patamar das do DF.19
A propósito de cidades-satélites e de suas relações com a “cidade-mãe”, a metrópole, convém referir um dado, já previsto quando do julgamento dos projetos para a construção de
“Impressões de Sir William Holford sobre o Projeto Lúcio Costa para Brasília”, In IBAM Leituras
de ..., op. cit, p. 361.
17
- IBGE. Censo Demográfico 1991. p. 32.
18
- IBGE. Censo Demográfico 2000. “Dados Preliminares” (mimeo).
16
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Brasília. Em suas já referidas “Impressões” sobre o projeto de Lúcio Costa para Brasília, o
arquiteto William Holford delimitava que “os aspectos essenciais de um satélite são: 1) que
seja auto-suficiente para fins ordinários da vida, trabalho e recreação; e 2) que seja ligado por
rápidas rodovias e ferrovias com a cidade-mãe para as funções especiais que somente uma
grande cidade pode oferecer, como: universidade, teatro de ópera, comemorações e cerimônias
públicas, departamentos governamentais, etc.” Conclui este conceito de satélite com uma consideração de cunho espacial: “(...) a região deve ser claramente articulada, não se permitindo que
espalhe disformemente em todas as direções” (grifos nossos).20 Essas características de
cidade-satélite, auto-suficiência e integração metropolitana, justificam-se para um controle do
território em termos de crescimento para evitar um crescimento “desordenado”. Em Brasília
nada disso aconteceu.
No caso da futura AMB, se detecta de antemão que tanto no território do DF quanto
no de Goiás há baixo coeficiente de controle do crescimento. Na periferia goiana, a iniciativa
privada repetiu o polinucleamento acontecido em Brasília, com a pulverização de núcleos
como Valparaízo I e II, Cidade Ocidental, Novo Gama, Pedregal e outros, num verdadeiro
crescimento espalhado “disformemente em todas as direções”. No caso de Brasília, seus núcleos satélites foram deliberadamente assentados no território, a começar com Taguatinga,
em 1958, Gama e Sobradinho (no início dos anos 60) e outros. Tanto num caso como no outro,
não se poderá falar em “planejamento urbano” o puro assentar de populações em terrenos mal
servidos de infra-estrutura, a partir de plantas urbanas em que apenas se traçaram as vias de
circulação para delimitar as áreas residenciais, a de serviços e/ou de comércio e indústria.
Ademais, reforçando a idéia de Holford sobre cidades-satélites convém referir o que a
comunidade geográfica conceituou como tal: “subúrbio ou centro urbano que atingiu certo grau,
relativamente elevado, de autonomia em relação à dominância metropolitana”.21 Mais uma vez
fica patente que nem as satélites goianas nem as do DF possuem autonomia para fins “ordinários
da vida urbana”, tais como trabalho e recreação, prescritos por Sir Holford. Ao contrário, na
grande mancha urbana que se formou a partir de meados dos anos 70, o que mais se observa é a
dominância metropolitana do núcleo, isto é, do Plano Piloto de Brasília. Nele estão os melhores
postos de trabalho e num volume superior ao que se poderia prever no projeto inicial.
Aliás, tanto a baixa autonomia das satélites, quanto a elevada polarização do Plano Piloto,
acrescido da mancha disformemente espalhada no território, permitem afirmar que, de há muito,
Brasília deixou de ser planejada, sobretudo quando o planejamento determina grande controle do
espaço e a inclusão de traçado físico, mais planejamento sócio-espacial. Como o controle do
território se subordina às pressões dos “sem teto” (e mesmo de aproveitadores) com predominância de preocupações físico-espaciais, a conclusão a que se chega é a de que o planejamento
urbano cedeu lugar à improvisações e à pressa na abertura de novos espaços urbanos para fins
habitacionais. Com as práticas reiteradas de novos assentamentos, que incham a cada leva de
novos habitantes e com a cessão de um terreno para cada família, é de se esperar que Brasília não
deixe tão cedo de ser uma Capital polinucleada, estando os diversos núcleos disseminados no
território do DF e fora dele.
19
Ver de Paviani, Aldo. “Gestão do território com exclusão socioespacial”, In PAVIANI, Aldo (org.)
Brasília – Gestão Urbana: Conflitos e Cidadania. Brasília, Ed. UnB, 1999.
20
- Ver Nota 16 : “Impressões”, de Sir William Holford.
21
Verbete 228 do Vocabulário de Geografia Urbana. Rio de Janeiro, Comissão de Geografia do Instituto
Panamericano de Geografia e História, 1971.
Brasília no contexto local e regional: urbanização e crise
71
O papel do Plano Piloto
O núcleo central da Capital, durante estes 41 anos de existência, concentrou bens e
serviços, pois nele estão as instituições públicas e privadas necessárias ao desempenho de suas
funções precípuas. Não houve preocupação em disseminar atividades no território tal como se
procedeu com a população. Com isso, o Plano Piloto detém cerca de 70% dos postos de trabalho mais bem remunerados, abrigando menos do que 1/5 da população economicamente ativa
(PEA). A não ser Taguatinga e Núcleo Bandeirante, com maior poder de atração para atividades, sobretudo comerciais, as demais cidades do DF têm como grande função a residencial.
Longe estão inclusive de se tornarem verdadeiras cidades-satélites como demonstram os conceitos acima referidos.
É desejável que o Plano Piloto de Brasília esteja equipado convenientemente para o
desempenho de suas funções político-administrativas. Enquanto que as satélites deveriam
abrigar atividades ancilares àquelas da Capital – terciárias e quaternárias – para irem se tornando “relativamente autônomas” em relação ao Plano Piloto, reduzindo a dependência funcional em relação ao centro. Uma vantagem decorrente será a retenção da força de trabalho nas
localidades de residência dos trabalhadores, evitando-se, com isso, o volume do commuting
sobre os meios de transporte e mesmo as vias de circulação do DF. Além disso, os que migram
diariamente casa/trabalho reduziriam os custos de deslocamento e o cansaço físico/mental que
a mobilidade de grande distância ocasiona.
Todavia, não há políticas públicas sinalizando no sentido da descentralização de atividades e dos postos de trabalho no DF. Ao contrário, algumas ações recentes denotam uma
opção clara para a concentração de atividades, empregos e equipamento no Plano Piloto de
Brasília. O melhor exemplo é o do trem metropolitano, justamente construído como uma gigantesca forquilha com os ramos vindos de Samambaia e Ceilândia em direção ao tronco que
se dirige ao Plano Piloto. Como esse é um equipamento fixo, que dependerá de continuado uso
para se tornar viável, a conclusão é óbvia: o Plano Piloto deverá polarizar e afunilar todos os
fluxos da periferia-centro pela manhã e, em sentido centrífugo, pelo fim da tarde, início da
noite. Conclusão: essas ações são concentradoras.
Igualmente é obvio constatar-se que a concentração de equipamento e de trabalho
no Plano Piloto tem outro desdobramento, de cunho sócio-espacial. A organização do
território, de forma concentrada, vai consolidar um modelo de povoamento com exclusão e
apartação espacial e social: o centro, bem equipado e concentrando os melhores postos de
trabalho, está consolidando um modelo de metrópole com a elite ocupando os espaços mais
nobres do Plano e os assalariados e trabalhadores residindo nas cidades da periferia. Com
essa organização sócio-espacial não se poderá falar mais em “cidade planejada” e outros
eufemismos que escondem a injustiça social na cidade. Como a área de influência mais
próxima não inclui apenas cidades do DF, mas também as do Entorno, é de se esperar que
esteja em curso a formação de uma grande metrópole. Essa grande cidade seria em tudo
assemelhada às demais grandes cidades brasileiras como Salvador, São Paulo, Rio de Janeiro,
Porto Alegre e outras: bem equipados núcleos centrais e periferias detentoras de bairros
pobres, favelas, desequipados e depositórios de violência e criminalidade com crescentes
tensões sociais.
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Descentralização e combate à pobreza
O que foi descrito acima longe está de ser fruto de uma visão pessimista ou de uma
antevisão pejorativa do futuro. Ao contrário, é o mundo concreto e real, tal como foi esmeradamente materializado no território. Como não se deseja ver construída uma Geografia-semsaída, quais seriam as propostas? Que ações efetivas poderiam reverter o quadro esboçado?
Haveria vantagens em mudar o modelo polinucleado? Como distribuir a riqueza acumulada
socialmente?
Para responder essas questões, deve-se considerar que qualquer medida ou projeto
para Brasília deverá passar, necessariamente, por programas de combate à pobreza, a fome e a
desnutrição. Esses programas podem ser iniciados com a abertura de novos postos de trabalho
e a manutenção dos que estejam ocupados. Portanto, combate-se a pobreza com oferta de
trabalho e com ações que evitem a eliminação de postos de trabalho existentes. Em outras
palavras, devem os governantes estancar o surgimento de “lacunas de trabalho”. Como definimos anteriormente22, “a lacuna de trabalho tem associação estreita com os mecanismos de
subemprego e/ou desemprego, deles divergindo no aspecto de que, enquanto os subempregados
ou desempregados têm (ou tiveram) alguma atividade de onde retiram (ou retiraram) seu sustento, naquela não se pode falar em atividade de qualquer tipo para o ativo em disponibilidade.
Ou, dito de outra forma, a lacuna de trabalho é um componente irmão gêmeo do desemprego
(ou subemprego), mas de natureza diversa. O desemprego poderá ser manifestação de ‘ajustes’
conjunturais no interior do aparelho produtivo, que mantém ‘reservas de mão-de-obra’ ou ‘exército de reserva’; as lacunas de trabalho se constituiriam na atividade-não-gerada ou nos postos
de trabalho que não aconteceram, ou mesmo, que foram subtraídos do mercado de trabalho”
(PAVIANI, 1991: 116). Assim, caberia aos governos do DF, de Goiás e de Minas Gerais e governo
federal, bem como ao empresariado local e regional, encetarem esforços para que novas atividades
surjam no interior da Capital ou no chamado Entorno goiano. Há um mercado local e regional de
boa envergadura para sustentar atividades novas e manter as existentes, de tal forma que não se
ultrapasse os 200 mil desempregados23, como a crise do setor produtivo e a conjuntura adversa
fazem prever.
Por sua vez, a descentralização da cidade também é proposta que se encampa vis-à-vis
ao polinucleamento urbano. Essa descentralização requer a criação de um ente metropolitano, um
“quarto poder”, a Área Metropolitana de Brasília (AMB). O “poder metropolitano” teria um
território e complexidade funcional menores do que a Região Integrada de Desenvolvimento
Econômico (RIDE), inclusive para tornar exeqüíveis as ações administrativas e de políticas
públicas. A entidade gestora da AMB centralizaria, com poupança de recursos financeiros, a
implantação de infra-estrutura física e social em toda a metrópole. Com isso, a água tratada, a
eletricidade, o abastecimento de produtos alimentícios (em feiras e centrais de abastecimento), a
coleta de lixo urbano, a limpeza pública, a implantação de escolas, de centros de saúde e outros.
Com essa medida, seriam aliviados os encargos do GDF com relação aos “serviços de uso
22
- “A construção injusta do espaço urbano”, In Paviani, A. (org.) A Conquista da Cidade, Movimentos
Populares em Brasília. Brasília, Ed. UnB, 1991.
23
- A alta taxa de desemprego, algo ao redor a 21%, em setembro de 2001, poderá ser ultrapassada se
continuarem as crises de energia (estamos sob a ameaça do “apagão”), do dólar americano e do
Mercosul (devido, sobretudo, à crise Argentina, que contaminará todo o bloco do Cone Sul).
Brasília no contexto local e regional: urbanização e crise
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comum” para os quais se voltariam os holofotes da AMB. Como já aventamos anteriormente “na
dependência da escala, vão se disponibilizar os recursos de diferentes naturezas e magnitudes
para a GT (Gestão do Território). Assim, se designarmos uma AMB, a GT se dará em um espaço já
organizado com funcionalidades, interesses e conexões políticas, econômicas e administrativas. A GT nesse
espaço deverá trabalhar com o futuro, com o que ainda for “organizável” e previsível. Haverá contradições,
controvérsias e conflitos para estabelecer o novo formato que a GT requererá, ou, como se salientou
anteriormente, a emergência de um quarto poder, a instância metropolitana”. 24
A administração unificada possibilitaria igualmente a gestão de fundos para combater
a pobreza, tanto quanto de incentivos para a implantação de novas empresas em pontos estratégicos da AMB. Os incentivos e investimentos deveriam ser canalizados para aquelas atividades não-poupadoras de mão-de-obra e que se destinassem à exploração de matérias primas do
Centro-Oeste ou que aproveitassem os setores terciário e quaternário do DF. Essas atividades
teriam um efeito cascata sobre toda a população economicamente ativa (PEA), atualmente em
disponibilidade, com o que seria reduzida a pressão dos desempregados e subocupados. A
geração de novos postos de trabalho teria efeitos positivos sobre a pretendida redução da pobreza e da injustiça social.
Problemática ambiental: questões para o futuro
De uma década para nossos dias, ampliam-se as preocupações com a problemática
ambiental urbana. Nesse período, foram desencadeadas algumas ações governamentais, que
permanecem na agenda como o combate às erosões urbanas e a despoluição do lago Paranoá.
Foram investidos alguns milhões de reais para a dragagem do lago, que apresentava forte
assoreamento em certos pontos e, na atualidade, procede-se à limpeza de suas margens, após o
rebaixamento da lâmina d’água.
Mas, como há outras questões ambientais, pergunta-se: por quê tanta preocupação com
a saúde das águas do lago? Sendo ele um dos mais importantes cartões postais da cidade, servirá
para atrair turistas, pescadores e velejadores? Ou o governo quer evitar a eutrofização(?) das
águas e a proliferação de algas no lago, como aconteceu há 15 anos, quando o mau cheiro proveniente do lago atormentou os habitantes dos bairros do lago Sul e Norte?
Outras questões são levantadas para pesquisas futuras como a qualidade da água
potável servida à população do DF. Qual o comprometimento por poluição do lençol freático e
das nascentes dos córregos e riachos tributários dos reservatórios utilizados para o abastecimento
urbano? Qual a situação das barragens de Santa Maria e Santo Antonio do Descoberto, responsáveis por quase a totalidade da água tratada de Brasília? A agricultura praticada com defensivos agrícolas às margens desses reservatórios mereceria investigação mais acurada? Em termos de
poluição ambiental com lixo urbano, esgoto a céu aberto e uso de pesticidas, qual a situação das
terras agricultáveis? Qual o grau de impregnação no solo por agrotóxicos? Seria este problema
irreversível ou há tecnologias capazes de atenuar esse sério problema ambiental?
Ligada à expansão da mancha urbana, surge outra problemática, qual seja a do deterioro, esterilização e impermeabilização das terras por assentamentos urbanos, pavimentação
24
- Ver, de nossa autoria, “Gestão do território com exclusão ....” op. cit. Nota 18.
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asfáltica e implantação de infra-estruturas físicas. Estes aspectos, desde os anos 80, têm provocado enxurradas, enchentes e erosões das terras em diversos pontos do DF, sobretudo em cidadessatélites. Nestas cidades, qual o comprometimento da qualidade de vida em função das erosões e
enxurradas? E a devastação do Cerrado igualmente compromete a qualidade de vida das populações
pobres e periferizadas? Ainda nesse aspecto, que medidas urgentes deverão ser tomadas para
recompor o Cerrado e a cobertura vegetal, tão agredido pelo avanço da urbanização? Em que
pontos do DF, as matas ciliares e nascentes se encontram definitivamente comprometidas por
invasões e parcelamentos ilegais de terras por parte de especuladores imobiliários? Por fim, mas
não menos importante, em que medida a urbanização desenfreada irá trazer problemas futuros
para a qualidade do ar e do cerrado, possibilitando períodos mais longos de secura e elevação da
temperatura em razão da massa edificada?
Essas e muitas outras questões serão levantadas nos próximos anos ao serem desenvolvidas pesquisas no bojo do projeto para o qual esta obra é uma etapa inicial. Desta forma, as
pesquisas futuras apontam para a análise ambiental em novas bases e vinculada à ampliação
da qualidade de vida urbana no DF. E mais: que essa qualidade de vida, hoje mais presente no
Plano Piloto de Brasília, possa sr irradiada para os demais núcleos urbanos, num esforço para
democratizar o acesso ao bem estar urbano existente no centro da Capital. Mais ainda: que
ações governamentais concretas, demandadas pela população, possam estancar a dilapidação
das terras públicas por pressão do povoamento e que estas terras sejam preservadas como
estoque estratégico para uso das gerações futuras.
Finalmente, que a população, governo e empresas tenham sensibilidade e determinação para que a questão ambiental seja posta num patamar compatível com o status de “Cidade
Patrimônio Cultural da Humanidade”.
À guisa de conclusão
Para superar a constante crise em que está imersa a urbanização do DF e de sua região,
sendo reflexo da conjuntura e modelo nacional, faz-se necessário apontar propostas e soluções
alternativas.
Em primeiro lugar, estabelecer um “horizonte permanente de gestão do DF”25, de tal
modo que as ações governamentais sigam um padrão compreensivo, com visão de totalidade,
inclusive com relação à sua área metropolitana. Na gestão compreensiva, não haveria ações
pontuais, incrementais, isto é, não se atenderiam grupos esparsos no território em detrimento de
outros. A exclusão sócio-espacial, por antidemocrática seria evitada para não erodir a taxa de
cidadania dos construtores urbanos. Um exemplo concreto é o das ações para “erradicação de
invasões”, tão usuais em Brasília. O favelado não seria “erradicado” nem seria rotulado de “invasor”
pois, como cidadão, tem direito ao acesso à terra. Essa terra, não seria doada, mas conquistada,
justamente para que não fosse utilizada como “mercadoria de troca”. Como afirmamos em outro
trabalho, “em países capitalistas, a terra tem sido utilizada como fator de produção, tanto no
25
Da forma como foi definido no artigo de nossa autoria “A realidade da metrópole: mudança ou
transformação na cidade”, In PAVIANI, Aldo (org.) Brasília: Moradia e Exclusão. Brasília, Ed. UnB,
1996, p. 227.
Brasília no contexto local e regional: urbanização e crise
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ambiente urbano como no agrário. Todavia, nesses mesmos países, o uso da terra como mercadoria,
favorece o surgimento e a manutenção de resultados perversos, como a exclusão dos empobrecidos
e a segregação socioespacial de consideráveis contingentes populacionais. Com isso, os que não
têm acesso à terra são periferizados social e geograficamente”.26 Essa prática política, que ressalta
a cidadania, se tornaria uma opção para a Capital, para toda sua área de influência próxima,
servindo como modelo para o país.
No plano local, abandonar o modelo polinucleado de urbanização, bem como o de
cidades horizontalizadas, isto é, “um lote, uma família, uma família, um lote”, sobretudo quando
da “erradicação” de favelas. É o momento de se pensar em adensamentos com habitações
coletivas para evitar a espacialização de infra-estruturas e, mesmo, para se poupar um bem que
poderá a escassear: as terras para fins habitacionais. Há que se respeitar as terras não ocupadas
para usos futuros. A “verticalização” já se torna oportuna em cidades como Ceilândia e
Samambaia (ou mesmo Santa Maria e Recanto das Emas). O uso extensivo de terras públicas,
com espaços ociosos, poderá se constituir em motivo para cobiça dos especuladores imobiliários,
com mudança de usos, “doações” e outras práticas danosas ao patrimônio público.
Ainda no plano local, rever a prática de “ajustes” ao modelo original, uma vez que a
cidade foi profundamente modificada em sua estrutura e operacionalidade. E, ao rever essas
práticas, dar prioridade à preservação ambiental,27 com sentido de totalidade, isto é, o ambiente
que inclua a natureza primeira (o ecossistema cerrado, vegetação, águas superficiais e subterrâneas,
etc), a natureza segunda, nela incluídas as modificações (e seus impactos) com a presença extensiva
de conjuntos urbanos e suas infra-estruturas. Nessa segunda natureza incluir as questões da
segregação sócio-espacial e a da má distribuição da riqueza gerada socialmente. Então se pergunta:
como preservar um ambiente tão distorcido em relação ao plano original, socialmente mais justo
e equânime? Muito se propala a respeito da preservação ambiental, mas há um esquecimento de
que essa preservação somente interessa se tiver como base a qualidade de vida dos brasilienses. E
como ampliar a qualidade de vida, preservando o patrimônio urbanístico, mas omitindo os urbanitas
beneficiários últimos de qualquer ambiente modificado em suas funções e materialidades?
Em suma: o que se deseja, inclusive com o uso de instrumentos legais, é enfrentar os
desafios que o crescimento da cidade irá nos antepor. Esse crescimento não deverá ser contraposto apenas à preservação, mas a qual preservação estamos referindo. Se nela estiveremincluídos
os construtores da cidade, então o crescimento ensejará um conjunto de medidas que preservem
o ambiente em sua integralidade, o homem nele incluído. O que se quer é o crescimento com
preservação, mas sem apartação sócio-espacial. Essa visão não apenas irá enfrentar os desafios de
mudanças, mas sim as transformações profundas no modo de produzir a cidade e de como a
sociedade deseja distribuir os bens e serviços postos à disposição de todos, democraticamente.
Seria isto utópico?
26
27
Ver, de nossa autoria, “A realidade da metrópole... op. cit.
Sobre a questão ambiental, ver a coletânea Brasília: Controvérsias Ambientais. Ed. UnB (no prelo).
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