CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA
Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da
Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111
São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14
CARTA DOS EDITORES
E HOUVE COPA!
Não é segredo que o futebol representa para os brasileiros uma paixão nacional,
para usar um lugar-comum, ou determina uma espécie de sentimento ufanista, vaidoso e
feliz, por conta do histórico bom desempenho dos jogadores, clubes e da seleção
brasileira no cenário internacional.
Havia uma enorme expectativa pela realização do torneio em terras brasileiras
depois de mais de 60 anos, como também havia uma certa tensão no ar – muito
alimentada pelos meios de comunicação, ancorados na propaganda governamental –
refletindo o receio de que manifestações populares arranhassem o brilho do evento. No
Brasil ainda não compreendemos que a manifestação pública é um direito, base da
democracia, embora todos concordem que o apelo à violência, em alguns casos, acabe
por afastar parte da população das reivindicações.
Sem discutir o resultado alcançado pelo time nacional diante de milhões de
apreciadores do esporte, é preciso admitir que o semestre atípico acabou por tornar mais
lento o processo de seleção e edição da revista Cambiassu.
Autores, pareceristas e editores tivemos algumas dificuldades relativas aos
prazos divulgados na Chamada de Trabalhos, principalmente em decorrência das
alterações de agendas determinadas pelas mudanças nos calendários acadêmicos de
muitas instituições de ensino, devido aos feriados determinadas pela realização da Copa
do Mundo de futebol, antecipação de férias e falta de uniformidade de decisões nesses
sentidos entre muitas dessas instituições, claramente respeitada pela autonomia de cada
uma.
Mas é preciso ratificar que, mais uma vez, a procura pela seleção foi grande e
qualificada e que, apesar do atraso de algumas semanas, a Cambiassu mantém a
periodicidade semestral com a publicação de trabalhos relevantes para as áreas de
Comunicação e afins.
Boa leitura e até a próxima edição.
Carlos Agostinho A. de M. Couto
Larissa Leda F. Rocha
Editores
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SUMÁRIO
Artigos
A DIMENSÃO PROBATÓRIA DO DISCURSO PUBLICITÁRIO
Alex Sandro de Araujo CARMO......................................................................................04
PEDRINHAS NA MÍDIA INTERNACIONAL
Uma análise da cobertura jornalística do portal BBC sobre a violência carcerária
Brena Freitas RODRIGUES............................................................................................19
AS ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS NA EDITORIA "POLÍTICA NACIONAL"
DA REVISTA ROLLING STONE BRASIL
A cobertura das eleições presidenciais de 2010 no Brasil
Carlos Augusto de França ROCHA JÚNIOR..................................................................37
JORNALISMO AMBIENTAL
Uma ótica a partir das contribuições de Roland Barthes
Catarine Moscato STURZA.............................................................................................59
RESILIÊNCIA EMPRESARIAL
Uma necessidade ante a sustentabilidade das organizações
Cláudio Paula de CARVALHO........................................................................................71
O DESAFIO DA INTIMIDADE NO CIBERESPAÇO
Um olhar sobre mercantilização da intimidade no Blog do Kadu
Danilo POSTINGUEL.....................................................................................................93
ELEMENTOS HISTÓRICOS PARA O ESTUDO DO SELO POSTAL EM
COMUNICAÇÃO
Diego SALCEDO...........................................................................................................109
BOLETIM DA DIRETORIA
Acertos e erros na comunicação organizacional da UNESP, campus de Presidente
Prudente-SP
Édison Trombeta de OLIVEIRA.....................................................................................125
RELAÇÕES ENTRE O ERUDITO E O POPULAR NA ORQUESTRA
SINFÔNICA DE TERESINA
Um estudo de caso da Cantata Gonzaguiana
Fábio Soares da COSTA; Sarah Fontenelle SANTOS; Janete de Páscoa
RODRIGUES.................................................................................................................142
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OS CORPOS DO CONSUMO: LEITURA ENUNCIATIVA PARA AS CAPAS DE
NOVA E MEN'S HEALTH
Guilherme Di Angellis da Silva ALVES.........................................................................161
A REPRESENTAÇÃO DOS VILÕES ATRAVÉS DAS FASES DA TELENOVELA
BRASILEIRA
Leonardo Sá SANTOS....................................................................................................174
A INFLUÊNCIA DO FAIT DIVERS NAS POSTAGENS COLABORATIVAS DO
YOUTUBE QUE MIGRAM PARA “CICLO DO JORNALISMO INTEGRADO”
Marcelli ALVES.............................................................................................................188
ANTROPOLOGIA VISUAL E DOCUMENTÁRIO
Uma análise do documentário Promises
Maria Elisa Swarowsky LISBÔA...................................................................................204
O APARTIDARISMO DOS PROTESTOS POPULARES NO BRASIL E OS
DESLOCAMENTOS DE SENTIDOS DE REPRESENTAÇÃO POLÍTICA
Nelson Toledo Ferreira..................................................................................................221
ENTRE RESISTÊNCIAS E DÁDIVAS
Reflexões sobre o consumo colaborativo
Ramon Bezerra COSTA.................................................................................................237
Ensaio
GLOBALIZAÇÃO, CULTURA E MÍDIA
Uma interface na produção de sentido nas sociedades contemporâneas
Lisiane MOSSMANN.....................................................................................................253
Entrevista
Carlos Soria
Márcio Carneiro dos SANTOS
Thaís de Mendonça JORGE (Tradutora)....................................................................265
Resenha
A redenção da TV e do videogame. Sim, é Surpreendente!
Larissa Leda Fonseca ROCHA
JOHNSON, Steven. Surpreendente!: A televisão e o videogame nos tornam mais
inteligentes. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005. .................................................................270
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A DIMENSÃO PROBATÓRIA DO
DISCURSO PUBLICITÁRIO
Alex Sandro de Araujo CARMO1
RESUMO: Pode-se dizer que a linguagem, antes de ser um instrumento de informação,
é também instrumento de comunicação e argumentação. Portanto, em todo discurso,
além de informar, procura-se convencer e/ou persuadir, ou mais precisamente, busca-se
propiciar, por meio de argumentos, adesão a uma tese. Sob essa perspectiva, tendo a
Teoria Retórica do Discurso como horizonte teórico, e com um estudo de caso
demonstrativo, pretende-se empreender um estudo que versará acerca das dimensões
argumentativas e probatórias do discurso publicitário.
PALAVRAS-CHAVE: Publicidade. Discurso. Argumentação.
ABSTRACT: It can be said that language, besides being an information tool, is also a
communication and argumentation tool. Therefore, in every discourse, besides
informing, it is sought to convince and/or persuade, or more precisely, to provide, by
means of arguments, adherence to a thesis. From this perspective, having the Rhetorical
Discourse Theory as a theoretical horizon, and with a demonstrative case study, it is
intended tocarry out a study that will focus on the argumentative and probative
dimensions of the discourse of advertising.
KEYWORDS: Advertising. Discourse. Argumentation.
A linguagem é assim instrumento não só de informação, mas
basicamente de argumentação e esta, por sua vez, se dá na comunicação
e pela comunicação, razão pela qual a argumentação é sempre situada,
dando-se basicamente num processo de diálogo, isto é, num contacto
entre sujeitos.
Lineide do Lago Salvador Mosca
1
Publicitário e Mestre em Letras. Docente dos cursos de Comunicação Social da Faculdade Assis Gurgacz e da
Faculdade Sul Brasil. Líder da Linha de Pesquisa Comunicação em Multimeios e do Grupo de Pesquisa em Redação
Publicitária, da Faculdade Assis Gurgacz. E-mail: [email protected]
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1. AS DIMENSÕES DA ARGUMENTAÇÃO
“O que você quer dizer com estas palavras?”: provavelmente esta é uma das
questões que mais acompanha o dizer. O homem, enquanto ser de comunicação, está
sempre à procura do sentido, atrás do que aquilo que se diz quer dizer. Segundo Dittrich
(2008, p. 21), “historicamente, a humanidade tem-se ocupado do efeito das palavras
sobre a natureza e o espírito humanos, o que não faz estranhar que se desenvolvesse a
arte do discurso a fim de interferir sobre as suas crenças e atitudes”. É justamente essa
interferência no processo comunicativo sobre as crenças e atitudes que se quer examinar
neste trabalho. Para isso, pretende-se estudar o discurso (em sua estrutura verbal/oral)
de um anúncio publicitário, buscando visualizar em seus argumentos os raciocínios que
compõem o dizer do anúncio, dando ênfase, à dimensão probatória, observando como se
dá a utilização e a justificação da tese central que se vale de argumentos técnicos,
legitimadores e sensibilizadores.
Antes de entrar na análise propriamente dita, mostrar-se-á alguns apontamentos
sobre a base teórica. Trabalha-se, aqui, com a Teoria Retórica do Discurso. Essa teoria,
segundo Dittrich (2008, p.16), confere à Retórica:
o status de teoria orientadora ao corpo de conhecimentos estabelecido, ainda
que instavelmente, a partir dos teóricos gregos, romanos e de seus seguidores,
privilegiando uma determinada configuração na constituição do objeto
teórico, situando-o com foco na argumentação e na sua convergência com a
retórica, com a persuasão e com outros aspectos relacionados ao
desenvolvimento do discurso.
Esse aparato teórico, ainda que recente, vale-se da Retórica que goza de longa
tradição nos estudos da linguagem e da comunicação. Mas não se fica somente na
Retórica, aqui, por ter a argumentação como foco; busca-se configurar a Teoria Retórica
do Discurso como um
universo de conhecimentos e respectivas implicações que dizem respeito à
centralidade da argumentação na sua articulação com a retórica e sua
possível, mas não necessária, conexão com a persuasão, constituindo um
objeto de conhecimento complexo que, além de manter cada um dos
conceitos individualmente, considera-os necessariamente em sua possível
imbricação no funcionamento de um certo universo discursivo, sem descartar
a possibilidade de discutir a pertinência de questões relativas aos objetos ou à
eficácia dos discursos. (DITTRICH, 2008, p. 17).
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Não se busca nesta teoria trabalhar a Retórica com uma teoria da argumentação
persuasiva, pois não se busca visualizar em técnicas argumentativas a determinação que
faz atingir a persuasão, mas, sim a adesão a uma tese.
Ao discursar, todo orador busca ativar, valendo-se de certas estratégias, um
conjunto
de
atributos
que
propiciem
a
geração
de
influência
sobre
o
receptor/interlocutor, isto é, “o orador aciona, lingüística e discursivamente, estratégias
técnicas, emotivas e representacionais a fim de influenciar o interlocutor, tanto em suas
crenças quanto em seus desejos” (DITTRICH, 2008, p. 22). Ora, o orador deve buscar
adesão a tese que defende, para isso, cria condições favoráveis e, ao criar estas
condições, utiliza argumentos como forma de convencer. Para Dittrich (2008, p. 22):
Quando o objetivo do orador é convencer (ou persuadir) por meio do
discurso, utiliza-se dos argumentos técnicos para falar à razão, da
organização discursiva e da expressividade das palavras para aguçar a
sensibilidade do auditório, despertando-lhe o interesse e mantendo sua
atenção, de um jogo de representações para impressioná-lo positivamente,
apresentando-se como alguém passível de credibilidade e com legitimidade
para propor sua opinião. Embora seja plausível aceitar que a argumentação
emotiva e representacional apenas subsidie a maior ou menor aceitação dos
argumentos técnicos, parece pertinente admitir que, em determinados
discursos, aquela se sobreponha a estes.
Dito de outro modo: as potencialidades argumentativas dos discursos podem
ativar e organizar qualidades racionalizadoras, emotivas e representacionais. Pode-se
dizer que o discurso, dentro do arcabouço da Teoria Retórica do Discurso, se organiza
em três dimensões, a saber: dimensão probatória, estética e política. Dittrich (2008),
mostra que a argumentação é o princípio norteador de uma teoria do discurso
fundamentada na Retórica que descreveria os mecanismos responsáveis pela eficácia
argumentativa e comunicativa. Segundo o autor (2008, p.14):
[...] a dimensão probatória diz respeito à justificação da tese em seu
conteúdo, em suas motivações e em sua legitimidade; a dimensão política
relaciona-se à negociação da tese entre o proponente e o interlocutor,
configurando o jogo de poder entre ambos para propor, impor ou contornar
(politicamente) os diferentes pontos de vista sobre o mesmo objeto (tese); a
dimensão estética compreende as condições de produção do discurso e os
efeitos de sentido para viabilizar ou compartilhar a tese dentro dos limites
impostos pelas restrições de gênero e da cena enunciativa. (grifos do autor).
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Vê-se que o discurso se configura nas três dimensões já citadas, onde se
encontrariam: 1) na dimensão probatória: a) a justificação da consistência da tese, isto
é, seu conteúdo (argumentos técnicos); b) a justificação das possíveis motivações frente
ao auditório, ou seja, os benefícios, os riscos e as consequências da adesão à tese
(argumentos sensibilizadores ou motivacionais); c) a justificação da legitimidade da tese
por parte do proponente do discurso, que se apóia num ethos prévio e num ethos
discursivo (argumentos legitimadores); 2) na dimensão política: negociação da tese
entre o orador e seu auditório; 3) na dimensão estética: desenvolvimento discursivo da
argumentação para torná-la mais compreensível em seus vários aspectos, seja: lexicais,
textuais, pragmáticos e semióticos.
Observadas algumas características básicas dessas três dimensões, discorrer-se-á
um pouco mais sobre a dimensão probatória do discurso, voltando a ver as qualidades
argumentativas mencionadas acima. Nesta dimensão, encontra-se a argumentação
técnica, a argumentação sensibilizadora e a argumentação legitimadora. Dittrich
(2008), ao descrever estas qualidades da argumentação dentro da dimensão probatória,
diz ser necessário, no caso das duas primeiras, responder a certas questões,
respectivamente, “Em que, (ou como) a tese se sustenta?” e “Por que a tese merece ser
adotada?”, já a última, apoiada no ethos prévio e no ethos discursivo, busca justificar a
credibilidade de quem está propondo a tese.
Assim, na primeira, trata-se da proposição de afirmações que defendem ou
refutam o teor e o conteúdo da tese. Aí se encontram argumentos do tipo científico,
estatísticos, jurídicos, de autoridade, e etc. Na argumentação técnica a consistência da
justificativa se dá pela racionalização, isto é, pelo logos. Na segunda dimensão, o que se
busca é argumentos para justificar possíveis consequências e não o conteúdo
propriamente dito da tese, o objetivo é indicar as vantagens e desvantagens na aceitação
da tese proposta. Como argumentos têm-se: os pragmáticos, ilustrativos, teleológicos.
Nesta dimensão, justificam-se as motivações e os efeitos da tese para o
receptor/interlocutor (auditório), por meio do phatos. E na terceira, busca-se justificar a
credibilidade de quem propõe a tese, procurando, através da criação de um ethos (prévio
e/ou discursivo) positivo, angariar e conquistar a confiança do receptor/interlocutor
(auditório). Em relação ao ethos, ressalta-se ainda que o prévio se vale de argumentos
credenciadores e o discursivo de argumentos representacionais. Para sintetizar, nas
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palavras do próprio Dittrich (2008, p. 23), “a dimensão técnica é da ordem do conhecer
e do entender; a emotiva, do sensibilizar e do atrair; a representacional, do crer e do
legitimar”.
2. A PRÁTICA DISCURSIVA PUBLICITÁRIA
Quando o assunto é publicidade quase sempre se ouve o mesmo tipo de
colocação: a publicidade está sempre às voltas com a manipulação. Para clarear o
assunto, pelo menos no entendimento deste estudo, mostrar-se-á como o termo
publicidade é compreendido.
Como primeiro ponto, embora se fale de publicidade, o que se procura é
trabalhar com o discurso publicitário e este, por sua vez, não pode ser visto como
criador de costumes, crenças e hábitos, pois ele é reprodutor de costumes, crenças e
hábitos já cristalizados na e pela sociedade. Portanto, não há de se falar, neste sentido,
em um discurso que manipula. Segundo Cattelan e Schröder (2008, p. 30) “Os
discursos”, e leia-se aí os publicitários, “estão ancorados em alicerces duradouros de
crenças”. Para estes autores, o discurso publicitário não produz crenças, na verdade ele
somente as reproduz. O objetivo deste tipo de discurso é “levar”, diz Cattelan (2008, p.
67), “ao consumo de produtos ou de idéias, ele se obriga a associar os produtos que
pretende vender a sentimentos humanos que se relacionam com o que atemoriza ou
encanta a fatia do mercado a que se destina o produto”. Assim, o discurso publicitário
obriga a associar-se aos sentimentos humanos, isto é, a crenças e atitudes que já
circulavam antes de seu aparecimento.
Alguns autores falam que o discurso publicitário é persuasivo, porém esta não é
visão deste trabalho. Entende-se como discurso publicitário um conjunto de argumentos
que procuram criar condições favoráveis para aceitação de uma tese. A essa luz, é mais
prudente falar em adesão, haja vista que esta busca o convencimento do auditório se
valendo de argumentos, muitas vezes, amparados na doxa enquanto pressuposto2
partilhado culturalmente.
2
Segundo Dittrich (2008), esse pressuposto não é análogo ao termo técnico da pragmática, pois, ele é visto aqui
somente como um conjunto de suposições.
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O discurso publicitário, enquanto prática comunicativa, não deve ser visto como
uma unidade fechada de sentido. Ele não é homogêneo, isto é, as partes que o compõe
são desiguais, não há uma regularidade enunciativa para cada tipo de discurso. Se os
discursos fossem homogêneos, portanto, fechados em si mesmos, não se admitiria, num
discurso publicitário, por exemplo, que se utilizassem enunciados ou estruturas
sintáticas provenientes de outras formas de discurso, desta maneira, cada discurso teria
um repertório próprio de enunciados.
Alguns autores que trabalham com a Análise de Discurso, principalmente os da
vertente francesa, descrevem o discurso como efeitos de sentido entre interlocutores.
Segundo Possenti (2009, p. 16), “O discurso é entendido, [...], como um tipo de sentido
– um efeito de sentido, uma posição, uma ideologia – que se materializa na língua,
embora não mantenha uma relação biunívoca com recursos de expressão da língua”.
Pode-se ver que o discurso, embora se materialize, ao nível de intradiscurso, isto é, na
escrita, na língua, não mantém uma relação obrigatória com a língua. Assim, nota-se
que o discurso tem uma dimensão interacional (política), que é explicitada pelo fato dele
ser visto como efeitos de sentido, principalmente, numa situação de interlocução, e que
os discursos não são estruturas fechadas, pois as expressões da língua (enunciados, ditos
populares, provérbios, etc.) são revestidas de sentidos por meio da interação e da
inscrição em formações discursivas dadas que estabelecem sua forma de restrição
discursiva (o que pode e o que deve ser dito).
Não abandonando esta noção de discurso, propõe-se que estes efeitos de sentido
sejam vistos como práticas discursivas, segundo a acepção de Maingueneau (2005, p.
143):
Seria melhor, pois, definir nosso objeto não como discurso, mas como
prática discursiva, seguindo nisso em parte a visão de Michel Foucault, que
introduz precisamente esse termo para referir-se ao “sistema de relações”
que, para um discurso dado, regula a localização institucional das diversas
posições que pode ocupar o sujeito de enunciação. (grifo do autor).
Nesta perspectiva, por não ser o discurso uma estrutura fechada, e por estar
sempre disponibilizando diferentes posições discursivas, busca-se, então, entender o
discurso publicitário como prática discursiva publicitária, sendo este tipo de prática
responsável pelo processo comunicativo publicitário.
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3. A DIMENSÃO PROBATÓRIA EM ANÁLISE
De início, empreender-se-á, em linhas gerais, uma contextualização acerca de
alguns aspectos do iogurte Activia que será o objeto de análise. Destaca-se que a linha
de iogurtes Activia desenvolvida pela Danone é comercializada em vários países desde
a década de 1980. No Brasil, o iogurte é comercializado desde 2004. Este produto
contém uma cultura probiótica exclusiva que promete ajudar a regular o trânsito
intestinal, a saber, o Dan Regularis. Sua principal função, além da nutrição, seria ajudar
a melhorar o trânsito intestinal lento. Por este fato, vê-se que o Activia se encaixa no
segmento de alimentos funcionais. Este segmento está em alta nos últimos anos, fato
indicado pelo aparecimento de vários produtos com características que vão além de uma
nutrição adequada. Isto é, circulam pelo mercado alimentício na atualidade produtos que
visam ter efeitos benéficos em funções específicas do organismo humano, como, por
exemplo, no caso do Activia, melhorar o trânsito intestinal, fazendo com que pessoas
que sofrem de algum tipo de constipação intestinal tenham o funcionamento de seu
intestino regulado pelo seu consumo.
Assim, pelo fato de o Activia dizer em seus discursos que, por conter o bacilo
Dan Regularis em sua fórmula, atua sobre transtornos intestinais, pode-se apontar que
ele é um alimento funcional, pois se presta, ao menos, no fio do discurso de seus
anúncios, a comunicar que além de nutrir, propicia bem-estar e ajuda a melhorar o
funcionamento do organismo de seus consumidores.
Feitas estas considerações breves, tanto do arcabouço teórico em seções
anteriores, quanto de características do Activia, este estudo pretende observar os
argumentos e os raciocínios implícitos e seus possíveis efeitos de sentido.
Assim, passa-se, agora, a analisar algumas sequências discursivas de uma peça
publicitária3 (anúncio televisivo) do Activia que veicula como mote publicitário o
discurso que prega o seu consumo como solução para problemas de trânsito intestinal
lento.
SD01: “Muita gente não vai ao banheiro todos os dias e acha que é normal,
mas não é.”
3
Este trabalho só irá analisar a parte locucional (isto é, o spot) do objeto de estudo.
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Raciocínio:
Você deve ir ao banheiro todos os dias. Portanto, a não ida é sinal de que há
algum problema intestinal.
Argumento:
Asserção: Você pode ter problemas intestinais.
Dados: Você não vai ao banheiro todos os dias.
Passagem: A não ida ao banheiro diariamente é sinal de que há algum
problema com o funcionamento de seu intestino.
Silogismo (Entimema):
Premissa maior: Não ir ao banheiro todos os dias é sinal de problemas
intestinais.
Premissa menor: Você não vai ao banheiro todos os dias.
Conclusão: Você tem problemas intestinais.
Encontra-se neste primeiro raciocínio um argumento técnico. Como se sabe, há
certo conhecimento corrente da existência de estudos científicos que dizem que um dos
sinais ou sintoma de problemas intestinais é a não ida ao banheiro com certa
regularidade. Este anúncio se ampara neste conhecimento para argumentar e para
sustentar o raciocínio que as pessoas devem ir ao banheiro todos os dias.
Pode-se observar que esta sequência discursiva está amparada no argumento de
que se deve ir ao banheiro diariamente. O encadeamento discursivo realizado pelo mas
conduz a uma conclusão não-r, na qual o anúncio se ampara para afirmar que não se
deve achar normal não ir ao banheiro diariamente. Essa perspectiva discursiva é
assumida pela peça publicitária e pode ser vista por meio do uso contrajuntivo do
operador argumentativo mas que orienta argumentativamente no sentido de que não ir
ao banheiro regularmente é sinal de problema intestinal.
A argumentatividade ativada por esse enunciado provém de um discurso mais
especializado (discurso científico) e que é, portanto, mais estabilizado e pautado em
uma voz de autoridade. Porém, o conhecimento estabilizado dado por esse argumento
técnico acaba sendo trivializado pelo discurso da Danone, ou seja: o discurso da
empresa não é científico a rigor como pretenderia ser.
Desta forma, o discurso publicitário do Activia, que fixa a não ida ao banheiro
como fator determinante e genérico para a existência ou para o aparecimento de
transtornos intestinais, busca dar um aspecto científico aos dois primeiros enunciados
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do recorte, na tentativa de fazer deles um fato inquestionável e verificável como o
discurso científico. Assim, apaga-se o aspecto ideológico que ancora a rede do dizível
que a atravessa, para dizer que a não ida ao banheiro diariamente é um sintoma de
problemas intestinais. Esse efeito de sustentação busca ser estabelecido no quadro de
crenças do sujeito, fazendo com que ele creia nessa “evidência” e acredite que este
efeito de sentido é do conhecimento de todos.
Neste sentido, observa-se que a empresa traveste o discurso publicitário do
Activia com a simulação de um discurso com aspecto especializado e estabilizado. Esse
deslizamento é possível, pois a língua oferece lugar à interpretação (ORLANDI, 2001).
Ou seja, a Danone, para dizer que é preciso consumir o Activia todos os dias, sem
demonstrar seu interesse no aumento das vendas do produto, dissimula esse interesse
argumentando, por meio da simulação de cientificidade, que é preciso ir ao banheiro
diariamente.
SD02: “Devemos ir ao banheiro diariamente. A gente elimina toxinas e evita
problemas no futuro. Milhões de pessoas já sabem disso e tomam Activia.
Activia contém o exclusivo bacilo Dan Regularis que regula o intestino
naturalmente.”
Raciocínio:
Para ir ao banheiro todos os dias e eliminar toxinas evitando problemas
intestinais futuros, milhões de pessoas tomam o iogurte Activia como forma
de melhorar seu funcionamento intestinal.
Argumento (1):
Asserção: Tome Activia como forma de melhorar seu funcionamento
intestinal.
Dados: O iogurte Activia contém o exclusivo bacilo Dan Regularis que
chega vivo no intestino.
Passagem: O bacilo Dan Regularis é responsável pela regulação do trânsito
intestinal.
Silogismo (Entimema):
Premissa maior: Quem tem problemas intestinais e quer ir ao banheiro todos
os dias, como milhões de pessoas, deve tomar o iogurte Activia.
Premissa menor: Você tem problemas intestinais e quer ir ao banheiro todos
os dias.
Conclusão: Você tem que tomar o iogurte Activia.
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Argumento (2):
Asserção: O iogurte Activia regula seu trânsito intestinal e propicia uma vida
mais saudável.
Dados: O Activia contém o exclusivo bacilo Dan Regularis.
Passagem: O Dan Regularis pode regular o trânsito intestinal e propiciar
assim uma vida mais saudável.
Silogismo (Entimema):
Premissa maior: Para regular o funcionamento do intestino e ter uma vida
mais saudável é preciso tomar o iogurte Activia que contém o exclusivo
bacilo Dan Regularis.
Premissa menor: Você toma o iogurte Activia que contém o exclusivo bacilo
Dan Regularis.
Conclusão: Seu intestino será regulado e você terá uma vida mais saudável.
Nas sequência discursivas (02), encontram-se dois argumentos que possuem as
características de legitimadores e técnicos. Estes argumentos buscam justificar sua
proposição,
tanto
pelo
teor
do
conteúdo
(aspecto
técnico),
quanto
pela
legitimidade/credencialidade (aspecto legitimador) da tese, cujo objetivo é conquistar
adesão a proposição de que o Activia faz o intestino lento e preguiçoso funcionar. Estes
argumentos se apoiam tanto num logos como no ethos da Danone, empresa sólida, que
tem uma imagem bem constituída, e que apresenta boas razões para o consumo de seu
iogurte, pois o mesmo contém o exclusivo bacilo Dan Regularis.
Nesta sequência discursiva, a partir dos nos enunciados Devemos ir ao banheiro
diariamente. A gente elimina toxinas e evita problemas no futuro, podem ser observadas
duas proposições: a) deve-se ir ao banheiro diariamente; b) eliminando toxinas
maléficas ao corpo se evita problemas de saúde no futuro. Nota-se que a segunda
proposição, mais especializada, marca-se na ordem do argumento técnico. Assim, por
meio da flexão verbal devemos, vê-se a imposição ativada que a Danone procura avivar
através do argumento. As expressões Elimina toxinas e evita problemas futuros são
dados técnicos que assinalam o efeito conceptual utilizado para reforçar a ideia de que
se deveria ter um trânsito intestinal regulado, capaz de possibilitar evacuações em uma
rotina adequada.
A Danone, enquanto enunciador do recorte, ao articular, via anúncio
publicitário, no discurso do produto, enunciados de um discurso mais especializado e
estabilizado, busca levar ao entendimento de que um intestino regulado elimina mais
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toxinas que um desregulado. A essa luz, a empresa busca, através deste conhecimento,
criar uma memória sobre o funcionamento intestinal que lhe seja útil, pois, assim, ela
poderá propor o Activia e os supostos benefícios do produto como solução para os
problemas de intestinos preguiçosos.
Pode-se atentar que por meio do atravessamento de um argumento articulado a
um conhecimento mais especializado e estabilizado (para evitar problemas de saúde
futuros, deve-se eliminar toxinas maléficas ao corpo), contribui para o reforço da crença
que a Danone vem procurando fixar nos receptores/interlocutores do anúncio. Assim, a
estratégia discursiva da empresa, ao utilizar esse recorte, é destinada ao avalizamento do
discurso publicitário do Activia.
Para reforçar a implicação entre as propriedades argumentativas regularidade
intestinal e eliminação de toxinas maléficas ao corpo, a Danone utiliza os enunciados
Milhões de pessoas já sabem disso e tomam Activia. Com esses enunciados, a empresa
busca avalizar a implicação das propriedades, dizendo que é do conhecimento de
milhões de pessoas que se deve ir ao banheiro diariamente.
Observa-se que, com a utilização do termo milhões, a Danone procura
demonstrar que o conhecimento ativado pelo argumento é consensual e compartilhado
por um grupo muito grande de pessoas: não se trata, pois, apenas de referir um nicho ou
pequeno grupo.
Pode-se afirmar que os enunciados Milhões de pessoas já sabem disso e tomam
Activia pertencem ao grupo de enunciados que orientam argumentativamente para a
legitimação das afirmações feitas sobre as propriedades anunciadas como funcionais e
benéficas do Activia. Esses enunciados legitimam, ao menos, três afirmações: a primeira
é relativa à afirmação de que milhões de pessoas sabem que é importante eliminar
toxinas maléficas ao corpo para evitar problemas de saúde no futuro; a segunda é
referente à questão da regularidade intestinal. Se milhões de pessoas sabem que é
preciso eliminar toxinas maléficas ao corpo para evitar problemas de saúde no futuro,
elas também precisam saber que, para se eliminar tais toxinas, é preciso evacuar
diariamente; e a terceira é relativa ao fato de que se milhões de pessoas sabem que é
preciso eliminar toxinas maléficas ao corpo e que, para isso, é preciso, segundo o
discurso publicitário do Activia, ir ao banheiro diariamente para evacuar. Observa-se
que os receptores/interlocutores do anúncio são levados a inferir que, para ter essa
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regularidade no funcionamento intestinal e eliminar as toxinas maléficas, elas devem
consumir o iogurte Activia que faz o intestino funcionar adequadamente.
SD03: “Regule seu intestino e tenha assim uma vida mais saudável. Faça o
desafio, tome Activia todos os dias, se não funcionar a Danone devolve seu
dinheiro.”
Raciocínio:
Se consumindo diariamente o Activia seu intestino não funcionar, a Danone
devolve o dinheiro gasto na compra.
Argumento:
Asserção: A Danone devolve o dinheiro se o consumo diário de Activia não
fizer o intestino funcionar.
Dados: A Danone possui tecnologia exclusiva.
Passagem: A Danone pode fazer esta promessa, pois desenvolveu o bacilo
Dan Regularis que age em intestinos lentos e mal regulados.
Silogismo (Entimema):
Premissa maior: Se o consumo diário do Activia não fizer o intestino
funcionar a Danone devolve o dinheiro da compra.
Premissa menor: Seu intestino não funcionou após tomar o Activia.
Conclusão: A Danone devolverá seu dinheiro.
Esta sequência discursiva ativa um argumento que propõe a devolução do
dinheiro gasto na compra de certo número de potes do Activia (a partir de 15), caso o
funcionamento intestinal não seja regulado pelo consumo deste iogurte. Este argumento
se vale, principalmente, da imagem da Danone frente ao mercado consumidor, imagem
que é constituída e reforçada, também, pelos argumentos técnicos que apresentam dados
pautados em estudos científicos, isto é, estes dados se fixam no ethos prévio da Danone
e consolidam o seu “saber fazer”, além, é claro, de certificar e avalizar a imagem (ethos
discursivo) da Danone frente aos consumidores (potenciais e reais).
Além destes argumentos (técnicos e legitimadores), pode-se, também, encontrar
argumentos sensibilizadores ou motivacionais. Estes, por sua vez, não se encontram
amparados em dados técnicos ou representacionais, não se vê neles um logos ou ethos,
mas um pathos, isto é, “mais do que dirigidos ao entendimento técnico da tese, tais
argumentos dirigem-se aos sentimentos do auditório” (DITTRICH, 2008, p. 6). Assim,
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de forma implícita, pode-se encontrar o argumento sensibilizador/motivacional: não se
pode ter uma vida saudável sem se ter um funcionamento intestinal adequado.
A argumentação sensibilizadora deve responder, geralmente, à pergunta: “Por
que a tese deve ser adotada?”. Por isso, na proposição de um argumento sensibilizador
deve se disponibilizar, de forma explícita ou implícita, as vantagens que o
receptor/interlocutor irá ter aderindo à tese em questão. Este tipo de argumento justifica
as possíveis consequências da adesão e não o conteúdo da tese.
Nesta sequência, pertencente à parte final do anuncio, vê-se a predominância de
verbos no imperativo. Por meio das flexões verbais regule e tenha, podem-se verificar
algumas ordens/sugestões que orientam argumentativamente para conclusões previstas
na linha de determinação do anúncio.
Se entendida como uma relação de equivalência, vê-se que ambas as flexões
(regule e tenha) levam à perspectiva de um argumento que engloba e articula a
afirmação/promessa de que para regular o intestino que não funciona diariamente e ter
uma vida mais saudável, é preciso tomar o Activia.
No recorte Faça o desafio, tome Activia todos os dias, se não funcionar a
Danone devolve o seu dinheiro, junto com a primeira parte da sequência, observa-se a
atuação de peroração no anúncio, procurando dispor o receptor/interlocutor em sentido
favorável aos argumentos que foram apresentados. Assim, ratificando a potencialidade
de adesão do comercial, ao passo de conclusão, observa-se um posicionamento
enunciativo que ordena/sugere: a) que se regule o funcionamento intestinal para se ter
uma vida mais saudável, b) que se aceite o desafio proposto pela Danone e c) que se
tome o Activia todos os dias.
4. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES PERTINENTES
Após analisar estas sequências discursivas com seus raciocínios e argumentos,
pode-se considerar que a prática discursiva do anúncio estudado, ao menos em sua
estrutura verbal/oral, que veicula o discurso publicitário do iogurte Activia, utilizandose do esquema aristotélico, revela certas estratégias argumentativas e discursivas na
procura de propiciar adesão à tese de que o produto faz o intestino lento e preguiçoso de
quem o consome funcionar.
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Neste sentido, em nível de exórdio, o anúncio inicia o discurso com a introdução
de que o consumo deste iogurte faz o intestino de quem o consome funcionar. Já a
narração arrola os fatos que serão apresentados, no caso, indicando que não ir ao
banheiro todos os dias é sinal de problemas intestinais. Em seguida, as provas procuram
afirmar e comprovar a eficácia deste produto por ele conter em sua fórmula o exclusivo
bacilo Dan Regularis. E por fim, na peroração, esta peça publicitária em seu discurso,
valendo-se de verbos no imperativo, ratifica sua potencialidade persuasiva, ao passo de
conclusão, ordenando: i) que se regule o funcionamento intestinal para se ter uma vida
mais saudável; ii) que se faça o desafio proposto pela Danone; iii) e que consuma o
iogurte Activia todos os dias.
Reforçando os argumentos apresentados, principalmente os legitimadores, este
anúncio utiliza finalizando a mensagem que anuncia o consumo do Activia como forma
de regular o trânsito intestinal, o enunciado: se não funcionar a Danone devolve seu
dinheiro. Este enunciado trabalha de forma a reforçar a imagem de confiança da Danone
frente aos receptores. Assim, pode-se dizer, à guisa de conclusão, que no anúncio do
desafio Activia, encontram-se, na dimensão probatória, argumentos técnicos,
legitimadores e motivacionais, e que nesta dimensão argumentativa há o predomínio
dos argumentos legitimadores, isto é, este anúncio explora, para justificar sua tese, a
imagem da Danone (ethos prévio e discursivo).
Por isso, vê-se a Danone, ao dizer que devolve o dinheiro para quem não tiver o
funcionamento intestinal regulado pelo consumo diário do Activia, avalizar a afirmação
de que o consumo deste iogurte faz o intestino lento e preguiçoso funcionar.
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Cascavel: Edunioeste, 2008.
________; SCHRÖDER, Luciane Thomé. Ah! Eu não tenho dó! Eu falei. Revista
Veredas (UFJF), V. 1, 2008. p. 22-32.
DITTRICH, Ivo José. Por uma Retórica do Discurso: argumentação técnica, emotiva e
representacional. Revista Alfa, São Paulo, nº 52 (1), 2008, p. 13-37.
MAINGUENEAU, Dominique. Gênese dos discursos. [Trad. Sírio Possenti]. Curitiba:
Criar Edições, 2005.
ORLANDI, Eni P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas, SP:
Pontes, 2001.
POSSENTI, Sírio. Os limites do discurso: ensaios sobre discurso e sujeito. São Paulo:
Parábola Editorial, 2009.
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PEDRINHAS NA MÍDIA INTERNACIONAL
Uma análise da cobertura jornalística
do portal BBC sobre a violência
carcerária
Brena Freitas RODRIGUES¹
RESUMO: A crise carcerária no Complexo Penitenciário de Pedrinhas provocou
repercussão na imprensa internacional em função dos crimes contra a dignidade do ser
humano, da violência na cidade de São Luís, capital do Estado, e das manifestações
populares que desencadearam urgência de medidas efetivas contra a violência, exigidas
pela Organização das Nãções Unidas - ONU e pela Anistia Internacional. Baseado
nisso, o presente trabalho tem como proposta investigar a cobertura da imprensa
internacional sobre tais fatos, a partir da análise do portal British Broadcasting
Corporation - BBC, de outubro de 2013 a janeiro de 2014, período em que ocorreram os
principais acontecimentos que deram origem à crise de violência na capital e,
consequentemente, ganharam atenção da mídia internacional. Este trabalho também visa
compreender o processo de noticiabilidade e sensacionalismo durante a cobertura
jornalística.
PALAVRAS-CHAVE:
Violência,
Imprensa
Internacional,
Noticiabilidade;
Sensacionalismo.
ABSTRACT: The prison crisis in the Penitentiary of Rhinestones caused repercussions
in the international press on the basis of crimes against human dignity, violence in the
city of Sao Luis, capital of the State, and the popular demonstrations that sparked urgent
effective measures against violence, required by the United Nations - UN and Amnesty
International. Based on this, this paper aims to investigate the international press
coverage of such events, from the analysis of the British Broadcasting Corporation BBC website, October 2013 to January 2014, during which time the major events that
led to the crisis of violence occurred in the capital and, consequently, gained
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international media attention. This work also aims to understand the process of
newsworthiness and sensationalism during news coverage.
KEYWORDS: Violence; International Press; News Value; Sensationalism.
1 INTRODUÇÃO
O surto de violência ocorrido no Complexo Penitenciário de Pedrinhas, em São
Luís do Maranhão, provocou nos últimos meses uma crise de segurança na cidade
jamais vista pelos ludovicenses, que desencandeou uma série de consequências que
foram desde manifestações populares pela sociedade que clamava por segurança às
autoridades competentes, até a urgência de medidas efetivas contra a violência, exigidas
pela Organização das Nações Unidas – ONU e pela Anistia Internacional, fatos que
repercutiram na imprensa nacional. O primeiro tópico deste artigo contém um breve
histórico sobre o caso, que discorre sobre a causa inicial, as facções envolvidas na
rebelião, os crimes bábaros ocorridos na penitenciária, a onda de terror que se espalhou
pela cidade por conta dos ataques à ônibus e delegacias, além de uma criança morta por
bandidos.
Durante o período de pesquisa para a realização deste trabalho, de outubro de
2013 a janeiro de 2014, as principais notícias dos meios de comunicação do Maranhão,
do Brasil e do mundo eram voltadas para os crimes que aconteciam na penitenciária de
Pedrinhas e na capital do Estado. No segundo tópico, os autores Nelson Traquina e
Mauro Wolf serviram como referência para explicar o porquê do termo “onde há morte,
há jornalistas” e o motivo das notícias de violência terem tanto espaço na mídia, falando
sobre os critérios de noticiabilidade e identificando os valores-notícias presentes no
tema deste trabalho, tais como os de relevância, notabilidade, inesperado, dentre outros.
O terceiro tópico possibilita a compreensão sobre o sensacionalismo na
imprensa. De acordo com Traquina “o jornalismo também é um negócio” (2001, p.77) e
o sensacionalismo vende. A partir disso, entendemos porquê a dicotomia mórbido-lucro
está tão presente nos meios de comunicação da contemporâneidade. De acordo com o
autor do livro Espreme que sai sangue – Um estudo do sensacionalismo na imprensa,
Danilo Angrimani Sobrinho (1995, p.11), o que distingue o meio sensacionalista do
meio informativo comum é a linguagem, que é especifica e remete ao inconsciente.
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Desta forma, entenderemos também porque o sensacionalismo vende, através da
linguagem utilizada e da forma de conteúdo do jornalismo sensacionalista.
Comentaremos também sobre as consequências resultadas do gosto da população pelo
sensacionalismo.
O último tópico traz informações gerais sobre a cobertura jornalística do British
Broadcasting Corporation – BBC no período já citado, que acompanhou o caso e
publicou 19 matérias no portal de notícias da emissora nas áreas BBC Brasil e BBC
News Latin American & Caribbean, aos quais relataram desde as rebeliões, as guerras
entre as facções criminosas, o número de mortos, até as condições sub-humanas que os
presidiários vivem no Complexo Penitenciário de Pedrinhas, além da pressão que as
autoridades do estado e do país sofreram para que se pronunciassem e adotassem
medidas emergenciais que solucionassem o caso. Veremos também neste tópico, quais
os critérios de noticiabilidade identificados nas matérias selecionadas.
Por fim, consideramos que o problema da crise de segurança na cidade gerou
várias outras questões que necessitavam de atenção, como a crise carcerária no Brasil, o
descaso na assistência dos presidiários, a violação dos direitos humanos, o abandono
dos projetos de construções de novos complexos penitenciários, inclusive a reforma do
Complexo Penitenciário de Pedrinhas, e principalmente a falta de segurança que a
sociedade sofre nos dias atuais.
Expomos os lados positivo e negativo para São Luís diante de tamanha
repercussão sobre o caso, e questionamos até onde vai a disputa do bom senso X
audiência dos meios de comunicação, até onde vale fazer jornalismo para vender, e
esquecer a ética diante da situação das vítimas envolvidas em determinadas
circustâncias, além de refletir sobre o que o incentivo ao sensacionalismo nos meios de
comunicação pode nos causar futuramente.
2 CRISE CARCERÁRIA EM PEDRINHAS: o estopim da violência em São Luís
A crise da segurança, até então nunca vista pelos maranhenses, teve início no dia
1º de outubro de 2013, quando 18 presos foram transferidos para o Complexo
Penitenciário de Pedrinhas. As rebeliões na penitenciária decorreram de guerras entre
facções criminosas, após uma tentativa de revista da polícia nas celas, e a descoberta de
um túnel para fuga de 60 presos. Tudo isso culminou em detentos decapitados,
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atentados contra a polícia, ônibus queimados, uma criança morta por bandidos que
atearam fogo em seu corpo e uma sociedade vivendo em um misto de revolta e pânico.
As aulas em colégios e universidades foram suspensas, o expediente em
empresas e repartições públicas foi reduzido e os ônibus foram recolhidos às 18h. A
guerra entre as facções “Bonde dos 40” e do “Primeiro Comando do Maranhão – PCM”
para saber quem comandava a cidade, estava declarada. Foi decretado estado de
emergência no sistema prisional e na segurança de São Luís, fato que fez com que a
atenção da mídia internacional se voltasse à cidade.
O assunto mais comentado das redes sociais foi a violência em Pedrinhas.
Manifestações populares e o horror que estava sendo espalhado pressionaram
pronunciamentos de autoridades e tentativas para solucionar o caso da forma mais
rápida possível. Isso fez com que outras problemáticas do sistema prisional do Brasil
também fossem discutidas por entidades como a Anistia Nacional e a Organização das
Nações Unidas – ONU.
3 NEWSMAKING: os valores-notícia
Sendo noticiabilidade um conjunto de elementos por meio dos quais o aparato
informativo controla e administra tanto a quantidade quanto o tipo de acontecimento
que serve de base para a seleção de noitícias, Mauro Wolf (2003, p. 202) define valoresnotícia como um componente da noticiabilidade. Os valores-notícia são critérios de
relevância difundidos ao longo de todo processo de produção, estando presentes na
seleção de notícias, e permeando os procedimentos posteriores, com uma importância
diferente.
Ainda de acordo com o autor, os valores são critérios para selecionar os
elementos mais importantes, auxiliando os jornalistas a elaborar a matéria ou
reportagem final. Além disso, eles funcionam como linhas-guia para a apresentação do
material, sugerindo o que deve ser enfatizado, o que deve ser omitido, onde dar
prioridade na preparação das notícias a serem apresentadas ao público.
Os valores/notícia são a qualidade dos eventos ou da sua construção
jornalística, cuja ausência ou presença relativa os indica para a inclusão num
produto informativo. Quanto mais um acontecimento exibe essas qualidades,
maiores são suas chances de ser incluídos. (Golding e Elliot apud Wolf: 203).
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Wolf (2003, p. 207) afirma que os valores-notícia derivam de admissões
implícitas ou de considerações relativas aos caracteres substantivos da notícia – o seu
conteúdo; a disponibilidade do material e os critérios relativos ao produto informativo;
o público; a concorrência. Tendo como primeira ordem de considerações o evento que é
transformado em notícia. Já a segunda diz respeito ao conjunto de processos de
produção e realização da notícia, o terceiro se refere à imagem que os jornalistas têm
dos destinatários, e o último às relações entre os meios de comunicação de massa
presentes no mercado de informação. No presente trabalho, limitaremos a discorrer
sobre a primeira ordem.
Wolf (2003, p. 208) diz que os critérios substantivos articulam-se em dois
fatores: a importância e o interesse da notícia. A importância da notícia é determinada
por quatro variáveis, que pode ser pelo grau e nível hierárquico dos indivídios
envolvidos no acontecimento noticiável, o impacto sobre a nação e sobre o interesse
nacional, que relaciona o valor-notícia da proximidade, a quantidade de pessoas que o
acontecimento envolve, e a relevância e significatividade do acontecimento em relação
aos desenvolvimentos futuros de uma determinada situação.
À respeito da noticiabilidade dada pelos meios de comunicação locais sobre a
crise carcerária, a importância de tal notícia possui os quatro itens de importância
citadas por Wolf. Sobre o grau de nível hierárquico, pode-se dizer que o governo
estadual foi diretamente envolvido no caso, por ter sido acusado de incompetência no
quesito segurança pública. Em relação ao impacto sobre a nação e interesse nacional,
Pedrinhas foi listada entre as seis piores prisões do Brasil. Por fim, sobre a quantidade
de pessoas envolvidas no acontecimento, relevância e significatividade, pode-se
relacionar os mais de 60 presos mortos na rebelião da penitenciária, além das pessoas
que sofreram algum tipo de violência na cidade, como roubos e assassinatos, por parte
de membros da facção criminosa.
No que diz respeito ao interesse da notícia, Wolf (2003, p. 213) diz que isso está
diretamente ligado às imagens que os jornalistas fazem do público. Afirma que
interessantes são as notícias que buscam dar ao caso uma interpretação baseada no lado
do “interesse humano”. Algumas categorias normalmente são usadas para identificar os
acontecimentos que respondem a esse requisito de noticiabilidade, que são o de histórias
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de pessoas comuns e que passam a reagir em situações insólitas, ou histórias de homens
públicos, observados em sua vida privada cotidiana; histórias em que há uma inversão
de papéis; histórias de interesse humano; histórias de feitos excepcionais ou heróicos.
De acordo com o autor Nelson Traquina, (2002, p. 173) noticiabilidade é um
conjunto de critérios e operações que fornecem aptidão de merecer um tratamento
jornalístico, isto é de possuir valor como notícia.
Os critérios de noticiabilidade são o conjunto de valores-notícia que
determinam se um acontecimento ou um assunto, são suscetíveis de se tornar
noticia, isto é, serem julgados como transformáveis em matéria noticiável,
por isso, possuindo valor notícia.
Durante a cobertura jornalística no período da pesquisa, notou-se que o portal
utilizou-se de alguns critérios de noticiabilidade ou valores-notícia, para acompanhar o
caso. Os valores notícias de seleção, ou critérios substantivos, identificados nas matérias
citadas foram os de morte, o qual Traquina explica (2005, p. 79), que é um dos
principais valores-notícia utilizados por jornalistas, pela notoriedade que notícias com
esse aspecto causam; relevância, onde é determinado que a noticiabilidade tem a ver
com a capacidade do acontecimento ter impacto sobre as pessoas ou sobre o país;
Outro valor identificado foi o da notabilidade, onde entende-se que
acontecimentos visíveis ou tangíveis tem mais valor-notícia, pelo fato de a cobertura
jornalística está mais voltada para acontecimentos do que para problemáticas;
inesperado, que são acontecimentos que surpreendem a comunidade jornalística; e o
valor-notícia conflitos e controvérsias, o qual o uso da violência representa a quebra do
que é normal, a presença da violência fornece mais valor-notícia;
Já o valor-noticia com critério contextual foi o de visualidade, já que elementos visuais, no
caso imagens de detentos decapitados, sangue, manifestações e etc, somados à informações, dão
maior valor-notícia.
4 SENSACIONALISMO
Sobre o sensacionalismo na comunicação, o autor Danilo Angrimani Sobrinho
(1995, p. 11) diz que o que distingue o meio sensacionalista do meio informativo
comum é a linguagem, que é especifica e remete ao inconsciente. Dentre as definições
da palavra sensacionalismo, o mais condizente com o assunto abordado é o de
divulgação e exploração, em tom espalhafatoso, de matéria capaz de escandalizar ou
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emocionar. Uso de escândalos, atitudes chocantes, hábitos exóticos, etc. com o mesmo
fim. Exploração do que é sensacional na literatura, na arte e etc.
De acordo com Sobrinho (1995, p. 13), o termo sensacionalista é a primeira
palavra que as pessoas usam para condenar uma publicação. Seja qual for a restrição, o
termo é sempre usado para quase todas as situações. Ainda de acordo com o autor
(1995, p. 14), no jornalismo, a palavra sensacionalista não só é confundida com
qualificativos editoriais como audácia, irreverência, questionamento, mas também com
imprecisão, erro na apuração, distorção, deturpação, editorial agressivo. Sobrinho
afirma ainda que, para que o termo perca esse caráter múltiplo, há uma necessidade de
melhor caracterizá-lo.
O sensacionalismo está presente em todos os meios de comunicação desde os
primórdios da história da imprensa mundial. Sobre esse fato, o autor (1995, p. 19) faz
uma análise do início da imprensa nos países da França e Estados Unidos, verificando
que o sensacionalismo já estava presente na origem do processo comunicacional, com
jornas que traziam notícias fantásticas e que “agradavam a todos”, onde predominava o
exagero, a falsidade ou inverossimilhança, imprecisões e inexatidões.
Sobre o jornal sensacionalista, Sobrinho (1995, p. 56) afirma que há critérios que
diferenciam-o dos outros informativos.
O jornal sensacionalista difere dos outros informativos por uma série de
motivos específicos, entre os quais a valorização editorial da violência. O
assassinato, o suicídio, a vingança, as situações conflitantes, as diversas
formas de agressão sexual, tortura e intimidação ganham destaque e merecem
ser noticiadas no jornal a sensação.
Traquina (2001, p. 191) também afirma que o sensacionalismo praticamente nasceu
junto com a imprensa.
O sensacionalismo foi, quando muito, mais predominante nas publicações na
Europa do século XVIII que precederam o jornal. O autor britânico Matthew
Engel (1996) escreve sobre os mídia noticiosos em Inglaterra nessa altura
desta forma: Assuntos carnais e pecados secretos eram o tema dos jornais
populares de domingo.
4.1 Por que o sensacionalismo vende?
O sensacionalismo é popular, dá ibope e traz lucro aos meios de comunicação.
Se ajuda na disputa com a concorrência, ele sempre encabeçará as principais notícias
divulgadas diariamente. Se está sempre presente nas informações é porque há retorno.
Ainda de acordo com Traquina (2001, p.77) o jornalismo também é um negócio.
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Todas as empresas jornalísticas, com a exceção das empresas públicas,
enfrentam mais tarde ou mais cedo a tirania do balanço econômico final, ou
seja, a comparação entre os custos e as receitas. [...] Temos aqui o problema
do sensacionalismo no jornalismo, acentuado ainda mais pela lógica da
concorrência. A procura do lucro poderá levar a empresa jornalística à
crescente utilização de critérios econômicos, nomeadamente o recurso às
técnicas de marketing.
A dicotomia mórbido-lucro presente nos meios de comunicação diz respeito a
um dos valores-notícia mais aplicados pelos jornalistas. O mórbido vende e gera lucro
aos meios de comunicação. Traquina explica (2005, p. 79), que a morte é um dos
principais valores-notícia utilizados ao buscar uma pauta, pelo fato da notoriedade que
notícias com esse aspecto causam.
Traquina usa a expressão “onde há mortes, há jornalistas”, para afirmar que a
morte é um valor-notícia fundamental no âmbito jornalístico, o que explica o
negativismo que é apresentado diariamente nos meios de comunicação. Por outro lado,
parte da sociedade fascinada por tal conteúdo, quando não divulga o macabro, inventao. O autor Danilo Angrimani Sobrinho (1995, p. 15) também compartilha do
pensamento de Traquina, quando afirma a prática sensacionalista como o grau mais
radical da mercantilização.
Tudo o que se vende é aparência e, na verdade, vende-se aquilo que a
informação interna não irá desenvolver melhor do que a manchete. Esta está
carregada de apelos às carências psíquicas das pessoas e explora-as de forma
sádica, caluniadora e ridicularizadora. (...) O jornalismo sensacionalista extrai
do fato, da notícia, a sua carga emotiva e apelativa e a enaltece.
4.2 O gosto pelo sensacionalismo
A disseminação na mídia digital e local sobre a “carnificina” que ocorria em São
Luís durou várias semanas. Foi divulgado pelas redes sociais, bloggers e jornais locais,
desde boatos de arrastões e assaltos pela cidade, vídeos de detentos sendo decapitados e
até imagens da menina Ana Clara Santos Sousa, sendo queimada. As mídias digitais
também auxiliaram na organização de várias manifestações populares pela cidade.
Sobrinho (1995, p. 16) afirma que a imprensa sensacionalista serve mais para
desviar o público de sua realidade imediata do que voltar-se para ela. Fato que
visivelmente também acontece com a população, quando boatos são criados diante da
repercussão de determinado caso. Do ponto de vista jornalístico, o autor diz que a
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Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111
São Luís - MA, janeiro/junho de 2014 - Ano XIX - Nº 14
linguagem
do
sensacionalismo
é
casual
e
clara,
porque
envolve
o
leitor/telespectador/ouvinte e por isso, tal linguagem não poderia ser sofisticada, nem
elegante.
A linguagem deve ser coloquial exagerada, com emprego excessivo de
gírias e palavrões. (...) A linguagem sensacionalista não admite
distanciamento, nem proteção, nem neutralidade. É uma linguagem que
obriga o leitor a se envolver emocionalmente com o texto, uma linguagem
editorial clichê.
Além disso, quando Sobrinho (1995, p. 54) diz que a morte interessa à todos,
igualitariamente, independente do nível cultural ou econômico de cada pessoa, entendese que grande parte da população tem a morte como objeto de fascínio. Assim,
Angrimani define que todos querem ser informados, independente da intelectualidade
ou classe social. O interesse do leitor pela notícia inclusive de casos de morte, no
informativo comum, é o mesmo do leitor que gosta do sensacionalismo. O que muda é
apenas a forma de noticiar, ou seja, a linguagem.
A diferença de um público para o outro se admite como divisão de mercado.
Mas ambos fazem parte da mesma camada de verniz cultural que é rompida
todas as manhãs na leitura do jornal diário, quando se é informado dos crimes
em série de um canibal, estupros, incestos, crimes passionais...
Sonbrinho (1995, p. 54) diz que tanto o leitor do jornal sóbrio quanto o que
prefere o sensacionalismo, se interessa pelo crime. O que faz com que o mercado se
divida e haja um público exclusivo para o sensacionalismo, é a linguagem.
A linguagem editorial, que é a forma de se destacar uma foto, tornar o texto
mais atraente, enfim, a busca de um equilíbrio entre ilustração e texto, além
da preferência por matérias originadas de fait divers, em detrimento de temas
político-econômico-internacionais que servem como estímulo predominante
no jornal informativo comum.
A partir disto, entende-se que a sociedade contemporânea se sente familiarizada
com o sensacionalismo, pois os fatos tornados sensacionalistas pelos meios de
comunicação tornam-se quase que “normais” no seu dia-a-dia. Pela linguagem do
sensacionalismo ser popular, as pessoas não sentem o tamanho da violência que se
apresenta e assim se deixam levar pela curiosidade corriqueira, tornando essa relação de
tragédia X consumo, um ciclo vicioso.
A disputa sobre quem continha maiores informações e provas sobre o caso,
gerando assim mais audiência e divulgação tanto para os meios de comunicação quanto
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para internautas, fez com que os fatos tivessem repercussão mundial. O sensacionalismo
alimentava os meios de comunicação e era alimentado pela sociedade.
5 A COBERTURA JORNALÍSTICA DO PORTAL BBC
Limitamos este capítulo à análise do portal de notícias BBC, referente às
publicações de matérias sobre a crise carcerária e de segurança no Maranhão, durante o
período de outubro de 2013 a janeiro de 2014, foram 19 matérias publicadas nas áreas
BBC Brasil e BBC News Latin American & Caribbean, que relataram desde as
rebeliões, as guerras entre as facções criminosas, o número de mortos, até as condições
sub-humanas que os presidiários vivem no Complexo Penitenciário de Pedrinhas, além
da pressão que as autoridades do estado e do país sofreram para que se pronunciassem e
adotassem medidas emergenciais que solucionassem o caso.
Em outubro de 2013, foram publicadas duas matérias onde a primeira, do dia 10,
relatava a causa principal da rebelião que iniciou toda a crise de segurança no estado e o
número de mortos e feridos em Pedrinhas. A polícia de choque afirmou que a guerra
iniciou com a descoberta de um túnel que estava sendo escavado por 60 presos. O
confronto ente detentos e policiais foi aproveitado por membros de gangues rivais para
um acerto de contas entre as facções. Foram 13 mortos e 30 feridos. Sete ônibus foram
queimados em São Luís após a rebelião.
A segunda, divulgada no dia 11, destacou a investigação da polícia sobe os
boatos espalhados por São Luís através das redes sociais, após o primeiro dia de
rebelião, que causaram pânico na cidade. A falsa informação de que estava acontecendo
ataques e arrastões em sinal de vingança por parte dos detentos na capital, fez com que
todo o comércio do centro da cidade fosse fechado. O Secretário de Segurança Pública
do Estado, Aluísio Mendes, prometeu punir os envolvidos nos boatos.
Já em Dezembro de 2013, o portal contou com uma matéria que destacou o
conteúdo de um relatório feito pelo juiz do distrito, Douglas Martins, que continham
detalhes de casos como relações sexuais de detentos a espaço aberto, cenas de tortura, e
um saldo de 59 mortes, incluindo a decapitação de três presos. O juiz afirma ainda que
as instalações do Complexo Penitenciário de Pedrinhas são extremamente lotadas,
motivo de grande revolta entre os detentos. A matéria cita uma declaração do Ministro
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da Justiça, José Eduardo Cardozo, afirmando que “o Brasil tem um sistema prisional
medieval, que viola os direitos humanos e não permite a reintegração social ao cidadão
que é detido”. O portal também ressaltou o problema das facções criminosas liderarem a
grande maioria dos presídios do Brasil.
Figura 5: Guerra de gangues em prisão de Pedrinhas no Brasil deixa 59 mortos em 2013
No mês de Janeiro, o conteúdo das matérias resumia-se nas consequências da
crise, como o caso da menina de seis anos que faleceu vítima de queimaduras graves,
após bandidos atearem fogo em seu corpo durante os ataques aos ônibus da cidade.
Durante a pressão exercida sobre as autoridades para que o caso fosse solucionado,
houveram reflexões sobre a situação dos presídios do Brasil, e a informação de que o
Complexo de Pedrinhas estava entre as seis piores prisões do Brasil. No total, foram 16
matérias publicadas sobre o caso.
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Dentre as principais, as matérias que informavam sobre a pressão da sociedade
para um pronunciamento das autoridades sobre a situação que o estado se encontrava,
tiveram maior destaque. Como a que relatava que o Alto Comissariado de Direitos
Humanos da ONU, a Anistia Internacional e Human Rigths Watch divulgaram
comunicados oficiais que reprovavam os abusos de direitos humanos praticados em
Pedrinhas. Segundo o portal BBC, a ONU lamentava ter que expressar preocupação
com o péssimo estado das prisões no Brasil. Para a Anistia Internacional, era inaceitável
que tal situação se prolongasse por tanto tempo sem nenhuma atitude efetiva das
autoridades responsáveis.
Outro fato importante destacado pelo portal foi a morte da menina de seis anos
de idade, que teve seu corpo queimado quando estava dentro de um dos ônibus atacados
pelos bandidos. Delegacias de polícia também foram atacadas, com vários tiros
disparados contra os policias, causando a morte de alguns deles. De acordo com o
secretário de segurança, Aluísio Mendes, as ordens dos ataques partiram de dentro do
presídio. A Ordem dos Advogados do Brasil - OAB exigiu que o estado indenizasse às
famílias das vítimas envolvidas nos ataques.
Foram vários os pronunciamentos de autoridades. Dilma Rousseff, presidente do
Brasil, declarou que estava acompanhando de perto a crise em São Luís, citando o envio
de tropas da Força Nacional que apoiou as medidas de seguranças locais. Joaquim
Barbosa, Ministro do Supremo Tribunal Federal – STF, disse que as prisões brasileiras
eram um inferno, e para exemplificar o que chamou de "natureza explosiva das prisões
brasileiras controladas por organizações criminosas", o presidente do STF citou o caso
da Central de Custódia de Presos de Justiça (CCPJ) de Pedrinhas, onde mais de 60
presos morreram em 2013.
Nota-se que o portal BBC News noticiou apenas os fatos mais “violentos”, que
marcaram a crise de segurança na cidade e que impactaram no cenário nacional e
internacional, gerando outras notícias importantes como relatos de autoridades
competentes ao caso. O portal não só relatou os motins e o caos que ocorria no estado,
mas fez também um comparativo ao sistema prisional brasileiro como um todo,
apontando os maiores problemas dos complexos penitenciários do país, que em geral
são os principais motivos de rebeliões, como os de superlotação, maus tratos, violação
dos direitos humanos, e lideranças de facções criminosas.
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Figura 8: Complexo Penitenciário de Pedrinhas está entre as seis piores prisões do Brasil.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Foi-se o tempo em que a população precisava comprar o jornal pela manhã pra
saber o que ocorreu no dia anterior. A ansiedade, que antes era um sentimento habitual
que acompanhava o telespectador na espera do Jornal Nacional para saber sobre os
acontecimentos do dia, no Brasil e no mundo, já não é mais tão comum. A disputa entre
os meios de comunicação para saber quem primeiro veicula uma notícia inédita é o
grande desafio da imprensa na atualidade. Os jornalistas precisam estar constantemente
conectados ao mundo virtual e preparados para informar a sociedade sobre qualquer
acontecimento, a qualquer hora do dia.
A era da convergência digital possibilita à sociedade contemporânea,
informações facilmente transmitidas com rapidez. Talvez por isso, qualquer cidadão se
torna repórter por um dia, qualquer fato pode virar notícia, além de nos mantem bem
informados durante a correria do dia-a-dia. Foi ela quem sustentou a repercussão da
crise de segurança em São Luís, ajudando a sociedade a pressionar as autoridades
competentes para que mostrassem uma solução rápida e eficaz para o horror que
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acontecia na cidade. Foi com a ajuda da convergência digital, que as pessoas souberam
de todas as medidas emergenciais tomadas por essas autoridades.
Neste trabalho, que teve como tema a crise carcerária em Pedrinhas, expomos os
fatos e explicamos como se deu o processo de noticiabilidade do caso, relatando a
reação da população, a criteriabilidade da imprensa para a construção das notícias, o
sensacionalismo sempre presente na divulgação das notícias e a influência que a mídia
exerceu quando da pressão para que cessasse a grave onda de criminalidade na capital.
O problema da crise de segurança na cidade gerou várias outras questões que
necessitavam de atenção, como a crise carcerária no Brasil, o descaso na assistência dos
presidiários, a violação dos direitos humanos, o abandono dos projetos de construções
de novos complexos penitenciários, inclusive a reforma do Complexo Penitenciário de
Pedrinhas, e principalmente a falta de segurança que a sociedade sofre nos dias atuais.
Figura 9: Ministro do Supremo Tribunal Federal fala sobre o sistema carcerário brasileiro
Antes de utilizar qualquer critério de noticiabilidade, é preciso que o bom senso
venha primeiro. Existem diversas maneiras de informar e vender, de reivindicar e
manifestar. Todo cuidado é necessário com a rede. Uma vez que qualquer tipo de
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informação está nela, ninguém mais tem o controle. Grande parte das imagens e
informações divulgadas nas redes sociais foi utilizada em matérias e reportagens dos
meios de comunicação, exibidos diariamente durante esse período de pesquisa,
obrigando assim, que as autoridades se pronunciassem o mais rápido possível,
anunciando medidas efetivas para conter a criminalidade em São Luís. Podemos definir
dois lados, um positivo e um negativo, sobre o resultado da crise carcerária. Pelo lado
positivo, houve resposta imediata de entidades civis e da Secretaria Nacional de Direitos
Humanos, que classificaram a situação no Complexo Penitenciário de Pedrinhas como
gravíssima. A ministra da Secretaria dos Direitos Humanos, Maria do Rosário, afirmou
que era preciso retomar o controle. Ela coordenou uma reunião do Conselho de Defesa
dos Direitos da Pessoa Humana que tratou da situação em Pedrinhas e propôs que o
governo federal deveria estudar a realização de uma intervenção na capital.
Até o final do mês de janeiro, uma série de medidas emergenciais foi
providenciada por autoridades estaduais e federais para tentar resolver a crise no estado.
O portal BBC News informou que o Ministério da Justiça decidiu que a Força Nacional
iria prorrogar até o fim do mês de fevereiro de 2014 a presença de policiais nos
presídios maranhenses, que junto com a tropa de choque da polícia militar do estado,
iriam tentar garantir a ordem em Pedrinhas. O portal também noticiou que a polícia
ludovicense e o governo federal viabilizaram a transferência de detentos líderes das
facções em conflito para presídios federais.
Além disso, a venda de combustíveis em recipientes foi proibida pelo governo
do estado, na tentativa de dificultar que criminosos incendiassem mais ônibus em São
Luís em retaliação à presença das tropas policiais nos presídios. Também contou como
medida emergencial pelo governo, um investimento de mais de R$ 130 milhões para a
abertura de 2.800 vagas no sistema prisional do Maranhão até o final do ano. A
administração de Pedrinhas afirmou que todos os crimes de abuso e violência ocorridos
nos presídios seriam investigados.
Entidades Internacionais, como a ONU, exigiram que o Brasil tomasse
providências para um caos que assola a maioria dos presídios do país. Será que o
mesmo aconteceria se a sociedade não tivesse utilizado da convergência digital para
mostrar ao mundo com imagens chocantes o que realmente acontecia em São Luís? Será
que a população mundial teria conhecimento disto e iria tomar providências de forma
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tão rápida quanto à violação dos direitos humanos cometidos nos presídios, por
exemplo? Será que os meios de comunicação, na sua grande parte, ligados a domínios
políticos, iriam dar tamanha visibilidade ao caso?
Assim, entende-se que a internet, aliada aos meios de comunicação, aos
dispositivos móveis e as redes sociais são grandes aliados da sociedade contemporânea,
principalmente no sentido de tomar conhecimento e denunciar os crimes e erros
praticados no meio em que vivem, levando tais fatos ao conhecimento de uma grande
quantidade de pessoas, de forma rápida e incontrolável, favorecido pela era da
convergência digital.
Pelo lado negativo, quem sabe por quanto tempo vai durar a imagem do horror
que o mundo inteiro atrelou à cidade? Por tempo indeterminado, qualquer um poderá ter
acesso às barbaridades ocorridas no estado. Que sirva para pensarmos o que de fato
queremos ao usar as redes sociais somadas com os dispositivos móveis, de que forma a
era da convergência digital pode realmente nos auxiliar, como podemos fazer isso
dentro da ética, além de refletir sobre o que o incentivo ao sensacionalismo nos meios
de comunicação pode nos causar futuramente.
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AS ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS NA
EDITORIA "POLÍTICA NACIONAL" DA
REVISTA ROLLING STONE BRASIL:
A cobertura das eleições presidenciais
de 2010 no Brasil
Carlos Augusto de França ROCHA JÚNIOR4
RESUMO:
Esta pesquisa analisa os discursos na editoria "Política Nacional" da revista Rolling
Stone Brasil a respeito das eleições presidenciais brasileiras de 2010. O corpus é
composto por seis edições da revista, veiculadas no segundo semestre do referido ano.
Tenta-se compreender como os discursos da revista abordam as eleições daquele ano em
relação aos candidatos, as tendências políticas e o processo eleitoral em si. Adota-se o
referencial teórico da Análise de Discurso Crítica como modo de observar criticamente
os sentidos produzidos pela revista ao tratar da cena política brasileira. Para isso,
recorre-se a categorias analíticas como avaliação, ideologia e luta hegemônica.
PALAVRAS-CHAVE
Análise de Discurso Crítica. Comunicação. Cultura Pop. Discurso Político.
ABSTRACT
This research analyzes the discourses published at "Política Nacional" of Rolling Stone
Brasil magazine, concerning about the brazilian presidential elections in 2010. The
corpus consists in six issues of the magazine, circulated in the second half of that year.
We try to understand how the discourses of the magazine discuss the elections that year
about the candidates, political trends and the electoral process itself . Theoretical
4
Mestre em Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal do
Piauí, Membro do Núcleo de Estudo e Pesquisa em Estratégias de Comunicação - NEPEC/UFPI. E-mail:
[email protected]
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framework of Critical Discourse Analysis was adopted as a way to critically observe the
meanings produced by the magazine to address the Brazilian political scene. For this, was resort
to analytical categories such as evaluation, ideology and hegemonic struggle.
KEYWORDS
Critical Discourse Analysis. Communication. Pop Culture. Political Discourse.
1. INTRODUÇÃO
Rolling Stone Brasil é uma revista de cultura pop que conta com uma editoria
especializada em política nacional. Essa editoria apresenta as disputas e as relações
entre as diversas tendências políticas que estão envolvidas em lutas por hegemonia no
cenário político brasileiro. Contar com uma editoria voltada para política nacional não é
uma exclusividade da versão brasileira da revista Rolling Stone. A matriz norteamericana também conta com uma editoria especializada em política que, assim como
na edição brasileira, ocupa um espaço fixo na revista. Estudar como a revista se
posiciona para tratar o campo político e as ideologias que constituem seus discursos
articulados são importantes para pensar a própria existência da editoria.
A editoria habitualmente aparece próxima ao centro da revista entre as edições
selecionadas para o estudo. A editoria de “Política Nacional” destaca-se pela relação
entre os elementos que compõem a reportagem. Cada matéria da editoria conta com
uma ilustração acima do título que ajuda a traçar uma síntese do texto a ser apresentado
nas páginas seguintes. Caracterizada também por uma linguagem mais despojada em
relação a outras publicações que abordam o tema política, a publicação apresenta
descrições minuciosas sobre a personalidade dos personagens da cena, abordando até
mesmo aspectos pitorescos da vida dos políticos.
Através dos discursos presentes na revista é possível compreender como são
construídas as avaliações em torno dos candidatos à presidência do Brasil e como
Rolling Stone Brasil narra a luta hegemônica entre eles. São reportagens que destacam
como está estruturada a visão da revista sobre Dilma Rousseff (PT), José Serra (PSDB),
Marina Silva (PV) e as candidaturas menores. Estão em foco as estratégias da revista
em abordar estes candidatos e como ela apresenta-os para o público leitor.
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O estudo aborda o discurso como moldado e restringido pela estrutura social,
pelas relações entre as instituições particulares e que, através disso, ele promove não
somente uma representação do mundo, mas um processo de significação do mundo.
Tomando o discurso a partir de um viés crítico, o estudo aborda o tema como a
contribuição para a estruturação das dimensões da estrutura social que, direta ou
indiretamente, o moldam e o restringem.
As estratégias discursivas da publicação ao longo dos meses de campanha são o
foco da pesquisa que tem como corpus as seis edições de Rolling Stone Brasil
publicadas mensalmente no segundo semestre de 2010. Compreendendo os três
momentos em que o corpus está envolvido; pré-eleitoral, eleitoral e pós-eleitoral, a
análise acontece a partir das categorias destacadas para o trabalho.
O referencial teórico metodológico utilizado diz respeito à Análise de Discurso
Crítica que se interessa por analisar as relações de poder. A partir deste aspecto
destacam-se alguns autores como Ramalho e Resende (2011), Thompson (1996) e
Fairclough (2001) que abordam respectivamente as categorias de avaliação, ideologia e
poder como hegemonia.
A aplicação da avaliação, ideologia e luta hegemônica abordam o material
selecionado para destacar como os candidatos são tratados pela revista e como ela
posiciona-se em relação a eles. Caracterizar a cobertura eleitoral empreendida por
Rolling Stone Brasil é o foco do trabalho principalmente no modo como a revista
estabelece diferenciações entre os candidatos, entre as tendências políticas e os
posicionamentos no sistema eleitoral brasileiro.
2. DISCURSO, CAMPO E IDEOLOGIA: unidos pela prática social
As estratégias enunciativas que revista Rolling Stone Brasil utiliza para abordar as
eleições presidenciais de 2010 se constituem do uso da linguagem como prática social
por parte do jornalismo a partir da organização discursiva do testemunho de muitos
acontecimentos registrados por diversos suportes.
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A Teoria Social do Discurso proposta por Fairclough (2001) visa reunir a análise
de discurso orientada linguisticamente e o pensamento social e político relevante para o
discurso e a linguagem. Ramalho e Resende (2006) organizam as contribuições de
Fairclough sobre a ADC considerando a relação entre linguagem e poder, também
abordada por Bakhtin na primeira teoria semiótica da ideologia e na crítica ao
objetivismo abstrato de Saussure. A Análise do Discurso Crítica organiza-se como um
método marcadamente multidisciplinar, absorvendo aspectos da Linguística, assim
como da Linguística Sistêmica Funcional, da Educação, das Ciências Sociais e da
Comunicação.
Nessa perspectiva, o discurso é visto como um momento da prática social ao
lado de outros momentos igualmente importantes - e que, portanto, também
devem ser privilegiados na análise, pois o discurso é tanto um elemento da
prática social que constitui outros elementos sociais como também é
influenciado por eles, em uma relação dialética de articulação e
internalização. (RESENDE; RAMALHO, 2006, p. 38)
Entre as categorias analíticas a serem tomadas para o estudo estão em destaque a
avaliação, a ideologia e a luta hegemônica. Para Ramalho e Resende (2011) a avaliação
refere-se ao modo como os atores sociais identificam-se nas relações pessoais
manifestada nas marcas textuais. As ideologias, conceito chave para a ADC são
tomadas enquanto representações por parte da revista e também dos personagens
políticos que participam das eleições 2010. A respeito da luta hegemônica há a busca
por compreender como à maneira como os diversos discursos se articulam em diversos
campos e disputas ideológicas como por exemplo, na narrativa midiática.
Florence Albenas e Miguel Benasayag (2003) destacam que as narrativas
buscam reduzir a amplitude dos diversos fatos que acontecem simultaneamente a um
mundo condicionado com pessoas funcionando apenas como personagens. Neste
aspecto os autores criticam o modo como o jornalismo tenta formatar a realidade para
caber em modelos de narrativa. “Encontrar os personagens não é tudo. É preciso
também pô-los em cena. Um cientista com avental branco cercado de tubos de ensaio
terá um ar mais “verdadeiro” do que se estivesse no barbeiro” (AUBENAS;
BENASAYAG, 2003, p. 19).
A narrativa midiática encontra espaço em diversos suportes de comunicação.
Entretanto, o jornalismo de revista é onde a narrativa jornalística ganha espaço por
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excelência. Segundo Scalzo (2003) as revistas escutam o leitor de várias maneiras,
como pesquisas, telefonemas, cartas e e-mails. “[...] na absoluta maioria dos casos de
publicações bem-sucedidas no mercado, existe sempre algum modo, formal ou
informal, de escutar periodicamente o público.” (SCALZO, 2003, p. 39) Outro aspecto
de destaque para a revista é a periodicidade mais alongada.
O campo social é visto a partir da práxis voltado para ações concretas,
representado por recortes de posições dos agentes envolvidos em objetos sociais
compartilhados conforme os capitais culturais, econômicos e político-ideológicos. A
respeito da ideologia, cabe destacar que o mapeamento do conceito foi feito
principalmente por Thompson (1996) e a compreensão de como a noção é alterada a
partir das transformações sociais.
Segundo este autor a primeira concepção a respeito de ideologia vem de 1796 pelo
ideólogo francês Destutt de Tracy, para quem o conceito está associado diretamente à
análise sistemática de ideias e sensações. Nessa perspectiva ideologia consiste em uma
“ciência das ideias”, concepção apoiada por Napoleão Bonaparte quando ascende ao
poder, mas depois rejeitada e classificada como a defesa do regime monárquico anterior.
Na atualidade, impulsionada pelas comunicações de massa a ideologia está mais
relacionada ao conceito de hegemonia, conforme a visão de Gramsci - como a
dominação de um grupo sobre outro em que o grupo dominado aceita isto como norma a ideologia é uma das ferramentas para conseguir a dominação hegemônica.
O desenvolvimento da comunicação de massa aumenta, significativamente, o
raio de operação da ideologia nas sociedades modernas, pois possibilita que
as formas simbólicas sejam transmitidas para audiências extensas e
potencialmente amplas que estão dispersas no tempo e no espaço.
(THOMPSON, 1996, p. 343)
Atrelado ao conceito de ideologia, Fairclough (2001) traz o conceito de
hegemonia e principalmente de como o conceito envolve disputas. A hegemonia é
tratada pelo teórico como liderança, como dominação seja no domínio econômico,
cultural, político e ideológico de uma sociedade. O autor compreende hegemonia como
processo de como articulação, desarticulação e rearticulação de elementos em uma
forma de poder, mas não a única.
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No exercício da ideologia destaca-se principalmente o discurso político. Machado
(2006) pontua o discurso político como polifônico utilizando como exemplo a interação
da voz das fontes, do jornalista indivíduo, o jornalista instituição, o leitor,
diagramadores, revisores entre outros participantes. Ao tratar do discurso político,
principalmente na concepção do sujeito, Courtine (2006) destaca este sujeito político
como um todo, resultado das condições de produção e enunciação do enunciado. O
autor também adota a metáfora do teatro para explicar as relações entre as tendências
políticas.
Ele é o ponto de condensação entre linguagem e ideologia, o lugar onde
os sistemas de conhecimento político se articulam na competência
linguística, diferenciando-se um do outro, mesclando-se um ao outro,
combinando com um outro ou afrontando-o em uma determinada
conjuntura política. (COURTINE, 2006, p.64)
Para Courtine, o corpus do discurso político precisa primeiro ser delimitado em
um campo discursivo de referência, a exemplo do discurso de uma fonte particular do
campo do discurso político ou a fala de um participante de uma determinada formação
política. O autor enfatiza que “(...) todo discurso político deve ser pensado como uma
unidade dividida, dentro de uma heterogeneidade em relação a si mesmo, que a análise
do discurso político pode ser capaz de traçar.” (COURTINE, 2006, p. 68) O discurso
político é marcadamente um lugar de memória, o que para Courtine representa poder
porque a memória abre o direito à fala e a uma proposição eficaz.
3. ROLLING STONE BRASIL E POLÍTICA NACIONAL: uma revista de cultura
pop que aborda política
A cultura pop é um aspecto fundamental para a compreensão do objeto
em estudo a partir da percepção de que Rolling Stone Brasil é uma revista que tem
como tema principal, a cultura pop. A definição dessa expressão envolve a compreensão
de dois termos: cultura e o pop, conceitos amplos construídos a partir de relações
sociais.
A cultura pop é um aspecto fundamental para a compreensão do objeto em estudo
a partir da percepção de que Rolling Stone Brasil é uma revista que tem como tema
principal, a cultura pop. A cultura caracteriza-se então como algo diverso, marcada
principalmente pela multiculturalidade. Bauman (2002) ao empreender uma busca pelo
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conceito de cultura destaca pelo menos três conceitos envolvendo o termo: hierárquico,
voltado para a estruturação em níveis de cultura; diferencial, voltado para enfatizar as
diferenças entre comunidades e genérico, que regula fronteiras entre o homem e o
mundo.
Fundada, âmbito internacional, por Jonn S. Wenner em 1967, a revista Rolling
Stone surge a partir de um contexto marcado pela contracultura norte-americana e que
está interligada a um nicho editorial interessado em informações sobre temas
relacionados à produção cultural. A versão brasileira nasce em 1971, mas dura pouco
por problemas entre os representantes brasileiros e a matriz norte-americana.
Após 36 publicações, a RS Brasil padece em janeiro de 1973. São muitos os
fatores que levaram a revista ao precoce fim. Dentre os principais, é
pertinente ressaltar o grau de contracultura exalado por aqueles jornalistas
dos anos 70 (e que, não por mera coincidência, será diferente da equipe que
traz a RS Brasil ao mundo dos vivos na sua volta ao mercado editorial em
2006). Chegando ao ápice da prática do desapego material, os jornalistas dos
anos 70, após perderem o material da matriz norte-americana por falta de
pagamentos de royalties, mantiveram a revista em circulação sob um enorme
carimbo com a palavra “pirata” a cada nova edição. O fim, decretado no
início de 1973, acabou deixando um vácuo editorial que só seria preenchido
anos mais tarde com o aparecimento de outros títulos (dentre os quais a
revista Geração Pop e, posteriormente, a revista Bizz). (ALVES; SILVA;
ROCHA JÚNIOR, 2010, p. 5)
Rolling Stone volta ao Brasil com o que Anjos, Magalhães, Oliveira Filho e Rocha
Júnior (2010) chamam de editorial inovador, jovem e descontraído; voltado para o que a
revista chama de jovens entre 18 e 60 anos. Entre as principais características das
matérias publicadas em 2006, Anjos, Magalhães, Oliveira Filho e Rocha Júnior (2010)
destacam o discurso pedagógico, principalmente com o uso de recursos gráficos para
facilitar a compreensão do tema e a polifonia, com a remissão a outros discursos para
contextualizar a atualidade abordada através das reportagens.
Quatro anos depois Rolling Stone Brasil volta ao período de eleições
presidenciais brasileiras. Diferente de 2006, em 2010 a revista acompanha todo o ciclo
eleitoral brasileiro, a pré-campanha, a campanha eleitoral em si e os desdobramentos do
processo eleitoral. As reportagens publicadas ao longo daquele ano na editoria “Política
Nacional” vão contar as histórias envolvidas no processo eleitoral brasileiro, seja pelos
textos ou pelas imagens que apresentam cada matéria jornalística veiculada. “Como um
resumo do texto, esta ilustração explora por vezes personagens da cena política nacional
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e em outros momentos os elementos que são mais abordados na matéria jornalística.”
(MAGALHÃES, ROCHA JÚNIOR, 2013, p. 7)
Segundo os autores em 2010 o cenário político era diferenciado porque pela
primeira vez desde a redemocratização brasileira o nome de Luís Inácio Lula da Silva
(PT) não iria estar disponível para votação a presidente, afinal Lula já havia sido eleito
em 2002 e reeleito 2006. Entretanto, o presidente lançou uma candidatura, a da ministra
da Casa Civil, Dilma Rousseff (PT). A candidata anteriormente já tinha ocupado cargos
no governo do Rio Grande do Sul e de ministra das Minas e Energia, mas nunca tinha
disputado um cargo eletivo.
Na oposição, o principal nome era de José Serra (PSDB). Derrotado por Lula em
2002 o político havia ocupado cargos de ministro no governo Fernando Henrique
Cardoso, anterior ao governo Lula. Outra candidatura considerada a partir das pesquisas
de opinião de votos como competitiva era a da então senadora Marina Silva (PV). Exministra do Meio Ambiente, durante os dois mandatos do presidente Lula com a filiação
ao Partido Verde ela apresentou-se como candidata a presidência da República como
uma alternativa à PT e ao PSDB.
Nas eleições de 2010 também se apresentam como candidatos José Maria
Eymael (PSDC), Plínio de Arruda Sampaio (PSOL), Levy Fidelix (PRTB), José Maria
de Almeida (PSTU), Rui Costa Pimenta (PCO), Ivan Martins Pinheiro (PCB), João
Américo de Souza (PSL). Estas candidaturas com baixo percentual de intenção de votos
acabam relegadas a um papel secundário na cobertura midiática das eleições.
Em 2010 Rolling Stone Brasil através da editoria Política Nacional realiza uma
cobertura abrangente, desde a pré-campanha com a ascensão de possíveis candidatos até
a consolidação de candidaturas e, posteriormente, a disputa eleitoral em si que culmina
com a eleição de Dilma Rousseff para a presidência da República. Entre 12 edições que
abordam o tema eleições 2010, a escolha foi direcionada às edições correspondentes ao
período entre os meses de Julho e Dezembro de 2010.
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4. AS ELEIÇÕES PRESIDENCIAIS NAS PÁGINAS DE ROLLING STONE
BRASIL
Rolling Stone Brasil promove uma cobertura jornalística a respeito da política
nacional sob uma perspectiva de rotinas produtivas diferentes, menos fragmentadas, o
que é característico do suporte midiático, a revista. São textos e ilustrações que fazem
parte das reportagens publicadas por Rolling Stone Brasil na editoria "Política
Nacional" e que retratam a disputa eleitoral e tendências políticas estruturadas de
diversas maneiras na cena política nacional. Para tal finalidade, serão aplicadas três
categorias ao objeto em estudo: a hegemonia, a ideologia e a avaliação.
4..1 “O Monstro da Derrota”: A polarização entre PT e PSDB
A primeira edição de Rolling Stone Brasil no período eleitoral propõe-se a situar o
leitor na escolha do novo presidente da República. A escolha da revista é por revisitar a
polarização eleitoral entre o Partido dos Trabalhadores (PT) e o Partido da Social
Democracia Brasileira (PSDB). Com diversas afirmações avaliativas, em que segundo
Ramalho e Resende (2011), o elemento avaliativo está mais explícito nos resultados que
uma derrota traria às carreiras políticas de José Serra (PSDB) e Dilma Rousseff (PT) na
reportagem "O Monstro da Derrota", publicada na edição de Julho de 2010. Seguindo o
título, a reportagem conta com uma imagem em que Serra e Dilma aterrorizados e
encurralados em um beco escuro diante do tal monstro, conforme figura 1.
Figura 1: Ilustração da reportagem “O Monstro da Derrota” - Fonte: Rolling Stone Brasil
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A avaliação, categoria destacada por Ramalho e Resende (2011) como
identificacional, moldada por estilos, em torno de Dilma Rousseff e José Serra, está
mais detalhada ao longo do texto da reportagem. Em relação à candidata Dilma
Rousseff, a revista destaca o fato de que a petista nunca tinha disputado eleições
anteriores, caracterizando-a como uma neófita na política partidária, mesmo com
experiência administrativa.
Embora seja uma estreante nas urnas, uma eventual derrota de Dilma
Rousseff (PT) também deverá afastá-la de vez de uma segunda corrida
presidencial. [...] Na verdade, o apoio de Dilma é Lula. E mesmo como a
indicação do presidente houve forte resistência a seu nome de início.
(ROLLING STONE BRASIL, JULHO 2010, p. 46)
Por outro lado, José Serra é avaliado discursivamente como um derrotado. A
revista conjetura a possibilidade da segunda derrota do candidato do PSDB ao cargo
mais alto na hierarquia política brasileira. Justamente por já ter tido outra chance, e por
ter estado em praticamente todos os cargos da hierarquia política, é que José Serra
ficaria em uma situação extremamente difícil em caso de derrota, segundo a matéria que
observa como ficariam os derrotados da eleição 2010.
Para José Serra (PSDB), sem dúvida, esta é a sua última chance de ser
presidente. Na eventualidade de uma derrota, ele será visto como um
“político que teve chances de estar na cúpula, no vértice da hierarquia
tucana”, mas que não conseguiu aproveitar a oportunidade por um motivo ou
por outro (ROLLING STONE BRASIL, JULHO 2010, p. 45).
Nesta reportagem, o discurso autorizado é representado principalmente pelas
vozes de cientistas políticos e sociais. Em corroboração com a tese defendida pela
revista, o especialista confirma que a publicação está apontando um aspecto importante
do cenário político brasileiro. O investimento de sentido por parte da revista, em
apresentar a derrota como uma catástrofe para Dilma e Serra, não é modificado mesmo
quando a publicação apresenta um contraponto.
4.2 “À Sombra de Gigantes” e “O Próximo Presidente do Brasil”: Distinção entre
os candidatos e a distância deles em relação ao poder
A Análise de Discurso Crítica destaca que a transformação de situações
opressoras é possível através de ações sociais, já que estas situações são criações
sociais. Para Vieira (2007), a linguagem faz parte deste processo pela construção de
identidades e veiculação de ideologias. A revista opta por mostrar os candidatos em dois
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grupos com uma separação ideológica: primeiro, as candidaturas menores, de pouca
representatividade no Congresso Nacional e baixo número de intenções de voto nas
pesquisas eleitorais; posteriormente as candidaturas com maior estrutura e com índices
mais altos nas pesquisas.
Nas imagens de Rolling Stone Brasil este traço é perceptível ao destacar os
candidatos e o seu desejo de ser eleito para a presidência da República na reportagem
“À Sombra de Gigantes” de Agosto de 2010 e a série de entrevistas “O Próximo
Presidente do Brasil” publicada em Setembro de 2010. A ilustração de "À sombra de
Gigantes" investe na identificação que implica também uma avaliação sobre os
postulantes, segundo a figura abaixo.
Figura 2: Ilustração da reportagem “À Sombra de Gigantes” - Fonte: Rolling Stone Brasil
A imagem compõe um texto multissemiótico, como destaca Vieira (2007), no
tocante a sintetização das expressões de poder presentes na comunicação humana, neste
caso, a reportagem. São representações por parte da revista a fim de consolidar o papel
menor que estes candidatos desempenham nas eleições. A edição de Agosto de 2010 é
para apenas delinear os gigantes que vão ter seu espaço próprio na edição seguinte com
a série de entrevistas “O Próximo Presidente do Brasil”, em Setembro de 2010. Naquela
oportunidade o mesmo conteúdo foi disponibilizado em três capas diferentes, conforme
imagem em seguida.
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Figura 3: Capas de Rolling Stone Brasil com ilustrações dos candidatos entrevistados - Fonte: Rolling
Stone Brasil
Ramalho e Resende (2011) pontuam que a avaliação está ligada a processos de
identificação particulares e relacionada às relações sociais que os atores sociais
estabelecem entre si. É no momento da entrevista que cada candidato é confrontado com
as percepções que Rolling Stone Brasil possui sobre ele. Confrontada com a ideia de ser
uma neófita em termos de experiência política, a então candidata Dilma Rousseff rejeita
o rótulo de inexperiente e apresenta-se como a novidade da disputa eleitoral. “Eu
poderia dizer que mesmo sendo mulher e não sendo uma política tradicional, represento
o povo. Uma representante do novo que pode dizer que é a porta-voz da continuidade do
melhor governo que esse país já teve” (ROLLING STONE BRASIL, SETEMBRO
2010, p. 82).
José Serra é avaliado pela revista com a mesma contundência. “Mantendo uma
linha de discurso forçosamente otimista, com lampejos nostálgicos, o ex-ministro da
Saúde e ex-governador de São Paulo, hoje candidato do PSDB ao maior cargo da nação,
demonstrou impaciência somente diante de questões relacionadas ao seu ego”
(ROLLING STONE BRASIL, SETEMBRO 2010, p. 69). O candidato é apresentado
como mal humorado e impontual, já que o texto menciona a surpresa dos
entrevistadores por encontrar José Serra de bom humor e "apenas" 30 minutos após o
horário marcado para o início da entrevista.
A candidata Marina Silva é avaliada de maneira diferenciada em relação aos
candidatos do PT e PSDB. A candidata do PV é apresentada por Rolling Stone Brasil
como a novidade da eleição 2010, atribuindo uma avaliação afetiva em que Marina
Silva está acima da vitória ou da derrota nas eleições. “Marina, que aos incautos parece
viver a tranquilidade da certeza da derrota, se mostrou uma leoa em pele de cordeiro,
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fortemente apoiada por setores da juventude e já vitoriosa pelo fato de estar entre os
grandes protagonistas das urnas neste ano” (ROLLING STONE BRASIL, SETEMBRO
2010, p. 59).
Os outros candidatos de menor expressão nas pesquisas eleitorais não recebem
da revista o mesmo tratamento, como terceira via entre a polarização entre PT e PSDB.
A principal avaliação em relação a estes candidatos vinda de Rolling Stone Brasil é que
no cenário político brasileiro eles são simplesmente “nanicos”. A editoria aborda estes
candidatos menores na reportagem “À Sombra dos Gigantes”, veiculada em Agosto de
2010.
A corrida presidencial é uma disputa de gigantes. Quer dizer, nem sempre. A
exceção à regra aparece em todas as eleições, com as candidaturas da
minoria. Diante da estrutura cinematográfica dos três candidatos que
despontam nas pesquisas, há sete presidenciáveis que se esforçam para
sobreviver em um combate mais discreto. Não porque assim o queiram. Mas
a realidade é que acabam à sombra dos líderes, praticamente alheios ao
próprio desempenho na corrida eleitoral mais importante do país (ROLLING
STONE BRASIL, AGOSTO 2010, p. 55).
É estabelecida uma divisão que demarca ideologicamente o espaço ocupado
pelos grupos nas eleições 2010. Rolling Stone Brasil menciona as pesquisas para
explicar o fato de separar os candidatos menores na edição de Agosto de 2010 e as
entrevistas dos maiores na edição de Setembro de 2010. A revista busca reforçar que
possui legitimidade para abordar o campo político e trazer o discurso político para as
suas páginas.
Mas esta não é uma revista de música?”, surpreendeu-se um dos candidatos
ao ser questionado sobre o seu programa de governo. Em resposta, podemos
citar as capas com Fernando Gabeira (maio 2008) ou Barack Obama (julho
2008) e as diferenciadas pautas políticas publicadas desde nossa primeira
edição. Mais que uma revista de música, a Rolling Stone Brasil tenta
entender o mundo por meio, entre outros, da política, do comportamento, do
cinema, da televisão e também da música (ROLLING STONE BRASIL,
SETEMBRO 2010, p. 56).
Nas entrevistas com os candidatos cabe destacar algumas posturas de Rolling
Stone Brasil, como a abordagem sobre a corrupção. Serra, Dilma e Marina têm de
responder a perguntas sobre o tema organizando opiniões sobre um tema de destaque no
discurso político. Marina Silva é avaliada como positiva pela revista por apresentar uma
verdade consolidada sobre o tema. “A melhor forma de governar é com democracia e
transparência. A democracia, e não uma ditadura, ou regime autoritário é a única forma
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de governar” (ROLLING STONE BRASIL, SETEMBRO 2010, p. 66). Por serem
apresentados pela revista, e encarem-se como opostos José Serra e Dilma Rousseff
estabelecem um “diálogo” ao tratar do tema corrupção.
O discurso político é apropriado para o jogo político entre o PSDB e o PT que
estão na luta para conquistar a hegemonia do cenário político. As duas tendências em
luta hegemônica empregam formulações ideologicamente orientadas para enfatizarem
suas posições e pelo consenso com o eleitor alcançarem a vitória.
4.3 “Na Governança Global”, “Sim, Ela Pode” e “Pecado Original”: Vitoriosos,
derrotados e consequências das eleições 2010
Rolling Stone Brasil propõe a observação sobre a situação política brasileira
tomando como base não somente às eleições, mas o cenário político brasileiro em geral.
Nas últimas edições de 2010 a revista opta por apresentar aspectos sobre o futuro
brasileiro e das tendências políticas após a realização deste pleito. Para isso a revista
começa abordando as relações internacionais brasileiras, na reportagem "Governança
Global" de Outubro de 2010 e como várias tendências ideológicas, observam o país,
segundo a figura abaixo.
Figura 4: Ilustração da reportagem “Na Governança Global” - Fonte: Rolling Stone Brasil
No momento em que a edição é publicada não está definida a vitória de nenhum
dos que disputam o cargo, então a imagem do novo presidente é resumida a um rabisco
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escuro com um esboço da faixa presidencial no peito. Segundo a revista, o Brasil está
situado ideologicamente entre estes dois grupos e principalmente pelo que
representaram os oito anos do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Em meados de 2008, quanto os títulos podres do mercado imobiliário norteamericano sacudiram o sistema financeiro mundial, Lula não perdeu a chance
de criticar os países ricos pela confusão criada na economia do planeta. "A
culpa é da gente branca, loira, de olhos azuis." Os 'ricos' entenderam a
mensagem. E convocaram os emergentes na tentativa de encontrar a solução
do problema. [...] Os louros da empreitada, conquistados a partir do avanço
no campo econômico, injetaram ânimo para voos maiores. E o Itamaraty
decidiu que deveria tentar resolver a complexa questão do Irã. Nesse aspecto,
a política externa pode ser definida como fracasso (ROLLING STONE
BRASIL, OUTUBRO 2010, p. 77).
Várias lutas hegemônicas são representadas em torno das relações internacionais
firmadas pelo governo Lula, como na disputa entre o capitalismo liberal dos Estados
Unidos e o “socialismo de mercado” chinês. As últimas imagens em edições de Rolling
Stone Brasil no ano de 2010 são complementares na explicação dos resultados das
eleições sobre o campo político, assim como nas avaliações empreendidas e na
apresentação da luta hegemônica entre PSDB e PT. Com a reportagem "Sim, Ela Pode",
publicada em Novembro de 2010, a proposta é de observar a eleição de Dilma Rousseff
em suas consequências, como a seguir.
Figura 5: Ilustração da reportagem “Sim, Ela Pode” - Fonte: Rolling Stone Brasil
Dilma ocupa o centro do poder a partir do momento em que é eleita para o cargo
máximo na hierarquia política brasileira. Isto é apresentado por Rolling Stone Brasil
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como uma obrigação que está sobre a nova presidente. Neste caso, a revista apresenta
novamente Dilma Rousseff como neófita na política, como já foi realizado ao longo da
disputa eleitoral.
Prestes a completar 63 anos, a mineira é a primeira mulher a ocupar a
Presidência da República. Teve nas eleições de 2010 o apoio de 55 milhões
de pessoas - ou 56% dos votos -, mas vai governar para 190 milhões. Na
democracia é assim – a maioria dos que votam decide. Cabe à população
fiscalizar, acompanhar de perto, cobrar e confiar que tudo dará certo a partir
do novo ciclo que se inicia, em pouco menos de dois meses. Não há espaço
para tergiversação (ROLLLING STONE BRASIL, NOVEMBRO 2010, p.
67).
Mesmo com o destaque conferido por Rolling Stone Brasil a identificação em
relação a Dilma não é tão favorável em uma comparação com Marina Silva. “Na visão
da senadora Marina Silva, decisiva para que a eleição fosse ao segundo turno, os
últimos 16 anos ensinaram "muito", mas os partidos e as lideranças "não conseguiram"
aprender a lição” (ROLLING STONE BRASIL, NOVEMBRO 2010, p. 68). A
candidata do PV mais uma vez está identificada com a “terceira via” na política, fora da
polarização entre PT e PSDB.
A reportagem “Pecado Original”, da edição de Dezembro de 2010, não tem a
situação de um protagonista único na imagem que acompanha o texto da reportagem.
Porém, é possível tomar a imagem como central para a compreensão da matéria
justamente pela metáfora da responsabilidade compartilhada em relação à derrota como
percebe-se a seguir.
Figura 6: Ilustração da reportagem “Pecado Original” - Fonte: Rolling Stone Brasil
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As metáforas implicam também em avaliações dos papeis que desempenham
naquele momento Aécio Neves, Geraldo Alckmin, José Serra e Fernando Henrique
Cardoso. A avaliação de José Serra na imagem é corroborada com outros aspectos
ressaltados pela revista na reportagem. Ao discorrer com mais profundidade a respeito
dos problemas do PSDB, Rolling Stone Brasil consolida a avaliação de Serra como
derrotado.
“Naturalmente, o PSDB não vai poder dispensar a experiência de Serra,
Tasso [Jereissati], [Arthur] Virgílio e Fernando Henrique, que não precisam
de mandato”, segue Nárcio Rodrigues, incluindo o ex-candidato ao clube dos
políticos que já viveram o seu tempo (ROLLING STONE BRASIL,
DEZEMBRO 2010, p. 69).
Não somente José Serra é visto como velho e derrotado. Rolling Stone Brasil
também avalia que o PSDB é um partido derrotado. Na reportagem “Pecado Original”,
publicada em Dezembro de 2010, a derrota do partido é associada à soberba, a falta de
comando representada por uma bagunça interna e ausência de identificação com a maior
parte da população.
Na luta hegemônica expressa nas páginas de Rolling Stone Brasil a explicação
da vitória do PT é outra parte da análise do campo político brasileiro, tomando por base
a derrota do PSDB. “O PT se coloca no papel de mãe. Ao PSDB resta o semblante do
padrasto “gente fina”, que nada mais tem a acrescentar – pelo menos do ponto de vista
presidencial” (ROLLING STONE BRASIL, DEZEMBRO 2010, p. 67). A proposta de
compreender as posições que são assumidas no campo político após as eleições 2010
buscam reconfigurar a disputa entre PT e PSDB, após o PT ganhar a terceira eleição
seguida para presidente.
Na busca por tentar estabelecer um distanciamento em
relação aos
acontecimentos, a revista acaba por recorrer ao pensamento dos pesquisadores em suas
páginas. É uma estratégia da revista para conferir validade às suas teses apresentadas
tanto como para apresentar sua cobertura política não apenas como repetição dos
discursos políticos correntes.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A respeito das observações de como Rolling Stone Brasil aborda as eleições
presidenciais brasileiras em 2010, destaca-se o fato de que a revista realiza uma
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cobertura que leva em consideração três momentos da eleição. O primeiro deles, “préeleitoral”, pois explora o que já é conhecido da campanha; a polarização entre PSDB e
PT. O segundo, representado pela apresentação dos candidatos, corresponde a
campanha que está em curso. Os desdobramentos da eleição compõem o terceiro
momento da cobertura da revista.
Com Dilma Rousseff (PT) e José Serra (PSDB) representando uma propalada
polarização entre seus partidos no cenário político nacional, a revista destaca Marina
Silva (PV) que se situa entre os dois candidatos na cobertura das eleições presidenciais
de 2010. Quanto aos outros candidatos, resta a eles um papel figurativo, representado
pelas candidaturas menores que pouco aparecem.
A revista apresenta avaliações sobre cada um dos candidatos e posiciona-se
firmemente a respeito deles. As avaliações de que Dilma Rousseff é neófita e de que
José Serra é velho são recorrentes ao longo da cobertura, e expõem que nenhum dos
dois candidatos acaba por representar a mudança de cenário que a revista propõe. Neste
caso, a mudança é a avaliação que é feita sobre a candidata Marina Silva, apresentada
como uma candidata vitoriosa, por estar na terceira via da polarização entre PT e PSDB.
Por diversos momentos Rolling Stone Brasil opta por utilizar-se do discurso
autorizado para explicar e problematizar, por exemplo, a influência do presidente Luiz
Inácio Lula da Silva no cenário político, ou a vitória de Dilma Rousseff, ou, ainda, a
derrota do PSDB e José Serra. São situações em que, para defender o mote escolhido
para a reportagem, a revista recorre à especialistas do campo político a fim de tratar do
tema.
As imagens atuam como parte da reportagem a fim de apresentar aqueles
personagens da cena política brasileira ao público e realizar avaliações a respeito deles.
Neste aspecto, as imagens traduzem a flexibilidade por parte da publicação ao transitar
na apresentação de um cenário polarizado e em que há o aparecimento de outra
candidatura competitiva. São relações que vão desde a simpatia com a candidatura de
Marina Silva, a fortes críticas em relação a José Serra e a manifestação das limitações
de Dilma Rousseff.
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É uma cobertura em que a própria revista apresenta-se como um personagem
devidamente identificado, e que vai dialogar com os especialistas a respeito das posturas
dos candidatos e também dos outros políticos. Rolling Stone Brasil organiza diversas
representações do campo político e posiciona-se também sem deixar de ser uma revista
de cultura pop, mas caracterizando-se como uma revista em que a política nacional tem
espaço.
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JORNALISMO AMBIENTAL:
Uma ótica a partir das contribuições
de Roland Barthes
Catarine Moscato STURZA5
RESUMO: O texto apresenta algumas contribuições de Roland Barthes, ainda pouco
exploradas no Brasil, que auxiliam no conhecimento do jornalismo ambiental e no
tratamento das questões ambientais. Inicialmente é apresentada uma breve revisão
teórico-conceitual da obra barthesiana e, a seguir, alguns conceitos da geografia
(topofilia e topocídio) e biologia (biofilia). Também são discutidos conceitos de
percepção e racionalidade ambiental como referenciais teóricos para o jornalismo
ambiental, que é tratado conjuntamente na segunda parte. Em suma, o trabalho aponta
alguns vieses e interfaces multidisciplinares indispensáveis para o jornalismo ambiental
no trato das emergentes questões ambientais.
PALAVRAS-CHAVE:
Roland
Barthes.
Jornalismo
ambiental.
Percepção.
Racionalidade.
ABSTRACT: The paper presents some contributions from Roland Barthes, still little
explored in Brazil, which provide knowledge of environmental journalism and in
addressing environmental issues. Initially a brief theoretical and conceptual review of
Barthes' work, then, some concepts of geography (topophilia and topocide) and biology
(biophilia) is presented. Also are discussed concepts of perception and environmental
rationality as theoretical frameworks to environmental journalism, which is discussed
together in the second part. In summary, this work shows some biases and indispensable
5
Jornalista e mestranda em Comunicação pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Bolsista da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Membro pesquisador do Grupo de
Pesquisa em Ciberjornalismo (CIBERJOR). E-mail: [email protected].
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multidisciplinary interfaces for environmental journalism in dealing with the emerging
environmental issues.
KEYWORDS: Roland Barthes. Environmental journalism. Perception. Rationality.
1 APRESENTAÇÃO
Roland Barthes, um dos grandes estudiosos da Teoria da Literatura e Semiótica,
nasceu em 1915 na cidade de Cherbourg, França. Durante boa parte de sua vida se
dedicou a crítica literária, teatral e cultural.
A riqueza teórica trazida por suas obras serve de análise para várias áreas, como
no jornalismo ambiental – nome dado à especialidade da cobertura de fatos relacionados
ao meio ambiente. Acreditamos que o quadro de crise ambiental e de adversidades atual
compreende um precioso momento para uma busca por novos olhares conceituais e
multidisciplinares. Com isso, a proposta do artigo aqui apresentado é discutir alguns
conceitos de Roland Barthes – ainda pouco explorados no Brasil – que podem auxiliar
na contribuição do jornalismo ambiental e no tratamento das questões ambientais.
Na primeira parte do trabalho “Texto, linguagem e fotografia” é apresentada
uma breve revisão teórico-conceitual da obra barthesiana e suas contribuições à análise
da comunicação. São levantados conceitos como: kama-sutra da linguagem, fotógrafospectador, punctum, studium, entre outros.
Na seção seguinte “Percepção e Jornalismo Ambiental” é discutido alguns
conceitos da geografia (topofilia e topocídio) e biologia (biofilia) que auxiliam no trato
e discurso jornalístico do meio ambiente.
2 TEXTO, LINGUAGEM E FOTOGRAFIA
Roland Barthes se formou em Letras Clássicas e Gramática e Filosofia na
Universidade de Paris. Suas ideias ancoradas na sociologia francesa foram publicadas
em diversas obras, como: O Grau Zero da Escrita (Le degré zéro de l'écriture, 1953),
Mitologias (Mythologies, 1957), Sistema da Moda (Le système de la mode, 1967), O
Prazer do Texto (Le plaisir du texte, 1973), A câmara clara (La chambre claire, 1980),
entre outras.
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A maioria de seus livros analisa o texto, a linguagem e a fotografia. Em El
analises textual de Roland Barthes, Robledo (1980) discute sobre a riqueza teórica que
o autor trouxe ao método de análise textual, como por exemplo, a conotação, os
códigos, as lexias, a leitura lenta e a exemplificação.
A construção do texto é algo laborioso que se assemelha a confecção de uma
renda (BARTHES, 2004). A renda é trabalhada com os nós dados pelos dedos e
momentos de pausa do bilro que, lentamente, vão dando forma ao desenho. Assim é o
texto construído pelo autor que, meticulosamente, dedica atenção e paciência à obra –
sua criatura.
De acordo com Bosco (2004, p.45) o texto barthesiano é rico também em
temporalidades: “o texto clássico” (fluência, agilidade e baixo grau de resistência) e “o
texto moderno” (alta produtividade de sentidos).
“Textos de prazer” e “textos de fruição” são outras grandes contribuições do
escritor francês. Para essa diferenciação Barthes usa da própria vida que nos propicia
momentos de prazer e momentos de gozo (da palavra jouissance). O prazer é algo ainda
controlado, o próprio desejo, já o gozo é a realização do desejo.
Texto de prazer= aquele que contenta, enche, dá euforia; aquele que vem da
cultura, não rompe com ela, está ligado à uma prática confortável da leitura.
Texto de fruição= aquele que põe em estado de perda, aquele que
desconforta (talvez até um certo enfado), faz vacilar as bases históricas,
culturais, psicológicas do leitor, a consistência de seus gostos, de seus
valores e de suas lembranças, faze entrar em crise sua relação com a
linguagem (BARTHES, 2004, p.20-21).
A caracterização de Barthes, dada aos textos de prazer e texto de fruição, é
bastante ampla e indica a intensidade da experiência de vida, tanto para o autor como
para o leitor do texto. O autor (escritor, quem dá arte à escrita) é um doador de sentido e
seu gozo reside na doação e no desejo de ter o leitor. Quem escreve lida com realidade e
utopia onde “[...] o mundo é uma medalha, uma moeda, uma dupla superfície de leitura
cujo avesso é ocupado por sua realidade e cujo direito, pela utopia” (idem, 2003, p. 91).
O texto pode ser visto como uma “kama-sutra da linguagem” (BARTHES, 2004,
p. 11), ou seja, uma comunhão de prazer entre autor e leitor, representado um momento
de êxtase pelo desejo/gozo no encontro dos dois. Para isso, o gozo é visto nas margens
do prazer.
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A produção de outros sentidos, novos textos a partir do texto, relaciona-se à
intertextualidade, isto é, o conjunto de leituras já feitas pelo autor que o influenciaram,
consciente e inconscientemente, no seu ato de criação. Nem sempre essa
intertextualidade é identificada pelo leitor na primeira leitura do texto, às vezes é
preciso voltar ao texto para identificar essa intertextualidade de que fala o autor. Para
Barthes o leitor nunca usa a mesma técnica para ler o texto, pois o que ele explora é a
liberdade dos seus desejos. Ele explica: “Cada vez que tento ‘analisar’ um texto que me
deu prazer, não é minha ‘subjetividade’ que volto a encontrar, mas o meu indivíduo, o
dado que torna meu corpo separado dos outros corpos e lhe apropria seu sofrimento e
seu prazer” (ibidem, p.73).
Barthes (1988) destaca a importância do leitor na obra, atribuindo a este o papel
de segundo autor, ou seja, a partir da leitura quem realmente dá vida ao texto é o leitor.
É a experiência do leitor que vivifica a obra. O escritor fala ainda da “morte do autor” a
partir do momento que a obra chega às mãos do leitor, isto é, é o leitor quem propicia a
continuidade da vida da obra. Podemos afirmar como Barthes, que quem escreve
vivencia menos do que quem lê. É o leitor quem digere e assimila a obra a parir da sua
experiência cultural, social e individual. Nesse momento a obra abre-se para múltiplas
possibilidades imprevisíveis para o autor da obra.
O semiólogo trata também da linguagem presente no texto. Ele entende que a
linguagem é a manifestação de poder, pois “[...] é o objeto em que se inscreve o próprio
poder, desde toda a eternidade humana [...]” (BARTHES, 2007, p.11-12). O discurso do
autor, dado à linguagem, é alienante e pode tornar-se uma ideologia que escraviza o
leitor. Um exemplo desse poder é o que ocorre na fala das pessoas quando reproduzem a
linguagem (e o discurso) dos meios de comunicação.
A linguagem é matéria-prima indispensável na produção do texto, mas também é
ardilosa, cuja armadilha é o poder. Barthes afirma que “o poder (libido dominandi) está
emboscado em todo e qualquer discurso” (ibidem, p.10). Nesse sentido, o estudo
barthesiano permite uma reflexão significativa sobre o tema do poder quando indaga: o
que é o poder? “[...] Por toda a parte, de todos os lados, chefes, aparelhos maciços ou
minúsculos, grupos de opressão ou de pressão: por toda parte, vozes 'autorizadas', que
se autorizam a fazer o discurso de todo poder” (ibidem, p.11).
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A ideologia é o instrumento menos adequado de trabalho que deveria incitar aos
vários sentidos à multiplicidade de outros textos. A objetividade (apenas um sentido,
uma ideologia) escraviza o leitor na leitura de novos sentidos. Para Barthes o texto
nunca cessa, nunca acaba, sempre multiplica sentidos. Ele é a produtividade, e está em
constante movimento nas infinitas possibilidades de significação dada pelo leitor.
Podemos dizer que é a continuidade da obra reclamada pela própria obra nos sentidos
criados pelo leitor.
Quanto à fotografia Roland Barthes (1984) explica sua afeição: “Decidi então
tomar como guia de minha nova análise a atração que eu sentia por certas fotos” (p.35).
Para ele essa atração era uma certeza.
As dificuldades metodológicas encontradas ao estudar a fotografia foram muito
cedo identificadas por Barthes que questionava: “Quem podia guiar-me? Desde o
primeiro passo, o da classificação (é preciso classificar, realizar amostragens, caso se
queira constituir um corpus) a fotografia se esquiva” (ibidem, p.12).
Desde o início das investigações Barthes distinguiu três práticas de análises
ligadas à fotografia, tomadas a partir da pessoa que a vê: a prática de fazer para o
operator (quem faz); a prática do suportar, relacionada ao spectrum e ao referente; e a
prática do olhar, atrelada ao spectador ou autor. Para ele existe uma alternância de
práticas entre o operator e o spectador, isto é, aquele que faz num primeiro momento, e
aquele que assiste num segundo momento.
Conforme Barthes (1984) existem duas linguagens na fotografia: a linguagem
conotativa e a linguagem denotativa. A conotativa diz respeito ao óbvio, o visível, o
evidente - são informações que revelam o contexto social e cultural da pessoa ou do
próprio fotógrafo. A linguagem denotativa é o obtuso, isto é, a informação implícita na
fotografia. Para ele isso significa “mensagem sem código” ou ainda quando assegura:
“[...] seja o que for que ela dê a ver e qualquer que seja a maneira, uma foto é sempre
invisível: não é ele que vemos” (BARTHES, 1984, p.16).
O autor ainda vê na fotografia outras duas linguagens: a linguagem expressiva,
dirigida às características formais e estruturais, e a linguagem crítica, provocadora e
origem de vários sentidos que o investigador projeta em seu discurso específico. As
duas linguagens podem ser compreendidas como aquilo que se pode perceber e se pode
conceber numa fotografia.
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A contribuição de Barthes na análise estruturalista da fotografia é fundamentada
principalmente por dois elementos: o punctum e o studium. O punctum é o detalhe, o
estímulo. Lembra a punição, a picada, pequeno corte, a tomada da fotografia que inclui
tanto o fotógrafo-operador quanto o fotógrafo-spectador. O punctum não se relaciona
com os objetivos ou a cultura e visão de mundo, mas sim com algo que toca o fotógrafo
na imagem que vê. O studium relaciona-se a alguma coisa ou gosto por alguém, ou
ainda o interesse geral. Para o autor pode-se entendê-lo como um saber, uma espécie de
educação. Studium é um “extracampo sutil” (p.89) por meio do qual a imagem joga o
desejo para além do visível.
Barthes observa que o studium tem relação com o interior do sujeito, pois “[...] é
pelo studium que me interesso por muitas fotografias, quer as recebe como testemunhos
políticos, quer as aprecie como bons quadros históricos, pois é culturalmente (essa
conotação está presente no studium) que participo das figuras, das caras dos gestos, dos
cenários, das ações” (ibidem, p.45-46).
A ligação da fotografia com o sujeito é evidente porque o significado dela é a
representação psíquica de uma “coisa” e não a “coisa” em si. Portanto, a fotografia é um
lugar onde o observador instala e encontra o seu mundo, como explica o escritor
francês: "[...] diante da objetiva sou ao mesmo tempo: aquele que eu me julgo, aquele
que eu gostaria que me julgassem, aquele que o fotógrafo me julga e aquele de que ele
se serve para exibir sua arte" (ibidem, p.27). É a posição privilegiada do sujeito em sua
ação investigativa, de si mesmo e do mundo.
A fotografia apresenta também um caráter conservador para Barthes, pois ela
eterniza, imobiliza um tempo e um espaço. Por outro lado, a foto tem um caráter
subjetivo responsável por ressuscitar sentimentos ou, nas palavras do autor, ressuscitar
“o morto”. Esta qualidade não depende do tempo ou do modo em que foi produzida a
fotografia.
Barthes (2007) também contribui com a visão dos meios de comunicação,
principalmente da televisão. Para ele os telespectadores costumam ficar inseguros de si
mesmos e só veem o que os olhos da televisão focam [...] para manipulá-lo e fazer dele
Gregório [...] (p.27). Os telespectadores estão sempre em movimento, fazendo o que é
ditado pela mídia que capta a subjetividade do mesmo, passando como um espelho
midiático.
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O sentido da mídia é sempre o mesmo, a estética da plasticidade, em que todos
repetem e ouvem sem parar.
[...] forma bastarda da cultura de massa é a repetição vergonhosa: repetem-se
os conteúdos, os esquemas ideológicos, a obliteração das contradições, mas
variam-se as formas superficiais. Há sempre livros, emissões, filmes novos,
ocorrências diversas, mas é sempre o mesmo sentido [...] (BARTHES, 2004,
p. 51).
As novelas “reforçam as ideologias, achatam as massas” (ibidem, p.50), fazem
da realidade uma peça em movimento com flashes para interromper e mudar um pouco
a vida cotidiana dos telespectadores. Neste acaso, o ofício é tornar a comunicação um
ato de reproduzir em massa, uma função apenas instrumental, satisfazendo as
necessidades.
Segundo Ribeiro (2007) o Roland Barthes considerava a linguagem um processo
indispensável para “[...] descrever os processos de semantização dos comportamentos
sociais, acreditando ser possível estudar toda e qualquer atividade humana como
linguagem [...]” (p. 3).
3 PERCEPÇÃO E JORNALISMO AMBIENTAL: as interfaces com as ideias de
Roland Barthes
O mundo contemporâneo do homem e da ciência caracteriza-se por um ritmo
acelerado da história marcado nas diferentes escalas espaciais por um espaço geográfico
uno e múltiplo. O homem, como ser histórico e geográfico, tem sua existência e
experiência ambiental regidas pelas regras da discutida globalização e revolução tecnocientífica que unem e desunem diversas dimensões de tempo e espaço.
Michel Soulè (apud WILSON, 1997, p. 597-598) identifica as dimensões do
envolvimento entre a mente e a natureza: experiencial, analítica e valorativa. A primeira
corresponde ao primeiro contato de experiência imediata, sensorial da natureza,
amparada pelo sistema sensório-neural. A segunda é a analítica mental, responsável
pelas complexas associações, concepção de teorias e surgimento de sistemas
conceituais. E a última é a valorativa, que implica na atribuição de valores, juízo e
julgamentos. Ele defende a ideia de uma “conceitualização multidimensional” do lugar
com base na experiência, atividade essencial na mudança de valores e condutas. A
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motivação para ver e ouvir o ambiente com novos olhares é o primeiro passo para que
as pessoas valorizem a própria experiência e a percebam na vida cotidiana. Entretanto,
elas se proíbem destas importantes atividades mentais, nas palavras de Henry Lefebvre
(1991), uma vez que “a vida cotidiana no mundo moderno restringiu a experiência
afetiva e emocional” (p. 199) o que também resulta na diminuição das atividades
mentais.
A atual crise ambiental é fruto da crise humana, ou seja, um estado de
instabilidade vital da espécie humana provocado pela crise de percepção. A percepção e
a própria experiência humana estão reduzidas a um olhar, agir e julgar atrelados à visão
utilitarista a ao paradigma reducionista, pilares do pensamento e da ótica capitalista.
Assim, é necessária uma nova percepção, desprovida de imagens e pensamentos
estereotipados, de uma informação que também fale da experiência que “[...] incorpore
a própria vida daquele que conta para comunicá-lo como sua própria experiência àquele
que escuta” (BENJAMIM apud GUATTARI, 1980, p.51).
Leff (2001) defende a racionalidade ambiental como contraponto da
racionalidade econômica vigente. Para ele “depende da constituição de novos atores
sociais que objetivem através de sua mobilização e concretizem em suas práticas os
princípios e potenciais do ambientalismo” (p. 136). Entretanto, esta nova razão só virá
com uma nova percepção paradoxalmente à visão utilitarista atual. Aqui é importante
salientar outro conceito de Barthes (2003, p. 84) – a doxa – facilmente reconhecível na
cultura e comunicação de massa. A doxa é a opinião corrente, “um mau objeto”, a
repetição, não advinda do conteúdo, mas apenas da forma. A paradoxa (olhar diferente e
antagônico) é indispensável à racionalidade ambiental e que deve ser produzida por
jornalistas qualificados e compromissados com a relação harmônica entre sociedade e
natureza.
A fotografia é um poderoso instrumento investigado por Barthes que pode
auxiliar no exercício de uma nova percepção do homem, do mundo e, principalmente,
das relações entre homem e ambiente. Barthes (1984) destaca duas importantes
categorias que contribuem na discussão ambiental, o studium e o punctum. O studium é
o conjunto dos referentes visuais que nos tocam, humanamente, culturalmente e
moralmente, mas permanecem em plano impessoal, sem nos atingir de forma especial.
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Já o punctum seria um elemento, um detalhe inadvertido que salta da fotografia e nos
trespassa como uma flecha. Punctum é algo que nos fere, que nos "punge".
A fotografia abaixo (figura 1) pode ser explorada a partir desses conceitos de
Barthes, especialmente a dimensão do punctum, uma vez que o tema da foto nos fere,
nos sensibiliza. Ela – a fotografia – evidencia a possibilidade da relação harmoniosa
entre duas espécies diferentes (o homem e o porco-do-mato).
Fig. 1 – Exemplo de ligação biofílica entre índia e filhote de porco-do-mato6
A imagem acima foi colhida pelo fotógrafo Pisco Del Gaiso e publicada na
Folha de S. Paulo, em 16 de dezembro de 1992. Por tal feito, o fotógrafo recebeu o
Prêmio Internacional de Jornalismo Rei d'a Espanha.
Barthes lembra que a fotografia pode ressuscitar sentimentos ou sensações
vividas, como é o caso da biofilia (figura 1) que deve ser resgatada, ressuscitada para
uma nova racionalidade ambiental que se contraponha à racionalidade econômica. As
imagens precisam ser mais bem exploradas porque constituem um rico instrumento para
a sensibilização e nova consciência, a ser construída na e para a racionalidade
ambiental.
6
Disponível em: <http://respeitoanatureza.blogspot.com/2008_06_01_archive.html>. Acesso em 15 set. 2009.
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Barthes (1988) também contribui com o conceito de discurso acrático, ou seja,
aquele produzido a partir da linguagem a-política, “fora do poder e/ou contra ele” (p.
101).
A geografia contribui com diversos conceitos, entre eles podemos destacar, para
este ensaio, a topofilia e o topocídio. A topofilia é um neologismo que sintetiza “[...]
todos os laços afetivos dos seres humanos com o meio ambiente material” (TUAN,
1980, p. 107). O sentimento topofílico depende do enraizamento e da experiência com
os espaços e a natureza que produzem o pertencimento e a identidade do homem com os
lugares e as paisagens. O topocídio, termo proposto pelo geógrafo Yi-Fu Tuan, refere-se
à morte e/ou extinção de um lugar.
A biologia oferece outro conceito integrador – a biofilia – criado por Edward O.
Wilson em 1984 para designar a atração, as ligações umbilicais, a ligação inata/natural
do homem ao ambiente. É este elo vital, comprovado pelos genes (nemes) e certos
arquétipos culturais, que deve lançar o homem para a ética de preservação. A figura 1 é
um exemplo de biofilia, cuja fotografia é o instrumento indispensável para a
sensibilização e conscientização ambiental.
O jornalismo ambiental é um campo precioso e importante para a racionalidade
ambiental. Tendo iniciado na década de 70, paralelo aos movimentos ambientalistas
daquele período (SOUZA, 2005, p. 33), deve crescer ainda mais neste início do século
XXI para atender as demandas informacionais de uma sociedade que precisa sair do
papel de espectador e assumir as responsabilidades de sujeito.
Bueno (2004) discorre que o jornalismo ambiental ainda passa por uma fase de
transição e passa a incorporar uma visão intermultidisciplinar. Neste contexto, novos
olhares conceituais são fundamentais, especialmente aqueles que podem ajudar na
compreensão sistêmica, integradora e dinâmica das intrincadas relações entre homem e
ambiente. Para Girardi et al (2006) o jornalista ambiental deve ser um “agregador de
conhecimentos, complexo na essência, responsável na elaboração e didático para a
recepção”.
4 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
As contribuições barthesianas nos trazem a riqueza do processo de linguagem na
reprodução e construção do comportamento humano.
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Partindo do cotidiano da vida francesa Roland Barthes critica a cultura de massa.
Para ele todo discurso da mídia, toda linguagem é ideológica, cheias de ideias,
pensamentos, visões, etc. Há significados ocultos que consumimos todos os dias nos
diferentes discursos. Com isso, os conceitos teóricos do semiólogo (o certo sujeito
inculto) não podem ser negligenciados especialmente quando necessitamos fazer a
desconstrução de um conhecimento fragmentário e viciado ideologicamente.
A informação e a comunicação, no âmbito do jornalismo ambiental, devem ser
produzidas por um profissional aberto ao debate pluridisciplinar, tão necessário à
formação de uma sociedade mais consciente e responsável em seus deveres com o
ambiente.
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RESILIÊNCIA EMPRESARIAL:
Uma necessidade ante a
sustentabilidade das organizações
Cláudio Paula de CARVALHO7
RESUMO: As efetivas transformações no cenário mundial, permeado pelo processo de
globalização e a necessidade de mudança cultural, gerou uma necessidade de
adaptações, ajustes e mudanças pelas organizações. Estas condições mudaram o
conceito de consumo, a forma de comunicação assim como o nível de exigência. As
relações junto às partes interessadas e a evolução no nível de conscientização quanto
aos processos de produção e o tipo de relação junto às partes interessadas
(stakeholders), faz com que a resiliência empresarial se torne um indicador de
sustentabilidade fundamental à gestão das organizações e na forma de comunicação.
PALAVRAS-CHAVE: Resiliência empresarial. Sustentabilidade Organizacional.
Cultura Organizacional. Comunicação com Partes Interessadas.
ABSTRACT: The effective changing process and the ongoing global transformation
increase demand for a certain level of proficiency required from organizations.
Relationships between business partners and requirements regarding the form of
appropriation of natural resources have also evolved to a higher level of consciousness
and it does that. This is an engaged sustainability index to the management of
organizations. This situation directly affects production processes, making risk
perception and its monitoring an ally to a greater level of sustainability within
organizations and own relationship due to stakeholders, emphasizing how corporate
resilience and more integrated communication is an important part to organizational
sustainability.
Keyword: Business Corporate Resilience. Organizational Sustainability. Organizational
Culture. Stakeholders Communication.
7
Mestre Strictu Sensu em Sistemas de Gestão (Latec/UFF)
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1. INTRODUÇÃO
O presente estudo trata do processo de resiliência empresarial como um
indicador diante da necessidade real de sustentabilidade das organizações a partir das
transformações e das mudanças globais, alterando os paradigmas, os preceitos e as
ações inerentes às linhas de gestão administrativa assim como em relação aos modelos
conceituais que produziram efeitos não apenas sobre a sociedade, mas também sobre as
próprias organizações, a relação de consumo, a forma de se comunicar diante dos
diversos públicos de relacionamento e das partes interessadas (stakeholders)8.
Principalmente, considerando as ações relativas a um processo de globalização acirrado
e massivo, com suas consequentes exigências corporativas, políticas, sociais e
econômicas, exigindo assim uma maior adequação e ajuste das organizações. Deste
modo, tanto o processo de globalização quanto à necessidade de ajustes destas às
condições que será exposta neste estudo, vem permear este crescente processo de
mudança e de resiliência empresarial, passando a ser também um necessário indicador
de sustentabilidade organizacional.
Tal demanda se reflete, considerando que cada vez mais se é exigido no mundo
empresarial, frente aos novos processos de gestão administrativa, e que faz com que
haja uma interação de ajustes frente a estas necessidades e a nova realidade, em que
características mais fortes relativas à governança corporativa e empresarial são
impostas. Pois, as empresas ou organizações estão muito atreladas ao mercado de
capitais e as novas distintas formas de captação de investimentos. Deste modo,
corroborando não só na forma de lidar com o processo produtivo, mas também pelo
envolvimento e uso dos recursos materiais, naturais, e humanos, visando justamente um
desenvolvimento sustentável de seus negócios.
2.
CONSIDERAÇÕES
SOBRE
AS
TRANSFORMAÇÕES
GLOBAIS
E
NECESSIDADE DE ADEQUAÇÃO EMPRESARIAL DAS ORGANIZAÇÕES NO
ÂMBITO DE GOVERNANÇA
O processo de transformação e mudança ocorreu principalmente com a
implantação dos processos da globalização. Uma nova ordem da economia mundial
8
O termo stakeholders aparecerá no texto e será tratado dentro da conceituação de público de relacionamento
e/ou partes interessadas.
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impactando sobremaneira em termos de conceitos, premissas, atitudes e posturas em
relação à evolução dos sistemas produtivos e o uso dos recursos naturais. Mas, também
dos processos econômicos, tecnológicos e sociais (MAY et al., 2003). Ainda na visão
dos autores, não só a sociedade envolvida diretamente, mas, principalmente, em relação
às organizações e o uso dos meios produtivos diante desta relação de poder no que tange
às partes interessadas muda, de acordo com esta necessidade. Haja vista o nível de
entendimento dos mecanismos de funcionamento do mercado de capitais e do nível de
engajamento que o capital próprio está envolvido, mas também a forma como os meios
de comunicação inferem este processo de orientação e de obtenção de informações.
Logo, tendo características próprias em que as organizações ficam bem mais sujeitas a
possíveis perdas em longo prazo (MAHONEY, 2007).
Ao longo deste processo de mudança global, em que uma maior governança se
faz necessária, acaba gerando um elemento transformador junto às organizações e
prementes ao processo de gestão. Ou seja, “o processo social que determina a alocação
dos recursos e dos investimentos” (PEREIRA & QUELHAS, 2005). Este processo de
mudança trouxe à tona possibilidade de uma discussão e implantação de questões até
então pouco discutidas, como: questões de ética, funcionalidade administrativa das
empresas, a própria gestão administrativa e gestão de pessoas, entre outras ações, assim
como também diante da forma de lidar com as comunidades do entorno e seus
desdobramentos junto à sociedade e partes interessadas em geral.
Em complementação ao autor acima, Barreto (In STAREC et. al, 2006, p.4):
O trabalho corresponde ao artificialismo da existência humana, o trabalho
produz um mundo de coisas completamente diferentes de qualquer ambiente
natural. O trabalho é exercido por um mundo de diferentes fluxos. Com o
trabalho, o homem exerce a sua condição de troca em todos os sentidos para
exercer sua permanência na terra. A condição humana do trabalho é a
mundanidade. Uma das qualidades desta condição humana é a criação e a
representação em código próprio da informação, a possibilidade de sua
apropriação e elaboração para gerar conhecimento.
O conceito de governança contempla uma nova forma de governar, de tomar
decisões sobre o interesse coletivo e também dos negócios, de uma forma mais
cooperativa, de um olhar mais humano, diferentemente dos modelos de gestão mais
centralizados e mais conservadores (ZAPATA, p.12, 2009).
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Diante do forte e crescente processo de globalização, a implementação de uma
gestão, onde os conceitos principais de governança corporativa (transparência,
equidade, accountability – prestação de contas e responsabilidade corporativa) têm um
papel importante no processo de controle, seja da ética, seja dos valores corporativos e
de comunicação direta junto às partes interessadas (IBGC, 2009, p.19). Estes valores e
mudanças conceituais, além da necessidade natural a que a sociedade se vê submetida,
faz com que também se mobilize ainda mais em relação às posturas, às vicissitudes ou
mesmo ao próprio ônus diante da instalação de um parque industrial globalizado. Com
isso, modificando o conceito de resiliência empresarial.
Em termos de gestão ambiental e uso dos recursos naturais, a intensificação do
processo de globalização financeira e da produção da economia mundial acarretou
também mudanças consideráveis nos mercados internacionais, vide o acirramento na
concorrência mundial,
inclusive alterando consideravelmente os
padrões
de
concorrência industrial (MAY et al., 2003). Com isso, as empresas se viram forçadas a
ter um desenvolvimento mais abrangente no sentido da qualidade dos processos, da
gestão administrativa, uma maior preocupação ante a comunicação e as relações de
consumo, em que um maior número de padronizações se fez necessário de ser efetivado.
Ou seja, saindo de uma postura mais reativa, em que as ações eram mais voltadas para
um atendimento compensatório e muito mais por força das legislações ambientais.
Segundo Vinha (in MAY et al., 2003, p.184), até então, as análises eram feitas que
somente sob circunstâncias de ameaça nos negócios ou à reputação é que o
envolvimento se dava no processo de decisão, trazendo as partes interessadas. Mas,
mesmo assim de forma limitada, apenas os consumidores e os representantes de órgãos
reguladores.
2.1 Os impactos diante das mudanças globais, a necessidade de uma comunicação
mais integrada, interligada à percepção de risco e os reflexos na sustentabilidade das
organizações
O processo de globalização econômica, segundo Capra (2005, p.150) foi
engendrado intencionalmente por grandes grupos economicamente fortes, compostos
pelos principais países capitalistas, formando o denominado G-7, e grandes
conglomerados financeiros globais de grandes empresas transnacionais. No caso dos
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grandes grupos financeiros, temos o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional
(FMI) e a Organização Mundial do Comércio (OMC).
Assim, dentro de uma abordagem acerca de transformações globais, o conceito
do que é cultura organizacional e desenvolvimento de conhecimento é introduzido
necessariamente. Em que critérios de conduta e de administração são estabelecidos e se
tem condições de avaliar o processo de transformação necessário nas organizações,
decorrente deste movimento crescente e evolutivo do processo de globalização
existente, alterando significativamente as relações entre as partes, sejam elas
relacionadas ao público interno ou o externo. Segundo Barbosa (2002), as mudanças
passam também pelas relações de poder, as quais são intrínsecas às múltiplas
correlações relativas ao capital. Ou seja, a cultura empresarial estaria subdividida em
modalidades distintas, as quais poderiam ser enquadradas em empresas privadas,
estatais, de capital misto, familiar e as possíveis combinações destas divisões definidas
pelo autor. E, estas relações também seriam distintas, seja pela própria característica de
composição de cada tipo de formação de empresa ou de organização, de tamanho e
formato. Com isso, as transformações econômicas globais atuam diretamente sobre as
organizações, alterando significativamente a sua relação de gestão e de capacidade de
captar investimentos. E, isto ocorre, principalmente, a partir do momento em que estas
passam a ser listadas em bolsas de valores, onde nível de exigência no que tange à
mudança na cultura organizacional é bastante forte assim como em termos de
governança corporativa (MAHONEY, 2007).
Por outro lado, a cultura organizacional precisa transformar-se diante dessas
reais mudanças, muito mais pelos ajustes necessários aos quais as organizações estão
submetidas, mas, também, diante do processo desenvolvimentista cada vez maior, que
não é diferente em termos de planejamento estratégico (RODRIGUEZ, 2002). Porém, as
premissas são diferentes no decorrer do tempo, principalmente após a implantação do
processo de globalização, como explicitado por Barros & Prates (1996, p.108): “Todo o
processo de mudança é de longo prazo e em seu decorrer existe a interferência de
muitos fatores internos e externos à empresa”. E, dentre os fatores internos, na visão de
Rodriguez (2002), a gestão de dos recursos humanos, das pessoas que compõem o
quadro técnico-administrativo também tem necessidade de ser revisto. A cultura
organizacional e a gestão administrativa das pessoas nas empresas possuem uma
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arquitetura organizacional estabelecida. Por outro lado, na visão de Takeuchi & Nonaka
(2008), os gestores, em geral, são céticos e questionam tudo, não presumindo nada
como verdadeiro, devendo assim confiar no corpo técnico e operacional para que as
ações, atividades e tarefas possam ser realizadas.
Porém, o processo de modernização se faz cada vez mais presente e necessário.
Logo, suas respectivas estruturas precisam acompanhar o processo evolutivo e estas
mudanças, pois estão sempre em um ritmo de necessidades e de ajustes cada vez mais
constantes e velozes. Existe uma necessidade de acompanhar a evolução destes
processos, mas também no que tange à vantagem competitiva, diante de um mercado de
grande atratividade, em que a volatilidade de benefícios faz com que haja também uma
movimentação acentuada assim como influenciando o tempo de duração das decisões e
das estratégias adotadas e o custo envolvido.
Ainda contextualizando sobre as transformações globais, a questão da ética, na
visão de Elliot (2002), afeta não só a visão das ações empresariais, mas também a
solução das relações mantidas junto a diversas partes interessadas. Por quê? Porque a
nova realidade global, com o advento maciço da tecnologia da informação, da
democratização da informação, também cria elementos favoráveis ao processo da
corrupção nas organizações. Mesmo que haja pelas organizações todo um bojo de
condições engajadas às questões de governança corporativa das organizações. Mas, por
outro lado, pelas relações intrínsecas junto às questões as quais devem combinar
política/prática de governança e comportamento social/ambiental. O ativismo do
investidor/ acionista vem sendo diretamente acompanhado pelas novas leis e regras
surgidas, principalmente com o advento da Lei Sarbannes-Oxley (SOx), segundo
Mahoney (2007, p.191). Com isso, não excluindo a ação em si da corrupção, mas
atuando nas regulamentações e no controle das organizações.
Se por outro lado, estes mesmos canais de facilidades também propiciam formas
de mecanização da corrupção também permitem formas de coibi-las, pois as regras
relativas aos mercados de ações geram um processo de transparência, que é inerente à
prática de governança corporativa (MAHONEY, 2007). Considerando que a
globalização pode introduzir a corrupção nos processos de gestão, a sistematização dos
meios de comunicação, seja por meio da tecnologia da informação, seja pela
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democratização da informação, seja pelas descobertas de ações organizadas, em que o
papel da segurança da informação se torna premente. Tudo isto permite também uma
acessibilidade de forma bem mais abrangente pelas diversas partes interessadas. Logo,
tornando este tipo de ação mais próxima à exposição (ELLIOT, 2002). Por outro lado,
a mesma democratização desta comunicação digital facilita o processo de descoberta
das ações organizadas, pois a manutenção do sigilo possui determinadas dificuldades.
São efeitos claros do processo de globalização (RODRIGUEZ, 2002).
São vários os fatores externos alteram significativamente o comportamento
organizacional, pois se dá pela composição de diversos fatores, sejam eles vinculados à
imagem empresarial; a reputação e a credibilidade diante dos diversos públicos de em
geral; as estratégias usadas decorrentes do plano de negócios realizados e dentro de um
processo de divulgação transparente, principalmente junto aos investidores e à
imprensa. Mas, também, em relação às comunidades do entorno, junto ao poder público
e as entidades não governamentais (ONGs). Enfim, são diversos setores que se
desdobram diretamente ou indiretamente, dependendo do tipo de segmento de negócio
de cada empresa. Para cada ramo ou tipo de segmento, certamente, as partes
interessadas também se desdobram e se segmentam especificamente.
Por outro lado, isto só de dá em termos de quantidade de público de
relacionamento, sem retirar o ônus dos impactos e das circunstâncias geradas que se
baseiam em uma situação de crise ou mesmo diante de uma percepção de risco
(OGRIZEK; GUILLERY, 1999). Principalmente, diante da necessidade de se ter uma
maior preocupação ainda maior quanto aos aspectos e implantação do processo de
governança corporativa, valores estes que também se tornaram prementes junto às
organizações, baseado no que vem sendo exposto. E, as organizações estão muito mais
sujeitas a regras e a penalidades legais, o que propicia o processo de mudança. E, estas
mudanças
propiciaram
valores
organizacionais
importantes
como
forma
de
relacionamento com as partes interessadas (MAHONEY, 2007), se não pelas regras e
regulamentações legais impostas, pelo fato de serem penalizados na movimentação e
negociação de suas ações na bolsa do mercado de capitais. Hoje, um processo de
comunicação é de percepção mais direta, por meio da interatividade existente junto às
partes interessadas, especificamente os investidores (MAHONEY, 2007).
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O mais interessante é que as organizações devem se ajustar diante da
necessidade maior no sentido da organização interna e cultural das empresas
(BARBOSA, 2002). Porém, na visão de Fleury et al. (1996) sem descaracterizar a
necessidade do rito de passagem, por meio da própria relação de poder econômico e, por
assim dizer, das relações de poder organizacional e empresarial assim como das
relações sociais e organizacionais inerentes de forma geral.
E, diante da importância em demonstrar a mudança de valores, estes novos
paradigmas que a sociedade como um todo tem em relação ao universo, ao meio
ambiente que a envolve assim como seus respectivos desdobramentos, mudaram o nível
e grau de relacionamento. Principalmente, mediante as forças de pressão e dos
respectivos movimentos decorrentes do processo de sustentabilidade, muito mais
alinhados à responsabilidade social corporativa (MAY et al., 2003).
Na visão de Bertero (In FLEURY et al., 1996), dentro desta linha de mudança e
cultura organizacional pode-se constatar que o mercado de forma geral, não só
especificamente o de capitais, possui um movimento rápido em relação aos ajustes e às
necessidades. E, em relação às necessidades sempre estão em acordo com o processo de
evolução das gestões administrativas e empresariais. Principalmente, diante da
implementação massiva da globalização e seus efeitos grandiloquentes ante as reais
necessidades de mudanças administrativas e de gestão assim como diante das
transformações tecnológicas e organizacionais (RODRIGUEZ, 2002). E, estas
mudanças geram as necessidades, sejam estas nas relações interpessoais, de consumo
etc., que por sua vez geram a real necessidade de as empresas se ajustarem e se
adaptarem as novas realidades dos meios de produção e das relações junto às diversas
partes interessadas, principalmente.
Segundo Capra (2005, p.167), a sociedade está se ressentindo de forma
acelerada diante dos impactos da globalização econômica, tendo papel relevante nos
aspectos de mudança, criando um movimento transformador que cresce rapidamente em
todo o mundo. Pois, o acesso e a disponibilidade de forma mais ampla às mídias sociais
transforma esta sociedade em um agente importante dentro do processo de mudança.
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2.2. A necessidade de uma comunicação mais integrada e os reflexos de resiliência
empresarial no processo de sustentabilidade das organizações
O crescimento de atuação da comunicação e de suas formas efetivas em redes de
comunicação faz com que não só no aspecto simbólico da compreensão da informação,
mas também no processo de realimentação existente nas redes de comunicação, seus
canais, suas formas de interligação, se movimentam de forma mais sistematizada e
estruturada, em decorrência da necessidade de um maior uso deste mecanismo de
suporte (CAPRA, 2005). Além disso, não só no aspecto social, mas também como uma
nova e importante vertente de utilização organizacional para o desenvolvimento de seus
negócios, diante de um mundo cada vez mais integrado em termos de comunicação e de
tecnologias cada vez mais disponíveis, tendo as mídias sociais um papel importante e de
destaque, que referenda este ponto acima destacado, pois foi um embrião das mídias
sociais e suas formas de relacionamento. Segundo Fleury (1996, p.24): “A comunicação
constitui um dos elementos essenciais no processo de criação, transmissão e
cristalização do universo simbólico de uma organização”.
Assim, no entendimento de que a comunicação deve cumprir seu papel social
dentro da sistemática dos negócios empresariais, a gestão empresarial percebeu a
necessidade, durante o contínuo processo de transformações, de que a comunicação
possui um papel importante e que deve ser mais integrado aos processos econômicos,
sociais e organizacionais como um todo. Porém, sem perder as características de se
manter em um relacionamento mais direto junto às partes interessadas. Condição esta
bastante relevante no sentido de longevidade das organizações, e de forma que obtenha
um grau de sustentabilidade exequível. Deste modo, a função comunicação migrou para
uma integração multifuncional para atender e suprir as demandas decorrentes desta
necessidade. Para Figueiredo & Nassar (1995), a comunicação empresarial tem um
papel importante e é condição primária quanto ao aspecto da construção da imagem
institucional de uma empresa. E, para que esta meta seja conquistada, além de todo o
processo inerente à transparência e a aproximação junto às partes interessadas, deve-se
ter a valorização de profissionais de comunicação cada vez mais. Uma vez incorporada
nas organizações a relevância destes profissionais, estes possuem a condição de criar e
permite a formação e construção de uma área de comunicação organizacional
(institucional, empresarial, administrativa e mercadológica) no municiamento do
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planejamento e no desenvolvimento de suas ações empresariais mais voltadas não só ao
relacionamento institucional, mas também na visão do negócio (KUNSCH, 2003).
Ainda na visão de Kunsch (2003), o papel da comunicação integrada é fazer a
convergência de diversas áreas de atuação da comunicação, de forma que funcione
como um organismo, dentro de uma visão sistêmica, em que o processo de sinergia flua
adequadamente para um bom resultado coletivo. Este mix da comunicação
organizacional, composto pelas diversas áreas de comunicação, seja a comunicação
interna, a comunicação administrativa, a mercadológica e a institucional, na visão da
autora, deve atuar de forma sistêmica. Assim, constituindo uma unidade efetivamente
integrada, dentro de um nível consensual de harmonia, no âmbito do desenvolvimento
das atividades e, consequentemente, na obtenção dos resultados do negócio. Esta
convergência, ainda na visão da autora, desde que dentro de uma visão claramente
definida e dentro de preceitos objetivos, transparentes em suas ações, define e permite
um desenvolvimento estratégico e tático que deve ser definido para um bem maior na
obtenção da eficácia de suas ações. Esta integração permite que, tendo as ações
definidas e claramente expostas, elas possam propiciar que as ações de relacionamento
perante as diversas partes interessadas sejam mais profícuas e estabeleçam condições
para o desenvolvimento de uma relação de credibilidade em todas as instâncias desta
relação. O que reforça o contexto da sustentabilidade organizacional não apenas em
momentos de benesses, mas também em momentos de possibilidade de risco ou mesmo
de gerenciamento de crise.
De forma sintética, a Figura 1 (CARVALHO, 2008) apresentada abaixo
demonstra o ciclo de sistematização dos processos de comunicação mais integrada, que
reflete No processo de sistematização de gerenciamento de risco e de comunicação de
crise e seu envolvimento direto no âmbito dos negócios.
O sistema apresentado reforça o quanto é importante a manutenção das relações
e sua relevância para a sistematização dos processos de comunicação, cuja integração e
interatividade pode até dar uma dimensão de o quanto pode afetar direta ou
indiretamente a sustentabilidade das organizações ou mesmo reforçar as relações, a
marca, a reputação, a credibilidade, a identidade organizacional, junto ao público
interno e externo. Enfim, possibilita que a empresa alcance a condição da
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sustentabilidade empresarial no processo de troca e ajustes mútuos em cada uma das
variáveis e partes envolvidas.
– Sistematização de Gerenciamento e
Comunicação de Crise - Fonte: CARVALHO (2008)
Segundo Mestieri (2004), estas ações conjunturais efetuadas diante das diversas
pressões internas e externas propiciaram um maior desenvolvimento nas relações junto
às partes interessadas, possibilitando também um maior processo de transparência das
organizações diante de cenários adversos Esta maior abertura, diante da necessidade e
da disseminação da tecnologia da informação e das novas técnicas de obtenção desta,
faz com que as diversas formas de obtenção de informação e de conhecimento, seja ela
de forma estrutural, dentro das organizações, ou individualizada, tenha um cunho
efetivamente mais democratizado. Segundo Morin (2011), em termos de preparação
para esta visão futura de sustentabilidade, é fundamental levar estas premissas em
consideração, e não somente em termos de gestão empresarial e administrativa, mas
também em relação ao seu quadro técnico, operacional e corporativo, melhorar as
condições das relações humanas, a formação do pensamento integrado e complexo.
Da mesma forma, o conhecimento, seja pela pesquisa, pela capacitação do corpo
das organizações, pela relação com os investidores e demais partes interessadas, o
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processo de formação de imagem, sua reputação e credibilidade, dentre outras variáveis,
permite uma abordagem mais abrangente de entendimento da organização. Até porque
hoje a sociedade tem interesse em saber mais sobre esta ou aquela empresa. Seja por
questões de maior entendimento no que tange às questões de sustentabilidade, seja pelo
próprio papel de cidadão mais consciente, por ser membro de uma comunidade que se
localiza muito próximo a uma empresa e o que a afeta socialmente. Ou então, pelo
simples fato de ter um envolvimento maior junto ao mercado de capitais. O que reforça
ainda mais o papel da transparência no processo de comunicação junto às partes
interessadas.
É este entrelaçamento entre a empresa e as partes interessadas que faz com que o
problema não seja tão impactante. Mesmo considerando que isto não irá reduzir o
processo de penalidade, mas sim no que diz respeito à imagem. E, no caso de
investidores e acionistas, as relações têm um maior cunho econômico onde o
entendimento da situação de crise existe, mas o direcionamento de investimento é bem
maior. É certo que este posicionamento é fruto das condições e dos impactos de crise.
Por outro lado, o risco existente é compatível quando se tem uma relação fortalecida,
como retrata Eccles et. al. (2007), onde os clientes são mais leais e adquirem uma faixa
maior de produtos e serviços porque o mercado acredita que tais companhias propiciam
maior ganho e possui um crescimento futuro mais sustentável.
O capital de relacionamento se traduz como um importante ativo intangível no
processo de sustentabilidade, a partir do momento em que as empresas agem de forma
interativa entre seu corpo gerencial e a parte técnica. Esta interatividade é rica, no
sentido de que as informações e as melhores práticas são difundidas e discutidas em
grupo, além de ser extensiva a entidades parceiras, como universidades, empresas e
centros de pesquisa, como forma de gerar intercâmbio de conhecimento e fomentar
parcerias que sejam profícuas para o desenvolvimento dos negócios. E, isto no caso do
capital organizacional e de relacionamento possuírem um papel importante no processo
de troca, de ganho e de interação.
É bem possível que os investidores e os acionistas usem cada vez mais a
sustentabilidade ecológica, no lugar da rentabilidade estrita, como forma de avaliar o
posicionamento estratégico de longo prazo das empresas. Mas, também para reiterar o
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seu posicionamento no que tange ao processo de transparência e de formação de valores
que venham permear e garantir o contexto da credibilidade e de reputação da empresa.
E, segundo Rodriguez (2002), as organizações devem levar em consideração que a
cultura, os valores de mercado e as pessoas, a própria forma de lidar com o meio
ambiente e seus aspectos de transparência e de lidar com os diversos processos, também
devem ser vistos como parte do negócio.
Assim, a relação de consumo ou mesmo de afinidade e imagem junto a uma
determinada instituição e sua marca é alterada de acordo com as nuances, variações e
condições e circunstâncias às quais as empresas estão submetidas, considerando o
estágio de evolução perante o mercado e a própria evolução da empresa. E, por ser um
ativo invisível, sob o aspecto da percepção e das mudanças desta percepção, isto faz
com que a competitividade do mercado faça, cada vez mais, com que as empresas
estejam em sintonia diante dos processos de mudança que surgem diante da gestão
vigente.
3.
A
RESILIÊNCIA
EMPRESARIAL
COMO
UM
INDICADOR
DE
SUSTENTABILIDADE ORGANIZACIONAL
A capacidade de resiliência das empresas é um tema recorrente, segundo Hamel
& Välikangas (2003, p. 32): “Existe uma lacuna de resiliência. A velocidade com que o
mundo fica turbulento é maior do que aquela com que as organizações adquirem
resiliência.” Hoje, mais do que nunca, é fundamental as empresas incorporarem os
processos de mudança e se ajustarem a ela. Acabou o período em que um executivo
podia tratar uma determinada estratégia ou modelo de gestão de negócio como sendo
uma condição eterna, baseada apenas na sustentabilidade empresarial vigente em
determinado período.
Desde o advento da globalização, as condições e as imposições de um mundo
em mudou consideravelmente os paradigmas e os modelos de gestão, a forma de se
relacionar com os diversos públicos de interesse e de relacionamento. Tal razão se deve
ao fato dos colapsos de desempenho financeiro e empresarial vir aumentando muito,
seja diante das mudanças que vêm ocorrendo no mundo globalizado ou mesmo diante
das crises mundiais, principalmente após a última grande crise no final de 2008. Mesmo
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empresas de sucesso mais duradouro sentem mais dificuldade para obterem retornos
sempre superiores. Conforme Hamel & Välikangas (2003, p.33):
Em tempos menos turbulentos, empresas estabelecidas podiam apostar no
embalo para sustentar seu sucesso. Algumas como AT&T e American
Airlines, eram protegidas da concorrência pela regulamentação e por práticas
de oligopólio. Outras, como General Motors e Coca-Cola, contavam com
paradigmas relativamente estáveis: há mais de meio século o automóvel tem
quatro rodas e motor a combustão, e o consumidor bebe refrigerantes à base
de cafeína. Já o McDonald’s e a Intel tinham a formidável vantagem do
pioneirismo. Em setores de uso intensivo de capital, como o petrolífero e o
aeroespacial, enormes barreiras à entrada protegiam os líderes.
Uma condição essencial faz com que este status quo venha ser alterado, pois a
necessidade da resiliência empresarial já é um fato duradouro diante das diversas
mudanças advindas e agregadas diante do processo de globalização. Rupturas com
modelos previamente estabelecidos, mudanças relativas aos padrões tecnológicos, o
advento da tecnologia da informação de forma ampla e disseminada, onde todos os
processos se interligam e se tornam interdependentes (RODRIGUEZ, 2002). Da mesma
forma, os respectivos padrões de consumo também foram modificados em decorrência
da exaustão do meio ambiente. O foco de desenvolvimento de produtos e serviços
disponibilizados a clientes e consumidores, e o respectivo nível de exigência decorrente
destes processos de mudança constituem uma das dimensões primordiais para o sucesso
das transformações empresariais diante das mudanças globais, baseado na visão de
Vinha (In MAY et al., 2003). Esta orientação acarreta uma geração de novas linhas de
produtos e de serviços para os clientes, visando terem uma nova conceituação de valor
agregado ao produto e aos serviços, assim constituindo uma nova forma de consumo
para este segmento de público de relacionamento. Com base em Hamel & Välikangas
(2003, p.34), poderia ser definida como resiliência empresarial:
Resiliência estratégica não é reagir a uma crise isolada. Não é se recuperar de
um revés. É, antes, a capacidade de se antecipar – e se ajustar –
continuamente a profundas tendências seculares capazes de abalar de forma
permanente a força geradora de lucros de um negócio. Resiliência é a
capacidade de mudar antes que a necessidade se torne imperativa.
Segundo Capra (2005, p. 148), essa nova economia, onde o capital funciona em
tempo real, onde as fronteiras são virtuais, o poder do capital é mais entrelaçado e as
redes financeiras internacionais são constituídas. Tudo isto faz com que este capital
possa trafegar rapidamente por todo o mundo, buscando cada vez mais novas
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oportunidades de investimento e de ampliação dos negócios. O processamento e a
velocidade do processamento de informações e o desenvolvimento tecnológico para
dominar, ou melhor, intervir nos processos desta tecnologia, principalmente tendo a
gestão do conhecimento como um meio eficaz de dominação. Tudo isto faz com que
essa inovação tecnológica venha ter um papel extremamente importante no processo da
competividade empresarial. A inserção da informática, enquanto processo de rede
mundial, faz com que haja uma revolução poderosa, mundial, em que não havendo a
necessidade de algo mais concreto em termos de fronteiras, a abrangência acaba sendo
muito mais poderosa, ressurgindo assim um capitalismo mais poderoso, rejuvenescido,
flexível, diante de toda uma tecnologia à disposição e enormemente ampliada.
Da mesma forma, ainda em relação às condições do status quo de tempos
passados, as grandes mudanças geopolíticas fizeram com que países, até então em
condições integrais de subordinação, passassem a integrar grupos de países relevantes,
apesar de estarem enquadrados como em desenvolvimento. Assim, se ajustam aos
processos de mudança das estruturas organizacionais, políticas e econômicas, e
ampliaram suas ações de forma mais estável. Contribuindo para uma mudança da ordem
econômica, das relações de poder e, consequentemente, da submissão aos padrões
convencionados, alterando esta relação de poder. São países, como o Brasil, em que os
processos de resiliência empresarial vêm se ajustando e acarretando uma mudança
significativa relacionada aos padrões do consumidor e de produção, onde a exigência é
maior quanto maiores forem os esgarçamentos das forças de coalizão, seja no âmbito
social, ambiental e econômico.
Dentre estes fatores e considerando uma era turbulenta, o capitalismo
tecnológico exige mudanças, advindas do processo de globalização (CAPRA, 2005).
Uma instituição pode tropeçar pela intensificação de suas ações de marketing para
segmentos específicos de clientes, sem levar em consideração a inserção de novos
parceiros futuros na cadeia de relacionamento de partes interessadas e na manutenção
quanto ao uso dos recursos de rotina. E, mais ainda sem se preocupar na inovação de
novos canais, por exemplo. Mas, nem sempre, um aporte menor de recursos (HAMEL
& VÄLIKANGAS, 2003). Já uma idéia inovadora nem sempre atrai, pois onera o
envolvimento e o processo decisório. As organizações devem se antecipar e estarem
preparadas para as circunstâncias diante destas mudanças assim como em vir a
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remodelar seu processo de gestão (RODRIGUEZ, 2002). Vide os impactos,
relativamente recentes, desta não concordância ou de não ajuste por parte de
megaempresas norte-americanas, como a General Motors, a Ford e a IBM, dentre tantas
outras, que não souberam administrar o processo de mudança, as exigências decorrentes
destas necessidades e as transformações e que tiveram alterações significativas em seu
modelo de negócio. Da mesma forma, empresas como a Coca-Cola, que vem buscando
se concentrar em conquistar o mercado de bebidas não gasosas. Ou então, o
McDonald’s que vem tentando se ajustar às realidades regionais e locais onde possui
franquias, mudando um pouco aquele conceito somente de hambúrgueres e suas
variações, de forma que se adapte às mudanças e as exigências do mercado e de forma a
retomar o crescimento (HAMEL & VÄLIKANGAS, 2003). É o caso também das
indústrias
farmacêuticas,
desenvolvendo
novas
pesquisas,
diante
de
novas
regulamentações e tendo a inserção dos medicamentos genéricos, impondo e mudando a
ordem social neste sentido. O mesmo ocorre com as empresas petrolíferas, mudando a
gestão, transformando atividades, de empresas de petróleo para empresas de energia,
mas sem perder o caráter da extração fóssil. Embora com maior controle no processo
extrativista. Deste modo, dentro de uma diretriz de não alinhamento às questões de
resiliência, segundo Rodriguez (2002, p.43), menciona:
Na maioria das vezes, a introdução de drásticas mudanças na empresa chega
somente no momento em que a mesma precisa sobreviver, ou seja, quando se
encontra no limite entre a vida e a morte.
O ritmo crescente de mudanças, e de forma contínua, exige que a evolução
estratégica seja realmente acelerada no aspecto da vantagem competitiva, reforçando o
aspecto da resiliência. Por isso, empresas tradicionalmente de sucesso, que sempre
tiveram um ambiente propício e com poucas condições de risco nos negócios, se
ressentem bastante diante destas necessidades de mudança. Assim, reforçando as
premissas, e em consonância com as questões inerentes à resiliência, segundo Hamel &
Välikangas (2003, p. 35), temos:
A resiliência está ligada à capacidade de reconstrução contínua. É inovar em
relação aos processos e comportamentos organizacionais que favorecem
sistematicamente a perpetuação em detrimento da inovação.
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As empresas, sistematicamente, devem ter uma atitude positiva diante do
posicionamento de seu negócio e ante a necessidade de mudanças. Segundo Bezerra (In
STAREC et. al., 2006, p.88): “O planejamento estratégico faz com que a empresa olhe
para o futuro e vá ao seu encontro sem sofrer os percalços e dissabores de uma
caminhada sem bússola ou mapa”. Ou seja, uma concretização maior e de forma mais
consistente quanto ao entendimento e à atuação diante das situações de gerenciamento
de riscos, seja no que diz respeito diante de mudanças conjunturais, de fatores
climáticos, de cunho político ou de ordem econômica ou ambiental (MAHONEY,
2007). Com isso, as turbulências diante de um mundo globalizado estarão mais
claramente identificadas por parte da organização, ampliando o processo de resiliência,
impactando menos as questões comportamentais na organização. Portanto, a
necessidade de uma boa governança se apoia em fortes interações entra a sociedade
civil, os agentes do mercado e as estruturas do governo (ZAPATA, p.12, 2009).
Na visão de Neto; Brennand (2004), a questão da sustentabilidade das
organizações passa pela gestão das três dimensões, econômica, ambiental e social, mas
também pelas atitudes e posturas diante do desenvolvimento dos negócios:
A atitude socialmente responsável da empresa revela a sua consciência
social, motivada pela sua compreensão da gravidade do problema social, da
importância da população-alvo deste problema e pelo desejo de
transformação social da comunidade-alvo do problema.
No âmbito da proteção ao meio ambiente, as empresas devem adotar
mecanismos relativos à gestão do consumo de energia e quanto ao uso e manejo dos
recursos naturais assim como uma gestão eficiente no uso das matérias-primas e no
tratamento dos resíduos. Mas também no que tange à gestão dos produtos
ecologicamente corretos; de resíduos e efluentes; e na gestão da saúde ambiental (MAY
et al., 2003).
Já em relação ao desenvolvimento de cunho econômico, compete às empresas:
processo de gestão democrática do trabalho, gerando novas oportunidades de emprego e
de renda; gestão e fomento de economia popular; o mesmo tipo de gestão na rede de
fornecedores, clientes e parceiros; e administração consciente quanto à política de
preços quanto a seus serviços e produtos (RODRIGUEZ, 2002).
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No que tange ao campo da equidade social, os desafios sempre são maiores, pois
dependem de um maior engajamento e comprometimento, não só pelas organizações e
sua cultura organizacional, mas junto aos diversos públicos e as partes interessadas
(stakeholders). E, também, onde já não há espaço para o marketing social,
isoladamente, já que as outras duas dimensões passam muito mais por questões relativas
aos ativos tangíveis: gestão das ações éticas e adoção de práticas pertinentes, de
transparência, honestidade, abolindo a corrupção como prática e costume cultural;
gestão participativa dos negócios; processos de gestão referentes à mobilidade social, à
diversidade cultural e étnica; à forma de comunicação e de governança junto às parte
interessadas e de relacionamento (público alvo); retenção de talento e do conhecimento;
desenvolvimento de programas e projetos sociais de combate à miséria e à pobreza,
geração de renda e empregabilidade; e gestão cultural no combate ao preconceito social
(NETO; BRENNAND, 2004).
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como se pode ver neste presente estudo, o movimento de mudança gera fatores
relevantes, constantes, ágeis e consistentes diante do entendimento da concepção do que
é o processo de sustentabilidade das organizações. Em que a necessidade de mudança e
ajustes venha ser de forma bem mais ampla em relação à equidade das diversas
variáveis, dos cenários que se desdobram diante das organizações assim como em
relação ao processo de comunicação integrado e também o entendimento pelas partes
interessadas e os diversos públicos de relacionamento, pois é bem mais abrangente sob
o aspecto das relações seja interna, externa e também institucional. Há a necessidade de
que o foco das dimensões seja discutido de forma bem mais ampla, saindo apenas do
entendimento de que a dimensão principal seja o meio ambiente para algo bem mais
amplo, em que as vertentes como a gestão ambiental, o crescimento econômico, a
equidade social e as relações humanas sejam elementos fundamentais para o
desenvolvimento sustentável das organizações e que a resiliência empresarial seja um
aliado constante no processo decisório e de gestão das empresas. Bem engajada e
compreendida passa a ser um importante elemento de mudança na gestão empresarial,
pois propicia o fortalecimento das relações culturais das organizações, reforça cada vez
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mais as questões relacionadas à sustentabilidade e no âmbito destas, a da própria cultura
organizacional e as relações junto aos diversos públicos de relacionamento e partes
interessadas (stakeholders).
Por outro lado, a dificuldade de remodelar o processo de gestão de seus negócios
decorre pelo fato de as empresas não possuírem a flexibilidade e a velocidade necessária
para agir, atuando de modo pró-ativo, segundo a necessidade e o envolvimento junto às
diversas partes, as tendências de mercado, sob a ótica das respectivas condições
econômicas e também diante dos possíveis impactos em momentos de grandes crises
econômicas, afetando as condições de resiliência empresarial. Pois, as metas são
definidas. Em geral, de forma estática. Ou seja, sem que se vislumbre que existe uma
forte necessidade de constante mudança e agilidade no modo de pensar e no modelo
estratégico e mental do desenvolvimento e de planejamento estratégico do negócio.
Deste modo, há a necessidade de uma forma mais atuante, eficiente, de inovação
nas ações organizacionais e do monitoramento destas. Assim, a gestão de risco dos
negócios e as metas decorrentes do planejamento estratégico devem estar sempre em
consonância às avaliações constantes de seus processos e da análise efetiva por meio da
melhoria contínua. Inclusive inferindo positivamente na cultura organizacional da
empresa.
Se o esforço de renovação, ou seja, a resiliência atuando como fator indutivo
diante de uma situação ou de uma efetiva crise de desempenho, acarreta uma situação
menos penosa diante de um processo de mudança ou de transformação na gestão
empresarial. Daí a necessidade de revisão constante de seu planejamento estratégico
sempre sob a ótica de possíveis mudanças conjunturais, antevendo as matrizes de
percepção de risco, prevendo a construção de um futuro mais longevo e sustentável. E
importante sobre estes aspectos é não se prender a condições do passado ou a situações
de estabilidades de um período anterior, mas sim por conta de mudanças e de
transformações atuais, se ajustando, canalizando o conhecimento usando a comunicação
de forma integrada e estratégica, articulando junto às partes interessadas.
O processo de análise contínua abrange mudanças e propicia um maior senso
crítico, gradativo na gestão empresarial de forma mais organizada, mais transparente e
mais equânime também de forma geral. E, isto seja no processo institucional e
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corporativo, inferindo na cultura organizacional, mas, principalmente, junto aos seus
diversos públicos de relacionamento e partes interessadas (stakeholders), acarretando
uma percepção de imagem e identidade corporativa mais forte, propiciando uma
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O DESAFIO DA INTIMIDADE NO
CIBERESPAÇO: Um olhar sobre
mercantilização da intimidade no Blog
do Kadu
Danilo POSTINGUEL9
Resumo: Este trabalho busca entender como a ideia de mercadorização pode ameaçar a
vida íntima. Nesse sentido, buscará entender como os blogs – uma atualização dos
diários – permitem que os indivíduos exponham sua intimidade, como, também,
entender a necessidade, hoje, de tudo se tornar mercadoria, ou seja, mercantilizar até
mesmo a intimidade. Logo, pode-se apurar, pelo menos no plano virtual, que muitas
intimidades são expostas, buscando nelas conseguir alguma forma de recompensa,
desde a material até mesmo a simbólica. A pesquisa qualitativa de caráter exploratório
utilizou-se de uma revisão bibliográfica, como, também, de uma análise empírica em
um blog; para compreender o evento.
Palavras-chave: Intimidade. Blog. Mercadoria. Narrativas.
Abstract: This paper seeks to understand how the idea of commodification can threaten
intimate life. In this sense, seek to understand how blogs - an update of the daily - allow
individuals to expose their intimacy, and understand the need to become all
merchandise, commodifying even intimacy. Therefore, one can determine, at least in the
virtual plane, many intimacies are exposed, trying to get them some kind of reward,
since the stuff even symbolic. A qualitative exploratory research we used a literature
review and an empirical analysis on a blog, to understand the event.
Keywords: Intimacy. Blog. Merchandise. Narratives.
9
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Práticas do Consumo PPGCOM – ESPM-SP,
vinculado ao Grupo de Pesquisa NICO; Bolsista PROSUP/CAPES, e-mail: [email protected].
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1. INTRODUÇÃO
Um dos temas recorrentes de nossa sociedade, hoje, pauta-se com relação ao
excesso de exposição das pessoas, principalmente, nas mídias sociais. Constantemente,
reportagens10 apontam para esse fenômeno. A qualquer ponto que se direcione o olhar,
há uma câmera apontada para registrar um momento de felicidade, uma
confraternização, um fato inusitado, um descaso público, enfim, um acontecimento.
Nessa profusão de imagens, comentários, representações e narrativas que circulam pela
rede mundial de computadores, indagações, por exemplo, acerca da intimidade são
trazidas à luz das discussões no campo acadêmico.
Recentemente, um aplicativo lançado para o público feminino causou
grande burburinho entre os internautas. Conhecido por Lulu, o aplicativo possibilitava
que esse público, e somente ele, avaliasse seus parceiros em alguns quesitos, entre eles,
desempenho sexual. Entre os muitos envaidecidos por sua considerável nota, logo,
decorrente de sua performance no mundo real, outros mais reticentes indagavam a
propulsão de informações tidas como pessoais. Foi o que aconteceu, por exemplo, com
o estudante Felippo de Almeida Scolari, que processou o aplicativo por constar
informações que, segundo o próprio estudante, perceber “que havia informações íntimas
em um aplicativo que eu jamais baixei, para qualquer pessoa poder ver”11.
Se a exposição da intimidade já repercute vários debates e discussões, o que
dizer, por exemplo, quando essa intimidade é negociada e/ou comercializada? No início,
revistas como Playboy, G Magazine, entre outras, traziam pessoas tidas como de
destaque na mídia, em fotos, além de sensuais e sexuais, apresentavam-nos ‘da forma
como que vieram ao mundo’. Para isso se ganhavam cifras de reais. E o que dizer então
dos “paparazzi”, que de uma forma mais contida, contudo não menos invasiva, tentam
capturar detalhes da intimidade de celebridades e comercializá-los?
Até agora indagou-se sobre uma possível intimidade que foi exposta por
outrem, no entanto é preciso compreender também quando o indivíduo resolve se expor,
e por conseguinte, fazer receita disso. Dessa forma, é possível discutir essa problemática
10
MELO, Itamar. Jovens ultrapassam os limites na Internet e expõem a intimidade na rede. Jornal Zero Hora. 2010.
Disponível em:<http://zerohora.clicrbs.com.br/rs/geral/noticia/2010/08/jovens-ultrapassam-os-limites-na-internete-expoem-a-intimidade-na-rede-2998264.html>. Acesso em: 18 dez. 2013.
11
FINCO, Nina. 'Fiquei revoltado com a exposição da minha intimidade', diz estudante que processa o aplicativo
Lulu. Época. 2013. Disponível em:<http://epoca.globo.com/vida/noticia/2013/11/fiquei-revoltado-com-exposicaoda-minha-intimidade-diz-estudante-que-processa-o-baplicativo-lulub.html>. Acesso em: 18 dez. 2013.
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como uma atividade empreendedora ou uma nova possibilidade de trabalho pelas mídias
sociais. Para entender quanto vale uma intimidade, lança-se a seguinte questão: em que
momento a vida íntima, hoje, pode ser usada como mercadoria?
Buscando elucidar a presente temática, tendo como base uma pesquisa
qualitativa de caráter exploratório será proposto analisar o Blog do Kadu, um blog de
moda masculina. Para isso delimitou-se como amostra as postagens oriundas do mês de
dezembro de 2013, selecionadas a partir do repertório imagético em que aparecia o
blogueiro. O propósito de usá-lo dá-se por sua visibilidade ser oriunda da exposição
cotidiana do próprio blogueiro, ou seja, Kadu mune-se de sua vida privada (intimidade)
para expor tendências de moda, assim como galgar anunciantes para suas postagens.
Ajudando a corroborar esse pensamento, será desenvolvida uma pesquisa
bibliográfica, utilizando autores como Leonor Arfuch e Paula Sibilia em um debate
acerca de narrativas biográficas e suas exposições, além de textos como de João Freire
Filho,
André
Gorz,
Zygmunt
Bauman,
propondo
um
debate
acerca
de
empreendedorismo, performance e da necessidade de nos ‘tornamos mercadorias
desejáveis’ nesse sistema capitalista.
Das inúmeras formas possíveis de exposição da intimidade demarca-se a
modernidade como início das discussões, principalmente com o surgimento do
capitalismo que ensejou nos sujeitos a possibilidade de uma identidade individual que
se mostrava para os indivíduos daquela sociedade. Mediante a isso se fará uma breve
comparação entre os diários íntimos, uma de tantas formas modernas de constituição de
identidade, e essa possível evolução dos diários, agora para o plano virtual, propondo
essa visão dicotômica, onde o primeiro buscava o resguardo, o íntimo, o seguro e o
segundo pela procura do público, do livre, do compartilhado. Duas escritas feitas a
partir de si, mas em que uma buscava pelo resguardo, a outra, e contemporânea, a busca
pelo público e ampliando as discussões, formas de se rentabilizar essa exposição de uma
intimidade.
2. A EXPOSIÇÃO DO EU NO CIBERESPAÇO
Há uma considerável profusão de mídias sociais virtuais. Em meio a essa
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propulsão de uso, até mesmo a ideia de panaceia12 dessas mídias existentes; entre
aquelas que rapidamente conseguiram sua ascensão, como também aquelas que ao
longo do tempo, foram esquecidas, os blogs, uma das primeiras ferramentas de
interação, compartilhamento e expressão, permitiram e permitem que qualquer
indivíduo se expresse na web.
Muitas vezes usados como os substitutos, ou melhor, aprimoramento dos
diários íntimos, os blogs foram os propulsores nessa proliferação da intimidade para o
maior contingente possível. No entanto Arfuch (2010, p. 35) aborda que essa ideia de
um eu narrador da própria vida “é um fato que remonta há pouco mais de dois séculos
somente, indissociável da consolidação do capitalismo e do mundo burguês”.
Arfuch (2010, p. 15) relata que esses gêneros narrativos13, desde seu
surgimento, davam indicativos “dessa obsessão por deixar impressões, rastros,
inscrições, dessa ênfase na singularidade, que é, ao mesmo tempo, busca de
transcendência”.
Essa construção do eu, logo, de uma individualidade proporcionada pela
modernidade – de um projeto burguês –, foi, como salienta Arfuch (2010):
Submetido à cisão dualista (público/privado, sentimento/razão,
corpo/espírito, homem/mulher), que precisava definir os novos tons da
afetividade, o decoro, os limites do permitido e do proibido e as
incumbências dos sexos, que, no século XIX, se consolidariam sob o signo da
desigualdade, com a simbolização do feminino como consubstancial ao reino
doméstico (ARFUCH, 2010, p. 36).
Dialogando com a citação anterior, Sibilia (2008) reforça a importância que
recebeu o lar nesse processo de modernização, sendo intensificado, a partir do século
XIX. A autora enfatiza que “o lar foi se transformando no território da autenticidade e
da verdade: um refúgio onde o eu se sentia resguardado, um abrigo onde era permitido
ser si mesmo” (Ibidem, p. 62-63). Vale destacar como esse processo de ‘recolhimento’,
de ‘domesticação’, tornou-se objeto de desejo, para os indivíduos, principalmente, para
os burgueses da época.
12
Cf. Pinheiro, 2013.
Arfuch (2010, p. 15) enquadra nessa perspectiva, gêneros, como: biografias, autobiografias, confissões,
memórias, diários íntimos, correspondências.
13
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Concatenando com os gêneros narrativos, se a autobiografia permitiu esse
desdobramento “da estirpe familiar à nação” (ARFUCH, 2010, p. 143), em
contrapartida, os diários íntimos corroboraram a ideia de resguardo, de uma vida
doméstica, promovendo uma aproximação maior desse eu.
Com relação aos diários íntimos, Arfuch (2010), assim os descreve:
[De] Uma escrita desprovida de amarras genéricas, aberta à improvisação, a
inúmeros registros da linguagem e do colecionismo – tudo pode encontrar
lugar em suas páginas: contas, bilhetes, fotografias, recortes, vestígios, um
universo inteiro de ancoragens fetichistas –, sujeita apenas ao rimo da
cronologia, sem limite de tempo nem lugar. O diário cobre o imaginário de
liberdade absoluta, cobiça qualquer tema, da insignificância cotidiana à
iluminação filosófica, da reflexão sentimental à paixão desatada (ARFUCH,
2010, p. 143).
Estreitando as discussões, Arfuch (2010) salienta que, entre os gêneros
biográficos que despontaram na modernidade, os diários podem ser considerados os
precursores da intimidade midiática, isso porque “o diário cobiça um excedente, aquilo
que não é dito, solicita uma forma de salvação. De alguma maneira, contém o sobrepeso
da qualidade reflexiva do viver” (Ibidem, p. 145).
De certa forma, os diários aguçavam a curiosidade alheia, a curiosidade em
saber o que se passava na intimidade daquele que o escrevia. Temática essa similar, que
pode ser exemplificada pelos indivíduos que consomem revistas tidas de fofoca.
Assim, se as mídias tradicionais corroboravam a favor da exposição da
intimidade de algumas celebridades, Arfuch (2010) vê, com o advento da internet, a
possibilidade da intimidade até então encontrada e guardada nos diários íntimos, se
espraiar para a sociedade, pois:
A internet conseguiu, assim, popularizar novas modalidades das (velhas)
práticas autobiográficas das pessoas comuns, que, sem necessidade de
mediação jornalística ou científica, podem agora expressar livre e
publicamente os tons mutantes da subjetividade contemporânea (ARFUCH,
2010, p. 150).
Destarte, o advento e a posterior disseminação da internet, culminaram para
que essa vida íntima e doméstica migrasse cada vez mais para plano virtual. Trazendo
para uma contextualização mais contemporânea, Sibilia (2008), em seu livro O show do
eu: intimidade como espetáculo, aborda, principalmente, como os blogs facilitaram a
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exposição do eu. Com relação aos blogs e até mesmo os diários íntimos, Sibilia (2008)
aborda que:
Os ‘diários íntimos’ publicados na web, nos quais os usuários da internet
contam suas peripécias cotidianas usando tanto palavras escritas como
fotografias e vídeos. Trata-se dos famosos weblogs, fotologs e videologs,
uma série de novos termos de uso internacional cuja origem etimológica
remete aos diários de bordo mantidos pelos navegantes de outrora. É enorme
a variedade dos estilos e assuntos tratados nos blogs de hoje em dia, embora
sejam maioria os que seguem o modelo ‘confessional’ do diário íntimo. Ou
melhor: do diário éxtimo, de acordo com um trocadilho que procura dar conta
dos paradoxos dessa novidade, que consiste em expor a própria intimidade
nas vitrines globais da rede (SIBILIA, 2008, p. 12-13).
Amaral; Recuero; Motardo (2009, p. 29) reforçam a ideia do uso dos blogs
como diários virtuais. Na concepção das autoras, “esses blogs eram utilizados como
espaços de expressão pessoal, publicação de relatos, experiências e pensamentos do
autor. Ainda hoje, o uso do blog como um diário pessoal é apontado por muitos autores
como o mais popular uso da ferramenta”.
Nesse contexto, quando as autoras enfatizam que a maioria dos blogs
encontrados hoje na internet ainda seguem o modelo confessional dos diários íntimos,
Sibilia (2008) traz uma conceituação, enfatizando que esses blogs seriam diários
éxtimos, ou seja, esses blogueiros oferecem cotidianamente narrativas de sua
intimidade, ou como elencou a autora, sua extimidade. Assim, “a velha intimidade se
transformou em outra coisa. E agora está a vista de todos”. (Ibidem, p. 78).
Na busca por audiência, esses blogs, assim como a intimidade e a
subjetividade, acabam se tornando mercadorias. Segundo Sibilia (2008),
No forcejar dessa negociação, as subjetividades podem se tornar mais um
tipo de mercadoria; um produto dos mais requeridos, como marcas, que é
preciso colocar em circulação, comprar e vender, descartar e recriar seguindo
os voláteis ritmos das modas (SIBILIA, 2008, p. 274-275).
Para corroborar com o entendimento da proposta deste artigo, a próxima
seção se destinará a entender como esse ‘novo espírito do capitalismo’, impregnado em
nossa cotidianidade, contribui para essa ideia de nos ‘tornarmos mercadorias desejáveis
o tempo todo’, buscando assim, a máxima performance em todas as ações.
3. A PERFORMANCE E A MERCANTILIZAÇÃO DO EU
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O diálogo proposto até o momento buscou apresentar a relevância dos blogs
como ‘fomentadores’ e, ao mesmo tempo, disseminadores de intimidade, criando,
conforme apresentou Paula Sibilia, uma extimidade – uma intimidade, agora visível a
todos. Ainda na última parte indagou-se que, no meio de tantos blogs que, constante e
cotidianamente oferecem ao mundo a intimidade daquele que o escreve, ou seja, uma
intimidade que é para ser vista, lida, descoberta, propagada, requer algumas, por assim
dizer, estratégias que atraiam e retenham a atenção dos internautas. Querendo
subentender – e começando esta seção –, que esses blogs e essas intimidades precisam,
quase como que devessem, tornar-se mercadorias para os demais que as consumirão.
Bauman (2008), nesse sentido, relata que parte dessa proposição de nos
elevarmos à condição de mercadorias vendáveis advém dessa sociedade de
consumidores, ressaltando que o papel do consumo nessa sociedade “não é a satisfação
de necessidades, desejos e vontades, mas a comodificação ou recomodificação do
consumidor” (Ibidem, p. 76).
Ao trazer a ideia de comodificação, o autor enfatiza que o termo “precede o
consumo e controla o acesso ao mundo dos consumidores. É preciso se tornar uma
mercadoria, para ter uma chance razoável de exercer os direitos e cumprir os deveres de
um consumidor” (BAUMAN, 2008, p. 88-89). Nesse sentido, Bauman reforça a ideia de
que, para pertencer a essa sociedade, hoje, do consumo, é preciso, antes de tudo, tornarse uma mercadoria e, ainda, vendável.
Seguindo por esse percurso de entender o indivíduo como mercadoria
desejável, Gorz (2005), no livro O imaterial: conhecimento, valor e capital, em um
determinado excerto, apresenta a ideia de que o indivíduo, além de se portar como
mercadoria, precisa assumir, até mesmo, uma postura organizacional, ou seja, cada
indivíduo deveria se portar como uma organização, buscando a máxima eficiência em
suas atividades. Isso remete à dilatação das práticas organizacionais nas relações
cotidianas. Segundo o próprio autor:
A pessoa deve, para si mesma, tornar-se uma empresa; ela deve se tornar,
como força de trabalho, um capital fixo que exige ser continuamente
reproduzido, modernizado, alargado, valorizado. Nenhum constrangimento
lhe deve ser imposto do exterior, ela deve ser sua própria produtora, sua
própria empregadora e sua própria vendedora, obrigando-se a impor a si
mesma constrangimentos necessários para assegurar a viabilidade e a
competitividade da empresa que ela é (GORZ, 2005, p. 23).
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Contribuindo, Freire Filho (2011), ao analisar alguns discursos que circulam
tanto pela nossa sociedade quanto pela mídia (o autor analisou peças publicitárias, como
também, livros de autoajuda), mostra como esse espírito do capitalismo vigente busca
esse perfil performático nos indivíduos, e como aquelas relações dicotômicas criadas,
principalmente, na modernidade, vão sendo diluídas, ênfase aqui, na relação profissional
e privado. Para o autor (idem, p. 28), “rompem-se, assim, as fronteiras entre o
profissional e o privado, o trabalho e o afetivo. Como num encontro de almas, pulsões
de expansão individual vão inserir-se, livremente, no circuito organizacional de busca
da ‘alta performance’”.
Essa diluição, ou até mesmo, borramento das fronteiras, conforme
mencionado anteriormente, permite, segundo Freire Filho (2011, p. 29) deixar o
indivíduo “em posição de vantagem nas relações de concorrência que se disseminam –
sem exagero – por todas as esferas da vida. Gorz (2005, p. 25) justifica essa
possibilidade de desempenho em todas as esferas da vida, enfatizando que esse ato
performático se dá, pois “tudo é medido em dinheiro”. E acrescenta, utilizando aqui, de
forma metafórica, que “o futuro pertence aos autoempreendedores” (Ibidem, p. 24).
Essa ideia de performance, advinda do processo de mercadorização do
indivíduo e da decorrente mediação exercida pelo dinheiro, pode ser explicada por conta
desse espírito do capitalismo no qual vivemos. Max Weber, ao ensaiar sobre a ética
protestante há mais de um século, dava indícios da existência de um espírito do
capitalismo. Em seu livro A ética protestante e o espírito do capitalismo, pode-se
entendê-lo como “o capitalismo vivenciado pelas pessoas na condução metódica da vida
de todo dia. Noutras palavras, o ‘espírito’ do capitalismo como conduta de vida:
Lebensführung” (WEBER, 2004, p. 7).
Com relação ao espírito do capitalismo, Boltanski e Chiapello (2009)
reforçam, salientando que o termo
É justamente o conjunto de crenças associadas à ordem capitalista que
contribuem para justificar e sustentar essa ordem, legitimando os modos de
ação e as disposições coerentes com ela. Essas justificações, sejam elas gerais
ou práticas, locais ou globais, expressas em termos de virtude ou em termos
de justiça, dão respaldo ao cumprimento de tarefas mais ou menos penosas e,
de modo geral, à adesão a um estilo de vida, em sentido favorável à ordem
capitalista (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009, p. 42).
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Quando Boltanski e Chiapello (2009) ressaltam que vivemos um novo
espírito do capitalismo, Freire Filho (2011) apresenta que, da mesma forma que esse
novo espírito está presente nos ambientes corporativos, espraia-se para o ambiente
familiar, criando, conforme salientaram anteriormente Boltanski e Chiapello, um novo
estilo de vida, regrado por essa ordem capitalista. Esse novo estilo de vida, além de
buscar encorajar as pessoas a se tornarem mais “autônomas” (FREIRE FILHO, 2011, p.
35), trabalhando nessa essência de performance, pode-se até mesmo dizer na ideia de
obsolescência forçada com relação aos indivíduos, cobrando deles constante renovação
e entrega por diferencial, ante os demais concorrentes, logo, uma ideia do mundo
corporativo capitalista.
Partindo para a empiria, a presente discussão corroborará com o
entendimento dessa ideia de performance, cristalizada em nossa sociedade,
demonstrando como pode existir uma ideia, tanto de performance como até mesmo de
mercadorização da intimidade em blogs.
4. BLOG DO KADU
Como aparece no próprio cabeçalho do site, o Blog do Kadu é um blog de
“moda para homens com estilo, bom humor e atitude!” (BLOG DO KADU14). No
entanto, Blog do Kadu não é simplesmente uma logomarca para mais um blog de moda
no ciberespaço. Fazendo jus ao nome, é de fato, o blog do Kadu. Atentando-se para esse
jogo de palavras, algo até mesmo proposto pelo próprio blogueiro, pelo fato de, antes de
ser entendido como um espaço para divulgação de marcas e tendências do universo da
moda, é uma vitrine virtual de exposição, como expôs Bauman (2008), dessa
mercadoria vendável, chamada Kadu.
Um primeiro fato que justifica essa ideia do blog como vitrine pode ser
encontrada na aba, Kadu Dantas. Ao clicá-la, aparece uma breve descrição de quem é a
pessoa de trás da tela. Contudo, ao confrontar com o endereço eletrônico disponível
para essa aba15, percebe-se que o endereço apresenta a frase ‘sobre o blog’, e, quando
14
15
Blog do Kadu. Disponível em:<http://kadudantas.com.br/>. Acesso em: 20 dez. 2013.
Disponível em:<http://blogdokadu.com/sobre-o-blog/>. Acesso em: 20 dez. 2013.
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clicado, consta uma breve biografia do blogueiro, ou seja, quem está sendo apresentado
ao mundo, antes do blog é a pessoa.
Não desenvolvendo de maneira explícita uma análise de discurso, algumas
falas do blogueiro são relevantes para a pesquisa. Ainda abordando a questão da
performance, contextualizando-a e comparando-a com o mundo corporativo, uma
mercadoria consegue maior visibilidade perante as demais, quando entrega alguns
produtos e/ou serviços adicionais, é o que ocorre com Kadu, quando se apresenta. Ao
abordar que o começo de sua carreira é marcado por um convite para trabalhar com a
apresentadora Ana Maria Braga, Kadu dá indicativos que, mesmo quando era
inexperiente para a época, já dava indícios de que possuía expertise na área. De certa
forma, e adotando uma metáfora: ‘a mercadoria acabou recebendo o selo de garantia de
uma grande organização reguladora’.
Com relação às postagens, percebe-se nelas a ideia de diário íntimo, ou,
como apresenta Sibilia (2008), diário éxtimo, de moda do Kadu. Os textos muitas vezes
relatam o dia a dia corriqueiro e ‘corrido’ do blogueiro. Na postagem16 do dia 18 de
dezembro é possível visualizar a questão levantada.
“Hi, Buddies,
Eita correria esse final de ano!
Estou
quase
enlouquecendo
pra
deixar
tudo
organizado
para
o BKFWTOUR. Por isso, hoje deixo vocês por aqui.
É isso!
Have a nice day!”.
Dando continuidade, percebe-se nas postagens uma ênfase maior nas
imagens que são disponibilizadas; de Kadu apresentando o traje do dia, do que
propriamente o que é escrito. Nesse sentido, Sibilia (2006, p. 9) relembra que, na
16
Disponível em:<http://blogdokadu.com/2013/12/18/todays-outfit-377/>. Acesso em: 20 dez. 2013.
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realidade, “trata-se de uma escrita com fortes marcas de oralidade, que não remete a
outros textos nem se apoia em parâmetros tipicamente literários ou letrados, mas abunda
em referências à cultura de massa e ao mercado de consumo”. A autora (2008, p. 48)
reforça que essa ideia de redução no texto e enfoque nas imagens se dá, pois “além de
mais ‘interativos’, os sujeitos estão-se tornando ‘mais visuais do que verbais’”.
Indo ao encontro daquilo que Sibilia chamou a atenção, referente à maior
visualidade, hoje dos sujeitos, um dos diferenciais do blog é o fato de as tendências
apresentadas por Kadu serem pertencentes ao ‘próprio guarda-roupa’ do blogueiro. Suas
postagens mostram tendências usadas por ele próprio. Essa prática é quase que uma
padronização do site, que busca apresentar quase todas as tendências, pelo próprio
blogueiro servindo como modelo (Figura 1).
FIGURA 1 – TENDÊNCIAS APRESENTADAS POR KADU
Fonte: Elaborado pelo autor.
Outro fato relevante que pode ser detectado no blog é como há a
apropriação do espaço público como cenário, ajudando a compor e expor a
cotidianidade e a intimidade de Kadu. Trazendo algumas discussões de Leonor Arfuch
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acerca dessa relação entre o público e o privado, e até mesmo podendo usar como
pergunta de partida para futuras pesquisas: até que ponto o público corrobora com a
construção de uma identidade e intimidade, ou como apresenta a própria autora (2010,
p. 96), de que modo podem se tornar “‘públicas’ certas pessoas e ‘privadas’ certas cenas
coletivas”?
Levantando essa discussão para uma possível eventualidade, e voltando a
falar da intimidade, ou melhor, da extimidade (SIBILIA, 2008), a última postagem17
analisada mostra enfaticamente essa ideia de uma intimidade que pode ser exposta.
Nela, Kadu, justificando que decorrente de inúmeros pedidos, resolveu mostrar tanto os
produtos que usa, quanto o cabeleireiro que faz seu penteado. É curioso notar que, por
assim dizer, foi preparado todo um editorial que mostra e demonstra, passo a passo,
como o blogueiro chega àquele penteado. Mostrando em inúmeras imagens Kadu
cortando o cabelo.
Não se pode deixar de apresentar, nessa postagem, as ‘marcas parceiras’.
Dessa forma, todos os produtos que são apresentados pelo blogueiro como potenciais
produtos que usa, ao final da postagem, aparecem endereços eletrônicos de lojas virtuais
que trabalham com esses produtos. Essas parcerias entre Kadu e as marcas aparecem
com frequência.
Nessa questão de parcerias com marcas, há no próprio site, um espaço
destinado para o popular ‘anuncie aqui’ (Figura 2). O instigante, e algo que pode ser
constatado, é o desejo que algumas pessoas e marcas têm em anunciar no blog (Figura
3).
FIGURA 2 – ANUNCIE AQUI - Fonte: Elaborado pelo autor.
17
Disponível em:<http://blogdokadu.com/2013/12/19/kadus-hair-2/>. Acesso em: 20 dez. 2013.
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É pertinente discorrer acerca dessa parceria entre marcas e blog, pois no
caso do Blog do Kadu, antes de apresentar tendências de moda, propriamente ditas,
disponibiliza no ciberespaço uma extimidade. Nesse sentido, Zelizer (2011, p. 34)
aponta que “o dinheiro coabita regularmente com a intimidade e até mesmo a sustenta”.
Demonstrando, conforme indagado na introdução, que sim, há um preço pela exposição
da intimidade.
Aproximando-se do fim, e trazendo Sibilia (2006) como algumas reflexões
finais, é possível perceber que há uma inversão de valores, se antes uma personalidade
narrava-se para a posteridade, hoje, tenta narrar-se primeiro, para tornar-se celebridade
depois.
Outro ponto a ser levantado é entender até que ponto essa intimidade
exposta, que sempre está presente nas melhores festas, melhores eventos, com as
melhores indicações (trazendo a ideia de ‘melhor’ como performance), de fato, é uma
intimidade que foi exposta, ou simplesmente uma intimidade midiaticamente
construída. É para se pensar.
FIGURA 3 – INTERESSE EM ANUNCIAR NO BLOG - Fonte: Elaborado pelo autor.
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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Zelizer (2011), em seu livro A negociação da intimidade, buscou apresentar,
mediante alguns casos norte-americanos, como se dava essa relação da intimidade,
quando envolvido algum valor monetário. Em uma determinada passagem, a autora
salienta como o dinheiro bem como a intimidade, “representam princípios
contraditórios, cuja interseção gera conflito, confusão e corrupção” (Ibidem, p. 32-33).
Tomando esse enunciado como ponto de partida, o presente artigo buscou
entender como se dava essa relação. Dessa forma, ao se trazer a abordagem empírica
para corroborar o entendimento, deparou-se, no caso do objeto estudado, com o fato de
como a exposição da intimidade daquele o que o fomenta é nítida. O blog não deixa de
ser um diário que apresenta cotidianamente a intimidade do blogueiro, detalhando aqui,
a exposição do que veste Kadu quase todos os dias.
Outro ponto marcante se dá com a inserção de marcas patrocinadoras em
suas postagens. A intimidade que é apresentada, muitas vezes, passa pelo filtro da marca
e/ou empresa que patrocinam. Um caso notório foi a recente viagem que Kadu fez ao
Oriente Médio, logo postada no blog, até mesmo com direito à primeira classe, mas com
um detalhe, patrocinado por uma companhia aérea18. Dessa forma, toda a performance
visualizada de uma pessoa ‘descolada’, ou até mesmo ‘bem de vida’, não passava do
preço exercido para expor sua intimidade enquanto estivesse aos cuidados da
companhia.
Esse é um caso entre muitas outras parcerias que podem ser visualizadas
desse binômio: intimidade e dinheiro. Logo, esse interesse pelas marcas se dá, e como
assinalou Gorz (2005), pois Kadu não deixa de ser, mesmo que de forma velada, ou
despercebida um autoempreendedor, que oferece ao mercado sua maior e mais valiosa
mercadoria: o eu.
Vale ressaltar que, decorrente de sua atuação como blogueiro de moda,
recentemente, foi convidado para ser consultor, na primeira versão do programa Sob
Medida, da RedeTV, que propõe uma transformação comportamental, vestual entre
18
Disponível em: http://blogdokadu.com/2013/10/30/qatar-airways-a-empresa-aerea-mais-bacana-domundo/>. Acesso em: 20 dez. 2013.
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outras em um participante. Indo ao encontro daquilo que Sibilia (2006) enfatiza, da
ideia de se expor – se narrar – possibilitando emergir ao estrelato.
Se indagarmos até que ponto esse ‘novo espírito do tempo’, que cobra tanto
por performance, vai interferir nas relações íntimas, privadas, digo que o Blog do Kadu
pode ser a verificação desse tempo, nele, a performance está presente na busca por
formas de diferenciação perante os demais blogs existentes; há certa performance, no
sentido quantitativo da intimidade do blogueiro; como até mesmo uma performance
com relação às marcas que o desejam.
Por fim, é oferecida como possibilidade de desdobramento um estudo sobre
o blog na perspectiva da economia criativa, pensá-lo não só como meio de expor
intimidades, mas de circular formas de se desenvolver a criatividade por meio da tríade,
comunicação, cultura e moda. Essa forma de comunicação possibilita colocar tanto
produtor quanto consumidor em um mesmo patamar onde propicia à criatividade
circular por uma nova forma de se entender a mediação além da exposição de uma
intimidade.
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de Janeiro: EdUERJ, 2010.
BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em
mercadorias. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.
BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Ève. O novo espírito do capitalismo. São Paulo:
Editora WMF Martins Fontes, 2009.
FREIRE FILHO, João. Sonhos de grandeza: o gerenciamento da vida em busca da alta
performance. In: _____; COELHO, Maria das Graças Pinto (orgs.). A promoção do
capital humano: mídia, subjetividade e o novo espírito do capitalismo. Porto Alegre:
Sulina, 2011.
GORZ, André. O imaterial: conhecimento, valor e capital. São Paulo: Annablume,
2005.
PINHEIRO, Wesley Moreira. Panaceia das redes sociais na internet. Convenit
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SIBILIA, Paula. O show do eu: a intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2008.
______. O show da vida íntima na internet: blogs, fotologs, videologs e webcams. In:
ENCONTRO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS PROGRAMAS DE
PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO, 15., 2006, Bauru. Anais... Bauru:
Compós, 2006.
WEBER, Max. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. São Paulo:
Companhia das Letras, 2004.
ZELIZER, Viviana A. A negociação da intimidade. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.
Site consultado: Blog do
<http://kadudantas.com.br/>.
Kadu.
Disponível
em:<http://blogdokadu.com/>;
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ELEMENTOS HISTÓRICOS PARA O
ESTUDO DO SELO POSTAL EM
COMUNICAÇÃO
Diego SALCEDO19
RESUMO: Parte do pressuposto de que o selo postal é um objeto de comunicação
visual e de estudo no campo da Comunicação. Tem como objetivo indicar e
contextualizar os elementos históricos que contribuíram ao seu surgimento. Para isso,
do ponto de vista metodológico, explorou e debateu a literatura. Conclui, assim, que o
selo postal conquistou seu lugar no campo da Comunicação.
PALAVRAS-CHAVE: Comunicação. Correios. Selo Postal.
ABSTRACT: Assumes that the postage stamp is an object of visual communication
and study in the Communication field. Has the objective do indicate and contextualize
some historical elements that have contributed to its emergence. To do so, from a
methodological stand, has explored and discussed the literature. Therefore, concludes
that the postage stamp earned its place in the field of Communication.
KEYWORDS: Communication. Mail. Postage Stamp.
1. CORREIOS NA EUROPA DE 1840
Mencionar o selo postal adesivo é situar o olhar, de forma ampla, sobre a Europa
do século XIX, momento de emergência dos Estados Nacionais e de transformações
radicais nas sociedades capitalistas ocidentais e, em particular, sobre à Inglaterra. Lugar,
segundo Hobsbawm e Ranger (2002, p. 9), de “tradição inventada”. Para esses autores,
a expressão tradição inventada pode ser percebida como um conjunto de práticas
sociais, usualmente admitidas por um grupo de pessoas, e “formalmente
19
Doutor em Comunicação. Professor no Departamento de Ciência da Informação na Universidade Federal de
Pernambuco. Telefone: (81)2126-8780. Email: [email protected]
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institucionalizadas”. Além disso, a questão da repetição dessas práticas é essencial no
estudo sobre as tradições, visto que, ainda conforme esses autores, a repetição visa
“inculcar certos valores e normas de comportamento que implicam uma continuidade
em relação ao passado apropriado”.
De um ponto vista mais geral, os europeus, nesse período, tiveram o privilégio
de experimentar um momento histórico de grandes e positivas mudanças no âmbito da
comunicação. Estradas foram aperfeiçoadas, os cavalos puxavam velozmente
transportes, cada vez mais leves, e o serviço postal sobrepujava, em vários aspectos, a
comunicação do século anterior. Em meados de 1830, a Inglaterra tinha um dos mais
eficientes serviços postais já conhecidos. Grande parte disso resultou do investimento
realizado numa rede infraestrutural muito bem integrada. Combinava estradas de terra,
canais de navegação fluvial, ligações marítimas costeiras e as primeiras linhas férreas.
Briggs e Burke (2006, p. 134) citam que “trens e navios transportavam cartas, no
século XIX, uma forma indispensável à comunicação tanto nacional quanto
internacional”. Nesse sentido, comenta Hobsbawm (2005, p. 26),
o sistema de carruagens postais ou diligências, instituído na segunda metade
do século XVIII, expandiu-se consideravelmente entre o final das guerras
napoleônicas e o surgimento da ferrovia, proporcionando não só uma relativa
velocidade – o serviço postal de Paris a Strasburgo levava 36 horas em 1836
– como também regularidade.
Uma das características do sistema de comunicação postal ferroviário,
denominado ‘correio ambulante”, diz respeito às agências instaladas dentro dos vagões
dos trens, que durante o seu rotineiro percurso realizavam a triagem, recebimento e
distribuição das correspondências (QUEIROZ, 1988, p. 91), como ilustra a figura 1.
Figura 1 – Correio ferroviário no período da Revolução Industrial - Fonte: coleção particular do autor
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Cabe aqui uma breve alusão ao contexto em que o desenvolvimento inglês foi
gerado. Não é nosso propósito historiar esse contexto, pois nos faria desviar de nossa
trajetória. No entanto, é importante observar que a Inglaterra do sistema postal infalível
também é um lugar de política imperialista, um poder devastador que dominou uma
centena de territórios ultramar. Vale lembrar, que muitos desses territórios dominados
estampariam as independências nos selos postais do século XX, após o período em mais
existiram revoltas coloniais.
Os próprios colecionadores dos primeiros selos postais registraram esse fato.
Segundo Bellido (2004, p. 81), redator de um dos primeiros periódicos sobre
colecionismo de selos postais, fundado em meados de junho de 1896, "a Inglaterra é o
país do mundo que maior número de colônias possui". Durante o final do século XIX e
o início do século XX, a Grã-Bretanha foi o império que tinha o maior número de
territórios ultramar dependentes ou anexados que emitiam selos postais (STANDARD
Postage Stamp Catalogue, 2002).
Em 1898, uma franquia postal imperial única, no valor facial de 1d (2c no
Canadá) foi instituida para todos os domínios do Impériop Britânico. Assim, o Canadá
emitiu um selo postal em que um mapa ilustra, em vermelho, a despeito de algumas
inadequações, as possessões britânicas ultramar, além da inscrição "XMAS 1898"
(abreviatura de Christmas), época em que a taxa entrou em vigor, e a legenda “we hold
a vaster empire than has been” (“nós possuímos um vasto Império, como jamais
existiu”), extraído de "A Song of Empire", composto por Sir Lewis Morris em 1887.
Figura 2 – Emissão canadense, colônia do Império britânico 20 - Fonte: coleção particular do autor
20
Ver, também, Ferguson (2004, p. 202).
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Pois bem, o contexto que agora perpassamos era o de um amplo
desenvolvimento científico e tecnológico e industrial, baseado na mecanização dos
sistemas de produção, incluindo as relações econômicas e o desenvolvimento local, e,
ainda, de expansão do empreendimento capitalista e da economia liberal, fazendo com
que a Inglaterra, mas, também, outros impérios europeus, “minasse a ordem social dos
territórios ocupados” (HOBSBAWM, 2005, p. 48). Ao mesmo tempo em que crescia
internamente, o continente europeu se expandia para fora de seus domínios,
conquistando terras, pessoas e novas riquezas tanto na África, quanto no extremo
Oriente. A hegemonia inglesa, na Europa e sobre as suas colônias ficou conhecida
como o período Vitoriano (1837-1902). Por outro lado, internamente, esse mesmo
período também é lembrado pela drástica redução do poder do Estado, limitado para
atuar em setores bem específicos, dentre eles, os da comunicação. Assim,
acompanhando uma tendência geral dos demais reinados e impérios europeus, o
governo inglês assumiu o poder sobre o serviço postal, substituindo os particulares por
uma administração estatal
Lembremos que o serviço pré-postal e postal, desde a Idade Média, estava a
serviço da realeza, dos nobres, dos militares e do clero. Sendo assim, as transformações
do sistema de correios foram ocorrendo pouco a pouco, em pontos isolados da Europa.21
Da Idade Média até 1900, a Europa experimentou avanços jamais vividos na
comunicação, assim como em outras esferas sociais. O sistema postal, sua
regulamentação e os avanços técnico-científicos foram algumas das causas que
permitiram essa experiência.
De volta ao contexto britânico, era norma geral que as correspondências fossem
pagas pelo destinatário e não pelo remetente, como é feito hoje. Foi nesse aspecto, em
particular, que um cidadão britânico desenvolveria algumas idéias que transformariam o
sistema postal inglês, em particular e, por conseguinte, o de muitos outros países,
colônias e grupos sócio-institucionais. Sir Rowland Hill (1795-1879), segundo Almeida
21
Uma das mais completas obras escritas sobre o sistema pré-postal e postal britânico, que merece ser traduzido ao
Português, foi a de Campbell-Smith (2011). No Brasil, uma História Postal, articulada a elementos econômicos,
políticos, tecnológicos, educativos, culturais (prensa e imprensa) e sociais merece e ainda está por ser escrita. De
certo, campo de estudo mais tratado por colecionadores filatélicos do que por sociólogos, antropólogos e
historiadores.
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e Vasquez (2003, p. 17, tradução nossa), após o episódio, "percebeu algumas
vulnerabilidades do sistema postal inglês vigente”. Nesse período, a classe média e
trabalhadora britânica, apenas, sonhava com o aviso da chegada de um carteiro, pois o
serviço tinha um caráter de luxuosidade. Mas, também, foi o momento histórico em que
ascendia ao trono do Império Britânico, no dia 20 de junho de 1837, aos dezoito anos de
idade, Alexandrina Vitória (1819-1901) iniciando a mais duradoura regência inglesa
intitulada de “Era Vitoriana”. Logo após assumir o trono, a Rainha Vitória instituiu um
Comitê Especial do Serviço Postal,22 que teria como objetivo e função explorar as
condições de funcionamento do serviço postal britânico com vistas a reduzir as tarifas
postais.
Assim, à acurada visão de Rowland Hill aliada a um imbatível argumento
contábil e estatístico, em conjunto com a disposição de melhoria do sistema postal
britânico, por parte da Rainha Vitória, foi o momento adequado para que ele
apresentasse algumas mudanças, que logo seriam copiadas no mundo inteiro, por meio
de um relatório intitulado “Post Office Reform: its importance and practicability”
(1837).23 A figura 3 indica algumas características de como era o sistema postal préfilatélico britânico e europeu, por volta de 1838, e quais foram as principais
modificações sugeridas pelo Sir Rowland Hill.
Figura 3 – O sistema postal europeu antes e depois da Reforma Postal
O sistema postal europeu em 1840
A "Reforma Postal" na Inglaterra
A tarifa poderia ser paga pelo remetente ou Pagamento prévio da franquia conforme
destinatário da correspondência.
A tarifa compreendia: as medidas, o peso,
a classe e a distância a ser percorrida.
tarifas pré-estabelecidas.
Emissão de selos postais adesivos para
comprovar
o
pagamento
das
correspondências conforme todo o seu
22
23
Em Inglês: “Select Committee on Postage”.
Tradução: "Reforma Postal: sua importância e praticabilidade".
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projeto e circulação.
Tarifas
uniformes
dentro
do
país,
A arrecadação era difícil e a falta de considerando o peso, mas sem levar em
pagamento dos envios era alarmante.
conta a distância, com o intuito de
diminuir
custos
e
tornar
o
serviço
acessível para muitos.
O envio para regiões distantes somava as
dificuldades da própria distância e os
meios empregados, às cobranças relativas a
cada correspondência.
Diminuição efetiva do valor das tarifas (1
penny)
a
cada
14
gramas
de
correspondência enviada.
Fonte: Salcedo (2010, p. 94)
Tamanha mudança no modelo do sistema postal britânico não ocorreria tão
facilmente, sem as devidas pressões político-econômicas. De fato, estavam em jogo o
poder real, a liderança exercida pelo Parlamento e a própria economia britânica, em que
pesem os conflitos na Europa e ultramar. Em 17 de agosto de 1839, o Parlamento inglês
aprovou as sugestões de Hill alegando, conforme registram Almeida e Vasquez (2003,
p. 17), "que serviam ao progresso comercial e ao desenvolvimento das classes mais
favorecidas".
Logo após a aprovação da Reforma Postal, outro aspecto precisava ser resolvido.
Assim, um concurso público foi anunciado pelo Tesouro Britânico, com o objetivo de
convidar o público a sugerir o melhor modelo para os selos postais. “Mais de dois mil e
seiscentos desenhos foram enviados por artistas nacionais e internacionais” (GOLDEN,
2012, p. 21). A Inglaterra, reproduzindo o perfil da cabeça da Rainha Vitória, a partir
de uma medalha comemorativa gravada por William Wyon, inaugura o tipo “efígie”,
com um selo postal adesivo que, oficialmente, foi chamado de Penny Postage, e que
depois, já no âmbito da prática Filatélica ou do colecionismo de documentos postais,
ficou conhecido como Penny Black. Nascia assim, o selo postal adesivo, um dos
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artefatos fundamentais às transformações que iriam revolucionar os sistemas postais em
todo o mundo.
2. O ADVENTO DO SELO POSTAL ADESIVO
Assim, as características verbovisuais do primeiro selo postal adesivo, emitido
na Inglaterra, no dia 06 de maio de 1840, foram: o valor facial impresso na margem
inferior por extenso, "ONE PENNY"; o termo "POSTAGE" impresso na margem
superior, indicando um serviço postal instituído pela administração postal daquela
unidade política; a efígie da Rainha Vitória posicionada para mostrar seu perfil
esquerdo, como num camafeu, e indicando a unidade política emissora da peça, no caso
a Inglaterra; o fundo preto, com ornamentos nas margens direita e esquerda; por fim, as
duas iniciais “M”, na margem inferior esquerda, e “H” na margem inferior direita,
indicando a posição do selo na folha completa.
Figura 4 – Medalha de Wyon e o 1° selo postal adesivo: “Penny Black”, Inglaterra, 1840
Fonte: Rosenblum (2003)
Fonte: Arpin (2008)
Sem dúvida o primeiro selo postal com padrões artísticos, responsável por
estabelecer os padrões de seus descendentes. O cuidado extremo com os traços, a
gravação da efígie beirando a perfeição e um fundo sóbrio que contrasta bem com a
imagem, além de elementos verbovisuais sutis foi fundamental para o êxito do artefato.
O “Penny Black”, muito provavelmente, tem sido o mais prolongado e detalhado
objeto de estudo em comparação com qualquer outra emissão no mundo. Não, apenas, é
um documento atraente e de curtíssimo período de circulação, historicamente investido
de sentidos, um objeto de coleção desejado por colecionadores mundo afora. Mas,
particularmente, porque foi impresso a partir de 11 placas distintas, acarretando uma
reprodução com 2880 documentos distintos para serem colecionados.
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Almeida e Vasquez (2003, p. 21) afirmam que o selo postal, em verdade, é uma
adaptação tipológica de estampilhas anteriores.
Vale ressaltar que o pagamento antecipado da taxa postal não era uma
novidade, e são conhecidas experiências nesse sentido desde o século XVII.
A legislação brasileira, por exemplo, oferecia ao mandatário da carta a opção
pelo pagamento antecipado do valor da taxa quando fosse seu desejo isentar o
destinatário da despesa, de acordo com o estabelecido no artigo 61 do
Decreto de 5 de março de 1829. Nesse caso, as cartas eram assinaladas pela
palavra “franca” escrita manualmente na face principal.
Por sua vez, Ferreira (2003, p. 14) afirma que na época de surgimento do selo
postal, até mesmo muito tempo depois, o mundo não estava preparado para nele ver
nada além do que um timbre oficial de comprovação de pagamento de franquia, mas,
além disso, "não é apenas aos timbres ou marcas que o selo postal vai buscar os seus
primitivos figurinos", algo que não lembrasse, imediatamente, senão uma moeda ou
uma nota de banco.
Nessas ferramentas de discurso ideológico estavam impressas, em princípio,
efígies de soberanos reinantes (nas monarquias) e figuras alegóricas (nas repúblicas),
cifras indicadoras do valor da franquia postal a ser paga, geralmente buriladas com
linhas, florões e arabescos para dificultarem a contrafação do papel-moeda corrente. Ali
também, considerando as estampas que foram adotadas nos primeiros anos de uso do
selo postal, tinha início o período em que o Estado teria menores custos com o sistema
postal e, ao mesmo tempo, um maior controle sobre os discursos e os segredos, o que
era mais um claro fortalecimento da vigilância social que, atualmente, encontra seu
equivalente em outras formas de controle (câmeras, celulares etc).
Os primeiros selos postais do mundo tiveram como elementos pictóricos ou
visuais, praticamente sem nenhuma exceção, a efígie, o brasão e a cifra, e como
elementos verbais o termo postal, o nome da soberana ou conquistador e, ainda, o nome
da moeda corrente na respectiva língua de origem da unidade política emissora.
Podemos perceber uma práxis dos Estados em constituir uma identidade nacional e
ultramar (nas suas colônias), por meio dos elementos verbovisuais.
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Figura 5 - Alguns elementos verbovisuais (esquemas pictóricos) dos primeiros selos postais
Selos
postais
com Selos postais com
efígies de soberanos
Selos postais com
armas e brasões
motivos mitológicos
Principais
características
dos
países emissores:
1.
Principais características dos Principais características dos
Monarquias países emissores:
unificadas,
fortes
e
centralizadas.
2.
Mostra
1. Países sujeitos a ocupação ou 1. Principalmente àqueles
em sistema de união de reinos.
elemento
pictórico de soberano
ou
países emissores:
soberana
da
com uma cultural mitológica.
2. Mostra elementos pictóricos 2.
heráldicos diversos.
Mostra
elementos
pictóricos mitológicos.
aristocracia tradicional
européia..
Alguns
países
emissores:
Inglaterra,
Hungria,
Alguns países emissores:
Espanha, Áustria,
Bósnia,
Bremen, Alguns países emissores:
Itália, Bulgária, Finlândia, Modena,
Luxemburgo, Portugal, Prússia,
Romênia,
Rússia,
França, Grécia e Itália.
Áustria, Prússia, Brasil, Sicília, etc.
etc.
Fonte: Salcedo (2010, p. 98)
Outros elementos verbovisuais foram utilizados a posteriori, quando, aos
poucos, algumas pessoas foram tomando consciência de que o selo postal servia para
algo muito mais nobre do que simplesmente representar um atestado ou um recibo de
pagamento prévio de serviço. É nesse momento que surge o colecionismo do selo postal
e a prática que viria a ser denominada Filatelia.
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Apesar de não fazer parte do escopo deste trabalho é importante considerar que
em paralelo ao uso do selo postal existia a utilização do carimbo. Uma área muito
peculiar de estudo, “a parte oculta dos selos, o lado noturno eles” (Benjamin, 1995, p.
57), que também pode compor o estudo das estampilhas, denominado Carimbologia,
fundamental para o entendimento das funções administrativas de documentos.
Prática ordinária dos Correios, carimbar um selo postal tinha a finalidade de
indicar a origem da missiva postal, a data de envio e o cancelamento do selo postal
aderido à correspondência. Além disso, buscava impedir o reaproveitamento do selo,
além de ser uma maneira de controlar e legitimar o poder da administração postal. O
surgimento do segundo selo postal tem relação direta com a obliteração (ato de
carimbar) do Penny Black. O Penny Red, com as mesmas características verbovisuais do
seu antecessor, a não ser pelo tom avermelhado, foi criado justamente por causa de
problemas com relação ao carimbo preto utilizado sobre um selo postal de cor preta.
Figura 6 – Penny Black obliterado com a Cruz de Malta e o Penny Red
Fonte: Arpin (2008)
Essa situação incomodava as autoridades, pois que facilitava a reutilização do
mesmo selo para várias missivas postais. Assim, o primeiro selo postal do mundo
apenas foi utilizado, segundo Davies e Maile (1990, p. 6, tradução nossa), "durante 10
meses, com 68 milhões de peças impressas".24
Seguindo uma tradição que perdura desde então, a Inglaterra é o único emissor
de selos postais que não especifica seu nome, por extenso, na face do artefato. Apenas
apresenta o perfil do soberano ou da soberana. Por outro lado, o restante dos países e
entidades emissoras de selos postais, inclusive as antigas e atuais colônias britânicas,
24
Texto original: "...lasted just ten months. In that time some 68 million stamps were printed".
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devem especificar, por extenso, seus respectivos nomes seguindo as normas
internacionais estabelecidas nos congressos da União Postal Universal (UPU).25
O advento do selo postal proporcionou uma racionalidade do sistema postal
inglês, que, por sua vez, gerou lucros elevados. Essa foi a principal razão, mas não
única, para que nos primeiros dez anos que se seguiram à circulação dos selos postais
ingleses, a maioria dos países europeus (e suas respectivas colônias) adotassem o
mesmo sistema. Segundo Cusack (2005, p. 592, tradução nossa), "até 1853, outros 44
países haviam seguido o exemplo britânico e emitiram selos postais adesivos".26
Após a Inglaterra, a unidade política Zurique (Cantão de Zurique 27), que tinha
status geopolítico de nação ou país, emitiu os seus dois primeiros selos postais (o
segundo no mundo), adesivos com os valores faciais de 4 e 6 rappen (centavo em
alemão), em 1.03.1843, cinco meses antes da emissão dos Olhos-de-boi brasileiros, em
01.08.1843 (terceira unidade política a emitir um selo postal e a primeira do continente
americano).
Figura 7 – Emissões de 4 e 6 rappen do cantão de Zurique em 1.03.1843 -
Fonte: coleção particular do autor
25
A ideia da UPU surgiu do problema enfrentado por diversos países que tinham tarifas postais distintas advindas
do transporte marítimo, com barcos a vapor, e terrestres, por meio das ferrovias. Assim, em 1863 houve um
encontro em Paris, por indicação do Diretor Geral dos Correios dos Estados Unidos da América, Montgomery Blair, a
primeira entre quinze unidades políticas independentes com o objetivo de resolver esse problema. Atendida a
proposta, do então, Ministro Alemão, Heinrich Von Stephan, outro encontro foi marcado para o dia 15 de setembro
de 1874, na cidade de Berna, Suíça, com a participação de vinte e duas unidades políticas. Desta, resultou um
acordo transformado no “Tratado de Berna”, no dia 9 de outubro do mesmo ano, que, por sua vez, em 1878 foi
convertida na UPU. O Tratado foi baseado em três questões fundamentais e de interesse mútuo dos governantes e
seus representantes: a uniformidade dos pesos, das taxas e a simplificação da contabilidade. A página eletrônica da
UPU: <www.upu.int>.
26
Texto original: "By 1853, forty-four other countries had followed the British example and were issuing stamps".
27
Cantão é uma divisão geopolítica utilizada por unidades políticas como Suíça e Luxemburgo. Selo, porte ou
correio cantonal alude ao sistema correios dos e nos Cantões. Estas informações também podem ser encontradas
em QUEIROZ (1988, p. 59), e QUEIROZ e MACHADO (1994, p. 35). A Suíça é uma unidade política constituída por
vinte e seis estados autônomos, independentes e soberanos (cantões).
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Figura 8 – Emissões de 30, 60 e 90 réis brasileiros em 1.08.1843
Fonte: coleção particular do autor
A quarta emissão no mundo foi o “Double de Geneve” (Duplo de Genebra), do
Cantão de Genebra. Este, em particular, inaugurava e promoveria a utilização de
brasões e escudos nas emissões de selos postais, principalmente na Europa. Uma peça
bipartida, com um valor facial de 10 cêntimos. O “Duplo de Genebra” é um selo postal
composto por duas unidades de 5 cêntimos. Assim, ao enviar uma missiva dentro do
cantão era preciso recortar o selo e utilizar uma das metades. Se a carta fosse enviada
para outro local o era utilizada inteira.
Figura 9 - Cantão de Genebra de 5c (meio porte) e 10c (porte inteiro)
Fonte: coleção particular do autor
No Duplo de Genebra foi utilizado, pela primeira vez, elementos
verbovisuais, para além da indicação do valor facial ou do serviço prestado pelo correio,
a saber: há um brasão e uma expressão dentro da bandeirola ou faixa, acima do escudo,
que diz: Post tenebras lux = depois das trevas, a luz. A expressão impressa no selo
postal, acima, alude alguns aspectos religiosos. Pode significar a Ressurreição (a luz),
depois da tragédia (depois das trevas) da Sexta-Feira Santa ou depois do silêncio do
Sábado Santo, a explosão da alegria da madrugada do Domingo de Páscoa. Também
pode tratar sobre a luz da reforma religiosa na Europa, em que a Bíblia é a luz. A Bíblia
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latina, que podia ser lida apenas pelo clero e estudiosos do Latim, Lutero traduziu para o
alemão corrente, que podia ser lido pelo povo.
Essa articulação escrita foi a primeira a ser impressa num selo postal. A partir
disso, mas não unicamente, é possível atestar que os selos postais somar-se-iam, de uma
vez por todas, ao acervo documental, patrimonial e memorial da Humanidade. O selo
postal passaria a ser um texto em que o apelo ideológico-institucional se faria presente,
criando a possibilidade de emergência dos acontecimentos discursivos. Todos esses, a
rigor, pelas suas cores, seus elementos verbovisuais e suas funções serviram de base às
demais emissões, em que o destaque ficou com duas peças: uma emitida em 1862 em
que o nome do país foi impresso pela primeira vez e outra, emitida em 1882, em que o
escudo e uma efígie alegórica foram impressos conjuntamente.
Diversos países e suas colônias emitiram selos postais com as mesmas
características das que, atém então, foram mostrados. Não causaria surpresa afirmar que
os países mais industrializados, naquele tempo, como a Suíça, Bélgica, França e Bavária
foram os primeiros a adotarem o novo artefato nos seus sistemas postais. Por volta de
1860, o selo postal seria produzido e circularia em todos os continentes, admitidas a
respeitadas as idiossincrasias de cada região, além de suas necessidades políticoeconômicas.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir das imagens mostradas é possível pensar que as primeiras emissões de
selos postais buscavam os motivos de seus elementos verbovisuais não apenas na
Heráldica28 mas, também, nos esquemas ilustrados pela Numismática, o que gerou
quase 50 anos de emissões com motivos sobre efígies de soberanos reinantes, figuras
mitológicas e conceitos abstratos antropormofizados por convenções sociais (exemplo:
a Justiça, a República etc).
28
Segundo Ribeiro (2003, p. 141) "a primeira disciplina formal dedicada a estruturar o estudo da simbologia". As
origens desses estudos remontam aos tempos em que existia uma necessidade de distinguir os participantes nos
conflitos armados, especialmente os cavaleiros, assim como descrever os serviços por eles prestados, os quais eram
pintados nos seus escudos. Contudo é imperativo perceber um brasão de armas não é definido pelo elemento
pictórico ou visual, mas antes pelo elemento verbal ou escrito, a qual é dada numa linguagem própria, a Heráldica.
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A circulação dessa minúscula peça de papel colaborou, em certa medida, para
que os impérios e seus sistemas postais mantivessem seus regimes políticos instituídos,
sintetizando o valor monárquico e a unidade nacional. Tudo isso representado,
simbolicamente, por meio desse novo tipo de documento iconográfico, que se tornaria
testemunha figurativa da própria história. Com o Brasil não foi diferente. De fato surgia
um neófito sistema político moderno, impondo normas e novos arranjos administrativos
e burocráticos em todo o território, incluindo as colônias. Essas intervenções
perduraram por todo o século XIX, ligando o governo e os indivíduos em práticas
cotidianas, fomentadas, também, pelas revoluções ocorridas nos meios de transportes e
de comunicação, aproximando essas rotinas. Os governos utilizaram os meios de
comunicação impressos, como o selo postal, junto a seus habitantes para divulgar certa
imagem da ‘nação’.
Para aquelas pessoas que olhavam os elementos verbovisuais impressos nos
selos postais, da segunda metade do século XIX, o conceito de nação e a ideia de pátria
ganhavam contornos subjetivados na materialização das efígies, cifras e brasões ou
escudos ali estampados. Assim, aos poucos, o selo postal foi conquistando seu locus
como objeto colecionável e comerciável. Por outro lado, alguns estudos debatidos neste
artigo auxiliam num movimento que possibilitou a revelação do selo postal enquanto
objeto de pesquisa em Comunicação, assim como de estabelecimento do meu lugar de
fala, enquanto pesquisador, deixando, assim, tudo isso à mercê e generosidade do
potencial leitor.
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BOLETIM DA DIRETORIA
Acertos e erros na comunicação
organizacional da UNESP, campus de
Presidente Prudente-SP
Édison Trombeta de OLIVEIRA29
RESUMO: Em 2010, a Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Estadual
Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (FCT/UNESP), campus de Presidente Prudente-SP,
lançou o Boletim da Diretoria, com o intuito de informar docentes, servidores e alunos
sobre as atividades desenvolvidas na instituição. O presente trabalho objetivou, então,
analisar tais informativos a fim de se problematizar sobre sua efetividade e adequação
aos preceitos jornalísticos (como estrutura e valores-notícia). Percebeu-se que o veículo
é uma evolução para o processo comunicacional da instituição, mas melhorias devem
ser adotadas para adequá-lo ao jornalismo contemporâneo.
PALAVRAS-CHAVE: Comunicação Organizacional. UNESP. Estrutura da Notícia.
Valores-notícia.
ABSTRACT: In 2010, the Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade
Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (FCT/UNESP), Campus Presidente
Prudente-SP, launched the Boletim da Diretoria, in order to inform teachers, servers
and students about the activities in the institution. This study aimed to analyze such
information in order to discuss about its effectiveness and suitability to journalistic
precepts (as structure and news-values). It was observed that the vehicle is an evolution
of the communication process of the institution, but improvements must be taken to
adapt it to contemporary journalism
KEYWORDS: Organizational Communication. UNESP. Structure of News. Newsvalues
29
Jornalista com aperfeiçoamento em Leitura Semiótica: Textos Didáticos, Literários e Publicitários e MBA em
Gestão Empresarial. Cursa especialização em Planejamento, Implementação e Gestão da EaD e Mestrado em
Educação. É Assistente Administrativo na FCT/UNESP. E-mail: [email protected]
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1. INTRODUÇÃO
Uma eficiente comunicação organizacional, ao melhorar o clima interno,
mostra-se um próspero caminho para o bom rendimento dos trabalhos de uma
determinada instituição.
Neste sentido, o presente trabalho tem como intuito analisar o Boletim da
Diretoria, um veículo de comunicação interna da Faculdade de Ciências e Tecnologia da
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (FCT/Unesp) implantado logo
no início da última gestão da instituição, em março de 2010.
A intenção de realizar esta pesquisa advém da graduação do autor deste
trabalho, bem como a vontade da administração em estreitar as relações de comunicação
com os alunos e com os servidores docentes e técnico-administrativos. A formação
possibilitou que o autor pudesse desprender visão crítica à iniciativa, que aparentemente
foi muito bem recebida pelo público-alvo, por ser uma ação inédita e representativa.
Desta forma, espera-se que os apontamentos feitos, tanto os positivos quanto
aqueles que possibilitem a visualização de pontos a serem melhorados, sejam levados
em consideração de forma à sua caracterização como críticas construtivas, tendo em
vista que quanto mais qualidade no ato comunicacional interno, melhor pode ser o
rendimento dos trabalhos.
É interessante ressaltar, em complementação, que o caminho científico desta
pesquisa partirá de uma breve explanação do referencial teórico utilizado no trabalho.
Depois, discutir-se-á os procedimentos metodológicos da investigação. Segue-se a
caracterização da instituição, com dados históricos e números atuais. Em seguida,
discorrer-se-á sobre as análises do material coletado e as discussões dos resultados. Por
fim, proceder-se-á às considerações finais a respeito dos explanado.
2. PROBLEMATIZANDO O REFERENCIAL TEÓRICO
A Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) de Presidente Prudente foi
criada em 1957, como uma instituição parte do sistema de Institutos Isolados de Ensino
Superior (IIES) do Estado de São Paulo (ALEGRE, 2006). Foi em 17 de setembro deste
ano que o governador do Estado de São Paulo, Jânio Quadros, assinou a lei 4.131, que
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criou a FFCL da cidade. No entanto, apenas em 06 de agosto do ano seguinte houve a
nomeação do Prof. Dr. Joaquim Alfredo da Fonseca para se tornar primeiro diretor da
organização.
Segundo Vaidergorn (2003), o começo das aulas, porém, se deu apenas no dia
03 de maio de 1959, pouco depois da publicação da autorização para que a faculdade
funcionasse (Decreto Federal 45.755, de 13 de abril do mesmo ano).
Segundo Lima (2005), duas turmas inauguraram as atividades: uma de
Geografia, com 20 alunos, e uma de Pedagogia, com 33. Iniciou com dois cursos,
número que aumentou até 1976, quando findou-se o sistema de IIES para o nascimento
da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, que agregou os institutos
existentes, fez surgirem outras unidades mais e encampou até instituições particulares.
Nesta reforma, a unidade de Prudente passou a ser denominada Instituto de
Planejamento e Estudos Ambientais (IPEA), ficando apenas com dois cursos.
Já no ano de 1988, nova reforma agregou à UNESP o Instituto Municipal de
Ensino Superior de Presidente Prudente (IMESPP), uma entidade municipal, e fez,
novamente, uma mudança na denominação, para o nome que a unidade possui até hoje:
Faculdade de Ciências e Tecnologia (FCT). Após o histórico de altos e baixos,
atualmente a instituição possui 12 cursos de graduação e 06 programas de pósgraduação. Ademais, é a Unidade da UNESP que mais possui projetos de extensão
universitária, além de uma oferta sistemática de cursos de extensão, temáticos, de
atualização, de aperfeiçoamento e de especialização.
Depreende-se, daí, que a estrutura organizacional da UNESP, Campus de
Presidente Prudente, cresceu e tornou-se complexa com o passar do tempo.
Hodiernamente, são cerca de 250 professores, aproximadamente o mesmo número de
servidores técnico-administrativos e em torno de 3.500 alunos entre graduandos e pósgraduandos. Estima-se, também, que sejam quase 37 mil atendimentos anuais nos
projetos de extensão.
A estrutura central parte do vértice de comando Diretoria e é dividida em nove
departamentos, duas divisões técnicas e três diretorias técnicas de serviços, conforme
poderá ser observado neste texto, mais à frente.
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Uma estrutura complexa como esta possui uma grande facilidade para o
aparecimento de ruídos e falhas na comunicação, que podem gerar problemas no
rendimento do sistema organizacional. “[...] fatores sociais são necessários para
impulsionar o progresso e (re)estabelecer ordem entre todos os setores da organização.
Funcionários e gerências precisam se comunicar e fazer com que suas opiniões e
pensamentos sejam notados, de forma a estabilizar os canais de comunicação e controlar
os ruídos” (SOUZA et. al., 2009, p. 53).
Neste sentido, a gestão da Unidade dos anos 2010-2014 tem desenvolvido uma
política de comunicação tanto interna quanto externa, que compreende assessoria de
imprensa, divulgação de notícias no site próprio e no da Reitoria, além da criação,
publicação e divulgação quinzenal de um house organ intitulado Boletim da Diretoria.
Este é o objeto de estudo do presente projeto.
Estes canais de comunicação possuem diversas contribuições, entre as quais do
autor deste trabalho que, pela formação em Jornalismo, passou a ser responsável pela
publicação de notícias nos sites. E é exatamente esta formação, somada ao fato de ser
servidor da Unidade, que despertou o interesse na presente pesquisa. Ressalta-se que a
intenção é estudar o produto do qual o autor deste projeto não faz parte ativamente, na
tentativa de manter a objetividade científica necessária.
Assim, pode-se perceber a importância desta pesquisa, uma vez que trata-se de
manter ou mesmo melhorar o rendimento de um órgão público, que deve contas à
sociedade. Por isso mesmo, ele pode ser tratado, neste sentido, como uma empresa,
visando o rendimento do trabalho com qualidade e inovação. Isso porque o correto e o
completo processo comunicacional na instituição reduz ruídos de forma a facilitar o
relacionamento entre os setores do órgão, para melhorar a produtividade.
Na reforma pela qual a Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”
passou no ano de 1978, ficou claro o teor mercadológico da organização administrativa
do ensino superior público do estado de São Paulo, principalmente da recém-criada
UNESP. Isso porque alguns cursos foram fechados ou transferidos de campus sob a
égide de se “evitar a duplicação de meios para fins idênticos, considerando-se cada uma
das regiões” (LIMA, 2005, p. 274).
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Aproximadamente no mesmo período começou a despontar a importância da
Comunicação Empresarial, tendo em vista que, com um mercado de consumo mais
sólido e o fim do Regime Militar, passou a ser mais importante para as organizações ter
uma boa relação com a sociedade, seus segmentos e especialmente o seu público, e não
mais com as autoridades vigentes (NORI, 2003).
Neste momento, ficou latente a visão organizacional da instituição. Ao mesmo
tempo, passou a ser buscada com força a maior eficiência, conceito “usado, geralmente,
para indicar a relação entre output e input. Entre as medidas de eficiência, temos a taxa
de retorno sobre capital ou sobre os ativos, o custo unitário, restos e desperdício, tempo
de parada, custo por paciente, custo por estudante, custo por cliente, taxas de ocupação e
coisas semelhantes” (PARDO, 2012, p. 38, grifos do autor).
Mais do que investimentos em bens econômicos ou de serviços, uma
organização consiste também em seu sistema de produção, seja de materiais ou serviços.
A UNESP, enquanto instituição de ensino superior, enquadra-se na segunda opção.
Para Pardo (2012), “[...] especializar-se em administração empresarial requer
[...] entender mais profundamente essa teoria dos sistemas e seus desdobramentos.
Nestes desdobramentos, veremos os problemas relacionados [...] aos ruídos de
comunicação [...]”.
Segundo Pimenta (2002, p. 57), esta é uma referência a uma “[...] unidade
socioeconômica voltada para a produção de um bem de consumo (editoras, construtoras,
confecções etc.) ou serviço (agências de turismo, transportadoras, seguradoras etc.).
Entretanto, agregado à função produtiva está seu papel sócio-cultural [...]”.
E estes fatores sócio-culturais são necessários para impulsionar o progresso da
instituição e (re)estabelecer a ordem entre todos os setores da organização. Funcionários
e gerências precisam se comunicar e fazer com que suas opiniões e pensamentos sejam
levados em conta, de maneira a manter estáveis os canais de comunicação e minimizar
ou eliminar os ruídos.
Daí depreende-se a importância dos processos de comunicação organizacional,
com o intuito de facilitar o relacionamento entre os setores. Segundo Pimenta (2002, p.
99), este processo consiste em “[...] métodos e técnicas de relações públicas, jornalismo,
assessoria de imprensa, lobby, propaganda, promoções, pesquisa, endomarketing e
marketing. O público, ao qual se destina, pode ser dividido em externo e interno”.
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É necessário ressaltar, ainda, parafraseando Bueno (2005, p. 12), que:
[...] é necessário considerar que a comunicação empresarial não flui no vazio,
não se realiza à margem das organizações, mas está umbilicalmente
associada a um particular sistema de gestão, a uma específica cultura
organizacional e que é expressão, portanto, de uma realidade concreta.
Neste sentido, os referidos Boletins da Diretoria são iniciativas que nasceram da
necessidade de uma realidade concreta e são tidos como uma ação para o público
interno, de fluxo descendente. Este tipo de fluxo refere-se à prática de comunicação
organizacional de cima para baixo, dos pontos altos da hierarquia funcional para a base
da pirâmide, e têm a característica da formalidade. Pardo (2012), define a comunicação
vertical como parte da abordagem mecanicista na organização. Ainda de acordo com o
Rego (2008), ainda pode-se inserir o Boletim no nível coletivo, que utiliza-se de meios
clássicos, como boletins, jornais e revistas, para atingir o público-alvo. Assim, os ruídos
tendem a ocorrer por causa da distância entre fontes, emissores e receptores.
No entanto, devido ao teor, à forma e ao conteúdo do Boletim, este tem o
formato de uma comunicação administrativa, que “[...] abrange todos os conteúdos
relativos ao cotidiano da administração, atendendo às áreas centrais de planejamento e
às estruturas técnico-normativas, com a finalidade de orientar, atualizar, ordenar e
reordenar o fluxo das atividades funcionais” (REGO, 2008, p. 45).
Por isso mesmo, ruídos podem tornar-se mais comuns ainda. Para Souza et. al.
(2009, p. 57), os problemas mais comuns são: “[...] excesso de informações, defasagem
tecnológica da comunicação, planejamento errôneo do consumo de informações, [...]
vagareza na transmissão das informações, má administração do tempo, canais
inadequados, [...] falta de especialistas e de critérios editoriais, entre outros”.
Ainda é interessante ressaltar que a Comunicação Empresarial difere de outras
formas de comunicação, como a publicitária, por exemplo. Enquanto a primeira tem por
objetivo fazer conhecer ou promover uma empresa a fim de se obter atitudes favoráveis
de seus públicos – tanto interno quanto externo –, a segunda, segundo Rego (2008, p.
71), “exalta os méritos de uma companhia”.
As formas mais comuns de se atingir os objetivos da Comunicação Empresarial
é, de acordo com Neves (2000), desenvolver, fortalecer e proteger tudo o que for
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positivo na imagem da empresa e tentar neutralizar o que pode ser tomado como
negativo.
No entanto, não é tudo o que se produz na organização que tem potencial para
ser transformado em notícia.
Toda organização possui uma ‘Política Editorial’ seja explícita ou não formal
ou informal, que conduzem as políticas de relacionamento da organização
com seus públicos no âmbito das publicações jornalísticas, seja na esfera dos
jornais empresarias ou assessoria de imprensa (RODELLA, 2010, p. 23).
Explicitado isso, cabe partir para o esclarecimento a respeito dos demais
assuntos deste trabalho.
3 APONTAMENTOS SOBRE OS PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
Com o intuito de problematizar as questões colocadas neste projeto, tomou-se
como base a comunicação organizacional da UNESP, Campus de Presidente Prudente,
por meio do house organ Boletim da Diretoria.
Tal recorte justifica-se pelo fato de que tanto a comunicação interna quanto
externa, na instituição citada, ainda são falhas, porém podem melhorar com atitudes
simples. Além disso, é impossível não ressaltar a importância que a faculdade tem para
a cidade e para a região, tendo em vista que é a única pública em Presidente Prudente,
oferece vários cursos de graduação e pós-graduação e, inclusive, cursos que não existem
em qualquer outra cidade do Estado. Além disso, tendo em vista que o presente
pesquisador usufruiu de Bolsa Complemento Educacional, é necessário estudar esta
realidade de trabalho, que diretamente se aplica à graduação do servidor.
A pesquisa aqui proposta é do tipo explicativa, tendo em vista que se pretende
analisar os Boletins da Diretoria, a fim de se explicar e indicar quais as características
positivas e as negativas da iniciativa, bem como as possibilidades de melhora.
Desta forma, a metodologia da pesquisa aqui apontada é voltada à pesquisa
qualitativa, já que pretende trabalhar com “descrições detalhadas de situações com o
objetivo de compreender os indivíduos em seus próprios termos. Estes dados não são
padronizáveis como os dados quantitativos, obrigando o pesquisador a ter flexibilidade
e criatividade no momento de coletá-los e analisá-los” (GOLDENBERG, 1997, p. 14).
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O método básico de coleta de dados da presente pesquisa será a observação
sistemática, do tipo não participante. Tal técnica visa a obtenção de informações sobre
determinado aspecto da realidade e, segundo Lakatos e Marconi (1005, p. 192), “[...]
não consiste apenas em ver e ouvir, mas também em examinar fatos ou fenômenos que
se desejam estudar”.
O material coletado foi examinado em comparação com as teorias do jornalismo,
no que se refere ao cumprimento de requisitos noticiosos gerais (como a construção das
notícias com base nas respostas às perguntas básicas: quem? O que? Como? Quando?
Onde? Por que? E daí?) e aos chamados “valores-notícia” (critérios, como proximidade,
atualidade, abrangência, etc., utilizados para analisar se tal assunto merece ser
divulgado jornalisticamente ou não), conforme delimitam Rodella (2010), Lage (2005),
Zanchetta Júnior (2004), Faria (2003) e Noblat (2007).
4 A UNESP: Breve Relato da Origem e da Atualidade
Conforme já explicitado anteriormente, a história da Unesp teve início em 1957,
como Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) de Presidente Prudente, um
Instituto Isolado de Ensino Superior (IIES) do Estado de São Paulo. As aulas
começaram em 3 de maio de 1959, com os cursos de Geografia e Pedagogia.
Este número aumentou para 6 até que, em 1976, os IIES foram agregados na
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, e a unidade de Prudente
passou a ser Instituto de Planejamento e Estudos Ambientais (IPEA), campus com
apenas dois cursos. Já em 1988, foi somado à Unidade de Prudente o Instituto
Municipal de Ensino Superior de Presidente Prudente (IMESPP), uma entidade
municipal. Com a junção, a instituição passou a ser chamada Faculdade de Ciências e
Tecnologia (FCT).
Hodiernamente, então, a instituição tem 12 cursos de graduação e 06 programas
de pós-graduação. A FCT é a Unidade da UNESP que mais possui projetos de extensão
universitária, além de uma oferta sistemática e periódica de cursos de extensão,
temáticos, de atualização, de aperfeiçoamento e de especialização. Pesquisa também é
uma constante, formando assim o tripé da universidade brasileira: ensino, pesquisa e
extensão.
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5. ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO DOS DADOS OBTIDOS
Inicialmente, cabe ressaltar que o início da publicação dos Boletins da
Diretoria30, foco de análise desta pesquisa, em março de 2010, trata-se de um enorme
salto na comunicação e na gestão organizacional da FCT. Isso porque, anteriormente,
vigoravam formas de comunicação menos dinâmicas e mais formais, do tipo
Comunicação Administrativa, ou menos eficientes e de cunho extremamente informal,
de cunho ascendente.
O primeiro, segundo Rego (2008, p. 45), abrange “normas, instruções, [...]
políticas de desenvolvimento de pessoal, políticas de promoção, políticas salariais, [...]
regulamentos, portarias, avisos, [...] mudanças institucionais e programáticas [...]”. Já o
segundo é mais voltado a “conversas paralelas entre funcionários ou boatos que surgem
na organização” (SOUZA, 2009, p. 56).
Certamente, em comparação com estas duas opções, os Boletins da Diretoria são
mais eficientes. Parte-se, então, à análise propriamente dita.
O primeiro boletim foi um informativo de três páginas que se resumiu a informar
a respeito da posse da nova gestão, bem como das novas ou mantenças Diretorias,
Assessorias, Supervisões e Chefias. Considerando-se este número como “inaugural”,
distinto daquilo que viria depois, o segundo número, de abril de 2010, trouxe uma
estrutura já semelhante aos próximos, porém com apenas duas páginas e 14 itens.
Em comparação, o último publicado (nº 18/2013) possui sete páginas, 41 notas
informativas curtas divididas entre informes administrativos (licitações, construções,
aposentadorias e admissões), acadêmicos (defesas de dissertações ou teses, congressos e
visitas de docentes do exterior) e previsões para os próximos dias (abrangendo eventos
tanto acadêmicos quanto administrativos que devem ocorrer nos dias seguintes à
publicação, antes do próximo número).
Esta, aliás, é a estrutura adotada desde o Boletim nº 4/2012, publicado em 9 de
março do referido ano. E desde o início, a periodicidade das publicações é quinzenal,
30
Todos
os
Boletins
da
Diretoria
http://www.fct.unesp.br/#!/diversos/downloads/
estão
disponíveis
na
internet,
no
endereço
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com um intervalo maior (de cerca de um mês) quando das férias do diretor ou do vicediretor, geralmente entre dezembro e janeiro e entre junho e julho.
À primeira vista, poder-se-ia imaginar que entre o primeiro ou o segundo e o
último boletim, o número de fatos e acontecimentos na Faculdade teriam, de acordo
com as contas, praticamente triplicado. No entanto, tal constatação seria de um
positivismo absurdo, uma vez que pode-se depreender que o que aumentou não foram
os fatos noticiáveis, mas sim os fatos noticiados.
É óbvio que diversos processos fizeram também crescer o número de notícias.
Processos de internacionalização trouxeram cada vez mais docentes do exterior à FCT,
bem como aportes financeiros mais avantajados fizeram prosperar as construções,
reformas e ampliações no campus. Ao mesmo tempo, melhorou a consciência da gestão
e dos servidores em geral de que é importante divulgar os fatos, é relevante que todos
saibam o que está ocorrendo pela Unidade. Ou seja: foram dois fatores concomitantes.
Iniciando a análise, será verificada a estrutura de algumas notas informativas. De
acordo com os autores do jornalismo, entre eles Karam (2007), as perguntas básicas a
serem respondidas em uma matéria jornalística para informar corretamente o receptor
da mensagem são: O que aconteceu? Quem produziu o fato noticiado? Quando o fez?
Como o fez? Onde o fez? Por que o fez?
Em complementação, Refkalefsky (2005) insere uma pergunta a mais no
contexto: E daí? Esta teria a intenção de mostrar ou problematizar a respeito das
consequências desta informação na vida daquele que a lê.
Assim, a nota número 1 do Boletim da Diretoria nº 2/2012 tem a seguinte
escrita: “Estão sendo realizadas desde o dia 16 de janeiro e se estenderão até 17 de
fevereiro, as atividades do Programa de Verão do Programa de Pós-Graduação em
Matemática Aplicada e Computacional da FCT/UNESP”.
Cabe, inicialmente, questionar se todos os receptores desta mensagem sabem do
que se trata o Programa de Verão do Programa de Pós-Graduação em Matemática
Aplicada e Computacional da FCT/UNESP”. Sem esta informação, é impossível ao
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servidor, docente ou aluno que lê a nota, perceber a sua importância em sua vida,
responder à pergunta “e daí?” colocada pelos teóricos.
Já a nota de número 5 do Boletim nº 2/2010 traz a seguinte informação:
No dia 31 de março de 2010, na cidade de São Pedro, ocorreu uma atividade
promovida pela Reitoria sobre o Plano de Desenvolvimento Institucional da
UNESP, com a participação do Diretor, Vice-Diretor, Diretoria
Administrativa, Diretoria Acadêmica, um docente representante dos Cursos
de Graduação, um docente representante dos Cursos de Pós-Graduação e um
servidor Técnico-Administrativo.
Este é mais um exemplo de nota que pouco informa ao receptor da mensagem.
Qual é esta atividade promovida? O que exatamente foi tratado lá? Quem foram os
participantes efetivos? O que isso, de fato, importa a cada leitor? Caso estas
informações básicas tivessem sido inseridas na nota publicada, a notícia certamente
estaria mais completa.
O último trecho a ser analisado neste quesito é a nota 7 dos Informes
Administrativos do Boletim nº 16/2013. Esta diz o seguinte: “Serão executadas
pequenas obras de adequação nos estacionamentos e vias situadas nas proximidades dos
prédios do Restaurante Universitário e do Departamento de Física, Química e Biologia
(DFQB)”.
Aqui, cabe questionar quais são estas pequenas obras de adequação? Quando
estas serão executadas? Quais benefícios virão destes fatos? Novamente, informações
além das dadas tornariam a notícia mais completa e significativa ao leitor.
Há também bons exemplos. Apenas como ilustração, a nota 2 do Boletim nº
2/2012 diz o que segue:
Durante o período de 16 de janeiro até 16 de fevereiro, o Prof. Dr. Ricardo
Aroca, da Universidade de Windsor - Canadá, está ministrando o curso
“Plasmonics and Ultrasensitive Detection” aos alunos de graduação e pósgraduação das áreas de Física e Química da FCT/UNESP. O Prof. Aroca é
graduado em Química pela Universidade do Chile (1964) e desenvolveu sua
Pós-Graduação também em Química na Universidade de Moscou (1970). Em
1990 obteve o título de Doutor em Ciências (Física) pela Academia Russa de
Ciências. Foi professor nas Universidades do Chile e de Toronto. Atualmente
é professor titular na Universidade de Windsor, Canadá. O Prof. Aroca tem
colaborado com pesquisadores do DFQB há mais de 10 anos. Neste período
recebeu professores e alunos em seus laboratórios. Esta é a terceira visita do
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Prof. Aroca à FCT. Sua pesquisa está centrada no campo das nanoestruturas
metálicas aplicadas em espectroscopia, possui livros e capítulos de livros
neste tema, além de mais de 300 artigos em revistas internacionais.
Esta nota informa claramente o fato, quem é o envolvido neste, como, quando e
onde se dará a ação. Em complementação, reporta ao histórico da relação entre o
docente e a instituição a fim de indicar quais as implicações da vinda do professor,
como intercâmbio de docentes e de conhecimento, bem como melhoria na publicação de
livros e capítulos com a melhoria do nível de pesquisa.
Já na segunda parte da análise, observar-se-á os valores-notícia das notas
publicadas, a fim de se problematizar sobre as motivações de sua publicação, se esta foi
oportuna ou não, se atende aos pré-requisitos de uma notícia, etc. Em geral, o norte é o
interesse público e a verdade, conforme demonstra Lage (2005, p. 83): “[...] a tendência
dos jornalistas é considerar adequada a divulgação de informação de que se tem certeza,
desde que haja ou possa haver interesse público”.
Alguns destes valores-notícia são elencados por Rodella (2010), Lage (2005),
Zanchetta Júnior (2004), Faria (2003) e Noblat (2007). No entanto, este trabalho
considera a lista organizada no Manual de Redação da Folha de S.Paulo:
1) Ineditismo (a notícia inédita é mais importante do que a já publicada).
2) Improbabilidade (a notícia menos provável é mais importante do que a
esperada).
3) Interesse (quanto mais pessoas possam ter sua vida afetada pela notícia,
mais importante ela é).
4) Apelo (quanto maior a curiosidade que a notícia possa despertar, mais
importante ela é).
5) Empatia (quanto mais pessoas puderem se identificar com o personagem e
a situação da notícia, mais importante ela é).
6) Proximidade (quanto maior a proximidade geográfica entre o fato gerador
da notícia e o leitor, mais importante ela é) (MANUAL DE REDAÇÃO...,
2001, p. 43).
Neste sentido, a nota 8 do Boletim nº 1/2012 diz o seguinte:
No dia 5 de janeiro, o Diretor da FCT/UNESP se reuniu com a Diretora
Administrativa, Senhora Mara Lúcia Ascenço Dedubiani e com o Diretor de
Serviços Substituto, Senhor Emerson Katsuo Kawaguchi, para fazer os
encaminhamentos necessários relativos às reformas em andamento na
Unidade e aos dois compromissos recebidos da Reitoria.
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Com base nos seis valores-notícias antes elencados, considera-se que a nota
acima, além de ter falhas na informação mesmo (quais encaminhamentos necessários?
Quais reformas em andamento? Quais compromissos recebidos?), possui não possui
ineditismo, improbabilidade, apelo ou empatia. Não é um fato curioso, inédito ou
improvável, tendo em vista que reuniões com assuntos correlatos ocorrem com certa
frequência. Além disso, não é um acontecimento que gere qualquer tipo de identificação
com os leitores. Então, por que ler tal notícia?
Talvez, pelos dois demais valores: proximidade e interesse. Aquela é um fato
evidente, tendo em vista que trata-se de reformas no local de trabalho dos receptores da
notícia. Já a segunda, embora não esteja claro quais as reformas, mudanças no ambiente
físico dos servidores são, geralmente, de interesse da comunidade.
A nota 15 dos Informes Administrativos do Boletim nº 20/2012, por sua vez,
trata do que segue: “No dia 23 de outubro, o Vice-Diretor da FCT se reuniu com os
alunos membros da Comissão de Moradia para tratar de assuntos relacionados à
segurança no local, compra de materiais, acessibilidade e reforma do Bloco B”.
Novamente, cabe esclarecer que faltam informações à notícia: o que se decidiu
sobre tais assuntos? Não há esclarecimentos a este respeito.
Proximidade e interesse, de novo, estão presentes pelos mesmos motivos dados
na análise anterior. Já ineditismo, improbabilidade, apelo e empatia são ausentes pois,
repete-se, reuniões são constantes, o assunto não é novo ou curioso e a possibilidade de
identificação permeia apenas uma pequena parte do público-alvo do boletim.
Por fim, a nota 4 do Boletim nº 15/2010 discorre:
No dia 14 de outubro, o Diretor da FCT–UNESP esteve presente no evento
científico da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, na cidade de
Natal, no qual participou como expositor da mesa redonda intitulada
“Ordenamento Territorial e Agronegócio”.
A última nota exibida aqui pouco se acerca dos seis valores-notícia dados. Não
se trata de um fato próximo, de interesse, improvável, de apelo ou que desperte empatia.
Quiçá possua um traço de ineditismo, tendo em vista que poucas pessoas esperavam que
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o Diretor estivesse naquele local no período dado. No entanto, isso pouco justifica a sua
publicação.
É evidente que, para uma notícia ser divulgada, ela não precisa possuir todos os
valores-notícia existentes. No entanto, quanto menos se aproxima deles, mais
dispensável é a sua publicação. Conforme Zanchetta Júnior (2001, p. 59):
As características citadas se entrecruzam, não são as únicas que podem
definir o rol de notícias, e muito menos formam um conjunto completo ou
exato. Auxiliam, entretanto, a situar certos processos, um deles o de que a
imprensa convive com um conjunto quase pré-determinado de assuntos que
se tornarão notícia. (ZANCHETTA JÚNIOR, 2004, p.59)
De posse destas análises, cabe discorrer as considerações deste trabalho,
conforme segue.
6. CONSIDERAÇÕES
O início deste trabalho delimitou que a pergunta motriz desta pesquisa refere-se
à efetividade da comunicação organizacional no âmbito da FCT/UNESP. Cumpriu,
então, analisar o papel do Boletim da Diretoria, veículo lançado logo após a posse da
nova gestão em 2010, no processo comunicacional, por meio da observação da estrutura
das notícias e dos valores-notícia que mobilizaram suas publicações.
Discutiu-se, durante o trabalho, diversas notas constantes de boletins diversos,
desde o primeiro ano de sua divulgação até o atual. Com vistas nos critérios adotados,
verificou-se que a iniciativa de se lançar o Boletim da Diretoria foi extremamente
louvável, pois até o momento não havia um canal efetivo de comunicação
organizacional na UNESP. As informações eram dadas de maneira simplesmente
administrativa, ou circulavam por meio de conversas informais.
No entanto, a estrutura das notícias e as motivações de suas publicações ainda
deixam muito a desejar jornalisticamente. Faltam diversos dados, sem os quais as notas
pouco informam de fato, bem como não há clareza nos critérios adotados para decidir se
tal ou tal nota será publicada, o que culmina na divulgação de notícias que não
despertam o total interesse no público-alvo.
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Cabe ressaltar, ainda, que durante os quase quatro anos de existência do veículo,
a estrutura praticamente não alterou-se, e nem sua periodicidade. No entanto, a
quantidade de notas e páginas cresceu consideravelmente, o que tem um significado
dual: se há mais fatos noticiados e divulgados por um lado, por outro não são todos os
receptores que possuem interesse em ler detalhadamente sete ou oito páginas de uma
vez só.
Assim, pode-se concluir que os Boletins da Diretoria têm o potencial de serem
fatores fundantes no processo de comunicação organizacional da FCT/UNESP. No
entanto, algumas alterações devem ser efetuadas, de modo a melhorar sua efetividade.
Alguns exemplos destas melhorias são: diminuir o tempo entre a publicação de uma
edição e outra (pode passar a ser semanal); otimização no layout do informativo,
podendo até mesmo incluir imagens; e adaptação do texto à estrutura, forma e critérios
jornalísticos.
Considera-se, desta forma, que o veículo poderá ter seu potencial explorado de
forma adequada, melhorando a produtividade dos servidores, docentes e alunos com
base em informações devidamente divulgadas.
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RELAÇÕES ENTRE O ERUDITO E O
POPULAR NA ORQUESTRA SINFÔNICA DE
TERESINA:um estudo de caso da
Cantata Gonzaguiana
Fábio Soares da COSTA31
Sarah Fontenelle SANTOS32
Janete de Páscoa RODRIGUES33
RESUMO: Esse artigo procura analisar, por meio de um estudo de caso,
distanciamentos e aproximações entre o erudito e o popular a partir do Projeto Cantata
Gonzaguiana, realizado pela Orquestra Sinfônica de Teresina- OST, durante o ano de
2012, com apresentações em diversas cidades do Brasil. A institucionalização histórica
da polarização entre o erudito e o popular foi a problemática que nos levou a uma
abordagem teórico-crítica, possibilitando-nos o reconhecimento de processos de fusão
positivos do ponto de vista cultural e comunicacional, com impacto nos processos de
produção e de recepção, tendo como multímetro a repercussão midiática e o atingimento
maior de diversos públicos.
Palavras-chave: Cultura. Música. Erudito. Popular. OST.
ABSTRACT: This article seeks to analyze, through a case study, distances and
similarities between classical and popular from Project “Cantata Gonzaguiana” held by
31
Mestrando do Programa de Pós-graduação em Comunicação – PPGCOM da UFPI - Mestrado em Comunicação.
Especialista em Supervisão Escolar pela UFRJ e Educador Físico licenciado pela UFPI. E-mail:
[email protected]
32
Mestranda do Programa de Pós-graduação em Comunicação – PPGCOM da UFPI - Mestrado em Comunicação.
Especialista em educação contextualizada no semiárido na perspectiva da educação do campo pela UESPI. Jornalista
e Relações Públicas graduada pela UESPI. E-mail: [email protected]
33
Doutora em Ciências da Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Profa. do PPGCOM
- Mestrado em Comunicação da Universidade Federal do Piauí – UFPI. E-mail: [email protected]
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“Orquestra Sinfônica de Teresina – OST”, during the year 2012, with performances in
various cities in Brazil. The historical institutionalization of polarization between the
scholarly and popular was the problem that led us to a theoretical-critical, enabling us to
recognize mergers positive from the standpoint of cultural and communicative, with an
impact on the production and reception, with the multimeter the media impact and the
greatest achievement of various audiences.
Keywords: Culture. Music. Scholar. Popular. OST.
1. APRESENTAÇÃO
Diferenciar culturas e músicas eruditas das culturas e músicas populares sempre
preencheram os espaços e discussões de músicos, comunicadores, artistas, historiadores
e pesquisadores culturais, sendo encontradas em grande parte da história da
humanidade. Todavia, nosso intuito aqui trata-se de entender tais denominações para
tentar desconstruir essa polarização institucional, política e ideológica, de separação e
fragmentação possível entre erudito e popular, no sentido de aproximarmos estes
conceitos, se é que não estejam tão próximos a tal ponto de não termos percebido.
Demasiado indispensável é o entendimento sobre: O que é cultura? O que é
música erudita? E música popular? Enquanto componentes de uma diversidade cultural,
encontram-se distantes? Próximos? Que processos de construção simbólica, ideológica,
social e histórico-cultural estão presentes nesta tensão? Enfim, este estudo de caso
(VENTURA, 2007. p. 384) foi realizado em 10 meses, onde foram analisadas
apresentações, entrevistas, publicações e depoimentos de integrantes da Orquestra
Sinfônica de Teresina quanto às atividades do Projeto Cantata Gonzaguiana.34
Os percursos históricos da música e da humanidade foram perpendicularmente
traçados desde tempo atrás até os dias atuais, ultrapassando diversos obstáculos espaçotemporais, principalmente pelo poder comunicacional que a música como expressão
artística tem. Por isso, analisar as aproximações entre a música e seus públicos tendo
como entremeio o erudito e o popular é mister para o estabelecimento de compreensões
sobre o estado da arte da cultura local hoje.
34
Deste ponto em diante a Orquestra Sinfônica de Teresina será referendada como OST e o Projeto Cantata
Gonzaguiana como CG.
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2. CULTURA E UMA MULTIPLICIDADE DE CONCEITOS
As abordagens teóricas que procuram apresentar o conceito de cultura são
inúmeras e complexas, pois como introduz Eagleton (2005), sua amplitude e
concomitante especificidade reforçam seu espectro inconsciente e irracional, o que
obscurece a compreensão das suas significações, dos sentidos e dos valores que
historicamente foram atribuídos à palavra cultura. Vejamos a abordagem do crítico
literário contemporâneo quanto a este pensamento:
Incapaz, de certo modo, de dizer uma coisa sem dizer qualquer coisa, a
cultura não diz o que quer que seja, eloqüente ao ponto extremo de ser muda.
Ao cultivar toda a possibilidade até o seu limite, arrisca a deixar-nos com os
músculos entorpecidos, imobilizados, tal é o efeito paralisante da ironia
romântica. (EAGLETON, 2005, p. 33)
Todavia, à procura de uma objetividade interpretativa devemos enveredar pelas
considerações deste filósofo britânico que aborda três sentidos modernos de cultura: 1)
Como civilidade; 2) Como modo de vida característico; e 3) Como especialização às
artes. Neste contexto, é o terceiro sentido que guiará nossa abordagem conceitual para
entender o imbricamento entre a música erudita e a música popular fundidas para o
desenvolvimento da CG.
A cultura como sentido de especialização às artes abordado por Eagleton (2005)
inclui a atividade intelectual em geral (Ciência, Filosofia e Erudição), bem como as
atividades imaginativas como Música, pintura e literatura. Esta é uma tradição
romântico-humanista que traz consigo características a posteriori questionadas por nós
em acordo com Eagleton (2005, p. 32, grifo nosso). Estes traços são de que este sentido
traz uma carga pós-moderna de recusa ao partidarismo, tornando-a neutra, baseada na
não-utilidade, transcendente à política, crítica do capitalismo e inevitavelmente mais
contemplativa que engajadora. No entanto, ao lado do autor, entendemos que esta
postura não é politicamente inocente, inclusive aproximando-se mais de uma
perspectiva liberal de tendência conservadora.
Nesta atmosfera conceitual observamos uma identificação marxista de Terry
Eagleton e sua filiação aos estudos culturais, principalmente às ideias de Raymond
Williams que propõe uma reaproximação dos sentidos de cultura uma vez
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fragmentados, numa religação estético-antropológica que privilegia a diversidade de
culturas, entrelaçadas pelo pensamento dialético. Esta lógica de pensamento é matricial
para nós, pois a teoria pós-moderna traz um sentido popular à cultura, fortalecendo a
alteridade e incorporando a cultura como um nível dominante da vida social.
O reforço desta perspectiva pode ser encontrado em THOMPSON (2002, p.
176), quando reforça o fato de que a cultura de um grupo ou sociedade é o conjunto de
crenças, costumes, ideias e valores, bem como, os artefatos, objetos e instrumentos
materiais, que são adquiridos pelos indivíduos enquanto membros de um grupo ou
sociedade:
Cultura é o padrão de significados incorporados nas formas simbólicas, que
inclui ações, manifestações verbais e objetos significativos de vários tipos,
em virtude dos quais os indivíduos comunicam-se entre si e partilham suas
experiências, concepções e crenças.
Esta também é a nossa defesa. A de que cultura pode ser vinculada a uma
comunidade desenvolvida técnica e economicamente, pode representar formas de vida
social mais rústicas e primitivas, mas, sobretudo, e próximo ao que pensa Geertz (1989),
deve ser pensada como sistema simbólico, claramente possível pelo isolamento
histórico de grupos humanos, que expressa as relações próprias da comunidade,
passando por gerações, até caracterizar-se por um sistema integrado de ações conjuntas,
identificadas por sua ideologia, crenças, expressões, formas de ser e estar.
Filiamo-nos a Eagleton (2005) e Thompson (2002) na crença de que não existem
seres ou indivíduos não-culturais, pois estes são produtores de cultura. A identificação
com um ser cultural é apenas admitir que a condição humana é sempre encarnada em
alguma modalidade cultural específica. Esta defesa é alicerçada no percurso histórico
contemporâneo e apresenta uma coerência factual, a exemplo, observamos que as
situações de miséria e exploração em diferentes partes do planeta, apresentam distinta
formas culturais.
Contudo, é oportuno o entendimento sobre o que é a cultura criada pelo povo
(popular), que articula uma concepção do mundo em contraposição aos esquemas
oficiais e a cultura erudita que é transmitida na escola e sancionada pelas instituições.
Neste contexto, Bosi (1986) esclarece que a cultura erudita tem uma aproximação com o
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belo e o autoconhecimento, a partir do encanto com a arte, sob todas as suas vertentes e
épocas, enquanto linguagem distinta, que necessita uma educação específica para sua
apreciação e contemplação. Contudo, a necessidade de não ser encarada como
valorização do aristocrático, ou ligada, literalmente, ao poder aquisitivo, se perde, a
partir da constatação de que sua existência depende da atenção prévia de necessidades
materiais básicas. (BOSI, 1986)
Nesta mesma linha de abordagem, a cultura erudita pode ser representada pelos
museus, pelas orquestras clássicas, pelas bibliotecas, pois precisam de um
desenvolvimento educacional complexo e de longa maturação. Isto desemboca numa
valorização do indivíduo enquanto grupo e também da sensibilidade.
Parece-nos complexo externar qualquer conceito mais objetivo do que é, foi ou
será cultura erudita, todavia, encontramos ainda em Bosi (1992, p. 337) intervenções
esclarecedoras, como a que segue, em que o fascínio para com os iletrados e selvagens
parece se perder com a o advento civilizatório:
Esta, ou ignora pura e simplesmente as manifestações simbólicas do povo, de
que está, em geral, distante, ou debruça-se, simpática, interrogativa, e até
mesmo encantada pelo que lhe parece forte, espontâneo, inteiriço, enérgico,
vital, em suma, diverso e oposto à frieza, secura e inibição peculiares ao
intelectualismo ou à rotina universitária. A cultura erudita quer sentir um
arrepio diante do selvagem.
A ilustração feita por Muniz Sodré (1988) a partir de Bourdieu também revela
um entendimento necessário para o desenvolvimento de nossos postulados:
A explicitação institucional (tanto através da escola como dos protocolos de
distinção social inculcados pela família, que incluem maneiras refinadas,
domínio de etiquetas, desenvolvimento estético dos gostos, etc.) das normas
do campo cultural é hoje característica da produção elevada ou culta. Neste
sub-campo não se alinha apenas o saber humanístico de raízes greco-latinas,
como tende a pensar uma certa sociologia da cultura, mas também a ciência.
Bourdieu vê na sua “interrogação axiomática”, a “característica mais
específica de todas as formas modernas de produção erudita (arte, literatura
ou ciência)”. (SODRÉ, 1988, p. 77, Grifos do autor)
Neste
momento,
nosso
interesse
em
desconstruir
o
distanciamento
institucionalizado entre cultura erudita e cultura popular nos obriga a indagar: Existe
alguma validade na relação da cultura erudita com a popular? Assim incitamos a dúvida,
pois percebemos no elitismo cultural um gozo de seus bens culturais, como os melhores
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e mais inteligentes, intelectualizados, seu culto infere o consumidor alto, dominador,
que tantas vezes exclui o universo dos dominados. Destarte, não nos rogamos o
exercício de desacreditar que este contexto emoldura milhares de cérebros, pertencentes
a um poderoso sistema simbólico que se chama culto, erudito, elevado, seleto e
escolástico.
Diante deste início de diálogo, reporto-me ao que projetou o Entrevistado 02
desta pesquisa: “[...] o erudito pegou foi carona em Luiz Gonzaga, no popular. Quer
dizer, Luiz Gonzaga ficou na boleia e o erudito ficou na carroceria.” Todavia, não
podemos perder de vista que o povo (índios, negros e pobres) foi colonizado pela
cultura urbana portuguesa, eurocentrada, pelo catolicismo jesuíta e por último, pelo
Estado, pela Escola, pelo Exército e pela Indústria Cultural que continua atingindo este
mesmo povo agora pelas Indústrias Criativas (BENDASSOLLI, 2009).
É historicamente perceptível que a cultura dominante, letrada, escolástica e
fabril foi a que mais se expandiu, todavia, muitos preceitos coloniais e aristocráticos da
religião católica deram lugar a culturas populares como as sertanejas, ao Carnaval, aos
Afoxés, promovendo novas manifestações, mas também podendo ser entendida como
um fenômeno da ressignificação, onde a cultura dominante é absorvida e descodificada
pela cultura dominada, de tal modo que, nesta última, já não fica da cultura superior
nada a não ser, talvez, o desejo que têm os dominados de apreender os dons e os
poderes dos seus patrões. (Grifo nosso)
Este prisma, é fortalecido pelos ditos de Sodré (1988, p. 74):
[...] a cultura é um suposto foco de verdade universal e substitui o poder
teológico como guardiã dos regimes de veridcção e de desenvolvimento da
personalidade individual. Essa substituição se assenta em relações sociais
definidas por critérios de autonomia profissional, que se fazem acompanhar
de normas delimitadoras [...]
Historicamente incrustada no verso cultural do mundo, temos o que Bosi (1992)
chama de cultura popular: aquela que é caracterizada como a cultura das massas e para
as massas, que, contudo, é institucionalizada, ou pelo Estado ou pela inciativa privada,
organizações modernas e complexas que administram a produção e a circulação de bens
simbólicos. Todavia, o que nos chama atenção e nos importa nesta fase são os
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fenômenos simbólicos que nascem do imaginário do povo, estruturados de diversas
formas, indo do rito quilombola da Comunidade Mimbó (Amarante-Pi) ao Bumba-meuBoi (patrimônio folclórico maranhense). Ou seja, serve-nos de contraponto conceitual a
vertente romântico-nacionalista, ou romântico-regionalista, ou romântico-populista, que
valida a transmissão pelo folclore, que ignora ou recusa as suas vinculações com a
cultura de massa e a cultura erudita, e identifica as expressões grupais com um mítico
espírito do povo, ou mais ideologicamente, com uma Nação. E, para o fortalecimento
deste entendimento ancoramo-nos em Fernandes (1998), que caracteriza a cultura
popular, como as manifestações coletivas, geralmente no espaço não-urbano, são os
ritos antigos, os rurais, etc. Todavia, nos alerta que estas características devem ser
associadas agora a um sentido semiótico de reapropriação e ressignificação temporal,
historicamente determinada, que inclusive luta contra os ditames da indústria cultural,
procurando incorporar a tecnologia e reconvertê-la enquanto instrumento de uma
sociabilidade espontânea e autêntica. É o que Habermas (1987 citado por Gutierre;
Almeida, 2004, p.56) expõe quando diz que a cultura é o armazém do ser humano, e a
cultura popular, como caracterizada logo acima, luta para manter a tradição sem
sucumbir à indústria cultural.
O imbricamento entre cultura popular e cultura de massa torna-se neste contexto
um problema, portanto não devemos evoluir nesta discussão sob pena de reconfigurar
nossa linha de raciocínio. Desta forma, concluímos que para nossas pretensões, o
entendimento sobre cultura popular não deve partir da Teoria Crítica dos Estudos
Culturais, notadamente da Escola de Frankfurt, com as premissas de Adorno de
Horkheimer, mas sim deve ser desenvolvida segundo os estudos culturais britânicos a
partir das contribuições do Centre for Contemporary Cultural Studies, principalmente
por Richard Hoggart (1958) e Raymond Williams (1958), que tem seus postulados
relacionados a um forte populismo cultural. Assim, Douglas Kellner aponta que para os
ingleses, cultura popular é algo relativamente autônomo e proveniente da classe
trabalhadora, que é do povo. (KELLNER, 2001, grifo nosso)
Ainda, Kellner (2001, p. 51) apresenta o que para nós deve ser considerado
como conceito adequado ao que nos prostramos a discutir:
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O discurso do “popular” também foi utilizado por muito tempo na América
Latina e em outros lugares, para descrever a arte produzida pelo povo e para
ao povo, como esfera oposta à cultura dominante ou hegemônica, que é
muitas vezes uma cultura colonialista, imposta de cima para baixo. Portanto,
na América Latina e em outros lugares, a expressão “forças populares” indica
os grupos que lutam contra a dominação e a opressão, enquanto “cultura
popular” indica a cultura do povo, feita pelo povo e para ao povo, no sentido
de que o povo produz essa cultura e participa das práticas culturais que
articulam suas experiências e aspirações. (Grifos do autor)
O relacionamento hostil entre os termos erudito e popular ora perceptível no
campo teórico, mas empiricamente possível e percebido na produção da CG pela OST,
nos remete ao que postula Eagleton (2005, p. 14, grifos nossos):
A idéia de cultura, então, significa uma dupla recusa: do determinismo
orgânico, por um lado, e da autonomia do espírito, por outro. É uma rejeição
tanto do naturalismo como do idealismo, insistindo, contra o primeiro, que
existe algo na natureza que a excede e a anula, e, contra o idealismo, que
mesmo o mais nobre agir humano tem suas raízes humildes em nossa
biologia e no ambiente natural.
E é neste panorama de entendimento, recortado, sobre cultura erudita e cultura
popular, que tentaremos articular um paralelo conceitual às músicas erudita e popular.
Vamos adiante?
3. AS DUAS MÚSICAS
A música acompanhou historicamente o homem e se fez, desde o incremento da
sua ampla difusão, fator constituinte da realidade social e cultural. A partir das tensões e
contradições promovidas por seus sons, melodias e letras, pois ela deve ser
compreendida com um campo onde se estabelecem conflitos, a música está presente em
todo o planeta, compondo-se como um dos principais alicerces das diferentes culturas,
seja por suas relações coletivas ou individuais com os sujeitos sociais.
A polarização entre a música erudita e a música popular é uma construção
simbólica de caráter ideológico e social, assim pensa Bizzocchi (1999). Para o autor,
essa polarização é histórica e caracterizou-se por uma aristocracia que considerava a
música erudita como a única forma de cultura, pois a música popular era uma nãocultura, ausente de características civilizatórias. Este contexto está repleto de
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representações ideológicas e artísticas de uma minoria da sociedade (elite) caracterizada
outrora como de classes.
Isto acima nos parece nocivo, principalmente após ouvir depoimentos do
Entrevistado 03 de nossa pesquisa que diz: “A essência da música erudita é a música de
uma época: renascimento, barroco, clássico, romântico e moderno. É uma música que
em sua época era popular. Beethoven quando fez a 5ª Sinfonia, fez com um tema que
era popular para ele.”
Oportunamente, encontramos na defesa de Silva (2008), também a defesa do
Entrevistado 03, quando, aparentemente contraditório, pois se propõe a utilizar as ideias
de Adorno, anteriormente negado por nós, mas que agora nos fortalece o entendimento.
O autor afirma que a arte musical de Mozart, que foi um compositor genuinamente
clássico, também era popular. Poderíamos então, chamar de popular, aquela música que
a população, em sua maioria, consome. A música de Tom Jobim, por exemplo, foi e é
popular. O mesmo Jobim se tornou clássico, na nossa música, pela beleza, pela
seriedade de sua obra, por sua arte.
Em Bizzocchi (1999) e Silva (2008) encontramos subsídios para afirmar que a
música erudita deu origem às partituras musicais, que pode ser tocada por um
instrumento só, por pequenos grupos de instrumentos e também por Orquestras, que é
uma música rígida, ortodoxa, em que os instrumentistas precisam seguir ao pé da letra
todas as instruções da partitura e não podem improvisar. Numa aproximação espacial,
também absorvemos que a música erudita ou clássica, no Brasil dos primeiros séculos
de colonização portuguesa, vincula-se à igreja e que somente com o músico Heitor
Villa-Lobos é que ela se consolidou em nosso país. Também pudemos perceber que,
para nossos músicos, historiadores e pesquisadores, os maiores nomes da música erudita
estão nesta relação: Haydn, Bach, Mozart, Beethoven, Chopin e Villa-Lobos.
Quanto às características da música popular que aqui pensamos, podemos
absorver historicamente o que trata Napolitano (2002). Para o historicista, música
popular é o mesmo que canção e é um produto do século XX. Possui uma fonografia
específica e um padrão de 32 compassos (COLLURA, 2008. p.124), adaptada a um
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mercado urbano e intimamente ligada à busca de excitação corporal (música para
dançar) e emocional (música para chorar, de dor ou alegria...).
A música popular urbana reuniu uma série de elementos musicais, poéticos e
performáticos da música erudita (o lied35, a chançon36, árias de ópera37, bel canto38,
corais, etc.), da música folclórica (danças dramáticas camponesas, narrativas orais,
cantos de trabalho, jogos de linguagem e quadrinhas cognitivas e morais e do
cancioneiro “interessado” do século XVIII e XIX (músicas religiosas ou
revolucionárias, por exemplo). Sua gênese, no final do século XIX e início do século
XX, está intimamente ligada à urbanização e ao surgimento das classes populares e
médias urbanas (NAPOLITANO, 2002, p. 8).
Em nosso país, pensamos que a diversidade cultural está presente nestas duas
músicas. Pois como disse Kiefer (1990, p. 33) “os compositores eruditos do
Modernismo não podiam deixar de dar atenção aos gêneros populares (ou semieruditos) nacionalizados [...]”. E vimos isso com Heitor Villa-Lobos, que digeriu
insaciavelmente muitos vocabulários musicais, atuando de maneira bem brasileira, no
nível popular e no erudito, e promovendo uma fusão entre os dois. Também pudemos
perceber isto nas apresentações da OST, especificamente na CG.
Por oportuno, não podemos deixar de introduzir que a manifestação cultural
remetente ao popular analisado foi o gênero musical Baião/Forró, inaugurado na
indústria fonográfica nacional por Luiz Gonzaga na década de 1940. Mas, será o Baião
uma música popular?
Quando pensamos concomitantemente em música e Baião, que logo resinificouse para o Forró, percebemos que não podemos esquecer uma função social básica que a
música sempre desempenhou: a dança. Elemento catalisador de reuniões coletivas,
voltadas para a dança, desde os empertigados salões vienenses ao mais popularesco
35 É um termo tipicamente usado para classificar arranjos musicais para piano e cantor solo, com letras geralmente
em alemão.
36
É uma palavra de origem francesa, que significa "canção”.
37
É qualquer composição musical escrita para um cantor solista, tendo quase o mesmo significado de canção.
38
É uma tradição vocal, técnica e interpretativa da Ópera italiana.
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arrasta-pé, passando pelos saraus familiares e pelos não tão familiares bordéis de caisde-porto, a música popular alimentou (e foi alimentada) pelas danças de salão.
Quanto à origem da palavra Forró, podemos evidenciar a existência de três
versões diferentes. A primeira, talvez a mais conhecida, é a que diz que o termo surgiu
no final do século XIX, nas construções das estradas de ferro no Nordeste pelos
ingleses. Estes realizavam festas frequentemente, mas nem sempre abertas à população.
Quando a festa era aberta à todos, escrevia-se na entrada For All (isto é, para todos)
(ROCHA, 2004). Então, o termo Forró teria surgido como variação da pronúncia da
expressão inglesa citada. A segunda versão é muito parecida, porém, quem realizaria as
festas seriam os soldados norte-americanos durante a Segunda Guerra Mundial (19391945) (ROCHA, 2004). E, por fim, a terceira tem relação com a expressão africana forrobodó – mais antiga, significando algazarra, festa para a ralé, arrasta-pé e
representando, segundo Aurélio Buarque de Holanda, a contração de forrobodó, que é a
mais aceita. (ROCHA, 2004).
Ainda, segundo Quadros Júnior & Volp (2005, p. 119):
O Forró é a festa onde se toca gêneros musicais nordestinos, tais como o
baião, o xote, o xaxado, o côco e a quadrilha, e se dança o baião, o xote, o
xaxado, o côco e a quadrilha. Porém, é importante atentarmos que,
popularmente, o termo forró é usado para designar tanto as “danças
nordestinas” quanto as “músicas nordestinas”, por isso é comum as
expressões “Vamos dançar um forró” ou “Vamos tocar um forró”. Note-se,
ainda, que estas expressões não distinguem os vários gêneros musicais e os
vários ritmos de dança que compõem o fenômeno. (grifo dos autores)
Assim, como música, o Baião e Forró são elementos culturais que fundamentam
grande parte dos comportamentos de nossa sociedade, que pauta-se em seus ritmos,
letras e danças por ela desencadeadas para nortear seu cotidiano. Para Trotta (2009, p.
22), a música constitui um importante espaço aglutinador dos hábitos, desejos, saberes,
sonhos, costumes e valores que permanentemente circulam e entram em conflito no
terreno da cultura. Em outras palavras, músicas não apenas fazem cantar, dançar e
divertir, elas “carregam teias de significados, valores e sentimentos que interagem com
a vida cotidiana das pessoas e dos grupos sociais”.
4. O CASO DA ORQUESTRA SINFÔNICA DE TERESINA: e uma Cantata
Gonzaguiana
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Swoboda (1968) diz que a Orquestra, enquanto bem institucionalizado, teve
contribuições e percurso seminal desde meados da era cristã, passando pelo
Renascimento, Barroco e Romantismo, mas foi no Classicismo a sua mais forte
demonstração de autonomia, entre 1750 a 1820. No século XX, em plena Modernidade,
houve uma ampliação desta autonomia, principalmente do ponto de vista quantitativo e
ela passou a ser dividida em três forma principais: a) Orquestra de Câmara, constituída
por um pequeno grupo (entre 8 e 18 músicos), que executa músicas instrumentais em
pequenos locais, dedicando-se a um segmento instrumental restrito; b) Orquestra
Filarmônica, maior que a de Câmara em número de músicos e instrumentos, mantida
por amigos, admiradores da arte e entidades privadas; e c) Orquestra Sinfônica,
composta por naipes39 de diversas famílias instrumentais, maior que a de Câmara e a
Filarmônica, sendo mantida por entidade privadas e pelo poder público.
O estudo foi realizado a partir de uma revisão de literatura, de pesquisa
bibliográfica sobre cultura e música erudita e popular, bem como de pesquisa em acervo
da OST e de materiais publicitários produzidos pela própria OST, reportagens de jornais
impressos e publicadas na internet. Também foram realizadas três entrevistas abertas
com um produtor, um músico e um regente da OST.
O que hoje é a OST, outrora foi originada ainda como Orquestra de Câmara em
1993. Todavia, em 1986 ela foi criada pela Lei Municipal nº 1.842 de 26 de fevereiro de
1986, para ser mantida pela Fundação Cultural Monsenhor Chaves, com o objetivo de
desenvolver atividades de artes cênicas, plásticas, literatura, música, folclore e música
popular, e que teve sua materialidade a partir de um projeto social de musicalização
para crianças carentes por meio de instrumentos de cordas friccionadas (violinos,
violoncelos, violas e contrabaixos), com fomento do Ministério da Cultura, no ano de
1991. 25 jovens bolsistas integravam o grupo. Em 2005, passou a ser Orquestra
Filarmônica, pois teve o suporte financeiro da Empresa Brasileira de Correios e
Telégrafos. E em 8 de junho de 2007, passou a contar com a gestão administrativa e
financeira
da
Prefeitura
Municipal
de
Teresina,
por
decreto
municipal,
consequentemente tornou-se a OST, tendo como missão o aperfeiçoamento e a
39
Uma Orquestra possui quatro famílias (naipes) de instrumentos: cordas, madeiras, metais e percussão. Disponível
em: <http://sandra-musicasempre.blogspot.com.br/2011/05/naipes-da-orquestra.html> Acesso em: 05 ago. 2013.
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musicalização profissional, a difusão da música clássica erudita e regional, bem como a
promoção e o desenvolvimento dos músicos e da organização musical. (FEITOSA,
2010); (MAGALHÃES, 2010)
A juventude da OST fez com que até hoje, apenas dois maestros estivessem a
sua frente. O primeiro foi Emmanuel Coelho Maciel, violinista e Professor do
Departamento de Educação Artística da UFPI e de formação clássica, que permaneceu
na OST por oito anos, quando então o Maestro Aurélio Melo assumiu a regência e
direção da Orquestra. Hoje a OST é formada por 73 músicos (violino, viola, cello,
baixo, clarinete, oboé, fagote, flauta, trompete, trombone, tuba, trompa, tímpano e
percussão), 2 regentes e 4 produtores.
A OST durante sua existência já desenvolveu diversos trabalhos e apresentações.
Após sua institucionalização como orquestra sinfônica ela passou a realizar diversas
apresentações em espaços públicos, teatros e igrejas e teve como principais produções:
Concerto para Crianças; A 9ª Sinfonia de Beethoven; Os Recitais Didáticos; Concerto
de Natal; Publicou o livro “Repertório Básico”; Gravou o CD “Valsas Piauienses”, de
Possidônio Nunes Queiroz; Apresentação com Maristela Gruber; Música depois da
Missa; OST nos Bairros; Concertos pelo Sertão; Cantata Gonzaguiana; Concertos
Matinais; e 1ª Semana Sinfônica.
O projeto Cantata Gonzaguiana foi pensado a partir dos resultados obtidos com
o Projeto Concertos pelo Sertão, em que a OST, com patrocínio da Petrobrás realizou
09 apresentações em 04 Estados Nordestinos: Piauí (Valença, Picos e São Raimundo
Nonato); Ceará (Crato e Juazeiro do Norte), Bahia (Juazeiro da Bahia e Remanso) e
Pernambuco (Salgueiro e Petrolina), em que atingiu todos os seus objetivos e teve suas
expectativas de receptividade do público superadas. Destarte, numa discussão com o
ator e humorista João Cláudio Moreno, o Maestro Aurélio Melo resolveu pensar,
desenvolver e executar a CG.
Como a denominação do projeto já indica o seu eixo fundante, resta-nos apenas
repeti-lo. A CG é a apresentação de um conjunto de músicas autorais de Luiz Gonzaga,
arranjadas sinfonicamente e com o incremento da parte vocal, realizada por um ator e
humorista que consegue imitar de forma maestral a voz o Rei do Baião. Realizou
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diversas apresentações pelo Brasil, com destaque para três apresentações: a primeira
realizada no Projeto Artes de Março, no Teresina Shopping, a segunda foi a
apresentação realizada no Congresso Nacional, especificamente no espaço cultural do
Senado da República e a terceira foi a última apresentação do projeto, realizada em
Exu-PE, cidade natal de Luiz Gonzaga.
O que percebemos ao longo das análises de textos, vídeos, depoimentos e
entrevistas realizados foi de que o distanciamento institucionalizado outrora vigente
entre o erudito e o popular é desconstruído gradativamente, em tempos pós-modernos,
principalmente a partir de exemplos como o da CG. Inicialmente podemos
prematuramente perceber algo diferente no depoimento do Maestro Aurélio Melo, TV
Senado (2013):
Uma Orquestra Sinfônica do Piauí nunca será igual a uma Orquestra
Sinfônica de Brasília, nunca será igual a uma Orquestra Filarmônica de
Berlim. Não tem condições! Nenhuma Orquestra do Brasil tem condições de
chegar a uma Orquestra Filarmônica de Berlim, pois aquilo faz parte da
cultura deles. Mas tocar uma música de Luiz Gonzaga, tocar uma música de
Tom Jobim está mais no nosso sangue. Então porque não trabalhar em cima
disso?
Todavia, esta é a representação da alteridade que vem sendo ressignificada na
cultura de nosso povo. É por esta fusão cultural que percebemos que as culturas erudita
e popular aproximam-se de maneira negociada, a partir de suas realidades específicas e
extemporâneas. Após analisar as apresentações percebi o nexo entre as duas músicas.
Precisamos entender que entre música erudita e popular não há melhor ou pior, superior
ou inferior, são simplesmente diferentes, passíveis de imbricamento e absorção uma
pela outra. A liberdade de expressão caraterística da cultura popular e o canonismo do
erudito promovem uma nova emergência cultural, ressignificada, que pode ser lida,
negociada e de interesses diversos, por diferentes audiências agora.
A efusividade com que o público aplaude as apresentações das CG faz-nos crer
que a produção cultural do povo, representada pelas produções de Luiz Gonzaga, foi
absorvida pela dinâmica hegemônica da música erudita com bastante propriedade. A
cultura sertaneja consolidou-se como uma dinâmica de inclusão, gerando uma nova
forma de expressão artística. O distanciamento institucionalizado do popular em relação
ao erudito agora transformou-se em uma aproximação cultural. O Baião e o Forró são
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manifestações da identidade cultural brasileira, assim como o Samba e o Carnaval, e
apresentaram-se neste projeto como uma estratégia eficaz de aproximação do povo com
a música erudita de característica nordestina.
O reforço desta perspectiva é apoiado no entendimento do Entrevistado 02
quando solicitado a apresentar a expressão de seu sentimento ao tocar música popular
com arranjos eruditos durante a CG?
É como seu eu tivesse passando na peneira a força do povo nordestino. Esse
paradoxo que há: rico-pobre; feio-bonito; alto-baixo; magro-gordo
(verbalização acompanhada de expressão facial de negação) [...] Aquele
sorriso que você vê na hora que eu tô tocando... pra mim ali... eu estou no
céu, num diálogo com Deus... É corpo e espírito. [...] O povo brasileiro, o
povo piauiense está precisando de referência, de sorriso, de alegria [...] E pra
mim, a Gantata Gonzaguiana tem um gostinho especial, pois eu não nasci na
Alemanha, eu sou nordestino, nascido em Demerval Lobão. Então quando eu
coloco o chapéu de couro e toco um xote, um baião, um xaxado, eu digo aqui
sim, aqui é a minha casa.
5. PERCEPÇÕES E ÚLTIMAS CONSIDERAÇÕES
Numa época em que a música erudita pautava-se na autoafirmação de padrão
cultural único e melhor para a sociedade, negando-se veementemente a cultura do povo,
pois o atraso, a pequenez e a tradição próprias dela, fazia com que seu lugar fosse
inferiorizado, podemos defender apenas o preciosismo das melodias, a instrução e a
beleza sonora que nos encanta e desperta um prazer quase que inexpressível em
palavras. Todavia, foi possível observar neste estudo, dentro das ações da CG, que este
panorama vem sendo ressignificado.
A partir da revisão de literatura e da pesquisa bibliográfica realizada também
com o Projeto Concertos pelo Sertão, desenvolvido pela OST antes da CG e que serviu
de pedra fundamental para se pensar esta fusão entre o erudito e o popular, foi possível
analisar que a música erudita passou a ter um relacionamento mais próximo com um
público diversificado, diferente daquele que se digna apreciá-la e daquele que não a
conhecia. As dinâmicas de apresentação (ao ar livre, geralmente se uma acústica
apropriada), o locais eleitos (praças, igrejas, shopping, adros) e os municípios e
localidades em que as apresentações aconteceram têm relações estreitas com a música
popular, assim, apresentar uma música erudita a partir de composições em que o público
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se identifica, fez emergir novas formas artísticas com aproximações culturais antes
marginalizadas.
Parece-nos razoável começar a questionar se termos como música clássica,
música de concerto, música boa, música intelectual, música superior e a verdadeira
música, próprios do século passado, devem continuar sendo sinonimizados à música
erudita. Será que hoje seríamos capazes de responder com propriedade se a música Asa
Branca, de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira (1947), que encerra as apresentações da
CG, é uma música popular? É somente popular? Se é um clássico? Será que termos
como clássica, de concerto, boa, intelectual, superior e verdadeira podem ser aplicados à
música Asa Branca, tocada e cantada na CG?
O relacionamento direto, linear e horizontal que o erudito teve com o público
durante as apresentações da CG representou uma estratégia exitosa de aproximação
entre o erudito e o popular, que resultou em um dos principais objetivos que os projetos
culturais possam prosperar atingir. Vimos esse resultado na resposta do Entrevistado 02
ao ser indagado sobre que contribuições sociais a CG trouxe para a sociedade, quando
diz:
O conhecimento! O conhecimento! Porque o ser humano é o que ele vê, o
que ele escuta, o que ele geri. Então como é que o povo piauiense poderia
gostar, o povo nordestino, o povo brasileiro, gostar de uma música erudita, se
ele nunca escutou? Como é que um garoto pode gostar de uma sanfona se ele
nunca viu um puxado de fole? Gostar de um zabumba? [...] A Cantata
Gonzaguiana tornou isso possível.
Concluímos que as músicas erudita e popular redesenhadas na CG representam o
equilíbrio cultural que ambas devem possuir diante do público, pois apenas
diferenciam-se quanto a sua forma, som e estrutura, não sendo diferentes quanto à sua
altura, peso, tamanho e beleza. Na CG fica nítida a reciprocidade de suas contribuições
culturais uma com a outra, principalmente quando observamos uma música popular ser
enquadrada numa quadradura, numa melodia sinfônica e ao mesmo tempo uma
Orquestra Sinfônica de asas abertas, voando, livre e molejando-se à sonoridade
afroditiana do Baião de Luiz Gonzaga, sanfoneiro do sertão, brasileiro do Brasil, como
já proclamava o saudoso Luiz da Câmara Cascudo. (Grifo nosso)
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As concepções tradicionais de cultura e música erudita, de cultura e música
popular, já não mais dão conta das multifacetadas hibridações que cultura e música se
prestam, já cessaram historicamente e não servem para entender às simples, e ao mesmo
tempo complexas, imbricações culturais contemporâneas, como é o caso da CG. Para
este entendimento é preciso ladear com indiferença parcialidades e preconcepções, pois
a incompletude sobre o entendimento do outro nos reforça a compreensão de estarmos
quase sempre distantes do que seria a verdade. Ao contrário, a alteridade nos deve
proporcionar contribuições para uma melhor significação da multiculturalidade, em sua
característica estadunidense liberal como traz CANCLINI (1997) em sua produção El
malestar en los estudios culturales, que postula uma igualdade natural e uma
equivalência cognitiva entre as diferentes culturas.
A brevidade deste diálogo incontenta-nos o espírito disseminador de nossas
crenças, no entanto, findo estes superficiais comentários, sublinho a necessidade de
aprofundamento deste entremeio, de observações a partir de mais lugares plurais para a
evolução de um lugar que se não mais plural ainda, que clarievidencie processos
comunicacionais e culturais que permeiem inciativas artísticas, políticas e culturais
como o caso da CG. E ainda, pontuo a experiência das duas músicas em contextos ainda
mais eloquentes, como o da Orquestra Sanfônica de Teresina, que já influenciada pela
OST e pela CG, presta a oportunidade empírica de sentirmos esta energia musical que
traz o erudito e o popular fundidos em composições de Luiz Gonzaga e Dominguinhos.
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OS CORPOS DO CONSUMO: LEITURA
ENUNCIATIVA PARA AS CAPAS DE NOVA
E MEN'S HEALTH
Guilherme Di Angellis da Silva ALVES40
RESUMO: O presente artigo propõe uma leitura enunciativa para as capas da revista
Nova e Men's Health a partir dos trabalhos de Arendt, Foucault, Morin, Bauman e
outros. Pensa, com isso, o papel do consumo na formação da masculinidade hegemônica
e da feminilidade enfatizada expostas nas duas publicações. Os ideais e valores
industriais se inserem também na construção do corpo e do seu erotismo. Por meio das
manchetes, é possível pensar na produção e no consumo do corpo e do sexo. O consumo
como elemento integrador dos dois ideais de masculino e feminino.
PALAVRAS-CHAVE: Comunicação. Nova. Men's Health. Erotismo. Indústria
cultural.
ABSTRACT: The present article proposes a enunciative reading for the cover of the
magazines Nova and Men's Health. With that, thinks about the role of consume in the
formation of the hegemonic masculinity and emphasized femininity exposed in the two
publications. The industrial ideals and values are also inserted in the fabrication of the
body and its eroticism. Through the headlines, it is possible to think about the
production and the consume of the body and the sex. Consume as the integrator element
of the two ideals of masculine and feminine.
KEYWORDS: Communication. Nova. Men's Health. Eroticism. Cultural industry.
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A leitura enunciativa proposta no presente trabalho visa enunciar os principais
autores, teorias e conceitos para o estudo do objeto em questão, as revistas de
40
Doutorando em Comunicação pela Universidade de Brasília, linha de pesquisa Imagem e Som. Mestre
em Comunicação pela Universidade de Brasília, linha de pesquisa Jornalismo e Sociedade. Jornalista e
escritor.
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comportamento Nova e Men's Health, voltadas, respectivamente, para o público
feminino e masculino. Tal leitura não esgota o objeto, mas fornece as balizas teóricas
indispensáveis para a discussão proposta.
Ela será dividida em três partes: na primeira, estudos sobre sociedade de
consumidores e indústria cultural, a partir dos trabalho de Arendt, Foucault, Bauman e
outros. Na segunda, ideais e vivências do masculino e do feminino e a construção de
corpos-modelo e corpos de consumo, a partir de Connell e Hoff e dos autores da
primeira etapa. Por fim, o uso midiático do erotismo como retórica de persuasão para o
consumo, a lógica mercadológica de produção/consumo reafirmada nos procedimentos
do corpo, ele mesmo instrumento da indústria.
2.1 Leitura enunciativa: Animal Laborans, biopoder, sociedade de consumidores
Em A condição Humana (2010), Hannah Arendt descreve o trabalho, a obra e a
ação como as atividades fundamentais da vita activa, pois correspondem às condições
básicas sob as quais a vida foi dada ao homem na Terra. O trabalho é a atividade que
corresponde ao processo biológico do corpo humano. Sua condição é a própria vida.
Como os outros animais, temos de saciar as necessidades permanentemente repostas do
processo vital. A obra é a atividade que correspondente à não-naturalidade da
existência humana, que não está irremediavelmente presa no sempre-recorrente ciclo
vital da espécie e cuja mortalidade não é compensada por este último. Ela confirma a
nossa singularidade perante os outros seres ao dizer respeito ao legado não-natural do
passado. Sua condição humana é a mundanidade. Já a ação é a única atividade que
ocorre diretamente entre os homens, sem a mediação da matéria. Ela corresponde à
condição humana da pluralidade, condição fundamental de toda vida política, artifício
por meio do qual os indivíduos afirmam a sua presença única no mundo, por meio da
ação e do discurso.
Arendt (2010) mostra que nos primeiros estágios do capitalismo manufatureiro há
uma mudança no critério de definição do produto de fabricação humana. Se em um
período anterior, a finalidade do homo faber, o fabricante de mundo, era a criação de
objetos de uso, com o novo modelo econômico a finalidade da fabricação passa a girar
em torno do valor de troca.
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Por ser somente no mercado de trocas que um objeto pode adquirir valor em
relação a outro, o homo faber ganha espaço na esfera pública. Com isso, o homem
político perde o seu espaço, pois no mercado de trocas a relação entre os indivíduos se
dá na condição de fabricante de produtos, exibindo não a sua individualidade, mas suas
mercadorias.
Nesta mesma perspectiva, Foucault (2008) fala do homo oeconomicus, cria de
uma nova razão governamental que coloca o mercado como instrumento de veridição da
prática de governo. É ele que vai fazer com que o governo funcione com base na
verdade, verdade esta que é dada pelo mercado (FOUCAULT, 2008, p.45). O homo
oeconomicus permite que a arte de governar se regule de acordo com o princípio da
economia, tanto se tratando de economia política quanto de economia no sentido de
restrição e autolimitação – do governo e de si. Foucault descreve esse papel como um
átomo de liberdade diante de todas as condições restritivas e limitadoras de um governo
possível (FOUCAULT, 2008, p.370). Nesta relação, em que a liberdade só existe
enquanto o mercado permanecer pressuposto inquestionável, a invisibilidade e o
obscurantismo do processo são fundamentais. A mecânica econômica implica que cada
um siga seu próprio interesse e, ao fazer isso, também impede a compreensão da
totalidade do processo, para que possa combinar seus elementos constituintes artificial
ou voluntariamente. O sujeito econômico não contesta, mas funda o caráter atomístico
do processo econômico do qual está inserido.
A vitória do homo faber na era moderna representou também a generalização do
critério utilitário. A categoria de meios e fins, que diz respeito ao processo de
fabricação, foi introduzida como mentalidade nas mais diversas esferas da sociedade.
Com isso, o espaço privilegiado da contemplação dá lugar à ação como o mais elevado
posto, tornando a contemplação, outrora importante, sem sentido (ARENDT, 2010,
p.364). Outras consequências advindas com a era moderna foram a alienação do mundo,
a introspecção e a perda do senso comum.
O fato de que a moderna alienação do mundo foi suficientemente radical para
estender-se até a mais mundana das atividades humanas, a obra e a reificação,
à produção de coisas e à construção do mundo distingue as atitudes e
avaliações modernas ainda mais nitidamente daquelas da tradição do que
indicaria uma mera inversão de posições entre a contemplação e a ação, entre
a atividade de pensar e a atividade de agir. O rompimento com a
contemplação foi consumado não com a promoção do homem fabricante à
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posição antes ocupado pelo homem contemplativo, mas com a introdução do
conceito de processo na atividade de produção (ARENDT, 2010, p.376).
O critério utilitário do homo faber foi levado ao extremo com a
instrumentalização de tudo o que existe. O Animal laborans reduziu todas as atividades
humanas ao denominador comum de assegurar as coisas necessárias à vida e a produzilas em abundância. A vitória do trabalhador sobre o fabricante de objetos e o homem de
ação marca um novo limiar em que humanidade e animalidade têm suas fronteiras
diluídas. A fruição do mero estar vivo converte-se no horizonte da felicidade, esta
compreendida como saciedade.
Arendt (2010) diz que o evento decisivo da modernidade política foi a
instrumentalização da política pelo mero viver, o bem supremo. A vida se torna o valor
único. A partir desse entendimento, Foucault (2008) e Agamben (2002) trabalham o
conceito de biopolítica, que representa a inclusão da vida natural nos mecanismos de
poder estatal. A vida biológica ganha importância política na modernidade justamente
pelo seu aspecto sacro, mas também é por esse fator que ela é exposta ao poder
soberano da vida e da morte.
O fenômeno da biopolítica pode ser entendido como exercício cotidiano de um
poder que investe na preservação da vida por meio da aniquilação da própria vida, o que
leva Agamben também falar em tanatopolítica. Esse processo de inclusão da vida no
cálculo político conduziu à formação de estados totalitários, observável no nazismo e no
stalinismo, por exemplo. O valor – e o desvalor – da vida humana converte-se em tema
central da atividade política.
A inclusão da vida na política não é exclusiva dos regimes totalitários. Isso
também constitui as democracias liberais e de mercado.
O desenvolvimento do
capitalismo não teria sido possível sem o controle disciplinar de um biopoder, com
tecnologias diversas que proporcionaram os “corpos dóceis” tão fundamentais para o
sistema. Agamben mostra que a biopolítica do totalitarismo moderno e da sociedade de
consumo e do hedonismo de massa possuem as mesmas raízes e justificativas. Fala
também da decadência da moderna e do progressivo convergir com os estados
totalitários nas sociedades pós-democráticas espetaculares (AGAMBEN, 2002, p. 17).
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A vitória do animal laborans representa o apequenamento da estatura e dos
horizontes do homem moderno, para quem a felicidade é o último objetivo a almejar e
se mostra exclusivamente como saciedade e fastio. Com isso, a busca pela imortalidade
é substituída pela da longevidade anônima, o que traz consequências severas para a
política. Com a vitória do animal laborans, é a existência do mundo como obra do
homem que entra em discussão. É a permanente ameaça de ser tragado pelos processos
socialmente construídos para a busca e satisfação das necessidades, sempre pululantes,
que está em jogo na relação do animal laborans com o mundo.
Arendt mostra que quanto mais fácil se torna a vida em uma sociedade de
consumidores ou de trabalhadores, mais difícil é a possibilidade de se preservar a
consciência das exigências da necessidade que a compele. O perigo, alerta, é que tal
sociedade, deslumbrada pela abundância, e presa ao funcionamento aparentemente
orgânico de um processo interminável, já não seja capaz de reconhecer a sua própria
futilidade (ARENDT, 2010, p.167-168).
A verdade bastante incômoda de tudo isso é que o triunfo do mundo moderno
sobre a necessidade se deve à emancipação do trabalho, isto é, ao fato de que
o animal laborans foi admitido no domínio público; e, no entanto, enquanto o
animal laborans continuar de posse dele, não poderá existir um verdadeiro
domínio público, mas apenas atividades privadas exibidas à luz do dia. O
resultado é aquilo que eufemisticamente é chamado de cultura de massas; e o
seu arraigado problema é uma infelicidade universal, devida, de um lado, ao
problemático equilíbrio entre o trabalho e o consumo e, de outro, à
persistente demanda do animal laborans de obtenção de uma felicidade que
só pode ser alcançada quando os processos vitais de exaustão e de
regeneração, de dor e de alijamento da dor, atingem um perfeito equilíbrio. A
universal demanda de felicidade e a infelicidade extensamente disseminada
em nossa sociedade (que são apenas os dois lados da mesma moeda) são
alguns dos mais persuasivos sintomas de que já começamos a viver em uma
sociedade de trabalho que não tem suficiente trabalho para mantê-la contente.
Pois somente o animal laborans, e não o artífice nem o homem de ação,
sempre demandou ser “feliz” ou pensou que homens mortais pudessem ser
felizes (ARENDT, 2010, p.166).
A vitória do animal laborans pode ser compreendida, portanto, como uma
estratégia de domesticação do homem por meio do pathos, aqui compreendido como
desejo, como fome. Preso a necessidades artificiais, à construção social dessas
necessidades, ele dedica sua vida à obtenção dessa saciedade. Em um mundo em que o
tempo não pode mais ser divido entre trabalho e ócio, mas entre produção e consumo, o
animal laborans é um ávido trabalhador em um mundo de pouco trabalho. Esse sujeito
econômico, diz Foucault, é o homem do consumo, mas, na medida em que consome, é
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também um produtor, o produtor da sua satisfação. Ideal de satisfação, no entanto, que é
definido pelo próprio mercado, o poder agindo interna e obscuramente.
Dessa forma, o tempo excedente do animal laborans nunca pode ser empregado
em algo que não seja o consumo, e quanto maior é o tempo livre, mais ávidos e urgentes
precisam ser esses desejos. Com tal voracidade, nenhum objeto do mundo – nem
mesmo as próprias pessoas, como mostra Bauman (2008), pois elas são tanto sujeito
quanto objeto nesse processo – está a salvo do consumo e da aniquilação por meio dele
(ARENDT, 2010, 166).
É vital para o sistema produtivo a produção de consumidores, o que se realiza,
como mostra Arendt, na forma com que as mercadorias são exibidas e incorporadas à
vida social. Isso traz como consequência um tensionamento das subjetividades, a partir
de uma miríades de modelos de identificação e de vinculação obtidos pelo consumo.
A indústria cultural é parte estruturante neste processo, ao implantar na cultura
os mesmos pressupostos em vigor na produção econômica em geral: o uso crescente da
máquina e a submissão do ritmo humano de trabalho ao ritmo da máquina; a exploração
do trabalhador; a divisão do trabalho (COELHO, 2006, p.10). Se o aumento da
produção depende necessariamente do aumento do consumo – e, portanto, da destruição
daquilo que foi produzido – a insaciabilidade é condição indispensável ao processo. O
mal-estar advindo dessa busca irrefreável, verdadeiro trabalho de Sísifo, não é apenas
consequência de se viver em um sistema em que o consumo é elemento totalizador e
subjetivante: o mal-estar é também o combustível que move essa busca, ao estimular o
consumo e, consequentemente, aumentar a produção, ao exigir do sujeito constantes
reelaborações de si mesmo.
Uma dessas questões é a possibilidade de que o que se sente como liberdade
não seja de fato liberdade; que as pessoas poderem estar satisfeitas com o que
lhes cabe mesmo que o que lhes cabe esteja longe de ser “objetivamente”
satisfatório; que, vivendo na escravidão, se sintam livres e, portanto, não
experimentem a necessidade de se libertar, e assim percam a chance de se
tornar genuinamente livres. O corolário dessa possibilidade é a suposição de
que as pessoas podem ser juízes incompetentes de sua própria situação, e
devem ser forçadas ou seduzidas, mas em todo caso guiadas, para
experimentar a necessidade de ser “objetivamente” livres e para reunir a
coragem e a determinação para lutar por isso (BAUMAN, 2001, p.25).
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2.2 Leitura enunciativa: ideais e vivências do masculino e feminino, corpo-modelo,
corpo-discurso
A masculinidade hegemônica e a feminilidade enfatizada, expostas nas capas de
Men's Health e de Nova, assim o são por possuírem uma relação intrínseca no seu
comportamento e nas suas formações com o consumo. O corpo e o erotismo ali exibidos
são industriais, revelam o predomínio da técnica sobre a subjetividade.
Connell entende (1987, p.252) que as masculinidades hegemônicas passaram a
existir em circunstâncias específicas, abertas, portanto, à mudança histórica. Formas
anteriores de masculinidade podem ser substituídas por novas, justamente pelas relações
de poder entre todos os participantes.
O ideal de masculinidade também não precisa corresponder à maioria dos
homens. A vitória da hegemonia envolve a criação de modelos de masculinidade que
são especificamente figuras de fantasia. Mais importante que corresponder a tais
modelos, afirma, é sustentar tais imagens como normativas por meio de uma estratégia
coletiva em relação às mulheres e a masculinidades subordinadas.
Desse modo, as masculinidades hegemônicas podem ser construídas de forma
que não correspondam verdadeiramente à vida de nenhum homem real.
Mesmo assim esses modelos expressam, em vários sentidos, ideais, fantasias
e desejos muito difundidos. Eles oferecem modelos de relações com as
mulheres e soluções aos problemas das relações de gênero. Ademais, eles se
articulam livremente com a constituição prática das masculinidades como
formas de viver as circunstâncias locais cotidianas. Na medida em que fazem
isso, contribuem para a hegemonia na ordem de gênero societal (CONNELL,
1987, p.253).
Já as formas de vivência do feminino operam no nível das relações sociais
massificadas. A base essencial para a diferenciação, diz Connell, é justamente a
subordinação global das mulheres aos homens. Todas as formas de feminilidade na
nossa sociedade, afirma, são construídas no contexto dessa subordinação (CONNELL,
1987, p. 186). Por tal razão, não há feminilidade que possua a posição entre as mulheres
mantida pela masculinidade hegemônica entre os homens.
A forma definida em concordância com a subordinação e orientada para
acomodar os interesses e desejos dos homens é chamada de feminilidade enfatizada
(CONNELL, 1987, p.187). Outros modelos de feminilidade são definidos por
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estratégias de resistência ou não-cumprimento ou até mesmo pela complexa combinação
de cumprimento, resistência e cooperação. O inter-relacionamento dessas formas é parte
fundamental nas dinâmicas de transformação das ordens de gênero.
Como a masculinidade hegemônica, a feminilidade enfatizada é uma construção
cultural pública, embora seu conteúdo é especificamente conectado com o ambiente
doméstico. É um tipo de feminilidade performática, desempenhada especialmente para o
homens.
O corpo-modelo não é o corpo natural. É o corpo rigidamente trabalhado,
disciplinado por normas, técnicas e procedimentos específicos, destinados a maximizar
os ganhos e minimizar o tempo de produção. Manchetes prometem o corpo-modelo:
barriga magra, coxas grossas, braços fortes, ombros largos. E o prometem, por meio
desses procedimentos técnicos, com produtividade máxima: dietas com resultados quase
instantâneos, quase sem esforços; exercícios de musculação com eficiência e imediata.
O culto da produtividade aliado também ao corpo: maximização dos ganhos
corporais e estéticos a partir de estratégias cientificamente comprovadas e maximização
da obtenção de prazer por meio de técnicas, também embasadas por estudos
acadêmicos. Não só o culto da produtividade, mas a demanda gerada a partir dela: com
procedimentos tão simples e eficientes, como não, ou melhor, por que não aderir? Só
depende do sujeito essa adesão, e quanto maior for ela por parte das pessoas que o
cercam, maior a pressão para que ele a faça também.
Pois não são só os procedimentos técnicos da indústria que se introduzem no
corpo; são principalmente os valores que passam a operar na lógica de produção do
corpo e de sua erótica. Se o que apresentado naquelas capas é tido como modelo, como
ideal, por consequência, a não adequação é o seu oposto. Gera infelicidade, frustração,
mal-estar. Os sentimentos de identificação, de pertencimento, de aceitação e de
satisfação consigo são partes estruturantes do processo.
Tais mudanças beneficiam o comportamento industrial ao elevar a mentalidade
industrial de progresso no próprio cuidado com o corpo e com o sexo. Pode-se até
mesmo pensar em produção e consumo, lados da mesma moeda.
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Na primeira etapa, a produção do sexo, tem-se os cuidados com o corpo, o
aprendizado técnico, a conduta. Esse processo demanda gastos. O corpo da moda, a
roupa da moda, a técnica da moda têm seus custos de produção. Sexo não é conjunção
carnal de dois corpos nus, pois ninguém está realmente nu no sexo industrial. Os
participantes vestem máscaras, assumem papéis previamente concebidos. O ato começa
com a concepção do ser industrial, que é sexualmente atrativo porque carrega consigo
os valores propagados pela indústria.
Na segunda etapa, o consumo do sexo industrial, tem-se o sexo como válvula de
escape das tensões provocadas pelo trabalho repressivo. A nova jornada de trabalho,
surgida após importantes movimentos que exigiam melhores condições para os
trabalhadores, não leva o operário à exaustão física, mas a adequação do homem à
máquina e seu ritmo de produção mecanizado proporcionam um desgaste mental muito
grande. A conduta vitoriana (FOUCAULT, 2003, p.11), que reprimia o sexo sob todas
as formas que não a para fins procriativos, é abandonada por ser ineficaz nos novos
tempos. A conduta sexual é modificada para atender aos interesses produtivos e seu
consumo proporciona o relaxamento tão fundamental para o início de uma nova jornada
de trabalho.
Com respeito a isso confrontamos um novo e específico problema no mundo
ocidental – a guerra entre eros e tecnologia. Não existe guerra entre sexo e
tecnologia: as inovações tecnológicas ajudam a tornar o sexo seguro,
disponível e eficiente. Sexo e tecnologia se reúnem para alcançar o “ajuste”;
com a plena libertação da tensão nos fins de semana, pode-se trabalhar
melhor no mundo convencional às segundas-feiras. As necessidades sensuais
e a sua gratificação não estão em guerra com a tecnologia, pelo menos no
sentido imediato (se estão a longo prazo é outra questão) (MAY, 1973,
p.107).
O sexo ganha requintes industriais: ele é despersonalizado, padronizados com
normas e técnicas, regidos conforme a necessidade de indústria, que descaracteriza a
sexualidade e a insere dentro da relação produção/consumo, reduzindo Eros à
erotização, ao uso do corpo como ferramenta da indústria. O orgasmo atua como
medida de sucesso, elimina a subjetividade da relação, anuncia a infabilidade da técnica.
O homem perfeito (seja lá quem for) está ao alcance da leitora da Nova, desde que ela
consiga se utilizar dos macetes da reportagem. Caso não consiga, o insucesso é por sua
própria conta. As dicas infalíveis de sedução da Men's Health eliminam a subjetividade
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da mulher a ser seduzida. Não importa quem seja, tal a força da técnica, seu predomínio
sobre outras esferas.
O amante tecnologicamente eficaz, derrotado pela contradição que é a cópula
sem eros, acaba por tornar-se impotente. Perdeu a força de ser arrebatado e
sabe muito bem o que está fazendo. Os instrumentos deixam de ser uma
ampliação da consciência, passando a ser seus substitutos, e tendendo a
recalcá-la e truncá-la (MAY, 1973, p.109).
É preciso levar em conta também nesse processo de produção e consumo do
corpo e da sexualidade o quão disciplinador é o débito, a dívida. Paga-se a crédito esse
investimento com o corpo e nesse sexo, cujo resultado será a aceitação, o sentimento de
sucesso, de vitória, de progresso. Todos os valores mais enaltecidos pela sociedade
retraduzidos nesses novos investimentos. Tal investimento, no entanto, tem como
contrapartida a necessidade de se estar sempre produzindo, sempre recebendo dinheiro
para poder arcar com gastos. O espaço público invadido pelo privado. São os shoppings,
os condomínios de luxo fechados, os residenciais privativos, os clubes etc. O consumo
permeia todas as relações – e a disciplina é conduzida de forma a obrigar o trabalhador a
produzir caso ele queira consumir – produção e consumo do corpo, produção e consumo
do sexo também. Sempre se está um passo atrás do corpo-modelo. Sempre se está em
dívida em relação a ele. Tal débito é disciplinador desse conduta, forçando sempre o
investimento – ou as consequências da negação dele. A esteira da academia é também a
roda do hamster.
2.3 Leitura enunciativa: Mídia e Erotismo
O século XVIII dá início a uma abordagem científica do erotismo ao tratá-lo sob
a ótica da razão (CAMARGO; HOFF, 2002, p.58), mas é o século seguinte que vem
inaugurar a noção de sexualidade, por meio de todos dispositivos oriundos daquilo que
Foucault (2003) denominou scientia sexualis, que incluem a formação de saberes e
sistemas de poder que regulam sua prática e as formas de reconhecimento. A
sexualidade é justamente o correlato dessa prática discursiva desenvolvida e estruturada
lentamente. É um discurso que estabelece verdades científicas e normas regulamentares
para a sexualidade, atuando sobre o corpo, determinando o que deve ou não ser feito, o
que é saúde ou doença, e prescrevendo procedimentos adequados para a cura e para a
prática sexual.
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Em O Nascimento da Biopolítica (2008), Foucault argumenta que o estado
moderno integrou numa proporção sem precedentes técnicas de individualização
subjetiva e procedimentos objetivos de totalização; um duplo vínculo político,
constituído pela individuação e pela simultânea totalização das estruturas do poder.
Vemos como na sociedade de consumo esse duplo vínculo se fortalece. Como elemento
unificador, totalizante; consumo também como caminho subjetivante e identificatório.
Vemos ainda o papel de uma indústria cultural que condiciona e legitima esses
discursos sobre o corpo: “E diante de fenômenos como o poder midiático-espetacular,
que está hoje por toda parte transformando o espaço político, é legítimo ou até mesmo
possível manter distintas tecnologias subjetivas e técnicas políticas? (AGAMBEN,
2002, p.13)”.
O desenvolvimento do capitalismo não teria sido possível sem o controle
disciplinar de um biopoder, com tecnologias diversas que proporcionaram os “corpos
dóceis” tão fundamentais para o sistema. Agamben (2002) mostra que a biopolítica do
totalitarismo moderno e da sociedade de consumo e do hedonismo de massa possuem as
mesmas raízes e justificativas. Fala também da decadência da modernidade e do
progressivo convergir com os estados totalitários nas sociedades pós-democráticas
espetaculares. Arendt, antes de Agamben, argumenta em A Condição Humana que o
evento decisivo da modernidade política foi a instrumentalização da política pelo mero
viver, o bem supremo. A vida se torna o valor único.
A sociedade de consumidores adapta a concepção do modelo discursivo médicocientífico da scientia sexualis às relações mercadológicas, constituindo uma nova
medicina do corpo, um novo controle. Primeiro, a compreensão da sexualidade do
corpo, depois a associação da saúde à estética e a construção de padrões de corpo e de
beleza, amplamente divulgados pela mídia.
Tal dispositivo, diz Foucault, gerou um “falar de” que possibilitou a construção
e a difusão de um “fazer” normatizado, em uma nova forma de realização do erótico. Na
mesma perspectiva, Morin mostra como a indústria cultural associou o erotismo com o
próprio movimento do capitalismo moderno. O dinheiro, sempre insaciável, se dirige a
Eros, sempre subnutrido, para estimular o desejo, o prazer e o gozo, chamados e
entregues pelos produtos lançados no mercado. É o que ele chama de expansão vertical
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do capitalismo, que invade o reino dos sonhos, acorrenta a libido e domestica Eros.
Morin (2002, p. 122) diz que ao utilizar o desejo e o sonho como ingredientes no jogo
da oferta e da procura, o capitalismo soube impregnar a vida humana de um onirismo e
de um erotismo difusos.
O erótico passa a ser regido pelo econômico. Dentro daquilo que Lévy (1996)
chama de virtualização, ele perde a sua essência e a sua força criativa a partir do
momento em que a mídia procede de maneira semelhante à scientia sexualis na criação
de verdades e na divulgação e controle do discurso erótico. O erotismo midiatizado
produz um corpo-discurso, construído na mídia para significar e ganhar significados nas
relações midiáticas. É imagem, texto não-verbal que representa um ideal e dilui a
subjetividade e a dispersividade dos corpos de natureza e de cultura (CAMARGO;
HOFF, 2002, p.27). É um simulacro cuja função é difundir e propagar o discurso do
poder. Relaciona a saúde à estética, desagrega valores gerontocráticos, acentua a
desvalorização da velhice e promove valores juvenis.
Esse processo de virtualização do erótico e de apropriação econômica dele, em
que ele se dissolve nas funções mercadológicas e está presente em todas as redes de
exercício do poder, acarreta na dissolução do seu próprio potencial criativo. Objetivado
pela economia, ele perde suas representações locais e determinantes da moral, perde sua
subjetividade. Prevalece o caráter físico, ou seja, aquilo que é expresso no corpo como
erótico, que permitirá tratá-lo como mercadoria e, como tal, terá valor somente o que
dele for observável universalmente.
O novo entendimento do erótico faz com que ele não seja religioso, pois sua
ligação com o começo e a vida prende-se ao plano natural. Não é político,
porque não é ideológico, e nem regulador da convivência social. Também
não é moral, pois não propõe práticas de melhoria de vida – sonhos e utopias
– e porque a consciência de eternidade prevê viver mais e não viver melhor.
Desprovido da dimensão intelectual e marcado pelo código econômico, quase
não se distingue do pornográfico. Está presente em todas as formas
discursivas, sempre numa dimensão econômica, e não mais como erótico
propriamente dito (CAMARGO; HOFF, 2002, p.46).
Esse erotismo midiatizado carrega consigo elementos da scientia sexualis e da
ars erotica. Do primeiro, o investimento direto sobre o corpo e a sexualidade, além da
construção de um falar de e um fazer específicos às questões. Do segundo, a
constituição de um poder que é imposto pelo indivíduo para si mesmo, não por meio da
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lei e do chicote, mas voluntária, por exercícios e cuidados. As estratégias de coerção
existem e são severas, mas dependem da voluntariedade do sujeito durante o processo,
por meio da identificação com esses padrões de beleza, como será discutido na leitura
argumentativa. A sanção a quem não se submete a tais padrões depende da inserção
social do indivíduo e diz respeito à sua imagem perante os outros e a si mesmo.
Como Morin e outros mostram, cabe à indústria cultural o papel normatizador do
corpo e da sexualidade, além da tarefa de instigar, por meio desses olimpianos, a
vontade para seguir tais códigos de conduta. O corpo-modelo da mídia tem de tornar
aparente aquilo que, enquanto ideia, não passa de abstração, difícil portanto de ser
comunicado. O corpo-modelo é um corpo-síntese. Nesta perspectiva, as revistas de
comportamento analisadas nesta leitura enunciativa cumprem função fundamental.
REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte:
Ed. UFMG, 2002.
ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida.Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2001.
______. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadoria.Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2008.
CAMARGO, Francisco Carlos; HOFF, Tânia Márcia Cezar. Erotismo e mídia. São
Paulo: Expressão e arte editora, 2002.
COELHO, Teixeira. O que é indústria cultural. São Paulo: Brasiliense, 2006.
CONNELL, R.W. Gender and power. California: Stanford University Press, 1987.
FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
______; História da sexualidade v.1. São Paulo: Graal, 2003.
LÉVY, Pierre. O que é o virtual?. São Paulo: Ed. 34, 1996.
MAY, Rollo. Amor e vontade: Eros e repressão. Petrópolis: Vozes, 1973.
MORIN, Edgar. Cultura de massas no século XX: neurose. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2002.
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A REPRESENTAÇÃO DOS VILÕES ATRAVÉS
DAS FASES DA TELENOVELA BRASILEIRA
Leonardo Sá SANTOS41
RESUMO: Este artigo visita as três fases da telenovela brasileira – sentimental, realista
e naturalista – com o intuito de examinar a natureza dos vilões desse tipo de produção,
personagens geralmente representados como pessoas extremamente atraentes e
abastadas. Tendo como base os estudos de algumas das principais pesquisadoras da
área, o trabalho investiga a função da vilania na estrutura narrativa das novelas
televisivas e como beleza, riqueza e maldade são características associadas há mais de
sessenta anos de teledramaturgia.
PALAVRAS-CHAVE: Telenovela; vilões; televisão; ficção.
ABSTRACT: This article visits the three phases of Brazilian telenovela – sentimental,
realist and naturalist – aiming to examine the nature of the villains of these productions,
characters usually represented as extremely attractive and rich people. Based on the
studies of some of the leading researchers in the field, the paper investigates the role of
villainy in the narrative structure of telenovelas and how beauty, wealth and evil are
associated characteristics for over sixty year of fictional television production.
KEY-WORDS: telenovela; villains; television; ficcion.
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Beleza, elegância e os mais diversos atos de maldade reverberam em uníssono
nas telenovelas produzidas no Brasil. Corpos atraentes são responsáveis por carregar
mentes frias, que calculam e executam assassinatos, roubos, torturas físicas e
psicológicas. Para ganhar ou manter status de poder, os vilões dessas produções até se
divertem ao manchar seus os impecáveis trajes com o sangue de quem se coloca em
seus caminhos.
41
Acadêmico do curso de Comunicação Social, com habilitação em Radio e TV, da Universidade Federal do
Maranhão (UFMA).
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Resistentes de mansões imponentes, donos de estilos sofisticados e luxuosas
maneiras de viver, os principais antagonistas das novelas televisivas são geralmente
apresentados como pessoas belas, refinadas e abastadas. Com poucas exceções, pode-se
notar algo comum no principal gênero ficcional da TV brasileira: “veem-se personagens
honestas e descentes porque são pobres e conclui-se que o dinheiro conspurca e
degrada, que o dinheiro serve, mas é sujo” (PALLOTTINNI, 2011, p. 131). Assim, é
possível perceber que os vilões são reconhecidos pelo universo de aparências que os
rodeia. Universo de aparências belas, claro, e, na maior parte das vezes, sustentadas pelo
dinheiro.
A construção do imaginário de vilões belos nas telenovelas brasileiras pode ser
notada, por exemplo, nas obras de Gilberto Braga42, responsável por sucessos como
Celebridade (2003), Paraíso Tropical (2007) e Insensato Coração (2011)
43
. O autor é
apontado como especialista em mostrar os desequilíbrios econômicos nas produções
que assina e, em seus roteiros, riqueza e poder ditam a postura dos personagens
principais. “Rico pode e deve poder tudo; pobre deve humilhar-se e manter-se humilde.
Rico é bonito e elegante, sabe viver; pobre é feio, desprezível e menor no mundo
ficcional do autor Gilberto Braga” (PALLOTTINNI, 2011, p. 131).
As novelas de Braga não são casos isolados e tal construção também pode ser
percebida em obras roteirizadas por outros autores. Em Fina Estampa (2011), Agnaldo
Silva apresentou a dicotomia através da protagonista Pereirão (Lília Cabral) e da vilã
Tereza Cristina (Christiane Torloni). Como o apelido sugere, Pereirão era uma mulher
rústica, de classe social baixa, trabalhadora, humilde, de personalidade explosiva, mas
simpática, além de possuir uma aparência descuidada por valorizar mais o bem estar da
família do que o seu próprio. Já Tereza Cristina era má, ostentava uma vida de luxos,
estava sempre bem vestida, elegante e tinha um mordomo que não lhe poupava elogios.
Assim como em Fina Estampa, maldade acrescida de beleza física também pode ser
notada em Amor à Vida (2013), Salve Jorge (2012), Avenida Brasil (2012) e tantas
outras produções de exibidas em horários e emissoras diferentes.
42
Autor brasileiro de telenovelas e minisséries.
Produções exibidas pela Rede Globo às 21h, janela de exibição de maior audiência da televisão brasileira,
conhecida como “horário nobre”.
43
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Fruto dos questionamentos surgidos no projeto de pesquisa “Maldade em outra
ótica: feiúra moral sob o véu da beleza na narrativa da telenovela”, desenvolvido no
departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão (UFMA),
este artigo se propõe averiguar a história da telenovela brasileira, seus primórdios e
fases, com o objetivo de entender a natureza sedutora de seus vilões e a relevância
narrativa dessa característica estética para o sucesso do produto midiático em que é
inserida.
2. TELENOVELA EM FASES
Segundo os estudos da pesquisadora Maria Immacolata Lopes (2009), a história
da telenovela brasileira pode ser categorizada em três fases: sentimental, realista e
naturalista. Cada período com características próprias, marcados por estilos narrativos
peculiares.
A fase sentimental foi predominante na década de 1950, juntamente com as
primeiras telenovelas exibidas no país, e perdurou até o ano de 1967. O estilo foi
caracterizado pela forte exploração das emoções, a fim de comover o público e envolvêlo através de situações que, muitas vezes, não tinham qualquer proximidade com a
realidade do dia a dia do telespectador da época. Havia uma linha mais tênue em relação
as origens do secular gênero novela, nascido nas infindáveis canções feitas e
reproduzidas por trovadores, que hibridizavam histórias dos mundos da realidade e da
imaginação. “Em primeiro lugar, nota-se que, na origem, a novela era ou podia
enredada, entrançada, literalmente enovelada; podia ser ainda inverossímil, exatamente
a acusação que mais se faz à telenovela” (PALLOTTINI, 2011, p. 32).
Lançada em 1966, pela Rede Globo, Sheik de Agadir é indicada como um
modelo típico do período dos sentimentos, pois apresentava “seus personagens de
nomes estrangeiros vivendo dramas pesados, diálogos formais e figurinos pomposos,
ambientados em tempos e lugares exóticos” (LOPES, 2009, p. 25). Aparentemente uma
trama ordinária, sobre uma donzela disputada fervorosamente por dois homens, a
produção ganhou subtramas e outros elementos puramente fantasiosos, chegando até a
mostrar heróis árabes montados a cavalo, armados com espadas, e soldados nazistas no
mesmo contexto. Ao fim da trama, a delicada princesa Éden de Bassora, interpretada
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pela adolescente Marieta Severo, foi desmascarada como autora de uma série de
assassinatos cometidos no decorrer da trama.
O atual modo de produção de telenovelas nacionais é reconhecido pela
retratação do cotidiano, com abordagem de dramas mais comuns a quem assiste e se
identifica com as obras. “A telenovela tem tido, no Brasil, uma espécie de coautoria: a
da realidade e a da sociedade” (PALLOTTINI, 2011, p. 66). Já nas produções típicas do
período sentimental, não havia busca pela mimetização do comum e elas se prendiam ao
escapismo, como em O Rei dos Ciganos (1966), que contou a história de Wladimir
(Carlos Alberto), um cigano que se apaixona por Wanda (Sônia Clara), moça disposta a
abdicar da vida de luxos na nobreza austríaca para se dedicar ao romance. No caminho
dos dois ficou o charmoso conde Fernando Racozy (Andé Villo), homem que fez de
tudo para separar a casal.
A estrutura com abordagem distante da realidade brasileira foi predominante em
várias outras obras das décadas de 1950 e 1960, sobrepondo-se aos demais modos de se
dramatizar na televisão. Mas pode-se perceber que durante o período também foram
transmitidas novelas televisivas mais cotidianas, todavia, que não tinham qualquer
ambição além da raiz melodramática do gênero. 0-5499 Ocupado (1963), por exemplo,
tinha o clássico drama amoroso, mas sem a necessidade abrir-se tanto ao mundo
fantástico.
Beto Rockfeller (1968) inaugurou a fase realista na teledramaturgia nacional,
dando início a “uma mudança na telenovela brasileira que vai distanciá-la, sempre mais,
do modelo melodramático e maniqueísta da novela clássica” (MOTTER, 2003, p.51). A
produção da Rede Tupi ignorou várias características da fase anterior e implantou em
sua narrativa qualidades que permanecem até hoje nas obras nacionais, como o uso da
linguagem coloquial do dia a dia, abordagens de pautas comuns a quem acompanha os
capítulos diariamente, personagens complexos, humor e realização de gravações
externas para retratar a vida diária. “Esse paradigma trouxe a trama para o universo
contemporâneo das grandes cidades brasileiras” (LOPES, 2009, p. 25).
Com autoria de Cassiano Gabus Mendes e Bráulio Pedroso, Beto Rockfeller se
afastou das terras árabes e europeias para mostrar abismos sociais do final da década de
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1960. O desejo por uma vida bem sucedida, em um país em pleno desenvolvimento, é
representado pela dúbia figura do vendedor de sapatos Alberto (Luís Gustavo), que
assumiu o pseudônimo que nomeia a telenovela para penetrar no mundo dos milionários
de São Paulo. O personagem viveu dois extremos, de morador de um bairro simples ao
de um falso magnata assíduo nos pontos mais frequentados pela elite paulistana. A obra
aproximou telespectador à história contada, pois conseguiu reunir “as ansiedades
liberalizantes de um público jovem, tanto masculino quanto feminino, recém-chegado à
metrópole, em busca de instrução e integração nos polos de modernização” (LOPES,
2009, p. 25).
O país e sua identidade começaram a ganhar cada vez mais espaço na
dramaturgia de televisão, mostrando “a vocação da novela em mimetizar e em renovar
constantemente as imagens do cotidiano de um Brasil que se ‘moderniza’” (LOPES,
2009, p. 25). As telenovelas se transformaram em espaços onde as pessoas passaram a
enxergar a si mesmas em um ambiente crível. As tramas longínquas e ilógicas passaram
a ser preteridas, dando espaço a visões mais próximas à vida habitual, típicas do período
realista. Tempo e espaço fictícios passaram a refletir a nação contemporânea.
As histórias de um romantismo primitivo, que se passavam em lugares
e épocas distantes e exóticos, com personagens esquemáticas e
nenhuma ligação com o mundo brasileiro, sucederam enredos mais
realistas, reconhecíveis pelas pessoas comuns dentro de seu mundo
comum, enredos que cobrem, é verdade, quase tão somente a parcela
das pessoas que vivem entre a pequena classe média e o universo dos
milionários; mas que, de qualquer forma, tocam, ainda que às vezes
ligeiramente, um mundo real de carências, vícios e miséria
(PALLOTINI, 2011, p. 165)
Sem o ar poético, o linguajar comum adotado a partir de 1968 ajudou a
massificar as telenovelas, que se tornaram produtos mais acessíveis. Personagens
excêntricos deram lugar aos inspirados em pessoas comuns, mudança que facilitou a
aproximação do público com as tramas exibidas. “Suas personagens vão se afastando do
mundo maravilhoso da pura fantasia rumo a um mergulho progressivo e gradual no
mundo social concreto. Vivem num cotidiano tenso, perpassado de problemas,
angústias, impotências” (MOTTER, 2003, p. 43).
Pode-se perceber também que a vilania abandou condes e princesas, formando
raízes na privilegiada alta sociedade brasileira. A sensual Raquel (Eva Wilma) foi
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destaque na primeira versão de Mulheres de Areia, lançada em 1973 pela Rede Tupi,
trama em que se torna rica ao usurpar a insípida irmã gêmea, Ruth. Já em Dancin’ Days
(1978), Joana Fomm interpretou Yolanda Patrini, uma mulher invejosa, egoísta e, claro,
elegante milionária.
A década de 1990 trouxe consigo a fase naturalista da telenovela brasileira. As
obras se tornaram fortes meios de denúncia e problematização do país, sendo
responsáveis pela criação de relações íntimas entre o telespectador e diversos problemas
sociais, muitos dos quais pouco conhecidos pelo grande público até serem retratados nas
produções seriadas. As novelas de TV desse período, que ainda é predominante
atualmente, são reconhecidas por “sintetizar o público e o privado, o político e o
doméstico, a notícia e a ficção, o masculino e o feminino, está inscrita na narrativa das
novelas que combina convenções formais do documentário e do melodrama televisivo”
(LOPES, 2009, p. 26). As criações dos autores, diretores e atores deixaram de ser
consideradas meras cópias romantizadas da vida real, como na fase anterior, passando a
ter o status de agentes de influencia na sociedade atual.
O período naturalista é caracterizado pela fusão entre as clássicas tramas
românticas e as diversas temáticas políticas e sociais. Histórias sobre amores perdidos e
conquistados são acrescidas de mensagens socioeducativas sobre a preservação do meio
ambiente, sexo seguro, desaparecimento de crianças, trabalho infantil, dependência
química, pedofilia, preconceito racial, violência nas cidades, imigração, síndrome de
Down, e várias outras questões. Sendo assim, o que era entretenimento puro “se
converte em lugar privilegiado para discussão e reavaliação do atual modelo de
sociedade” (MOTTER, 2003, p. 42). As abordagens são realizadas diretamente nas
narrativas das telenovelas, que passam a ser responsáveis pela introdução das temáticas
ao público, que assimila assuntos anteriormente superficialmente abordados ou tratados
como tabu.
Os ensinamentos dramatizados nas novelas televisivas mais recentes receberam
o nome de merchandising social. A Rede Globo foi responsável por sistematizar e
instituir o uso desse recurso comunicativo, que é a base da fase naturalista. O conteúdo
educativo implícito à grande parte das produções veiculadas há mais de duas décadas é
percebido quando um personagem enfrenta problemas para se livrar do vício em álcool
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ou quando é discriminado pela cor da pele, tenta superar as barreiras impostas pela
dislexia ou é segregado pela origem humilde. Também não é raro que muitas situações
da realidade sejam acrescentadas na ficção através de depoimentos de pessoas que
passaram por circunstâncias semelhantes. A relevância do marketing social é ressaltada
pelos estudos de Maria Immacolata Lopes, que apontam o recurso como forte
influenciador nas aprovações do estatuto do idoso, do estatuto do desarmamento e da lei
Maria da Penha.
As telenovelas atuais cumprem a chamada função pedagógica explícita do
melodrama, que “se apresenta de forma deliberada e cujo discurso traz explicações,
conceituações e definições, enfim, forma opinião, acerca dos temas sociais abordados”
(LOPES, 200, p. 33). As produções assinadas por Glória Perez são nítidos exemplos do
funcionamento desse artifício narrativo, pois abordam temas de relevância, mas pouco
esclarecidos. Barriga de Aluguel (1990) inovou ao retratar o desenvolvimento de
embriões em úteros “alugados” por mulheres que não podem entrar em gestação; a
internet e as relações construídas virtualmente foram temas de Explode Coração (1995),
produção lançada bem antes da popularização da rede mundial de computadores; O
Clone (2001) abordou a evolução da ciência genética e os malefícios das drogas; e
América (2005) denunciou os perigos passados por brasileiros como imigrantes ilegais
nos Estados Unidos.
Vilões de Perez também são construídos com base no marketing social das obras
naturalistas. Em Caminho das Índias (2009), Letícia Sabatella interpretou Yvone, uma
mulher bonita, charmosa e de índole má, como é de se esperar de uma vilã, porém a
autora se preocupou em explicitar que as atitudes friamente calculadas da personagem
eram fruto de sua psicopatia. Diálogos expositivos eram usados frequentemente para
alertar o público sobre a natureza dos psicopatas. Eram comuns as intercalações entre as
cenas de Yvone e do psiquiatra Castanho (Stenio Garcia); enquanto ela adotava
diferentes personalidades e cometias crimes diversos, o médico ficava responsável por
elucidar os comportamentos típicos de um psicopata. As falas explicitamente didáticas,
abominadas na ficção cinematográfica, são aceitáveis para a proposta educativa das
telenovelas atuais, que devem abordar temas da forma mais clara possível a um público
plural.
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Bem diferente do período sentimental, os autores de hoje também se preocupam
em “criar caracteres que tenham raízes na realidade, que sejam verossímeis e que,
evoluindo ao longo da longa história, conservem em sua trama o mínimo de coerência
desejável. (PALLOTINI, 2011, p. 166). Em Salve Jorge (2012), Glória Perez cunhou a
vilã Lívia Marine (Cláudia Raia) inspirada nos grandes chefes das redes de tráfico de
mulheres brasileiras, com o claro objetivo de denunciar esse tipo de crime tão pouco
tocado até o lançamento da obra. Resta saber se todos os traficantes de pessoas são tão
alinhados quanto Lívia.
3. O LADO SÁDICO DA BELEZA
Mesmo com a difusão das ideias humanistas e naturalistas emurchecendo cada
vez mais as superstições de origem religiosa no mundo ocidental, até o Renascimento
acreditava-se que a beleza era uma característica intrínseca às pessoas justas e de
coração puro, aos escolhidos por Deus como portadores dessa qualidade física. Um
corpo belo significava bondade, espiritualidade e nobreza. “Isso conduz mais
profundamente ainda à hierarquização segundo os critérios de moralidade: determinar a
perfeição estética ligando-a ao Bem” (VIGARELLO, 2006, p. 28). Do outro lado, entre
os séculos XIV e XVII, a feiura e as diversas anomalias corporais eram comumente
consideradas resultados do pecado, da perversão e da maldade. A aparência anormal era
mal vista e as pessoas com deformidades físicas eram postas à margem da sociedade
devido à crença que suas feições eram originadas por atos diabólicos.
Nos dias atuais, esses tipos de associações não são mais correntes, porém, na
ficção, boa parte dos filmes, livros, seriados norte-americanos, histórias em quadrinhos
e desenhos animados também retratam a aparência física como reflexo da conduta moral
de seus personagens. É comum observar protagonistas delicados e atraentes sendo
perseguidos por vilões com corpos disformes, cicatrizados e monstruosos. Super-heróis
salvam cidades de antagonistas com aparências sinistras, que servem como aviso para o
perigo; bruxas com verrugas, grandes narizes pontiagudos e mãos finas como garras são
constantemente vistas caçando príncipes e princesas desafortunados; homens
desfigurados são enfrentados por atléticos rapazes. Em Harry Potter, série de sucesso na
literatura e no cinema, Tom Riddle abdica do aspecto de um ser humano comum para
tornar-se Voldermort, vilão de assustadora aparência ofídica.
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Nota-se que a telenovela brasileira foge do modelo apresentado acima ao
sempre representar seus antagonistas principais através de atores e atrizes conhecidos
não só pela desenvoltura nas artes dramáticas, mas também por seus corpos atraentes. É
possível observar que essa escolha é feita desde os primórdios da teledramaturgia
nacional, sendo percebida entre as telenovelas das fases sentimental, realista e
naturalista. A partir do período em que as produções realistas predominaram, a ligação
entre a maldade e a monstruosidade corpórea ficou ainda distante das novelas
produzidas no país. Pode-se notar que mesmo as aparências ordinárias de corpos
fisicamente normais são ignoradas diante da rigorosa exigência pelas belezas mais
refinadas características dos vilões, que precisam causar temor, mas, ao mesmo tempo,
seduzir os demais personagens e o público.
3.1 Princesa Éden de Bassora
Linda, delicada, rica e assassina em série. A personalidade pudica das princesas
dos contos de fadas pouco tem a ver com a da princesa árabe Éden de Bassora (Marieta
Severo), vilã de Sheik de Agadir. Na telenovela que, como já citado, foi um marco para
o período sentimental, Éden passa a cometer todos os tipos de crime para conseguir ter
os sentimentos correspondidos pelo homem amado, o sheik Omar Ben Nazir (Henrique
Martins).
Figura - Marieta Severo como Éden de Bassora - Fonte: ISTOÉ44
44
Disponível em: http://www.terra.com.br/istoegente/157/celebridade/index.htm. Acesso em abr. 2014.
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Com roteiro livremente inspirado no romance Taras Bulba, de Nicolai Gogol, a
produção teve autoria de Glória Magadan e começa quando o sheik que batiza a
produção se apaixona pela princesa europeia Jeanette Legrand (Yoná Magalhães), que
então é raptada da França para Agadir, no Marrocos. Com o objetivo de transformá-la
em uma odalisca e conservá-la distante dos rivais, Omar mantém a moça em seu
palácio. Os fatos despertam os ciúmes de Éden de Bassora, que passa a usar diversas
artimanhas maliciosas para afastar o sheik e a francesa.
Enquanto os dramas amorosos se desenrolavam, um misterioso assassino era
responsável pela morte de vários personagens. Apelidado de Rato devido à destreza
com que se movia na escuridão da noite, o criminoso tinha as mãos cobertas por luvas
focadas enquanto asfixiava alguém. Após matar, o homicida deixava uma tarântula
sobre o corpo morto, como uma marca registrada de seus atos. O mistério que rondava a
identidade do Rato cresceu até o último episódio, quando foi revelado que a princesa
Éden era a responsável pelo grande número de assassinatos em Agadir.
As telenovelas sentimentais não precisavam ser verossimilhantes com a
realidade e, por isso, uma adolescente franzina matando com as mãos soldados maiores
e mais hábeis em combate não chega a parecer tão incoerente dentro do mundo
diegético proposto. A resolução é aceitável porque personagens das novelas de TV
podem ser desenvolvidos para “cumprir uma função anteriormente designado pelo
autor, mesmo que isso seja feito à custa de uma caracterização superficial, contraditória,
cheias de vácuos e incongruências” (PALLOTTINI, 2011, p. 168). Tratando-se de uma
trama construída sem uma base fiel à realidade, não houve necessidade alguma de um
desfecho mais sólido.
A princesa usava a fragilidade para passar despercebida, chegando, em
determinado ponto da trama, a fingir ser paraplégica. Os demais personagens não
poderiam esperar que uma jovem cadeirante pudesse ser fisicamente capaz de cometer
tais façanhas. No caso de Sheik de Agadir, a aparência nobre da vilã serviu como
suporte para o suspense que a obra gerou. Éden não parecia ser capaz de ir além dos
atos passionais mais leves para separar os protagonistas, mas acabou recebendo o título
de primeira serial killer da TV brasileira.
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3.2 Odete Roitman
Em Vale Tudo (1988), Beatriz Segall viveu Odete Roitman, uma das mais
expressivas vilãs das telenovelas brasileiras. A personagem ficou conhecida por sua
frieza, pelo estilo elegante com que costumava aparecer em cena e pelo mistério da
identidade de seu assassino, que efetuou três tiros contra seu corpo, poucos dias antes
do final da trama.
Vale Tudo é exemplar como novela da fase realista, que faz “opção por uma
definição clara no tempo e no espaço – quase sempre o cenário contemporâneo situado
no âmbito da nação” (LOPES, 2009, p. 25). As principais obras feitas entre o final da
década de 1960 e 1980 comumente abordavam as diferenças econômicas e sociais
brasileiras, a polarização entre riqueza e pobreza, interior e capital, tradicional e
moderno. Odete surge como representação de um desses extremos, desempenhando o
papel de mulher orgulhosa, que tenta usar o dinheiro como uma prova de superioridade.
Ela não poupava críticas ao Brasil, lugar que considerava apenas execrável.
Os atos da vilã faziam jus ao título da produção e, para ela, tudo era realmente
válido: assassinato do próprio filho, envenenamento, golpes, chantagem, traição e
tortura psicológica. Mesmo sendo tão maldosa quanto os vilões das produções
sentimentais, ela se diferenciava por ser atual e, de certo modo, representar a classe alta
do final da década de 1980.
Embora sem nenhum traço de dualidade, ela era apenas má e não mostrava
sentimentos que equilibrassem essa característica, a personagem foi uma retratação mais
real como antagonista. É mais fácil crer em uma persona como Odete Roitman agindo
em uma grande cidade brasileira do que na vilania excêntrica de lugares e tempos
puramente imaginários.
3.3 Félix
Prisão, morte, fuga e loucura são finais típicos para vilões das telenovelas.
Contudo, Amor à Vida (2013) divergiu do modelo padrão e antecipou a punição de
Félix (Matheus Solano), que não sofreu nenhuma das consequências recorrentes.
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Cercado por uma vida de luxo e conhecido por desprezar tudo e todos, o
antagonista viu a própria vida mudar ao ser expulso de casa, após ter seus crimes
revelados. Sem emprego, cartões de crédito ou lugar para morar, o vilão teve que se
abrigar em um bairro simplório de São Paulo e sobreviver como vendedor de cachorro
quente na Rua 25 de Março, conhecido ponto de comércio popular na capital paulista.
Roupas caras começaram a se desfazer, pratos de restaurantes finos foram trocados por
porções de macarrão instantâneo, o carro confortável deu lugar ao transporte público
lotado e a aparência impecável transformou-se em um semblante cansado.
Para um vilão arrogante e soberbo como Félix, conviver com o tipo de pessoas e
estilo de vida que sempre menosprezou foi uma eficaz punição. Ser obrigado a encarar
uma maneira de viver completamente diferente do que estava acostumado desencadeou
o processo de redenção do personagem, que, pouco a pouco, passou a ser mais humilde,
cordial e arrependido pelas atitudes maldosas que cometeu, mas sem perder o
característico humor ácido.
Como telenovela típica da fase naturalista, Amor à Vida apresentou uma forte
mensagem socioeducativa inserida em seu contexto: a aceitação das diferenças. Por não
ter o amor do pai, que não aceitava sua homossexualidade, Félix passou a cometer atos
maldosos e cruéis, incluindo o sequestro e abandono da sobrinha recém-nascida em uma
caçamba de entulho, apenas por ter ciúme da irmã preferida pelo pai. Apesar dos
roteiristas de telenovelas não serem obrigados a construir experiências e traumas do
passado que expliquem os atuais comportamentos dos personagens que criam
(PALLOTTINI, 2011), o autor Walcyr Carrasco deixa claro que seu vilão não seria
capaz ou precisaria causar tantos malefícios se tivesse sido aceito pelo pai. Neste caso, o
marketing social funcionou como o que aponta Maria Immacolata.
Para que ocorra é necessário que haja, por exemplo, referência a medidas
preventivas, protetoras, reparadoras ou punitivas; alerta para causas e
consequências associadas ou quanto a hábitos e comportamentos
inadequados; valorização da diversidade de opiniões e pontos de vista
(LOPES, 2009, p.38)
O final da telenovela foi marcado pelo primeiro beijo entre dois homens da
teledramaturgia nacional, protagonizado Félix e Niko (Thiago Fragoso), e as pazes entre
o pai conservador e o vilão regenerado. O desfecho ressaltou a importância do respeito
próximo independentemente de quem se escolhe amar.
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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A telenovela brasileira transformou-se durante seus mais de sessenta anos de
história, modernizou-se e ganhou novas maneiras de ser contada. O que não se
modificou durante todas essas décadas foi a aparência dos vilões, que sempre foram
atraentes, bem vestidos e elegantes. Crueldade, sadismo, brutalidade e frieza são
características necessariamente associadas à beleza desde as primeiras obras realizadas
no país até as que são exibidas atualmente.
Mesmo na fase sentimental, período em que os autores mais se rendiam aos
artifícios fantasiosos e buscavam comover o público através do exagero, os vilões já
eram representados através de atores fisicamente atraentes. As telenovelas do período
não tinham qualquer compromisso com a busca pela verossimilhança com o mundo
real, porém, não desenvolviam seus vilões como figuras monstruosas, como fazem
outros gêneros que também não se prendem à realidade, mas já traziam a beleza aliada
às mentes malignas e corruptas. Personagens como o conde Fernando Racozy e a
princesa Éden comprovam que os antagonistas das novelas não se impõem apenas
através das típicas atitudes perversas, mas também pelo refinamento de suas aparências.
A demanda pela mimetização do cotidiano brasileiro, que fez com que as
produções realizadas no período realista se tornassem menos fantasiosas, também
resultou na realocação dos vilões. Eles abandonaram os figurinos, penteados e falas
pomposos e se aproximaram do comum, mas nunca com fisionomias banais, sempre
belos e vistosos. A fase foi dominada pela encenação da polarização do país, sobretudo
pela retratação das diferenças riqueza e pobreza, contudo, os personagens maus não
transitaram com equidade entre múltiplos ambientes sociais, sendo postos
majoritariamente nas classes sociais mais privilegiadas. A representação da vilania
ganhou vida por meio da figura de empresários, coronéis, socialites, fazendeiros,
políticos, grandes chefes de organizações criminosas e outros tipos poderosos
facilmente encontrados em qualquer zona urbana ou rural do país. O dinheiro, nesses
casos, era responsável por garantir estilos de vida luxuosos, que ascendiam os vilões até
posições vantajosas contra os delicados mocinhos.
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Com o passar dos anos, eles continuaram a ter a função de movimentar a trama
principal das telenovelas e, partir da década de 1990, passaram a receber a função de
carregar de mensagens socioeducativas. Os vilões continuam buscando ganhar mais
poder ou criar empecilhos aos casais protagonistas, mas suas atitudes passaram a
possuir traços didáticos, mostrados de maneira implícita ou explícita. Os antagonistas
atuais se mantêm atraentes e perigosos, mas contribuem para a naturalização de
assuntos poucos conhecidos pelo grande público por meio do merchandising social.
Diferente de outros gêneros e formatos ficcionais, as telenovelas raramente
apresentam aparências assustadoras como reflexo da degradação moral de um
personagem malicioso. Os vilões da chamada “narrativa da nação” são criados para
seduzir e até instruir.
REFERÊNCIAS
LOPES, Maria Immacolata V. Telenovela como recurso comunicativo. Matrizes, São
Paulo, Ano 3, n. 1, p. 21-47, ago./dez. 2009.
MOTTER, Maria Lourdes. Ficção e Realidade: A Construção do Cotidiano na
Telenovela. 1. ed. São Paulo: Alexa Cultural, 2003.
PALLOTTINI, Renata. Dramaturgia de televisão. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2012.
VIGARELLO, Georges. História da beleza: o corpo e a arte de se embelezar, do
Renascimento aos dias de hoje. 1. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006.
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A INFLUÊNCIA DO FAIT DIVERS NAS
POSTAGENS COLABORATIVAS DO
YOUTUBE QUE MIGRAM PARA “CICLO
DO JORNALISMO INTEGRADO”
Marcelli ALVES45
Resumo: Estudar as postagem colaborativa que são escolhidas para serem utilizadas em
um telejornal de referência é um dos anseios do trabalho que elegeu como o corpus de
pesquisa o site youtube, o telejornal, Jornal Nacional, e o site de notícias G1,
disponível. Observa-se que um novo ciclo da notícia surge com o cibermeio utilizado
em complementação à televisão, denominado aqui como “Ciclo do Jornalismo
Integrado”. O referencial teórico está embasado nas teorias do newsmaking e a do
gatekeeper, além da análise dos materiais serem feitas à luz da semiologia de Barthes,
com ênfase no Fait Divers.
Palavras- chaves: Youtube. Jornal Nacional. G1. Fait Divers.
Abstract : Studying the collaborative post that are chosen to be used in a newscast
reference is one of the desires of the work that elected him as the corpus search youtube
site, news, National Journal, and the G1 news website available. Observe that a new
cycle of news comes with the ciberway used to complement the television, called here
as "Journalism integrated cycle". The theoretical framework is grounded in theories of
newsmaking and the gatekeeper, and the analysis of the materials being made in the
semiotics ligth of Barthes, emphasizing the Fait Divers.
Keywords: Youtube. National Journal. G1. Fait Divers.
45
Jornalista, doutoranda em Comunicação pela UNB. Professora assistente do curso de Jornalismo da Universidade
Federal do Maranhão (UFMA), campus de Imperatriz. E-mail: [email protected]
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1. INTRODUÇÃO
Muito tem se falado sobre o impacto das novas tecnologias no jornalismo.
Várias possibilidades estão sendo apresentadas por estudiosos e novas termologias
também têm sido inseridas na área da comunicação. Este artigo trata sobre essas
questões, já que propõe uma termologia “Ciclo do Jornalismo Integrado” e surgiu
depois de pesquisas relacionadas ao tema oriundas do grupo de pesquisa G Mídia –
Grupo de Pesquisa de Mídia Jornalística e migrou para o processo de doutoramento, em
andamento da UNB – Universidade de Brasília.
Mediante a tantas nomenclaturas que surgem a partir do processo de
convergência depara-se com o estudo sobre a utilização do vídeo amador e o processo
que o mesmo está vivendo atualmente. O trabalho investiga o site de compartilhamento
de vídeos youtube, o telejornal Jornal Nacional – JN ( Rede Globo) e o site de notícias
ligado à Central Globo de produções, intitulado G1. Ou seja, a imagem bruta postada no
youtube se transforma em telerreportagem e posteriormente em notícia no hipertexto no
site G1 e retornando para o youtube, desta vez como notícia editada do Jornal Nacional (
é importante dizer que o fluxo não é linear, o que é estático é a origem, sempre no
youtube e o seu retorno também. Mas ela pode ir primeiro para o G1 – em formato de
hipertexto – e depois para o Jornal Nacional, ou vice versa). Ou seja, o ciclo sempre
começa e termina no youtube.
O motivo da escolha da rede de compartilhamento de vídeos youtube em
detrimento de outras se fez em função da relevância da rede em questão. De acordo
com Burgess, Jean (2009, p. 144) o youtube representa “uma apropriação normal, calma
e embasada no discurso, no qual a mídia de massa e citada e recombinada, em que a
mídia caseira ganha acesso público”.
A pesquisa empírica permite a afirmação de que essa plataforma de
compartilhamento de vídeos é um meio de o cidadão contribuir para o que
anteriormente os autores chamavam de jornalismo colaborativo ou cidadão. Acredita-se
que esse (jornalismo participativo ou cidadão) deixa o espaço, antes bastante explorado
no ciberespaço, e vem também para a notícia aliada a imagem, na televisão. Em relação
à termologia em voga Dan Gillmor (2004) afirma que nomes como Jornalismo
participativo e Jornalismo cidadão são sinônimos da idéia de intercâmbio entre quem
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produz a notícia (jornalista) e quem consome (expectador). Sobre o assunto Manuel
Castells (2006) afirma que faz parte da chamada era da informação:
É um período histórico caracterizado por uma revolução tecnológica
centrada nas tecnologias digitais de informação e comunicação,
concomitante, mas não causadora, com a emergência de uma estrutura
social em rede, em todos os âmbitos da atividade humana, e com a
interdependência global desta atividade. (CASTELLS, 2006, p. 225).
No entanto, essa questão ganha força, rapidez e agilidade com a nova realidade
tecnológica. A discussão é longa, alguns pesquisados temem que essa nova modalidade
migre e passe a ser controlada demais. “Alguns veem um mundo sem gatekeeper, outro
um mundo onde os gatekeepers têm um poder sem precedentes. Mais uma vez, a
verdade está no meio termo”. ( HENRY JENKINS, 2009, p 46). O youtube marcaria
então uma nova fase da televisão?
A escolha do telejornal do canal aberto, Jornal Nacional, como corpus de estudo
em questão junto com o site youtube e o G1 não foi ao acaso. Ele foi eleito em função
ser apresentado por pesquisas de opiniões públicas como o primeiro lugar de audiência
no horário nobre da televisão brasileira por anos consecutivos. Além disso, o telejornal
em questão traz enraizada em sua história uma postura editorial oposta ao
sensacionalismo. Por manter o seu critério em relação à qualidade da imagem o
telejornal em questão também prima em relação a publicar apenas aquilo que estiver
dentro dos padrões Globo de qualidade, previstos nos princípios editoriais das
organizações Globo.
O portal de notícias G1 foi eleito por fazer parte da Central Globo de Televisão e
utilizar com frequência textos e vídeos oriundos dos telejornais da rede Globo.
Exemplo do fluxo na imagem do vídeo amador quando as mesmas seguem a
orientação do ciclo: redes sociais – televisão – site de notícias – redes sociais. Em um
momento inicial, de forma empirica, inferimos que o fator determinante para que um
vídeo pudesse migrar e entrar para o “Ciclo do Jornalismo Integrado” seria o número de
acessos, no entanto, ao realizar as análises estatística percebeu-se que nem sempre isso é
determinante para que o vídeo migre. Essa pergunta ainda está em busca de uma
resposta pois faz parte do estudo, em andamento, do projeto de doutoramento da
pesquisadora.
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É importante ressaltar que os vídeos que alimentam o site youtube e que ganham
notoriedade por meio da televisão registram fatos que poderiam permanecer no
anonimato não fossem às novas tecnologias. No entanto, os vídeos amadores não são
materiais jornalísticos, mas sim, produtors que servem para alimentar o jornalismo.
2. O “CICLO DO JORNALISMO INTEGRADO” E AS TERMOLOGIAS
Novas modalidades de comunicação e também termos surgem com a velocidade
nas quais as transformações oriundas dos impactos tecnológicos influenciam no dia a
dia dos seres comunicantes. Uma das expressões em voga é o termo “líquido” para
relacionar com as novas formas da comunicação. Segundo Lúcia Santaella (2007, p. 34)
a metáfora do líquido representa que no atual momento tudo está em permanente estado
de “desmontagem”, sem nenhuma perspectiva de permanência.
“Já não há lugar,
nenhum ponto de gravidade de antemão garantido para qualquer linguagem, pois todas
entram na dança das instabilidades. Texto, imagem e som já não são o que costumavam
ser.”
Anelise Rublescki (2011), também discute a termologia e desenvolve o termo
“Jornalismo líquido”. Para ela, a termologia está relacionada à reconfiguração do
jornalismo a uma nova ecologia midiática, a partir da cultura da convergência. Sabe-se
que a termologia, em diversas perspectivas, vem sendo estudada desde a década de
1970. Sobre este assunto Jenkins (2009) é claro:
[...] um serviço que no passado era oferecido por um único meio – seja a
radiodifusão, a imprensa ou a telefonia – agora pode ser oferecido de
várias formas físicas diferentes. Assim, a relação um a um que existia
entre um meio de comunicação e seu uso está se corroendo. (JENKINS,
2009, p. 37)
Percebe-se que diferentes níveis midiáticos possibilitam a atuação de forma
complementar. Alex Primo (2008) discorre sobre três níveis midiáticos propostos por
Thornton (1996 apud PRIMO 2008): mídia de massa, mídia de nicho e micromídia. A
interconexão entre os três níveis midiáticos é chamada pelo autor de “encadeamento
midiático.”
Ainda sobre as termologias adotadas na tentativa de explicar os novos
acontecimentos recorre-se a Thais de Mendonça Jorge (2007). A autora traz o termo
mutação da biologia para o campo comunicacional. No seu argumento, Jorge (2007)
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justifica que a notícia passou por toda trajetória de organismo vivo, transformou-se mais
uma vez e passou a assumir novos formatos, em discussão específica o hipertexto.
Em relação à trajetória do jornalismo na Internet percebe-se que várias etapas já
surgiram. Estudos embasados em autores nacionais como Suzana Barbosa (2007), Elias
Machado (2008), Luciana Mielniczuk (2001 e 2003) e Vilson Santi (2009) classificam a
evolução do webjornalismo em fases que ficaram assim conhecidas: webjornalismo de
primeira, segunda, terceira chegando à quarta geração. As gerações eram analisadas por
meio de metáforas. Quando surgiu a quarta geração muitos acreditavam que seria a
última fase, pois sugere, entre outros, o desenvolvimento de sistema de gestão de
conteúdos mais complexos e baseados em softwares e linguagens de programação com
padrão open source. No entanto, Fabiane Grossmann e Mielniczuk (2010) instigam a
reflexão sobre o surgimento da quinta geração do webjornalismo. As autoras afirmam:
Uma quinta geração de webjornais será possível quando suas interfaces
passem a ser pensadas não apenas em termos de metáforas, mas
principalmente elaboradas a partir de estratégias comunicacionais. Tal
visão propõe que se dê um passo adiante na questão do pensar as
estratégias para a elaboração da interface, porque não basta ao webjornal
estabelecer estratégias naquele sentido institucional, empresarial,
conhecido como planejamento estratégico. É necessário que sejam
também pensadas as estratégias comunicacionais constituintes das
interfaces gráficas, uma vez que serão estas que irão atender aos objetivos
comunicacionais do referido formato de jornal: atrair, conquistar o leitor
ou um novo leitor. (GROSSMANN E MIELNICZUK, 2010, P. 01)
Ainda relacionada ao jornalismo na internet, Gabriela Zago (2011) explora uma
nova concepção em se tratando da circulação da informação nas redes sociais. A autora
sugere o termo ‘recirculação’ e parte do princípio de que um mesmo indivíduo pode
consumir uma informação e fazê-la circular. Ou seja, ao consumir, é possível se
apropriar da informação, transformá-la em um novo enunciado e fazê-la recircular.
2.1 A relação do “Ciclo do Jornalismo Integrado” com as teorias da Comunicação
A teoria do newsmaking inclui em seus estudos, principalmente, a forma em que
se desenvolve o relacionamento entre fontes primeiras e jornalistas, além das etapas da
produção informacional, em se tratando tanto do nível de captação até a sua
distribuição. Segundo Mauro Wolff (2005), trata-se de um estudo ligado à sociologia
das profissões, no caso o jornalismo. O autor afirma que ao estudar a termologia do
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newsmaking faz-se necessário o entendimento do termo gatekeeper no processo de
produção da informação. Ele é utilizado na tentativa de entender as escolhas dos
critérios de noticiabilidade, ou seja, ele se justifica quando faz um comparativo entre a
termologia gate (que significa portões em inglês) e a aproxima do processo de produção
da notícia. O autor diz que o fluxo de notícias precisa passar por diversos gates
(portões) que na prática seriam as decisões tomadas pelo jornalista. Ou seja, o
gatekeeper precisa decidir se vai escolher determinada notícia ou não. “Se a decisão for
positiva, a notícia acaba por passar pelo “portão”, se não for a sua progressão é
impedida, o que na prática significa “morte” porque significa que a notícia não será
publicada” ( WOLFF, 2005, p. 150).
Os jornalistas na qualidade de editores passam a ser chamado de gatekeeping.
Para encontrar justificativa ao termo, Wolff ( 2005) recorre a outros teóricos:
Com o advento do jornalismo on line e as constantes discussões sobre o
jornalismo colaborativo que o mesmo proporciona veio à tona um novo termo, o
gatewatching, modelo que passou a existir com o advento da Internet. Esse é discutido
como oposição ao gatekeeper. Axel Bruns (2005) diz que o gatekeeper está em
extinção. Para ele, o processo se inverteu e o leitor, telespectador ou ouvinte se
transformou em gatewatcher da informação. João Canavilhas ( 2010) apresenta um
pensamento similar:
Para além dos próprios media utilizarem estes canais, os leitores
chamaram a si esta atividade, funcionando como uma espécie de novo
gatekeepers que comentam e selecionam as notícias mais interessantes
para os seus amigos (facebook) ou seguidores ( Twitter). (
CANAVILHAS, 2010, p. 3).
Sabe-se que existem normas profissionais que encabeçam a seleção da
informação. Pierre Bordieu (1996, p. 25) diz que "os jornalistas têm óculos especiais a
partir dos quais veem certas coisas e não outras e veem de certa maneira as coisas que
veem. Eles operam uma seleção e uma construção do que é selecionado". Nelson
Traquina (2005) concorda com o autor e atribui a esses “óculos” os valores notícias e os
dividem.
Servem de “óculos” para ver o mundo e para o construir. Sublinhamos,
como o historiador Mitchell Stephens, as “qualidades duradouras” do que
é notícia ao longo do tempo: o insólito, o extraordinário, o catastrófico, a
guerra, a violência, a morte, a celebridade. Mas os valores notícia não são
imutáveis, com mudanças de uma época histórica para outra, com
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destaques diversos de uma empresa jornalística para outra, tendo em
conta as políticas editoriais. (TRAQUINA, 2005, p. 95)
Para o autor os valores-notícia são divididos entre os de construção e os de
seleção. Traquina (2005) diz ainda que os critérios de seleção são subjetivos e estão
relacionados à avaliação dos fatos de acordo com a sua importância, ele os define da
seguinte maneira: morte, notoriedade, proximidade, relevância, novidade, tempo,
notabilidade, inesperado, conflito ou controvérsia, infração e escândalo. Os valoresnotícia eleitos pelo autor como critérios contextuais são: disponibilidade, equilíbrio,
visualidade, concorrência e dia noticioso.
2.2 A influência do Fait Divers nos valores notícias dos vídeos amadores
Sabe-se que o estudo da comunicação contemporânea sofre a influência de
vários pensadores franceses. Um dos pensamentos adotados nesse trabalho é oriundo do
francês Roland Barthes que encabeça o campo da semiologia (estudos de todos os
sistemas de signos). Foi Barthes também o precursor nos estudos do Fait Divers,
termologia que está relacionado à imprensa sensacionalista:
Muitas vezes, o rótulo sensacionalista está ligado aos jornais e programas
que privilegiam a cobertura de violência. Entretanto, o sensacionalismo
pode ocorrer de várias maneiras. É possível afirmar que todo o jornal é
sensacionalista, pois busca prender o leitor para ser lido, e
consequentemente, alcançar uma boa tiragem. (AMARAL, 2006, p. 20)
Danilo Angrimani (1995, p.16) define o sensacionalismo como o produto que
visa “tornar sensacional um fato jornalístico que, em outras circunstâncias editoriais,
não mereceria esse tratamento.” O autor, enfatiza que ao enquadrar um veículo nessa
denominação automaticamente se está afastando de mídias conhecidas como ‘sérias’.
Barthes (1971 p.263) caracteriza o Fait Divers com o seu sentido aterrorizante
“análoga a todos os fatos excepcionais ou insignificantes, em resumo anônimos”. O
autor complementa afirmando que existem dois tipos de Fait Divers: o da causalidade e
o da coincidência. Para o autor a causalidade está sempre vinculada a um absurdo, a
narrativa sempre segue a desproporção entre o efeito e a causa. Já a coincidência e
ressaltada pelo autor: “leva sempre a imaginar uma causa desconhecida, tanto é verdade
que na consciência popular o aleatório é sempre distributivo, nunca repetitivo”
(BARTHES, 1966, p.194). De forma geral, o Fait Divers não trata de assuntos oficiais,
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mas, sim, de drama de pessoas comuns. Dessa forma, faz com que o leitor se reconheça
nas histórias que de maneira geral poderia ser sua.
Barthes (1971) subdivide as categorias do Fait Divers. Em relação ao da causa
esperada o autor a desmembra em causa perturbada e causa esperada. O autor simplifica
dizendo que a causa perturbada é quando se desconhece ou não é possível precisar a
causa de tal fato e ainda, quando uma pequena causa provoca um grande efeito. “Causa
perturbada: há o desconhecimento causal ou quando uma pequena causa provoca um
grande efeito; Causa Esperada: quando a causa é normal, a ênfase recai nos personagens
dramáticos — criança, mãe e idoso (BARTHES, 1971, p. 276-271).
Em relação à causa esperada Barthes (1971) explica que se dá quando a causa é
corriqueira considerada normal e normalmente explora personagens dramáticos que
podem proporcionar comoção. De forma geral envolve crianças, mães ou idosos. Em se
tratando do Fait Divers da coincidência o autor o divide em da repetição e o da antítese.
A repetição é tratada quando uma informação acontece de forma repetida e leva o
receptor a supor causa desconhecidas, que acontecem em aspectos diferentes. A antítese
ocorre quando se assemelham dois termos de qualidade distante, ou seja, ela une dois
termos opostos, e consegue estabelecer a fusão de dois percursos diferente em um
único. Uma de suas formas de expressão é o cúmulo (a má sorte), figura da Tragédia
Grega.
Partindo desse princípio e relacionando o mesmo com vídeos amadores que
ganharam espaço no Jornal Nacional e passaram a fazer parte do que denominamos de
“ciclo do jornalismo integrado”, percebe-se em várias postagens a presença do Fait
Divers.
2.3 A análise do Fait Divers no vídeo amador
Essa pesquisa realizou análises empíricas em semanas dos anos de 2011, 2012 e
2013. Nesse período foram observados o telejornal intitulado Jornal Nacional, a
plataforma e compartilhamento de vídeos na internet, youtube, e o site de notícias G1. A
intenção foi identificar as imagens oriundas do youtube, a sua migração para a televisão,
a transformação em hiperlink e o seu retorno como vídeo de telejornalismo na
plataforma de origem.
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Os critérios estipulados pela análise levaram em consideração a identificação do
vídeo amador e as características comuns entre eles, separando as amostras de forma
intencional. As semanas eleitas para análise foram escolhidas como recorte em função
de que após a análise anual dos materiais as respectivas datas apresentam vídeo amador.
(2011 – 14 a 22 de Dezembro - 2012 – 10 a 18 de Janeiro e 25 a 31 de Julho - 2013 – 28
de janeiro a 01 de Fevereiro, 07 a 14 de Julho)
Após a realização da análise empírica do material percebeu-se que a presença do
vídeo amador não é constante, ou seja, ele não acontece em todas as semanas. No
entanto, atentou-se também que grande parte deles apresenta características semelhantes
em relação à presença do Fait Divers.
Partindo para análise estatística o resultado sobre a presença do vídeo amador
durante a semana é alterado de acordo com o fato. Por exemplo, assuntos de pequena
repercussão, não são explorados em outras edições, portanto, a busca por novos vídeos
ou a utilização do mesmo limita-se a apenas uma entrada. Diferente de fatos que
ganham repercussões mais acirradas. Começaremos com a análise de um vídeo que após
ser postado no youtube ganhou repercussão significativa. Na postagem, a imagem de
uma enfermeira chamada Camila Corrêa Alves de Moura Araújo dos Santos chutava e
jogava um cão da raça yorkshire no chão. Após a agressão o cão morreu. A atitude da
enfermeira foi feita na frente da sua filha, uma criança de aparentemente três anos. Esse
material foi utilizado por três vezes na cobertura do Jornal Nacional. O fato aconteceu
no ano de 2011.
No ano de 2012, nas semanas elencadas, foram encontradas duas postagens com
a utilização de vídeos amadores. A primeira trata de uma suposta agressão de Policiais
Militares a um estudante da Universidade de São Paulo – USP, no campus da
instituição. Vídeos postados no youtube e explorados no Jornal Nacional mostravam a
agressão que ocorreu durante a desocupação de um espaço que era usado pelo Diretório
Central dos Estudantes (DCE), esse material foi utilizado por duas vezes na semana. A
outra postagem relacionada ao ano de 2012 fala da investigação de um policial por ter
realizado um disparo durante um sequestro relâmpago na cidade do Rio de Janeiro. O
material relata que uma mulher foi sequestrada na porta de uma escola a polícia foi
chamada e encontrou os bandidos. Um deles foi baleado. A polícia diz que o infrator
tinha reagido, mas as imagens evidenciavam que no momento do disparo o assaltante
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não esboçava nenhuma reação. Ainda na reportagem o Secretário de Segurança do Rio
de janeiro, José Mariano Beltrame, afirmou que os policias seriam submetidos a
processo de expulsão sumária.
Após a descrição dos materiais analisados é notório que a agressão, a morte, a
infração a lei e a violência estão presentes em todas as postagens descritas. Esses itens
corroboram para inferir que os mesmos contêm componentes do Fait Divers.
Nos jornais não-sensacionalistas há sempre uma carga intensa de
violência que não se revela, que não se escancara com a mesma
intensidade encontrada nos jornais a sensação. Mas é uma violência
disfarçada (ANGRIMANI, 1995, p. 57)
A sequência dos materiais analisa semanas do ano de 2013. A primeira a ser
contemplada refere-se ao assassinato do Mc Daleste. O Mc foi assassinado durante um
show que realizava. O que ilustrou o material foram as imagens de celulares de fãs
postadas no youtube e mostravam o momento em que ele foi atingido. Após a
divulgação da morte outras imagens foram postadas, uma delas serviu para a polícia
realizar a investigação, na busca de conseguir diagnosticar de onde o tiro tinha sido
disparado. A análise das imagens pela polícia foi acompanhada pelo Jornal Nacional.
Sobre essa situação recorre-se a José Arbex (2001, p. 52) quando o autor diz “O que
importa nos atuais programas de telejornalismo, é o impacto da imagem, assim como o
ritmo de sua transmissão”. Essa mesma linha de pensamento pode ser aplicada relativa
às imagens que serviram para a cobertura de um fato que explorava que a disputa pela
direção de sindicatos terminava com tiros em São Paulo. “Onde há morte, há
jornalistas” (TRAQUINA, 2005, p. 79) e complementa “a morte é um valor-notícia
fundamental para essa comunidade interpretativa e uma razão que explica o negativismo
do mundo jornalístico que é apresentado diariamente nas páginas do jornal” (Idem,
p.79).
Na sequência da análise tem-se o fato de um avião bimotor que caiu logo após a
decolagem em Manaus. As imagens de um cinegrafista amador que acompanhava o
momento da queda foram postadas no youtube e utilizadas pelo Jornal Nacional. Notícia
que evidencia a tragédia, assunto constante no Fait Divers. Fato semelhante na
cobertura da notícia relacionada ao fato do acidente de balão que deixou três brasileiros
mortos e oito feridos na Turquia.
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Imagens de violência também são evidenciadas na cobertura de quatro outros
casos de materiais analisados. Um deles, fala sobre os depoimentos de PM´s que
contradizem as informações da polícia sobre a prisão de estudante em protesto e a outra
é relacionada a manchete de que um rapaz morre baleado em feira agropecuária em
Goiânia. Ambos os materiais evidenciam imagens de cinegrafista amadores que
respaldam a informação sobre o assunto. Marilena Chauí ( 1999) define violência como
um ato de brutalidade. Para ela é a sevícia e abuso físico e/ou psíquico contra alguém e
caracteriza relações subjetivas definidas pela opressão e intimidação e complementadas
pelo medo do terror. A autora vai além quando se refere a imagem do mal. Para ela são
imagens relacionadas ao espetáculo que causam indignação e compaixão e acalmam a
consciência.
O outro material analisado, relativo ao ano de 2013, relata um incêndio em uma
boate com o nome kiss localizada na cidade do interior do Rio Grande do Sul, Santa
Maria. O fato que ficou conhecido também como tragédia de Santa Maria teve um
número de 242 mortos. Na cobertura desse fato foi utilizada com frequência a utilização
de imagens postadas no youtube. Cobertura que evidencia o Fait Divers de Barthes
(1971) quando se refere à superexploração do trágico, da morte, da dor. Barthes (1971)
A definição leva a um paralelo com o pensamento de Barthes ( 1971) quando o mesmo
refere-se a condição de sujeito que para o autor é conflituosa e muitas vezes trazida pelo
Fait Divers. O autor justifica que é um efeito em nível de consciência mantidas pelo
incosciente por meio da qual o telespectador se reconhece e vive aquilo como se fosse
seu.
Outros dois seguem a mesma ótica de observação. Um deles trata da depredação
da prefeitura contra o aumento da passagem de ônibus no Rio Grande do Sul e o outro
explora a chacina em São Paulo que acabou por deixar sete pessoas feridas.
Para complementar o assunto mais uma vez recorre-se a Barthes ( 1971) quando
o autor explica que o Fait Divers trabalha com um sistema de significação subjetivo, ou
seja, ele denota a factualidade presente ao mesmo tempo que conota o conflito. O Fait
Divers representa uma interpelação narcísica com o receptor que o identifica de forma
projetiva os seus conflitos inconscientes comparando-os com os conflitos da
informação.
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Os outros dois materiais analisados são os relativos ao incêndio na boate kiss e a
outra sobre a denúncia da defesa dos direitos humanos sobre o massacre de mais de 65
pessoas na Síria. O primeiro assunto é relativo a um incêndio que aconteceu em uma
boate com o nome kiss localizada em uma cidade do interior do Rio Grande do Sul,
chamada Santa Maria. O fato que ficou conhecido também como tragédia de Santa
Maria teve um número de 242 mortos. A maioria jovens estudantes da Universidade
Federal da cidade. Na cobertura desse fato foi utilizada com frequência a utilização de
imagens postadas no youtube. As imagens mostravam o momento do incêndio, o
desespero das pessoas frente ao grande número de corpos espalhados pelo chão. As
imagens exploravam o choro, o desespero das pessoas no momento do resgate.
Cobertura que evidencia o Fait Divers de Barthes (1971) quando se refere à
superexploração do trágico, da morte, da dor. Neste caso, enaltecidas pelas imagens do
vídeo amador. Item que não foge a regra também na cobertura do caso do massacre na
Síria, o vídeo amador permitiu trazer para dentro da casa das pessoas a imagem em
movimento que retratava a tragédia, ingrediente inseparável do Fait Divers.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
É antigo o estudo que tenta encontrar uma resposta para o motivo que leva as
pessoas ficarem fascinadas pela televisão. Poder integrar parte da notícia e ser
contemplado em um telejornal de referência é anseio de muitos. Conseguir transformar
o seu produto em notícia é fruto de trabalhos especializados, um exemplo são as
assessorias, tanto de comunicação quanto de imprensa. Porém, às novas tecnologias
trouxeram avanços diversos e consequentemente impactaram o comportamento das
pessoas pois, notoriamente, com ela veio a possibilidade, tanto de estar com um celular
na mão no momento do acontecimento de um fato e poder registrá-lo, quanto, também,
a oportunidade de poder disponibilizar a imagem para o mundo por meio da Internet.
Esse fenômeno também é objeto de estudos de diversos teóricos. No entanto,
percebeu-se por meio de análise, tanto empírica quanto teórica, que essa filtragem de
materiais que passaram a estar disponíveis na rede mundial de computadores a todo
momento não é tarefa singela, uma vez que o número de colaborações é significativa.
Buscar entender as semelhanças entre elas foi o anseio principal que auxiliou no início
desse estudo.
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Sabe-se também que a notícia tem se transformado com o decorrer do tempo.
Conforme Jorge (2007) ela passou por um processo de mutação. No entanto, verificouse que o ciclo da notícia também sofreu alteração (aqui em especial as que utilizam o
vídeo amador). Anterior as redes sociais é sabido que uma notícia de telejornal era
disponibilizada apenas em uma mídia específica (televisão) podendo ser desmembrada
no dia seguinte no jornal impresso, apenas como texto que podia descrevê-la e no
máximo uma foto. Com o advento da Internet e a implantação dos sites de notícias esse
ciclo começou a ser alterado. Ou seja, uma reportagem utilizada em um telejornal
passou a
poder integrar também um site de notícias, uma das modalidades do hipertexto,
considerado por alguns autores como “textos entre nós”.
Porém, o que se conclui aqui é que com a rede de compartilhamento de vídeos
youtube um novo ciclo passou a ser evidenciado. Para referendar o trabalho foram feitas
análises em semanas nos anos de 2011, 2012 e 2013. A maior parte da análise está
concentrada no ano de 2013. A intenção foi averiguar o telejornal intitulado Jornal
Nacional para encontrar o uso do vídeo amador retirados da rede de compartilhamento
de vídeos youtube. O que se atestou é que todos os vídeos amadores que foram
encontrados advindos do youtube migravam para o site de notícias G1, veículo também
ligado a central Globo de Jornalismo. A constatação também é que depois dessa
migração o material editado volta para o youtube, mas dessa vez como reportagem do
telejornal editado.
Foi notado também que a ordem não é seguida em todas as
postagens, por exemplo, se um vídeo é postado pela manhã, ele é utilizado no hipertexto
do G1 e a noite se transforma em reportagem no Jornal Nacional, retornando em
seguida para o youtube.
Todas as notícias analisadas foram observadas a partir do ciclo: youtube,Jornal
Nacional, G1 e youtube ou youtube, G1, Jornal Nacional, youtube. O que se afirma é
que todas as postagens estudadas foram oriundas do youtube e retornaram para ele
quando se transformaram em matérias do Jornal Nacional.
Na busca ainda por respostas as semelhanças entres ambos constatou-se que
todos contem ingredientes encontrados na definição de Barthes ( 1971) quando ele fala
sobre o Fait Divers. Embora ingrediente inseparável da imprensa sensacionalista ele é
componente também dos vídeos amadores que ganham destaque em um telejornal de
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referência e se sobressaem em relação a outras postagens no sentido de conseguir
espaço na imprensa nacional.
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www.g1.com.br. Acesso em: 20 a 30 de Setembro de 2010, 14 a 22 de dezembro de
2011, 10 a 18 de janeiro, 25 a 31 de julho de 2012,05 a 10 de janeiro, 28 de janeiro a 01
de fevereiro, 25 a 29 de março, 18 a 21 de maio, 22 a 26 de julho e 08 a 15 de julho de
2013.
ZAGO, Gabriela. Recirculação jornalística no Twitter: filtro e comentário de
notícias por interagentes como uma ferramenta de potencialização da circulação.
Tese de doutorado. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Programa de pósgraduação em comunicação e informação. Porto Alegre, 2011.
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ANTROPOLOGIA VISUAL E
DOCUMENTÁRIO: Uma análise do
documentário Promises
Maria Elisa Swarowsky LISBÔA46
Resumo: O objetivo deste artigo é analisar o documentário Promises (Promessas de um
mundo novo) filmado em Jerusalém entre 1995 e 2000. Para isso, será utilizada a
metodologia da antropologia visual proposta por Claudina de France (2000). De acordo
com a autora, a antropologia visual viabiliza o conhecimento do homem através da
imagem e permite o registro do real segundo um dinamismo próprio através do qual se
estabelece uma relação entre o antropólogo, a sociedade à qual ele se refere e o seu
espaço. Pretende-se verificar se este documentário pode ser avaliado como resultado de
um trabalho antropológico, segundo uma poética do encontro, tomando a alteridade
como característica principal.
Palavras-chave: documentário, antropologia visual, alteridade, cotidiano, Promessas de
um mundo novo.
Abstract: This article analyzes the documentary Promises, filmed in Jerusalem between
1995 and 2000, based on the methodology of visual anthropology. According to France
(2000), it enables man's knowledge through the image, which allows the recording of
reality according to its own dynamics, through which it establishes a relationship
between the anthropologist, the society to which he refers and its space. The proposed
objective is to verify that this documentary can be assessed as a result of an
anthropological work, according to a poetics of the meeting, taking otherness as its main
feature.
Key-words: documentary, visual anthropology, otherness, daily life, Promises
46
Mestranda em Comunicação visual pela Universidade Estadual de Londrina. Graduada em Comunicação Social –
habilitação Jornalismo pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
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1. INTRODUÇÃO
O objeto desse artigo é analisar o documentário Promises, (Promessas de
um mundo novo), produzido entre 1995 e 2000 em Jerusalém e dirigido por Justine
Shapiro, B.Z. Goldberg e Carlos Bolado. A obra contempla as histórias de sete crianças
entre 9 e 12 anos de idade, palestinas e israelenses, que narram suas vidas e apresentam
ao mundo suas visões do conflito na região.
Por meio da convivência e do
envolvimento nas tarefas do dia a dia dos jovens, o cineasta participa das suas rotinas e
evidencia questões religiosas, familiares, políticas, educativas, entre outras. Nota-se,
nessa
produção cinematográfica, um desejo de transformação social ao tratar do
“outro”, além de abordar uma questão político-social pertinente que desperta a
discussão sobre as paisagens, as fronteiras e os conflitos da região do Oriente Médio.47
Para Nichols (2007), os documentários trazem para as telas de televisão – ou
de cinema – o mundo onde vivemos. Essa forma de produção audiovisual compreende
inúmeras questões éticas, de forma e de conteúdo e envolvem o público de maneiras
muito particulares. O autor afirma que “documentários não são reproduções da
realidade, são uma representação do mundo em que vivemos. Representa uma
determinada visão de mundo, uma visão com a qual talvez nunca nos tenhamos nos
deparado antes” (NICHOLS, 2007, p. 47).
Para o autor, todos os filmes são documentários, mas se diferenciam pela
espécie de histórias que contam. Há, segundo ele, os documentários de satisfação de
desejos – aos que chamamos de ficção – e os de representação social, que expressam
algum aspecto da realidade e permitem que o público compreenda e explore “novas
visões de um mundo comum”.
47
O filme recebeu 15 prêmios: 2003 One World Broadcast Trust Award for the Children's Rights Category, UK. 2002
Emmy Award “Best Documentary”. 2002 Emmy Award “Outstanding Background Analysis”. 2002 The NBR Freedom
of Expression Citation National Board of Review. 2002 The Michael Landon Award for Community Service to Youth
Twenty-Third Annual Young Artist Awards. 2001 Rotterdam International Film Festival. Audience Award and Best
Film. 2001 Munich Film Festival Freedom of Expression Award. 2001 Jerusalem Film Festival Special Festival Award.
2001 Locarno International Film Festival Special Ecumenical Jury Prize. 2001 San Francisco International Film
Festival Audience Award, Best Documentary Grand Prize, Best Documentary Golden Gate Award, Documentary
Film. 2001 Vancouver International Film Festival Audience Award, Diversity in Spirit Award. 2001 Hamptons
International Film Festival Best Documentary. 2001 Sao Paulo International Film Festival Best Documentary
Audience Award. 2001 Valladolid International Film Festival Best Documentary. 2001 Paris International Film
Festival (Rencontres) Audience Award-Best Film.
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Para a análise do filme Promises, adota-se a metodologia da antropologia
visual, área do conhecimento que proporciona métodos de pesquisa para a produção
fílmica acerca de uma realidade e para a compreensão de objetos fílmicos já produzidos.
Na obra Antropologia fílmica, uma gênese difícil mas promissora, Claudine de France
defende que o objeto da antropologia visual é “o homem tal como ele é apreendido pelo
filme, na unidade e na diversidade das maneiras como coloca em cena suas ações, seus
pensamentos e seus ambientes” (FRANCE, 2000, p. 17).
Nesse sentido, o objeto da disciplina é duplo, uma vez que o filme pode ser
o instrumento a serviço da pesquisa antropológica e também seu objeto de estudo.
Temos aí, portanto, a análise do homem e a análise da imagem do homem. Serão
analisados aspectos de produção do filme a partir dos princípios da metodologia da
antropologia fílmica como pesquisa básica, tempo e descrição. Tendo em conta a
poética do encontro de um filme documentário, será explorada a relação do cineastaantropólogo com os sujeitos no filme sob a ótica de Marcius Freire, que defende a
alteridade como centro da construção do documentário.
Tendo como aporte teórico as contribuições de Nichols sobre o
documentário e as prerrogativas da antropologia visual de France, propõe-se nesse
artigo a seguinte reflexão: a partir da metodologia da antropologia visual, o
documentário Promises pode ser avaliado como resultado de um trabalho antropológico,
segundo uma poética do encontro?
2. DOCUMENTÁRIO E ANTROPOLOGIA VISUAL
De acordo com France (2000), diferentemente da pesquisa escrita, o estudo
antropológico por meio do filme permite o registro do real segundo um dinamismo
próprio, através do qual se estabelece uma relação entre o antropólogo cineasta e a
sociedade à qual ele se refere. Entra aí a discussão de como as imagens são por ele
captadas, de como o processo de produção do documentário é realizado, o que ele leva
em conta e o que ele vai mostrar sobre o homem e para o homem. Para isso, os
documentários lançam mão de uma série de procedimentos, de leis cenográficas,
conhecidas por mise en scène, pois aquilo que aparece na imagem não é exatamente
igual àquilo que é apreendido pela observação direta. Para France:
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a reprodução audiovisual das manifestações do real introduz, no aparelho de
pesquisa do antropólogo, uma reviravolta da qual ele nem sempre tem
consciência, mas que cedo ou tarde o conduz a repensar a natureza e o status
do observado, as relações entre o observador, o observado, a palavra e a
escrita no interior da pesquisa antropológica (FRANCE, 2000, p. 18.).
As primeiras imagens do documentário Promises compõem-se do público
que o filme vai tratar: crianças judias e palestinas. Elas aglomeram-se junto da câmera
de forma espontânea, evidenciando a presença do observador. Estão diante das lentes
querendo mostrar-se como são, revelar algo de suas vidas, contar alguma coisa.
Parecem que dizem: venham, venham ver como é minha vida, minha história.
O filme documentário de representação social tem a missão de retratar uma
determinada realidade, transmitindo uma mensagem acerca das pessoas inseridas em um
determinado contexto, conforme a seleção e a organização do cineasta. Segundo
Nichols,
os documentários de representação social são o que normalmente chamamos
de não-ficção. Esses filmes representam de forma tangível aspectos de um
mundo que já ocupamos e compartilhamos. Tornam visível e audível, de
maneira distinta a matéria de que é feita a realidade social, de acordo com a
seleção e a organização realizadas pelo cineasta. Expressam nossa
compreensão sobre o que a realidade foi, é e o que poderá vir a ser. Esses
filmes também transmitem verdades, se assim quisermos. (NICHOLS, 2007,
p. 27.)
Quando esse tipo de produção audiovisual busca revelar a realidade, ele
acaba colocando-nos diante de questões éticas, despertando no público um olhar sobre o
mundo, a partir do seu trabalho de coleta de dados, produção, edição e veiculação. Fala
de pessoas para pessoas.
Partindo desse princípio do documentário, coloca-se a
seguinte questão proposta por Nichols: o que fazemos com as pessoas quando filmamos
um documentário? Nesse caso, diferentemente dos filmes de ficção - em que elas são
tratadas com atrizes - em um documentário, temos atores sociais, que vivenciam seu
cotidiano mais ou menos como fariam sem a presença da câmera.
Os documentários não apresentam uma forma fixa, nem sequer tratam de
determinados tipos de aspectos da realidade. Nichols defende que há inúmeras maneiras
de se produzir um documentário, assim como infinitos assuntos que podem ser por ele
abordados. O pesquisador utiliza quatro ângulos distintos a fim de caracterizar os
documentários: o ângulo das instituições, o dos profissionais, o dos textos (filmes e
vídeos) e o do público.
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Segundo o ângulo das instituições, Nichols sinaliza que o formato desse tipo
de produção tem uma estrutura institucional, que apresenta um conjunto de limites ou
convenções para o cineasta e para o público. Tem, na sua maioria, o comentário da voz
over e são, em geral, patrocinados pelas redes de televisão ou pelas agências de
informação.
Se olharmos para um documentário sob o ângulo dos profissionais que o
produzem, verificamos que cada cineasta pode imprimir o seu próprio estilo ao produzir
um filme, além de poder estar sempre aberto a mudanças de linguagem ou variações de
temas abordados. Um terceiro ângulo para definir o documentário a partir da análise do
seu conteúdo, é necessário compreender os filmes que compõem a tradição do próprio
documentário, segundo uma lógica específica. Conforme Nichols, a particularidade do
gênero documentário é conferida a ele a partir de seu próprio argumento – uma alegação
sobre o mundo que vivemos – organizado segundo uma lógica de produção de textos,
imagens e sons. Daí nasce o envolvimento das pessoas com o filme, que busca em si
mesmo o envolvimento com a realidade histórica.
Se buscamos a definição de documentário a partir da ótica do público,
devemos ter em conta que, pelo vínculo que possui com a realidade – ao representá-la
com imagens que funcionam como índices – o filme documentário constrói sua própria
perspectiva ou argumento sobre o mundo. Ou seja, segundo Nichols, o conteúdo de sons
e imagens dispostos na tela está fortemente relacionado com o que o público
compartilha no mundo histórico.
A metodologia para a realização (ou para a análise) de um documentário
tem o seu arcabouço nas técnicas da própria antropologia visual. Para a produção de um
filme, toma-se em consideração alguns princípios que formam, segundo France, o
“núcleo duro” da antropologia visual, como a pesquisa básica, a disponibilidade
temporal do pesquisador e a descrição. Seu objetivo, nesse sentido é o conhecimento do
homem através da imagem.
O primeiro desses princípios é a pesquisa básica, ou o levantamento de
dados sobre um grupo social que tem por objetivo aprofundar no conhecimento, na
descoberta do objeto observado. O pesquisador nesse caso é o destinatário imediato da
pesquisa, além do público que terá acesso ao conteúdo estudado. O segundo princípio é
a disponibilidade temporal do antropólogo cineasta durante as distintas fases das
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filmagens, de modo que ele necessita de tempo para acompanhar as pessoas filmadas,
inserindo-se no seu contexto. O terceiro conceito importante a ser levando em conta é a
descrição, resultado da atenção às palavras, gestos, conteúdos da expressão verbal.
Comprometido com a descrição da realidade que vai demonstrar pelo filme, o
antropólogo cineasta deve dar-se ao tempo de observar e de mostrar tudo aquilo o que
se refere ao ambiente e aos indivíduos que ele se propôs estudar.
Durante os primeiros minutos do filme, são mostradas imagens de Jerusalém
com a voz over do narrador, introduzindo o cenário geopolítico onde o documentário
ambienta-se. Ainda não se sabe quem é este observador; entretanto, em seguida, ele
revela-se como um personagem daquele contexto por dois detalhes: primeiro porque
conta que nasceu e cresceu em terras judias e segundo porque se coloca no meio das
pessoas diante das câmeras, autoafirmando-se como um deles.
A maneira como os elementos são dispostos pelo cineasta em um
documentário etnográfico são fundamentais para a compreensão da mensagem
transmitida, a fim de que seu trabalho provoque uma “reflexão sobre a maneira de
colocar em cena os homens por meio da imagem” (FRANCE, 2000, p. 18). Seguindo
este mesmo raciocínio, Nichols expõe que através dos documentários, somos capazes de
enxergar questões oportunas, que pedem nossa atenção, como assuntos de alcance
social, seus problemas e possíveis soluções. Daí nasce uma relação entre mídia e
espaço, fortalecida pelo vínculo entre o filme e o mundo histórico apresentado aos
nossos olhos pelo documentário.
Segundo a análise de Nichols, temos aí dois tipos de representação: “eu falo
deles para você” e “eu falo de nós para você”. Esta segunda classificação pode ser
entendida como um narrador que, mesmo não estando presente continuamente no
contexto dos grupos mostrados, é parte deles.
Desde o início de Promises, o espectador é introduzido no cotidiano das
crianças, com apresentação de cenas comuns nos espaços e ambientes que lhe são
próprios: acordar, vestir-se, rezar, ir à escola. Há o registro de movimentos cotidianos
como embarcar no ônibus e estudar ( conforme fotograma 1). Isto denota o
envolvimento do cineasta com os gestos e as práticas das pessoas que representa.
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Fotograma 1
Sobre esse envolvimento, a antropologia visual lança mão do procedimento
da inserção e do registro, anteriores e necessários à descrição propriamente dita.
Fotografar os personagens é uma prática que contribui para esse registro, pois as
fotografias funcionam como disparadores de histórias e memórias dos personagens.
Cada uma pode desencadear um inesperado conjunto de narrativas, que cabe ao cineasta
revelar. Dessa maneira, adiantam que o filme irá contar suas histórias e experiências,
conforme o fotograma 2.
Fotograma 2
A câmera de vídeo mostra o processo de fotografar do observador, isto é, o
espectador fica sabendo que aquele que vai contar a história está registrando os sujeitos
fotograficamente. A própria câmera de vídeo ressalta a atividade antropológica de
pesquisa, de coleta de dados fotográficos (fotograma 3).
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Fotograma 3
O cineasta tem diante de si pessoas reais, que se dispuseram a mostrar-se
como são, como levam suas vidas. Desse fato deriva uma série de reflexões acerca dos
modos de representação desses indivíduos, que cabe ao cineasta explorar através do seu
trabalho. Sobre isso, Nichols aponta que o valor dessas pessoas “reside não nas formas
pelas quais disfarçam ou transformam comportamento e personalidade habituais, mas
nas formas pelas quais comportamento e personalidade habituais servem às
necessidades do cineasta” (NICHOLS, 2007, p. 31).
A disponibilidade temporal do antropólogo faz parte desse trabalho, uma
vez que o mais natural, ao representar personagens reais é respeitar o seu próprio ritmo
de vida. Sobre isso, France acrescenta que
uma tal conquista concretiza-se essencialmente quando o filme etnográfico
não se contenta em oferecer somente imagens dos tempos fortes da atividade
humana (estados de crise, dramas conflituosos, clímax de cerimônias
paroxísticas), mas se dedica, igualmente, a restituir os tempos fracos (atos
repetitivos anódinos) e tempos mortos (silêncios, ausência de atividade
aparente) das pessoas filmadas. Em suma, conquistar o tempo consiste
também em enfatizar os longos momentos que separam os tempos fortes da
vida de um grupo ou de um indivíduo (FRANCE, 2000 p. 28).
Surge daí a vitalidade do trabalho do cineasta ao colocar-se junto desse
público, permitindo-se um encontro com ele. Isso pode acontecer de formas variadas, e
cabe ao observador estar ciente da sua responsabilidade em representar o outro. Sobre
esses modos de representação, Nichols explica que há diferentes modos de retratar as
pessoas filmadas, partindo da relação tripolar entre o cineasta os temas ou atores sociais
e o público ou os espectadores. Segundo ele, a interação mais clássica é “eu falo deles
para você”.
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O cineasta se apresenta como o “eu”, pessoa individual que transmite a
informação sobre alguém e para alguém. Pode ser feito em voz over – sendo anônimo,
(não necessariamente o cineasta), portando-se como quem tem autoridade sobre o
assunto e é desconhecido do público - ou diante das câmeras, em situações em que o
próprio cineasta aparece e interage com as pessoas filmadas, contando, junto com elas,
suas histórias, como um personagem. Essa visão pessoal do cineasta ajuda a transmitir
ao público um ponto de vista sobre o assunto, a representação de uma opinião pessoal.
O “falar de”, seguindo a visão de Nichols, pode adquirir vários matizes
quando se trata de representar pessoas em um documentário. Isso pode incluir a
narração de uma história, a construção de uma narrativa, ou a transmissão da
informação sobre o mundo que compartilhamos para expressar opiniões.
No
documentário, o “eles” são as pessoas representadas no filme. Há uma separação entre o
cineasta e aquele de quem ele fala. Segundo ele, pode-se representar os indivíduos
plenos, complexos através de manifestações de situações que ocorrem no mundo, em
um determinado contexto.
Sobre o público que assiste ao documentário, podemos entendê-lo como o
“você”, para quem o cineasta destina a realidade representada no documentário e
permite que o filme o atinja de alguma forma. Separados do “eu” que conta a história e
do “eles”, o “você” tem sua identidade diferente de ambos e, através da mensagem
filmada, entra em contato com temas cuja experiência se assemelha à nossa ou contrasta
com ela.
3. DOCUMENTÁRIO, RELAÇÃO E ENCONTRO
Ao longo do filme, são colocadas legendas do transcorrer do tempo, como “um
ano depois”. Com essa noção da passagem do tempo, percebe-se o envolvimento do
cineasta na intimidade de vida das crianças, que lhe permite questioná-las sobre suas
crenças, valores, identidades, histórias. Ele acaba por conquistar sua confiança,
fundamental para que o registro das suas vidas seja apresentado ao público. Com isso,
ele consegue evidenciar a pessoa que está mostrando nas câmeras. Freire define o
documentário de cunho antropológico como as formas de representação fílmica que têm
no outro sua própria razão de ser. Segundo ele, a relação estabelecida entre ambos deve
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se desdobrar em um encontro, do contrário teríamos como resultado uma visão
superficial dos sujeitos representados.
Cabe diferenciar os conceitos de relação e encontro, explicados por Freire e
outros autores como Pamela Vermes (1992). Ele defende que a relação precede o
encontro, que supõe uma reciprocidade entre sujeitos (eu e tu, e não eu e isso).
Quanto àquilo que se compreende por encontro: enquanto que a relação é o
reconhecimento unilateral de alguém enquanto em tanto que “tu”, por parte
de um “eu”, o encontro é aquilo que acontece quando dois “eu” entram
simultaneamente em relação. O encontro é quando se encontram juntos,
numa comunhão existencial dois “eu” e dois “tu”. O encontro é um privilégio
que eu recebo. Eu entro numa relação de “tu” por minha própria vontade, e
com isso cumpro “o ato do meu ser (VERMES, 1992, p. 91).
O encontro entre os filmados e o filmador em Promises não se reduz a si
mesmo, mas também desemboca num encontro efetivo entre os sujeitos do contexto
documentado, separados por crenças, costumes e visões de mundo opostas. O resultado
da construção do encontro entre o cineasta e os sujeitos representados por ele ao longo
dos 5 anos acaba resultando na descoberta da viabilidade de um encontro real entre
judeus e palestinos, antes para eles impensável.
Pela atmosfera que é criada entre o observador e as crianças, elas parecem
confortáveis contando seu dia a dia e revelando sua forma de vida, com características
específicas para árabes e judeus. Há uma sequência de imagens de Raheli (irmã de
Moishe) durante as quais ela vai explicando o que é costume fazer no Shabbat e as
peculiaridades da sua vida futura. Isso é viabilizado pela posição que o cineasta se
coloca frente a elas, respeitando suas maneiras de ser e de se expressar: ultrapassa a
relação e culmina no encontro.
Além disso, B. Z. Goldberg também apresenta-se ao público dentro de um
veículo, que vai em direção aos locais onde vivem as crianças. Com essas imagens,
parece estar afirmando que está entrando em seus dramas, nas suas histórias, com a
finalidade de contá-las ao público. O trabalho de cunho antropológico requer, por parte
do realizador da pesquisa, um compartilhamento do mesmo ambiente dos sujeitos que
observa, conforme Marcius Freire. O resultado da relação que se estabelece a partir daí
é o encontro, condição fundamental para a existência do documentário. Para o autor,
tanto a etnografia quanto o filme documentário de cunho antropológico
possuem esse traço em comum: para tomar forma, precisam ser produto de
um encontro. Não pode existir a descrição de uma cultura qualquer sem que
aquele ou aquela que a descreve trave contato com ela. (...) Não pode existir
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um filme documentário que tenha a alteridade como tema se não houver um
encontro entre o realizador e seus sujeitos. A qualidade desse encontro, ou da
relação que se estabelece entre os protagonistas da interlocução, portanto, é
fundamental para definir os atributos do texto ou do artefato fílmico final que
vai dar conta dos resultados desse encontro (FREIRE, 2007, p. 16).
Para que essa relação se estabeleça, ou para que haja um encontro entre o
pesquisador e o sujeito observado, é necessário que aquele se permita uma inserção no
espaço deste, de modo que observe e colete os dados característicos, determinantes do
resultado final do filme. Esta é uma fase preliminar às filmagens e “se traduz na
aproximação do cineasta às pessoas observadas com o intuito de aprender sobre elas
aquilo de que precisa para a conformação do seu filme”. (FREIRE, 2007, p. 17). O
fotograma 6 mostra o cineasta em uma posição de com as pessoas filmadas.
Fotograma 4
Portanto, o trabalho antropológico característico de um documentário pede
que o pesquisador se coloque em contato com o público - e com seu espaço - que irá
analisar e apresentar em seu filme. Entende-se que este contato não é supérfluo, mas
supõe uma inserção na vida dos sujeitos, um compartilhamento de experiências.
Nesse processo, o antropólogo cineasta volta seu olhar – e todas as suas
potências - para o outro. Sobre isso, Freire afirma que surge daí uma relação de poder
entre aquele que observa e o observado, através da qual o primeiro domina o segundo.
“O realizador queira, ou não, detém um domínio sobre o processo de construção,
enquanto as pessoas filmadas a ele estão submetidas” (FREIRE, 2007, p. 15). Mas esta
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subordinação não é algo negativo. Os conflitos resultantes desse estranhamento acabam
gerando, segundo Freire, os ingredientes da receita de um documentário.
Exemplos disso são os momentos em que os jovens estão fazendo oração –
algo importante e íntimo para ambas religiões – nos quais são respeitados os locais e
gestos de cada um. É possível sentir a atmosfera espiritual tanto do judaísmo quanto do
islamismo. Este aspecto da vida das crianças é relevante apresentar, uma vez que está
profundamente relacionado com a forma de encarar o mundo e as demais pessoas. Os
costumes religiosos do judaísmo também são apresentados através da comemoração de
Shlomo, junto ao seu grupo próximo ao muro das lamentações.
Partindo do raciocínio de France, existem duas maneiras de aproximação
com as pessoas filmadas: inserção superficial (típica dos filmes de exposição, que se
esgota quando começam as filmagens) e inserção profunda usada nos filmes de
exploração, caracterizado por um “prolongamento durante o qual as pessoas filmadas
encenam suas próprias atividades diante da câmera” (FRANCE, 1998, p. 348). No caso
da inserção profunda de um filme de exploração, conjugam-se o período anterior,
durante e posterior às filmagens, em um diálogo contínuo entre o cineasta e os
protagonistas da história. Segundo Freire,
vemos assim que, as relações humanas estão no cerne do processo de
realização de um filme de exploração, pois a inserção praticamente se
confunde com a consecução dos registros propriamente dita, ou seja, ela se
prolonga até a conclusão do trabalho e, em casos mais emblemáticos,
transborda em muito essa conclusão (FREIRE, 2007, p. 18).
A descrição das identidades das crianças é também viabilizada pelas
entrevistas, nas quais compartilham suas vivências e contam o que acreditam sobre os
povos vizinhos. O cineasta participa desse processo ativamente. Virtudes como
naturalidade e simplicidade, típicas das crianças parecem facilitar este trabalho. Elas
não têm receio de expor sua visão do conflito, de quem deveria ter a posse das terras.
Sobre a definição de descrição, France lembra que é um processo que exige tempo de
observação, ultrapassando a simples mostra de gestos ou ações. O objetivo da descrição
é oferecer ao público uma apresentação continuada de manifestações sensíveis
relacionadas ao tema por elas englobado.
Os diálogos que se estabelecem entre o cineasta e as crianças não se
reduzem a um formato de entrevista tipo pergunta e reposta. Eles se estendem a uma
convivência, pela qual as identidades de cada grupo se expressam com naturalidade,
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através de cenas do cotidiano. O esporte, algo comum entre os mais novos, é
evidenciado em cenas do torneio de vôlei em que participam os dois irmãos judeus.
Paralelamente, vemos também a prática esportiva no cotidiano da jovem palestina
Sanabel, que tem na dança uma forte expressão da sua cultura.
Outros detalhes do cotidiano das crianças vão sendo desdobrados, como as
visitas ao pai de Sanabel, preso em uma casa de detenção israelense, as justificativas de
posse de terras tanto pelos jovens palestinos quanto judeus, baseados em documentos
religiosos ou civis. Cenas como essas evidenciam o apego que ambas culturas têm sobre
a terra, reivindicando seus direitos, relacionando-o o seu drama atual com o passado.
Pouco a pouco, o trabalho de apresentar a vida das crianças salientando suas
semelhanças e diferenças vai resultando na aproximação entre elas, incentivada pelo
cineasta. É um encontro que desemboca em um outro encontro, mediado pelo
observador. Dessa forma, o documentário serve como meio para ultrapassar as
fronteiras religiosas, políticas e culturais entre árabes e judeus.
Há, portanto um envolvimento - decorrente da inserção profunda – do
cineasta com os sujeitos observados, que lhe permite estabelecer uma relação de
confiança com o público retratado no filme. Eduardo Coutinho afirmou em uma
entrevista no ano de 1997 que se sentia responsável pela comunidade retratada nos seus
filmes:
Obviamente, se é uma imagem decente que transmito deles, suponho que
também vou ser fiel a uma relação com os favelados em geral, com as
pessoas do lixo em geral, mas o importante são aquelas pessoas que têm
nome. Não é uma confiança de classe desencarnada, mas é encarnada em
pessoas que foram gentis comigo. (COUTINHO, 1997, p. 170)
Portanto, cabe destacar que o papel do cineasta diante do grupo social
registrado por ele reflete uma alteridade – esse voltar-se ao outro – sem a qual o
trabalho antropológico para a realização de um documentário estaria comprometido.
Pelos primeiros depoimentos das crianças sobre uma possível aproximação, percebe-se
– pela parte delas - a inviabilidade do encontro. O jovem palestino Mahmoud declara
que jamais se colocaria próximo a um judeu. No entanto, ao conversar com ele, B.Z.
explica que ele mesmo é um judeu e que está diante dele naquele momento. Um detalhe
interessante são as mãos de ambos juntas, como mostra o fotograma 5.
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Fotograma 5
O primeiro diálogo entre os gêmeos judeus e Faraj é feito por telefone, após
B.Z. apresentar Faraj ao meninos através da fotografia. Cabe salientar a importância
desse registro fotográfico, que viabilizou o conhecimento do rosto de Faraj a partir da
sua imagem. Além disso, o pai dos gêmeos judeus declara que permite o encontro com
Faraj, pois conhece e confia na equipe e no trabalho de B.Z. Nesse sentido, France
expõe que “apreender o gesto e a palavra viva do homem através da imagem é uma
maneira de reatar com aquilo o que constitui a matéria essencial da tradição oral”
(FRANCE, 2000, p. 20). Cabe reconhecer que, em um trabalho de antropologia fílmica,
a relação que surge entre o antropólogo cineasta e os sujeitos filmados é um ponto
relevante de análise. A respeito disso, France lembra que o pesquisador cineasta, ao
abandonar o seu anonimato, revela-se tanto para as pessoas que filma quanto para o
espectador.
O encontro entre as crianças acontece quando os irmãos judeus cruzam a
fronteira e vão visitar Faraj. São dois mundos distintos que se encontram. Ao mesmo
tempo, são crianças que compartilham de características semelhantes, como sonhos,
brincadeiras, gosto pelo esporte, etc. Ao final, fazem uma refeição juntos e abrem sua
intimidade em grupo sobre o que pensam das diferenças, do conflito, da paz, da
amizade. Esta cena denota um verdadeiro encontro, mediado pelo cineasta, no qual
sensibilidades são dialogadas e compartilhadas como pode ser visto no seguinte
fotograma:
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Fotograma 6
4.CONSIDERAÇÕES FINAIS
Através da metodologia da antropologia visual, foi possível detectar no
documentário Promises (Promessas de um mundo novo) o trabalho antropológico para a
realização do filme. As características encontradas nas imagens e nas entrevistas
denotam um trabalho de campo que viabilizou um legítimo encontro entre o cineasta e
os sujeitos representados.
Promises é um documentário de representação social, segundo os conceitos
de Bill Nichols, que retrata as visões de mundo de dois grupos de crianças palestinas e
israelenses a partir dos seus cotidianos. O trabalho de campo da equipe produtora durou
ao todo cinco anos, período em que o jornalista B.Z Goldberg permaneceu junto dos
sujeitos, convivendo dentro das suas casas, conversando com eles, captando suas
imagens.
Sem essa disponibilidade temporal, o trabalho estaria seriamente
comprometido, uma vez que a descrição fílmica, conforme France “possui uma
amplitude, no tempo e no espaço, que tende a restituir, se possível, toda a densidade do
real, dar-lhe corpo, com – mais uma vez – seus tempos fortes, seus tempos fracos, mas
também com seus tempos mortos, até a pura espera silenciosa dos seres filmados”
(France, 2000, p. 31).
A voz do cineasta no documentário pode ser interpretada segundo duas
posições. Conforme o raciocínio de Nichols, a mais clássica é a “eu falo deles para
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você”, na qual há uma separação entre o documentarista, os sujeitos filmados e o
público. Há também a forma “eu falo de nós para você”, na qual um integrante do grupo
retratado assume a voz e se apresenta junto de seu grupo.
Em Promises, o limite entre essas duas maneiras de narras se mostra tênue,
porque, além do cineasta ser um judeu, parece assumir um papel integrador da situação
de ambos os grupos, o que demonstra uma penetração no drama desses povos.
Entretanto, ele não deixa a sua posição de observador que vem de outro lugar para
contar uma história a um determinado público.
No documentário, percebe-se que a relação estabelecida entre observador e
sujeitos resulta em um legítimo encontro. As demonstrações de confiança, os diálogos,
as cenas do dia a dia revelam uma poética do encontro pela qual o filme se desdobra.
Com isso, um encontro levou a outro.
Sobre a alteridade, vale destacar que conhecer o mundo dos demais é
colocar-se no lugar de, ter uma atitude de respeito ao outro e isso promove a legítima
compreensão. As crianças registram isso nas suas falas. Faraj chega a confidenciar
emocionado que, após a partida de B.Z., o encontro deixará de existir, algo que
demonstra sua amizade e confiança na presença do documentarista. Nesse sentido, cabe
lembrar France, que defende que
estou em referindo aos grupos humanos, às minorias étnicas ou culturais que
toda a sociedade, através das convulsões do seu próprio desenvolvimento ou
o peso da sua cultura dominante, leva ao desenraizamento, à marginalização
ou a uma assimilação demasiadamente brutal. Ao revelar as maneiras de
viver e de pensar desses grupos e ao esforçar-se para situá-los no conjunto da
sociedade à qual pertencem, a pesquisa fílmica do antropólogo desemboca
frequentemente na exposição explícita de problemas de ordem social.
(FRANCE, 2000, p. 22)
As fotografias, importantes disparadores de histórias e memórias, tiveram
um papel no filme, pois permitiram que se produzisse um encontro real entre os grupos
de crianças afastadas pela história, cultura e religião. Há também uma contextualização
histórica do conflito, apresentada por infográficos, mapas e imagens de televisão.
A visão das crianças sobre o conflito é transmitida através de suas vozes, de
suas vidas e testemunhos. O observador, colocando-se junto delas, evidencia o papel das
crianças na situação política e cultural enfrentada no território. Esse trabalho parece ter
sido feito segundo a metodologia da antropologia visual, e foi viabilizador de um
encontro que extrapola os limites de um filme.
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REFERÊNCIAS
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Revista PUC SP. V. 15, 1997. Disponível em
http://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/view/11228. Acesso em: 06 abril 2014
FRANCE, Claudine (org). Antropologia fílmica, uma gênese difícil, mas promissora. In
Do filme etnográfico à antropologia fílmica. Campinas. Editora da Unicamp, 2000.
FRANCE, Claudine de. Cinema e antropologia. Campinas. Unicamp, 1998.
FREIRE, Marcius. Relação, encontro e reciprocidade: algumas reflexões sobre a ética
no cinema documentário contemporâneo. Revista Galáxia, São Paulo, n. 14, p. 13-28,
dez 2007.
NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. Campinas. Papirus, 2007
VERMES, Pámela. Martin Buber. Paris. Albin Michel, 1992
The Promises Film Project. Disponível em <http://www.promisesproject.org/> Acesso em: 06 abril 2014.
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O APARTIDARISMO DOS PROTESTOS
POPULARES NO BRASIL E OS
DESLOCAMENTOS DE SENTIDOS DE
REPRESENTAÇÃO POLÍTICA
Nelson Toledo Ferreira48
RESUMO: A proposta do artigo é discutir o emblemático episódio dos protestos
apartidários ocorridos no Brasil, em junho e julho de 2013, nas perspectivas da
midiatização da política e das novas abordagens sobre o conceito de representação.
Como metodologia busca-se uma interface teórica entre as mutações dos partidos
políticos e o surgimento de formas não eleitorais de representação, que eclodem na
sociedade contemporânea, tendo a visibilidade midiática como dispositivo de
enfrentamento político. Tais discussões levam às inferências que nos permitem afirmar
que ocorre nos dias atuais um deslocamento de sentidos da representação política, cada
vez mais atravessados pelos media.
Palavras-chave: Política; partidos políticos; representação política; mídia; protestos.
The non-partisan of the popular protests in Brazil and
displacements meanings of political representation
ABSTRACT: This papers suggest to discuss the emblematic episode of non-partisan
protests in Brazil, in June and July 2013, on the perspectives of media coverage of
politics and new conflicts over the concept of representation that is consolidated in
Brazil and other countries. The methodology quest a theoretical interface between the
changes of political parties and the emergence of non-electoral forms of representation,
48
Doutorando do Programa de Pós-graduação em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense, Niterói/RJ,
Bolsista Capes; jornalista. Email: [email protected]
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rise in contemporary society, and the media visibility as political confrontation device.
These discussions lead to make inferences that allow us to affirm that occurs nowadays
a change of meanings of political representation, increasingly restricted by the media.
Keywords: Politics; political parties; political representation; media; protests.
INTRODUÇÃO
Os media assumem, a cada dia, o papel de protagonista da esfera política. As
pessoas percebem a sua realidade através dos enquadramentos midiáticos, repercutindo,
até mesmo, na construção desta própria realidade. Com o incremento das novas
tecnologias de comunicação – digitais e móveis - os embates discursivos nos meios de
comunicação travam uma acirrada disputa simbólica entre variadas fontes, de acordo
com as perspectivas dos mais diversos segmentos sociais. Com isso, uma multiplicidade
de leituras de fatos e acontecimentos traz à cena política versões da realidade, buscando
influenciar a sociedade. Cada qual, criando uma versão que mais lhe seja interessante
politicamente.
A tradição dos media pautarem a agenda pública e influenciarem a opinião
pública e, consequentemente, o comportamento e a atitude das pessoas, é focada de
forma constante pelos teóricos da Comunicação e de áreas afins, como Sociologia,
Antropologia, Ciências Políticas, Linguística, Psicologia e muitas outras. No entanto,
recentes fenômenos sociais e políticos, em todo o mundo, vêm reafirmando a
apropriação destas ferramentas midiáticas por estes mesmos atores políticos, que no
passado, em uma visão frankfurtiana, eram considerados receptores reféns dos meios de
comunicação, apesar das inúmeras teorias que foram aparecendo e mostravam que
existiam filtros nesta trajetória cognitiva entre emissores e receptores, que acabam
interferindo neste processo, como, por exemplo, a cultura.
Os protestos ocorridos no Brasil, nos meses de junho e julho de 2013,
ratificaram, de forma plena, este fenômeno do receptor ser simultaneamente produtor de
enunciados políticos, complexificando os debates sobre o processo de midiatização da
política. Esta materialização do discurso político nos ambientes digitais e móveis se faz
presente pela interatividade proporcionada aos indivíduos e pela capacidade de produzir
notícias, mobilização, conscientização e moldagem da opinião pública, independente do
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aporte financeiro, que sempre foi o diferencial entre os cidadãos “comuns” e os que os
que detinham o poder da propriedade dos meios de comunicação.
Nos episódios dos protestos, principalmente os ocorridos no ano passado, que
tiveram uma maior dimensão midiática, as redes sociais foram emblemáticas no seu
poder de aglutinação de força política, agendando manifestações simultâneas em várias
partes do país e reforçando um discurso aguerrido de luta política, apesar de muitas
críticas quanto à desorganização, ao apartidarismo e, até mesmo, às imputações de
fascismo de grupos de extrema direita infiltrados no seio das manifestações.
Nesta perspectiva, vivemos uma reconfiguração do fazer política, impactando
principalmente os tradicionais pilares da representação política. O voto digitado nas
urnas, a autorização e o accountability49 ficam em segundo plano e novas abordagens
sobre o tema ganham a cena principal, trazendo transformações na sempre conturbada
relação entre representantes e representados. Assistimos um momento que grupos
diferenciados da sociedade passam a incorporar o papel de mediação entre as inúmeras
clivagens sociais e o Estado, por meio de dispositivos bem peculiares, buscando a
visibilidade midiática na promoção de novos discursos de enfrentamento.
Almeida (2011) aponta para uma de crise de legitimidade das democracias
representativas, que se dá pelos sinais claros de esgotamento da gestão do Estado como
agente de valores morais e bens materiais, inclusive nas democracias liberais mais
consolidadas: abstenção eleitoral, o esvaziamento dos partidos políticos, presença de
lideranças pessoais e plesbicitarias e a desconfiança dos cidadãos na classe política e
nas instituições (CHANDHOKE, 2005, ANKERSMIT, 2002 apud ALMEIDA, 2011, p.
36). E neste cenário, surge a necessidade de se repensar a representação política de
acordo com a dinâmica da sociedade e suas práticas sociais e políticas. A autora
acrescenta que reações da sociedade têm demonstrado que novos atores estão se
reinserindo no processo político por meio de organizações não governamentais,
movimentos sociais e associações diversas. “(...) a própria representação se recria e, ao
se reinventar, demanda novas lentes de compreensão” (ALMEIDA, 2011, p.47).
Apesar de muitos autores discordarem da chamada crise de representação, na
medida em que o sistema é adotado na maioria das democracias do Ocidente, e, por
49
O termo não tem uma definição exata na língua portuguesa, mas refere-se à palavra inglesa Account, que significa
orçar, calcular, avaliar. No contexto político, accountability tem o sentido de responsividade, prestação de contas.
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mais tensões que marquem esse modelo, o mesmo continua sendo o ideal a ser adotado
em sociedades complexas (MIGUEL, 2010; BOBBIO, 2000; MANIN, 1997), o fato é
que o conceito de representação política vem sendo reconfigurado, nas últimas décadas.
Um fato que chamou atenção durante os protestos ocorridos em junho e julho de
2013 foi a hostilidade com que os manifestantes trataram militantes dos partidos
políticos, inclusive chegando ao ponto de queimar bandeiras das legendas em
determinados episódios e rejeitá-las de participar dos movimentos, como foi registrado
no dia 19 de junho, em algumas das manifestações50. No dia 20 de junho de 2013, uma
quinta-feira, por exemplo, os protestos marcaram o descontentamento da população em
quase todas as regiões do país, umas mais pacíficas, outras mais violentas, chegando a
serem realizados em cerca de 150 municípios de forma simultânea. E os meios digitais e
móveis foram os condutores desta insatisfação e deste chamamento que ganhou o
slogan “vem para rua, vem!”, de forma autônoma, sem que os partidos políticos,
centrais sindicais e líderes políticos direcionassem estes protestos.
Nesta disputa de sentidos, os cidadãos acabaram revelando um momento ímpar
de se distanciarem dos partidos políticos e construírem suas pautas de reivindicações de
forma autônoma, reforçando a necessidade de ocupação de ruas, gabinetes e espaços
públicos, exigindo mudanças. Uma pesquisa recente realizada pela Organização Não
Governamental (ONG) Transparência Internacional aponta que 81% dos brasileiros
definem os partidos políticos como “corruptos ou muito corruptos”. O estudo ainda
revela que o Congresso Nacional aparece em seguida entre as instituições mais
desacreditadas pela população, com 72%. Para cada 4 em 5 brasileiros, acreditam os
partidos são corruptos.51
Neste cenário, o artigo busca construir uma reflexão sobre como a midiatização
dos processos políticos pode ser ressignificada, na medida em que produz novos
sentidos de enfrentamento, complexificando os debates sobre representação política e
criando uma linha de fuga para o tradicional modelo de se fazer política, engendrado
pelos partidos e seus líderes. A apropriação dos dispositivos midiáticos estrategicamente
por cidadãos, movimentos sociais e associações da sociedade civil, que passam de
50
Disponível em: http://noticias.band.uol.com.br/cidades/noticia/100000607976/bandeiras-de-partidos-saoperseguidas-nas-manifestacoes-pelo-brasil.html Acesso em: 20 junho 2014.
51
Disponível em http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2013/07/130709_transparencia_corrupcao- fl.shtml
Acesso em: 28 abril 2014.
224
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consumidores a produtores de enunciados políticos, produz um deslocamento de sentido
sobre o processo de midiatização da política contemporânea e sobre o próprio conceito
de representação política.
1 Os media como dispositivos dos protestos populares
No momento atual, a comunicação se reverte de um fenômeno social e político,
resultante do movimento histórico e das relações de poder que se configuram e se
reconfiguram de forma dinâmica na sociedade. Os sentidos e os sujeitos estão
constantemente em jogo e isso se torna cada vez mais evidente na esfera política, visto
que as apropriações de determinados discursos estão em confronto o tempo todo. “As
tecnologias da comunicação ampliam o espaço público, mas apenas de modo técnico ou
retórico” (SODRÉ, 2006, p.161).
Apesar de muitos estudos teóricos e empíricos (CHADWICK, 2006; SODRÉ,
2006; POPKIN, 1994; GOMES, 2007; LEAL, 2002) revelarem um distanciamento dos
cidadãos em relação ao envolvimento com as questões importantes da política,
denotando apatia e despolitização constantes, os protestos ocorridos no Brasil, como
vem ocorrendo em outras partes do mundo revelam uma indignação dos cidadãos,
acumulada de anos, e até décadas, diante de escândalos de corrupção, da crescente
desqualificação dos serviços públicos oferecidos pelos governos, da usurpação do poder
para interesses particulares de grupos. No país, esta indignação se materializou nas ruas
e avenidas de todo o país, quando milhares de pessoas foram às ruas pedindo mudanças.
No entanto, ficou o questionamento até que ponto os media foram os dispositivos
principais que impulsionaram estas manifestações em várias cidades brasileiras,
deflagradas pelo Movimento Passe Livre, em São Paulo, por tarifa zero no transporte
público?
Os cidadãos demonstraram uma resposta à política institucionalizada de forma
espetaculosa por meio dos media, como uma estratégia para potencializar a insatisfação
de toda a sociedade, sem lideranças políticas, o que resultou em um grande espetáculo
midiático que seduziu mais pelas belas imagens estampadas nas manchetes dos
principais jornais, telejornais e portais de notícias do país e do mundo, devido à
repercussão internacional. O aspecto positivo foi mais a demonstração de força que a
pressão popular pode exercer nos circuitos do poder, mas ficou evidenciado a
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fragilidade dos protestos sem continuidade e sem o mínimo de organização. Os mesmos
se tornaram mais um espetáculo da democracia, mas sem respaldo e desdobramentos
políticos efetivos, como foi percebido nos meses seguintes Brasil.
A importância do apoio dos medias como condutor destes protestos se
evidenciou mais uma vez em 2014 quando o Movimento Passe Livre quis retomar às
ruas para comemorar um ano das manifestações, mas o resultado ficou muito aquém do
esperado, levando um número ínfimo de participantes52. No período, final de junho de
2014, outro grande espetáculo midiático era estampado em todas as mídias do país e do
mundo, a realização da Copa do Mundo de Futebol, que retirou todas as atenções dos
manifestos isolados ocorridos no país, a maioria, inclusive, contra a realização do
mundial no Brasil.
Com isso, os brasileiros estavam mais preocupados com os
resultados das partidas, com a eliminação das grandes potências europeias do futebol e
muito pouco com os manifestos, que perderam sua força de aglutinação e mobilização.
Para entender esta relação entre os campos político e midiático, recorremos a
Bourdieu (2007) que aponta que toda sociedade deve ser compreendida como um
espaço social, que por sua vez, é subdividido em outros campos, cada qual com suas
peculiaridades, na medida em que estes têm suas próprias regras e lógicas. Os limites de
cada campo dependem da interface entre eles, a partir de uma perspectiva relacional do
espaço como um todo. Trata-se de um campo de forças que impacta os agentes neles
inseridos, fazendo-os atuar conforme suas posições, e, com isso, mantendo ou
modificando sua estrutura. Com isso, os indivíduos que compõem os campos ocupam
várias posições dentro destes espaços, atuando no cotidiano e acumulando determinados
tipos de capitais simbólicos, que os permitem participar do jogo político. Neste quadro,
são definidos aqueles sujeitos que controlam a produção de sentido e do discurso dos
respectivos espaços de atuação.
Os campos da mídia e da política, apesar de suas lógicas e regras próprias, estão
em um constante e dinâmico processo de intercessão, criando uma disputa entre seus
agentes pelo acúmulo destes capitais simbólicos, que reconfiguram a tradicional noção
de política que tínhamos há décadas atrás. Miguel (2002) esclarece que o capital
52
Disponível em: http://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/nos-jornais-com-apoio-reduzido-ato-anti-copa-temdepredacoes-e-confrontos/ Acesso em: 20 junho 2014.
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político é uma forma de capital simbólico, ou seja, dependente do reconhecimento
fornecido pelos seus pares.
(...) mídia e política formam dois campos diferentes, guardam certo grau de
autonomia e a influência de um sobre o outro não é absoluta nem livre de
resistências. (...) O que se observa é que a visibilidade na mídia é, cada vez
mais, componente essencial na produção do capital político (MIGUEL, 2012,
pp.167- 169).
Na perspectiva teórica de Bourdieu (2007) existe um condicionamento mental
dos agentes que disputam posições e a acumulação de capitais simbólicos dentro destes
campos. Estes indivíduos acabam incorporando as regras e as normas dos respectivos
campos que atuam em suas práticas sociais, o que Bourdieu denomina de “habitus”:
uma introjeção de valores que fazem com que os sujeitos desempenhem determinados
papéis sociais e estes valores se manifestam, principalmente, em nível discursivo.
Bourdieu (2007) destaca que na medida em que o agente interage com a
realidade social, não se torna apenas o resultado de suas determinações, mas também
consegue determinar. Ou seja, os sujeitos e a sociedade podem ser considerados
estruturas estruturantes e estruturadas ao mesmo tempo.
O “habitus” seria uma
disposição adquirida que faz com que os papéis sociais e condutas na sociedade sejam
orientados para determinados fins, independente de ser um processo consciente, uma
vez que o próprio jogo nos leva a conhecer suas regras, jogá-las e até improvisar. Com
efeito, os campos político e midiático acabam ocasionando interferências entre os
agentes que neles atuam reconstituindo o cenário político contemporâneo e
naturalizando determinadas práticas que acabam consolidando mudanças no fazer
político, que impacta tanto representados como os representantes.
2 A gestão da informação política e seus reflexos na representação
Na medida em que os meios de comunicação vêm se tornando cruciais na
configuração do ambiente social e político contemporâneo, os partidos tiveram que
investir e aprimorar a gestão da informação política para buscar o enfrentamento neste
concorrido mercado político eleitoral, tanto em relação a outros partidos com
plataformas, ideologias e siglas tão similares, quanto a estas novas formas de
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representação não eleitorais, que emergem na sociedade atual53. O desafio maior para os
partidos políticos no Brasil, como em outras partes do mundo, se dá pelo crescente
descrédito dos cidadãos em relação aos modelos tradicionais de se fazer política,
focados no processo eleitoral, pelos constantes escândalos de corrupção, que depreciam
ainda mais o papel dos líderes e partidos políticos na atualidade. “(...) a percepção de
que há descrença generalizada nas potencialidades da política institucional se sustenta
em vários tipos de evidência, entre as quais se destacam o aumento da abstenção
eleitoral, a erosão das lealdades partidárias...” (MIGUEL, 2010, p.225).
Diante deste quadro, podemos afirmar que na sociedade contemporânea, os
meios de comunicação transformam-se em amplas arenas de embates discursivos, uma
vez que o que é registrado pelos meios é o que passa a existir na realidade. Como se o
que não tivesse a visibilidade midiática não existisse e não tivesse importância. Nisso
decorre que as representações midiáticas criam um ambiente em que se definem o
pensamento, julgamento e ação dos indivíduos na sociedade. Esta proposição é cada vez
mais apropriada no cenário político, na construção dos discursos, na geração e gestão de
mecanismos de identificação das instituições e líderes políticos com diversos segmentos
sociais.
As novas tecnologias apareceram como uma forma de democratizar estes
processos, antes fechados em círculos de poder e de influência restrita dos meios
massivos comerciais. Atualmente, os meios digitais - internet e seus dispositivos móveis
- potencializam a circulação da informação política oriundas de várias fontes em
diferentes arenas discursivas, em diversos formatos e conteúdos, democratizando a
informação. E nestes novos formatos e conteúdos, os cidadãos comuns e grupos sociais
variados aprenderam a se manifestar e fazer valer suas opiniões, o que trouxe um
dinamismo às discussões na esfera política.
Os protestos populares ocorridos em junho e julho de 2013 refletiram esta força
da política do espetáculo favorecida por estas novas tecnologias de comunicação. As
imagens das manifestações no Brasil foram vistas em todo mundo e construíram uma
força política que entusiasmou mais e mais pessoas a aderirem aos protestos. Diante da
53
Disponível em: < http://www.conjur.com.br/2013-jun-17/gastos-campanhas-eleitorais-cresceram-471-dezanos>. Acesso em: 14 junho 2014.
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cobertura destes episódios, a materialização da insatisfação popular na mídia com belas
imagens causou uma comoção nunca vista no país. Eram crianças vestidas de verde e
amarelo, jovens enrolados em bandeiras, cartazes, faixas, palavras de ordem entoadas
com um patriotismo que chegava a emocionar e a criar comoventes enquadramentos nos
telejornais e nas fotos das coberturas jornalísticas. Os partidos políticos, que deveriam
ser os principais mecanismos de mediação entre a sociedade e o Estado, ficaram em
segundo plano, descartados pelos próprios cidadãos, haja vista a queima simbólica de
bandeiras das legendas e dos gritos apartidários das ruas. Mais uma cena ontológica que
causava efeitos emocionais neste espetáculo midiático.
Com efeito, há de se considerar que as bases que sustentaram os partidos
políticos e suas representatividades começam a perder espaço nesta luta simbólica,
deixando de ser tão homogêneas e com demandas comuns. Com isso, os partidos
políticos enfraquecem nos seus posicionamentos ideológicos, uma vez que tinham como
suporte principal as classes sociais para definições de suas representações políticas,
repercutindo nos modelos de sistema político que defendiam.
Trata-se de um fenômeno mundial, inclusive na Europa com a forte tradição dos
partidos políticos. Chadwick (2006) lembra que um dos principais argumentos para esta
crise partidária é que as sociedades pós-industriais já não contam com classes sociais e
grupos homogêneos que deram origem aos partidos nos séculos XIX e XX. “(...) como
as sociedades tornaram-se fragmentadas, os partidos políticos tem visto suas bases
sociais murcharem ou tornarem-se repletas de clivagens sociais” (CHADWICK, 2006,
p.145). O autor ainda reforça que os eleitores são agora muito mais propensos a flutuar
livres de identificação partidária. Com isso, as identidades políticas parecem menos
fixas, fazendo com que os cidadãos exijam formas mais flexíveis e complexas de
expressar diferentes visões políticas e não veem os partidos como os únicos capazes de
acomodar tais diversidades ideológicas (CHADWICK, 2006, p.146).
3 Interferências midiáticas no conceito de representação política
Para compreender como o conceito de representação entrou no cenário político é
necessário contextualizar com o desenvolvimento histórico das instituições, a
interpretação sobre o papel das mesmas na sociedade e o próprio desenvolvimento
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etimológico da palavra, como já afirmava Pitkin (1967). Percebe-se que a complexidade
do termo é enfatizada pela autora desde o final da década de 60, mas sempre com o
vínculo com as transformações das sociedades. O livro de Hanna Pitkin, The Concept of
Representation, publicado em 1967, nos Estados Unidos, é considerado um marco
teórico nestes debates, revelando uma visão inovadora da representação política como
uma atividade social, fugindo da noção ortodoxa até então empregada para designar a
representação. Tais discussões trazem para nossos debates sobre os protestos populares
realizados no Brasil, principalmente, no ano de 2013, leituras diferenciadas sobre o
papel cada vez mais incisivo de novos atores políticos no cenário político nacional, que
reconfiguram o conceito de representação política.
Observa-se que o foco sobre o conceito de representação se distancia dos
paradigmas tradicionais sobre autorização, legitimidade, responsividade, que sempre
nortearam as discussões sobre o tema, e é aproximado de questões como visibilidade
midiática e opinião pública. Os protestos no Brasil, como em outras partes do mundo,
foram emblemáticos na afirmação de que os cidadãos não se sentem representados
politicamente e que utilizam os media para mostrar esta insatisfação e pedir mudanças,
impactando a opinião pública para suas bandeiras de lutas e reivindicações. Grupos
organizados ou não, com ideologias claras ou não, foram às ruas com o apoio de
Sindicatos de trabalhadores, organizações não governamentais e até de facções mais
radicais que entendem que a luta popular contra o sistema se dá através da violência e
do quebra a quebra. Mas tais mobilizações só alavancaram em todo o país pelo impacto
midiático operacionalizado pelos grandes conglomerados de comunicação que deram
cobertura aos protestos e pela capacidade de articulação destes atores políticos
permitida via redes sociais.
Desde a obra Leviathan, de Hobbes, em 1651, quando foi aplicada a primeira
ideia de representação na teoria política, no sentido da agência legal, autorização de
alguém para agir por outro, o termo foi sofrendo atualizações na teoria política,
passando pelas revoluções democráticas do final do século XVIII e pelas mutações
políticas institucionais do século XX.
(...) o sufrágio, a divisão em distritos e proporcionalidade, os partidos
políticos e os interesses e políticas, a relação entre as funções legislativas e
executivas. Estas lutas políticas precipitaram um corpo considerável da
literatura, sistematizada de tempos em tempos, enriquecida e redirecionada
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pela teoria política. Desse material colossal, apenas duas questões conceituais
inter-relacionadas podem ser discutidas até aqui: a “polêmica sobre o
mandato e a independência” e a relação entre a representação e democracia
(PITIKIN, 2006, p.67).
A autora categorizou a representação política em representação formalista,
descritiva, simbólica e substantiva. A primeira enfatiza a noção de representação sob
duas dimensões: por autorização prévia e por responsividade, ideias estas defendidas
inicialmente por Hobbes e pelo modelo liberal, respectivamente. Já a segunda, dá ênfase
à relação entre representantes e representados, como se o primeiro espelhasse por meio
das semelhanças o segundo. No terceiro caso, leva em conta o significado que o
representante tem para aqueles que estão sendo representados. E, finalmente, a
representação substantiva refere-se à substância do que é feito, ou seja, são as atividades
dos representantes, as ações realizadas em nome e no interesse dos representados, é que
são avaliadas. Em todos os casos, observa-se que a representação política ultrapassa o
cenário eleitoral para a legitimação do exercício do poder por determinados grupos.
Nesta perspectiva, a concepção de representação política já trazia consigo uma
exigência de legitimação construída através de processos de identificação entre os
representados com seus representantes, o que exigia medidas eficazes para que
ocorressem estes sentimentos de pertencimento dos cidadãos a determinados grupos e
não a outros, com demandas comuns, discursos comuns, percepções comuns. Nesta
configuração, a opinião pública começa a potencializar sua importância nestes debates,
inclusive, favorecida pelas tecnologias de comunicação.
Em meados de 90, Bernard Manin traz contribuições importantes para o tema da
representação, fazendo uma análise da evolução das democracias representativas,
buscando um denominador comum entre elas ao longo de suas histórias no que se refere
à eleição dos representantes pelos governados, à independência parcial dos
representantes, à liberdade de opinião pública e às decisões políticas tomadas após os
debates. Sua principal crítica recai sobre o processo de seleção dos governantes pelas
eleições, o que ele considera um arranjo aristocrático das elites. Manin (1995) traz com
sua teoria o debate sobre polêmica de que os meios de comunicação estariam
substituindo os partidos políticos na mediação entre representantes e representados,
reforçando a importância da liberdade da opinião pública neste processo. Com o autor, é
reforçada a chamada democracia da audiência.
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(...) Em primeiro lugar, os canais de comunicação política afetam a natureza
da relação de representação: os candidatos comunicam diretamente com seus
eleitores através do rádio e da televisão, dispensando a mediação de uma rede
partidária. A era dos ativistas, burocratas de partido ou “chefes políticos” já
acabou. Por outro lado, a televisão realça e confere uma intensidade especial
à personalidade dos candidatos. (...) o que estamos assistindo hoje em dia não
é a um abandono dos princípios do governo representativo, mas a uma
mudança do tipo de elite selecionada: uma nova elite está tomando o lugar
dos ativistas e líderes de partido. A democracia de público é o reinado do
“comunicador”. O segundo fator determinante da situação atual são as novas
condições em que os eleitos exercem o poder. Reagindo a estas mudanças, os
candidatos e partidos são ênfase à individualidade dos políticos em
detrimento das plataformas políticas (MANIN, 1995, p.22-23).
Com as transformações profundas na sociedade, com algumas características
deste novo período, o qual alguns teóricos denominavam pós-modernidade, capitalismo
tardio ou sociedade pós-industrial, a ênfase recai sobre uma intensa fragmentação dos
segmentos sociais e suas novas bandeiras de lutas, que se impõem no cenário político,
embaralhando ainda mais a concepção de representação política. Como já citamos, as
bases que sustentaram os partidos políticos e suas representatividades começam a perder
espaço nesta luta simbólica, deixando de ser tão homogêneas e com demandas comuns.
Com isso, os partidos políticos enfraquecem nos seus posicionamentos ideológicos, uma
vez que tinham como suporte principal as classes sociais para definições de suas
representações políticas, repercutindo nos modelos de sistema político que defendiam,
cenário que se confirma até os dias atuais.
Young (2000), no seu livro Inclusion and democracry, traz para o debate uma
nova abordagem sobre representação, tendo como foco principal o conceito de
“perspectivas sociais”, visando, principalmente, os chamados grupos minoritários que
aparecem com mais força no cenário político, como mulheres, negros, homossexuais e
outros. Por esta ótica, cada um dos novos segmentos que irrompem no tecido social a
partir da década de 90, fruto dos novos tempos, tem perspectivas diferenciadas em
relação a algumas temáticas, que são necessárias para serem incorporadas nas
discussões políticas dos regimes democráticos atuais. Mais uma vez, os processos
midiáticos reaparecem como mecanismos de visibilidade das demandas destes novos
segmentos.
Young (2006) aproxima suas análises de uma visão deliberacionista da
democracia e da representação política tentando abarcar a inclusão social destes novos
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grupos, pois a multiplicidade dos pontos de vistas ampliaria a noção de realidade e
contribuiria para o processo democrático.
Numa sociedade complexa e com milhões de pessoas a comunicação
democrática consiste em discussões e decisões fluidas, sobrepostas e
divergentes, dispersas tanto no espaço como no tempo. O que são relações
comunicacionais inclusivas em tais sociedades fluidas, descentralizadas de
massa? No contexto dessas sociedades as queixas que apontam o caráter
excludente das normas de representação. As pessoas muitas vezes reclamam
que os grupos sociais dos quais fazem parte ou com os quais tem afinidade
não são devidamente representados nos organismos influentes de decisão, tais
como legislaturas, comissões e conselhos, assim como nas respectivas
coberturas dos meios de comunicação (YOUNG, 2006, p.140).
Na virada do século XX para o XXI, a discussão sobre representação política
reaparece através das instituições representativas como mediadoras entre o Estado e a
sociedade, reforçando o papel da esfera pública nos debates. Também neste período
começam a aparecer estudos que se concentram na inclusão e exclusão de grupos
marginalizados, gerando novas formas de abordagem teórica sobre a representação
(FABRINO, 2008; CHADWICK, 2006; YOUNG, 2006). As instituições representativas
passaram por mudanças importantes que forçam a inclusão do caráter informal
discursivo em uma esfera marcada pelo pluralismo e diversidade, como agentes que se
autoautorizam (ONGs, fundações, grupos de interesses) e entidades que representam
(fóruns deliberativos, painéis, conferências temáticas).
Nesta revisão histórica, o objetivo não foi discutir detalhes sobre estas teorias e
sua validade na formulação dos conceitos de democracia e de representação, mas
revelar o papel fundamental e central da mídia e, consequentemente, da opinião pública,
nestas discussões, que foi ganhando espaços nas últimas décadas. É através da
visibilidade midiática, da potencialização da opinião pública e das transformações
impactadas pela centralidade da mídia nos processos sociais, econômicos e políticos,
que estes debates ganham intensidade, mostrando que os significados de representação
política passam a ter novas leituras e perspectivas relacionais. Os protestos populares
revelaram de forma muito marcante a importância destes dispositivos propiciados pelas
novas tecnologias de comunicação para lançar novos olhares sobre a representação
política na atualidade. “Quem representa”, “o que representa” e “como representa” são
questões que são atravessadas pelos media em todas as fases do processo de
representação política.
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Considerações finais
No cenário político atual, os debates sobre representação política são calcados
mais nas performances imagéticas e retóricas dos candidatos e partidos do que no modo
deliberativo dos conteúdos e doutrinas. Há décadas, novas estratégicas comunicacionais
vão sendo incorporadas na construção desta interface entre mídia e política, o que
impacta o modo de se fazer e de se pensar a política na contemporaneidade. Os
constantes deslocamentos de sentidos vão escrevendo novas histórias e novas
apropriações por segmentos variados da sociedade como linhas de fuga.
Os protestos populares, que levaram milhões de pessoas às ruas e avenidas do
país em 2013, materializaram estes jogos de construção de sentidos nestas implicadas
redes de poder político. As manifestações transformaram-se em um fenômeno midiático
político, na medida em os meios de comunicação de massa foram dispositivos
essenciais para legitimar o movimento como uma grande prática democrática, apesar do
incômodo da violência praticada por grupos de esquerda e direita radicais que pregavam
a depredação como forma de protesto. Sem a cobertura jornalística dos grandes
conglomerados de comunicação e a interatividade proporcionada pelas redes sociais, o
movimento do Passe Livre, que surgiu em São Paulo, não teria este impacto e reflexo
político em todo o país.
Com efeito, os protestos ocorridos no Brasil podem ser analisados por três
aspectos que reforçam esta linha de fuga, ressignificando os debates sobre a
midiatização da política e a reformulação do conceito de representação política. Outros
protestos populares como os ocorridos no mundo árabe contra a ditadura, nos países
europeus contra as medidas recessivas e na América Latina quando da eleição do
presidente da Venezuela, Nicolas Maduro, dentre outros exemplos revelaram também,
apesar de suas peculiaridades históricas e culturais, que a visibilidade midiática pode e
deve ser apropriada também pelos cidadãos para potencializarem suas vozes de
mudanças e insatisfação. “Da mesma maneira como o vírus “aprendem” a resistir às
vacinas, as massas aprendem a jogar com as irradiações que recebem” (GUILHAUME,
1989, p. 138).
A segunda perspectiva refere-se às formas não eleitorais de representação
política, que eclodem na sociedade como mecanismos legitimados pelos meios de
comunicação de massa para o enfrentamento político contra grupos que detém o poder
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institucionalizado. Em uma sociedade midiatizada, com clivagens múltiplas e com
demandas cada vez mais plurais, grupos sociais organizados ou não da sociedade civil
utilizam esta visibilidade midiática para potencializar suas vozes e exigir seus direitos
em confrontos discursivos mais acirrados, na medida em que a mídia amplia o espaço
público de debates. Esta prerrogativa deve suscitar reflexões sobre como os tradicionais
partidos políticos e seus líderes se comportam frente a este novo cenário e como podem
amenizar estas crises de identificação partidária que se abatem em todo o mundo.
O terceiro aspecto refere-se à política do espetáculo, que traz consigo algumas
características positivas de impacto, dramatização, comoção no trato das questões
políticas, mas também reforçam questões negativas como o esvanecimento rápido e
fugaz destes momentos políticos. O dinamismo informacional dos quadros políticos é
tão intenso que a memória torna-se curta demais e os desdobramentos se perdem no
meio do caminho. O escândalo de corrupção de hoje se sobrepõe ao de ontem e o
espetáculo abre suas cortinas com outros cenários e outros atores, construindo novos
sentidos e ressignificando o momento político.
Nestas perspectivas, o apartidarismo dos protestos foi emblemático nestas
relações de poder que atravessam a sociedade atual, mostrando metamorfoses
importantes que devem gerar novas apropriações de discursos e práticas políticos, tendo
como suporte um encadeamento entre a sociedade, mídia e a construção dinâmica de
contextos simbólicos, múltiplos e circulares que se abastecem e redesenham o cenário
político contemporâneo.
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imagem partidária no Brasil. Revista Civitas, Vol.2, nº 2, p 309-326, 2002.
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ENTRE RESISTÊNCIAS E DÁDIVAS:
Reflexões sobre o consumo
colaborativo
Ramon Bezerra COSTA54
RESUMO: O objetivo deste trabalho é refletir sobre o chamado “consumo
colaborativo”, fenômeno que diz respeito a diferentes maneiras de se relacionar e
adquirir produtos, através da troca, aluguel, empréstimo, doação. Primeiramente,
apresenta-se o que tem sido entendido como “consumo colaborativo” e algumas
experiências. Em seguida, discutem-se dois aspectos que parecem estar relacionados a
essa forma de consumo: primeiro uma relação entre essas práticas e as resistências às
“subjetividades capitalísticas” e, segundo, uma aproximação dessa forma de consumo
com o paradigma da dádiva. A importância das tecnologias digitais de comunicação
para o “consumo colaborativo” é discutida ao longo do trabalho.
PALAVRAS-CHAVE: Consumo Colaborativo; Tecnologias digitais de comunicação;
Dádiva; Resistência.
ABSTRACT: The aim of this paper is to reflect about the so called “collaborative
consumption”, phenomenon that is related to different ways of relate to and purchase
products through exchange, rent, loan, donation. First, it introduces what has been
understood as “collaborative consumption” and some examples. Then, it is discussed
two aspects that seem to be related to this form of consumption: first a relationship
between these practices and the resistance to “capitalistic subjectivity” and second an
approximation of this consumption form with the gift paradigm. The importance of
digital technologies of communication to the “collaborative consumption” is discussed
throughout the paper.
54
Mestre e Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (PPGCOM/UERJ). Bolsista da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de
Janeiro (Faperj). Email: [email protected].
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KEYWORDS: Collaborative Consumption; Digital Technologies of Communication;
Gift; Resistance.
1. INTRODUÇÃO
As práticas que atuam sob o rótulo do “consumo colaborativo” têm aumentado
significativamente nos últimos anos. Um possível indicativo disso é que, em 2011, a
Revista Time elegeu as “10 ideias que vão mudar o mundo” e o consumo colaborativo
foi apontado como uma delas (WALSH, 2011). Ao falar de consumo, vale lembrar
Douglas e Isherwood (2006) no clássico O Mundo dos Bens, quando dizem que o
consumo estrutura valores e regula relações sociais, sustentando assim estilos de vida.
Partindo dessa compreensão, essas práticas que costumam ser intituladas de “consumo
colaborativo” parecem um rico e curioso fenômeno, pois alteram, ou mesmo criam,
singulares formas dos sujeitos se relacionarem e construírem seu lugar no mundo.
O “consumo colaborativo” parece ter íntima relação com as tecnologias digitais
de comunicação, pois como afirmam Botsman e Rogers (2011), a partir dessas
ferramentas, os passivos consumidores tornam-se criadores ativos. Tal afirmação está
diretamente relacionada à Internet, já que esta reduz os intermediários e facilita os
intercâmbios. Observa-se, assim, que por meio da rede mundial de computadores
estabelece-se uma forma de consumo que, por vezes, promove relações semelhantes
àquelas entre vizinhos e parentes, mas, agora, entre pessoas que não se conhecem.
Outro aspecto relevante dessa forma de consumo é que ela não faz frente ou
critica o capitalismo, de fato, parece impulsionar novos modelos de negócios. Apesar
disso, ao promover o acesso ao produto em detrimento da propriedade e as
consequentes economias de dinheiro, espaço e tempo, além da dimensão ecológica –
devido à redução do consumo de objetos novos – e ao favorecer que pessoas conheçam
outras, criando novos laços, parece incentivar relações que talvez indiquem novas
conformações subjetivas que fujam ao que Félix Guattari (1990) chamou de
“subjetividades capitalísticas”. Além disso, o fenômeno do “consumo colaborativo”
também parece indicar outro móvel para a ação dos sujeitos, que talvez se aproxime do
paradigma da dádiva proposto por Marcel Mauss (2003). Antes de discutir essas
questões, é importante esclarecer a ideia de consumo colaborativo e a que se refere.
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2. O CONSUMO COLABORATIVO
Possivelmente a primeira referência direta à ideia de consumo colaborativo
tenha sido feita por Felson e Spaeth (1978) ao analisarem práticas como o
compartilhamento de automóveis. Nos anos 2000, essa noção foi retomada por alguns
autores, quando ganhou amplitude, talvez devido ao número crescente de iniciativas
dessa natureza. Atualmente, essa forma de consumo pode ser entendida como práticas
de troca, empréstimo, doação, aluguel, que ocorrem especialmente por meio de redes
digitais de computador (BOTSMAN; ROGERS, 2011).
São experiências diversas. Trocas de objetos que não servem mais para uma
pessoa, mas que podem ser de utilidade para outras. Empréstimos, que vão desde roupas
até casas e vagas em residências, passando por objetos como bicicletas e DVD’s. Esses
mesmos objetos também podem ser alugados, mas por um preço menor do que o
aluguel convencional ou se o produto fosse comprado, como acontece com carros e
objetos usados com baixa frequência, como furadeiras ou iates. Também existem os
empréstimos de espaços: alguém com uma área inutilizada no quintal empresta para
outra pessoa interessada em cultivar uma horta, mas que não tem espaço para isso onde
mora, para citar um exemplo.
Botsman e Rogers (2011) consideram que as práticas de consumo colaborativo
podem ser organizadas em três sistemas distintos: Serviços de produtos, que consistem
em pagar pelo benefício do objeto sem adquirir uma para si; Mercados de redistribuição,
que reúnem as práticas de troca e aumentam o ciclo de vida dos produtos, reduzindo
desperdícios; e Estilos de vida colaborativos, que estão ligados à partilha de coisas
imateriais.
No sistema de “serviços de produtos”, observam-se experiências que vão na
contramão do modelo de propriedade individual, o que parece mais importante é a
utilização do bem, o que ele proporciona, e não a posse, questão que se aproxima das
ideias de Jeremy Rifkin (2000) ao afirmar que vivemos na “era do acesso”. Existem
diversas iniciativas nesse Sistema na área de mobilidade urbana. Exemplo disso é a
empresa de compartilhamento de carros Zazcar, que foi a primeira da América Latina,
cujo objetivo é fazer com que os clientes tenham todos os benefícios de um carro
particular, sem ter que arcar com os custos e responsabilidades de um dono de
automóvel. O funcionamento é simples: os carros ficam espalhados em diversos pontos
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da cidade e o cadastrado, após fazer a reserva (por hora ou dia), retira o automóvel
usando um cartão e depois do tempo estabelecido precisa devolvê-lo no mesmo lugar.
Há também experiências desse tipo para utilização de bicicletas. Um exemplo,
gratuito, é o IntegraBike, que funciona na cidade de Sorocaba/SP. Para utilizar o serviço
é preciso ter mais de 18 anos e cadastro no sistema de transporte coletivo da cidade, o
que permite utilizar a bicicleta por uma hora. Outra iniciativa é o Bike Rio, que
disponibiliza bicicletas em diversos pontos da cidade do Rio de Janeiro. A partir de um
cadastro prévio e do pagamento de um valor mensal (R$ 10), é possível fazer quantas
viagens quiser (de até 60 min.) durante todo o dia, desde que sejam realizadas com
intervalo de pelo menos 15 min. entre elas. Caso as viagens tenham duração maior que
60 min., é cobrado um valor (R$ 5) por cada hora excedente.
Não só na área de mobilidade existem exemplos do sistema de “serviços de
produtos”. Objetos também podem ser alugados. Uma iniciativa que permite isso é o
DescolaAi. O site possui um sistema que localiza o usuário mais próximo
geograficamente daquele que procura o produto e os coloca em contato para acertarem
os valores e prazos do aluguel. O DescolaAi também permite o aluguel de serviços, por
exemplo: uma pessoa que precisa de ajuda na mudança pode alugar as horas livres de
outra. Essa iniciativa oferece ainda a troca de produtos pelo site, o que a caracteriza
também como “mercado de redistribuição”. Para realizar uma troca, o cadastrado no site
(que possui um perfil com nome, foto, cidade e outros dados) oferece algo que não
queira mais e pode indicar pelo o quê gostaria de trocar, ou aguardar a oferta “surpresa”
de alguém. O site Xcambo é outra iniciativa que permite a troca de objetos nesses
mesmos modelos.
Outro exemplo que ilustra os “mercados de redistribuição” é o site Trocando
Livros, com o objetivo de promover o que afirma o nome. Quando uma pessoa
interessada em participar chega ao site pela primeira vez, o passo inicial é fazer o
cadastro e elaborar uma lista com os seus livros que deseja disponibilizar para troca –
todos precisam estar em bom estado de conservação. No momento em que algum
usuário antigo se interessa por um dos livros da pessoa que acabou de chegar, ele faz
uma “solicitação”, que o proprietário da obra precisa aceitar e confirmar que enviará o
objeto, recebendo assim o endereço para envio. A cada livro que o usuário envia, ele
recebe um “crédito”, necessário para que ele solicite os livros de alguém. Cada crédito,
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que é obtido pelo envio de cada livro, é que permite ao usuário adquirir livros,
realizando as trocas sem envolver dinheiro e baseadas na confiança.
O terceiro sistema a partir do qual Botsman e Rogers (2011) organizam as
práticas de consumo colaborativo (“estilos de vida colaborativos”) reúne experiências
intrigantes. Não é curioso observar que em um mundo, comumente entendido como
perigoso e que requer cuidado ao lidar com desconhecidos, pessoas recebem, em suas
casas, sujeitos que nunca viram e, muitas vezes, de culturas completamente distintas?
Isso acontece no CouchSurfing, que pode ser descrito como um serviço de hospitalidade
totalmente gratuito no qual os cadastrados podem receber pessoas em sua casa ou ficar
nas residências de outras. Atualmente, existem mais de 4 milhões de pessoas de 207
países cadastradas. Além das estadias, que podem variar de uma noite a semanas, os
cadastrados nesse site também costumam realizar encontros e passeios em suas cidades,
independente da estadia, criando e mantendo vínculos.
Outro tipo de experiência que demonstra esse estilo de vida colaborativo é o
chamado crowdfunding (financiamento coletivo). Essa talvez seja a prática de consumo
colaborativo mais comum no Brasil, com inúmeras iniciativas55, desde gratuitas até as
que cobram comissão. De maneira geral, ela funciona assim: um sujeito interessado em
obter financiamento para um projeto/ideia (que pode ser qualquer coisa: pintar carroças,
publicar livros, gravar um cd...) faz um vídeo curto descrevendo sua ideia, falando da
importância, dizendo quanto necessita e publica em um site de crowdfunding. Após
isso, as pessoas podem financiar com qualquer quantia, que costuma variar entre dez e
mil reais. Cada pessoa que doou receberá uma recompensa caso o projeto seja realizado,
que varia de acordo com o valor investido, podendo ir desde o nome em uma página de
agradecimento até um jantar com os realizadores, passando por receber o produto que
foi realizado. O projeto fica disponível para receber doações durante um determinado
período, se o proponente atingir o valor que precisa, recebe o dinheiro, caso contrário, a
quantia é devolvida para quem financiou.
Esses três sistemas que Botsman e Rogers (2011) sugerem para organizar as
experiências de consumo colaborativo têm caráter meramente didático e não devem ser
55
Algumas iniciativas de crowdfunding no Brasil: http://catarse.me/pt (primeira a ser criada); www.doare.org e
www.juntos.com.vc (voltadas para o terceiro setor); www.benfeitoria.com (que não cobra taxa de comissão);
bicharia.com.br (foco em animais abandonados); www.variavel5.com.br (foco em eventos culturais);
www.cineasta.cc (foco em cinema); www.freedomsponsors.org (voltada para projetos de software livre).
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tomados de forma definitiva. Eles foram retomados aqui somente por oferecer uma
ordem na apresentação de alguns exemplos e não para que sejam adotados. Além disso,
essas experiências de consumo são diversas e as características desses três sistemas
podem estar presentes na mesma iniciativa e/ou se mesclarem e criarem algo que não se
encaixa em nenhum dos três. Um exemplo é o Airbnb, site que permite alugar a própria
casa estando ou não nela, e que poderia estar presente tanto no primeiro quanto no
terceiro sistema.
Além das experiências de consumo colaborativo que foram citadas existem
inúmeros outros tipos. Por exemplo, as iniciativas que oferecem caronas gratuitas entre
os cadastrados no site, como o Carona Brasil e o Caronetas, sendo que esta última
ganhou um prêmio internacional de soluções para o trânsito em 2012 (MobiPrize).
Outro exemplo interessante é o Bliive, que pode ser descrito como um espaço para troca
de tempo e experiência. Funciona assim: você oferece uma experiência (uma aula de
dança, por exemplo) e pela hora oferecida recebe um “timemoney”, que poderá ser
trocado por outra atividade que alguém ofereça em seu tempo livre (aulas de inglês,
passear com o cachorro).
Com essa breve apresentação de algumas iniciativas de consumo colaborativo a
intenção foi oferecer um panorama geral dessa forma de consumo, sem a preocupação
de criar ou adotar categorias que sistematizassem as experiências. O importante é
perceber a diversidade e o ambiente, pois esses exemplos parecem envolver mudanças
nos processos de produção social de subjetividade56 e indicar a criação de novas
sensibilidades e valores.
3. RESISTÊNCIAS ÀS “SUBJETIVIDADES CAPITALÍSTICAS”
Como foi possível notar, todas as iniciativas do chamado consumo colaborativo
funcionam a partir de páginas na Internet, o que demonstra o lugar das tecnologias
digitais de comunicação para essas experiências, que são praticamente sua condição de
possibilidade. Essa importância é enfatizada por Botsman e Rogers (2011, p.73): “Sem
56
A ideia de subjetividade é entendida a partir de Guattari (1992, p.19) como “o conjunto das condições que torna
possível que instâncias individuais e/ou coletivas estejam em posição de emergir como território existencial autoreferencial (...)”.
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a capacidade de redes sociais da Internet, tal esquema teria pouca chance de combinar
‘desejo com necessidade’ e de alcançar escala rapidamente”.
É interessante notar que algumas ações dessa forma de consumo, especialmente
o empréstimo e a troca, são muito antigas. Exemplos disso são as bibliotecas públicas e
o hábito de pegar algo emprestado com o vizinho. A questão é que, com a Internet e a
criação de sites específicos para esse fim, tais comportamentos se ampliam e se
organizam. O movimento em torno dessa forma de consumo parece ser muito
semelhante ao contexto de compartilhamento no qual se inserem experiências como a
criação do Linux, da Wikipédia e outras. Uma possível diferença é, conforme apontam
Botsman e Rogers (2011), que no ambiente do consumo colaborativo as experiências
não se restringem a cooperações no âmbito online, os laços são criados por meio da rede
mundial de computadores, mas geram ações e também se fortalecem fora da Internet.
Assim, a tecnologia é um elemento importante do consumo colaborativo. Porém,
essa importância não parece ser motivada pela técnica em si, mas pelas relações que se
estabelecem com ela a partir dos desejos de compartilhar algo. Diante disso, parece ser
possível sugerir que essa prática de consumo é habitada e organizada por uma relação
com a técnica, ou seja, está impregnada do que Gilbert Simondon (2007) chama de
“tecnicidade”. Entretanto, para Simondon (2007), essa “tecnicidade” envolve,
juntamente com a técnica, o elemento político, cultural, econômico, subjetivo, entre
outros, e à medida que um desses aspectos muda, altera-se o conjunto dessas relações e
as formas como essas práticas se configuram. Assim, a tecnologia é um elemento
importante e deve ser considerado, mas não determinante, tendo em vista que funciona
em relação a outros elementos.
Nesse sentido, essas experiências precisam ser encaradas como configurações
nas quais elementos diversos interagem para organizar o fenômeno. Fala-se em
configuração com inspiração no conceito de “agenciamento” proposto por Deleuze e
Guattari (1977). Para eles, o agenciamento seria como uma teia de elementos
heterogêneos ligados por desejos. É uma noção mais ampla que a de sistema, estrutura,
processo ou montagem e admite componentes de natureza diversa, tanto de ordem
biológica, quanto social, maquínica, imaginária (GUATTARI; ROLNIK, 1999).
Compreendendo o consumo colaborativo nessa perspectiva e entendendo-o
como uma prática que não pode ser dissociada das relações de produção capitalista,
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tendo em vista que existe em uma sociedade que funciona nesse sistema e diz respeito a
um modo de adquirir e se relacionar com objetos e serviços, é fundamental levar em
consideração as características do capitalismo nesse contexto e as relações de poder.
Atualmente, conforme é apresentado por vários autores (HARDT; NEGRI,
2010; LAZZARATO, 2006; PELBART, 2009; entre outros), vive-se sob o predomínio
do trabalho imaterial e em uma etapa do desenvolvimento capitalista que tem sido
chamada de “capitalismo cognitivo”. Esse ambiente seria marcado pela figura do
“Império” (HARDT; NEGRI, 2010), que coincide com a ideia de “Sociedade de
Controle” tematizada por Deleuze na esteira do pensamento de Foucault (PELBART,
2009). Nesse contexto, o poder57 investiu a própria vida. Os desejos, costumes e hábitos
necessários para a reprodução do capitalismo são internalizados e reproduzidos
(PELBART, 2009). Assim, o exercício do poder é menos vertical e mais democrático,
entrelaçado nas experiências sociais de maneira que nem percebemos, afetando e
formatando assim a subjetividade dos sujeitos (PELBART, 2009).
Diante disso, as resistências ao poder devem se apoiar no que ele próprio
investe, isto é, na vida (NEGRI, 2003; DELEUZE, 2005; PELBART, 2009). Nesse
contexto, as possibilidades de resistência dizem respeito a criar e permitir que a potência
da vida se expresse, tal como Gilles Deleuze apresenta em seu Abecedário 58. E quando
se fala em criar não significa algo ontologicamente novo, mas arranjos, relações e
experiências singulares, que podem ser observadas em diversas áreas, e não somente em
práticas que, claramente, têm como objetivo enfrentar, resistir ou criticar algo. Segundo
Negri (2003), sempre há como resistir contra esse poder que investe a vida e, muitas
vezes, as iniciativas não apresentam, abertamente, objetivos claros e definitivos de
mudança de algo, mas “resistem”, cotidianamente, de diversas formas, como ele
esclarece:
(...) nas atividades produtivas, contra um patrão; nas atividades da reprodução
social, contra as autoridades que regulam e controlam a vida (na família, o
paternalismo...); na comunicação social, contra os valores e os sistemas que
fecham a experiência e a linguagem na repetição e os empurram para a
ausência de sentido. A resistência interage duramente, mas também
57
O poder é entendido aqui, a partir do pensamento de Foucault (1984), como uma relação que não é
originalmente má e está presente em vários campos sociais: família, trabalho, política etc.
58
O abecedário de Deleuze é uma entrevista concedida pelo filósofo e publicada após sua morte. Disponível
em: <http://bibliotecanomade.blogspot.com/2008/03/arquivo-para-download-o-abecedrio-de.html>. Acesso em:
10 jul. 2013.
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criativamente, com o comando, em quase todos os níveis da vida social
vivenciada. (NEGRI, 2003, p. 197).
Assim, os efeitos do poder e as possibilidades de resistência devem ser
encarados “no domínio da ecologia mental, no seio da vida cotidiana, individual,
doméstica, conjugal, de vizinhança, de criação ética pessoal” (GUATTARI, 1990, p.
33).
Diante disso, é possível observar experiências de resistência em iniciativas que
não se prestam, claramente, a esse propósito, mas que parecem criar novas
sensibilidades, maneiras de se relacionar e, talvez, até se afastar do que Félix Guattari
(1990) chama de “subjetividades capitalísticas”, isto é, dos valores, desejos e formas de
estar no mundo responsáveis pela reprodução e manutenção do capitalismo. Isso parece
existir em determinadas práticas do chamado consumo colaborativo ao experimentarem
diferentes maneiras de consumir bens e singulares experiências sociais. Enquanto os
modos de subjetivação capitalista requerem que os sujeitos consumam mais, por
exemplo, nessa forma de consumo há uma tentativa de aumentar a vida útil dos
produtos.
Os adeptos dessa forma de consumo não parecem interessados em combater o
capitalismo, especialmente porque muitas iniciativas são como empresas que geram
renda aos proprietários (como a Zazcar e outras), mas talvez resistam inventando outras
formas de consumir e viver a partir dessas plataformas. Pensando a prática do lazer, por
exemplo, ao viajar, ao invés de ficar em um hotel, é possível se hospedar na casa de
uma pessoa desconhecida criando laços, conhecendo a cidade sob outra perspectiva e
economizando. Ao ler um romance, ao invés de comprar um livro novo, que depois
pode ficar na estante sem utilidade, é possível trocar um antigo que está sem uso por
outro – o mesmo pode acontecer com dvd’s ou cd’s. Além disso, no Bliive, por
exemplo, é possível capitalizar tempo livre e adquirir algum serviço em troca: uma
pessoa que aprendeu a tocar violão na infância por diversão pode dar aulas para alguém
e, em troca, receber aulas de francês, necessárias para o trabalho e que o sujeito talvez
não tenha condições de pagar.
Assim, são formas de consumir produtos e serviços que fogem ao modelo
convencional, muitas não utilizam dinheiro e criam relações entre os sujeitos que antes
não existiam. As pessoas que se dispõem a consumir dessa maneira talvez estejam
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movidas por outros valores, desejos e resistindo ao criar singulares processos de
subjetivação, que para Deleuze (1992) é a operação pela qual os sujeitos ou grupos se
constituem “a margem dos saberes constituídos e dos poderes estabelecidos”
(DELEUZE, 1992, p.188).
4. SOBRE O PARADIGMA DA DÁDIVA
Nas iniciativas de consumo colaborativo é perceptível certa “doação” dos
sujeitos, quando recebem estranhos em sua casa, dão caronas ou mesmo usam seu
dinheiro para financiar ideias de desconhecidos. É por conta dessas ações que se
percebe uma aproximação com a noção de “dádiva”.
De acordo com Mauss (2003), a dádiva é o fundamento de toda sociabilidade
humana, produzindo alianças de diversas naturezas. Para Godbout (1998), a dádiva é o
que circula na sociedade sem estar ligado ao mercado, ao Estado ou à violência. De
acordo com esses autores, a dádiva não corresponde ao modelo mercantil, isto é, tenta
se afastar da equivalência e não possui a retribuição como um fim; pode até existir um
retorno, mas esse não é o foco da ação. Sendo assim, a manutenção da “dívida” é uma
tendência da dádiva (GODBOUT, 1998). É uma relação muito semelhante com a que
pode ser observada nas práticas de consumo colaborativo, nas quais as pessoas dão, mas
nem sempre recebem algo de volta e o retorno não parece ser o móvel da ação.
Na perspectiva da dádiva, os atores retiram a obrigação de retribuir e o retorno é
incerto, mas há o interesse de tentar fazer a dádiva prosseguir (GODBOUT, 1998). É
possível notar isso no consumo colaborativo: o sujeito que dá carona, aceita alguém em
sua casa ou ajuda em um site de crowdfunding, talvez não receba isso de volta, mas
quem foi beneficiado pode fazer por outra pessoa. Evidentemente, outros fatores podem
motivar essa ação dos sujeitos, como o desejo de fazer parte de um grupo ou exercer
algum tipo de poder, mas apesar disso a experiência que emerge é de “auxílio” e
“doação” ao outro.
Uma questão significativa que merece ser levantada é a confiança entre os
sujeitos. Conforme diz Godbout (1998), o sujeito envolvido em um sistema baseado na
dádiva tende a manter a incerteza para permitir que a confiança se manifeste. A
construção da confiança é um aspecto central do consumo colaborativo: é preciso
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acreditar no outro para dar dinheiro a ele, emprestar um objeto, aceitar em casa, enviar
um livro. Todas as práticas dessa forma de consumo pressupõem confiança, ainda que
de diferentes formas e níveis. Talvez seja a incerteza presente na dádiva que colabore
para a existência (ou a construção) da confiança entre os sujeitos dessa forma de
consumo.
Outro aspecto importante a refletir é sobre o móvel das ações dos sujeitos.
Godbout (1998) afirma que o modelo da dádiva não atende a nenhum dos dois mais
comuns postulados psicológicos para explicar o móvel das ações humanas: o do
“interesse”, que geralmente orienta o pensamento econômico, segundo o qual sempre
esperamos algo em troca; e o da “interiorização das normas”, que percebe as ações
como resultados de normas externas que orientam as maneiras de agir. Sendo assim, o
autor diz ser necessário considerar outro atrativo, que talvez seja a necessidade de se
ligar ao outro, se relacionar. Godbout (1998) não chega a uma conclusão definitiva
sobre esse atrativo da dádiva, mas ainda que sem almejar solucionar essa questão, vale
lembrar Michael Tomasello (2009), que a partir de uma pesquisa com crianças,
considera que os seres humanos são naturalmente cooperativos, e que ao crescer é que
vão se adequando as normas do meio. Talvez isso ajude a pensar o móvel do sistema da
dádiva, uma vez que a cooperação, isto é, a colaboração com o outro, está presente no
cerne da dádiva.
Botsman e Rogers (2011), ao refletirem sobre as motivações dos sujeitos que
atuam no consumo colaborativo, apontam que talvez essas experiências de consumo
tenham relação com a crise econômica que se estabeleceu nos Estados Unidos e na
Europa nos últimos anos, e que por isso as pessoas perderam parte do seu poder de
compra e buscaram novas formas para consumir. Por outro lado, é possível observar o
surgimento de experiências dessa natureza em países que registram aumento no
consumo de bens e serviços, como é o caso dos países da América do Sul, em particular
o Brasil (CAÑIGUERAL, 2012). Longe de chegar a alguma certeza, Botsman e Rogers
(2011) apresentam diversas motivações dos sujeitos que atuam no consumo
colaborativo.
Alguns consumidores de colaboração são otimistas que pensam adiante e que
são voltados para aspectos sociais, mas outros são indivíduos motivados por
uma urgência prática a fim de encontrar um jeito novo e melhor de fazer as
coisas. Essa urgência prática pode ser economizar dinheiro ou tempo, acessar
um serviço melhor, ser mais sustentável ou permitir relacionamentos mais
estreitos com pessoas, e não com marcas. A maioria das pessoas que participa
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do consumo colaborativo não é composta de benfeitores do tipo Pollyanna e
ainda acredita muito nos princípios de mercados capitalistas e do interesse
próprio. (BOTSMAN; ROGERS, 2011, p.60).
Diante disso, não parece ser possível definir um único atrativo para a dádiva
e/ou uma exclusiva motivação para os sujeitos que atuam no consumo colaborativo, mas
isso não é um problema, é possível tomar a diversidade de motivações que podem
existir e observar um aspecto que certamente está relacionado: a presença da liberdade
na dádiva, tendo em vista que é uma escolha agir dessa maneira (GODBOUT, 1998). E
nessa perspectiva se encontra um precedente importante para refletir sobre uma última
questão com este trabalho: o sujeito que se constitui nas práticas de consumo
colaborativo.
Foucault (2010a) entende a liberdade relacionada à ética. Para ele, “a liberdade é
a condição ontológica da ética. Mas a ética é a forma refletida assumida pela liberdade”
(FOUCAULT, 2010a, p. 267). A relação entre ética e liberdade no pensamento de
Foucault está intimamente ligada à questão do “cuidado de si”. A partir do Estoicismo
grego, o filósofo francês defende que o cuidado de si é uma forma de limitar o poder, de
controlar desejos, vícios e estabelecer consigo uma relação de domínio, para então ser
livre. Nessa perspectiva, a ética é entendida como uma prática racional, como escolha,
por isso é apresentada como uma forma de liberdade.
A partir dessa liberdade, o sujeito tenta dar à própria vida determinada forma,
burilá-la como uma obra de arte, por isso Foucault (2010b) vai chamar esse processo de
uma “estética da existência”. Ao longo da história, passamos pela predominância de
diferentes formas de constituição dos sujeitos. Nos últimos séculos, é possível observar
certo enfraquecimento dos alicerces e regras que ditam como a pessoa deve agir. As
ciências e o partido político, por exemplo, têm seu papel como fonte de verdade e
orientação colocado em “xeque” e enfraquecido.
Assim, os sujeitos são menos “formatados”, unicamente, por modelos prontos,
buscando, julgando e compondo modos de vida frente às várias possibilidades. Vale
lembrar que essa “estética da existência” é realizada através de esquemas que o sujeito
“encontra em sua cultura e que lhe são propostos, sugeridos, impostos por sua cultura,
sua sociedade e seu grupo social” (FOUCAULT, 2010a, p. 276). Assim, ao buscar
modos de vida, o sujeito pode inventar algo singular, mas invenção não significa o
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surgimento de algo extraordinário e novo, mas sim o que é elaborado com os diagramas
e moldes com os quais o sujeito se depara no mundo em que vive.
Diante disso, é possível sugerir que os sujeitos das práticas de consumo
colaborativo parecem buscar formas singulares de estar no mundo e viver, visto que
criam ou experimentam diferentes maneiras de se relacionar e adquirir produtos. E a
ação desses sujeitos não é uma obrigação ou obediência a normas. Pelo contrário, os
sujeitos escolhem agir assim e, em alguns casos, se esforçam para tanto. Nisso é
possível perceber a semelhança com a noção de dádiva, pois como afirma Godbout
(1998), ela não é feita por dever ou para seguir determinados princípios, mas porque o
sujeito quer, escolheu e se sente bem. Além disso, conforme foi apontado
anteriormente, observar os modos de constituição do sujeito é também uma maneira de
pensar a resistência, partindo do pressuposto que se pode opor às “subjetividades
capitalísticas” criando modos de vida singulares.
5. ÚLTIMAS CONSIDERAÇÕES
Conforme foi dito, é possível perceber que os sujeitos que participam do
consumo colaborativo possuem motivações diversas. Alguns querem uma sociedade
sustentável, outros buscam ganhar dinheiro a partir de um novo modelo de negócios,
enquanto outros apenas facilitar sua vida (BOTSMAN; ROGERS, 2011). Mas todos
parecem convergir para um modo de consumo que priorize o acesso em detrimento da
propriedade e que parece ter relação com os valores de compartilhamento e
sustentabilidade, reduzindo desperdícios e aumentando a vida útil dos produtos.
Nessa forma de consumo, as pessoas oferecem o que possuem, mas o que vão
ganhar em troca não parece ser a motivação principal, até porque, muitas vezes, não há
retorno certo. É possível encontrar exemplos disso em ações como usar dinheiro, que
poderia ser gasto em um fim pessoal, para financiar ideias de pessoas desconhecidas;
aceitar estranhos onde mora mesmo sem receber nada material em troca ou a promessa
de ficar na casa do hóspede quando precisar; e oferecer caronas a estranhos. Ações
como essas não parecem corresponder ao modelo mercantil comum das sociedades
atuais, no sentido entendido por Godbout (1998), e talvez se aproximem do paradigma
da dádiva.
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Foi possível perceber também que determinadas práticas consideradas como
consumo colaborativo parecem apontar para a criação de processos de subjetivação que
talvez indiquem resistências aos poderes que tentam regular a vida a partir de
“semiotizações capitalísticas” (GUATTARI, 1990). Assim, talvez os sujeitos que atuam
nessas iniciativas estejam criando singulares maneiras de viver orientadas por outros
valores.
A partir das reflexões apresentadas neste trabalho, e ainda que algumas questões
tenham sido mais apontadas do que propriamente esclarecidas, buscou-se sugerir
caminhos para refletir sobre o chamado consumo colaborativo. Espera-se ter
contribuído com reflexões sobre um fenômeno recente, que parece muito rico e diverso,
exigindo mais e continuados estudos.
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GLOBALIZAÇÃO, CULTURA E MÍDIA: Uma
interface na produção de sentido nas
sociedades contemporâneas
Lisiane MOSSMANN59
RESUMO: Este artigo aborda de forma articulada três categorias que exercem
influências na formação das sociedades contemporâneas. Com o título, Globalização,
cultura e mídia: uma interface na produção de sentido nas sociedades contemporâneas,
elaboramos uma reflexão mostrando vínculos existentes entre estes conceitos. Tomamos
como apoio teórico pesquisadores do campo da epistemologia cultural, como Thompson
(2002 e 2011), Moraes (2003), Stuart Hall (2005) e Eagleton (2005). Esta reflexão
evidencia a tensão imanente entre o global e o local. O discurso da mídia se ajusta e
media valores que ressurgiram com força, como o da proximidade e suas raízes
identitárias.
Palavras-chave: Mídia. Globalização. Cultura.
ABSTRACT: This paper approaches, in an articulated way, three categories that
influence on the formation of contemporary societies. With the title Globalization,
culture and media: an interface in the production of meaning in contemporary societies,
we develop a reflection showing the links among these concepts. We had as theoretical
support researchers on the field of cultural epistemology, as Thompson (2002 and
2011), Moraes (2003), Stuart Hall (2005) and Eagleton (2005). This reflection shows
the immanent tension between the global and the local. The media discourse adjusts and
mediates values that resurged strongly, as the one of proximity and identity roots.
Key-words: Media. Globalization. Culture.
59
Lisiane Mossmann é jornalista formada pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos e atualmente é mestranda no
Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Piauí. E-mail de contato é [email protected].
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1 INTRODUÇÃO
Neste artigo se pretende estabelecer uma relação conceitual entre globalização,
cultura e mídia. A mídia desempenha papel imprescindível nos processos de produção
de sentidos e na construção da realidade nas sociedades contemporâneas. Os meios de
comunicação, neste complexo campo de estudo, emergem como área estratégica e de
poder no mundo globalizado. A tecnologia digital possibilita ainda uma intervenção
instantânea no cotidiano das populações ocidentais e as fronteiras geográficas,
econômicas e políticas se tornam mais tênues.
Programas radiofônicos e televisivos, jornais, revistas, internet invadem o
espaço privado e se inserem na vida das pessoas, seduzindo-as com informações,
entretenimento, ideologias, representações políticas e filosóficas. A cultura juntamente
com a mídia constitui o tecido de formação do pensamento de um povo. Seu processo
de desenvolvimento acompanha as configurações das sociedades modernas. Desta
forma, os estudos da cultura e da mídia na sociedade contemporânea somente podem ser
efetivados de forma híbrida, pois se entrelaçam ao ponto da literatura compreender
conceitualmente cultura como sendo cultura da mídia.
A cultura da mídia estabelece uma relação dialética com o fenômeno da
globalização. Toda produção de bens simbólicos pertence, por um lado, ao sistema de
representação e, por outro, ao sistema de telecomunicação. Esses sistemas funcionam a
partir da lógica da aceleração dos processos de aproximação e distanciamento do tempo
e do espaço. A globalização, neste contexto, exerce fortes influências no mundo, mas
com mais ênfase nos países da América Latina.
Portanto, a organização retórica da reflexão está sistematizada em torno de três
tópicos discursivos. O primeiro investiga a noção de globalização comunicacional:
como esta categoria se articula com sua dimensão econômica e política intervindo direta
ou simbolicamente na produção e no consumo dos processos comunicacionais e
midiáticos. O segundo tópico reflete sobre a construção do conceito de cultura,
explicitando o seu desenvolvimento relacionado com a produção de códigos e regras
razoavelmente flexíveis, mas que contribuem para a convivência civilizacional. Uma
elaboração dialética do saber tensionado entre o natural e o artificial. E o terceiro tópico
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trabalha o processo histórico midiático, abordando também o fenômeno de globalização
da mídia com suas mudanças de paradigma comunicacional e seus modelos. Por último,
são feitas considerações finais.
2 A NOÇÃO DE GLOBALIZAÇÃO COMUNICACIONAL
A noção de globalização comunicacional é construída tendo como base teórica
autores vinculados às teorias modernas culturais e midiáticas.
Thompson (2011)
acredita que o processo da globalização da mídia se firmou remontando esse
desenvolvimento também às origens do poder e suas inter-relações. De acordo com o
autor, poder “é a capacidade de agir para alcançar os próprios objetivos ou interesses, a
capacidade de intervir no curso dos acontecimentos e suas consequências” (2011, p.38).
São distinguidos por Thompson (2011) quatro tipos principais de poder – de caráter
analítico: econômico, político, coercitivo e simbólico. Essas formas de poder,
geralmente, acabam se sobrepondo umas às outras de maneiras diversas e complexas.
O poder econômico provém da atividade humana produtiva. O político, distinto
do econômico, está mais ligado à atividade de coordenação dos indivíduos e de
regulamentação dos padrões de sua interação. Já o coercitivo pressupõe o uso ou a
ameaça da força física na conquista ou ao subjugar um oponente. A quarta forma de
poder é o simbólico ou cultural, que nasce na atividade de produção, transmissão e
recepção do significado das formas simbólicas (THOMPSON, 2011, p. 38-42).
Um segundo aspecto apontado por Thompson (2011) para o processo da
globalização aglutina, de um lado, as relações entre os padrões estruturados da
comunicação global e, por outro, as apropriações dos produtos midiáticos.
Moraes (2003) também analisa o fenômeno de globalização da mídia e cita
pontos que ajudam a fixar este perfil: a) a mudança do paradigma comunicacional e b) o
modelo organizacional das corporações de mídia. Do gabarito midiático, diz, evoluiu-se
para o multimidiático ou multimídia, sob o signo da digitalização. E essa linguagem
favorece, segundo Moraes (2003, p.191), "a interconexão de redes e plataformas,
viabilizando a base material para a hibridação das infraestruturas indispensáveis à
transmissão compartilhada de dados, imagens e sons, em proporções incalculáveis”.
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Já no que se refere ao padrão corporativo das mídias, Moraes (2003) explica que
a abertura desenfreada dos mercados de informação e entretenimento coloca por terra as
salvaguardas nacionais existentes. E o mandamento diz que os empreendimentos devem
ser geridos a partir de um centro estratégico — a holding — incumbido de pensar e
formular prioridades, diretrizes e planos de inovação, além de estabelecer parâmetros de
rentabilidade para subsidiárias e filiais. Ao mesmo tempo, centraliza a inteligência e a
decisão de filiais locais, regionais e nacionais, garantindo a autonomia para cumprir as
expectativas de produção e lucro, levando em conta certas particularidades
socioculturais.
No entanto, Moraes (2003) discorda dos teóricos que acreditam que a
abundância de oferta de informação e entretenimento no mundo democratiza as culturas.
Para ele, “a industrialização dos bens simbólicos obedece, assim, às injunções
mercadológicas e às conveniências políticas e econômicas dos titãs” (MORAES, 2003,
p. 191).
Não há como retroceder. O mundo está interconectado. Moradores de povoados
da Ásia obtêm informações e imagens de culturas ocidentais fornecidas pelas TVs,
rádio, internet, jornais, assim como produzem roupas que são comercializadas nos
Estados Unidos e na Europa. A mídia trata de mediar a vida social do planeta e as
identidades “flutuam livremente” sem se fixar (HALL, 2005).
Hall (2005, p. 77) propõe pensar a sociedade a partir das novas articulações entre
o global e o local e não a partir do eclipse do local pelo global. Isso implica no
fortalecimento das identidades locais e na produção de identidades híbridas, originadas
do processo de Tradução Cultural: pertence-se a mais de uma identidade, fala-se mais
de uma linguagem cultural (HALL, 2005, p. 89). Essa dualidade tão presente faz com
que o mundo seja visto a partir de uma tensão ou então da “glocalização” (HALL,
2005).
Numa perspectiva pós-moderna, a identidade, completa Eagleton (2005), está
muito mais frágil e instável, enquanto, na era moderna, a concepção que se tinha é a de
que estava ligada à individualidade e à construção de um eu individual único. Currie
(1998) acrescenta ainda que esse período se caracteriza pela diversificação e
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desconstrução.
O impacto principal da globalização citado por Hall (2005) é a compressão
espaço-tempo. É que o tempo e o espaço são coordenadas básicas dos sistemas de
representação - escrita, pintura, desenho, fotografia, simbolização através da arte ou dos
sistemas de telecomunicação. Diferentes épocas culturais têm diferentes formas de
combinar essas coordenadas. Atualmente, há uma aceleração desse processo e sente-se
que as distâncias encurtaram e o tempo diminuiu.
Eagleton (2005) afirma que as vidas social e cultural estão imbricadas na “forma
da estética da mercadoria”. A mídia, hoje, consegue moldar novas práticas culturais na
sociedade dentro de uma perspectiva de transformação.
midiática mudou e transformou a sociedade.
A dinâmica da produção
Para entender a “planetarização”
vivenciada pelas sociedades, Rodrigues (1994) distingue a esfera da informação e a
dimensão da comunicação. Para o autor, a "esfera da informação é uma realidade
relativa que compreende o conjunto dos acontecimentos no mundo e forma o nosso
meio ambiente” (RODRIGUES, 1994, p. 20). Já a dimensão comunicação, "é um
processo de relativa previsibilidade. Da previsibilidade do processo comunicacional
depende um dos seus princípios fundamentais, o da intercompreensão" (RODRIGUES,
1994, p. 21). A informação pertence à transmissão de acontecimentos e conhecimentos,
a comunicação é uma relação intersubjetiva, enraizada na experiência singular e
particular dos interlocutores.
Por isso, pode-se dizer que em meio à abundância de informação sobre o mundo,
a percepção sobre o ele não é tão rápida e não acompanha as transformações. A
percepção faz parte da dimensão da comunicação e está ligada ao ter "tempo para tratar,
assimilar, apreciar e compreender os ecos da atualidade" (RODRIGUES, 1994, p.25).
Rodrigues (1994) aponta outros aspectos relevantes em que, apesar de a
experiência planetária se sobrepor à experiência cultural concreta enraizada nos quadros
tradicionais de representação da realidade, “cada cultura define o seu entendimento de
mundo e continua a definir seu horizonte que delimita o espaço de entendimento e de
compreensão dos acontecimentos e das mensagens difundidas pela mídia”
(RODRIGUES, 1994, p.24).
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Para Rodrigues (1994), a homogeneização informativa não acarreta uma
desterritorialização generalizada, pois não faz com que toda a humanidade tenha as
mesmas representações da realidade e o que ocorre é uma universalização dos fluxos
informativos, em que os particularismos culturais se manifestam.
A mesma opinião tem Hall (2005) sobre essa questão de homogeneização
cultural generalizada por causa da globalização da mídia. O que existe para Hall (2005)
é um tensionamento e um processo de negociação contínuo entre o global e o local. O
autor leva em conta três fatores importantes para fazer tal afirmativa.
O primeiro fator vem a partir da argumentação de outro pesquisador, Kevin
Robin. Ele afirma que ao lado desta tendência da globalização também existe um
fascínio pela diferença, pelo local. O segundo, segue Hall (2005), refere-se à forma de
como estes produtos globais são distribuídos, porque a globalização ocorre de maneira
desigual nas diferentes partes do planeta.
Thompson (2011) ao analisar estudo feito por Hebert Schiller sobre programas
televisivos norte-americanos critica a tese do imperialismo cultural. Segundo Thompson
(2011), Schiller falha ao não levar em conta que as apropriações de fenômenos culturais
são processos fundamentalmente hermenêuticos. Os indivíduos se servem destes bens
simbólicos e os interpretam a partir das suas disponibilidades e também contam com a
ajuda daqueles que estão cotidianamente com eles para interpretar.
3 A CONSTRUÇÃO DO CONCEITO DE CULTURA
A compreensão de como a mídia começou a ocupar o papel central na
disseminação da cultura hegemônica e ocidentalizada só é possível com o entendimento
do processo da construção do conceito de cultura. O significado da palavra cultura
acompanhou o processo histórico-civilizatório e também se transformou. No seu
desenvolvimento, formaram-se as regras e codificaram-se questões filosóficas, do
espírito, da identidade.
Se cultura significa cultivo, um cuidar que é ativo, daquilo que nasce
naturalmente, o termo sugere uma dialética entre o artificial e o natural, entre
o que fazemos ao mundo e o que o mundo nos faz. É uma noção ‘realista’, no
sentido epistemológico, já que implica a existência de uma natureza ou
matéria-prima além de nós; mas também uma dimensão ‘construtivista’, já
que essa matéria-prima precisa ser elaborada numa forma humanamente
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significativa (EAGLETON, 2005, p. 10)
Os conceitos de cultura são os mais variados, como diz Muniz Sodré (1988,
p.13): “Os de um todo, um sistema total de vida, e os de uma prática diferenciada,
parcelar, mas sempre ao redor de uma unidade de coerência, um ‘foco’ de manifestação
da verdade, do sentido, da razão.” A sua origem está ligada ao manejo da terra, e a
noção de cultura é indissociável da ideia de campo normativo, explica Sodré.
Mais tarde cultura e civilização tornaram-se sinônimos, utilizadas para se referir
às pessoas cultas, civilizadas. Essa concepção, chamada por Thompson (2002) de
“concepção clássica de cultura”, refere-se ao processo de enobrecimento das faculdades
intelectuais que se dava através dos trabalhos acadêmicos e das artes.
Eagleton (2005) amplia o conceito e acentua a noção de atividade que implica na
participação das pessoas e é exatamente ali que se processam a criação de sociedades e
identidades: “A cultura modela os indivíduos, evidenciando e cultivando suas
potencialidades e capacidades de fala, ação e criatividade.” (EAGLETON, 2005, p. 11).
Eagleton (2005) problematiza a ideia de cultura no processo de desenvolvimento
civilizatório para desvelar a importância política e escapar da ideia redutora e ordem
colonizadora. A sociedade está imprensada entre “natureza e cultura” (EAGLETON,
2005, p. 141). Afinal, o homem não é apenas um ser natural ou cultural, mas fruto da
junção dessas duas marcas transformadas pela capacidade simbólica e criativa.
Nas sociedades tradicionais, o conceito cultura era universal: todos estavam
ligados a uma ordem simbólica e não eram tidos como sistemas distintos. Por muito
tempo, teóricos pensaram a cultura de uma forma universal. Somente mais tarde é que
foram observadas historicamente as diferenças entre os vários grupos que compõem a
sociedade. Numa perspectiva bem mais ampla, então, se passou a usar a palavra cultura
no plural para designar as distintas formas de sociedade, pensamentos e modos de vida.
Na relação entre cultura e Estado, Eagleton (2005) mostra que na modernidade
os interesses políticos governaram os interesses culturais. No entanto, percebe-se a
dualidade existente, pois essa mesma relação instituiu o Estado-Nação moderno ao
atribuir sentido à herança, à linguagem e aos valores compartilhados.
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Assim como a cultura, a mídia foi de suma importância para a formação dos
Estados-Nação, pois seu “nascimento e seu processo histórico específico acompanharam
o surgimento das sociedades modernas” (THOMPSON, 2002, p. 210). Cultura e mídia
começaram a se entrelaçar e criar laços fortes para a disseminação do que se chama hoje
a cultura da mídia, que nada mais é que a cultura dominante (THOMPSON, 2011).
4 O PROCESSO HISTÓRICO MIDIÁTICO
A mídia também, em sua constituição histórica, buscou a hegemonia na
sociedade. Seu surgimento no século XV, com a impressão de Gutemberg e circulação
dos primeiros jornais, já mostrava isso. As primeiras publicações ultrapassam fronteiras
e chegam a países vizinhos. Depois, com a institucionalização do cinema, rádio,
revistas, histórias em quadrinhos, propaganda e imprensa (pós-Segunda Guerra
Mundial), a mídia começou o processo – que segue até nos dias de hoje - de domínio do
lazer e da ocupação do centro do sistema de cultura.
O surgimento da televisão exacerbou mais esse fenômeno e fez a mídia se
transformar em força dominante na cultura, na política e na socialização, além de
acelerar definitivamente o seu processo de globalização (cabos e satélites superam
limitações de transmissão) (McQUAIL, 2013, THOMPSON, 1995). A partir daí,
mudanças drásticas políticas, sociais, econômicas e culturais eram acompanhadas de
perto pelo mundo.
Assistiu-se, na década de 1960, os movimentos sociais se rebelarem contra a
política e a cultura hegemônicas, produzindo formas alternativas de vida. Já nos anos
70, tem-se o período de recessão nos Estados Unidos, que afetou grande parte do mundo
e provocou uma reorganização da economia mundial.
Marcante também o embate de discursos midiáticos produzidos por causa do
cenário geopolítico nos anos 80 e 90. Trava-se a chamada Guerra Fria: de um lado o
Ocidente do livre mercado e de outro o Leste comunista. A derrubada do muro de
Berlim e a queda do império comunista soviético pareciam indicar o fim destas
disputas. No entanto, o que se observa é o surgimento de outras guerras culturais,
nacionalistas e religiosas, criando uma nova era de medo e sem uma alternativa política
de estabilidade e paz (THOMPSON, 2002 e McQUAIL, 2013).
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A mídia se transformou e modificou a sociedade. A chamada “sociedade da
informação” - hoje quase que totalmente digitalizada -, segundo Mattelart (2002, p.
135), “é um eixo do projeto geopolítico mundial, cuja função é garantir o
reordenamento do planeta ao redor dos valores de mercado e do avanço tecnológico”.
Isso só se tornou possível porque os meios de comunicação exercem uma dupla função:
de objetos e de agentes da globalização. Modernizam-se e recebem investimentos
financeiros e ainda têm o papel de tornar a sociedade consciente desse fenômeno
(McQUAIL, 2013, p.234).
Moraes (2003) também aponta essa duplicidade de papel da mídia: são agentes
discursivos e econômicos. Segundo ele, o primeiro é relativo à sua condição peculiar de
agentes operacionais da globalização, do ponto de vista da enunciação discursiva, pois
exercem a função de vender e legitimar o ideário global e ainda transformam o discurso
social hegemônico, propagando visões de mundo e modos de vida que transferem para o
mercado a regulação das demandas coletivas. A ideia vendida é a de que a fonte de
expressão cultural se mede pelo nível de consumo.
A mídia influencia e exerce poder na construção da realidade social por meio
da moldagem de percepções, afetos, significações, costumes e da produção
de efeitos políticos, baseada na interação em tempo real e na possibilidade de
criação de espaços artificiais ou virtuais (SODRÉ, 2008, p. 12-18)
São as formas mais variáveis e multifacetadas de informações que lemos,
ouvimos e assistimos nos meios de comunicação. Neste processo de globalização, criouse um embate entre o global e o local. Os noticiários e programas estão preocupados em
interagir com aqueles que consomem seus produtos e priorizam informações locais,
principalmente os meios de comunicação afastados dos grandes centros econômicos e
sociais.
Podemos dizer que nesta tensão entre o local e o global irá se produzir
informações e programas diferenciados tentando atender novas demandas: “Não há
global sem local nem local sem global” (REBELO, 2000, p. 153).
Aqueles que já tinham um caráter de proximidade intensificam o foco no local
sem perder de vista o global e a chamada era informacional: produz informação global e
procura dar lugar para vieses, vozes e assuntos locais. Então se lê em notícias de
assuntos nacionais e internacionais vozes locais opinando e, é claro, tentando manter
uma relação de proximidade com o leitor.
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Para acompanhar essa transformação, o processo e a prática da mídia passam por
revisões e adaptações nas produções: tanto na estrutura como nos discursos.
Automatização, enxugamento no quadro de profissionais das empresas, sobrecarga de
tarefas daqueles que permanecem nas empresas, profissionais jovens e sem experiência
assumindo postos de comando e um mercado em plena transformação, com o advento
das redes sociais, colocam em xeque a forma de noticiar e a linguagem utilizada pelas
mídias impressos.
Os produtos midiáticos em circulação são o resultado de um processo de busca
de hegemonia, a partir de uma negociação no mercado simbólico (LOPES, 2004). Em
todas as etapas, desde a produção do fato até a sua edição e recepção, este processo se
faz presente. Muitas vezes, o que ocorre é que aqueles que dela participam não se dão
conta de todas as nuances, imbricações e negociações feitas durante o processo de
produção, por estarem envolvidos de forma já tão naturalizada e internalizada.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
As últimas considerações serão no sentido de marcar algumas retomadas dos
conceitos fundamentais desta interface de produção de sentido nas sociedades
contemporâneas, permitida pela interconexão entre globalização, cultura e mídia. Desta
forma se afirma os seguintes conceitos:
a) Da noção de globalização comunicacional se afirma que esta definição foi
construída por meio de um processo de relação entre os padrões estruturados da
comunicação e apropriações dos produtos midiáticos. O fenômeno de globalização
da mídia explicita mudanças de matrizes conceituais e formas de composição de
poder das corporações de mídia. Outra compreensão de globalização é sua evolução
para as realidades multimídia, sob o signo da digitalização. Toda comunicação
passa por suportes computacionais de interconexão de redes e plataformas. O
mundo contemporâneo se configura como compartilhamento de dados virtuais,
imagens, sons e movimento.
b) Da construção do conceito de cultura se constata definições variadas e abertas.
Desde uma compreensão de cultura como um sistema de práticas, de manifestação
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de verdade, de construção de sentido ou de expressão da razão humana, a uma
concepção clássica relacionada à exaltação intelectual e artística. Cultura ainda
pode ser entendida como forma de controle da ação do indivíduo, tanto da sua
linguagem quanto da sua produção.
c) Do processo histórico midiático descrevemos uma leitura cronológica deste
conceito como também a forma de posicionamento que a mídia foi tomando em
cada momento histórico da sociedade. Tendo como referência a invenção da
imprensa do século XV, passando pela segunda guerra mundial, até o surgimento
da televisão, chegando à contemporaneidade com as mídias interconectadas em
rede. A mídia se posicionou na busca da hegemonia nas articulações de sentido na
sociedade e torna-se uma expressão de globalização na atuação dos meios de
comunicação. Portanto, globalização, cultura e mídia são formas multifacetadas de
informações que produzem bens de consumo através das múltiplas linguagens e
concepções de saber, no qual a comunicação por meio das mídias ganha na cultura
contemporânea um status de adaptabilidade na tensão entre o local e o global.
REFERÊNCIAS
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EAGLETON, Terry. A ideia de cultura. Tr. Sandra Castello Branco. São Paulo: Unesp,
2005.
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LOPES, Paulo Fernando de Carvalho. Negociando sentidos, articulando lugares: o
modelo semiológico-discursivo nas teorias de comunicação e do jornalismo. 2004. 221
f. Tese (Doutorado em Comunicação) Escola de Comunicação da Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, 2004.
MATTELART, Armand. Historia de la sociedad de la información. Buenos Aires:
Paidós Comunicación, 2002.
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McQUAIL, Denis. Teorias da comunicação de massa. Tr. Roberto Cataldo Costa. 6ª
edição. Porto Alegre: Penso, 2013.
MORAES. Dênis. O capital da mídia na lógica da globalização. In MORAES, Denis
(org). Por uma outra comunicação: mídia, mundialização cultural e poder. Rio de
Janeiro: Record, 2003.
REBELO, José. O discurso do jornal: o como e o porquê. Lisboa: Editorial Notícias,
2000.
RODRIGUES, Adriano Duarte. Delimitação, natureza e funções do discurso midiático.
In MOUILLAUD, Maurice e PORTO, Sérgio Dayrell (orgs.). O jornal: da forma ao
sentido. Tr. Sérgio Grossi Porto. Brasília: Paralelo 15, 1997.
______. Comunicação e cultura: a experiência cultural na era da informação. 1ª
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SODRÉ, Muniz. Antropológica do espelho: uma teoria da comunicação linear e em
rede. Editora Vozes: Petrópolis, 2008.
______. A verdade seduzida. 2ª edição. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves
Editora S/A, 1988
THOMPSON, John B. A mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia. Tr.
Wagner de Oliveira Brandão. 12ª edição. Petrópolis: Rio de Janeiro. Vozes, 2011.
______. Transmissão cultural e comunicação de massa. 6ª edição. Petrópolis: Rio de
Janeiro, 2002.
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ENTREVISTA: Carlos Soria
Márcio Carneiro dos SANTOS60
Thaís de Mendonça JORGE (Tradutora)61
O que fez a informação evoluir historicamente: foram as ideias e as mudanças na
organização política e social, o desenvolvimento da vida econômica, o progresso
tecnológico? A quem pertence a informação? Estas são questões que propõe o professor
e estudioso da Comunicação Carlos Soria.
Soria é formado em Direito, foi professor de Direito na Universidade
Complutense de Madri e catedrático de Direito e Ética da Informação na Universidade
de Navarra (Espanha). Foi diretor-geral da Agência Internacional de Notícia Europa
Press e da editora de jornais espanhola Prensa y Ediciones. Junto com um grupo da
Universidade de Navarra, onde foi decano, fundou na década de 1990 o Innovation
Media Consulting Group, empresa de consultoria exclusiva para veículos de imprensa,
da qual foi presidente, e que conta com um corpo de 80 consultores.
Assim como Carlos Soria, hoje no cargo de chairman do Innovation, esses
consultores viajam pelo mundo orientando empresas sobre como entrar na chamada
revolução digital, usando os conceitos de convergência e de turbina informativa. “As
certezas de longos anos foram derrubadas. O panorama dos meios clássicos envelheceu
prematuramente devido à revolução digital. Hoje vivemos um momento de ansiedade,
60 MÁRCIO CARNEIRO DOS SANTOS é doutor pelo programa de Tecnologias da Inteligência e Design Digital da PUCSP, Mestre em Comunicação pela UAM-SP , tem especialização em Marketing pelo ISAN/FGV-Rio e graduação em
Jornalismo pela UFMA.É professor do Departamento de Comunicação Social na área de Jornalismo em Redes
Digitais e coordena o LABCOM – Laboratório de Convergência de Mídias que trouxe o professor Carlos Soria a São
Luís. Email: [email protected]
61 THAÏS DE MENDONÇA JORGE é professora da Faculdade de Comunicação (FAC) da Universidade de Brasília,
cumpriu, de 2009 a 2010, estância de Pós-Doutorado na Universidade de Navarra (Pamplona, Espanha), por meio
de bolsa do convênio Capes-DGU. Doutora em Comunicação Social (2007) e mestra em Ciência Política (1995) pela
Universidade de Brasília, sua graduação em Comunicação Social foi pela Universidade Federal de Minas Gerais
(1972).
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uma encruzilhada na comunicação. Temos que construir um novo cenário”, convida o
professor espanhol.
Soria é autor de 13 livros, e tem em seu currículo mais de 100 consultorias em
empresas midiáticas da Europa e América Latina.
Veja mais em:
http://www.unb.br/noticias/unbagencia/unbagencia.php?id=7760 - Professor espanhol
fala sobre novos rumos do jornalismo.
De forma resumida, como tem sido o seu trabalho junto às organizações de mídia e
que problemas elas tem enfrentado por conta das mudanças tecnológicas?
SORIA: - Em mais de 20 anos de experiência, aprendemos muita coisa. Hoje, o
panorama da ação empresarial está mais claro. Temos algumas certezas. Por exemplo:
a) É preciso ter um pensamento estratégico multimídia. As empresas pedem
ajuda para isso. Que plataformas devem desenvolver e com que intensidade.
Atualmente, as organizações sabem que se encontram em um novo tempo e
que há novos hábitos de consumo de informação, diferentes do passado;
b) Com esse pensamento estratégico, é preciso reinventar todas as plataformas:
internet, rádio, TV, agências, meios impressos. Antes, cada meio era uma
ilha, agora, não. É necessário ter uma estratégia integrada para atender a
audiências que querem receber a informação da maneira mais barata, a
qualquer hora, em qualquer lugar, através de qualquer plataforma disponível;
c) É preciso haver essa integração editorial e comercial. As organizações que
nos chamam compreendem essa realidade. O trabalho do consultor é
conhecer muito bem o pensamento da companhia – conceitos, seu DNA, o
mercado e como a organização se vê no mercado, as audiências – e
conseguir formular perguntas que o empresário quer ver respondidas,
ajudando-o até a prática das ideias esboçadas.
O senhor tem afirmado que a internet não é um meio de comunicação, poderia
explicar por quê?
SORIA: - A internet é uma matriz digital multimídia que contém todos os outros meios
dentro de si. É uma tecnologia que resume todas as linguagens – a escrita, a gráfica, a
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audiovisual –, presentes ou futuras. Isto não significa que não seja uma plataforma, mas
há que situá-la no coração de todos os meios. Dizer que a internet é um meio é uma
afirmativa muito pobre. Não se pode alinhá-la com outros meios. A internet representa,
na verdade, um salto qualitativo para todas as comunicações de hoje e do amanhã.
Os modelos de negócio tradicionais utilizados pelos veículos de comunicação estão
com os dias contados?
SORIA: - Não é bem assim. Os modelos de negócio, hoje, enfrentam tantas turbulências
que estão inseguros. O jornal tem um preço de venda político: não é o custo real, ou
seja, o que pagamos na banca não cobre o custo do produto. Assim, o jornal é
subvencionado pela publicidade. O sistema de venda e distribuiçãoo, que sempre foi um
projeto de engenharia, é um esforço impressionante. As pessoas estão perdendo o hábito
de comprar o jornal e as empresas estão preocupadas com as assinaturas, pois elas são
muito caras. Hoje, com 40% de queda na publicidade, sabe-se que há uma crise no
consumo. Logo, não há publicidade. A publicidade é um fator decisivo para as
empresas, que depende de terceiros. Cada empresário da indústria da mídia tenta
encontrar o equilíbrio entre publicidade e assinaturas para conseguir sobreviver. Com a
rede de distribuição montada para os jornais se pode distribuir muitas outras coisas; os
jornais também podem diversificar-se como centros de eventos, na organização de
convenções. Subir o preço aos poucos pode ser uma estratégia, assim como fazer
promoções, venda cruzada. Melhor isso que o grátis total.
Como as empresas jornalísticas podem sobreviver oferecendo informação num
mundo onde ela é abundante e gratuita?
SORIA: - É muito curioso o que se passou na indústria da mídia. Antes, as breaking
news (notícias de última hora) eram privilégio dos jornais, que as exploravam no dia
seguinte. Então, as rádios liam as breaking news do jornal diário. Depois, o rádio
começou a dar informação em tempo real. Vieram as revistas semanais, numa tentativa
de dar ordem e contexto às breaking news. Hoje essas notícias instantâneas, de última
hora, não valem nada. Os jornais descobriram que não adianta publicar o que passou: o
que interessa é o “next”, o que vem em seguida. As empresas jornalísticas têm que fazer
produtos necessários. Encher papel é suicídio. Qualquer jornal pode ter a metade das
páginas que coloca nas ruas todos os dias. Os jornalistas vão trabalhar muito mais e o
público vai ter um produto muito melhor. Há que reinventar os jornais, assim como as
rádios e as TVs. A matéria-prima informação e divertimento é normalmente grátis. Não
se pode dar essa informação grátis para milhares de pessoas. Como sobreviver? Não
dando a informação que é abundante e livre. Isso exige trabalhar melhor as notícias.
Poderíamos afirmar que o impacto das mudanças de que estamos falando está
relacionado com o estado de desenvolvimento da infraestrutura de internet do país
ou região que observamos, ou seja, em lugares onde ela (a infraestrutura) ainda
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não é muito ampla as formas tradicionais de mídia, como o jornal impresso, por
exemplo, ainda teriam um período maior de existência?
SORIA: - Um pensamento estratégico, em termos da indústria informativa, se apoia na
tecnologia. Os jornais têm que se informatizar e nao pode ter menos recursos que a
audiência. Se nao tiver o mínimo, não poderá fornecer informações relevantes para a
população. Nativos digitais encontram dados em todos os lugares. Se um veículo não
lhe fornece a informação que querem, eles darão um jeito de buscá-la. É preciso ter,
pelo menos o mesmo nível de tecnologia da audiência.
Como o senhor definiria o termo convergência de mídias?
SORIA: - Todos os termos estão contaminados. Falamos de um fenômeno global. Se
não há fronteiras entre os meios, se os hábitos de consumo rezam que eu tenho que
encontrar a informação que quero, na plataforma que desejo e da forma mais barata, não
há maneira de trabalhar com esse tsunami a não ser estrategicamente, organizando e
superando a informação monomeio. Isso significa exercitar um planejamento e um
controle da informação para todas as plataformas. Se a presidente Dilma Rousseff vem a
São Luís, como vamos planejar? Que ênfase vamos dar? Toda empresa tem que saber a
atender ao relógio da informação. A que horas o público se conecta? Qual é meu target?
É preciso coordenar esse relógio.7
Como se organizam nesse novo cenário as redações jornalísticas?
SORIA: - A palavra-de-ordem é “open space”. O modo de organizar o trabalho, as
equipes, passa pela integração, dentro de um pensamento estratégico. É preciso realizar
um câmbio profundo, acabar com as paredes e os “aquários”, pensando no trabalho em
equipe, multimídia e integrado, onde todas as linguagens conversem, os jornalistas
conversem, discutam e se entendam. Todo mundo à vista, sentindo-se parte de um
projeto maior e mais importante, que é a própria informação a serviço do público. Uma
redação multimídia integrada pode se organizar em torno de um “superdesk”, que seria
um “radar desk”, onde se detectam as informações. Esse superdesk se comunica com os
editores de conteúdo. Depois, há uma outra mesa onde são dados os toques finais para
cada publicação e plataforma. Há também uma “ecodesk”, que trata das relações com as
redes sociais; estúdios de foto, rádio e TV; e outros setores especiais como “design” e
“informática”.
Na sua visão como será o jornalismo do futuro?
SORIA: - Prevê-se um renascimento muito bonito da profissão, que leve em conta o
jornalismo de qualidade. Esse jornalismo vai existir sempre e estará matizado pelas
audiências muito mais maduras quanto à liberdade, busca de dados, essencialidade das
mensagens, participação cidadã nas redes sociais, conectividade. O jornalista tem que
ter uma cabeça multimídia e não muitos braços como o do deus Vishnu da mitologia
hinduísta. Ele deve dominar os gêneros jornalísticos no mínimo – e alguns no máximo,
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que se tornarão sua especialidade – para poder exercitar a imaginação criadora,
planificadora, multimídia. Antes o jornalista era um solista, agora ele é um maestro, que
precisa entender vários instrumentos. Tem que trabalhar em equipe, senão não serve a
uma rede convergente e turbinada. O jornal, como existe hoje, não tem futuro. O papel
como suporte nao vai desaparecer: ele é flexível, dobrável, portátil, legível, atende a
muitos propósitos e funções e tem inúmeras vantagens. Entretanto, é preciso estudar
melhor a periodicidade do jornal. O jornal do futuro pode não ter nada que ver com o
que conhecemos hoje.
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A REDENÇÃO DA TV E DO VIDEOGAME.
SIM, É SURPREENDENTE!
Larissa Leda Fonseca ROCHA62
Resenha
JOHNSON, Steven. Surpreendente!: A televisão e o videogame nos tornam mais
inteligentes. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005.
Desde o início do seu livro Steven Johnson nos apresenta qual sua hipótese geral
de trabalho e nos indica claramente o caminho que pretende seguir para nos demonstrar
o que sugere o subtítulo de seu livro: como o consumo da televisão e do videogame
proporcionou um aumento significativo de nossas habilidades cognitivas. O autor nos
diz que há, hoje, um tipo novo e diferente de educação que não está acontecendo nas
salas de aulas ou com livros repousados sobre os colos de leitores assíduos dos clássicos
de literatura, mas em telas de televisão e computadores, em porões de casa e sofás
confortáveis e que está sendo realizado pela maioria dos consumidores de
entretenimento da era digital, é o que chama de Curva do Dominhoco. “Os tipos mais
degradantes de diversão de massa – videogames e filmes violentos de televisão, bem
como as sitcoms (comédias de costumes), próprias para jovens –, no final das contas,
revelaram ser saudáveis” (p. 8). Ao contrário da posição corrente que considera que a
indústria cultural promove uma cultura de massa rasa e imbecilizada, Johnson afirma
que o que está acontecendo é justamente ao contrário, do ponto de vista intelectual a
cultura está cada vez mais sofisticada e não em direção à bancarrota absoluta.
62 Doutoranda em Comunicação Social pela PUC-RS. Mestre em Comunicação Social pela UFF. Professora do
Departamento de Comunicação Social da UFMA. Autora do livro “Diluindo Fronteiras: hibridizações entre a
realidade e a ficcionalidade na narrativa da telenovela” (Edufma). Coordenadora do projeto de pesquisa financiado
pela Fapema “Maldade em outra ótica: a feiura moral sob o véu da beleza na narrativa da telenovela”. Editora da
revista Cambiassu, do Departamento de Comunicação Social da UFMA.Email:[email protected]
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Além desta hipótese de trabalho – por si só já instigante – são apresentadas na
obra as causas prováveis para que seja possível falar em Curva do Dorminhoco, que
inclui anseios neurológicos do cérebro, a sofisticada economia da indústria cultural e
um avanço tecnológico sem igual. Estas forças “colidem” e resultam em uma maneira
específica de funcionamento da cultura de massa e do modo como as pessoas se
apropriam disto. O autor, basicamente, nos pede para pensar sob uma nova lógica, não
mais o embotamento cerebral promovido e organizado pela indústria do entretenimento
como o cinema, a TV e o videogame, mas justo o oposto disso, a potencialização de
nossas faculdades cognitivas. Ao invés de significar declínio e atrofia, a cultura
popular63 tem se tornado cada vez mais complexa e nos ajudado a exercitar nossas
mentes de modo mais poderoso. Uma ressalva, porém, é fundamental. Para
compreender e mesmo reconhecer a existência da Curva do Dominhoco é preciso tirar
da equação o julgamento moral do conteúdo da cultura popular, como diz o autor,
“abolir a tirania da moralidade” (p. 11). Naturalmente, se avaliarmos a mídia com base
nos padrões morais do que é transmitido por lá só será possível ver um declínio absoluto
na sua história. Mas não há um único modo de avaliar as práticas da indústria cultural e
deixando de lado, por um momento, a moralidade do julgamento será possível
reconhecermos que a mídia vem operando de tal forma e nos exigindo um tipo de
pensamento que amplia nossas capacidades cognitivas e isso, talvez, seja mais
importante do que os programas de tv ou os videogames nos passarem uma série de
lições de vida. “A atual cultura popular pode não estar nos mostrando o caminho
moralmente correto, mas está nos tornando mais inteligentes” (p. 12).
Surpreendente! é dividido em duas partes, além da introdução e de “Leitura
Adicional” ao final do livro. Na “Parte Um” ocupa-se em desvelar o que a indústria do
entretenimento – e os consumidores – vem fazendo com os jogos, a televisão, a internet
e o cinema. Esta parte, na verdade, vem organizada em quatro subpartes separadas de
acordo com as mídias mencionadas, e ocupa a maior parte da obra. A “Parte Dois” do
livro não traz subpartes, mas foca suas atenções em falar sobre o aumento do QI nos
63
Em sua obra, traduzida no Brasil por Luciana Gomes e Lucya Duarte, o autor usa as expressões “cultura popular”
para referir-se à cultura de massas, oriunda do sistema da indústria cultural, e “objeto cultural”, para referir-se aos
objetos que são o resultado produtivo desta indústria. Aqui neste trabalho usaremos a expressão escolhida pelo
autor e/ou suas tradutoras.
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últimos anos e as forças que impulsionam a Curva do Dorminhoco: econômica,
tecnológica e neurológica. Por fim, Johnson fecha a parte dois da obra voltando à
questão do julgamento moral da cultura popular e de elementos correlatos a este debate,
como o tratamento da violência em filmes, séries de TV e videogames.
Johnson não poupa fôlego ao falar sobre jogos e sobre televisão, destinando uma
atenção mais reduzida à internet e ao cinema, provavelmente por que as mídias que vem
apresentando os desafios cognitivos que o interessam são justamente a indústria de
videogames e os seriados de televisão. O autor posiciona a questão fundamental para a
qual devemos voltar nossas atenções: a pergunta que interessa não é se os jogos
mostram-se como um divertimento mais sofisticado para as crianças hoje do que a
maioria das outras experiências culturais às quais são submetidas, isso é claro. A
pergunta é: afinal, por que os jogos cativam tanto se, hoje, a maior parte deles – ao
menos os mais vendidos no mundo – são “diabolicamente, algumas vezes
enlouquecidamente, difíceis?” (p. 21). O autor vai apoiar-se na neurociência para buscar
esta resposta e vai concentrar-se em nos dizer que não é o tema dos jogos que seduz, é o
sistema de recompensa neles que tanto atrai. E volta a diminuir o conteúdo dos jogos
em valorização do modo como são usados. Dito de outro modo: “não é o que você está
pensando quando está jogando, é o modo como você está pensando que importa” (p.
33). Se não é o conteúdo que tanto importa, é possível focar nossa atenção no
“aprendizado colateral” que o jogo proporciona e ele é todo baseado na tomada de
decisões. Esta é a atividade básica do jogador e “nenhuma outra forma de cultura
popular mobiliza diretamente o dispositivo de tomada de decisão do cérebro da mesma
maneira” (p. 34). Estas decisões são baseadas em duas modalidades de trabalho
intelectual fundamentais: a sondagem e a investigação telescópica.
A sondagem tem relação com o aprendizado das regras do jogo, que só é
possível aprender jogando, literalmente. É parte fundamental da experiência do
videogame as ambiguidades nas regras e nos objetivos, então o sucesso no jogo está
justamente na decifração das regras do universo onde a experiência está acontecendo.
Mas há, além das regras, o que Johnson chama de “física do mundo virtual”. Ao
executar um jogo o computador não segue apenas as regras, ele “concebe um mundo
inteiro, um mundo com biologia, luz, economia, relações sociais, condições climáticas
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(...) você está sondando a física de um mundo quando começa a descobrir padrões e
tendências sutis no modo como o computador está executado a simulação” (p. 36).
Mas ao “brincar” com um videogame um jogador nunca tem apenas um
objetivo, são vários, simultaneamente em jogo e estes objetivos ainda se organizam
mentalmente de modo aninhado e hierárquico. O trabalho mental de organizar todos
estes objetivos o autor chama de “investigação telescópica”, do modo como vão se
encobrindo um dentro do outro como um “telescópio desmontado”. Este modo de
investigação tem relação com a questão da ordem e da construção de hierarquias
adequadas de tarefas para poder evoluir através delas na sequência correta, ou seja,
perceber relações e definir prioridades. “O que você verdadeiramente faz ao jogar (...)
tem a ver com descobrir ordem e significado no mundo, e tomar decisões que ajudem a
criar essa ordem” (p. 49).
Ao pensar sobre a televisão Johnson nos fala que há um desenvolvimento
rigoroso e rápido e isto está relacionado à mudanças econômicas nos negócios da
televisão e ao desenvolvimento tecnológico que permite assistir tv hoje de outro modo,
em nada semelhante ao consumo síncrono entre emissão e recepção de poucos anos
atrás. Há três elementos primordiais onde o autor apoia-se para pensar como a televisão
– e suas narrativas – vem contribuindo para nosso desenvolvimento cognitivo: enredos
múltiplos, setas intermitentes e redes sociais.
Hoje o drama com enredos múltiplos se tornou o mais recorrente no gênero de
ficção no horário nobre da televisão norte-americana64. Desde os anos 80 a
complexidade das narrativas vem aumentando sistematicamente e exige que os
espectadores preencham elementos cruciais para a história fazer sentido, ou seja, não se
trata apenas de ver um programa inteligente, mas de lançar mão de um trabalho
intelectual fora da tela para o consumo pleno – e compreensivo – das histórias, exige-se
um consumo inteligente. Nas ficções de televisão atuais há vários enredos diferentes
sendo contados ao mesmo tempo, uns se sobrepondo aos outros. Um dos elementos que
ajudam a complexificar as narrativas é o trabalhos que os roteiristas fazem com as setas
64
A televisão norte-americana é o cenário das análises empíricas de Johnson.
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intermitentes, que são como uma espécie de sinalização da narrativa, que ajudam as
pessoas a entender o que se passa na tela e o sentido que devem dar a certos signos.
Nas narrativas clássicas as setas intermitentes diminuem consideravelmente o
trabalho interpretativo/analítico do espectador para que possa compreender a história.
Com as setas nos lugares corretos, tudo que é preciso fazer é segui-las e a narrativa será
inteligível. Não há nenhum mistério sobre a atividade imediata na tela, ela é sempre
perfeitamente entendível. A questão é que nas narrativas contemporâneas, baseadas em
enredos múltiplos, não nos perguntamos apenas como tudo aquilo vai terminar, mas
afinal, o que está acontecendo na história agora. A questão é que os roteiristas nos
obrigam a ficar no escuro, nos negam acesso às setas intermitentes porque desejam que
sejamos capazes de desvendar a história, usando nossas próprias habilidades cognitivas.
Há como que uma confiança implícita entre os espectadores e a narrativa, uma certa
tolerância às ambiguidades e ausência de sentido pois quem assiste a uma dessas ficções
tem que saber o que não deve saber, o que não será oferecido pela história pois parte do
prazer é o espectador “preencher” os espaços vazios para só então a narrativa ficar plena
de significado. “A maneira mais marcante de medir a complexidade desses programas é
considerar o montante de informações externas que o espectador tem que acumular para
‘compreender’ inteiramente as piadas”(p. 67).
Johnson também volta suas atenções para os reality shows. Apesar de nos alertar
que estes programas sempre podem ser questionados sobre sua qualidade, não é possível
negar os méritos do gênero e sua estrutura é “fidedigna a um videogame” (p. 73): há
uma imprevisibilidade nas regras que não são estabelecidas logo de início, o que é parte
do fascínio. O prazer, que ajuda a entender as enormes fatias de audiência que estes
programas alcançam, vem do fato de “colocar outros seres humanos em um meio
ambiente complexo e de alto risco, onde não há estratégias estabelecidas e ver como
eles se orientam” (p. 75). Os reality shows até excedem as demandas cognitivas da
audiência, em relação aos jogos, pois estimulam as ramificações dos contatos sociais
dos telespectadores que, ao analisar cada passo dado pelos participantes, acabam
jogando junto com eles. Trata-se não apenas de adaptar-se à regras mutáveis e de
planejamento das estratégias de ação, mas de fazer tudo isso em um “campo minado de
relacionamentos pessoais” (p. 76). Se é verdade que as narrativas contemporâneas da
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ficção para a televisão nos desafiam a acompanhar múltiplas tramas, os reality shows
“exigem que sigamos múltiplos relacionamentos” (p. 85). Seguir um reality show é
seguir essa trama, essa rede social do universo criado na tela.
Johnson concentra a parte dois de seu livro falando sobre as forças que
impulsionam a Curva do Dorminhoco: econômica, tecnológica e neurológica. Sim, há
nesse jogo de produção de objetos culturais que nos desafiam cognitivamente poderosas
forças de mercado que moldam o entretenimento popular; o impulso oferecido por
tendências tecnológicas de longo prazo; e, por fim, demandas que vem lá do “fundo do
cérebro humano” (p. 127).
Há uma “economia da repetição”, gerada pela alta rentabilidade da
exibição/venda de reprises, que se relaciona com a Curva do Dorminhoco. Se a meta
final da indústria deixa de ser a exibição única de uma narrativa e passa a ser a repetição
dessa exibição, essa mudança vai afetar o conteúdo das ficções televisivas. Os
programas que conseguem sustentar várias exibições sem ficarem cansativos e
entediantes para o público são aqueles que vão gerar mais lucros na “distribuição
autorizada”. Trata-se de levar a parte mais vultosa do lucro do “ao vivo” para as
coleções, para os box de DVD com a última temporada daquele seriado preferido.
“Sempre que a cultura popular troca seus incentivos econômicos de sucessos rápidos
para uma repetição a longo prazo, surge um aumento correspondente na qualidade e na
profundidade” (p. 133).
Naturalmente este cenário é ainda o resultado do desenvolvimento de uma série
de tecnologias, de “máquinas de repetição”, que permitem diminuir o ritmo ou voltar no
tempo, como os DVDs, por exemplo. A internet – e a reunião nela de espectadores fiéis
de programas de TV e jogadores de videogames – permitiu que conhecimento
especializado de consumidores atentos pudessem ser compartilhados pelas pessoas,
ajudando a compreender o sentido das narrativas e descobrindo os truques dos jogos. Os
sites onde estes consumidores se encontram e partilham informações sobre seus
programas e jogos preferidos funcionam como um “anel de decodificação” para a
complexidades desses objetos culturais. “Fãs devotos são co-autores de documentos
públicos maciços (...) que existem on-line como ferramentas evoluídas de trabalho do
conhecimento popular, sempre atualizados por seus fãs dedicados” (p.137). A
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complexidade, assim, só aumenta. A Curva do Dorminhoco é o resultado sim de
investimento econômicos da indústria na produção de uma cultura mais desafiante,
graças às tecnologias da repetição e do metacomentário, mas apenas porque existem
cérebros que desejam ser desafiados.
Há que se considerar, por fim, as “más notícias”. Johnson admite que há certos
tipos de experiências que não podem ser transmitidas ou vividas de forma conectiva e
abreviada. O texto transmitido em rede tem suas próprias riquezas, mas exigem um tipo
de inteligência e habilidade diferentes daquelas demandadas pela leitura de um
argumento que se sustenta por 200 páginas ou mais em um livro. Se a narrativa não
envolve interatividade e o texto exige o acompanhamento do desenvolvimento de uma
ideia de forma contínua, o autor é claro: “A Curva do Dorminhoco sugere que a cultura
popular não está fazendo um bom trabalho” (p. 150). Além disso é importante atentar
para a questão do conteúdo moral, tema abordado no início do livro e retomado em suas
últimas páginas.
O primeiro ponto a se considerar em meio à polêmica da indústria cultural estar
ajudando a construir um conjunto de consumidores desenvolvidos cognitivamente mas
pobres moralmente é que o autor acredita que provavelmente superestimamos a
extensão pela qual nossos valores mais centrais e fundamentais são, realmente,
transmitidos pela mídia. Além disso, a maior parte dos conteúdos da mídia acaba
girando ao redor de estruturas tradicionais de moralidade. Outro ponto a ser considerado
é se toda a violência denunciada nos objetos culturais tem efeito na mente das pessoas.
Johnson diz que a maior parte das pessoas compreende que a violência exibida é, afinal,
fictícia, mas o exercício mental empregado no consumo destes objetos é real. “O
conteúdo da maior parte do entretenimento tem menos impacto do que o tipo de
raciocínio que o entretenimento força você a fazer” (p. 153). Johnson conclui dizendo
que aquilo que defende é uma mudança nos parâmetros para a qualificação do que é lixo
e do que é verdadeiramente substancial, já que a corrida em direção ao fundo do poço é
um mito e não somos um conjunto acéfalo de preguiçosos mentais. A indústria nos
oferece objetos culturais cada vez mais sofisticados e “nossos cérebros gravitam
alegremente para essa complexidade recém-descoberta” (p. 159).
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1974 e 2009: 35 anos de intervalo temporal e o discurso da fome