ÚLTIMA
8
O PSD e o regresso de Relvas
O indispensável
O pontapé de “Zeca Mendonça” a um repórter fotográfico
foi bem o símbolo de um estilo. Não havia dúvida
possível: Relvas estava de volta. Com a agressão ao
jornalista, o assessor do ex-ministro ilustrou todo um
programa político. Era assim o Relvas que tutelou a RTP
e era assim o que interveio na linha editorial de jornais
que não tutelava (caso de Maria José Oliveira e do
“Público”). Os jornalistas, quando saem da linha, devem
ser tratados a pontapé.
T
ratava-se de um mero resquício do
passado? Se assim fosse, Relvas teria
entrado no Congresso do PSD pela porta
dos fundos e teria ocupado discretamente
um lugar no meio da plateia. Mas ele reentrou pela
porta grande e Passos Coelho pô-lo logo à frente da
lista para o Conselho Nacional.
Dirão as más línguas que Passos Coelho lhe deve
muitas atenções e que a inabalável solidariedade
entre ambos resulta dos tempos difíceis da
Tecnoforma. Falso: em política não há gratidões
dessas, e menos ainda quando o pagador de
dívidas passadas tem de pagá-las com língua de
palmo. Ora, não há dúvida, até a julgar pela votação
desastrosa da lista apoiada por Passos Coelho para
o Conselho Nacional do PSD, que a ligação a
Relvas continua a sair-lhe cara.
O que acontece é que há entre Passos Coelho e
Relvas uma afinidade electiva, actualíssima,
completamente alicerçada nos imperativos da
política presente. Pode Gaspar sair entretanto, pode
Portas ameaçar que sai, pode revogar a ameaça,
pode sair o Álvaro e entrar o Pires de Lima, pode
Poiares Maduro falar doze vezes em consenso –
tudo isso são rugas da paisagem, ao lado desse
veio estruturante do Governo que é Miguel Relvas.
Com o seu regresso à cúpula do aparelho partidário,
fica claro que o Governo é fiel a si próprio e, para
continuar a obedecer caninamente aos ditames da
troika, tem o que é preciso.
Na hora das decisões, o Governo de Passos Coelho
não se tornou piegas, não foi assaltado por
escrúpulos morais, intelectuais ou culturais, não
mudou de estilo, não passou a estudar dossiers e
não renegou a arruaça. E tudo isso vai ser preciso
para continuar a destruir os fundamentos da vida de
um povo. “Zeca Mendonça” é um símbolo e Relvas
é um mentor: ambos são o retrato fiel da alma deste
Governo.
António Louçã
O manipulador
O
regresso de Miguel Relvas à ribalta política
surpreendeu muita gente. A sua escolha
para cabeça de lista do Conselho Nacional
do PSD, avalizada no recente congresso do partido,
para além de acentuar publicamente a absoluta falta
de vergonha de Passos Coelho e dos seus
apoiantes, terá provocado algum mal-estar junto de
vários congressistas. Mas a cobardia e os interesses
(de classe burguesa) instalados prevaleceram sobre
qualquer mal-estar. As críticas anónimas ou as tíbias
demarcações de militantes do partido em relação a
esta imposição de Passos Coelho falam por si. É
assim a natureza e a moralidade desta gente.
Relvas é um elemento essencial à quadrilha
governante, dada a sua estreita e já longa
Mudar de Vida . Janeiro-Fevereiro 2014
cumplicidade com Passos Coelho na eliminação de
concorrentes internos do actual líder do PSD, assim
como em relação a vários “negócios” bem
conhecidos (vide Tecnoforma). E, sobretudo, porque
Relvas traz consigo importantes ligações a
empresas (e a dinheiros utilizáveis nas campanhas
eleitorais), assim como à espionagem política e
económica (de lembrar as suas ligações ao espião
Jorge Silva Carvalho e não só).
Relvas é um manipulador, cheio de truques, que
certamente serão úteis no interior da coligação
governamental e, particularmente, nas próximas
campanhas eleitorais do PSD, onde a mentira, a
demagogia e a chantagem irão campear.
Pedro Goulart
Prescrições
O banqueiro Jardim Gonçalves já
não tem de pagar uma multa de
um milhão de euros nem fica com
a actividade suspensa, penas
com que o Banco de Portugal
tinha condenado as suas
trafulhices no BCP, porque o caso
prescreveu por demoras nos
tribunais e no próprio Banco de
Portugal. João Rendeiro, este do
BPP, na mesma situação, pode
beneficiar da mesma “absolvição”
e não ter de desembolsar 2,5
milhões de euros de multa.
Outros acusados de alto coturno,
como os do caso Face Oculta,
contam os dias para que fiquem
ilibados pelo mesmo expediente.
Em contrapartida, decisão judicial
recente, esta em tempo, obriga o
governo a reintegrar o espião
Silva Carvalho, amigo de Miguel
Relvas, na Presidência do
Conselho de Ministros, com
direito a todos os salários desde
2012, perto de 100 mil euros.
Por seu lado, os ministérios da
Educação e da Segurança Social
cortaram 17 milhões de euros nas
verbas destinadas ao ensino
especial, canalizando-as para os
lares privados, deixando sem
apoio milhares de crianças
deficientes, sobretudo de famílias
pobres. O ministério da Saúde
continua a encerrar centros de
Saúde e corta nos subsídios de
transporte de doentes, obrigando
novos e velhos a gastar o que
não têm ou a andar quilómetros a
pé se quiserem ser assistidos.
O governo, quando prepara mais
cortes, decidiu pagar 500 mil
euros por ano aos três membros
da comissão instaladora do novo
banco de fomento.
Podíamos multiplicar exemplos
destes e verberá-los sem
descanso. Mas o que importa
não é apenas denunciar os
privilégios e os abusos do poder.
É preciso apontar o dedo ao
sistema social que lhes está na
origem e os reproduz dia a dia.
Manuel Raposo
DITO
Se o crime se torna lei,
deixa de ser crime.
O Juiz, personagem da peça
Estado de Sítio (1948)
Albert Camus
Editorial
Há saída?
Se tivermos em vista as grandes
manifestações de 2011 a 2012 e
as greves gerais, a situação
actual mostra um abrandamento
do movimento de massas, sem
desprezar as greves e lutas
locais que continuam a manter
viva a chama da resistência.
Não admira este recuo: a
expectativa de que o governo
cairia de podre no verão passado
saiu gorada, em boa parte graças
à actuação do PS, mas
fundamentalmente porque o
próprio movimento popular
esperou que os empurrões dados
na rua seriam completados por
eleições antecipadas. Foi um
engano, que mostrou, apesar de
tudo o que foi feito, a
necessidade de uma acção de
massas muito mais determinada
— e que comprovou de novo
que as “instituições
democráticas” não existem para
facilitar a vida à luta de classes
mas para a debelar.
A propaganda das forças do
poder trata agora de fixar a
atenção geral nas promessas do
PS, na “alternativa” do Manifesto
dos 70, nas hipóteses de acordo
partidário lançadas por Cavaco,
nas garantias de crescimento
económico do governo, nas
próximas eleições Europeias. E
tentar fazer crer que as saídas se
confinam a essa distribuição de
cartas.
Desiludamo-nos: o capital
europeu não vai desistir dos seus
juros, as instituições europeias
não vão virar-se do avesso e
tornar-se “populares”, a política
de austeridade sobre os países
pobres da UE não vai abrandar,
por mais discussões que haja
sobre o “futuro da Europa”.
Deixado ao livre curso do capital,
o futuro da Europa está
espelhado nas ambições
imperialistas da UE, no apoio
dado aos nazis ucranianos, no
crescimento dos fascistas da
Frente Nacional francesa.
Não há saída? Há saída, sim.
Depende da intervenção política
da massa trabalhadora, cá e lá
fora. Com os seus objectivos de
classe colocados à frente. Não
se queixando apenas das
injustiças do sistema, mas
apontando para a sua subversão.
Porque é o capitalismo que está
podre.
MUDARDEVIDA
www.jornalmudardevida.net
jornal popular / apoio: 0,50 €
Janeiro-Fevereiro 2014 / número 41
Quem paga a dívida,
eis a questão
A questão de fundo acerca da dívida é, em
primeiro lugar, a de saber quem a paga —
não em quanto tempo deve ela ser paga.
Há os que acham que deve ser a massa
trabalhadora a pagá-la, integral e
rapidamente. Há os que alimentam a ilusão
de repartir os custos. Os subscritores do
Manifesto dos 70 procuram abrir uma
espécie de via intermédia entre uns e
outros.
Há, porém, uma outra posição: a dos
(poucos, embora) que defendem que, para
os trabalhadores, a única posição que pode
dar frutos é rejeitar pagar a dívida,
pautando as suas lutas de resistência por
este propósito.
O caminho está na luta pág. 2 / A quem se dirige o Manifesto dos 70?
pág. 3 / A degradação do SNS pág. 4 / Compromissos políticos e
empobrecimento pág. 5 / O papel que a direita dá ao PS pág. 6 / A
responsabilidade do voto pág. 6 / A lição da Ucrânia pág. 7 / O regresso
de Relvas pág. 8
PAÍS
2
O que significa afirmar:
aproximemos a revolução
Lutar para aproximar a revolução significa, antes de mais, manter o
sonho de centenas de milhões de explorados, excluídos, perseguidos,
vivendo a angústia provocada por um sistema que é ele a própria
negação de dignidade, de liberdade, de uma humanidade com futuro,
com direito à esperança. Aproximar a revolução é o mesmo que dizer:
aproximemos o fim da ditadura do capital e construamos um outro
sistema assente na apropriação colectiva da riqueza produzida e
repartida com justiça.
ualquer plataforma
política que se pretenda
hoje de esquerda, não
pode deixar de ter no
centro das suas preocupações
políticas a mudança de
paradigma social como forma de
resolução da crise.
Q
São importantes as denúncias
políticas da devastação que este
governo e a troika levam a cabo,
e combatê-la por todos os meios
possíveis; mas, verdadeiramente
decisivo, é colocar no centro da
luta a mudança de sociedade;
não basta clamar por mais
democracia e por inflectir os
rumos da economia se as rédeas
permanecerem nas mãos dos
capitalistas.
Precisamos de ter uma
plataforma política comum ao
proletariado, que inspire
confiança na sua maioria e o
ganhe para a inversão dos ciclos
repetitivos: eleições/novo
governo/debates no parlamento/
novas eleições/novo governo/
novos debates parlamentares.
Precisamos de romper este
sistema eterno de escravização e
acorrentamento a uma lógica que
só serve aos burgueses no poder
e à sua sobrevivência.
milhões antevêem a miséria e a
exclusão.
Segundo, que o regime actual se
revela historicamente esgotado,
bem como o seu modo de
produção — o capitalismo.
Cabe à esquerda colocar no
centro da sua luta a denúncia e o
combate ao sistema capitalista, e
aproximar um novo sistema de
sociedade sem exploração nem
crises.
São estes os pontos de interesse
comum para o proletariado, numa
perspectiva de esquerda:
1 - Desenvolver e participar na
luta pelo derrube do governo e
pelo fim da política de
austeridade.
2 - Pleno emprego para toda a
população trabalhadora,
desempregada, e para aqueles
que acedem ao mercado de
trabalho, através da redução do
horário de trabalho e da
repartição do trabalho existente
por todos.
3 - Criação de um fundo de
solidariedade que garanta um
rendimento mínimo a todos os
desempregados.
4 - Suspender o pagamento da
dívida, suspender o pagamento
das PPP e de todas as rendas do
Estado ao capital.
5 - Taxar o capital: os seus lucros,
as suas fortunas os seus luxos,
as suas heranças, cortar nas
mordomias e nos altos salários
dos administradores e afins.
6 - Proceder de imediato à
expropriação das fortunas dos
delinquentes do BPN, BPP e de
outros criminosos que têm lesado
o Estado.
Importa unir todos os que
estiverem por este caminho de
luta, numa lógica de frente unida
pela base que eleve a
combatividade dos trabalhadores,
mantendo cada grupo ou partido
a sua independência eleitoral.
Qualquer governo de esquerda a
apoiar terá de sair de um
processo de avanço da luta
popular com vista à tomada do
poder pelas massas
trabalhadoras.
José Borralho
Manifestámo-nos de novo em
vários pontos do país no velho
estilo passeata, com final virado
para dentro, para consumo
interno. Mais uma vez nos foi dito
que a crise será travada com
crescimento económico, levado a
cabo por um governo patriótico e
de esquerda.
Mas não nos esqueçamos: a
esquerda vive encerrada num
círculo de ferro. Resistindo,
protestando, mas não
ambicionando mais do que um
capitalismo “melhor” que este.
Círculo que tarda em ser
rompido, e que nos amarra ao
sistema económico real.
Importa lembrar que a crise em
que o capitalismo está
mergulhado tem a particularidade
de existir não por falta de
crescimento, mas sim por
excesso de produção. E que é
esta anarquia a responsável pela
destruição de postos de trabalho
e indústrias inteiras. E que é
graças a esta anarquia que os
estados se alimentam dos
impostos sobre o trabalho e
aliviam os impostos aos patrões.
Suprimem-se empregos, salários,
direitos, suprimem-se as vidas de
quem trabalha. É o capitalismo
no seu melhor: suprimindo
recursos do lado do trabalho,
concentrando riqueza numa
escassa minoria — banqueiros,
agiotas, comerciantes,
industriais, simples parasitas.
As palavras de ordem de toda a
burguesia internacional são hoje
duas: suprimir (empregos e
direitos ao trabalho), concentrar
(riqueza no capital). O capital
quer salvar-se da crise à custa
do trabalho. E nós trabalhadores
devemos responder: que se
afunde o capital; queremos nada
menos que o poder; só assim
sairemos do círculo de ferro.
Essa plataforma política tem que
ter dois considerandos
elementares:
Primeiro, que a crise capitalista
se agrava e que centenas de
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Pedro Goulart Colaboradores António Louçã,
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Mudar de Vida . Janeiro-Fevereiro 2014
O caminho
está na luta
Por isso, contra a exploração e o
empobrecimento importa dizer: o
capital que pague a crise e a
dívida; pôr fim à austeridade
significa taxar fortemente o
capital.
Desenvolver a consciência de
que é precisa uma revolução
social — é para isso que servem
as manifestações.
José Borralho
MUNDO
Egipto, uma sentença
repugnante
A ditadura militar que governa o
Egipto, na sequência da
demissão do presidente Morsi,
deposto pelo Exército, revelou
uma vez mais aquilo de que é
capaz: 519 pessoas, na maioria
partidários da Irmandade
Muçulmana, foram condenados
à morte, pela violência verificada
em meados de 2013. Desde que
o exército derrubou Morsi, mais
de um milhar dos seus
partidários morreram vítimas de
uma sangrenta repressão e
outros milhares foram detidos,
numa repressão que também se
estendeu à oposição laica.
Quase todos os líderes da
ilegalizada Irmandade
Muçulmana — acusados da
morte de dois polícias e de
ataques contra bens públicos e
privados — estão a ser julgados
e correm o risco de ser
condenados à morte, incluindo
Morsi.
7
A lição da Ucrânia
Quando, no número anterior do MV, em início de Janeiro,
falámos sobre a situação na Ucrânia, as manifestações em
Kiev esmoreciam e parecia que a calma estava regressar ao
país. Enganámo-nos. A disposição da União Europeia e dos
EUA em arrastar a Ucrânia para a sua órbita levou-os a apoiar
por todos os meios os protestos de rua e a incentivar, inclusive,
a pior escumalha de entre os grupos fascistas ucranianos, no
sentido de debilitar o poder do presidente Yanukovich.
Conseguiram-no e não recuaram mesmo diante do risco de
levar o país à beira da guerra civil; ou até de um confronto com
a Rússia, que defende os seus interesses na zona. É neste
sentido que têm de ser entendidas as declarações dos
dirigentes ocidentais, entre eles o sinistro Rasmussen,
secretário-geral da NATO.
Iraque resiste, 11 anos
depois da ocupação
Após 11 anos de ocupação (20
de Março), o Iraque é um dos
países do mundo com mais
violência e mais degradação das
condições de vida da população.
Este é um dos factores que mede
o carácter criminoso da invasão
liderada pelos EUA.
Dados recentes revelam que há
hoje no Iraque 1300 condenados
à morte, homens e mulheres; que
as execuções são por vezes
feitas secretamente e às dezenas
de cada vez. A ponto de a alta
comissária das nações Unidas
para os direitos humanos, Navi
Pillay, ter acusado o regime
iraquiano de agir “como quem
processa animais num
matadouro”.
Contra toda esta situação se tem
levantado a população iraquiana
desde os primeiros meses de
ocupação. A revolta subiu de tom
em 2011 acompanhando os
levantamentos árabes e
culminou, no final de 2013, na
ocupação de três cidades da
província de Al-Anbar por
resistentes armados. Os ataques
indiscriminados das forças
governamentais, têm matado
civis e fazem milhares de
refugiados.
abe-se hoje que os EUA
pagaram aos activistas
nazis de Kiev, à razão de
50 dólares por dia, para
manterem a agitação na praça
Maidan; e que os atiradores
furtivos que mataram uma
centenas de pessoas em 20 de
Fevereiro eram membros dessas
organizações nazis. Esta acção
teleguiada, cuidadosamente
escondida pela comunicação
social dominante, sabotou o
acordo que havia sido firmado
entre a oposição e o governo
ucraniano e precipitou a queda
de Yanukovich.
Entretanto, como se sabe, a
população da Crimeia,
maioritariamente russa, votou em
16 de Março a integração na
Federação Russa e consumou a
sua separação da Ucrânia.
S
Outras movimentações no leste
e sul do país recusam o novo
poder instalado em Kiev,
dominado por forças de extrema
direita, e pedem protecção à
Rússia.
Não é a primeira vez que os
dirigentes e as instituições da UE
mostram saber conviver com
líderes de extrema-direita.
Acontece com a Hungria, país
que hoje vive em verdadeiro
regime de excepção, ou com a
Polónia, ambos membros da UE.
Acontece também com os
próprios partidos fascistas,
xenófobos e reaccionários que
participam em governos ou
detêm forte influência política em
países poderosos da UE.
Com a Ucrânia, porém, assistese a um salto de qualidade: os
EUA e a UE apoiaram,
financiaram e sustentam hoje no
poder forças abertamente nazifascistas que não escondem
nem disfarçam essa sua
condição. Não se trata de tolerar
fascistas que ganharam eleições,
como na Hungria. Nem de
aceitar, à margem do poder,
partidos de extrema-direita como
o de Le Pen em França.
Na Ucrânia foi levado a cabo um
golpe de estado contra um
governo eleito, tendo como
homens-de-mão membros de
milícias nazis pagas pelo
imperialismo ocidental. E neste
momento, a UE e os EUA fazem
tudo para manter no poder e
legitimar essas forças,
apresentando-as como os seus
aliados e como os
representantes do povo
ucraniano!
A UE mostrou por diversas vezes
as suas ambições imperialistas:
na guerra de divisão da
Jugoslávia, no ataque à Líbia,
nas intervenções militares em
África, na guerra contra a Síria.
Tal como os EUA, serviu-se do
pretexto da “defesa dos direitos
humanos” e cobriu-se com o véu
da “intervenção humanitária”.
Tudo isso se desvaneceu no
caso da Ucrânia. A UE está
neste momento refém dos nazis
ucranianos que escolheu como
aliados.
E esta realidade não se limita à
Ucrânia. Até à data a, embora
ténue, diferença entre nazifascistas e extrema-direita
consistia no respeito jurado pelas
regras democráticas e passava
pelo critério do voto. Mas a partir
de agora a UE não pode, mesmo
internamente, traçar nenhuma
diferença essencial entre
extrema-direita respeitadora das
regras democráticas e a acção
directa dos bandos nazifascistas.
Não são as regras democráticas
formais, nem as instituições da
UE que vão defender os povos
europeus da ascensão fascista:
é o exemplo de acção de
massas que está a ser dado
pelas populações ucraniana e
russa, que sofreram como
nenhuma outra a barbárie nazi
— e a venceram.
Manuel Raposo
Mudar de Vida . Janeiro-Fevereiro 2014
PAÍS
6
O papel que a direita dá ao PS
A insistência de Cavaco Silva num acordo PS-PSD-CDS tem
como fito assegurar a continuidade da política ditada pela troika
— com este ou com outro executivo.
lém de o fazer em
conversas avulsas,
Cavaco falou nisso em
Julho passado, quando
o governo ameaçava cair, e
conseguiu, graças à ajuda
prestimosa do PS, que o governo
se mantivesse. Voltou à carga já
este ano no seu livro Roteiros
martelando na necessidade de
um “compromisso de
estabilidade” que abarque mais
do que uma legislatura. E apelou
agora, ao marcar as eleições
Europeias para 25 de Maio, a que
os partidos mantenham bons
modos para evitar zangas difíceis
de sanar.
Os méritos que Cavaco atribui à
ideia fazem dela uma espécie de
remédio milagreiro para os males
do país. Ao mesmo tempo que
considera intocável “o respeito
pelas regras europeias de
equilíbrio orçamental”, o PR acha
ser possível reverter tudo o que
A
foi produzido por essas regras:
reduzir o desemprego, aumentar
salários e pensões, melhorar os
serviços públicos, combater a
pobreza e a exclusão social. De
uma penada, Cavaco acha que
se pode “proceder à correcção de
justiças acumuladas no período
de execução do programa de
ajustamento”. O que falta para
esta verdadeira quadratura do
círculo? Apenas o entendimento
entra as forças partidárias do
“arco governativo”, diz Cavaco...
Mas como poderá um simples
acordo partidário ter o condão de
alterar os dados da
realidade
económica? Não
tem, mas pode ao
menos criar
condições políticas
mais favoráveis para
que o poder enfrente
as consequências
sociais da
austeridade no longo prazo.
A questão chave para Cavaco,
como para toda a direita, é
assegurar que as medidas de
austeridade se transformem
numa linha permanente de
austeridade. Mas isso é fonte
sabida de protestos sociais. O
concurso do PS é então
indispensável para ajudar a
debelar a agitação. A direita
precisa do PS para neutralizar
boa parte das camadas sociais
intermédias descontentes,
empobrecidas pela crise. O
papel que lhe é pedido é o de
impedir que esses sectores
engrossem a aversão ao poder
e os protestos de rua.
Manuel Raposo
A responsabilidade do voto
omo tens exercido o teu direito a voto
nesta democracia burguesa em que
vivemos? Antes de o fazeres tens
pensado seriamente na tua
responsabilidade pelos resultados?
Para não ir mais longe, relembremos as
malfeitorias que os diversos governos dos últimos
anos (do PS, PSD e CDS) praticaram contra os
trabalhadores e o povo e que não são facilmente
esquecíveis. Assim, votar hoje (após os vários
actos eleitorais realizados em democracia
burguesa) nestes partidos do chamado arco
governativo só se compreende por mercenarismo
de quem vota ou quando os interesses de classe
burguesa do votante coincidam com os destes
governos.
Mas esta é apenas uma parte do problema, a que
se afigura mais racional, verificando-se aqui
claramente uma cumplicidade criminosa. Outra
parte, não despicienda, pela quantidade de votos
que dá aos partidos burgueses, é quando o
votante é um trabalhador ou um pobre e entrega o
seu voto a estes partidos, contribuindo para a
eleição dos seus exploradores (e dos seus
homens de mão), por mera imbecilidade. E não se
pode dizer que quem assim procede seja
inimputável.
O recente Congresso do PSD, pela mentira, pela
desvergonha e pela manipulação, mostrou bem o
C
Mudar de Vida . Janeiro-Fevereiro 2014
que a corja governante é capaz de fazer para levar
as pessoas ao engano. Com eleições várias no
horizonte, vale tudo. E não faltaram mesmo
aquelas figuras tristes que até homens inteligentes,
mas oportunistas, como Marcelo Rebelo de Sousa,
se sujeitam a fazer, para que não se esqueçam
deles no momento dos tachos. No caso de
Marcelo, aquando da apresentação da candidatura
presidencial. A palhaçada que o comentador
televisivo, geralmente crítico na TV em relação às
acções do governo de Passos Coelho, foi agora
apresentar ao Congresso do seu partido mostra
como, até Marcelo, não passa de um vulgar trocatintas.
No que respeita às “eleições”, à tua participação e
ao teu voto, levanta-se, quanto a nós, um problema
fundamental. Embora o campo privilegiado da luta
de classes a usar pelos trabalhadores e pelos
revolucionários deva situar-se nas empresas e nas
ruas, os reduzidos tempos das campanhas
eleitorais burguesas em geral não devem ser
desprezados no referente à necessária
desmontagem dos interesses e das políticas dos
partidos do regime. E, também, no recurso a
diversas formas de desacreditar estes partidos –
votando noutros, utilizando a abstenção ou o voto
nulo, procurando derrotá-los no seu próprio
terreno.
Carlos Completo
Estivadores unidos
Dia 4 de Fevereiro, solidários
com a greve dos Estivadores de
Lisboa, os estivadores europeus
pararam diversos portos durante
duas horas. Nesse dia, a luta
também esteve presente em
Setúbal e na Figueira da Foz. “O
alargamento das fronteiras da
nossa luta é uma resposta cabal
à tentativa de isolarem a luta dos
Estivadores de Lisboa que
enfrentam um conjunto de
medidas que estão a ser
programadas para aplicar em
Portugal e exportar para toda a
Europa. Se o que nos oferecem
é a globalização da austeridade,
dos despedimentos fraudulentos
e da precarização do trabalho
portuário, nós ripostamos com
as lutas e a solidariedade
internacionalistas”, conforme
afirmou o blogue O Estivador. De
salientar que a luta determinada
e persistente dos Estivadores de
Lisboa acabou com uma vitória
em que foram consideradas as
suas principais reivindicações.
Qual Justiça?
Enquanto era inaugurado o novo
edifício da Polícia Judiciária, com
a presença de Passos Coelho,
António Costa, Alberto Costa e
Paula Teixeira da Cruz, e era
afirmado tratar-se de edifício do
mais moderno a nível mundial
(segundo Pedro do Carmo, da
direcção nacional desta polícia),
ficámos a saber que isto, para
principiar, nos vai custar quase
cem milhões de euros.
Simultaneamente, esta mesma
Justiça, de que a Polícia
Judiciária faz parte, deixa
prescrever milhões de euros de
multas aos banqueiros Jardim
Gonçalves, do BCP, e João
Rendeiro, do BPP. E, entretanto,
diz-se que falta dinheiro para
escolas, hospitais, assim como
para apoiar os desempregados.
Pobres: 2 milhões
Dados do INE para 2012
mostram uma subida do risco de
pobreza, relativamente a 2011.
Os mais atingidos são os
desempregados, as famílias
numerosas, as crianças, os
reformados e mesmo 10,5% dos
empregados. Um feito da política
de austeridade que deve figurar
com destaque no currículo do trio
Passos-Portas-Cavaco.
PAÍS
3
A quem se dirige o Manifesto dos 70?
O sentido imediato que mais claramente se destaca do
Manifesto dos 70 é este: a política do governo PSD-CDS-troika
vai ser repudiada nas eleições legislativas de 2015 e os
primeiros sinais podem ser dados já nas Europeias de 25 de
Maio. Uma significativa deslocação de votos para a esquerda
(PCP e BE); uma forte abstenção dos eleitores de centro que
se sentem enganados, descalçando PSD e CDS; uma fraca
vitória do PS — tudo isto pode criar uma grande fragilidade ao
último ano de governo de Passos Coelho bem como ao
governo que se seguirá.
Prosseguindo as medidas de austeridade como até aqui, as
condições sociais serão favoráveis a novas manifestações de
descontentamento popular, as grandes movimentações de rua
poderão voltar a agitar o país. Nem PS nem PSD teriam
margem de apoio suficiente para prosseguir a política actual
sem que a luta de classes se agudizasse; e as miragens de
recuperação económica esfumar-se-iam.
contra esta eventualidade
que o Manifesto procura
tomar cautelas. Os 70
tentam com a sua
proposta criar o consenso
partidário em que Cavaco Silva
tem insistido — mas centram
esforços no PS, o possível
vencedor das eleições, e não no
PSD, o provável perdedor. Para
os 70, Cavaco aposta no cavalo
errado.
É
Medidas cautelares
No plano político, portanto, o
Manifesto expressa duas coisas,
que são a marca da iniciativa: 1)
a alternativa prática para um
próximo governo é neste
momento o PS; mas, 2) é preciso
que o PS não fique prisioneiro da
pressão à sua esquerda,
expressa sobretudo nos
protestos sociais e na
expectativa popular de recuperar
alguma coisa do que foi perdido
nos últimos anos.
Ora, é para evitar isso que
importa a presença activa de
Ferreira Leite, Bagão Félix,
Adriano Moreira, ... mais António
Saraiva e Vieira Lopes das
confederações patronais da
indústria e do comércio.
Independentemente, pois, da
vontade dos signatários de
esquerda, o consenso que coloca
na mesma plataforma bloquistas,
ex-PCPs, PSDs e CDSs
descontentes, PSs “de
esquerda”, ex-salazaristas, etc,
é um consenso feito no terreno
da direita — facto que não é
incompatível com a crítica à
governação de Passos Coelho.
A quem se dirigem os 70?
Em termos sociais, o Manifesto
dirige-se às classes intermédias:
pequenos e médios patrões (é
esse o significado das
assinaturas dos dirigentes da
CIP e da CCP) dependentes de
um mercado interno cada vez
mais estreito, afogados em
dívidas, sem crédito da banca,
condenados a falir; mas também
aos assalariados da Função
Pública, aos professores, aos
estudantes sem futuro, aos
militares e polícias, aos
pequenos profissionais liberais
que vêem os rendimentos a
descer e o desemprego no
horizonte próximo.
O Manifesto procura convocar
todos os sectores que constituem
o centro social do país e diz-lhes:
“Vocês ainda têm uma palavra a
dar quanto ao nosso destino
comum, na condição de
rejeitarem tentações de
radicalismo”.
E aí está o conteúdo do
Manifesto a mostrar o que isso
significa: respeitar
escrupulosamente os
mandamentos da União
Europeia, jurar pagar a dívida até
ao último tostão, não ousar
denunciar, quanto mais pôr em
causa, os interesses e a
hegemonia do capital financeiro.
O Manifesto não é uma radical
ofensiva das classes médias,
revoltadas com o domínio
esmagador do grande capital,
dispostas a liderar um novo rumo
político para o país. Elas não têm
nem condições nem coragem
para o fazer, porque temem que
qualquer brecha aberta no
sistema possa dar passagem às
exigências da massa
trabalhadora. Em termos
práticos, objectivos, o manifesto
representa uma tentativa de
travar a descolagem das
camadas pequeno-burguesas em
relação às forças burguesas
dominantes, divididas pelas
agruras da crise, e evitar a
degradação do sistema político.
Questão primeira: quem
paga?
O ponto de partida do Manifesto
é uma realidade óbvia, dita e
redita: a austeridade empobrece
a grande massa trabalhadora e
assalariada, liquida a pequena e
média propriedade, estrangula a
possibilidade de desenvolvimento
económico, não consegue travar
o crescimento da dívida — e cria
com isso condições para
confrontos sociais mais agudos
(“riscos de instabilidade política e
de conflitualidade social”, avisa o
texto).
A resposta do Manifesto a este
problema resume-se em pedir
mais tempo para pagar a dívida,
a juros mais baixos — rejeitando
repetidamente faltar a qualquer
pagamento — na esperança de
obter com isso um tempo de
respiração que facilite “um
robusto e sustentado
crescimento” económico. Conta,
com esta atitude “responsável”,
ganhar as boas graças e a
”solidariedade” do capital e das
instituições europeias para uma
espécie de austeridade branda,
alongada no tempo.
Mas a questão de fundo acerca
da dívida é, em primeiro lugar, a
de saber quem a paga — não em
quanto tempo deve ela ser paga.
Há os que acham que deve ser a
massa trabalhadora a pagá-la,
integral e rapidamente. Há os
que alimentam a ilusão de
repartir os custos. Os
subscritores do Manifesto
procuram abrir uma espécie de
via intermédia entre uns e outros.
Há, porém, uma outra posição: a
dos (poucos, embora) que
defendem que, para os
trabalhadores, a única posição
profícua é rejeitar pagar a dívida,
pautando as suas lutas de
resistência por este propósito. Os
ganhos imediatos, neste caso,
serão certamente escassos —
mas esta é a única posição que
aponta ao nó do problema: a
crise do sistema social
capitalista, de que a dívida é
apenas um dos frutos.
Manuel Raposo
Mudar de Vida . Janeiro-Fevereiro 2014
PAÍS
4
Os privados agradecem, os utentes sofrem
A degradação do Serviço Nacional de Saúde
As chamadas reformas do Serviço Nacional
de Saúde (SNS) ocorridas nos últimos
anos, muitas vezes a pretexto do combate
a ineficiências e desperdícios (que, a par da
corrupção, também existem) aumentaram
as dificuldades das classes trabalhadoras e
do povo no acesso aos cuidados de saúde.
Os sucessivos cortes (a torto e a direito) no
sector já ultrapassaram em muito as
alegadas ineficiências e desperdícios,
tendo conduzido ao afastamento de
numerosos profissionais altamente
qualificados (médicos, enfermeiros e
técnicos de diagnóstico), produzido vários
estrangulamentos e causado sérios
problemas ao atempado e adequado
tratamento dos doentes.
ongas esperas nas urgências, para
consultas de especialidade e para
determinadas intervenções cirúrgicas têm
sido as consequências mais penosas de
tais políticas. E o caso recente dos
trabalhadores da Linha de Saúde 24
(substituindo enfermeiros experientes por outros
mais baratos e sem conhecimentos adequados)
surge como mais um acto que vai na linha da
crescente degradação dos cuidados de saúde
prestados aos portugueses.
L
As várias medidas adoptadas no campo da
Saúde pelos últimos governos, incluídos os
aumentos das taxas moderadoras e o
racionamento das consultas médicas, dos
medicamentos e dos meios complementares de
diagnóstico, têm empurrado muitos doentes
para o Privado (os que têm algum dinheiro) e
atirado, não raramente, para sofrimentos
desnecessários e até para a morte numerosos
utentes do SNS.
Dois casos graves
Um caso que veio alertar ainda mais a opinião
pública para o grau de degradação já hoje
atingido pelo Serviço Nacional de Saúde (SNS)
foi o de uma utente, com cerca de 60 anos, que
já habituada a fazer o rastreio ao cancro colorectal, teve uma análise positiva, o que levou o
médico de família a enviá-la a uma consulta de
gastrenterologia no Hospital Fernando Fonseca
(Amadora-Sintra) para fazer uma colonoscopia.
Mas que teve de esperar um ano pela consulta,
a que se seguiu outro ano para fazer a referida
colonoscopia. “Ao fim de dois anos, tinha cancro
no intestino, grande e inoperável. A utente está
agora a fazer quimioterapia para o reduzir, a fim
de ver se pode ser operada”, diz o médico. A
unidade não nega o tempo de espera e afirma
que tem de triar os doentes mesmo quando a
análise é positiva, por ter falta de recursos.
Mudar de Vida . Janeiro-Fevereiro 2014
Sendo este um caso limite, certamente não é
único, pois situa-se num contexto condenável:
só entre 2011 e 2012 o número de doentes
cancerosos operados com uma demora
superior à desejável subiu 17,5%. Cinicamente,
em declarações à Lusa, fonte do Ministério da
Saúde disse ser esta uma situação
“intolerável”, que “lamenta profundamente”.
Outro caso também recente: o ministro Paulo
Macedo, durante uma audição na comissão
parlamentar de Saúde, quando confrontado
pelo Bloco de Esquerda com uma ocorrência
no Hospital Amadora-Sintra, em que uma
mulher de 67 anos morreu de enfarte após ter
esperado mais de seis horas para ser atendida,
afirmou que este foi um caso isolado. Mas,
apesar desta afirmação, o ministro reconheceu
que é preciso investigar o caso.
As causas do mal
Num debate realizado em Coimbra e
subordinado ao tema “Ética da sustentabilidade
do sistema de saúde - Ética na prestação de
cuidados de saúde, ética no circuito do
medicamento”, o bastonário da Ordem dos
Médicos, José Manuel Silva, recusou o
racionamento no SNS, que promove “uma
saúde para ricos e outra para pobres”,
afirmando que “o racionamento só afecta os
mais desfavorecidos” da sociedade. Para o
bastonário, o racionamento de medicamentos,
materiais diversos usados na saúde e meios
complementares de diagnóstico traduz “uma
atitude que discrimina” os utentes deste
Serviço.
Reportando-nos, ainda, ao Hospital AmadoraSintra, lembramos que numa carta de demissão
de 31 de Dezembro de 2013, e referindo-se a
uma situação que se arrasta desde 2012, a
direcção do Serviço de Urgências dizia fazê-lo
(o pedido de demissão) “por entender que as
actuais condições de trabalho põem em risco a
qualidade mínima no atendimento e a vida dos
doentes”. Os médicos denunciavam que o
serviço de urgência do hospital nunca teve
dimensão adequada, situação agravada pela
falta de resposta de cuidados primários na
região. E que a dificuldade de acesso aos
médicos de família faz com que chegue ao
hospital “um elevado número de pessoas com
patologias inadequadamente abordadas e
tardiamente diagnosticadas”. Acrescentavam,
também, que à falta de espaço se juntava a
redução das equipas, esclarecendo que em
certos dias só há quatro médicos no balcão das
Urgências a partir das 20h e que muitos deles
não têm formação diferenciada em urgência.
Os casos mortais acima referidos, respeitantes
a utentes do SNS, as declarações do
bastonário da Ordem dos Médicos e a carta de
demissão da Direcção do Serviço de Urgências
do Hospital Amadora-Sintra, correspondem
apenas à ponta de um iceberg de degradação
em que o SNS está a ser transformado pela
política do governo. Este é, com efeito, o
resultado de uma política de cortes brutais no
SNS e favorecedora da entrega de parte
significativa dos cuidados de saúde e dos
respectivos lucros ao sector privado
(companhias de seguros, hospitais e clínicas).
E não adianta o ministro Paulo Macedo tentar
enganar-nos, esgrimindo alguns números,
lamentando estas situações ou criando mais
umas quantas comissões de inquérito, pois tal
não resolve os reais problemas de fundo que
hoje se colocam quanto aos necessários
cuidados de saúde dos portugueses.
É preciso parar esta política criminosa do
capital!
Pedro Goulart
5
Masoquismo,
compromissos políticos,
empobrecimento
Passos Coelho, que falava numa
conferência sobre o pós-troika, irritado por
o Manifesto dos 70 vir pôr em causa a
única saída (a sua!) para a presente crise
do capitalismo português e, ainda, por ter
surgido num momento com eleições à vista,
foi contundente na forma como se referiu
às personalidades de diversos quadrantes
políticos que subscreveram o Manifesto
pela Reestruturação da Dívida. Passos
Coelho acusou os subscritores de serem
"os mesmos que falavam na espiral
recessiva" e afirmou espantar-se que
"pessoas tão bem informadas" levantassem
tais questões. E o primeiro-ministro citou, a
propósito, o Presidente da República,
apoiando a ideia por este então expressa
de que falar em reestruturação da dívida
era um acto de "masoquismo".
D
e facto, em Outubro de 2013, durante
uma visita à Suécia (e apesar de já
antes ter afirmado que no estrangeiro
não se pronunciava sobre política
interna portuguesa), Cavaco Silva interrogavase agora publicamente sobre a razão por que
analistas e políticos diziam que a dívida
portuguesa não era sustentável (enquanto os
credores, a Comissão, o Banco Central
Europeu e o Fundo Monetário Internacional
diziam o contrário) considerando, assim, que a
atitude de tais críticos era "masoquismo”.
Masoquismo e empobrecimento
Apesar das propostas, moderadas, que se
situam no quadro do regime democráticoburguês vigente, os autores do Manifesto foram
insultados por diversa gente, acusados de
diversas coisas, inclusive de anti-patriotismo e
de terem agendas políticas próprias. Nos
ataques dirigidos contra os autores do
Manifesto, para além de algumas figuras
sinistras, como Eduardo Catroga, destacaramse especialmente vários papagaios amestrados,
particularmente da área do jornalismo
económico. E dois dos subscritores do
Manifesto foram prontamente afastados de
assessores do PR, mostrando bem o carácter
do actual presidente da República. Assim, fica
bem em evidência como, mesmo entre gente da
mesma classe (burguesa), quem se afastar da
política de espoliação e de empobrecimento
traçada pelo governo de Passos Coelho (e, no
essencial, apoiada por Cavaco Silva) é
considerado persona non grata.
Depois dos brutais ataques que têm sido
desferidos ao longo dos últimos anos pelo
governo de Passos Coelho (com a cobertura
política de Cavaco Silva) contra os
trabalhadores e maioria do povo português,
esmagando salários, pensões, prestações de
saúde, educação e segurança social, depois de
tudo isso, dizíamos, que Cavaco e Passos
Coelho venham falar de masoquismo, só faz
sentido se se estiverem a referir às vítimas dos
seus ataques que ainda os continuam a apoiar.
Batem-lhes e eles gostam!
Compromissos políticos
Na linha da defesa dos interesses das classes
dominantes e da política do governo (aliado da
troika), têm sido desenvolvidas campanhas
procurando encurralar o PS, de forma a garantir
um apoio mais alargado à política do governo
PSD/CDS. E o actual presidente da República
tem-se empenhado aqui particularmente,
revelando-se como um dos mais encarniçados
defensores de um compromisso envolvendo os
três partidos do chamado arco da governação
— PSD, CDS e PS.
Pesem algumas das fantasias numéricas de
Cavaco Silva expressas em Roteiros VIII (por
exemplo: “Pressupondo um crescimento anual
do produto nominal de 4 por cento e uma taxa
de juro implícita da dívida pública de 4 por
cento, para atingir, em 2035, o valor de
referência de 60 por cento para o rácio da
dívida, seria necessário que o Orçamento
registasse, em média, um excedente primário
anual de cerca de 3 por cento do PIB. Em 2014,
prevê-se que o excedente primário atinja 0,3
por cento do PIB”), o actual presidente da
República considera que teremos de viver numa
rigorosa austeridade durante mais uns vinte (ou
trinta) anos e é para esta austeridade (mais
coisa menos coisa, a de Passos Coelho) que
pretende um compromisso de médio prazo
entre as forças políticas comprometidas com o
actual programa de assistência financeira,
arrastando para aqui, insistentemente, o PS.
Aliás, em sintonia com o patronato e com o
recente apelo de Passos Coelho onde exorta o
PS para que se sente à mesa das negociações
e aceite estabelecer um acordo alargado para o
pós-troika.
Claro que, pela sua natureza, mais tarde ou
mais cedo o PS, arrastado pelo patronato, lá irá.
Contudo, os cálculos eleitorais irão pesar
bastante na determinação do momento exacto
para o acerto de passo entre o PS e os
restantes partidos defensores dos interesses do
patronato.
Mas nenhuma destas “alternativas” é a dos
trabalhadores. A “reestruturação honrada e
responsável da dívida”, defendida pelo
Manifesto dos 70 não é, certamente, a nossa
opção. Os trabalhadores não têm que pagar
dívidas que não são as suas, eles não têm que
pagar a crise do capitalismo.
Pedro Goulart
Mudar de Vida . Janeiro-Fevereiro 2014
PAÍS
4
Os privados agradecem, os utentes sofrem
A degradação do Serviço Nacional de Saúde
As chamadas reformas do Serviço Nacional
de Saúde (SNS) ocorridas nos últimos
anos, muitas vezes a pretexto do combate
a ineficiências e desperdícios (que, a par da
corrupção, também existem) aumentaram
as dificuldades das classes trabalhadoras e
do povo no acesso aos cuidados de saúde.
Os sucessivos cortes (a torto e a direito) no
sector já ultrapassaram em muito as
alegadas ineficiências e desperdícios,
tendo conduzido ao afastamento de
numerosos profissionais altamente
qualificados (médicos, enfermeiros e
técnicos de diagnóstico), produzido vários
estrangulamentos e causado sérios
problemas ao atempado e adequado
tratamento dos doentes.
ongas esperas nas urgências, para
consultas de especialidade e para
determinadas intervenções cirúrgicas têm
sido as consequências mais penosas de
tais políticas. E o caso recente dos
trabalhadores da Linha de Saúde 24
(substituindo enfermeiros experientes por outros
mais baratos e sem conhecimentos adequados)
surge como mais um acto que vai na linha da
crescente degradação dos cuidados de saúde
prestados aos portugueses.
L
As várias medidas adoptadas no campo da
Saúde pelos últimos governos, incluídos os
aumentos das taxas moderadoras e o
racionamento das consultas médicas, dos
medicamentos e dos meios complementares de
diagnóstico, têm empurrado muitos doentes
para o Privado (os que têm algum dinheiro) e
atirado, não raramente, para sofrimentos
desnecessários e até para a morte numerosos
utentes do SNS.
Dois casos graves
Um caso que veio alertar ainda mais a opinião
pública para o grau de degradação já hoje
atingido pelo Serviço Nacional de Saúde (SNS)
foi o de uma utente, com cerca de 60 anos, que
já habituada a fazer o rastreio ao cancro colorectal, teve uma análise positiva, o que levou o
médico de família a enviá-la a uma consulta de
gastrenterologia no Hospital Fernando Fonseca
(Amadora-Sintra) para fazer uma colonoscopia.
Mas que teve de esperar um ano pela consulta,
a que se seguiu outro ano para fazer a referida
colonoscopia. “Ao fim de dois anos, tinha cancro
no intestino, grande e inoperável. A utente está
agora a fazer quimioterapia para o reduzir, a fim
de ver se pode ser operada”, diz o médico. A
unidade não nega o tempo de espera e afirma
que tem de triar os doentes mesmo quando a
análise é positiva, por ter falta de recursos.
Mudar de Vida . Janeiro-Fevereiro 2014
Sendo este um caso limite, certamente não é
único, pois situa-se num contexto condenável:
só entre 2011 e 2012 o número de doentes
cancerosos operados com uma demora
superior à desejável subiu 17,5%. Cinicamente,
em declarações à Lusa, fonte do Ministério da
Saúde disse ser esta uma situação
“intolerável”, que “lamenta profundamente”.
Outro caso também recente: o ministro Paulo
Macedo, durante uma audição na comissão
parlamentar de Saúde, quando confrontado
pelo Bloco de Esquerda com uma ocorrência
no Hospital Amadora-Sintra, em que uma
mulher de 67 anos morreu de enfarte após ter
esperado mais de seis horas para ser atendida,
afirmou que este foi um caso isolado. Mas,
apesar desta afirmação, o ministro reconheceu
que é preciso investigar o caso.
As causas do mal
Num debate realizado em Coimbra e
subordinado ao tema “Ética da sustentabilidade
do sistema de saúde - Ética na prestação de
cuidados de saúde, ética no circuito do
medicamento”, o bastonário da Ordem dos
Médicos, José Manuel Silva, recusou o
racionamento no SNS, que promove “uma
saúde para ricos e outra para pobres”,
afirmando que “o racionamento só afecta os
mais desfavorecidos” da sociedade. Para o
bastonário, o racionamento de medicamentos,
materiais diversos usados na saúde e meios
complementares de diagnóstico traduz “uma
atitude que discrimina” os utentes deste
Serviço.
Reportando-nos, ainda, ao Hospital AmadoraSintra, lembramos que numa carta de demissão
de 31 de Dezembro de 2013, e referindo-se a
uma situação que se arrasta desde 2012, a
direcção do Serviço de Urgências dizia fazê-lo
(o pedido de demissão) “por entender que as
actuais condições de trabalho põem em risco a
qualidade mínima no atendimento e a vida dos
doentes”. Os médicos denunciavam que o
serviço de urgência do hospital nunca teve
dimensão adequada, situação agravada pela
falta de resposta de cuidados primários na
região. E que a dificuldade de acesso aos
médicos de família faz com que chegue ao
hospital “um elevado número de pessoas com
patologias inadequadamente abordadas e
tardiamente diagnosticadas”. Acrescentavam,
também, que à falta de espaço se juntava a
redução das equipas, esclarecendo que em
certos dias só há quatro médicos no balcão das
Urgências a partir das 20h e que muitos deles
não têm formação diferenciada em urgência.
Os casos mortais acima referidos, respeitantes
a utentes do SNS, as declarações do
bastonário da Ordem dos Médicos e a carta de
demissão da Direcção do Serviço de Urgências
do Hospital Amadora-Sintra, correspondem
apenas à ponta de um iceberg de degradação
em que o SNS está a ser transformado pela
política do governo. Este é, com efeito, o
resultado de uma política de cortes brutais no
SNS e favorecedora da entrega de parte
significativa dos cuidados de saúde e dos
respectivos lucros ao sector privado
(companhias de seguros, hospitais e clínicas).
E não adianta o ministro Paulo Macedo tentar
enganar-nos, esgrimindo alguns números,
lamentando estas situações ou criando mais
umas quantas comissões de inquérito, pois tal
não resolve os reais problemas de fundo que
hoje se colocam quanto aos necessários
cuidados de saúde dos portugueses.
É preciso parar esta política criminosa do
capital!
Pedro Goulart
5
Masoquismo,
compromissos políticos,
empobrecimento
Passos Coelho, que falava numa
conferência sobre o pós-troika, irritado por
o Manifesto dos 70 vir pôr em causa a
única saída (a sua!) para a presente crise
do capitalismo português e, ainda, por ter
surgido num momento com eleições à vista,
foi contundente na forma como se referiu
às personalidades de diversos quadrantes
políticos que subscreveram o Manifesto
pela Reestruturação da Dívida. Passos
Coelho acusou os subscritores de serem
"os mesmos que falavam na espiral
recessiva" e afirmou espantar-se que
"pessoas tão bem informadas" levantassem
tais questões. E o primeiro-ministro citou, a
propósito, o Presidente da República,
apoiando a ideia por este então expressa
de que falar em reestruturação da dívida
era um acto de "masoquismo".
D
e facto, em Outubro de 2013, durante
uma visita à Suécia (e apesar de já
antes ter afirmado que no estrangeiro
não se pronunciava sobre política
interna portuguesa), Cavaco Silva interrogavase agora publicamente sobre a razão por que
analistas e políticos diziam que a dívida
portuguesa não era sustentável (enquanto os
credores, a Comissão, o Banco Central
Europeu e o Fundo Monetário Internacional
diziam o contrário) considerando, assim, que a
atitude de tais críticos era "masoquismo”.
Masoquismo e empobrecimento
Apesar das propostas, moderadas, que se
situam no quadro do regime democráticoburguês vigente, os autores do Manifesto foram
insultados por diversa gente, acusados de
diversas coisas, inclusive de anti-patriotismo e
de terem agendas políticas próprias. Nos
ataques dirigidos contra os autores do
Manifesto, para além de algumas figuras
sinistras, como Eduardo Catroga, destacaramse especialmente vários papagaios amestrados,
particularmente da área do jornalismo
económico. E dois dos subscritores do
Manifesto foram prontamente afastados de
assessores do PR, mostrando bem o carácter
do actual presidente da República. Assim, fica
bem em evidência como, mesmo entre gente da
mesma classe (burguesa), quem se afastar da
política de espoliação e de empobrecimento
traçada pelo governo de Passos Coelho (e, no
essencial, apoiada por Cavaco Silva) é
considerado persona non grata.
Depois dos brutais ataques que têm sido
desferidos ao longo dos últimos anos pelo
governo de Passos Coelho (com a cobertura
política de Cavaco Silva) contra os
trabalhadores e maioria do povo português,
esmagando salários, pensões, prestações de
saúde, educação e segurança social, depois de
tudo isso, dizíamos, que Cavaco e Passos
Coelho venham falar de masoquismo, só faz
sentido se se estiverem a referir às vítimas dos
seus ataques que ainda os continuam a apoiar.
Batem-lhes e eles gostam!
Compromissos políticos
Na linha da defesa dos interesses das classes
dominantes e da política do governo (aliado da
troika), têm sido desenvolvidas campanhas
procurando encurralar o PS, de forma a garantir
um apoio mais alargado à política do governo
PSD/CDS. E o actual presidente da República
tem-se empenhado aqui particularmente,
revelando-se como um dos mais encarniçados
defensores de um compromisso envolvendo os
três partidos do chamado arco da governação
— PSD, CDS e PS.
Pesem algumas das fantasias numéricas de
Cavaco Silva expressas em Roteiros VIII (por
exemplo: “Pressupondo um crescimento anual
do produto nominal de 4 por cento e uma taxa
de juro implícita da dívida pública de 4 por
cento, para atingir, em 2035, o valor de
referência de 60 por cento para o rácio da
dívida, seria necessário que o Orçamento
registasse, em média, um excedente primário
anual de cerca de 3 por cento do PIB. Em 2014,
prevê-se que o excedente primário atinja 0,3
por cento do PIB”), o actual presidente da
República considera que teremos de viver numa
rigorosa austeridade durante mais uns vinte (ou
trinta) anos e é para esta austeridade (mais
coisa menos coisa, a de Passos Coelho) que
pretende um compromisso de médio prazo
entre as forças políticas comprometidas com o
actual programa de assistência financeira,
arrastando para aqui, insistentemente, o PS.
Aliás, em sintonia com o patronato e com o
recente apelo de Passos Coelho onde exorta o
PS para que se sente à mesa das negociações
e aceite estabelecer um acordo alargado para o
pós-troika.
Claro que, pela sua natureza, mais tarde ou
mais cedo o PS, arrastado pelo patronato, lá irá.
Contudo, os cálculos eleitorais irão pesar
bastante na determinação do momento exacto
para o acerto de passo entre o PS e os
restantes partidos defensores dos interesses do
patronato.
Mas nenhuma destas “alternativas” é a dos
trabalhadores. A “reestruturação honrada e
responsável da dívida”, defendida pelo
Manifesto dos 70 não é, certamente, a nossa
opção. Os trabalhadores não têm que pagar
dívidas que não são as suas, eles não têm que
pagar a crise do capitalismo.
Pedro Goulart
Mudar de Vida . Janeiro-Fevereiro 2014
PAÍS
6
O papel que a direita dá ao PS
A insistência de Cavaco Silva num acordo PS-PSD-CDS tem
como fito assegurar a continuidade da política ditada pela troika
— com este ou com outro executivo.
lém de o fazer em
conversas avulsas,
Cavaco falou nisso em
Julho passado, quando
o governo ameaçava cair, e
conseguiu, graças à ajuda
prestimosa do PS, que o governo
se mantivesse. Voltou à carga já
este ano no seu livro Roteiros
martelando na necessidade de
um “compromisso de
estabilidade” que abarque mais
do que uma legislatura. E apelou
agora, ao marcar as eleições
Europeias para 25 de Maio, a que
os partidos mantenham bons
modos para evitar zangas difíceis
de sanar.
Os méritos que Cavaco atribui à
ideia fazem dela uma espécie de
remédio milagreiro para os males
do país. Ao mesmo tempo que
considera intocável “o respeito
pelas regras europeias de
equilíbrio orçamental”, o PR acha
ser possível reverter tudo o que
A
foi produzido por essas regras:
reduzir o desemprego, aumentar
salários e pensões, melhorar os
serviços públicos, combater a
pobreza e a exclusão social. De
uma penada, Cavaco acha que
se pode “proceder à correcção de
justiças acumuladas no período
de execução do programa de
ajustamento”. O que falta para
esta verdadeira quadratura do
círculo? Apenas o entendimento
entra as forças partidárias do
“arco governativo”, diz Cavaco...
Mas como poderá um simples
acordo partidário ter o condão de
alterar os dados da
realidade
económica? Não
tem, mas pode ao
menos criar
condições políticas
mais favoráveis para
que o poder enfrente
as consequências
sociais da
austeridade no longo prazo.
A questão chave para Cavaco,
como para toda a direita, é
assegurar que as medidas de
austeridade se transformem
numa linha permanente de
austeridade. Mas isso é fonte
sabida de protestos sociais. O
concurso do PS é então
indispensável para ajudar a
debelar a agitação. A direita
precisa do PS para neutralizar
boa parte das camadas sociais
intermédias descontentes,
empobrecidas pela crise. O
papel que lhe é pedido é o de
impedir que esses sectores
engrossem a aversão ao poder
e os protestos de rua.
Manuel Raposo
A responsabilidade do voto
omo tens exercido o teu direito a voto
nesta democracia burguesa em que
vivemos? Antes de o fazeres tens
pensado seriamente na tua
responsabilidade pelos resultados?
Para não ir mais longe, relembremos as
malfeitorias que os diversos governos dos últimos
anos (do PS, PSD e CDS) praticaram contra os
trabalhadores e o povo e que não são facilmente
esquecíveis. Assim, votar hoje (após os vários
actos eleitorais realizados em democracia
burguesa) nestes partidos do chamado arco
governativo só se compreende por mercenarismo
de quem vota ou quando os interesses de classe
burguesa do votante coincidam com os destes
governos.
Mas esta é apenas uma parte do problema, a que
se afigura mais racional, verificando-se aqui
claramente uma cumplicidade criminosa. Outra
parte, não despicienda, pela quantidade de votos
que dá aos partidos burgueses, é quando o
votante é um trabalhador ou um pobre e entrega o
seu voto a estes partidos, contribuindo para a
eleição dos seus exploradores (e dos seus
homens de mão), por mera imbecilidade. E não se
pode dizer que quem assim procede seja
inimputável.
O recente Congresso do PSD, pela mentira, pela
desvergonha e pela manipulação, mostrou bem o
C
Mudar de Vida . Janeiro-Fevereiro 2014
que a corja governante é capaz de fazer para levar
as pessoas ao engano. Com eleições várias no
horizonte, vale tudo. E não faltaram mesmo
aquelas figuras tristes que até homens inteligentes,
mas oportunistas, como Marcelo Rebelo de Sousa,
se sujeitam a fazer, para que não se esqueçam
deles no momento dos tachos. No caso de
Marcelo, aquando da apresentação da candidatura
presidencial. A palhaçada que o comentador
televisivo, geralmente crítico na TV em relação às
acções do governo de Passos Coelho, foi agora
apresentar ao Congresso do seu partido mostra
como, até Marcelo, não passa de um vulgar trocatintas.
No que respeita às “eleições”, à tua participação e
ao teu voto, levanta-se, quanto a nós, um problema
fundamental. Embora o campo privilegiado da luta
de classes a usar pelos trabalhadores e pelos
revolucionários deva situar-se nas empresas e nas
ruas, os reduzidos tempos das campanhas
eleitorais burguesas em geral não devem ser
desprezados no referente à necessária
desmontagem dos interesses e das políticas dos
partidos do regime. E, também, no recurso a
diversas formas de desacreditar estes partidos –
votando noutros, utilizando a abstenção ou o voto
nulo, procurando derrotá-los no seu próprio
terreno.
Carlos Completo
Estivadores unidos
Dia 4 de Fevereiro, solidários
com a greve dos Estivadores de
Lisboa, os estivadores europeus
pararam diversos portos durante
duas horas. Nesse dia, a luta
também esteve presente em
Setúbal e na Figueira da Foz. “O
alargamento das fronteiras da
nossa luta é uma resposta cabal
à tentativa de isolarem a luta dos
Estivadores de Lisboa que
enfrentam um conjunto de
medidas que estão a ser
programadas para aplicar em
Portugal e exportar para toda a
Europa. Se o que nos oferecem
é a globalização da austeridade,
dos despedimentos fraudulentos
e da precarização do trabalho
portuário, nós ripostamos com
as lutas e a solidariedade
internacionalistas”, conforme
afirmou o blogue O Estivador. De
salientar que a luta determinada
e persistente dos Estivadores de
Lisboa acabou com uma vitória
em que foram consideradas as
suas principais reivindicações.
Qual Justiça?
Enquanto era inaugurado o novo
edifício da Polícia Judiciária, com
a presença de Passos Coelho,
António Costa, Alberto Costa e
Paula Teixeira da Cruz, e era
afirmado tratar-se de edifício do
mais moderno a nível mundial
(segundo Pedro do Carmo, da
direcção nacional desta polícia),
ficámos a saber que isto, para
principiar, nos vai custar quase
cem milhões de euros.
Simultaneamente, esta mesma
Justiça, de que a Polícia
Judiciária faz parte, deixa
prescrever milhões de euros de
multas aos banqueiros Jardim
Gonçalves, do BCP, e João
Rendeiro, do BPP. E, entretanto,
diz-se que falta dinheiro para
escolas, hospitais, assim como
para apoiar os desempregados.
Pobres: 2 milhões
Dados do INE para 2012
mostram uma subida do risco de
pobreza, relativamente a 2011.
Os mais atingidos são os
desempregados, as famílias
numerosas, as crianças, os
reformados e mesmo 10,5% dos
empregados. Um feito da política
de austeridade que deve figurar
com destaque no currículo do trio
Passos-Portas-Cavaco.
PAÍS
3
A quem se dirige o Manifesto dos 70?
O sentido imediato que mais claramente se destaca do
Manifesto dos 70 é este: a política do governo PSD-CDS-troika
vai ser repudiada nas eleições legislativas de 2015 e os
primeiros sinais podem ser dados já nas Europeias de 25 de
Maio. Uma significativa deslocação de votos para a esquerda
(PCP e BE); uma forte abstenção dos eleitores de centro que
se sentem enganados, descalçando PSD e CDS; uma fraca
vitória do PS — tudo isto pode criar uma grande fragilidade ao
último ano de governo de Passos Coelho bem como ao
governo que se seguirá.
Prosseguindo as medidas de austeridade como até aqui, as
condições sociais serão favoráveis a novas manifestações de
descontentamento popular, as grandes movimentações de rua
poderão voltar a agitar o país. Nem PS nem PSD teriam
margem de apoio suficiente para prosseguir a política actual
sem que a luta de classes se agudizasse; e as miragens de
recuperação económica esfumar-se-iam.
contra esta eventualidade
que o Manifesto procura
tomar cautelas. Os 70
tentam com a sua
proposta criar o consenso
partidário em que Cavaco Silva
tem insistido — mas centram
esforços no PS, o possível
vencedor das eleições, e não no
PSD, o provável perdedor. Para
os 70, Cavaco aposta no cavalo
errado.
É
Medidas cautelares
No plano político, portanto, o
Manifesto expressa duas coisas,
que são a marca da iniciativa: 1)
a alternativa prática para um
próximo governo é neste
momento o PS; mas, 2) é preciso
que o PS não fique prisioneiro da
pressão à sua esquerda,
expressa sobretudo nos
protestos sociais e na
expectativa popular de recuperar
alguma coisa do que foi perdido
nos últimos anos.
Ora, é para evitar isso que
importa a presença activa de
Ferreira Leite, Bagão Félix,
Adriano Moreira, ... mais António
Saraiva e Vieira Lopes das
confederações patronais da
indústria e do comércio.
Independentemente, pois, da
vontade dos signatários de
esquerda, o consenso que coloca
na mesma plataforma bloquistas,
ex-PCPs, PSDs e CDSs
descontentes, PSs “de
esquerda”, ex-salazaristas, etc,
é um consenso feito no terreno
da direita — facto que não é
incompatível com a crítica à
governação de Passos Coelho.
A quem se dirigem os 70?
Em termos sociais, o Manifesto
dirige-se às classes intermédias:
pequenos e médios patrões (é
esse o significado das
assinaturas dos dirigentes da
CIP e da CCP) dependentes de
um mercado interno cada vez
mais estreito, afogados em
dívidas, sem crédito da banca,
condenados a falir; mas também
aos assalariados da Função
Pública, aos professores, aos
estudantes sem futuro, aos
militares e polícias, aos
pequenos profissionais liberais
que vêem os rendimentos a
descer e o desemprego no
horizonte próximo.
O Manifesto procura convocar
todos os sectores que constituem
o centro social do país e diz-lhes:
“Vocês ainda têm uma palavra a
dar quanto ao nosso destino
comum, na condição de
rejeitarem tentações de
radicalismo”.
E aí está o conteúdo do
Manifesto a mostrar o que isso
significa: respeitar
escrupulosamente os
mandamentos da União
Europeia, jurar pagar a dívida até
ao último tostão, não ousar
denunciar, quanto mais pôr em
causa, os interesses e a
hegemonia do capital financeiro.
O Manifesto não é uma radical
ofensiva das classes médias,
revoltadas com o domínio
esmagador do grande capital,
dispostas a liderar um novo rumo
político para o país. Elas não têm
nem condições nem coragem
para o fazer, porque temem que
qualquer brecha aberta no
sistema possa dar passagem às
exigências da massa
trabalhadora. Em termos
práticos, objectivos, o manifesto
representa uma tentativa de
travar a descolagem das
camadas pequeno-burguesas em
relação às forças burguesas
dominantes, divididas pelas
agruras da crise, e evitar a
degradação do sistema político.
Questão primeira: quem
paga?
O ponto de partida do Manifesto
é uma realidade óbvia, dita e
redita: a austeridade empobrece
a grande massa trabalhadora e
assalariada, liquida a pequena e
média propriedade, estrangula a
possibilidade de desenvolvimento
económico, não consegue travar
o crescimento da dívida — e cria
com isso condições para
confrontos sociais mais agudos
(“riscos de instabilidade política e
de conflitualidade social”, avisa o
texto).
A resposta do Manifesto a este
problema resume-se em pedir
mais tempo para pagar a dívida,
a juros mais baixos — rejeitando
repetidamente faltar a qualquer
pagamento — na esperança de
obter com isso um tempo de
respiração que facilite “um
robusto e sustentado
crescimento” económico. Conta,
com esta atitude “responsável”,
ganhar as boas graças e a
”solidariedade” do capital e das
instituições europeias para uma
espécie de austeridade branda,
alongada no tempo.
Mas a questão de fundo acerca
da dívida é, em primeiro lugar, a
de saber quem a paga — não em
quanto tempo deve ela ser paga.
Há os que acham que deve ser a
massa trabalhadora a pagá-la,
integral e rapidamente. Há os
que alimentam a ilusão de
repartir os custos. Os
subscritores do Manifesto
procuram abrir uma espécie de
via intermédia entre uns e outros.
Há, porém, uma outra posição: a
dos (poucos, embora) que
defendem que, para os
trabalhadores, a única posição
profícua é rejeitar pagar a dívida,
pautando as suas lutas de
resistência por este propósito. Os
ganhos imediatos, neste caso,
serão certamente escassos —
mas esta é a única posição que
aponta ao nó do problema: a
crise do sistema social
capitalista, de que a dívida é
apenas um dos frutos.
Manuel Raposo
Mudar de Vida . Janeiro-Fevereiro 2014
PAÍS
2
O que significa afirmar:
aproximemos a revolução
Lutar para aproximar a revolução significa, antes de mais, manter o
sonho de centenas de milhões de explorados, excluídos, perseguidos,
vivendo a angústia provocada por um sistema que é ele a própria
negação de dignidade, de liberdade, de uma humanidade com futuro,
com direito à esperança. Aproximar a revolução é o mesmo que dizer:
aproximemos o fim da ditadura do capital e construamos um outro
sistema assente na apropriação colectiva da riqueza produzida e
repartida com justiça.
ualquer plataforma
política que se pretenda
hoje de esquerda, não
pode deixar de ter no
centro das suas preocupações
políticas a mudança de
paradigma social como forma de
resolução da crise.
Q
São importantes as denúncias
políticas da devastação que este
governo e a troika levam a cabo,
e combatê-la por todos os meios
possíveis; mas, verdadeiramente
decisivo, é colocar no centro da
luta a mudança de sociedade;
não basta clamar por mais
democracia e por inflectir os
rumos da economia se as rédeas
permanecerem nas mãos dos
capitalistas.
Precisamos de ter uma
plataforma política comum ao
proletariado, que inspire
confiança na sua maioria e o
ganhe para a inversão dos ciclos
repetitivos: eleições/novo
governo/debates no parlamento/
novas eleições/novo governo/
novos debates parlamentares.
Precisamos de romper este
sistema eterno de escravização e
acorrentamento a uma lógica que
só serve aos burgueses no poder
e à sua sobrevivência.
milhões antevêem a miséria e a
exclusão.
Segundo, que o regime actual se
revela historicamente esgotado,
bem como o seu modo de
produção — o capitalismo.
Cabe à esquerda colocar no
centro da sua luta a denúncia e o
combate ao sistema capitalista, e
aproximar um novo sistema de
sociedade sem exploração nem
crises.
São estes os pontos de interesse
comum para o proletariado, numa
perspectiva de esquerda:
1 - Desenvolver e participar na
luta pelo derrube do governo e
pelo fim da política de
austeridade.
2 - Pleno emprego para toda a
população trabalhadora,
desempregada, e para aqueles
que acedem ao mercado de
trabalho, através da redução do
horário de trabalho e da
repartição do trabalho existente
por todos.
3 - Criação de um fundo de
solidariedade que garanta um
rendimento mínimo a todos os
desempregados.
4 - Suspender o pagamento da
dívida, suspender o pagamento
das PPP e de todas as rendas do
Estado ao capital.
5 - Taxar o capital: os seus lucros,
as suas fortunas os seus luxos,
as suas heranças, cortar nas
mordomias e nos altos salários
dos administradores e afins.
6 - Proceder de imediato à
expropriação das fortunas dos
delinquentes do BPN, BPP e de
outros criminosos que têm lesado
o Estado.
Importa unir todos os que
estiverem por este caminho de
luta, numa lógica de frente unida
pela base que eleve a
combatividade dos trabalhadores,
mantendo cada grupo ou partido
a sua independência eleitoral.
Qualquer governo de esquerda a
apoiar terá de sair de um
processo de avanço da luta
popular com vista à tomada do
poder pelas massas
trabalhadoras.
José Borralho
Manifestámo-nos de novo em
vários pontos do país no velho
estilo passeata, com final virado
para dentro, para consumo
interno. Mais uma vez nos foi dito
que a crise será travada com
crescimento económico, levado a
cabo por um governo patriótico e
de esquerda.
Mas não nos esqueçamos: a
esquerda vive encerrada num
círculo de ferro. Resistindo,
protestando, mas não
ambicionando mais do que um
capitalismo “melhor” que este.
Círculo que tarda em ser
rompido, e que nos amarra ao
sistema económico real.
Importa lembrar que a crise em
que o capitalismo está
mergulhado tem a particularidade
de existir não por falta de
crescimento, mas sim por
excesso de produção. E que é
esta anarquia a responsável pela
destruição de postos de trabalho
e indústrias inteiras. E que é
graças a esta anarquia que os
estados se alimentam dos
impostos sobre o trabalho e
aliviam os impostos aos patrões.
Suprimem-se empregos, salários,
direitos, suprimem-se as vidas de
quem trabalha. É o capitalismo
no seu melhor: suprimindo
recursos do lado do trabalho,
concentrando riqueza numa
escassa minoria — banqueiros,
agiotas, comerciantes,
industriais, simples parasitas.
As palavras de ordem de toda a
burguesia internacional são hoje
duas: suprimir (empregos e
direitos ao trabalho), concentrar
(riqueza no capital). O capital
quer salvar-se da crise à custa
do trabalho. E nós trabalhadores
devemos responder: que se
afunde o capital; queremos nada
menos que o poder; só assim
sairemos do círculo de ferro.
Essa plataforma política tem que
ter dois considerandos
elementares:
Primeiro, que a crise capitalista
se agrava e que centenas de
FICHA TÉCNICA
ASSINATURAS
Redacção Cristina Meneses, Manuel Raposo,
Pedro Goulart Colaboradores António Louçã,
Carlos Completo, Carlos Simões, François
Pechereau, Manuel Vaz, Rita Moura,
Urbano de Campos
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Mudar de Vida . Janeiro-Fevereiro 2014
O caminho
está na luta
Por isso, contra a exploração e o
empobrecimento importa dizer: o
capital que pague a crise e a
dívida; pôr fim à austeridade
significa taxar fortemente o
capital.
Desenvolver a consciência de
que é precisa uma revolução
social — é para isso que servem
as manifestações.
José Borralho
MUNDO
Egipto, uma sentença
repugnante
A ditadura militar que governa o
Egipto, na sequência da
demissão do presidente Morsi,
deposto pelo Exército, revelou
uma vez mais aquilo de que é
capaz: 519 pessoas, na maioria
partidários da Irmandade
Muçulmana, foram condenados
à morte, pela violência verificada
em meados de 2013. Desde que
o exército derrubou Morsi, mais
de um milhar dos seus
partidários morreram vítimas de
uma sangrenta repressão e
outros milhares foram detidos,
numa repressão que também se
estendeu à oposição laica.
Quase todos os líderes da
ilegalizada Irmandade
Muçulmana — acusados da
morte de dois polícias e de
ataques contra bens públicos e
privados — estão a ser julgados
e correm o risco de ser
condenados à morte, incluindo
Morsi.
7
A lição da Ucrânia
Quando, no número anterior do MV, em início de Janeiro,
falámos sobre a situação na Ucrânia, as manifestações em
Kiev esmoreciam e parecia que a calma estava regressar ao
país. Enganámo-nos. A disposição da União Europeia e dos
EUA em arrastar a Ucrânia para a sua órbita levou-os a apoiar
por todos os meios os protestos de rua e a incentivar, inclusive,
a pior escumalha de entre os grupos fascistas ucranianos, no
sentido de debilitar o poder do presidente Yanukovich.
Conseguiram-no e não recuaram mesmo diante do risco de
levar o país à beira da guerra civil; ou até de um confronto com
a Rússia, que defende os seus interesses na zona. É neste
sentido que têm de ser entendidas as declarações dos
dirigentes ocidentais, entre eles o sinistro Rasmussen,
secretário-geral da NATO.
Iraque resiste, 11 anos
depois da ocupação
Após 11 anos de ocupação (20
de Março), o Iraque é um dos
países do mundo com mais
violência e mais degradação das
condições de vida da população.
Este é um dos factores que mede
o carácter criminoso da invasão
liderada pelos EUA.
Dados recentes revelam que há
hoje no Iraque 1300 condenados
à morte, homens e mulheres; que
as execuções são por vezes
feitas secretamente e às dezenas
de cada vez. A ponto de a alta
comissária das nações Unidas
para os direitos humanos, Navi
Pillay, ter acusado o regime
iraquiano de agir “como quem
processa animais num
matadouro”.
Contra toda esta situação se tem
levantado a população iraquiana
desde os primeiros meses de
ocupação. A revolta subiu de tom
em 2011 acompanhando os
levantamentos árabes e
culminou, no final de 2013, na
ocupação de três cidades da
província de Al-Anbar por
resistentes armados. Os ataques
indiscriminados das forças
governamentais, têm matado
civis e fazem milhares de
refugiados.
abe-se hoje que os EUA
pagaram aos activistas
nazis de Kiev, à razão de
50 dólares por dia, para
manterem a agitação na praça
Maidan; e que os atiradores
furtivos que mataram uma
centenas de pessoas em 20 de
Fevereiro eram membros dessas
organizações nazis. Esta acção
teleguiada, cuidadosamente
escondida pela comunicação
social dominante, sabotou o
acordo que havia sido firmado
entre a oposição e o governo
ucraniano e precipitou a queda
de Yanukovich.
Entretanto, como se sabe, a
população da Crimeia,
maioritariamente russa, votou em
16 de Março a integração na
Federação Russa e consumou a
sua separação da Ucrânia.
S
Outras movimentações no leste
e sul do país recusam o novo
poder instalado em Kiev,
dominado por forças de extrema
direita, e pedem protecção à
Rússia.
Não é a primeira vez que os
dirigentes e as instituições da UE
mostram saber conviver com
líderes de extrema-direita.
Acontece com a Hungria, país
que hoje vive em verdadeiro
regime de excepção, ou com a
Polónia, ambos membros da UE.
Acontece também com os
próprios partidos fascistas,
xenófobos e reaccionários que
participam em governos ou
detêm forte influência política em
países poderosos da UE.
Com a Ucrânia, porém, assistese a um salto de qualidade: os
EUA e a UE apoiaram,
financiaram e sustentam hoje no
poder forças abertamente nazifascistas que não escondem
nem disfarçam essa sua
condição. Não se trata de tolerar
fascistas que ganharam eleições,
como na Hungria. Nem de
aceitar, à margem do poder,
partidos de extrema-direita como
o de Le Pen em França.
Na Ucrânia foi levado a cabo um
golpe de estado contra um
governo eleito, tendo como
homens-de-mão membros de
milícias nazis pagas pelo
imperialismo ocidental. E neste
momento, a UE e os EUA fazem
tudo para manter no poder e
legitimar essas forças,
apresentando-as como os seus
aliados e como os
representantes do povo
ucraniano!
A UE mostrou por diversas vezes
as suas ambições imperialistas:
na guerra de divisão da
Jugoslávia, no ataque à Líbia,
nas intervenções militares em
África, na guerra contra a Síria.
Tal como os EUA, serviu-se do
pretexto da “defesa dos direitos
humanos” e cobriu-se com o véu
da “intervenção humanitária”.
Tudo isso se desvaneceu no
caso da Ucrânia. A UE está
neste momento refém dos nazis
ucranianos que escolheu como
aliados.
E esta realidade não se limita à
Ucrânia. Até à data a, embora
ténue, diferença entre nazifascistas e extrema-direita
consistia no respeito jurado pelas
regras democráticas e passava
pelo critério do voto. Mas a partir
de agora a UE não pode, mesmo
internamente, traçar nenhuma
diferença essencial entre
extrema-direita respeitadora das
regras democráticas e a acção
directa dos bandos nazifascistas.
Não são as regras democráticas
formais, nem as instituições da
UE que vão defender os povos
europeus da ascensão fascista:
é o exemplo de acção de
massas que está a ser dado
pelas populações ucraniana e
russa, que sofreram como
nenhuma outra a barbárie nazi
— e a venceram.
Manuel Raposo
Mudar de Vida . Janeiro-Fevereiro 2014
ÚLTIMA
8
O PSD e o regresso de Relvas
O indispensável
O pontapé de “Zeca Mendonça” a um repórter fotográfico
foi bem o símbolo de um estilo. Não havia dúvida
possível: Relvas estava de volta. Com a agressão ao
jornalista, o assessor do ex-ministro ilustrou todo um
programa político. Era assim o Relvas que tutelou a RTP
e era assim o que interveio na linha editorial de jornais
que não tutelava (caso de Maria José Oliveira e do
“Público”). Os jornalistas, quando saem da linha, devem
ser tratados a pontapé.
T
ratava-se de um mero resquício do
passado? Se assim fosse, Relvas teria
entrado no Congresso do PSD pela porta
dos fundos e teria ocupado discretamente
um lugar no meio da plateia. Mas ele reentrou pela
porta grande e Passos Coelho pô-lo logo à frente da
lista para o Conselho Nacional.
Dirão as más línguas que Passos Coelho lhe deve
muitas atenções e que a inabalável solidariedade
entre ambos resulta dos tempos difíceis da
Tecnoforma. Falso: em política não há gratidões
dessas, e menos ainda quando o pagador de
dívidas passadas tem de pagá-las com língua de
palmo. Ora, não há dúvida, até a julgar pela votação
desastrosa da lista apoiada por Passos Coelho para
o Conselho Nacional do PSD, que a ligação a
Relvas continua a sair-lhe cara.
O que acontece é que há entre Passos Coelho e
Relvas uma afinidade electiva, actualíssima,
completamente alicerçada nos imperativos da
política presente. Pode Gaspar sair entretanto, pode
Portas ameaçar que sai, pode revogar a ameaça,
pode sair o Álvaro e entrar o Pires de Lima, pode
Poiares Maduro falar doze vezes em consenso –
tudo isso são rugas da paisagem, ao lado desse
veio estruturante do Governo que é Miguel Relvas.
Com o seu regresso à cúpula do aparelho partidário,
fica claro que o Governo é fiel a si próprio e, para
continuar a obedecer caninamente aos ditames da
troika, tem o que é preciso.
Na hora das decisões, o Governo de Passos Coelho
não se tornou piegas, não foi assaltado por
escrúpulos morais, intelectuais ou culturais, não
mudou de estilo, não passou a estudar dossiers e
não renegou a arruaça. E tudo isso vai ser preciso
para continuar a destruir os fundamentos da vida de
um povo. “Zeca Mendonça” é um símbolo e Relvas
é um mentor: ambos são o retrato fiel da alma deste
Governo.
António Louçã
O manipulador
O
regresso de Miguel Relvas à ribalta política
surpreendeu muita gente. A sua escolha
para cabeça de lista do Conselho Nacional
do PSD, avalizada no recente congresso do partido,
para além de acentuar publicamente a absoluta falta
de vergonha de Passos Coelho e dos seus
apoiantes, terá provocado algum mal-estar junto de
vários congressistas. Mas a cobardia e os interesses
(de classe burguesa) instalados prevaleceram sobre
qualquer mal-estar. As críticas anónimas ou as tíbias
demarcações de militantes do partido em relação a
esta imposição de Passos Coelho falam por si. É
assim a natureza e a moralidade desta gente.
Relvas é um elemento essencial à quadrilha
governante, dada a sua estreita e já longa
Mudar de Vida . Janeiro-Fevereiro 2014
cumplicidade com Passos Coelho na eliminação de
concorrentes internos do actual líder do PSD, assim
como em relação a vários “negócios” bem
conhecidos (vide Tecnoforma). E, sobretudo, porque
Relvas traz consigo importantes ligações a
empresas (e a dinheiros utilizáveis nas campanhas
eleitorais), assim como à espionagem política e
económica (de lembrar as suas ligações ao espião
Jorge Silva Carvalho e não só).
Relvas é um manipulador, cheio de truques, que
certamente serão úteis no interior da coligação
governamental e, particularmente, nas próximas
campanhas eleitorais do PSD, onde a mentira, a
demagogia e a chantagem irão campear.
Pedro Goulart
Prescrições
O banqueiro Jardim Gonçalves já
não tem de pagar uma multa de
um milhão de euros nem fica com
a actividade suspensa, penas
com que o Banco de Portugal
tinha condenado as suas
trafulhices no BCP, porque o caso
prescreveu por demoras nos
tribunais e no próprio Banco de
Portugal. João Rendeiro, este do
BPP, na mesma situação, pode
beneficiar da mesma “absolvição”
e não ter de desembolsar 2,5
milhões de euros de multa.
Outros acusados de alto coturno,
como os do caso Face Oculta,
contam os dias para que fiquem
ilibados pelo mesmo expediente.
Em contrapartida, decisão judicial
recente, esta em tempo, obriga o
governo a reintegrar o espião
Silva Carvalho, amigo de Miguel
Relvas, na Presidência do
Conselho de Ministros, com
direito a todos os salários desde
2012, perto de 100 mil euros.
Por seu lado, os ministérios da
Educação e da Segurança Social
cortaram 17 milhões de euros nas
verbas destinadas ao ensino
especial, canalizando-as para os
lares privados, deixando sem
apoio milhares de crianças
deficientes, sobretudo de famílias
pobres. O ministério da Saúde
continua a encerrar centros de
Saúde e corta nos subsídios de
transporte de doentes, obrigando
novos e velhos a gastar o que
não têm ou a andar quilómetros a
pé se quiserem ser assistidos.
O governo, quando prepara mais
cortes, decidiu pagar 500 mil
euros por ano aos três membros
da comissão instaladora do novo
banco de fomento.
Podíamos multiplicar exemplos
destes e verberá-los sem
descanso. Mas o que importa
não é apenas denunciar os
privilégios e os abusos do poder.
É preciso apontar o dedo ao
sistema social que lhes está na
origem e os reproduz dia a dia.
Manuel Raposo
DITO
Se o crime se torna lei,
deixa de ser crime.
O Juiz, personagem da peça
Estado de Sítio (1948)
Albert Camus
Editorial
Há saída?
Se tivermos em vista as grandes
manifestações de 2011 a 2012 e
as greves gerais, a situação
actual mostra um abrandamento
do movimento de massas, sem
desprezar as greves e lutas
locais que continuam a manter
viva a chama da resistência.
Não admira este recuo: a
expectativa de que o governo
cairia de podre no verão passado
saiu gorada, em boa parte graças
à actuação do PS, mas
fundamentalmente porque o
próprio movimento popular
esperou que os empurrões dados
na rua seriam completados por
eleições antecipadas. Foi um
engano, que mostrou, apesar de
tudo o que foi feito, a
necessidade de uma acção de
massas muito mais determinada
— e que comprovou de novo
que as “instituições
democráticas” não existem para
facilitar a vida à luta de classes
mas para a debelar.
A propaganda das forças do
poder trata agora de fixar a
atenção geral nas promessas do
PS, na “alternativa” do Manifesto
dos 70, nas hipóteses de acordo
partidário lançadas por Cavaco,
nas garantias de crescimento
económico do governo, nas
próximas eleições Europeias. E
tentar fazer crer que as saídas se
confinam a essa distribuição de
cartas.
Desiludamo-nos: o capital
europeu não vai desistir dos seus
juros, as instituições europeias
não vão virar-se do avesso e
tornar-se “populares”, a política
de austeridade sobre os países
pobres da UE não vai abrandar,
por mais discussões que haja
sobre o “futuro da Europa”.
Deixado ao livre curso do capital,
o futuro da Europa está
espelhado nas ambições
imperialistas da UE, no apoio
dado aos nazis ucranianos, no
crescimento dos fascistas da
Frente Nacional francesa.
Não há saída? Há saída, sim.
Depende da intervenção política
da massa trabalhadora, cá e lá
fora. Com os seus objectivos de
classe colocados à frente. Não
se queixando apenas das
injustiças do sistema, mas
apontando para a sua subversão.
Porque é o capitalismo que está
podre.
MUDARDEVIDA
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jornal popular / apoio: 0,50 €
Janeiro-Fevereiro 2014 / número 41
Quem paga a dívida,
eis a questão
A questão de fundo acerca da dívida é, em
primeiro lugar, a de saber quem a paga —
não em quanto tempo deve ela ser paga.
Há os que acham que deve ser a massa
trabalhadora a pagá-la, integral e
rapidamente. Há os que alimentam a ilusão
de repartir os custos. Os subscritores do
Manifesto dos 70 procuram abrir uma
espécie de via intermédia entre uns e
outros.
Há, porém, uma outra posição: a dos
(poucos, embora) que defendem que, para
os trabalhadores, a única posição que pode
dar frutos é rejeitar pagar a dívida,
pautando as suas lutas de resistência por
este propósito.
O caminho está na luta pág. 2 / A quem se dirige o Manifesto dos 70?
pág. 3 / A degradação do SNS pág. 4 / Compromissos políticos e
empobrecimento pág. 5 / O papel que a direita dá ao PS pág. 6 / A
responsabilidade do voto pág. 6 / A lição da Ucrânia pág. 7 / O regresso
de Relvas pág. 8
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