Entre a ironia e a falsa aparência
Felipe Scovino
O sentido da experimentação na obra de Felipe Barbosa é atravessado por dois
fatores: um pensamento meticuloso sobre o lugar da geometria na arte e a ironia como
um agente infiltrador e índice de investigação. Seja em obras que são auto-referentes à
geometria, seja em intervenções que pensam ou se apropriam da cidade1, ou em obras
que evocam ou aludem ao elemento do fogo, a ironia e o construtivismo são dados
constantes na obra de Barbosa. Mas como, de fato, a arte se relaciona com a ironia? Em
que pensamos quando nos referimos à noção de ironia nos dias de hoje? Ironia e arte são
duas categorias que, nos últimos anos, se aproximaram cada vez mais. Nem por isso
podemos dizer que toda produção contemporânea é irônica ou, pelo menos, possui
traços de ironia. Forma mutante e com características próprias, a ironia difere
(sutilmente, em alguns casos, é verdade) de outras figuras de estilo, de retórica, de
linguagem; em várias ocasiões não é percebida, permanecendo numa espécie de limbo
entre o “dito” e o “não dito”, e muitas vezes é confundida com o humor. A ironia se
constituirá na intenção do interpretador assim como do seu produtor e atuará num
contexto específico (cultural, social e, às vezes, até político), numa relação entre o
concebido e o percebido. Argumentamos que a ironia acontece como parte de um
processo comunicativo; não é instrumento retórico estático a ser utilizado, mas nasce
nas relações entre significados, entre pessoas e emissões e, às vezes, entre intenções e
interpretações; o irônico se estrutura “na” e “pela” linguagem. Divide-se, portanto,
ininterruptamente - eis por que é uma multiplicidade. Especificando, é ironia justamente
à medida que se atualiza, criando linhas de diferenciação que correspondem a seus
diferentes dispositivos no campo da arte. Há apenas uma ironia, embora haja uma
infinidade de fluxos que participam necessariamente desse mesmo pluralismo.
Porque a ironia é questão tanto de interpretação quanto de intenção, ela pode ser
classificada como “questão de compreensão silenciosa”: um acordo baseado em uma
ideologia partilhada sobre “como o mundo é”. O tornar-se irônico na obra de Barbosa é
processo negociado entre duas entidades (espectador e obra), no qual nos engajamos
dotados de invenção que nos faz sentir e pensar de modo original o lugar que habitamos
1
Grande parte dessas obras foi feita em parceria com a artista Rosana Ricalde.
e as aparências que cercam o mundo. Em Martelo de pregos (2001) criamos um hiato
entre o que “sabemos” ou “esperamos” da ordem natural das coisas e o que “vemos”. O
cartesianismo que supostamente habita nosso conhecimento espacial – sobre a qual
tantas equivalências se estabelecem como inquestionáveis – evidencia-se como um
modelo falso e equivocado, porquanto incompatível com a experiência de mundo que
possuímos. Essa espécie de revolução dos pregos contra o seu “opressor” e a construção
semântica e construtiva da obra, faz com que percebemos que o conhecido mentalmente
seja muito diferente do percebido sensivelmente. Não é mais uma ideia que se
acrescenta à quantidade de ideias no mundo; é uma ideia que duvida de todas as outras
ideias.
Em
descritiva
Geometria
(2003-05)
e
Toblerone (2006), os títulos
não designam apenas uma
realidade, eles a fabricam. As
divergências
não
dizem
respeito às maneiras de se
representar a realidade, mas
aos meios de geri-la. Os
ideais
são
tomados
de
suspeita, não exercem mais
Geometria Descritiva - 3 livros de geometria descritiva e fio
de nylon - 20x20x22cm - 2003
sua função tradicional de
identificação. Mais do que um jogo visual (os livros de geometria descritiva
atravessados por linhas descrevendo espacialmente a funcionalidade que o título da obra
opera, e as caixas de chocolate indicando o grau de operação da geometria no trabalho
de Barbosa assim como o diálogo com materiais baratos e rotineiros que acabam por
compor um tecido irônico que é agregado ao seu discurso), nessas obras a relação entre
pensamento, palavra e visualidade desenvolveu-se em várias direções, obrigando-as a
deslocarem-se entre suportes e materialidades diversas na busca de uma realização
plástica apropriada. A ironia reside numa operação tornada invisível pela simplicidade
do resultado, no estado espantosamente banal das coisas, mas que é a única a poder
explicar o embaraço indefinido, por ele provocado. Se nessas obras o equilíbrio é
destacado, em Sala de reunião (2002) e Construtivismo literário (2005) há uma ironia
na estabilidade e manutenção desse equilíbrio. No exercício entre aparência e
nomeação, os títulos indicam uma possível funcionalidade para aquele objeto (que a
obra trata de deslocar para a impossibilidade) ou uma ironia debochada que engloba
visualidade, geometria e um dado kitsch. Se é possível dizer que a ironia acontece como
conflito entre enunciado e enunciação, isso significa que as duas instâncias estão
articuladas, relacionadas de uma forma particular e própria à constituição do processo
irônico. O fato é que para haver ironia, o enunciador produz um enunciado de tal forma
a chamar a atenção não apenas para o que está dito, mas para a forma de dizer e para as
contradições existentes entre as duas dimensões. Barbosa alerta que as coisas à nossa
volta padecem de um excesso de presença e de reconhecimento. A ironia transforma-se
em suspeita, transfere-se para o terreno da liberdade, numa fusão entre o real e o
imaginário. O artista constrói um tipo de discurso que escapa às armadilhas da pura
reflexão ou pura ficção, combinando estratégias variadas de ação que permitem
passagens e conexões entre os dois campos. Numa entrevista, Foucault afirmou: “Estou
consciente de que nunca escrevi senão ficções”, sendo que essa declaração foi logo
seguida por outra, que a complementava: “Acredito que seja possível fazer com que
ficções funcionem dentro da verdade” 2. Adotando esse discurso, Barbosa procura
definir um tipo de raciocínio que se apresenta sem conclusão e sem imagem, sem
verdade nem teatro, sem prova, sem afirmação, independente de todo o centro e que
constitui seu próprio espaço como o fora em direção ao qual, fora do qual, o trabalho
opera. Este discurso abre-se como um comentário, repetição daquilo que murmura
incessantemente; escuta do vazio que circula entre palavras e imagens, discurso sobre o
não-discurso de toda linguagem.
Esse disfarce sob falsas aparências também é presente em Banco (2003-05).
Nessa obra, um banco de praça é coberto com notas picadas e prensadas de R$1. Mais
do que um jogo de palavras, a obra se insere no campo da poesia visual. A obra
concentra-se na reminiscência de um quebra-cabeças onde o espectador é um pouco
dirigido para o olhar e um pouco dirigido para o tato. É preciso prestar atenção ao que
ali se encontra para saber exatamente o que é dado a perceber. Barbosa insiste – e com
razão – em se referir à ideia de “imersão” na obra, em oposição à noção (hoje declarada
insuficiente) de contemplação da arte. A contemplação pressupõe que já saibamos o que
esperar de um trabalho, toda novidade consistindo no ineditismo (ou não) da sua forma,
e tão-somente nele; a imersão a que o artista se refere, ao contrário, exige do espectador
sua inteira disponibilidade com relação ao que vai encontrar; o Banco oferecendo uma
2
FOUCAULT, Michel. Foucault/Blanchot. Nova York: Zone Books, 1990, p. 94.
união entre imagens, palavras e experiência tátil que ocorre de modo bem pouco
esperado. A obra é suficientemente clara e chama a atenção por sua simplicidade
extrema. Mas é nesta mesma simplicidade (enganadora como toda simplicidade) que
reside toda a tensão que o trabalho tem a oferecer: apenas uns poucos elementos, mas
capazes de provocar um adensamento de sensações. Obra em tudo híbrida – por sua
vinculação simultânea com o visível e o não-visível, o percebido e o pensado, o
formalizado e a recusa de formalização –, ela se insere no repertório contemporâneo de
modo a tecer suas próprias determinações e ainda abrir caminhos para outras. Em Sem
título (2000), 120.000 palitos de fósforo são enfileirados, colados e dispostos sob um
plano, este por sua vez é suspenso por uma espécie de banco de madeira, que retransmite a esse conjunto de fósforos, finalmente, uma aparência de assento. Barbosa
mantém um discurso em aparência negativo, pois se trata de negar, com a semelhança, a
asserção de realidade que ele comporta, mas que é no fundo afirmativo: afirmação do
simulacro, afirmação do elemento na rede do similar. Inaugura-se um jogo de
transferências que correm, proliferam, se propagam, se respondem no plano, sem nada
afirmar nem representar. A ironia é a constatação de algo empírico, que muitas vezes
desacreditamos ou não damos a devida atenção. A ironia ou dúvida sobre aquele objeto
faz com que percebamos o quanto podemos estar enganados sobre nossas certezas.
Transitando por entre as intervenções de Barbosa e Ricalde iniciamos com
Largo das Neves s/no (2000). Nessa confluência de absurdos, estranhamentos e
construções, a ironia abriga-se no improvável e desmedido. Uma casa enterrada no meio
da praça apenas com alguns centímetros de parede e o telhado à mostra. O absurdo
confunde as fronteiras entre casa e mundo, situa-a nas fronteiras do irônico, do estranho.
Público e privado estão no mesmo espaço, disputando um lugar que não pode pertencer
aos dois ao mesmo tempo. A função de ser “casa” muda de sentido: deixa de ser abrigo
para ser invasora de espaço. Perde o seu entendimento como abrigo (porque é
inabitável), lugar das práticas domésticas, para traduzir-se na impossibilidade de ser
uma “terra para si”, o solo fundador e acolhedor do descanso e da privacidade. Não é
dele, morador/proprietário, nem muito menos do coletivo, já que a sua “única” função
está desprovida de uso: não possui entradas; é uma caixa intransponível que não oferece
acolhimento. E pior: ocupando um dos poucos espaços de lazer daquele bairro.3 A
questão moral impõe-se no trabalho de Barbosa e Ricalde:
3
O trabalho foi realizado dentro do evento Arte de portas abertas, em 2004, no Largo das Neves, bairro
de Santa Teresa, no Rio de Janeiro.
Largo das Neves s/no nos despertou para a questão moral do trabalho, que é a
noção do desperdício. Então, quando o material é muito caro, isto incomoda
bastante as pessoas. O fato de um artista gastar, na época, poucos mais de
R$1.000 para fazer um telhado e tendo várias pessoas desabrigadas na cidade
é um fato que pode ser encarado como desperdício. Passa a ser algo
questionado pelo público. Eles perguntam: ‘Qual é o objetivo disso?’
4
O processo de produção da “casa” passa a ser tão vital para o seu conceito de
experiência artística quanto o resultado final do trabalho: os fatores de desagregação, o
conflito entre os artistas e os frequentadores da praça, torna-se um elemento que a obra
passa a incorporar e por isso mesmo deve ser levado em conta quando nos referimos ao
processo da “casa” como um todo.
No diálogo com o exterior e em trabalhos em parceria com Ricalde, a obra de
Barbosa configura novas fronteiras para a sua obra e para articulação com o jogo
geométrico assim como com a ironia.
Um cruzamento movimentado no centro da cidade de Fortaleza. Quatro sinais de
trânsito determinam os limites espaciais desse lugar. Abre parênteses. Toda inscrição
nesse amplo espaço urbano passa, em parte, necessariamente despercebida. Impossível
construir um marco que se faça inequivocamente ser lido num campo tão saturado. Os
indícios deixados nesse lugar arriscam perder-se, confundidos com o resto da cidade. As
obras podem apenas sugerir uma articulação, aludindo ao mesmo tempo à ruptura das
comunicações, ao insuperável esgarçamento do tecido urbano. Agora não se tem mais o
indivíduo como medida. As escalas da cidade são outras, desproporcionais à experiência
humana. Impõe-se trabalhar com grandezas que não podemos mais dar conta. Situação
oposta ao ambiente controlado dos museus: a arte é colocada em estado de precariedade
e risco. Fecha parênteses.
A cena dá lugar ao absurdo. Não se coloca mais a questão do olhar: ocorre uma
dissolução da cidade como palco do espetáculo, impossibilitando percorrer os espaços e
articulá-los pela visão. Felipe Barbosa e Rosana Ricalde interferem no tecido urbano, e
mais do que nisso nas leis desse tecido. Aproveitando o próprio diagrama matemático
que a cidade oferece ao cidadão (pedestre, motorista), constroem um organograma que
se mantém re-atualizado a cada ação do jogo: os movimentos contínuos, horizontais e
4
Depoimento concedido ao autor. Rio de Janeiro, 19 de abril de 2006.
verticais, dinamizam toda a área, transferem potência para algo amorfo, modificam o
sentido daquele “sinal” e instauram a “surpresa”. A dupla entende a cidade como um
organismo, vivo, justamente porque mantém os seus fluxos ativos, evitando o seu
repouso absoluto. Em Jogo da velha 5, Barbosa e Ricalde apropriam-se da faixa
sinalizadora de um cruzamento de trânsito e transformam esse quadrilátero com feixes
cruzados num tabuleiro de jogo. É um trabalho “entre-tempos”. No pequeno intervalo
entre o fechamento de um dos sinais de trânsito e a abertura do outro, os artistas
disputam uma partida do jogo que dá nome à obra. Tudo gira em torno do tempo, desse
momento de parada no tráfego. Operam, portanto, no vermelho, no débito, na falta... de
tempo. Arriscando suas vidas e a dos motoristas, essa tática irônica não significa
divertimento, mas recusa ao cotidiano usufruto e justificável daquele espaço,
reconhecendo-o como terreno de vivência móvel, volátil, na cidade.
Dispostos segundo uma grade, a marcação à tinta das cruzes e círculos, feitos
pela dupla no asfalto, fazem um mapeamento negativo do espaço, indicam tudo aquilo
que ele não é, que não se pode ver. Opondo-se ao transitório, ao ritmo de passagem dos
carros, a nova ocupação territorial tem a preocupação em não ser provisória. A situação
aqui não interessa tanto como uma simples demarcação, mas como deslocamento, um
transitar entre as coisas, mas no sentido em que Guimarães Rosa afirmava: “Os lugares
não desaparecem, tornam-se encantados”. Não se trata de simplesmente jogar (ou criar
um percurso de um lugar a outro), mas de produzir um movimento que afete
simultaneamente todo o espaço. A dupla delimita um espaço para um tecido urbano
repleto de elementos desconectados, constituindo-se numa espécie de invisibilidade de
significado para o plano da polis. É como um corte que desagrega todo o desenho
urbano da área, que rompe sutilmente uma espécie de homogeneidade e continuidade no
caos do trânsito.
Essa ação contém a descoberta de instaurar um deslocamento temporal e
espacial naquele espaço dominado por uma aura funcional e precisa; é a instauração de
non-sites, cortes cirúrgicos que instauram momentos de caos. A cidade está se
desrealizando, ela é um horizonte, não pertence mais ao cidadão, e nem este a ela.
Demasiado extensa e complexa, escapou da medida humana, tornou-se um patchwork,
na expressão de Félix Guattari, no qual vão se justapondo desordenadamente
fragmentos disparatados. Descentrada e excessiva, nem comporta mais planejamento
5
A intervenção foi realizada durante a I Bienal Ceará América, em 2002, na cidade de Fortaleza, e foi
apresentada como vídeo, com duração de 7 minutos.
integrado. A essa experiência adicionamos o fato de Jogo da velha confluir para um
esvaziamento que é experimentado como positividade, como se o habitante e o habitat
se desrealizassem enquanto fluxo, fluência, intensidade, emergência, transformação,
num espaço que é criado e percebido num intervalo que se abre entre dois tempos, entre
o tempo do fluxo expectante e o tempo do choque. No instante em que a ação é criada,
no jogo enquanto escolha e resultado, se faz visível um espaço aberto para o
acontecimento, entra e sai tudo o que se move na cidade: gente, carro, máquina. No
intervalo entre os sinais, aparecimento e desaparecimento são, assim, concomitantes e
complementares. Falamos, portanto, de passagens. A cidade está se desrealizando: o
jogo de Barbosa e Ricalde vai adicionando novos elementos (gráficos) a malha viária
urbana. A “disputa” entre os dois constrói novas redes e inscrições no tecido de
comunicação da cidade, criando assim um circuito irônico que alia perversidade a uma
experiência de deslocamento e das operações cotidianas da polis.
Ainda em 2002 Ricalde e Barbosa realizam a ação Visibilidade e leveza, em
Belo Horizonte. Três barreiras de pães, totalizando 9 metros de comprimento, são
erguidas entre vãos de pilastras no Centro daquela cidade. Visibilidade não passa de um
muro de um metro e meio de altura: o olhar por sobre a estrutura é garantido à
curiosidade alheia mas o acesso ao corpo é negado. A “massa” dessa estrutura são pães,
enfileirados e presos com tela de galinheiro. A estratégia da obra passa a ser, inclusive,
a incorporação de uma certa agressividade social. Mais uma vez a moral se coloca como
questão no processo artístico que tem a ironia como fator potencializador. Porém, nesse
momento, o artista se fragiliza ante a opinião pública. Segundo Barbosa, “o trabalho
possuía uma agressividade, porque estávamos trabalhando com comida, num país que é
atravessado pela fome. Mais uma vez, somos [Barbosa e Ricalde] questionados sobre o
desperdício”.6
Entretanto, essa perversidade transforma-se num agenciamento irônico ao
sistema econômico e artístico e torna-se cruel com quem legitimou e ofereceu subsídios
para a sua criação. Vamos aos fatos. A outra sequência desse trabalho – a ação Leveza –
consistiu em recobrir o espelho d’água do Palácio das Artes com 10 mil garrafas cheias
de água mineral. As garrafas são vendidas nas esquinas da cidade: o produto de arte
transforma-se em moeda de câmbio, em mercadoria; volta ao seu estado original e perde
a sua aura de objeto artístico. Volta ao mundo das coisas banais, da sua função de
6
Depoimento concedido ao autor, op. cit.
eliminar a sede, limpar objetos, manter os seres vivos. Em depoimento ao autor,
Barbosa disserta:
Era nosso objetivo a água estar engarrafada. Até à meia-noite elas fizeram
parte de um trabalho de arte (e havia um segurança contratado para manter a
“integridade” delas). Era o efeito Cinderela: enquanto a instituição
permitisse, a água seria arte [lembremos que esse evento ocorreu em paralelo
com a barreira de pães de Visibilidade]; depois ela se transformaria em
abóbora novamente. Quando marcou meia-noite, o pessoal encheu bolsas
com as garrafas. Foi uma ação muito rápida.
No dia seguinte, as pessoas que levaram a “água artística” estavam vendendo as
mesmas. A água passa a ser produto (ordinário) outra vez. O momento dela de ser arte
foi condicionado/autorizado pelo artista e pela instituição promotora, mas logo depois a
água volta a ser consumo, torna a ser o que ela sempre foi. Destino infeliz o da água. O
desperdício tão criticado pelo público passa se tornar lucro líquido para o mesmo. O
banco Itaú, patrocinador da ação, observa passivamente o seu capital sendo
transformado em lucro líquido para a população.
Esse mesmo tipo de negociação feito entre artista e público também aconteceu
durante o processo da obra Muro de sabão em 2003. A obra consistiu num muro feito
com barras de sabão em pedra ocupando o vazio deixado por um muro desabado. Mas
até que ponto um muro de sabão é efetivamente um muro? A sua materialidade é
quebradiça e ademais se constitui em vítima frágil das intempéries da natureza. Por
outro lado, ao mesmo tempo em que o muro interdita o acesso e funda um lugar onde
anteriormente havia uma paisagem, a efemeridade do sabão devolve o esquecimento. A
referida negociação se dá na doação do material:
A Associação de Moradores do Morro da Providência [local onde foi feito o
muro] colocou uma pessoa de prontidão durante o dia inteiro para evitar
depredação. A negociação entre as partes aconteceu e, no final das contas,
ninguém foi antiético: o sabão foi doado pela empresa para que
produzíssemos a obra e depois, o mesmo foi para a comunidade.
7
Idem, ibidem.
7
O artista talvez nunca tenha sido marginal nem herói, ou talvez tenha apenas um
senso de observação (social e político) mais aguçado do que a mídia pensa. A sua
“marginalização” efetivamente está na falta de estrutura e de apoio do circuito de arte
ou então, nos elementos escolhidos para a produção de suas obras muitas vezes por
razões econômicas, mas dificilmente num compromisso de que a marginalidade (como
transgressão ao código penal) é a postura a ser seguida por sua engrenagem. Não há
mais espaço para ele ficar à margem, porque é bem provável que ela não mais exista. As
expressões “mundo” e “arte” contaminam-se a todo o momento. A arte não está mais
fora do mundo.
A aparente precariedade das obras de Barbosa acaba por dar continuidade,
mesmo não sendo sua intenção primordial, a um deslocamento já anunciado pelas
vanguardas construtivas brasileiras: a invenção, como elemento simultâneo de
apropriação e desapropriação de elementos e técnicas corriqueiras do nosso dia-a-dia.
8
Um aspecto ao qual seus trabalhos colocam dizem respeito a sua construção e por
conseguinte ao limite, como afirma o artista: “Em Homem bomba (2002), queria testar o
limite desse objeto, porque o que me interessa, a princípio, nesta obra é uma certa
latência, uma iminência, um perigo. Eu gosto da ideia de um mero gesto poder diluir
toda aquela estrutura complexa que elaborei.” 9 Muitas das obras de Barbosa aliam uma
identidade irônica a uma malícia, conjugada na pólvora, e por isso mesmo levada a
limites extremos. Em todo este “projeto explosivo brasileiro”
10
, há uma constante
manifestação de tensão e torção – seja no âmbito da estética, percepção e ciência. O
“Projeto” visa gerar novos significados por meio do reconhecimento dos limites e a
8
Como o tecido nos Parangolés (1964-68) e a terra nos Bólides (1963-64), no caso de Hélio Oiticica, ou
o alumínio nos Bichos (1960-64) de Lygia Clark.
9
Depoimento concedido ao autor, op. cit. Cabe acrescentar que Homem bomba compreende um boneco
de aproximadamente 44 x 20 x 13 cm, constituído unicamente por ‘bombinhas’ (explosivos com pequeno
poder de destruição, caso não sejam usados em grande quantidade). A obra discutida nesse ensaio é o
vídeo Homem bomba (10’, 2002), realizado pelo artista, que mostra a queima desse boneco.
10
O presente termo foi criado por mim e agrupa obras que possuem a pólvora ou o fogo como tema ou
elemento de suas construções. Podemos citar dentre elas: Bólide lata: apropriação 2, consumitivo (1966)
de Hélio Oiticica; Cruzeiro do sul (1969-70), Tiradentes: totem-monumento ao preso político (1970),
Bombanel (1970/96), O sermão da montanha: Fiat Lux (1973-79), Volátil (1980-94), todas de Cildo
Meireles; e, Fogo cruzado (2002) de Ronald Duarte, para citarmos algumas das obras que poderiam
compor esse conceito. Esta seleção foi feita porque além de todos lidarem com materiais que podem
entrar em combustão, possuem uma linguagem derivada do construtivismo (e esta é umas ironias que o
termo traz: a contraposição entre a linguagem sensível do neoconcretismo e a sua herança, que nas mãos
de Meireles, Duarte e Barbosa se transformaram em elementos “nocivos”). Cf. SCOVINO, Felipe.
Táticas, posições e invenções: dispositivos para um circuito da ironia na arte contemporânea
brasileira. 2007. Tese (Tese em História e Crítica de Arte) - Programa de Pós-Graduação em Artes
Visuais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.
falibilidade desses sistemas de compreensão. É claro que a periculosidade no trabalho
de Barbosa é altamente limitada e praticamente inexistente. Suas obras não oferecem (e
nem querem ser) risco, permanecendo apenas no território das alegorias e metáforas.
Um espírito que faz do artista algo próximo à figura de um provocador. As obras de
Cildo Meireles e Felipe Barbosa poderiam ser descritas como uma teoria poética da
sociedade. Colocam questões que vão da política a ideais e estratégias. Examinam
espaços e processos de comunicação, as condições do espectador, os legados da história
da arte e as fragilidades, limites e medos do homem moderno. Podem incorporar gestos,
fogo, espaço, coisas, circuitos sociais, acumulação, potência, linguagem construtiva,
energia, explosão.
Quando me refiro à operação construtiva em Barbosa, ela obedece a um
processo, quase sempre repetido: “um número variável de objetos idênticos é unido de
modo a formar um volume em torno de um núcleo virtual e que exerce sobre eles uma
força centrípeta.”
11
Quando esse processo é deslocado para o grupo dos objetos
explosivos, centenas de palitos de fósforo são postos lado a lado, constituindo uma
esfera ou plano (se nos detivermos às Bandejas, obra executada em 2001) “cuja
superfície é toda feita de cabeças de pólvora expostas ao risco da combustão violenta.”
12
Pontes (2001-03), Mórulas (200103), Big Bang (2004) e a série dos bichos
de brinquedo cobertos por estalinhos13
(Cavalo, 2005; Panda, 2005-07; Ursa
Maior, 2006-07; Ursa Mel, 2007, entre
outros)
são
formados
por
elementos
cotidianos (palito de fósforos e estalinhos)
que são transformados e serializados.
Contudo, um exame mais próximo desses
objetos alerta para aquilo que os olhos
estão enganando: são compostos por
elementos derivados da pólvora. É a
11
Cf. DOS ANJOS, Moacir. Felipe Barbosa. In: BARBOSA, Felipe. Felipe Barbosa. Rio de Janeiro:
Panda - Estalinhos e urso de pelucia Galeria Arte em Dobro, 2006, s/p.
22x33x18cm - 2005
12
Idem, ibidem.
13
Pequenas bombas caseiras vendidas em época de festas juninas, feitas com uma quantidade mínima de
pólvora e que, portanto, não provocam risco de queimaduras em quem manuseiar ou for atingido por elas.
situação de “acumulação” e “repetição” destes materiais que opera em Felipe Barbosa a
necessidade de torná-los diferentes e inseri-los no circuito da arte. Como um ruído,
esses objetos tornam-se matéria do cotidiano. De um cotidiano, digamos, perverso.
A ironia e a referência ao fim (ou reflexão sobre os postulados) de um “projeto
construtivo” presentes, tanto na aglomeração dos materiais agregados ao boneco do
Homem bomba quanto na sua queima, acabam sendo um discurso secundário, já que o
“projeto explosivo” acaba tomando direções que não haviam sido problematizadas pelo
artista: o lado irônico é acentuado no descontentamento da vizinha ao quintal em que é
feita a explosão do boneco. A impaciência e a raiva com o estouro do boneco revelam
uma situação tão desconfortável (e explosiva) quanto o próprio ato em si. Examinando
espaços e processos de comunicação, as condições de espectador e autoria, o jogo de
aparências de Barbosa põe em questão situações que vão da política a estratégias que
questionam a moral na arte. O artista explica como o acaso tornou-se parte do trabalho:
Foi uma atitude inconsequente. O vídeo apenas registraria a explosão do
boneco. Mas a reação [da vizinha] foi importante: a obra tornou-se real, saiu
do campo artístico. Não foi uma atitude proposital [de gerir a raiva na
vizinhança que circundava a área em que foi feita a explosão], mas também
não tenho como negar que a reação foi um ganho; a simples explosão poderia
se tornar uma atitude banal.
14
A precariedade da produção do vídeo (a câmera tremida, a filmagem em VHS,
algumas sequências foras de foco) também o torna mais próximo do real: conjunga o
inesperado e a dúvida. “Poderia ter feito um vídeo mais produzido e ter contratado um
ator para gritar, mas prefiro o real. Se eu fizesse isso, as pessoas ficariam na dúvida se
aquilo era realidade ou não, porém, no modo como Homem bomba foi produzido, fica
evidente que aquilo aconteceu ao acaso”, narra o artista. Isso não deve causar surpresa:
é inerente ao processo artístico colocar em crise os dogmas, seja isso mediante sua
simples manifestação ou através de ironia, de referências sarcásticas ou o grotesco. É a
instituição do aqui-agora. No espaço da arte, o espectador não sabe o que vai ver e, mais
do que isso, talvez nem esteja familiarizado com o tipo de manifestação a que assiste ou
participa. Como afirma Felipe Barbosa em entrevista ao autor:
14
Depoimento concedido ao autor, op. cit.
O título do trabalho, muitas vezes, é um dado, que pode transmitir confusão,
mas ao mesmo tempo funciona como uma muleta do próprio trabalho. Ele faz
parte de alguma maneira do trabalho. Homem bomba é um dos casos em que
isto acontece. Quando você transforma os materiais empregados naquela obra
num homem bomba, você o remete a um universo imenso. O que é quase um
contra-senso ao tamanho ridículo e inofensivo da obra, mas que na realidade
está longe de ser. É essa potencialidade que me interessa. O mero gesto [de
acender as bombas] que dilui toda uma estrutura.15
Colocado o problema da recepção, vem o questionamento sobre a autosuficiência da arte e o papel do artista, que mesmo que produza para seu próprio prazer,
está situado na estrutura de uma formação cultural que o obriga a pensar no consumo de
sua obra. O estranhamento, o desconforto e o incômodo passam a ser uma intenção, um
fim em determinadas obras do panorama contemporâneo da arte. O espelho de si agora
carece de vidro: o drama real é aquele que se desenvolve frente ao espectador, é esta a
base de numerosos processos de transferência que causam a ruptura com a imagem
prévia de si próprio que cada ser possui.
Deslocando a questão da recepção das suas obras no exterior, o artista ressalta
que, ao contrário da reação quase sempre bem humorada do público brasileiro e da
facilidade de compra desses fogos no país (o que banaliza a sua ação), o espectador
europeu e americano não tem a mesma atitude:
Eles entendem como sendo uma coisa de mau gosto. Não é uma ação bem
vista, [porque] é uma questão [a bomba ou a iminente explosão de algo por
grupos terroristas] que eles vivem diretamente, o que acaba provocando
tensão e incômodo no espectador. Você está definitivamente tocando nas
feridas nacionais.
16
Nesse momento, a ironia não é sarcástica nem zomba de algo; não é ficção,
verdade ou mentira, mas passa a ser ruído e consequentemente alarga fronteiras do seu
entendimento. Em 1970, durante a inauguração do Palácio das Artes, em Belo
Horizonte, Cildo Meireles erigiu Tiradentes: totem-monumento ao preso político, na
semana da Inconfidência. Ao empregar o tema da violência como conceito e aludir à
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Idem, ibidem.
Idem, ibidem.
situação nacional de repressão política, o gesto aterrorizante de imolação das galinhas
vivas em meio ao entulho instala um mal-estar no sistema de arte. O poste alude ao
totem, como à trave da forca de Tiradentes 17. Como disserta Meireles:
A matéria-prima dessa obra é a morte. Mas, evidentemente, sempre por
metáfora, ela acaba voltando à vida: a este mesmo estado desse material do
qual ele é finalmente feito, anterior ao que você vê como registro. Quer dizer,
o que está ali morto, estava vivo. E está ‘sendo vivo’ por meio de pessoas
que, naquele momento, estão vivas. 18
Neste ponto os trabalhos de Meireles e Barbosa se tocam novamente. Até onde
caminham os limites dessa moral? Enquanto algumas culturas entendem essas obras
como perversão, outras apenas riem da situação que beira o absurdo. Seria um problema
de comunicação? De imediato devemos pensar sobre o lugar da arte na
contemporaneidade. Ainda que precipitado, podemos responder da seguinte forma: o
lugar da arte é o espaço. Neste caso, não só pensando-o como suporte – ainda que nestes
trabalhos seja um dado relevante – mas, historicamente, ele seria o seu local por
experiência. Espaço de trânsito, espaço de confluência entre espectador/obra/artista.
Não existe em definitivo o “espaço”, mas provocações, rompimentos, táticas contra
atitudes esgotadas. Por meio de apropriações e invenções, as obras de Felipe Barbosa
criam uma situação de suspensão em suas aparências. À medida que o espectador se
aproxima destes objetos, ele descobre o jogo irônico, as amplas questões relacionadas
ao espaço – sua representação racionalista e a percepção fenomenológica do mesmo - e
a natureza da obra que reverbera em um território semântico no qual o trabalho parece
querer habitar.
17
Cf. HERKENHOFF, Paulo; MOSQUERA, Gerardo; CAMERON, Dan. Cildo Meireles. São Paulo:
Cosac & Naify, 1999, p. 62.
18
MEIRELES, Cildo. Memórias. In: SCOVINO, Felipe (org.). Cildo Meireles. Rio de Janeiro: Azougue
Editorial, 2009, p. 246.
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Entre a ironia e a falsa aparência Felipe Scovino O sentido da