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SEMENTEIRA DO AMANHÃ: O PRIMEIRO CONGRESSO BRASILEIRO DE
PROTEÇÃO À INFÂNCIA E SUA PERSPECTIVA EDUCATIVA E REGENERADA
DA CRIANÇA.
Sônia Camara
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
RESUMO
Com esta comunicação tenciono desenvolver uma reflexão acerca das preposições apresentadas no Primeiro
Congresso Brasileiro de Proteção à Infância, particularmente, no que tange a situação das crianças
identificadas como pobres, delinqüentes e ou desamparadas. Organizando-se em cinco seções temáticas, o
Primeiro Congresso Brasileiro de Proteção à Infância, realizado no Rio de Janeiro, em 1922, buscou
capitanear as discussões do ponto de vista social, médico, pedagógico e higiênico em suas relações com a
família, o Estado e a Sociedade. Congregando instituições de renomada importância nacional, bem como
intelectuais oriundos dos diferentes campos de saberes, o Congresso foi concebido como arena privilegiada
de debates entre diferentes matrizes e projetos voltados para diagnosticar e prescrever terapêuticas
apropriadas para solucionar os males que comprometiam o desenvolvimento e atravancavam o progresso e a
modernização do país. Como parte das atividades comemorativas do Centenário da Independência do Brasil,
o congresso configurou-se como momento simbólico de validação de políticas de assistência e proteção
voltadas para a infância. Realizado conjuntamente com o Terceiro Congresso Americano da Criança, o
evento constituiu-se como ocasião de celebração dos avanços advindos com a racionalidade científica e
técnica, a partir dos quais, poderia se pensar saídas redentoras para a infância em prol de um projeto de nação
que passava pela implementação de estratégias de controle e defesa social dos interesses do país e em
expansão de todo o continente americano. As teses e comunicações debatidas durante o Congresso
encontravam eco num amplo movimento que vinha se realizando no cenário internacional. Nesse sentido, é
possível afiançar que o Congresso Brasileiro de Proteção à Infância trouxe à luz, temáticas relativas às
discussões sobre as leis de proteção e sua urgência; a higiene escolar; a proteção à mulher grávida pobre; ao
combate ao analfabetismo em prol da proteção à infância; a situação da infância moralmente abandonada,
criminosa e os Tribunais para crianças como eixos de propostas ancoradas em iniciativas destinadas a
promover programas de Saúde Pública e de Assistência às crianças oriundas das camadas pauperizadas da
sociedade. Configurando-se como espaço de circulação e apropriação das mais modernas e inovadoras
concepções e teorias científicas, o Congresso de Proteção à Infância coligou esforços no sentido de se
estabelecer os alicerces mediante os quais realizariam um amplo diagnostico da situação em que se
encontrava a população do país. Com ênfase nas propostas de intervenção dos homens de ciência na ação
dos homens de governo, buscaram lançar as proposições fundantes de uma cruzada em prol da higienização,
moralização e educação da infância pobre. Neste tocante, com base na análise das atas e das teses
apresentadas e defendidas é possível afirmar que na luta concorrencial pelo monopólio científico, os
intelectuais participantes do evento, visaram demonstrar a legitimidade de suas concepções na formulação de
um pensamento a constituir-se como hegemônico na elaboração de políticas públicas assistenciais. No
entanto, é possível afirmar que mais do que se instituir como espaço de disputa entre concepções e matrizes
teóricas, o Congresso foi concebido como centro congregador de homens de ciência de várias regiões do país
e como foro privilegiado de intercambio institucional e propaganda de idéias instituidoras do Brasil de
amanhã
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TRABALHO COMPLETO
Introdução
Os congressos científicos, históricos, artísticos e econômicos a que ides
assistir, do mesmo modo que a Exposição, em que procuramos resumir alguns
aspectos da nossa cultura intelectual e da produção das nossas terras e fábricas
(...) bastarão para convencer-vos de que alguma coisa temos feito e muito
poderemos ainda realizar para o futuro, depois deste passo tão difícil do
primeiro centenário de vida emancipada (...). Contamos cerca de 2400 jornais e
revistas, 650 associações científicas, literárias e artísticas, 1400
estabelecimentos de assistência, muitos milhares de sociedades de auxílio mútuo
e caridade, e que a nossa última organização sanitária, talhada nos moldes mais
adiantados, prepara a olhos vistos o fortalecimento da raça e o aumento da sua
capacidade produtora. Do Rio de Janeiro de 1822 fizemos, durante o Império e
principalmente na República, a cidade moderna que atualmente se honra de
hospedar-vos, sem as epidemias dizimadoras, que eram com razão o terror do
estrangeiro.(Discurso do Presidente da República Epitácio Pessoa, de 08 de
setembro de 1922, p. 210)
Como parte das atividades comemorativas do Centenário da Independência do Brasil em 1922, o
Primeiro Congresso de Proteção a Infância, realizado no Rio de Janeiro, foi concebido como momento
simbólico de reflexão e validação de modelos civilizatórios e de políticas de assistência e proteção para o
país. Promovido conjuntamente com o Terceiro Congresso Americano da Criança, o evento configurou-se
como ocasião de celebração dos avanços advindos com a racionalidade científica e técnica, a partir dos
quais, poderiam se pensar saídas redentoras para a infância em prol de um projeto de nação que passava pela
implementação de estratégias de controle e defesa social dos interesses do país e em expansão de todo o
continente americano.
Idealizado pelo Departamento da Criança no Brasil e presidido pelo médico Arthur Moncorvo Filho,
o Primeiro Congresso buscou capitanear os debates do ponto de vista social, médico, pedagógico e higiênico,
dando especial destaque as relações que envolviam os papéis a serem desenvolvidos pela Família, pelo
Estado e pela Sociedade. Dividido em cinco seções temáticas - Sociologia e legislação; Assistência;
Pedagogia; Medicina Infantil; Higiene -, o Primeiro Congresso congregou intelectuais oriundos dos
diferentes campos de saberes, bem como associações, corporações e estabelecimentos de ensino de todo o
território nacional envolvidos com a promoção de iniciativas e pesquisas relativas à infância brasileira.
Organizado por uma comissão1 composta por intelectuais de amplo reconhecimento nacional, o
Congresso constituiu-se como instância competente e autorizada na discussão, formulação e propaganda no
campo da pediatria, higiene, puericultura, pedagogia, legislação e no encaminhamento de proposições quanto
à formulação de políticas públicas assistenciais para o país. Contando com a participação de Delegados do
Governo Federal e representações dos Estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais, Espírito Santo, Bahia,
Paraíba, Pernambuco, Ceará, Rio Grande do Norte, Sergipe, Pará, Maranhão, Amazonas, Goiás, Mato
Grosso, São Paulo, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Alagoas, Acre e Piauí, o Congresso, instituiuse, não só, como vitrine da mentalidade vigente, da filantropia realizada, do patriotismo e do interesse dos
intelectuais pelas causas nacionais, mas também como espaço de intercambio de idéias e modelos no âmbito
da proteção e assistência à infância.
Como espaço de circulação e apropriação das mais modernas e inovadoras concepções e teorias, o
Congresso coligou iniciativas de base científicas visando (...) estudar o problema tanto quanto permitiam as
1
Além do Presidente Moncorvo Filho, fizeram parte da Comissão Executiva: Deputado Rodrigues Lima, Doutor
Zeferino de Faria, Deputado Andrade Bezerra e Capitão-Tenente Alamiro Mendes; como Vogais: Senador General
Felippe Schmidt, Senador Doutor Firmo Braga, Desembargador Ataulpho de Paiva, Doutor Alfredo Pinto, Doutor Sá
Vianna, General Serzedello Corrêa, Doutor Fernandes Figueira, Doutor Julio Ottoni, Deputado Raul Faria, Franco Vaz,
Doutor Alfredo Balthazar da Silveira, Doutor Fernando de Magalhães, Doutor Evaristo de Moraes, entre outros.
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nossas forças para apreender as noções do que de profícuo se fazia em todas as nações cultas em bem da
criança, estabelecendo os alicerces mediante os quais realizariam um amplo conhecimento de uma nova
semiologia e de uma nova terapêutica no tratamento dos “males” que acometiam a população do país, tendo
em vista, a vastidão do nosso território e a diversidade de condições geográficas que demarcavam a
necessidade de se estabelecer medidas especificas, em consonância com a realidade de cada região.
(Moncorvo Filho apud Carneiro, 2000, p. 113)
Da intensiva propaganda2 que a Comissão Executiva granjeou levar, desde o lançamento do
projeto de realização do Congresso, em 1919, destacada importância atribuiu a necessidade do país,
colocar-se em sintonia com os países civilizados do mundo, no movimento triunfal em defesa dos
interesses da criança. Com o intento de promover uma ampla confraternização das forças dispersas,
expoentes da bondade e da inteligência brasileiras que se desvelavam pela proteção da infância moral e
materialmente abandonada, tencionaram compor uma argumentação assente em um projeto de
intervenção social que passava pelo predomínio do discurso médico na direção da sociedade.
É preciso, como diz sabiamente o Dr. Paez Soldan de Lima “integrar o
direito sanitário na vida político-social da nação”. Só, assim, poderemos livrar o
Brasil desta cruel ironia de perspectiva: parecer adorável paraíso de saúde,
quando é apenas um vasto hospital. Intervenham, aqui, os médicos nacionalistas,
auxiliados pelos poderes públicos; e como os cavaleiros medievos, pelo seu Deus
e pela sua dama, aceitem o desafio, e mandem os arautos proclamarem em toda
a Cristandade que juram pela sua honra, que dentre em breve o Brasil será o
que deve ser; um país endêmico, florindo numa primavera eterna; cheio de
vigor, onde as mulheres são belas, fecundas e têm garbo da sua maternidade;
onde as endemias distrofiantes são uma lenda de tempos idos.
A honra da medicina brasileira está em jogo; agora é combater o desonrarse aos olhos do mundo culto; é preciso mobilizar a medicina nacional, como
soldados em tempo de guerra, para a grande batalha sanitária. Cumpram os
médicos o seu dever, executem com fé e dignidade o papel social que a Pátria
lhes impõe neste momento delicado de transição. (Gouveia, 1922, p. 289)
A esse respeito, é possível afiançar que o Congresso Brasileiro de Proteção à Infância trouxe à luz,
temáticas relativas às discussões sobre as leis de proteção e sua urgência; a higiene escolar; a proteção à
mulher grávida pobre; a saúde infantil, os princípios de eugenia e sua aplicação; a campanha contra o aborto
criminoso; o combate ao analfabetismo em prol da proteção à infância; a situação da infância moralmente
abandonada, criminosa e os Tribunais para crianças, como eixos de propostas aportadas em iniciativas
destinadas a promover programas de Saúde Pública e de Assistência às crianças oriundas das camadas pobres
da sociedade brasileira. (Boletim, 1923, p. 89)
Sendo, assim, o esforço desta comunicação faz-se no sentido de promover preliminarmente
algumas ponderações acerca das preposições apresentadas no Primeiro Congresso Brasileiro de Proteção
à Infância no que concerne a perspectiva educativa e regeneradora da criança. Com este intento, este
texto se organiza em duas seções, na primeira busco conhecer o clima que envolveu os intelectuais que
estiveram engajados na organização de “novas” formas de pensar e propor reflexões e projetos voltados
para a infância, inserindo-os em um itinerário de produção marcadamente científico e racional; na
segunda procuro, a partir das idéias circulantes nas seções do Congresso, compreender o predomínio de
determinadas concepções na formulação de propostas no campo da proteção e da assistência à infância e
na produção de ações voltadas para a elaboração de medidas de intervenção por parte do Estado.
Por uma cruzada civilizadora da infância
2
Aspecto que pode se observado, tendo em vista, o número representativo de adesões alcançadas, sendo de 147 de
associações científicas e filantrópicas e de 2. 632 de adesões individuais. Foram apresentadas 262 propostas de temas e
comunicações. Quanto ao número de propostas de temas, analisando a relação de títulos, pude localizar 233 trabalhos.
(Bezerra, 1923, p. 136).
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Marcada pela constante tentativa dos intelectuais em desnudar a sociedade, a década de 1920 foi
fértil na produção de diagnósticos sobre o passado, o presente e as possibilidades de futuro. Empenhados
em compor projetos de transformação da sociedade, estes intelectuais, deslumbrados com a possibilidade
de construir um futuro glorioso, objetivaram transformar o país em laboratório de “experimentação”.
Partindo de uma visão de conjunto acerca da situação do país propuseram a realização de ações
coordenadas, sistemáticas e preventivas a fim de atender as exigências de modernização da sociedade.
Contribuindo para a superação dos problemas sociais, conceberam o país como um “imenso hospital” no
qual caberia aos homens de ciência operar a sua cura, transformando o vício em virtude, a doença em
saúde. (Bomeny, 1993, p. 24)
Fortalecendo a crença no poder da ciência como bússola capaz de fomentar o progresso, médicos,
advogados, jornalistas, engenheiros e educadores fundaram associações científicas e culturais com o
objetivo de impulsionar debates e conferências destinadas a compor inquéritos relativos à situação do país.
Revestindo seus argumentos e suas práticas de um poder científico que os distinguiam na indicação dos
caminhos para a salvação nacional, os intelectuais engajados3, visaram identificar os aspectos centrais a
partir dos quais compuseram as justificativas para as propostas encaminhadas em nome da modernização e
civilização do Brasil. Dessa forma, a modernidade que se pretendeu construir fundamentou-se na
afirmação da identidade nacional e da brasilidade como condições sine qua non para se projetar o futuro e
preservar a nação.
Nesse contexto, o que se observou, de acordo com Velloso, foi uma mudança radical na forma de
conceber o papel do intelectual e da literatura, onde a idéia corrente era a de que o intelectual deveria,
forçosamente, direcionar suas reflexões para os destinos do país, pois o momento era de luta e de
engajamento, sendo, assim, não se admitia o escapismo e o intimismo, cabendo ao intelectual evitar
assuntos de cunho pessoal em detrimento das temáticas relativas à nação brasileira e seus problemas.
(1990, p. 90)
Considerando-se imbuídos desta missão salvacionista e redentora, os intelectuais engajados,
independentes da sua origem de classe e da sua formação acadêmica procuraram difundir idéias e projetos de
proteção e assistência à infância como parâmetros a partir dos quais se daria a construção de uma nova
consciência nacional. Aliando os princípios da caridade aos métodos e procedimentos científicos, esses
intelectuais objetivaram gerenciar um movimento de transformação da sociedade, anunciados em nome do
“bem-estar- social”. Por meio de ações a serem promovidas através da implementação de políticas
governamentais e por iniciativas de setores da sociedade civil, visaram arquitetar um novo nacionalismo de
matrizes cultural e política4, onde a situação da infância assumiu contornos de questão social.
Falar na causa da infância tem sido, até não muitos dias atrás, em nosso
país, dura verdade, malhar no deserto!
Raros, muito raros mesmo têm encarado o problema sob o seu aspecto
profundamente civilizador e político – o da economia social.
Não há, de fato, despesa mais compensadora do que aquela com a qual,
mitigando-se as rudezas do grande assedio de males à infância, se prepara uma
raça vigorosa, inteligente e adestrada para os embates da existência. É esse,
3
Proponho o termo intelectual engajado como tentativa de identificar os jornalistas, médicos, professores, advogados
que estiveram envolvidos com a formulação e implementação de propostas de proteção e assistência à infância. Estes
intelectuais, para além do universo de atuação que sua formação acadêmica os facultava, buscaram intervir na sociedade
rompendo as fronteiras entre o pensar e o agir, congregando-se em torno de um projeto comum de Brasil em que a
criança era vislumbrada como ponto nodal, eixo central de intervenção.
4
Segundo Oliveira o nacionalismo é uma representação ideológica preocupada em definir os traços específicos de um
povo estabelecendo as diferenças com os demais. Sendo, assim, o nacionalismo se apresentaria sob novas
configurações, a saber: Quanto ao nacionalismo político este se fez presente em todos os momentos em que se procurou
reestruturar a vida política do país, trazendo a tona debates acerca do pacto social que fundamentava as relações sociais.
Neste tocante, a política assume a posição de construtora por excelência da coletividade; Quanto à perspectiva cultural,
baseando-se nos traços que definem a identidade do povo e o diferencia dos demais – costumes, língua, religião, etnias
– buscou-se estabelecer os laços de solidariedade e integração nacional. Em minha perspectiva de análise o que tivemos
no Brasil neste período foi à confluência dessas matrizes na composição de formas de pensar os projetos de país de base
moderna. (1990, pp. 187-189)
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evidentemente, o alicerce sobre o qual deve assentar a grandeza da pátria que
tanto amamos. (Moncorvo Filho, 1923, p.123)
Nesta esteira de reflexão acerca da missão social e do compromisso do intelectual, especialmente do
papel que cabia ao médico, Moncorvo Filho iniciou, a partir de 1899, com a criação do Instituto de
Proteção e Assistência à Infância do Rio de Janeiro5, sua “cruzada” em prol da higiene da infância e do
melhoramento e robustez da raça. Tendo como fito amparar a infância pelo estabelecimento de leis
especiais e pela aplicação de medidas eugênicas a serem apreciadas em nome do ideal civilizador, o
Instituto, a exemplo de instituições similares estrangeiras, especialmente dos Children Bureau, visava ter
sob seu imediato patrocínio (...) todas as crianças pobres, doentes, defeituosas, maltratadas e moralmente
abandonadas de nossa capital.
Havíamos audaciosamente pretendido introduzir processos novos de
proteção à infância, até então só olhada em nosso meio depois dos 5 e dos 7
anos, deixando-se em completo abandono a criança no período mais crítico da
vida, tantas vezes assediado pela tirania dos fatores da degeneração ou do
aniquilamento.
Procuramos então instalar todos os hodiernos serviços de utilidade prática
provada nos mais cultos países do mundo, e, como verdadeira novidade entre
nós, lançamos as bases da formidável cruzada pela higiene infantil, cuidando
particularmente da puericultura e da eugenia, esforçando-nos por semear, Brasil
a fora, as modernas idéias, criando-se, depois disso, como se sabe, novos outros
centros dessa bendita propaganda não só nas filiais do nosso Instituto
instaladas, mas em não pequeno número de obras outras, cada qual mais
utilitária, cada qual mais merecedora da nossa admiração.(Moncorvo Filho,
1923, pp. 123-124)
Constituindo-se sob a batuta do Instituto, foram criadas instituições, de alcance regional e nacional
de assistência e proteção à infância e as famílias deserdadas da fortuna, visando implantarem novas e
avançadas práticas científicas a partir do Programa da Gota de Leite, da criação de creches para os filhos
dos operários, dos serviços de proteção à mulher grávida, regulamentação do serviço das amas-de-leite,
distribuição de roupas e calçados, divulgação de estudos e pesquisas científicas, promoção do Concurso de
Robustez e festas para as crianças pobres, organização do projeto de Inspeção Sanitária Escolar do Distrito
Federal, criação do Departamento da Criança do Brasil, bem como de uma extensa campanha educativa
acerca dos malefícios do alcoolismo, da tuberculose, da sífilis e do analfabetismo para o desenvolvimento
da criança e, por conseguinte, do país. Exemplar desta prerrogativa foi à fundação da Obra da Cruz
Branca, destinada a combater a ignorância e o analfabetismo, disseminando a instrução popular por todos
os recantos do país. (Moncorvo Filho apud Carneiro, 2000, pp. 117-131)
O propósito de organizar os Congressos Brasileiros de Proteção à Infância, desenvolvido por
Moncorvo Filho e por uma plêiade de intelectuais, associou-se às iniciativas que vinham sendo
encaminhadas, no cenário nacional e internacional, desde finais do século XIX, na formulação de políticas
de assistência e proteção à infância pobre. Neste período, amiudaram-se os Congressos Internacionais que
tinham como foco de preocupação à infância, com especial destaque para as questões atinentes a
assistência, ao ensino e a eugenia. Antenados com as idéias circulantes nos diversos Congressos em que
tomaram parte e, conhecedores das iniciativas produzidas em países da Europa e nos Estados Unidos da
América, os intelectuais impulsionaram esforços no sentido de organizar um amplo diagnóstico do país,
reunindo, assim, todos os elementos, harmonizando-os e procurando, nesse sentido, concentrar todas as
energias em prol da sacrossanta cruzada e principal escopo hoje da sociedade moderna que intencionava
educar a infância, suplantando, assim, os seus efeitos degenerativos provocados pelos vícios. (Moncorvo
Filho, 1923, p. 125)
Imbuídos da idéia de proteção e assistência à infância, os intelectuais envolvidos nessa “cruzada” de
benemerência tinham nos modelos de intervenção higienista e pedagógico os parâmetros de sustentação das
ações de controle e normatização das famílias e das crianças vindas da pobreza. As iniciativas organizadas
5
Em, 1920, já existiam no Brasil 17 Institutos de Proteção à Infância. Com organização própria e em consonância com
a realidade regional, os Institutos norteavam suas ações tendo como premissa os princípios orientadores estabelecidos
pelo Instituto matriz, presidido por Moncorvo Filho.
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com o aporte científico e racional, não descuidavam da matriz moralizante a que todas as medidas e
propostas deveriam ancorar-se, constituindo-se como referência na identificação das crianças, carecedoras da
proteção e do amparo do Estado.
Com efeito, como afirma Schwarcz, a implementação de modelos científicos, por estes intelectuais,
significava uma nova forma de compreender e intervir sobre o mundo. Neste sentido, a penetração nas
grandes cidades desse ideário cientificista se fez sentir, particularmente, pela intenção em se adotar
programas de higienização e de saneamento para os centros urbanos, implementando projetos de cunho
eugênico que pretendiam eliminar a doença, interditar a loucura e separar a pobreza. (2001, p. 34)
Dessa forma, proposições relativas à assistência, à proteção, à guarda e ao cuidado com a infância
pelo Estado assumiram lugar de destaque nas discussões atinentes às questões sociais e a premência em se
instituir projetos capazes de colaborar para o progresso e modernização do país. Durante os dez dias em que
estiveram reunidos debatendo, votando e defendendo a implementação de disposições saneadoras, higiênicas
e educativas contra os flagelos dizimadores que acometiam a infância, os congressistas lançaram os
sustentáculos a partir das quais discursos e práticas deveriam corporificar-se. (Discurso do Ministro do
Interior in Boletim do Congresso de Proteção à Infância, 1923, p. 121)
Semear, integrar, proteger: a infância como objeto de escuta
Em sessão solene, no Teatro Municipal, a 27 de agosto de 1922, com a presença de intelectuais
nacionais e estrangeiros e de representantes dos governos da Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Costa
Rica, Equador, Estados Unidos, Guatemala, México, Paraguai, Peru, São Salvador, Uruguai e Venezuela,
foram inaugurados os congressos Brasileiro e o Americano, ocasião em que, Moncorvo Filho, Presidente
do Congresso Brasileiro, em discurso de abertura, destacou as aspirações que mobilizavam o evento.
Nós que, longe do funcionalismo público e da política, vivendo embrenhado
no meio da pobreza desta capital, procurando mitigar-lhe os sofrimentos sob os
sãos princípios da Caridade aliada à Ciência, nós que nos esforçamos por
estudar, e o exemplo do atual Congresso é uma prova eloqüente, todas as
lacunas em nosso país existentes para indicar aos dirigentes quais as
providências a tomar, percebemos, por que não confessá-lo, que uma era de
auspiciosa melhoria se nos divisa em futuro próximo.
Quer-nos parecer que de agora avante os nossos estadistas, sentindo, com
este Congresso, que a Nação está a exigir a convergência de especiais
cogitações pelas questões de assistência, de saúde e de ensino públicos,
procurarão, num justo interesse, resolver os momentosos problemas ora
ocupando as nossas atenções, com a certeza de assim granjearem a maior das
simpatias da sociedade brasileira. (1923, p. 130)
Produzindo sua argumentação sobre o tripé: saúde, assistência e ensino público, Moncorvo Filho
procurou articular os eixos a partir dos quais concebeu a organização das bases de uma política pública de
atendimento à infância em todo o território nacional. Ancorado nos princípios advindos com os
conhecimentos científicos em substituição ao empirismo dominante, buscou reforçar a ênfase na ciência,
bem como na missão patriótica que deveria mover os intelectuais na formulação e execução de práticas
capazes de corroborar para o progresso econômico, político e social do país. (Moncorvo Filho, 1923,
p.126)
Ao propor a realização de intervenções científicas e racionais sobre a sociedade, Moncorvo Filho, a
exemplo de outros intelectuais, defendeu a criação de aparatos e práticas capazes de exercer o controle e a
vigilância sobre os indivíduos e as populações, tornando-os higiênicos, saudáveis e disciplinados. A
assistência científica a ser organizada deveria pautar-se, imprescindivelmente, na defesa fundamental do
Estado no encaminhamento de políticas de proteção e assistência à infância, uma vez que, o problema da
criança era considerado problema do Estado.
Sirvam todos esses elementos preciosos, conquistados através desta
iniciativa, para que, de agora em diante, com a necessária perseverança e
empenho, se estabeleça, sem descontinuidade, a verdadeira campanha a salvar a
criança patrícia, são os votos que alentadamente nutrem os fundadores dos
Congressos Brasileiros de Proteção à Infância, convictos achando-se ainda de
que o Governo da República, ante um momento tão propício, deles se valha para
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enfrentar o grave problema, representando, sob o ponto de vista sociológico,
pedagógico, moral e higiênico, dos que devem, com o mais desvelado interesse,
ser tratados pelos poderes públicos.
É mister que fomente a criação das obras úteis de caridade cientifica, que se
estabeleça a legislação apropriada, longe do costumado caráter platônico,
tornando-se uma realidade prática, operando, enfim, um movimento promissor,
pela disseminação, em todo o país, dos sãos princípios que conduzirão o nosso
povo, numa salutar atmosfera de bondade e de carinho, à felicidade e ao vigor
físico e moral. (Moncorvo Filho, 1923, p. 128)
Com estes objetivos, voltando seus esforços para um movimento sistemático direcionado em
diagnosticar e prescrever terapêuticas apropriadas para solucionar os males que comprometiam e
atravancavam o desenvolvimento e o progresso do país, o Congresso foi concebido e constituiu-se como
circuito privilegiado de apresentação e reflexão das diferentes matrizes e projetos sociais a serem
implementados pelos intelectuais que, imbuídos de uma missão salvacionista e redentora, viam a educação e
a saúde como esteios fecundos capazes de transformar a realidade brasileira. A mortalidade, a morbidade, a
nupcialidade6, o trabalho industrial e agrícola, a criminalidade, a ignorância das leis de higiene, as condições
precárias de trabalho, da alimentação e da habitação, o analfabetismo e o ensino configuraram-se como os
principais problemas que mobilizaram os congressistas na formulação de premissas a fim de compor um
plano capaz de arquear os alicerces a partir dos quais o país se reorganizaria.
Nesse particular, parece-me significativo compreender os aspectos que orientaram a estruturação do
Congresso, compondo a organização dos debates nas seguintes seções: 1. Sociologia e Legislação particularmente em relação à família e à coletividade; 2. Assistência - em relação à mulher grávida, mãe
ou nutriz, às crianças da primeira e da segunda idade; 3. Pedagogia – especialmente em relação à
psicologia infantil e à educação física, moral e intelectual, inclusive a educação profissional; 4. Medicina
Infantil – pediatria em geral, cirurgia, ortopedia e fisioterapia; 5. Higiene – eugenia, higiene privada da
primeira e da segunda infância, estudo da química alimentar da criança da primeira idade, higiene
pública, principalmente das coletividades, sobretudo a higiene escolar. (Ata de 11 de agosto de 1919)
No entanto, é importante frisar que o ordenamento proposto não evitou que muitos temas
aparecessem pertinentes a mais de uma seção, uma vez que compunham a substância das discussões em
torno das modalidades de assistência e proteção à infância. Ao estabelecerem a composição das seções, os
intelectuais elegeram temas norteadores das discussões, a partir dos quais, consideravam possível arquitetar
um programa capaz de diagnosticar, prescrever e curar a infância. Deste modo, algumas idéias destacaram-se
como eixos articuladores e organizadores de suas argumentações na solução dos problemas do país. Entre as
idéias-força a educação, o ensino, a eugenia, a higiene e a pediatria assumiram lugar de destaque nas
reflexões que foram empreendidas no sentido de reunir conhecimentos que permitissem construir estratégias
e práticas destinadas a sanear e higienizar o Brasil. (Carneiro, 1923, p 203)
Assim, é crível afiançar que no desenrolar das Seções do Congresso, onde idéias prefiguraram-se, as
dissensões entre os congressistas também se fizeram presentes, dando feição aos debates e movimentando
os intelectuais no sentido de comporem articulações afim de verem algumas idéias e não outras aprovadas.
Ao optarem em disseminar as Seções do Congresso7 em diversos espaços da Capital Federal, os
intelectuais organizadores do evento, em minha avaliação, davam mostras da preocupação em articulá-las a
auditórios específicos e a lugares determinados, compondo, assim, por um lado, a especialidade e
legitimidade dos debates e das decisões propostas.
O que pretenderam os intelectuais engajados com a organização do Congresso? Para quem dirigiam
suas falas e reivindicações? Ao indicar a estrutura que o Congresso deveria assumir, com as Seções e as
6
Em torno da questão do exame de sanidade pré-nupcial, considerações foram enviadas à Mesa, destinadas a propor,
junto aos Poderes Públicos a conveniência de se estabelecer a exigência de se apresentar um atestado de saúde por parte
noivos na ocasião em que forem contrair o casamento civil. Pretendia-se, assim, evitar as possíveis deformidades
causadas pelo casamento consangüíneo. (Atas da Seção de Assistência, 1922, p. 155)
7
As Seções de Sociologia e Legislação ocorreram no Instituto dos Advogados Brasileiros; As Seções de Assistência na
Academia Brasileira de Letras, conjuntamente com o Terceiro Congresso Americano; As Seções de Pedagogia na
Escola Deodoro, As Seções de Medicina Infantil e as Seções de Higiene na Academia Nacional de Medicina, local onde
foi organizada a Seção de encerramento dos Congressos Brasileiro e Americano. O Congresso ocorreu do dia 27 de
agosto até o dia 05 de setembro, com a realização das Seções, prolongando-se até o dia 15 de setembro de 1922, as
demais atividades culturais e conferências.
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atividades culturais que o compunha, esses intelectuais compartilharam de uma compreensão comum a
respeito dos agravantes que agiam na degenerescência da infância. Municiando seus discursos e práticas no
sentido não só de demarcar posição no campo científico, como também de encaminhar reivindicações aos
poderes instituídos, fazendo-se presentes na esfera do Estado, através dos cargos políticos que assumiram, na
resolução dos problemas sociais associados à desorganização das famílias, à ignorância das mães quanto aos
preceitos básicos da higiene infantil, às influencias nocivas das habitações proletárias, dos meios familiares,
do alcoolismo, da criminalidade, da tuberculose, do analfabetismo, da prostituição, como aspectos que
demandavam uma ação preventiva e regeneradora por parte das instâncias responsáveis em proteger à
infância.
Ao preceituar sobre a relevância em se implementar um legue de princípios assistenciais, bem
como de se constituir um corpo de especialistas encarregados em prescrever e cooperar no
desenvolvimento e socialização da ciência, os intelectuais indicaram a premência em se fundar centros de
pesquisas, especialmente os destinados a estudar o papel das heranças patológica e normal, em propor a
pertinência do ensino da Puericultura nas Escolas Normais e primárias, em reestruturar os programas da
Faculdade de Medicina8, bem como identificar as lacunas das instituições, leis e regulamentos em
matéria de ensino e as referentes às questões judiciais e penitenciárias.
Quanto às questões, de ordem biológica e hereditária, não deixaram de reconhecer a
multiplicidade e a importância dos problemas sociais que direta ou indiretamente interferiam sobre a vida
da criança e do país. (Moncorvo Filho, 1923, p. 126)
O Primeiro Congresso Brasileiro de Proteção à Infância, cônscio de que já
é tempo de serem resolvidos os problemas mais palpitantes em favor da criança,
considera um dever da Nação a organização imediata e perfeita da “Assistência
Pública” em todo o país, estatuindo de uma maneira eficiente e prática, como
um dos seus mais importantes ramos, a assistência oficial à infância, por acordo
da União com os Estados, as municipalidades e as obras de iniciativa particular
do tipo dos Institutos de Proteção à Infância já fundados, devendo ser
estabelecido um serviço completo ou uniforme, colimando as exigências
modernas da civilização em prol da eugenia do nosso povo. (Moncorvo Filho in
Ata da Seção de Assistência, p. 156)
Algumas acepções aparecem como pontas de lança dos discursos que visaram intervir na sociedade
para mudá-la. Conhecer as causas da decadência da raça, requerendo de forma preventiva e regeneradora
sanear os seus males, significava instituir a normatização e higienização de condutas e comportamentos,
estabelecendo hábitos saudáveis na instituição do progresso e da civilização. A dimensão civilizadora
proclamada encontrava-se vincada pelas idéias de aperfeiçoamento social e transformação da realidade
dentro da ordem burguesa instituída.
Assim, sustentados no discurso da moral, como motor máximo do progresso, os intelectuais
defenderam o lugar central da educação na transformação da criança, homem em potencial do amanhã. Com
este intuito educar era disciplinar, fazer por meios aptos amar o dever, a ordem, as virtudes, cujos atos
repetidos formam os hábitos, necessários a vida em sociedade, constituindo-se no desafio de modelação da
infância. (Magalhães, 1923, p. 364)
Observa-se, então, a preocupação dos intelectuais em promover iniciativas de intervenção sobre as
famílias, às escolas e o meio social, envolvendo toda a sua argumentação de um tom moralizante e
discorrendo sobre os efeitos devastadores para o país, a situação de abandono moral e material em que se
encontrava a infância.
Práticas assistenciais de aporte científico foram encaminhadas no sentido de corroborar para a
implementação e organização de aparatos de atendimento assistencial, médico, correcional e educacional à
infância pobre. Embora objetivassem, enquanto tônica discursiva, defender a infância, o que se observa é o
predomínio de iniciativas que ao enfatizar o seu lugar como cerne da civilização, acabou por indicar a
implementação de uma educação higiênica adequada a disciplinarização e medicalização da sociedade.
Fomentar a educação higiênica dos alunos, prescreverem os parâmetros higiênicos de organização das salas
de aulas e dos edifícios escolares, instituírem o copo de leite, a assistência médica, recomendar a criação de
8
A crítica foi formulada especialmente pelo Professor Afrânio Peixoto que questionava o lugar da Cadeira de Higiene
no Curso de Medicina oferecido pela Faculdade de Medicina. (ver Ata das Seções de Pedagogia, 1922, p. 189)
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colônias de férias, escolas ao ar livre, jardins de infância como alicerces de um amplo programa preventivo e
higiênico da infância.
Impulsionados por este ideal intervencionista, voltado para a definição de parâmetros a partir dos
quais a sociedade e suas instituições deveriam, adequadamente, organizarem-se, os médicos intentaram
constituir o predomínio de suas propostas na “direção”9 de um projeto de higienização da sociedade que se
assentava, segundo Costa, na idéia de que a nocividade do meio familiar poderia ser tomada como o grande
trunfo médico na luta pela hegemonia educativa das crianças a partir do século XIX. (1999, p. 175)
Enfim, é possível notar que o mote central das argumentações encaminhadas, fixava-se na idéia de
que “perder” uma criança material ou moralmente não significava, unicamente, uma questão de ordem
familiar, mas sim a perda de uma força para a sociedade. A este discurso eloqüente, pautado em termos
impositivos como: ajudar, guiar, corrigir, difundir, verificar, fiscalizar, assistir, defender e cuidar da criança,
estabeleceu-se as referências por meio das quais se deslocou o predomínio da família para o Estado na
condução e tutela da criança. (Magalhães, 1923, p. 132)
Afinal, qual era o perfil desta criança sobre a qual os intelectuais outorgaram-se o direito e a
competência de falar e agir? Para esses intelectuais, a criança, cuja suas iniciativas se voltavam, encontravase localizada nas camadas pobres que reunia, além das predisposições herdadas dos pais, as influências
nocivas do meio familiar e social, agravada pela situação de misérias em que estavam mergulhadas.
Infelizes, desgraçadas, degeneradas, atrasadas, anormais, vagabundas, vadias, enfim, a todas as adjetivações
que lhe eram facultadas, as referências ao caráter degenerativo inscrito em sua natureza ou em sua condição
social, constituíam-se como os fundamentos justificadores das ações preventivas e regeneradoras sobre a
infância pobre.
Nas discussões encaminhadas nas Seções do Congresso é possível perceber a tônica direcionada a
educação como mola impulsionadora do progresso do país. Oscilando entre uma perspectiva ora preventiva
ora regeneradora, os intelectuais atribuíram à educação, física, moral, intelectual e religiosa, os fundamentos
que ergueriam a nacionalidade. Neste tocante, a ênfase direcionada a instrução das crianças associava-se a
este caráter essencial direcionado a educação para o aprimoramento da raça e engrandecimento da pátria.
Emblema da nova ordem, a escola higiênica foi perspectivada como espaço de formação de um “homem”
higiênico, saudável, educado e disciplinado, perfil idealizado e adequado aos tempos modernos. (Hilsdorf,
2005, p. 60)
O movimento protagonizado por médicos e higienistas em favor da reforma
dos serviços de saúde tem inúmeros pontos de contato com o promovido por
amplos setores da intelectualidade em favor da “causa educacional”, nos anos
20. Não apenas porque ambos tinham como objetivos comuns a reforma dos
serviços públicos, a modernização do país e a ampliação de possibilidades de
participação política e de atuação profissional; mas, principalmente, porque
saúde e educação se apresentavam, para seus agentes, como questões
indissociáveis. No campo da saúde, firma-se nos anos 20, a convicção de que
medidas de política sanitária seriam ineficazes se não abrangessem a introjeção,
nos sujeitos sociais, de hábitos higiênicos, por meio da educação. No movimento
educacional da mesma década, a saúde é um dos pilares da grande campanha de
regeneração nacional pela educação.(Carvalho, 2001, p. 305)
Ao justificar a urgência em se instituir um complexo aparato médico, jurídico, educacional e
assistencial, cujas metas eram baseadas nos princípios de prevenção, educação, regeneração10, os
intelectuais apresentaram as bases de um projeto que buscava ver enredado, no âmago de uma política
pública a ser encampada pelo governo em todo o território nacional, em prol da profilaxia social.
Ancorados numa argumentação entre a idéia de defesa da criança, ora de defesa da sociedade, os
intelectuais engajados, estabeleceram os objetivos que deveriam organizar as ações a serem realizadas
9
No interior dos debates realizados no Congresso é possível observar a intenção latente dos médicos em colocarem-se
como arautos desse movimento social como é possível contatar na Conferência realizada pelo Dr. Antonio
Epaminondas de Gouveia, intitulada A Missão Social do Médico e da Mulher no Brasil. (Ver Sexto Boletim do
Congresso Brasileiro de Proteção à Infância, 1923)
10
Ao analisar a construção de uma educação higienizada, no processo de conformação do discurso pedagógico a partir
da contribuição da medicina, nos finais do século XIX, Gondra enfatiza o interesse dos médicos pela questão
educacional, elegendo-a como principal aspecto de um projeto de produção de um homem e de uma sociedade
regeneradas. (1998, p. 49)
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por meio de iniciativas de prevenção - constituir instituições capazes de promover a proteção, vigilância
e guarda da criança em risco de perverter-se, evitando, assim, a sua degradação; de educação disseminar a educação ao pobre, afim de constituir hábitos e costumes em consonância com as regras do
bem-viver; e de regeneração - reeducar a criança pervertida e delinqüente, através do trabalho e da
instrução, retirando-o das garras da criminalidade e tornando-o útil à sociedade. (Rizzini, 1997, pp. 2930)
Se a criança adoece é preciso empregar os meios de procurar salvá-la da
morte, atendendo ao prejuízo iminente para a coletividade. À sociedade e aos
governos não podem e não devem ser indiferentes as medidas e auxílios que
facilitem o seu tratamento no domicílio (os ambulatórios, os dispensários), ou
cuidados coletivos (nos hospitais, nos sanatórios, nos asilos).
Se infelizes os meninos por motivos outros: abandonados ou enjeitados,
anormais dos sentidos (surdos, mudos, cegos), atrasados pedagogicamente, ou
anormais psíquicos (vadios, vagabundos, criminosos), não merecem menos a
proteção, a assistência dos governos e da sociedade. (Magalhães, 1923, p. 133)
Através da indicação de disposições jurídicas, educativas, assistenciais, eugênicas e higiênicas, os
intelectuais envolvidos com os debates reclamavam a conveniência em se compor uma legislação, ancorada
nas “modernas” teorias criminal e sociológica, destinada ao atendimento da infância material e moralmente
abandonada. Neste tocante, é possível afiançar que algumas premissas debatidas e votadas pelos
congressistas configuraram-se, a partir de 1923, em aportes para as legislações no campo da proteção e
assistência a infância no Brasil. A apresentação de várias teses jurídicas, mediante as participações de
Evaristo de Moraes, Clovis Bevilacqua, Baltazar da Silveira, Alfredo Russel, Alarico de Freitas, Augusto
Lins e Silva, Levi Carneiro, Franco Vaz e de intelectuais estrangeiros evidenciavam matizes significativos
dos debates encetados e das práticas encaminhadas por ocasião da promulgação do primeiro Código de
Menores de 1927.11
Das duzentas e trinta e três teses e comunicações propostas para o Congresso, os temas concernentes
ao pátrio poder; A situação dos asilos e a educação das crianças asiladas; A conveniência em se coibir o
trabalho da mãe de família, sempre que possível; Fiscalização e definição da idade para o trabalho do menor;
O papel do Estado com relação aos menores abandonados; A educação e o ensino ; O casamento e a
consangüinidade; A exploração infantil; A prostituição infantil; As enfermeiras visitadoras na difusão da
higiene infantil; O amparo à criança e o futuro da nacionalidade; A criança e a eugenia; As escolas de
reforma; A criminalidade infantil; A implementação dos Tribunais para Crianças; A higiene individual e
coletiva; As leis e as tendências legislativas; entre outros, compunham o cenário de preocupações que
mobilizaram os intelectuais participes do evento12.
Presentes com muito vigor nos debates que se desenvolveram, estes temas dão mostras da urgência
em se configurar uma ampla campanha de opinião mediante as vantagens em se organizar um conjunto de
medidas institucionais destinadas a preservar, regenerar e reeducar a infância pobre, delinqüente ou
abandonada. Aspectos que se observam nas sugestões apresentadas na exposição da Tese Criminalidade
Infantil de Balthazar da Silveira. (Atas das Seções de Sociologia e Legislação, pp. 137-147)
Profligou veementemente a ação dos países(sic) transviados, que nenhum
interesse mostram pelo encaminhamento dos filhos na vida, deixando-os à mercê
dos seus próprios instintos, sem o freio da educação, imprescindível na formação
dos futuros homens e das futuras mães. Disse que, uma vez que a certos pais
falecem a capacidade e a idoneidade para a devida formação do caráter e
instrução dos filhos, ao Estado cumpre o amparo destes, protegendo-os de forma
a torná-los verdadeiros cidadãos, desbastadas as possíveis arestas da
criminalidade.
Acentuou que em tais casos deveria ser irrevogável, por imposição dos
poderes públicos, o afastamento das crianças do contato dos maus pais, dos que
se entregam à escola do vício e da perdição. Citou o exemplo de países como a
11
Exemplar disto, foi à polêmica em torno da proibição dos menores de 16 anos de freqüentarem as sessões
cinematográficas. Já no Congresso a proposta gerou grandes controvérsias entre os que defendiam as medidas
proibitivas e seus opositores. Ver Atas da Seção Sociologia e Legislação.
12
A seleção indicada refere-se aos temas que, mais diretamente, associavam-se as discussões encampadas pelos juristas
na década de 1920, recorte que se justifica em função do meu interesse de pesquisa na realização de minha tese de
doutoramento.
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Inglaterra, a França e a Itália, em que há tribunais para menores, em que a
função do juiz vai até o lar, perquirindo o ambiente e o teor da vida das crianças
delinqüentes, a educação que receberam, para dar um parecer consciencioso,
estribado sempre nos esclarecimentos do médico. (...) foi este o ponto essencial
do seu relatório, que era necessário um meio de educação que, com eficiência,
solucionasse, numa repressão formal, a questão da criminalidade infantil. (Ata
da Sessão de Assistência, p. 148)
As atividades desenvolvidas, durante o Congresso, não se restringiram apenas às conferências, mas
alargaram-se com a realização de visitas à Escola Bárbara Ottoni e Rivadávia Correa, ao Instituto
Profissional Visconde de Mauá, ao Instituto de Proteção à Infância, à Faculdade de Medicina do Rio de
Janeiro, ao Instituto Oswaldo Cruz, ao Hospital Zacharias, ao Museu da Infância13, excursão a Petrópolis,
concertos, passeios ao Corcovado e “Garden-Party” nas Paineiras, passeio marítimo, exibição de projeções
cinematográficas na Academia de Medicina, festa dos escoteiros dos Patronatos Agrícolas, festival no Asilo
João Alves Afonso, recepção na Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro e banquetes de
confraternização, ocasiões onde os congressistas, além de tomarem contato com as experiências e
instituições científicas, educacionais e de assistência da Capital Federal, como exemplo dos avanços já
realizados no país, puderam estreitar relações entre eles, socializando conhecimentos e experiências
regionais e internacionais.
A confluência dos Congressos Brasileiro e Americano contribuiu para a definição de proposições
comuns para os países participantes do evento, no tocante a assistência à infância, bem como na definição do
dia 12 de outubro, como data comemorativa do Dia da Criança em todo o continente americano. Entre as
indicações aprovadas, ficaram estabelecidos os sete pontos a serem observados pelos países representados
nos Congressos. Assim, definiram:
1. Que em todos os Estados do Continente Americano sejam suprimidas as
chamadas - Rodas de expostos – e em curto prazo substituídas pelas instituições
denominadas – Registros livres; 2. Que todos os hospitais que recolhem
lactantes sejam compelidos a lhes fornecer alimento adequado, e às crianças que
até então hajam recebido amamentação natural facultem o internamento das
mães dos doentinhos; 3. Que seja taxativamente proibida em sala de espera de
hospitais, policlínicas e estabelecimentos congêneres a promiscuidade, sempre
condenável, de adultos enfermos e crianças doentes ou sãos, ou de crianças em
estado de saúde com as que estejam enfermas; 4. Que se propaguem por toda a
parte os conhecimentos práticos de higiene infantil, ministrados especialmente
nos consultórios de lactantes, nos quais se torna indispensável o isolamento, o
maior possível, dos consulentes; 5. Que sejam proclamadas beneméritas as
obras de assistência à infância, nas quais se acoroçoe a amamentação e cantinas
maternais; 6. Que todos os estabelecimentos em que trabalham mães que
amamentam sejam obrigados à construção de câmaras, nas quais essas mães,
sem prejuízo dos seus salários, em horas certas, dêem o seio aos filhos; 7. Que a
fiscalização do Estado se exerça indefesa junto às obras de assistência à
primeira infância, para que não sejam desvirtuados os intuitos da alevantada
empresa. (Ata da Seção conjunta de 5 de setembro de 1922, p. 240)
Como assevera Kuhlmann Junior, existia uma forte preocupação em se construir uma imagem de
integração do país no concerto das nações civilizadas, constituindo-se os congressos e as exposições como
parte do processo de representação de um mundo moderno, científico e industrial. Por ocasião da
Exposição do Centenário, vários congressos nacionais foram realizados: Jurídico, Eucarístico, de Ensino
Secundário e Superior em que à questão social aparecia como objeto de atenção, demonstrando, não
13
À ocasião do Congresso o Museu ainda estava sendo instalado no edifício da Policlínica Geral do Rio de Janeiro,
sendo, oficialmente inaugurado a 12 de outubro de 1922. O Museu tinha por fim tornar conhecido tudo o que se referia
à nossa criança no seu passado, presente e o que a convêm no porvir. A idéia era exibir os planos de instalações de
creches, hospitais infantis, gotas de leite, consulta a lactantes e outros, numa demonstração dos avanços empreendidos
em prol da causa da infância. (Moncorvo Filho apud Carneiro, 2000, p. 128)
767
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somente, a “articulação” da intelectualidade com as mais modernas discussões nos diferentes campos de
conhecimento, como também, dando demonstrações dos avanços tecnológicos instituídos. (1998, pp.47-53)
Assim, interessa aquilatar que o processo de difusão dos dispositivos de modelização, disseminados
no Congresso, só pode ser compreendido nas teias das condições históricas que possibilitaram a produção de
determinadas interpretações e não de outras. Neste sentido, as apropriações que fizeram do que leram, viram,
ouviram e vivenciaram na sua itinerância por circuitos culturais estranhos à grande maioria das populações
brasileiras, foi determinante na configuração de suas estratégias de imposição de modelos a serem
implementadas no interior do Estado e fora dele, estabelecendo a predominância de suas análises e
avaliações a respeito do social. (Carvalho, 1998, p.40)
Com ênfase nas propostas de intervenção dos homens de ciência na ação dos homens de
governo, buscaram lançar as proposições fundantes de uma cruzada em prol da higienização,
moralização e educação da infância pobre. Assim, na luta concorrencial pelo monopólio científico, os
intelectuais participantes do evento tencionaram demonstrar a legitimidade de suas concepções na
formulação de um pensamento a constituir-se como hegemônico na elaboração de políticas públicas
assistenciais. No entanto, é plausível asseverar que mais do que se instituir como espaço de disputa entre
concepções e matrizes teóricas, o Congresso foi concebido como centro congregador de homens de
ciência de várias regiões do país e como foro privilegiado de intercâmbio institucional e propaganda de
idéias e modelos instituidores do Brasil do amanhã. Seja como sementeira de idéias, seja como espaço
de circulação e apropriações de concepções e projetos para o país, o Congresso ratificou a representação
da criança como esteio fecundo da nacionalidade.
Criança, nós cremos que és a esperança da Pátria estremecida, como
estrela refulgenta manhã em seu límpido céu nós te queremos; aqui nos
congregamos pelo desejo de concorrer para a tua máxima felicidade,
contribuindo destarte para a ordem e o progresso do Brasil. (Magalhães, 1923,
p. 136)
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Sementeira do amanhã: o primeiro congresso brasileiro de proteção