A platéia da abertura da Mostra do Filme Livre e Lúcia Rocha (no detalhe): encontro do cinema novíssimo
O burburinho na porta do Centro Cultural Banco do Brasil era anormal para uma segunda-feira, dia em
que o espaço não abre ao público. Lá dentro, na semana passada, 400 pessoas, a maior parte em torno dos 20
e 30 anos, ocuparam o foyer para assistir à cerimônia de inauguração da quarta Mostra do Filme Livre, que,
até domingo, vai exibir 250 títulos realizados por diretores de quem você provavelmente nunca ouviu falar.
A mostra é uma das pontas vistosas de um fenômeno. Uma jovem multidão no Rio está realizando filmes,
curtas na enorme maioria, incentivada por acontecimentos como a retomada do cinema brasileiro e a
propagação da tecnologia digital, mais barata e acessível. E vem exibindo essa produção, às centenas, em
eventos como a Mostra do Filme Livre, A Organização, o Cachaça Cinema Clube, o Atacadão de Filmes, o
festival Curta Cinema e outros mais. Todos com impressionante, e festiva, freqüência de público (veja
quadro abaixo).
A nova geração em números
- A sessão de curtas do Cachaça Cinema Clube é campeã de audiência do Odeon BR. Na última quartafeira, a sala de 600 lugares recebeu 633 pagantes. Outros oitenta ficaram de fora
- Em 2002, o Festival Internacional de Curtas do Rio de Janeiro – Curta Cinema passou a aceitar produções
feitas com tecnologia digital. Confira a evolução dos números: 112 (2001, só película), 297 (2002), 444
(2003) e 777 (2004)
- Desde a inauguração, em 2002, o site Porta Curtas já contabilizou mais de 2 milhões de exibições de
filmes pela internet
- Desde 2000, o Festival do Rio vem recebendo em média 150 curtas nacionais por edição. Todos inéditos,
já que a produção não aceita filmes que tenham passado por outros festivais
- O curso de cinema da UFF é um dos mais procurados no vestibular desde 1999. No ano passado, a relação
foi de 30 candidatos por vaga
Saco de pipoca na mão, Lúcia Rocha, 86 anos, mãe do cineasta Glauber Rocha, chamava atenção em
meio à garotada no CCBB. "Recebi o convite e vim. Adoro curta-metragem", explica, antes de matar a
charada: "Essa garotada é maravilhosa. Eles são o cinema novíssimo". O movimento da turma que encanta
dona Lúcia ainda está longe do prestigiado cinema novo, encabeçado por Glauber, mas já faz barulho. A
Mostra do Filme Livre debutou em 2002 exibindo trinta filmes de diretores convidados. Neste ano, ganhou
espaço no CCBB – o Teatro II, além das tradicionais salas de cinema e vídeo – e recebeu inscrições de 650
filmes, 150 deles selecionados para as mostras competitivas. A programação inclui outros 100 títulos
espalhados por mostras paralelas. Uma delas dedicada à Organização.
O evento chamado A Organização é um bom exemplo dessa febre audiovisual. Qualquer um, disposto a
fazer um filme com três a quinze minutos, sobre qualquer assunto e em qualquer formato, pode se inscrever
para estrear sua obra no dia em que A Organização ocupa o Odeon BR. Para os mais animados, um
lembrete: quem se inscreve mas não entrega o filme a tempo torna-se alvo de um "filme difamatório", obra
ficcional dedicada a caluniar de maneira hilariante o pobre coitado. Além dos filmes, a farra inclui shows de
mágica e um baile, na Cinelândia, com a Orquestra do Bola Preta. Os espectadores que ficam até o fim
ganham, na saída, 1 real. As sessões, anuais, começaram em 2002 e já levaram ao Odeon 180 filmes. É uma
farra. O público aplaude, vaia e se escangalha de rir dos filmes difamatórios. "Tem gente que entra no
cinema pela primeira vez na vida só para ganhar 1 real. E tem gente que, obrigada pelo termo de
compromisso que assinou e com medo do filme difamatório, faz cinema pela primeira vez", diz o
coordenador Samir Abujamra. Como na Mostra do Filme Livre, as obras inscritas na Organização não têm
unidade estética. Nas sessões, o público já encontrou do criativo Alba, de Mauro Heitor, historinha inspirada
nos catecismos de Carlos Zéfiro, a Cosmocápsula, de César Oiticica Filho, com imagens do artista plástico
Hélio Oiticica e do diretor de cinema Neville D'Almeida divagando na Nova York de 1973.
Sessão da Organização em 2004: na saída, 1 real para cada espectador
Samir, 34 anos, além de ir buscar no banco moedas de 1 real para pagar aos espectadores – foram 2.400
reais no ano passado –, produziu filmes para as três edições da Organização. O último, Tapirus Terrestris,
um seriíssimo tratado sobre antas com narração do ator Antonio Abujamra, seu tio, estará na Mostra do
Filme Livre. "Os espaços de exibição estão surgindo como resultado da busca dos realizadores por lugares
para mostrar seus filmes", diz Lis Kogan. Foi assim que ela e três colegas da Faculdade de Cinema da UFF,
Karen Barros, João Mors e Débora Butruce, criaram o Cachaça Cinema Clube. "Eu e o João fizemos um
filme, Bichos Urbanos, e resolvemos lançá-lo em grande estilo no Odeon. A Lis foi falar com o pessoal do
Grupo Estação e eles sugeriram que a gente fizesse a festa por lá todo mês", conta Karen. O projeto de
sessões de curtas seguidas por festas regadas a branquinha começou em 2002 e, hoje, é um dos grandes
sucessos de público do Odeon. "Como já se escreveu sobre a geração Paissandu e a geração Estação, no
futuro vão estudar esse fenômeno que é a geração Cachaça Cinema Clube", prevê Paulo Halm, roteirista de
filmes como Pequeno Dicionário Amoroso e A Guerra de Canudos. "O Cachaça é o ponto onde se
encontram jovens realizadores, aspirantes a realizador, estudantes de cinema, cinéfilos em geral, em torno do
curta, o tipo de cinema que eles querem fazer", diz.
João Mors, Lis Kogan, Débora Butruce e Karen Barros: sucesso no Odeon
Os jovens cineastas também descobriram o espaço virtual para mostrar suas obras. Júlio Worcman tem
dez de seus filmes no acervo do site Porta Curtas. Ele é o criador desse endereço na internet dedicado a
informações sobre curtas, além de catalogação e exibição de filmes. O visitante encontra, hoje, 230 títulos,
55 deles produzidos no Rio, disponíveis para exibição na telinha do computador. O resultado é um grande
sucesso. Desde que começou, em 2002, o Porta Curtas já contabilizou mais de 2 milhões de exibições de
filmes pela internet.
Júlio Worcman: cinema na internet
Sem a estrutura, e o patrocínio, do Porta Curtas, o Curta o Curta oferece cardápio menor na internet.
Criado e administrado por Guilherme Whitaker, que também coordena a Mostra do Filme Livre, o site
existe há cinco anos, oferece notícias para realizadores e recebe em média 8.000 visitantes por mês. A lista
de curtas inclui curiosidades que estão na programação da Mostra, como Automúsica, de Christian Caselli.
Espécie de manifesto dessa novíssima geração de realizadores, o filme dura quatro minutos. Christian sentase diante de uma câmera. Imita sons de baixo e instrumentos de sopro com a boca. Em seguida, batuca no
corpo. Depois, o filme vira um clipe musical composto dos sons que gravou em separado. "Não importa o
formato nem a maneira como você faz. Qualquer filme da mostra é melhor do que Olga", exagera Christian.
Guilherme Whitaker reforça o lado panfletário dos novos realizadores. "Na Mostra, como no site, além
de exibir os filmes, temos um lado político, que é o de discutir maneiras de fazer cinema diferentes da
existente hoje – o cinemão com dinheiro de renúncia fiscal", analisa. Guilherme, 35 anos, formado em
jornalismo, é um típico louco por cinema. Em 1995, foi morar nos Estados Unidos para estudar inglês.
Juntou dinheiro entregando pizzas e jornais para bancar cursos de cinema em San Diego. "O curta para mim
é projeto de vida, tem o formato de hoje, ninguém tem tempo a perder", diz. Na Mostra do Filme Livre ele
comparece com modestos dezoito minutos, a soma dos tempos de duração dos curtas 1986 e Nozes.
O diretor: Guilherme Whitaker. O filme: NOZES (2004)
Filme experimental, feito em super 8. Em oito minutos, o diretor exibe imagens da natureza e outras em que predominam paisagens
urbanas transformadas pela tecnologia. "É uma viagem do caos ao caôs, um filme bem esquisitinho", define Guilherme.
Sem passagem por cursos de cinema, o músico Nilson Primitivo, 38 anos, poderia parecer um estranho
no ninho da nova geração de cineastas cariocas. Não é. Realizou seus sete filmes (mais dois incompletos) de
2000 para cá e é figura reconhecida e esperada nos eventos de cinema independente da cidade.
Diferentemente da turma que aderiu às facilidades da tecnologia digital, ele usa uma velha câmera de 16
milímetros. "Daquelas de corda, que dão um certo defeito na imagem, mas eu gosto, dá personalidade",
explica. Volta e meia, ele manda o filme para o laboratório e ligam dizendo que a imagem está com
problemas. "O Glauber teve o mesmo problema quando filmou Deus e o Diabo na década de 60, e os
laboratórios continuam insistindo na imagem pasteurizada", reclama. O estilo peculiar de Nilson Primitivo
pode ser conferido em O Craque do Futuro, atração da Mostra do Filme Livre. Nilson acredita que a atual
geração será fundamental para o cinema brasileiro. "Está tudo muito limpinho. Precisamos do defeito."
O diretor: Nilson Primitivo. O filme: O CRAQUE DO FUTURO (2004)
Homenagem a um curta homônimo de que Nilson participou quando criança, a obra foi filmada obedecendo a uma história e montada
para contar outra muito diferente.
O grosso do movimento informal do cinema novíssimo aposta no suporte novo, e mais barato, da
tecnologia digital. "Nos últimos anos estamos fazendo cinema de guerrilha. Não precisamos mais da
película, o fetiche do suporte acabou. Somos todos escultores, mas não precisamos mais de ouro e bronze,
podemos trabalhar com barro, ferro, material que se acha no lixo", diz Rodrigo Modenesi, que estudou
cinema na Sorbonne, em Paris, e dirigiu o documentário Cinema da Luz Vermelha, sobre o cineasta Rogério
Sganzerla, atração da Mostra do Filme Livre. Rodrigo é um dos articuladores do Atacadão de Filmes, outro
front de exibição, baseado no Circo Voador. O cinema, tal como o conhecemos desde o século passado, não
vai tão mal assim e anda cada vez mais democrático. Subiu o Morro do Vidigal e desceu de lá com uma fita
premiada: Mina de Fé, dirigida por Luciana Bezerra. "Quando comecei a fazer o filme pensei: será que vou
ficar com o rolo pegando poeira na estante?", lembra Luciana, cria do Núcleo de Audiovisual do grupo Nós
do Morro. Mina de Fé foi premiado no Festival de Brasília e no Curta Cinema no ano passado, é o único
representante brasileiro no maior mercado de curtas do mundo, o Festival de Clermont-Ferrand 2005, na
França, e estará em cartaz nesta semana no projeto Espaço do Curta, no Espaço Unibanco 2.
A diretora: Luciana Bezerra. O filme: MINA DE FÉ (2004)
Premiado em festivais no Rio e em Brasília, é o primeiro trabalho como roteiro e direção de Luciana, do Núcleo Audiovisual do grupo
Nós do Morro. O filme conta a história de Silvana e seu complicado caso de amor com o chefe do tráfico do morro onde mora.
A diretora: Ana Rieper. O filme: NA VEIA DO RIO (2002)
Gravado com câmara digital, o documentário retrata o cotidiano da população ribeirinha ao longo de 300 quilômetros do Rio São
Francisco. Ana percorreu as locações de barco e, depois, refez o trajeto para exibir o filme nas vilas.
No ano passado, Ana Rieper, 29 anos, inscreveu o projeto do filme Mataram Meu Gato em um concurso
da Petrobras para patrocínio de curtas em 35 milímetros. "Entrei como pessoa física, desconhecida, e deu
certo", diz. O filme, dirigido por Ana e Maria José Freire, vai contar a história da escola de samba Gato de
Bonsucesso, atualmente no Grupo C, sucessora do bloco Mataram Meu Gato, formado em 1974 por
moradores da comunidade de Nova Holanda. "É um documentário sobre remoção de favelas no Rio. A
Nova Holanda abrigou gente desalojada de favelas como Praia do Pinto, na Lagoa, e Esqueleto, onde hoje é
a Uerj", conta. Formada em geografia pela UFF, Ana fez três períodos do curso de cinema da universidade
niteroiense e mudou de vida. Já tem no currículo o documentário Na Veia do Rio, sobre populações
ribeirinhas espalhadas por 300 quilômetros do Rio São Francisco. O filme foi gravado com câmera digital.
"Passá-lo para 35 milímetros custaria mais do que foi o orçamento total do trabalho", diz, realista. Ela
também fez, quase de brincadeira, Nem Todos Homens São Iguais, colagem de cenas de quarenta filmes
que, em sete minutos, ilustra a história de duas canções bregas. O curta, divertidíssimo, foi exibido na última
edição da Organização e está na Mostra do Filme Livre. Ana já entrou, definitivamente, na turma do cinema
novíssimo.
Aprendendo na escola
As novas tecnologias digitais e a boa maré do cinema nacional são razões consideráveis para o crescente
interesse pelo ofício. A essas, João Luiz Vieira, professor de cinema da UFF, acrescenta a proliferação de
cursos na área. Não faltam campi. Diferentes cursos são oferecidos na UFF, na Estácio de Sá, na
Universidade Gama Filho, na Escola de Cinema Darcy Ribeiro e, a partir deste ano, na PUC. O curso de
cinema da UFF, o mais antigo e concorrido, nasceu em 1968. A procura é enorme. No último vestibular, a
relação foi de trinta candidatos por vaga, mesmo com a ampliação do número de vagas de vinte para 25. É
um curso de graduação que, após quatro anos, forma os alunos em comunicação social com habilitação em
cinema. Na Gama Filho e na Estácio, o curso dura dois anos e meio. "Estamos tentando transformá-lo em
bacharelado, com quatro anos de duração", diz Ricardo Sollberg, coordenador da Gama Filho e um dos
responsáveis pela estruturação da matéria na Estácio. O curso da Gama Filho, que funciona no Shopping
Downtown, tem hoje 120 alunos.
Na Escola de Cinema Darcy Ribeiro, as aulas procuram equilibrar prática e teoria. "A tecnologia chegou
para facilitar, e isso é ótimo. Mas também é preciso pensar sobre o que fazer com o equipamento, o que
queremos do cinema", diz Irene Ferraz, diretora da escola que tem 150 alunos em cursos regulares de três
semestres, além de oficinas e cursos livres. Na PUC, os alunos que fizeram vestibular para comunicação
social no fim do ano passado puderam, pela primeira vez, escolher a habilitação cinema. "O mercado está
crescendo e precisa de gente qualificada", diz Cesar Romero, diretor do departamento de comunicação da
PUC. "O fato é que, hoje, a opção de um jovem pela profissão de cineasta não é mais caso de desespero
para as famílias."
O roteiro do novo cinema
Ao longo da semana, a nova geração do cinema carioca pode ser encontrada na Mostra do Filme Livre,
no CCBB. Alguns dos destaques são: Nem Todos Homens São Iguais, de Ana Rieper, terça (22), 14h, no
Teatro 2; Cinema da Luz Vermelha, de Rodrigo Modenesi, terça (22), 15h, na Sala de Cinema; Tapirus
Terrestris, de Samir Abujamra, terça (22), 18h, na Sala de Vídeo; Alba, de Mauro Heitor, e Cosmocápsula,
de César Oiticica Filho, quarta (23), 14h, na Sala de Vídeo; Copo de Leite, de William Cubits Capela, quinta
(24), 15h, na Sala de Cinema; O Craque do Futuro, de Nilson Primitivo, quinta (24), 19h, na Sala de
Cinema; Nozes, de Guilherme Whitaker, sexta (25), 18h30, no Teatro 2; Automúsica, de Christian Caselli,
sexta (25), 17h, na Sala de Cinema; Um Filme Livre, de Julia Limaverde, domingo (27), 14h, na Sala de
Vídeo; e 1986, de Guilherme Whitaker, domingo (27), 16h, na Sala de Vídeo.
Mina de Fé, de Luciana Bezerra, é atração do Espaço do Curta, terça (22), 21h40, no Espaço Unibanco 2.
Os próximos eventos que merecem atenção são: Atacadão de Filmes, no Circo Voador, previsto para 17
de março; Cachaça Cinema Clube, todo mês, numa quarta-feira não determinada, no Odeon; É Tudo
Verdade, Festival de Documentários, 31 de março; Festival de Cinema e Vídeo Universitário da UFRJ,
previsto para abril; Festival Brasileiro do Filme Universitário, 25 de maio; Festival do Rio, 22 de setembro;
Araribóia Cine, 18 de novembro; e Festival Internacional de Curtas do Rio de Janeiro, 1º de dezembro.
E todo dia é dia de ver a nova produção do cinema carioca nos sites Curta o Curta,
www.curtaocurta.com.br, e Porta Curtas, www.portacurtas.com.br.
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