INTERAÇÕES DISCURSIVAS NA SALA DE AULA E O
DESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO MATEMÁTICO DOS ALUNOS
Maria Manuela Martins Soares David1
FAE/UFMG
[email protected]
Consideramos que o professor é um elemento-chave do processo ensino-aprendizagem,
que tem uma influência decisiva sobre o tipo de interações que ocorrem em sala de aula.
Dentro dessa perspectiva, o que nos tem ocupado ultimamente tem sido a análise das
aulas de alguns professores que consideramos como casos interessantes, bem sucedidos,
porque têm um discurso de sala de aula que, procuramos mostrar, contribui para
desenvolver determinados aspectos do pensamento matemático dos seus alunos. Eles
são aquele tipo de exemplos que, em situações de formação inicial e continuada de
professores de que temos participado, nos têm ajudado a discutir com esses professores
e futuros professores formas alternativas para romper com uma prática do ensino da
matemática nos moldes da que eles mesmos vivenciaram enquanto alunos, que eles
conseguem criticar mas não sabem como superar. Além disso, esses casos também nos
têm ajudado a entender melhor como se dá a construção do conhecimento nesse
ambiente complexo que é uma sala de aula de matemática. Naturalmente, tais exemplos
não devem ser vistos como modelos a serem seguidos por outros professores mas,
apenas, como casos que têm o intuito de facilitar a partilha de significados sobre o papel
do professor nas interações de sala de aula.
A pesquisa que vimos desenvolvendo tem, desse modo, uma dimensão prática e também
uma dimensão teórica. Por um lado, pretende dar apoio aos professores que querem
criar em suas aulas um ambiente que favoreça o desenvolvimento do pensamento
matemático dos alunos e, por outro lado, pretende investigar como se dá a
1
O presente trabalho é resultado de um projeto de pós-doutorado, que recebeu financiamento da CAPES,
e de sua continuidade em um projeto de pesquisa que estou desenvolvendo, com financiamento do CNPq.
Contei com a colaboração de Maria Blanton (Univ. of Massachusetts-Dartmouth/USA) e de Despina
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GT 09 - Processos Cognitivos e Lingüísticos na Educação Matemática
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aprendizagem matemática dos alunos em sala de aula. Pressupondo a importância das
interações sociais para a construção do conhecimento, a nossa pesquisa tem adotado
uma abordagem que prioriza as interações verbais em sala de aula e tem buscado
caminhar no sentido de desenvolver um referencial para a análise dessas interações.
Os objetivos do presente trabalho são:
1. Apresentar uma forma de analisar as interações verbais em salas de aula de
matemática que: (a) dê conta de clarificar como os alunos desenvolvem nesse contexto
social determinadas formas de pensamento matemático, como resolver problemas
aritméticos e geométricos simples ou demonstrar resultados matemáticos; (b)
paralelamente, nos permita elaborar uma melhor compreensão acerca do papel do
professor nos processos cognitivos vividos pelos alunos.
2. Explorar as potencialidades do referencial construído para identificar as interações
que promovem o pensamento matemático dos alunos, em um caso específico.
Quadro teórico
Adotamos uma perspectiva segundo a qual a construção do conhecimento é um
processo essencialmente social (Luria, 1990; Vygotsky, 1962, 1996). Dentro dessa
perspectiva sociocultural do conhecimento, tem sido muito enfatizada na literatura a
importância das interações sociais e o papel mediador da liguagem e do discurso para o
desenvolvimento.
A investigação de salas de aula de matemática que promovem a compreensão e o
pensamento matemático dos alunos vem sendo feita desde longa data (Schoenfeld,
1992, Jaworski, 1994, Yackel & Cobb, 1996, Lampert & Blunk, 1998, Fennema &
Romberg, 1999, Burton, 1999, etc.). No entanto, não existem até hoje resultados muito
conclusivos sobre o como se desenvolve o pensamento matemático dos alunos e a
literatura existente dá testemunho, até mesmo, sobre a dificuldade de se definir com
precisão o que é pensamento matemático (Sternberg, 1996). A concepção de
pensamento matemático que adotamos originou-se na literatura existente e nas
pesquisas em sala de aula por nós realizadas (David & Lopes, 2000), e inclui desde a
resolução de problemas aritméticos e geométricos simples até a demonstração de
resultados matemáticos, como formas específicas de pensamento matemático. Além
Stylianou (The City University of New York/USA), que só não foram consideradas co-autoras deste
trabalho em virtude da dificuldade de atender às normas para a sua inscrição no VIII ENEM.
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disso, ela pressupõe um ponto de vista que pode ser considerado dominante dentro da
comunidade da educação matemática, hoje, segundo o qual o fazer matemática e pensar
matematicamente é uma prática social (Stein, Silver & Smith, 1998).
Por outro lado, nos últimos anos a pesquisa em sala de aula tem sofrido uma forte
influência da psicologia sócio-histórica ou sócio-cultural, segundo a qual a construção
do conhecimento é entendida como uma construção de significados, criados na
interação social e em seguida internalizados pelos indivíduos (Vygotsky, 1978,1996).
Dentro dessa perspectiva, o papel mediador da linguagem e do discurso de sala de aula
para a construção de significados tem sido amplamente enfatizado. No caso da sala de
aula de matemática, essa mesma ênfase também vem sendo observada. No entanto,
embora um grande número de pesquisadores, hoje, assuma que a comunicação e o
discurso em sala de aula influenciam na aprendizagem dos alunos, ainda não temos
pesquisa suficiente sobre a forma como se dá e se manifesta essa influência,
continuando ‘nebulosa’ a idéia de que a comunicação facilita a aprendizagem da
matemática (O’ Connor, 1998).
Assim, sabe-se ainda pouco sobre o papel do professor nos processos cognitivos vividos
pelos alunos e sobre como os diferentes tipos de discurso podem auxiliar a
aprendizagem. Para que o nosso entendimento sobre essas questões possa avançar faz-se
necessário desenvolver um referencial para a análise das interações discursivas nas salas
de aula de matemática que dê conta de caracterizar os diferentes tipos de interações que
podem ocorrer e evidenciar sua contribuição para o desenvolvimento cognitivo dos
alunos. Um dos principais objetivos deste trabalho é apresentar um referencial que
cumpra essas finalidades.
Desenvolvimento de um referencial para a análise das interações discursivas em
salas de aula de matemática
O referencial que descrevemos a seguir se originou a partir da análise dos dados
coletados ao longo de um ano, em duas turmas de graduação de uma disciplina de
Matemática Discreta onde a professora procurava enfatizar a argumentação e a prova
matemática (Blanton, Stylianou & David, 2003). O nosso objetivo era descrever
cuidadosamente como as interações em sala de aula mediavam o desenvolvimento
coletivo, ou público, da capacidade de os alunos demonstrarem resultados matemáticos.
Os conceitos de zona de desenvolvimento proximal (Vygotsky, 1978, 1962) e de
cognição pública ou coletiva (Wells, 1999) foram essenciais para o desenvolvimento de
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nossa análise. O conceito de cognição pública ou coletiva pressupõe a possibilidade de
falarmos do desenvolvimento cognitivo de um grupo/turma de alunos, isto é, permitenos acompanhar e discutir a evolução da compreensão dos significados matemáticos na
turma como um todo, em vez de fazer um acompanhamento individual de cada aluno. O
conceito de zona de desenvolvimento proximal (ZDP) dirige nossa atenção para aquilo
que os alunos conseguem fazer com a ajuda de outras pessoas mas não conseguem fazer
sozinhos. Esse é o espaço privilegiado para o professor poder contribuir para o
desenvolvimento cognitivo dos alunos. Uma vez que, como observadores da sala de
aula, não podemos ter um acesso direto e completo ao conhecimento dos alunos, nosso
objetivo não é descrever exaustivamente a Zona de Desenvolvimento Proximal dos
alunos no momento das observações mas apenas identificar situações em que houve um
avanço que consideramos significativo em termos do pensamento dos alunos. Esses
momentos estarão sendo considerados como “evidência” de que houve uma intervenção
no nível da ZDP dos alunos que resultou em desenvolvimento.
Apesar de o nosso trabalho ter centrado sua atenção nas interações professor - alunos e
professor - turma (tomada como um todo), para desenvolver nossa análise apoiamo-nos
em outros trabalhos, onde se estudam as interações alunos-alunos como forma de se
criarem zonas de desenvolvimento proximal colaborativas em pequenos grupos (Goos,
Gailbraith & Renshaw, 2002) e como forma de facilitar a aprendizagem da matemática
em termos mais gerais (Good, Mulryan & McCaslin, 1992). Esses trabalhos, e mais
especialmente os estudos de Kruger (1993) e de (Goos, Gailbraith & Renshaw, 2002),
nos serviram como ponto de partida para o desenvolvimento do nosso referencial para a
análise da interações observadas.
No entanto, existem especificidades próprias das interações professor–alunos, distintas
das especificidades das interações em pequenos grupos, entre colegas, como as
analisadas por aqueles pesquisadores, uma vez que ao professor cabe um papel diferente
do dos alunos nas interações em sala de aula. Com efeito, nos casos que temos
observado, o(a) professor(a) desempenha com frequência o papel de mais
conhecedor(a)2 (Vygotsky, 1962), assumindo um discurso de autoridade (Wertsch,
1991) em diversos momentos da discussão em sala, o que nos levou à necessidade de
adaptar o nosso referencial de análise, de tal forma que pudesse dar conta dessa
situação.
2
“more knowing other”
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Queríamos construir um referencial de análise para as interações professor-alunos que
nos permitisse identificar avanços significativos na ZDP dos alunos relativos à
compreensão de determinadas idéias matemáticas e relacionar esses avanços com
intervenções do professor e/ou de colegas que para elas pudessem ter contribuído.
Seguindo a mesma orientação dos trabalhos que nos serviram como ponto de partida,
optamos por priorizar as interações verbais e centramos nossa análise na
interdependência mútua entre as enunciações da professora e dos alunos. Em Blanton,
Stylianou & David (2003) fizemos uma primeira classificação dessas enunciações, que
constituiu uma versão preliminar do nosso referencial de análise.
O referencial que passamos a descrever é o resultado de uma elaboração dessa nossa
primeira classificação e de sua adaptação a um novo caso, analisado posteriormente, o
caso do professor Roberto3, que utilizaremos como exemplo a seguir. A nossa análise
indicou que as enunciações dos professores analisados podiam ser categorizadas da
seguinte forma:
(a) incitamento transativo (transactive prompt) – a enunciação do professor pretende
promover o raciocínio transativo nos alunos (Kruger, 1993). Incluímos aqui todas as
solicitações diretas feitas pelo professor de críticas, explicações, justificações,
esclarecimentos, elaboração de idéias e estratégias, em que a principal intenção do
professor é promover o diálogo dos alunos de forma transativa. Estas enunciações têm
a forma de perguntas que requerem uma resposta imediata dos alunos e o professor faz
uso delas quer para iniciar uma discussão quer para re-direcionar uma discussão que já
está posta.
(b) enunciações transativas (transactive utterances) - são aquelas em que o professor
pede ao aluno para criticar, explicar, justificar, esclarecer ou elaborar o seu próprio
raciocínio ou o raciocínio de outrem, com o objetivo de entender melhor o pensamento
do aluno. São diferentes das anteriores porque o objetivo do professor não é o de levar o
aluno a participar de uma determinada estrutura de diálogo, mas é simplesmente o de
entender melhor o que o aluno falou.
(c) enunciações facilitadoras – estes são os casos em que o professor revozeia ou
confirma as idéias dos alunos, ou procura estruturar a discussão em sala. Ao revozear e
confirmar, o professor pode repetir ou re-frasear a enunciação de um aluno, dando-lhe
assim autoridade e confiança para que prossiga na mesma direção. Estruturar, envolve
3
Nome fictício.
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resumir uma discussão, pausar a conversação, ou re-direcionar idéias e argumentos.
Fazendo uso de enunciações facilitadoras, o professor partilha a responsabilidade da
ação proposta através da aprovação tácita, enquanto que os incitamentos transativos
indicam uma transferência de responsabilidade, do professor para os alunos. Uma outra
diferença entre esses dois tipos de enunciações é que, enquanto faz um incitamento
transativo, o professor pode re-direcionar a discussão em sala solicitando aos alunos que
complementem ou alterem o seu raciocínio, e com as enunciações facilitadoras o
professor tem um papel mais passivo ou de menor interferência.
(d) enunciações diretivas – são aquelas que fornecem aos alunos um feedback imediato
sobre algum aspecto do seu argumento ou uma informação que os ajude a resolver um
problema. Com as enunciações diretivas o professor segue a sua própria linha de
pensamento em vez de procurar levar os alunos, através de questionamentos, a
desenvolverem eles mesmos um determinado raciocínio.
(e) enunciações didáticas – estas são as enunciações do professor sobre a natureza do
conhecimento (matemático). Os alunos podem não ser participantes óbvios da
conversação e as idéias do professor não estão em negociação. Esses são momentos em
que o professor atua como comentador (Rittenhouse, 1998) na discussão.
A Figura 1 resume algumas características das enunciações dos professores analisados,
mostrando como elas se enquadram dentro de um continuum, que vai desde um discurso
de autoridade a um discurso internamente persuasivo (Wertsch, 1991):
DISCURSO
DE AUTORIDADE
O professor segue a sua
própria linha de pensamento. Ele toma em suas
mãos a responsabilidade
de
da conversação.
(não definido claramente)
O professor re-direciona
a conversação, seguindo o
o caminho sugerido pelo
aluno. Ele partilha
responsabilidades.
DISCURSO
INTERNAMENTE
PERSUASIVO
O professor solicita
informação/clarificação
/raciocínio. Existe uma
uma transferência
responsabilidade para os
alunos.
..................................
Enunciações
Enunciações
Enunciações
Enunciações Incitamentos
Didáticas
Diretivas
Facilitadoras
Transativas
Transativos
Figura 1. Dimensão internamente persuasiva vs. de autoridade nas enunciações dos
professores
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O posicionamento das enunciações do professor de acordo com o tipo de discurso que
elas parecem iniciar e/ou continuar (Figura 1) permite-nos visualizar as dimensões
internamente persuasiva e de autoridade do discurso de sala de aula como um
continuum, não como uma dicotomia, e nos ajuda a clarificar as relações entre os
diferentes tipos de enunciações do professor.
As enunciações dos professores analisados foram, em sua maioria, de natureza
facilitadora e transativa. No caso da primeira professora, as enunciações didáticas e
diretivas apareceram relativamente com pouca frequência, embora algumas delas
tenham sido intervenções bastante longas por parte da professora que, no entanto, não
inibiram os alunos de espontâneamente dar continuidade a algumas delas (Blanton,
Stylianou & David, 2003, David, 2003). No caso do professor Roberto, que vamos
analisar em seguida, o seu discurso também é constituído por uma alternância de
enunciações de natureza facilitadora e transativa, solicitando constantemente aos alunos
que expliquem os seus procedimentos. São poucas as enunciações diretivas no excerto
de aula analisado e não identificamos nenhuma enunciação didática, o que não quer
dizer que estas nunca tenham aparecido nas aulas desse professor, apesar do nível
elementar em que ele estava ensinando.
Com o intuito de analisar a interdependência mútua entre as enunciações do professor e
dos alunos, para determinar até que ponto e de que formas essas enunciações do
professor estavam contribuindo para o desenvolvimento do pensamento dos alunos,
tornou-se necessário definir o que poderia ser tomado como evidência de que houve
algum tipo de acesso à ZDP dos alunos. Como ponto de partida, voltamos ao trabalho
de Kruger (1993) e de Goos, Galbraith and Renshaw (2002) e desenvolvemos a partir
daí uma classificação mais abrangente das enunciações dos alunos consideradas como
evidências de que houve acesso e/ou desenvolvimento da ZDP.
Neste caso, a especificidade da atividade que está sendo realizada mostra uma
influência clara sobre as enunciações dos alunos. As seis formas que classificamos a
seguir contemplam os dois contextos analisados até o momento:
(a) Proposição de uma idéia nova, relevante para a discussão em pauta.
(b) Proposição de um plano ou estratégia nova para resolver uma situação ou problema.
(c) Contribuição para, ou desenvolvimento de uma idéia. Este tipo de enunciação somase a idéias ou planos já existentes e muitas vezes é feito por outros alunos e não por
aquele(a) que deu a idéia inicial. Estes três primeiros tipos de enunciações foram
classificados como sendo de natureza essencialmente cognitiva.
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(d) Apreciação, crítica ou avaliação de uma idéia. Apesar da maior parte dessas
enunciações ter sido feita em resposta a um incitamento transativo de elaboração,
justificação ou crítica, elas foram entendidas como sendo de natureza metacognitiva.
(e) Perguntas transativas. Semelhantes às do professor, como solicitações de
esclarecimento e elaboração, dos alunos para os seus pares.
(f) ) Apresentação de uma explicação ou justificativa para um procedimento.
Análise de um episódio
Os diálogos nas aulas do professor Roberto (R) se apoiam em um tipo de discurso que
podemos classificar como predominantemente internamente persuasivo. Desse diálogo
participam diversos alunos da turma, alguns espontaneamente e outros só quando
solicitados pelo professor. Na turma de 5ª série que observamos (25 alunos – Escola
Municipal de um bairro da periferia de Belo Horizonte), o professor incentiva os alunos
a acharem diferentes soluções para os problemas e insiste constantemente para que
“expliquem” suas soluções. Essa insistência na “explicação” leva alguns alunos a aceitála como um aspecto importante da atividade matemática, como no caso da aluna Carol4,
que já começa a explicar como pensou mesmo antes de o professor lhe ter solicitado
isso:
R: Carol... vai lá fazer o outro.
[Carol no quadro:
12 x 8 = 96
e completa o desenho]
12
Carol: vou explicar... já que é um paralelogramo... eu peguei esse pedaço aqui e deu um
retângulo... aí ficou como se fosse um retângulo e eu fiz base vezes altura que deu
noventa e seis.
R: tá bom... vão fazendo os outros aí agora enquanto eu desenho as figuras aqui no
quadro.
Outros alunos, por sua vez, resistem a fazer essa explicação mas acabam mostrando que
sabem da importância que o professor lhe atribui, como no caso do aluno Guido:
R: peraí... mas acontece que isso aí é uma figura diferente... eu não estou querendo
dizer que está errado não... nem estou querendo dizer que está certo também não... eu tô
querendo dizer o seguinte... a justificativa... ela pode melhorar... sabe? quem sabe fazer?
Guido: eu quero mas eu não vou explicar...
4
Nomes fictícios.
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Em qualquer caso, consideramos estes dois tipos de atitudes como uma evidência da
influência marcante deste professor nas formas de pensamento matemático apropriadas
pelos alunos. Acostumando-os a sempre justificarem suas soluções, ele está
contribuindo para a socialização do seu pensamento matemático e para que eles
entendam a explicação, justificativa, e mais tarde a prova e a demonstração, como uma
dimensão necessária de toda e qualquer atividade matemática, isto é, como uma
componente importante do pensamento matemático entendido de forma abrangente
(David & Lopes, 2000).
A análise do excerto abaixo, que consideramos representativo do conjunto de aulas
observadas, vai-nos permitir entender melhor como o professor Roberto vai construindo
esse tipo de diálogo internamente persuasivo com seus alunos, alternando incitamentos
transativos com enunciações facilitadoras, principalmente.
OBSERVAÇÃO: No início da aula o professor relembra o cálculo da área de um triângulo
retângulo, como eles fizeram na aula anterior: completando um retângulo (que não é necessário
apagar depois) e achando a metade da área desse retângulo.
R: tá... agora... não existe necessidade nenhuma de apagar essas construções que vocês
fizeram... pode deixar a coisa desse jeito... tá certo? A gente começa então a descobrir a área de
outras figuras... quer dizer... até agora nós não falamos nada de um triângulo qualquer não... mas
esses triângulos que tem um lado perpendicular ao outro... tá? Cês já sabem calcular a área...
vocês viram que é metade... (enunciação facilitadora-estruturando a discussão)
Alunos: do retângulo... (sinal de acompanhamento do diálogo)
R: pois é... tem uma figura nos exercícios que eu dei na outra aula... é:: era uma situação
assim... (facilitadora-retomada do exercício da aula anterior)
[Roberto desenha no quadro]
A
D
DB = 16
AC = 10
B
C
R: atenção... quem sabe essa? (incitamento transativo-solicitação de uma estratégia)
Alunos: eu. (vários alunos querem participar)
R: Beth... vai lá. (facilitadora-dando voz a uma aluna)
[Beth no quadro]
10 x 16 = 260
(proposição de estratégia inadequada)
R: explica para nós... (transativo-solicitação de explicação)
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Beth: se aqui é dez e aqui dezesseis eu faço dez vezes dezesseis que deu duzentos e sessenta...
(explicação)
R: peraí... senta... alguém tem alguma coisa a acrescentar na solução? (transativo-solicitação de
crítica)
Ada: eu acho que a conta está errada... (crítica)
R: por quê? (transativo-solicitação de justificação)
Ada: porque somou errado... multiplicou errado... (repete mesma crítica)
R: antes gente... é... o dez vezes dezesseis seria razoável? alguém é capaz de vir aqui explicar
com detalhes porque está certo ou errado? não é só a conta não que está errada... (transativo /
diretiva)
Ada: eu... (aluna quer participar)
R: então vai Ada... (facilitadora-dando voz a uma aluna)
Ada: eu acho...
[Ada refaz a conta]
10 x 16 = 160
(proposição
160 : 4 = 40de um novo plano)
(proposição de um novo plano)
Ada: ô professor... eu acho que a conta dela está errada mesmo... aí o resultado que dá é cento e
sessenta... aí eu divido por quatro para saber as areazinhas... eu fiz dezesseis vezes dez que é a
área desse treco aqui... (explicação espontânea)
Alunos: losango... (sinal de acompanhamento do diálogo- colegas corrigem linguagem)
Ada: é... losango... aí eu divido por quatro para saber quanto vale cada parte... que é quarenta...
cada parte que foi subdividido dá quarenta... (continua explicação)
R: tá... senta... olha aqui... vou falar uma coisa com vocês... se isso aqui mede dezesseis...
quanto mede aqui? (facilitadora / transativo-solicitação de elaboração de novo plano)
Alunos: oito... (sinal de acompanhamento do diálogo)
R: tá... se AC mede dez e esses pedaços são iguais... quanto mede aqui? (facilitadora /
transativo-solicitação de elaboração de novo plano)
Alunos: cinco. (sinal de acompanhamento do diálogo)
R: cinco... e aqui vai medir cinco... tá? é:: eu não estou concordando com a explicação para
vocês estarem fazendo isso vezes isso quando na realidade... até agora... o que a gente mexeu foi
com área de retângulo...quadrado... paralelogramo e... (diretiva-crítica ao procedimento usado)
Alunos: triângulo... (sinal de acompanhamento do diálogo)
R: triângulo... que tem um lado perpendicular ao outro... então eu quero assim... que nessa
figura aí alguém viesse e explicasse com mais detalhes por que não é dez vezes dezesseis...
Jeane... (diretiva / transativo-solicitação de explicação)
Jeane: pode ir lá?
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R: pode...
[Jeane no quadro]
10 x 16 = 160
160 : 4 = 40
40 + 40 + 40 + 40 = 160
(não contribui para a solução – o Prof. não atinge a ZDP de J.)
R: por que você fez dez vezes dezesseis? (transativo-solicitação de justificação)
Jeane: dez vezes dezesseis é o triângulo todo... (inicia explicação)
R: losango... né? (enunciação transativa)
Jeane: é... losango... (confirma)
R: mas aqui... a gente não chegou a falar nada sobre área de losango... (diretiva-crítica ao
procedimento usado)
Jeane: mas tudo aqui dá dez vezes dezesseis... aí... não tá dividido por quatro? cada área mede
quarenta... se você tem certeza que cada área mede quarenta... você soma e deu cento e
sessenta... (insiste na explicação do erro – o Prof. não atinge a ZDP de J.)
Alunos: ( )...
R: peraí... senta... Déa... fala... (facilitadora-dando voz a uma aluna)
Déa: eu acho que oito vezes cinco dá quarenta... não é? (contribuição na direcção pretendida
pelo Prof. – porque ele a corta?)
R: vamos situar só aqui um pouquinho... quando eu faço essa história de base vezes altura...
sempre é relativo à área de um retângulo...
[Roberto no quadro]
h
b
(facilitadora-estruturando a discussão)
R: eu tenho base e a altura... com isso eu acho área de retângulo... área de quadrado e vai por
aí... se eu tenho uma área sombreada aqui assim... ó... é só completar... assim como vocês estão
completando... agora aqui é uma figura diferente... tá? se você faz dez vezes dezesseis você está
calculando a área de um retângulo de base dez... um retângulo em pé... de base dez e altura
dezesseis...
[Roberto no quadro]
16
10
(facilitadora-estruturando a discussão)
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R: tá claro? Guido... você consegue explicar isso claro? então vai lá... (facilitadora-dando voz a
um aluno)
[Guido no quadro]
A
D
5
B
10 x 16 = 160
160 : 4 = 40
40 : 2 = 20
4 x 20 = 80 m2
8
C
(contribuição para o desenvolvimento da ideia inicial!)
R: gente... atenção... Guido... explica... (transativo-solicitação de explicação)
Guido: eu transformei o losango em um retângulo... aí eu fiz dezesseis vezes dez e deu cento e
sessenta... aí eu fiz cento e sessenta dividido por quatro...(explica)
R: peraí... dezesseis vezes dez quer dizer o quê? (transativo-solicitação de explicação)
Guido: a área do retângulo... (explica)
R: a área do retângulo todo... mas você não está interessado na área do retângulo todo... você
está interessado nesse negócio que está sombreado... aí por que você dividiu por quatro?
(facilitadora-estruturando / transativo)
Guido: a área de cada um dos retângulozinhos e eu dividi por quatro e deu quarenta...aí eu
quero metade desse retângulo pequeno... aí eu dividi... quarenta por dois deu vinte... que é a
parte desse triângulo aqui... como eu quero quatro triângulos eu multipliquei por quatro e deu
oitenta... (explica)
R: é:: senta... tá pensado... olha aqui o que ele fez... ele quer calcular essa área aqui de azul... ele
verifica que daqui para aqui mede dezesseis e daqui mede dez... se ele faz dez vezes dezesseis
ele acha a área desse retângulo todo aqui... quando você divide isso aqui por quatro você acha a
área de quê mesmo? (facilitadora-estruturando / transativo-solicitação de esclarecimento)
Guido: do retângulo pequeno... (esclarece)
R: ele acha a área de um retângulo desse aqui assim... ó... (facilitadora-estruturando)
Carol: então são quatro retângulos... (outra aluna tentando acompanhar)
R: eu tenho quatro retângulos... quando ele divide isso aqui por dois... o por que você divide...
Guido? (facilitadora-estruturando / transativo)
Guido: porque quero a metade... (esclarece)
R: exato... ele está querendo calcular isso aqui... ó... ele está calculando é a área de um triângulo
desse aqui assim... ó... se ele faz dezesseis vezes dez ele acha tudo... se ele divide por quatro ele
acha a área de um retângulo inteiro... aí se ele divide por dois ele acha a área de um triângulo
desse... aí... Guido... continua... (facilitadora-estruturando / transativo)
Guido: multiplico por quatro porque são quatro triângulos... (esclarece)
R: se multiplica por quatro... (facilitadora-revozeia)
Guido: é porque tenho quatro triângulos... (repete)
R: é porque eu tenho quatro triângulos... isso tudo aqui... tá certo isso aqui? (facilitadorarevozeia / transativo-solicitação de avaliação)
Alunos: tá... (sinal de acompanhamento do diálogo)
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R: agora que vocês já viram isso... será que alguém poderia resolver esse problema de um jeito
diferente? Paulo... vem... (transativo-solicitação de outra solução)
[Paulo não consegue]
Jorge: eu sei... professor... (aluno quer participar)
R: então vem...
[Jorge no quadro]
8 x 5 = 40
40 : 2 = 20
20 x 4 = 80
(contribuição com nova(?) solução)
R: você pode explicar? (transativo-solicitação de explicação)
Jorge: eu multipliquei oito por cinco que é a área desse retângulo... (explica)
R: peraí... você falou que aqui mede cinco e aqui mede oito... (facilitadora-estruturando)
Jorge: você multiplica oito por cinco para você achar a área desse retângulo aqui... aí você vai
pegar dois e vai achar a metade e multiplica por quatro porque são quatro triângulos... (explica)
R: quando ele faz cinco vezes oito ele acha a área desse retângulo aqui... ó... dividiu por dois e é
a área desse triângulo aqui... ó... e aí multiplica por quatro que vai dar tudo... isso aí a gente
deve ter outras maneiras... umas quatro maneiras diferentes de fazer... (facilitadoraestruturando)
Aluno não identificado: pode ser cento e sessenta dividido por dois? (contribuição com nova
solução)
R: por quê? qual a explicação geométrica para isso? (transativo-solicitação de justificação)
Aluno não identificado: não é metade de cada um? então faço metade de tudo... (justificaçãogeneralização!)
OBSV: A seguir aparecem ainda mais algumas soluções diferentes.
Neste episódio podemos perceber momentos em que o professor não consegue acesso à
ZDP dos alunos, como no caso de Jeane, e outros em que não podemos afirmar com
certeza absoluta que a discussão tenha contribuído para desenvolver a ZDP dos alunos,
como no caso do Guido e do Jorge, porque não sabemos se eles já haviam resolvido o
problema antes do momento de o ir apresentar no quadro, embora não tivessem se
manisfestado espontaneamente antes. Por outro lado, é pouco provável que tantas
formas alternativas de resolver
o problema tivessem surgido, bem como a
generalização do aluno não identificado da última enunciação, sem a intervenção do
professor. Quer dizer, se nos apoiarmos no conceito de cognição coletiva, fica claro que,
principalmente nos momentos finais do episódio, o professor passou a atuar dentro da
ZDP dos alunos contribuindo para a sua ampliação, pelo menos no caso dos alunos que
estavam participando naquela altura.
Anais do VIII – Comunicação Científica
GT 09 - Processos Cognitivos e Lingüísticos na Educação Matemática
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onsiderações finais
Neste estudo pressupomos que toda a enunciação feita pelo professor pode influenciar
no modo como os alunos aprendem a pensar sobre, a falar sobre e a argumentar sobre a
matemática. Os dados coletados permitiram identificar alguns tipos de evidências da
ocorrência de avanços cognitivos significativos pelos alunos e alguns tipos de
enunciações por parte do professor que consideramos que contribuiram para esse
avanço pela turma como um todo. Portanto, o estudo contribui para esclarecer como os
alunos desenvolvem determinadas competências matemáticas, nos contextos sociais
considerados. O referencial que apresentamos mostrou-se um instrumento adequado
para a análise das interações professor-alunos que promovem formas de pensamento
matemático, nos contextos considerados. Para que a força teórica do nosso trabalho
possa ser reforçada, será importante ampliar a análise feita, considerando outros
contextos sociais e o desenvolvimento de outras competências básicas da Matemática.
Palavras Chaves: sala de aula de matemática; interações discursivas; desenvolvimento
do pensamento matemático
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interações discursivas na sala de aula e o desenvolvimento