SérieAnis
ISSN 1518-1324
Bioética y Ética y Feminismo y Gênero y Direitos Humanos y Justiça y Desenvolvimento Social
Severina Torturada
1
Debora Diniz
O aborto no Brasil é crime. Isso
significa que as mulheres devem se manter
grávidas, não importando se planejaram ou
desejaram a gestação. A gestação é um dever
imposto pelo Estado às mulheres, sob a
alegação de ser este um ditame da natureza
que, quando violado, acarretaria a interrupção
de uma vida. A proibição das mulheres de
interromperem a gestação está inscrita na lei
penal como um crime contra a pessoa. A
pessoa ameaçada pelo aborto seria o feto. O
argumento é que o aborto interrompe a
gestação e, por isso, agride os interesses do
feto em se manter em desenvolvimento até o
nascimento. Neste raciocínio moral, as
mulheres ameaçadas por um Estado que
sobrepõe o dever ao desejo da gestação são
ignoradas.
A lei penal do aborto foi redigida em
finais dos anos 1930. Já naquele momento, a
implacabilidade da lei foi atenuada por alguns
excludentes penais. Há duas situações
extremas em que o Código Penal considera
que as mulheres possam sobrepor seus
interesses ao dever da gestação imposto pelo
Estado: quando estiverem em risco de morte
ou quando a gravidez for resultante de um
estupro. Nenhuma mulher é obrigada a
interromper a gestação nestes dois casos. O
Estado apenas retira de cena o imperativo do
dever e reconhece a soberania da vontade
nestas situações dramáticas. O dever da
gestação é subordinado ao direito a estar livre
da morte e ao direito à dignidade.
Afirmar que a gestação é um ato de
dever imposto pelo Estado pode ser
interpretado de várias maneiras. Uma delas é
reconhecer a legitimidade do Estado para o
uso legítimo da força para coibir as mulheres
infratoras. Uma mulher que aborte, que afirme
a supremacia da vontade ao dever da
gestação, pode ser presa sob a acusação de
homicida. E não é um homicídio qualquer o
qualificado pela lei penal do aborto: seria o
assassinato de um futuro filho. A lei penal é
algo que deve estar inscrito não apenas nos
corpos
das
mulheres,
forçando-as
a
manutenção da gestação, mas também em
seus valores morais. É preciso que as
mulheres convençam-se da supremacia do
dever ao desejo. É preciso fazer as mulheres
crerem que abortar é assassinar futuros filhos.
Nem que para isso seja preciso utilizar o pode
intimidatório do Estado.
Nem todas as mulheres estão
convencidas desta supremacia da lei à
liberdade.
Milhares
de
mulheres,
cotidianamente, interrompem gestações não
desejadas ou não planejadas. Mulheres de
todas as classes sociais, raças, etnias e
idades. A grande maioria delas aborta em
situações inseguras e de extremo risco à
SérieAnis 43, Brasília, LetrasLivres, 1-6, abril, 2006
saúde. Algumas abortam protegidas por
médicos que entendem o aborto como um ato
médico semelhante a tantos outros, portanto,
passível de ser comercializado. A tal ponto o
aborto inseguro expõe o corpo e a integridade
das mulheres que há inúmeros casos de
mulheres que morrem ao tentar abortar. Há
estados no Brasil em que as seqüelas do
aborto inseguro são a terceira causa de morte
materna. O medo da força do Estado as obriga
a
procurar
alternativas
solitárias
e
desesperadoras.
Há quem considere que a morte
dessas mulheres é menos importante que o
risco moral que significaria retirar o caráter
penal do aborto. Se, por um lado, o
argumento
que
o
aborto
deve
ser
irrestritamente penalizado cresce entre alguns
segmentos religiosos e fundamentalistas, por
outro lado, a defesa da supremacia da
autonomia da vontade é um princípio cada vez
mais sólido em países democráticos e laicos
como é o Brasil. O fato é que o aborto é um
tema de pouquíssimo consenso moral e os
acordos são lentos. Entre nós, a história
política e social do aborto é uma história de
negociações mínimas.. Na esfera legislativa,
por exemplo, ora valores liberais estão em
voga,
ora
valores
conservadores
são
hegemônicos. O curioso do tema do aborto é
que as premissas morais que sustentam
diferentes
posições
legislativas
são
independentes de outras posições políticas ou
sociais de seus defensores.. O aborto se
encontra emaranhado em uma rede de
crenças e dogmas que desafia o debate
político democrático e laico.
Mas, desde meados dos anos 1990,
outra situação dramática entrou no cenário
das possíveis exceções penais: o aborto não
seria crime quando o feto apresentasse máformações que tornassem a vida extra-uterina
inviável. Há diferentes patologias, síndromes
ou
má-formações
que
provocam
a
inviabilidade fetal, mas o caso mais comum é
da anencefalia. A estimativa é que mais de
3.000 mulheres em todo o país já
interromperam legalmente a gestação em
casos de inviabilidade do feto, muito embora
este não seja um permissivo inscrito na lei. As
decisões são caso-a-caso: cada mulher
apresenta e submete sua história de
sofrimento a um juiz ou a um promotor que,
por sua vez, decide se a situação é ou não
legítima para qualificar o pedido de aborto
como legítimo. Acredita-se que o primeiro
caso tenha sido autorizado, em 1989, no
estado de Rondônia.
Este número não corresponde ao
total de mulheres que interromperam a
gestação por má-formação incompatível com a
vida no feto. Milhares de mulheres sequer
procuraram a Justiça e, ao contrário de outras
situações de aborto, estas não necessitaram
se submeter a situações indignas ou de risco:
contaram com a solidariedade privada de
médicos capazes de se aproximar da tragédia
1
SérieAnis
ISSN 1518-1324
Bioética y Ética y Feminismo y Gênero y Direitos Humanos y Justiça y Desenvolvimento Social
que é a experiência de gestar um feto que não
sobreviverá à gestação ou ao parto. Na
verdade, a Justiça é a condição de
possibilidade para o aborto de fetos inviáveis
apenas para as mulheres usuárias do Sistema
Público de Saúde, as chamadas SUSdependentes.
Do
total
de
processos
autorizados pela Justiça brasileira nestes 16
anos desde a primeira autorização, quase não
há casos de mulheres usuárias do sistema
privado de saúde.
mulheres na mesma situação, foram "meu
filho, meu filho está morto". A tentativa de
suavizar a imagem do feto com a parte do
crânio decepado pondo-lhe uma touca não foi
um atenuante para Severina: ela quis tocar
seu filho sem a touca para poder, pela
primeira e última vez, encarnar o diagnóstico
da anencefalia. Rosivaldo conheceu seu filho já
com a touca em um caixão no necrotério
próximo à sala de parto onde Severina estava
internada.
Além da certeza do diagnóstico de
má-formação incompatível com a vida extrauterina atestado por laudos médicos e peritos
médicos da Justiça, é preciso que a mulher se
disponha
a
expor
seu
sofrimento
publicamente.
O
caráter
público
da
peregrinação judicial se dá não apenas por
retirar a gravidez dos limites médicos do prénatal e transferi-la para um tribunal, mas pela
necessidade de expor a fatalidade da situação
e seu caráter incontornável. Antes de chegar a
um juiz ou a um promotor disposto a escutar
sua história de sofrimento, muitas mulheres
peregrinam
por
defensores
públicos,
advogados voluntários, estudantes de Direito,
ou mesmo jornalistas, assistentes sociais ou
organizações
não-governamentais
de
mulheres. Neste processo, além de responder
às mesmas perguntas, muitas mulheres
enfrentam o espírito missionário de entidades
religiosas dispostas a demovê-las da decisão
de interromper a gestação.
A história de Severina resume o
drama que é a gestação de um feto que não
irá sobreviver ao parto. A possibilidade de
diagnóstico da inviabilidade fetal é uma
novidade biomédica que passou a ser rotina
do pré-natal a partir de meados dos anos
1990. A Medicina Fetal é uma especialidade
médica que cresce rapidamente no mundo e
as possibilidades de diagnóstico e, inclusive,
de tratamento do feto ainda no período intraútero são também crescentes. A anencefalia é
facilmente identificada por volta da décima ou
décima segunda semana de gestação por meio
de uma ecografia simples. A imagem do
achatamento craniano e da ausência dos
hemisférios cerebrais é nítida, mesmo para
pessoas leigas na leitura do diagnóstico por
imagem. Não é preciso ser um especialista em
Medicina Fetal para visualizar o perfil de um
feto com anencefalia, semelhante a um de
sapo ou de uma coruja. A imagem é
inconfundível: não há possibilidade de erro no
diagnóstico.
Severina é uma dessas mulheres.
Como tantas outras, é uma nordestina pobre e
analfabeta. Jamais havia ouvido falar em
anencefalia, mas foi totalmente capaz de
entender e ler uma imagem ecográfica que
atestava a anencefalia em seu feto. Era já
mãe de um filho, uma mulher que se
considerava preparada e desejosa da segunda
maternidade. Trabalhadora rural, jamais
entendeu, e nem pode entender, a gravidez
como uma experiência que suspende a
identidade das mulheres. Severina não
experimentava um momento mágico da
existência feminina com a gravidez: mantevese ativa e presa à plantação de brócolis
durante todo os meses da gestação. A
gravidez era uma experiência ordinária da
existência
como
outra
qualquer.
O
extraordinário era gestar um feto que não
resistiria ao parto.
"Mas é pela gestação que se
aumenta a família" - esse era o objetivo de
Severina ao engravidar. Foi uma gravidez
planejada por ela e seu marido, Rosivaldo. O
que foi inesperado foi o diagnóstico de
anencefalia no feto, uma má-formação
gravíssima e letal que faz com que, na maior
parte dos casos, o feto sequer alcance o parto.
No restante dos casos, o feto resiste apenas
algumas horas ou dias fora do útero.. Severina
jamais havia visto um feto com anencefalia
até o momento do parto quando lhe
apresentaram seu filho já morto. Suas
palavras, assim como as de inúmeras outras
SérieAnis 43, Brasília, LetrasLivres, 1-6, abril, 2006
O recurso tecnológico que permitiu
Severina diagnosticar a anencefalia em seu
feto não é nenhuma extravagância médica, é
parte da rotina de qualquer pré-natal decente
no país. Isso significa que, potencialmente,
todas as mulheres grávidas em pré-natal terão
acesso ao diagnóstico precoce de anencefalia
no feto. Basta realizar uma ecografia de
rotina. E sobre o diagnóstico não há qualquer
dúvida: não há graus ou intensidades na
anencefalia. Em todos os casos, é uma máformação incurável, letal e não há qualquer
possibilidade de sobrevida prolongada. Não
existem crianças anencéfalas no mundo,
simplesmente porque não é possível qualquer
forma de sobrevida além das horas ou dos
poucos dias de pós-parto no hospital. A
absoluta maioria das mulheres solicita a
interrupção da gestação, independente de
crenças religiosas ou filosóficas particulares.
A implacabilidade do diagnóstico de
anencefalia
distancia
a
interrupção
da
gestação do fantasma da eugenia. Durante um
tempo, houve um intenso debate se o aborto
em casos de anencefalia seria uma expressão
de valores eugênicos ou de desrespeito às
pessoas deficientes. Não há qualquer forma de
comparação entre anencefalia e deficiência. A
deficiência é parte natural de nossas vidas e
com o crescente envelhecimento populacional
a experiência da deficiência será algo comum
às pessoas que aproveitarem os anos
conquistados pelo avanço da Medicina. O novo
2
SérieAnis
ISSN 1518-1324
Bioética y Ética y Feminismo y Gênero y Direitos Humanos y Justiça y Desenvolvimento Social
Censo brasileiro aponta que 14,5% da
população apresenta alguma forma de
restrição de funcionalidade, mas que neste
grupo não há ninguém com anencefalia. A luta
dos movimentos de deficientes é pela garantia
do direito de estar no mundo, algo impossível
de ser imputado a um feto com anencefalia. A
anencefalia incapacita um feto de viver a vida,
um pressuposto necessário para qualquer
pleito por direitos.
O argumento que o aborto em casos
de anencefalia seria a expressão de um clamor
eugênico não deve ser entendido apenas como
uma confusão política ou desinformação sobre
o diagnóstico da incompatibilidade com a vida.
Qualquer pessoa razoavelmente interessada
no
significado
médico
da
anencefalia
compreende o caráter limite do diagnóstico:
basta seguir a etimologia da palavra
anencefalia. E, para quem a etimologia for
pouco esclarecedora, a definição dicionarizada
não deixa dúvidas: "monstruosidade em que
não há abóbada craniana e os hemisférios
cerebrais ou não existem, ou se apresentam
como pequenas formações aderidas à base do
crânio". Na verdade, aproximar o tema da
interrupção da gestação por anencefalia do
campo da eugenia ou dos interesses dos
deficientes é parte de uma estratégia bélica de
tornar o debate nebuloso. Acusar uma mulher
que interrompe a gestação por anencefalia no
feto de ter realizado um aborto eugênico é
imputar-lhe um duplo crime: o de haver
assassinado o feto e por motivos torpes e
discriminatórios.
Mas o interessante da história de
Severina é que a ausência de educação formal
não a impediu de compreender a gravidade do
diagnóstico e de diferenciar sua decisão de
qualquer ato discriminatório contra os
deficientes. Em vários momentos, Severina e
Rosivaldo contaram sua história familiar, de
primos ou sobrinhos deficientes e do quanto
esta era uma experiência feliz para todos. A
decisão do casal pela interrupção da gestação
foi resultado de um ato informado e
esclarecido, a despeito de toda a distância
social que separa Severina, Rosivaldo e seus
médicos. A linguagem médica não faz parte do
vocabulário cotidiano do mundo rural de
Severina: probabilidades e estatísticas de risco
são traduzidas em termos simples de chances
ou não de sobrevida. O feto de Severina não
sobreviveria ao parto e esta era a informação
suficiente para a tomada de decisão sobre a
manutenção ou não da gestação.
Para quem considera o aborto contra
um crime contra a vida - um argumento pouco
consensual mesmo um país de maioria cristã
como é o Brasil - a anencefalia impõe uma
série de desafios. O primeiro deles é o
reconhecimento de que não se precisa sair à
procura de um consenso sobre quando e como
se inicia a vida humana. Para aqueles que
defendem que a vida simbólica teria início com
a fecundação e que, portanto, seria possível
reconhecer no feto direitos e conquistas
SérieAnis 43, Brasília, LetrasLivres, 1-6, abril, 2006
sociais por sua potencialidade de vida futura
independente do corpo da mulher, a
anencefalia aponta para a importância de
enfrentarmos o tema dos direitos reprodutivos
para além de atos de fé sobre o início da vida.
Afirmar o sentido simbólico e jurídico do início
da vida humana na fecundação, na nidação ou
no parto é um ato moral como inúmeros
outros comuns à nossa vida social. No
entanto, diferentemente de outros valores
morais, a tese do início da vida humana na
fecundação alçou um estatuto moral particular
a meio caminho da ciência e da religião.
Quando se afirma que a vida
humana tem início na fecundação não é
simplesmente uma tese biológica que se
pretende sustentar. A evidência científica é um
recurso para suportar um discurso sobre o
natural que se pretende absoluto e indiscutível
pela simples enunciação. A idéia de que
haveria uma ordem natural no mundo e que o
aborto
ao
interromper
a
seqüência
fecundação-nascimento seria um fator de
rompimento desta ordem é comum a diversos
saberes, entre eles a Medicina, a Religião ou o
Senso Comum. Pressupõe-se, ingenuamente,
uma supremacia da biologia sobre o simbólico,
ignorando-se que o discurso biológico é, por si
mesmo, uma narrativa moral. Não há
descrição sobre a natureza isenta de
intencionalidade e a explicação sobre a origem
simbólica da vida humana na fecundação é,
talvez, dentre todos os discursos sobre o
natural um dos mais entranhados em nosso
ordenamento moral. E é exatamente essa
confusão entre discurso moral e fato natural
que torna o debate sobre o aborto tão intenso.
A pretensão daqueles que se opõem
à tese do direito ao aborto como uma
expressão de direitos reprodutivos é garantir
que lei e moral se sobreponham, tal como
previsto pela lei penal. O dissenso moral em
torno do aborto é simplesmente uma
expressão do quanto este é um tema relativo
a diferentes concepções de bem, portanto,
algo que não deveria ser legislado por um
Estado laico e plural. Afirmar ou contestar a
sobreposição entre biologia e moralidade no
feto é replicar diferentes atos de fé. Aqueles
que sustentam a moralidade no feto e seu
interesse inalienável em se transformar em
pessoa fora do útero da mulher defendem um
ato de fé, ao passo que aqueles que
sustentam a amoralidade do feto e a
supremacia da autonomia da vontade das
mulheres pautam-se em outro ato de fé. A
principal diferença entre estes dois extremos é
que numa dessas teses não há espaço para a
pluralidade moral, ao passo que na outra este
é o fundamento. Um Estado que garanta a
supremacia das liberdades individuais em
matéria de aborto é aquele que reconheça ser
este um tema da esfera privada das mulheres
e algo que não necessita – ou mesmo não
pode – ser regulamentado de forma absoluta.
Severina, ao decidir pela interrupção
da gestação e se definir como uma mulher
3
SérieAnis
ISSN 1518-1324
Bioética y Ética y Feminismo y Gênero y Direitos Humanos y Justiça y Desenvolvimento Social
católica, é um exemplo de como é possível
desnaturalizar
as
crenças
morais,
especialmente em situações trágicas. A
certeza da morte precoce do futuro filho e da
impossibilidade médica de oferecer qualquer
alternativa à inviabilidade do feto fez com que
Severina redescrevesse sua própria história.
Severina jamais descreveu a decisão por
interromper a gestação como um ato de
homicídio do feto ou mesmo como um aborto.
Essa re-categorização dos atos não deve ser
entendida apenas como um movimento autojustificatório
de
Severina.
Milhares
de
mulheres grávidas de fetos com anencefalia
que interromperam a gestação antes de
Severina, mesmo sem se conhecer, também
não descreveram suas decisões como aborto.
Esta capacidade humana de rever o real é
particularmente libertadora quando os códigos
morais vigentes não são capazes de explicar o
vazio deixado pela ausência de sentido. Não
há explicação que atenue o sofrimento de uma
mulher grávida de um feto que não irá
sobreviver ao parto. O dilema moral da
escolha de Severina – a tensão entre o berço e
o caixão - a aproxima do espaço além-dohumano do sem sentido.
Uma das formas de dar sentido ao
sem sentido - como é a morte precoce do
futuro filho - é redescrever um ato
socialmente qualificado como imoral como
legítimo. A proposta de conceituar a
interrupção da gestação de um feto com
anencefalia como antecipação terapêutica do
parto e não mais como aborto, tal como
definido pela lei penal, não foi um ato solitário
de elucubração de cientistas. Na verdade,
mesmo para aqueles que sustentam a
imoralidade do aborto na presunção do
homicídio, o conceito de antecipação de parto
é desafiante. Na definição de aborto como um
crime contra a vida em potencial se pressupõe
a potencialidade ou a possibilidade do feto em
viver a vida fora do útero. Ora, não há
qualquer sobrevida no feto com anencefalia,
não sendo possível pressupor seu interesse
em viver a vida fora do útero. A ausência do
cérebro torna sua vida inviável. Este, sim,
parece ser um fato da biologia resistente a
todas as formas de sentido que ignorem o
caráter irreversível do diagnóstico.
Das centenas de mulheres que
entrevistei nos últimos anos grávidas de fetos
com anencefalia, jamais conheci uma que
descrevesse sua decisão de interromper a
gestação como um aborto. Após a certeza do
diagnóstico da inviabilidade fetal, as mulheres
vivenciavam a permanência do luto pelo futuro
filho. O fato de o diagnóstico ser realizado em
um momento da gestação em que as mulheres
já experimentam o futuro papel de mães torna
a decisão pela interrupção ainda mais intensa.
Ao contrário de outras situações de aborto, em
que o segredo sobre a gestação é um prérequisito para a realização da interrupção, no
caso da anencefalia não há como se manter
em segredo o término da gestação. Em geral,
SérieAnis 43, Brasília, LetrasLivres, 1-6, abril, 2006
o diagnóstico da anencefalia é dado na
ecografia em que as mulheres procuram
identificar o sexo do bebê, um momento
quase-mágico da gestação em que se tomam
decisões familiares e afetivas, como escolha
do nome, enxoval ou arquitetura do quarto.
Isto faz com que o diagnóstico da anencefalia
no feto ocorra em um momento da gestação
em que as mulheres já são mães em
potencial, não mais importando se a gestação
fora originalmente planejada ou não.
Essa particularidade do momento do
diagnóstico não pode ser ignorada, pois a
configuração do sofrimento é ainda mais
intensa. Assim como o tempo de espera pela
decisão judicial. Do momento do diagnóstico à
autorização da Justiça, pode-se passar meses.
Já houve casos, da gestação terminar, o feto
morrer
e
ser
enterrado
e
o
juiz,
intencionalmente, não ter se pronunciado. O
primeiro caso que alcançou o Supremo
Tribunal Federal - Gabriela e Maria Vida - é um
exemplo deste descompasso entre o sistema
judicial e a iminência da morte. Gabriela era
uma jovem mulher, grávida de um feto com
anencefalia, que tentou em todas as instâncias
jurídicas do país garantir o direito à
interrupção. Da Comarca de Teresópolis ao
Supremo Tribunal Federal, Gabriela recebeu
decisões desencontradas: ora seu pedido era
autorizado, ora era contestado por juízes e
representantes
da
moralidade
católica.
Quando finalmente o caso chegou à Suprema
Corte, em março de 2004, Maria Vida já havia
nascido, sobrevivido sete minutos e seu
atestado de óbito foi a contra-prova de que
não havia mais nada a ser decidido pelos onze
ministros. Em termos jurídicos, não havia mais
objeto no processo.
A estimativa nacional é que uma
solicitação dure, em média, de três semanas a
três meses. No caso de Severina, foram três
meses, desde a primeira internação por
ocasião da cassação da liminar até a
autorização judicial. Severina e Rosivaldo
apresentaram-se à Justiça inúmeras vezes,
apresentaram listas de documentos, entre eles
a declaração de pobreza para se livrarem das
custas processuais. Foi preciso sair à procura
de um advogado, um personagem raro entre
as plantações de brócolis do sítio em que
moram. Cada viagem ao Recife para
diagnósticos e ecografias exigia um rearranjo
entre vizinhos e parentes para garantir o
transporte do sítio à cidade. Dentre as idas e
vindas, houve recessos, erros na apresentação
de documentos, pois o Estado é pouco
sensível a outras formas de linguagem e
expressão senão a escrita. Rosivaldo e
Severina são analfabetos, o que exigiu deles a
presença permanente de intermediários entre
o mundo rural e o mundo da Justiça.
As mulheres descrevem este período
de espera como de um sofrimento inigualável.
Talvez ainda mais intenso que o do
recebimento do diagnóstico. Não há quarto
para arrumar, o enxoval se resume à roupa do
4
SérieAnis
ISSN 1518-1324
Bioética y Ética y Feminismo y Gênero y Direitos Humanos y Justiça y Desenvolvimento Social
enterro, não há como nominar um feto que
não irá sobreviver. A metáfora vulgar, porém
recorrente, que compara estas mulheres a
"caixões ambulantes" é por elas mesmas
utilizada para descrever a experiência a que
foram reduzidas. O dilema berço-caixão é
compartilhado
por
todas
elas
que,
ironicamente,
sequer
acompanharão
o
enterro, pois dada a brevidade da sobrevida
do feto, elas ainda se encontram internadas
no hospital. Na maior parte dos casos, a
angústia da espera pela legalidade não é
capaz de oferecer um sentido à crueldade da
loteria da natureza que sentencia a morte
precoce do futuro filho.
Esta tensão entre sentido e ausência
de sentido é o cerne do drama vivido por
mulheres grávidas de fetos com anencefalia.
Severina foi apenas uma dessas protagonistas.
A opção pela interrupção da gestação é feita
pela maioria absoluta das mulheres. Foram
mulheres muito diferentes de Severina que,
como ela, optaram pela interrupção da
gestação. Como ela, muitas expuseram
publicamente suas histórias de sofrimento,
lutaram na Justiça para garantir que a decisão
pelo aborto não era um crime, mas a única
maneira de se verem livres da tortura de
gestar um feto potencialmente morto. Durante
os quatro meses em que a liminar do Supremo
Tribunal Federal esteve em vigor, foram 52
mulheres SUS-dependentes, em oito estados,
que interromperam a gestação por anencefalia
no feto. Neste contexto, o Estado ao
reconhecer como legítimo o pedido de uma
mulher para interromper a gestação está
também protegendo esta mesma mulher da
tortura moral de ser descrita como uma
assassina. E protegê-la é o único ato que resta
diante da incapacidade médica de reverter ou
remediar o quadro de letalidade do feto.
O Supremo Tribunal Federal irá
enfrentar nos próximos meses uma Argüição
de Descumprimento de Preceito Fundamental
sobre anencefalia. A tese apresentada foi que
a antecipação terapêutica do parto em casos
de anencefalia não se configura aborto e, por
isso, seria uma infração de preceitos
constitucionais obrigar uma mulher ir à Justiça
para obter uma autorização ou simplesmente
proibi-la de interromper a gravidez nestes
casos. A argüição foi proposta por uma
entidade sindical, a Confederação Nacional dos
Trabalhadores em Saúde, em parceria com
uma
organização
não-governamental
feminista, a Anis: Instituto de Bioética,
Direitos Humanos e Gênero. A proposta da
ação é regulamentar definitivamente este
assunto no Brasil, considerando a interrupção
da gestação em caso de anencefalia no feto
uma matéria privada relativa ao direito à
saúde, à dignidade e à autonomia. A tal ponto
este vem sendo um tema intensamente
discutido no país que pela primeira vez na
história do Supremo será realizada uma
audiência pública antes do julgamento
definitivo. A pressão de entidades católicas
SérieAnis 43, Brasília, LetrasLivres, 1-6, abril, 2006
vem sendo imensa para garantir que os
ministros
votem
contrariamente
à
interpretação proposta pela argüição.
Como grande parte da população
brasileira, Severina é católica, um vínculo
espiritual que não a impediu de tomar a
decisão pela interrupção da gestação e de
lutar durante três meses na Justiça para
garanti-la. O Brasil é o quarto país do mundo
em partos de fetos com anencefalia e, ao
contrário do que se poderia imaginar, este
índice não se justifica por questões de saúde
pública, como maior propensão genética de
nossas mulheres a gestar fetos com
anencefalia. Com índices tão alarmantes
quanto o Brasil, estão países como México,
Chile e Paraguai. O índice brasileiro é de
partos de fetos com anencefalia e não de
gestação de fetos com anencefalia, uma
diferença importante que aponta antes para a
lei que para a saúde pública como explicação
para o fenômeno. Ou seja, a razão é
simplesmente nosso ordenamento jurídicopenal que proíbe o aborto e entende a
antecipação do parto por anencefalia como um
ato de homicídio do feto. Esta sobreposição
infeliz entre homicídio e aborto incapacita
nossos legisladores de se aproximarem de um
dos
sofrimentos
mais
dilacerantes
da
existência de uma mulher – a tragédia que é a
gravidez de um feto fadado à morte imediata.
Por isso, ao mesmo tempo em a
história de Severina é única pela tragédia de
seu sofrimento, é também banal por resumir o
desamparo feminino frente a um Estado
implacável na exigência do dever da gestação
mesmo diante do fracasso de se garantir que
o feto sobreviverá. O Estado não é capaz de
reverter a loteria da natureza e substituir o
feto inviável de Severina por um feto capaz de
viver a vida. A biologia do feto de Severina,
assim como a de todos os fetos anencefálicos,
é ainda incontrolável para a sabedoria
humana. E este será o desafio do julgamento
do Supremo Tribunal Federal nos próximos
meses. A Suprema Corte é o espaço legítimo
para se enfrentar temas como este, onde
questões relacionadas à justiça e às liberdades
individuais estão em jogo. Mas para que este
enfrentamento
seja
justo,
é
preciso
reconhecer a soberania do acaso, pois só
assim seremos capazes de atenuar o
sofrimento imposto pelo azar a mulheres como
Severina. E uma das formas de atenuar este
sofrimento é retirando a gestação do campo
do dever e devolvendo-a para o campo dos
direitos.
5
SérieAnis
ISSN 1518-1324
Bioética y Ética y Feminismo y Gênero y Direitos Humanos y Justiça y Desenvolvimento Social
1
Debora Diniz é antropóloga, doutora em
Antropologia e pós-doutora em Bioética. É
professora da Universidade de Brasília e
diretora da organização não-governamental
Anis: Instituto de Bioética, Direitos Humanos e
Gênero. <[email protected]>.
Bibliotecária Responsável:
Kátia Soares Braga (CRB/DF 1522)
Editores Responsáveis:
Cristiano Guedes
Fabiana Paranhos
Tiragem:
50 exemplares
Serviço Editorial:
Editora LetrasLivres
Caixa Postal 8011
CEP 70.673-970
Brasília-DF Brasil
+55 61 3343 1731
[email protected]
SérieAnis 43, Brasília, LetrasLivres, 1-6, abril, 2006
6
Download

do arquivo