REVISTA
18
ANO 03
ABRIL 15
Ajuste fiscal
e questão social
Clemente Ganz Lucio | Fabrício Augusto de Oliveira |
Guilherme Santos Mello | Juliano Musse | Lena Lavinas
| Tiago Oliveira | William Nozaki
Série Especial AUSTERIDADE ECONÔMICA E QUESTÃO SOCIAL
Em Parceria com BRASIL DEBATE E REDE D
Código ISSN: 2358-0690
plataformapoliticasocial.com
Revista eletrônica idealizada e produzida pela
rede Plataforma Política Social que reúne
cerca de 300 pesquisadores e profissionais de
mais de uma centena de universidades, centros
de pesquisa, órgãos do governo e entidades da
sociedade civil e do movimento social.
EDITOR
APOIO
Eduardo Fagnani
EDITOR ASSISTENTE
Thomas Conti
JORNALISTA RESPONSÁVEL
www.fes.org.br
Davi Carvalho
REVISÃO
Caia Fittipaldi
PROJETO GRÁFICO
Renata Alcantara Design
CONSELHO EDITORIAL
Ana Fonseca
NEPP/UNICAMP
PARCERIA
André Biancarelli
Rede D - IE/UNICAMP
Erminia Maricato
USP
Lena Lavinas
UFRJ
Código ISSN: 2358-0690
revistapoliticasocialedesenvolvimento.com
2
Índice
Caminhos para o crescimento
e o emprego
Clemente Ganz Lucio
08
Fabrício Augusto de Oliveira
14
Três cenários possíveis para o Brasil
em 2015: o bom, o mau e o feio
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A aniquilação da demanda e da oferta
Guilherme Santos Mello
Ajuste fiscal e mercado de trabalho
Tiago Oliveira
“Modelo social” em crise
Lena Lavinas
27
31
Juliano Musse
39
O capitalismo patrimonialista no Brasil:
da disputa contra o rentismo empresarial à luta contra
o patrimonialismo familiar dos empresários
47
Medidas provisórias 664 e 665: a quem servem?
William Nozaki
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Apresentação
Andre Biancarelli
REDE D
Eduardo Fagnani
P L ATA F O R M A P O L Í T I C A S O C I A L
Pedro Rossi
B R A S I L D E B AT E
Nesta edição #18 da Revista Política Social e
Desenvolvimento, seguimos no debate sobre
a gestão macroeconômica e seus impactos
sobre o desenvolvimento e a questão social.
Em termos gerais, encontram-se dois pontos
comuns a todos os artigos desta edição.
Em primeiro lugar, os autores alertam
para os impactos negativos do ajuste fiscal
sobre o mercado de trabalho e os direitos
sociais, que põem em risco os progressos
recentes obtidos na inclusão e na redução
das desigualdades de renda. Em segundo
lugar, apontam para a indispensável necessidade de ampliar os debates e a mobilização popular em torno da formulação de
uma estratégia alternativa que priorize o
crescimento.
Esse segundo aspecto é objeto central
do artigo de Clemente Ganz Lucio (Caminhos para o crescimento e o emprego). O
A J U S T E F I S C A L E Q U E S TÃ O S O C I A L
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autor defende a “necessidade de organizar
e viabilizar, desde já e urgentemente, uma
estratégia de transição acelerada para o
crescimento, orientada para a geração de
emprego, incremento dos salários como
resultado do aumento da produtividade e
da expansão de atividade empresarial de
produção de bens e serviços”. Na sua visão,
esse processo deveria ser incentivado por
meio do diálogo social e do debate público,
em espaços de negociação que criem
compromissos e acordos sobre os objetivos e
estratégias. O artigo aponta diversas frentes
de expansão dessa estratégia alternativa.
Os argumentos em favor da imprescindível necessidade de reformular a estratégia econômica são reforçados no artigo de
Fabrício Augusto de Oliveira (A aniquilação
da demanda e da oferta). Para o autor, as
medidas de política econômica anunciadas
pelo governo constituem o “suprassumo
da ortodoxia”. Em sua visão, “trata-se
de medidas que, inequivocamente, vão
derrubar a demanda global, a qual, bem
ou mal, constituía a única fonte ou força
que vinha mantendo algum oxigênio para
a atividade econômica”. Para ele, “carece de
qualquer bom senso em matéria de teoria
econômica” a crença de que apenas o ajuste
das contas públicas será suficiente para mais
à frente trazer os investimentos.
Na mesma perspectiva crítica, o artigo de
Guilherme Santos Mello (Três cenários
possíveis para o Brasil em 2015: o bom, o
mau e o feio) – versão revista e ampliada do
anterior publicado no Brasil Debate (http://
brasildebate.com.br/o-bom-o-mau-e-o-feio-tres-cenarios-para-o-brasil-em-2015/) –
busca traçar três cenários para a economia
brasileira: um positivo (o bom), um negativo
(o mau) e um de fracasso total (o feio). Após
analisar cada um deles, o autor conclui que
“os três cenários exigem resultados ruins
no curto prazo e no mínimo incertos no
médio/longo prazo”. Em função disso, Mello
também sublinha a necessidade de se considerar “imediatamente a possibilidade de
reformular a estratégia econômica”. Para
ele, mais do que nunca, “é preciso adaptar a
estratégia às demandas da realidade social,
não apenas às demandas dos mercados”. E
alerta que a recusa do governo em alterar a
estratégia atual “traz à tona a possibilidade
de ampliação da crise política e social no
futuro”.
Os três artigos seguintes analisam os reflexos
negativos das políticas econômicas de austeridade sobre a questão social. Tiago Oliveira
(Ajuste fiscal e mercado de trabalho)
destaca que a estratégia econômica em curso
parte da crença (equivocada) de que o baixo
desemprego atual (situação próxima, em
tese, de situação de pleno emprego) representa um entrave para a competitividade das
empresas (que se veriam obrigadas a adiar
investimentos ou a repassarem o aumento
de custos para os preços). Por essa lógica,
ao desaquecer a economia e o mercado de
trabalho, o ajuste fiscal traria efeitos “benéficos” para a competitividade. O artigo enfatiza os efeitos deletérios desta estratégia na
ampliação da taxa de desemprego e maior
precarização do trabalho, “interrompendo
uma dinâmica virtuosa que se vinha sustentando há cerca de uma década”. A exemplo
dos demais autores, Oliveira também aponta
para a “necessária correção de rumos a ser
aplicada na economia brasileira”, que deveria
privilegiar a elevação dos investimentos,
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combinada com a manutenção do câmbio em
patamar competitivo e a utilização de outros
instrumentos de combate à inflação. O autor
também salienta a incompatibilidade entre
a estratégia de crescimento e o atual formato
do regime brasileiro de metas de inflação,
que exige recorrentemente taxas de juros
elevadas. “Afinal, como reanimar o ‘espírito
animal’ dos empresários, quando se tem
o mercado financeiro como uma alternativa de valorização da riqueza muito mais
atraente?”
Em seguida, Lena Lavinas (“Modelo social”
em crise) ressalta que essas consequências
negativas na desorganização do mercado de
trabalho adicionadas ao vigoroso processo
de elevação das taxas de juros básicos da
economia (que torna ainda mais obscena a
taxa de juros ao consumidor), terão graves
implicações sobre o endividamento das
famílias, esgotando o “modelo social”
erigido desde 2003. Para ela, a “grande
arquitetura” desse modelo começa com a
criação do crédito consignado (funcionários
públicos, assalariados formalizados, aposentados e pensionistas), num contexto em que
os salários “tiveram ganhos reais importantes, numa trajetória sustentada de recuperação”. Com a criação do programa Bolsa
Família, que expande a incorporação ao
mercado de milhões de famílias, se ampliam
mecanismos de acesso ao crédito de consumo
também aos seus beneficiários. Esse
“vigoroso processo de inclusão financeira”
proporcionou acesso ao crédito a famílias
de baixa renda. Não obstante, para Lavinas,
o “calcanhar de Aquiles” desse modelo está
relacionado ao custo do crédito ao consumidor, cujas taxas são “assustadoramente
elevadas”; agora, com a sucessiva elevação
da Selic, “elas continuam em alta, mirando
a estratosfera”. A autora chama a atenção
para os efeitos preocupantes das políticas de
austeridade em curso que, simultaneamente,
retiram renda e ampliam o endividamento
das famílias.
O ajuste fiscal seletivo também foi o mote
para que o governo abrisse uma frente
controversa de supressão de direitos sociais,
sem que houvesse diálogo prévio com
setores organizados do movimento social e
sindical, salienta Juliano Musse (Medidas
provisórias 664 e 665: a quem servem?).
O autor analisa as mudanças nas regras de
acesso ao seguro desemprego (incluindo o
seguro-defeso – pescador artesanal), abono
salarial, pensão por morte e invalidez e auxílio-doença. Antes de entrar no “imbróglio”
das Medidas, Musse destaca que a Seguridade Social tem sido superavitária desde
1989, o que retira a “urgência” dos ajustes
ortodoxos com intuito de conter gastos e
suprimir direitos. O artigo procura alertar
para alguns problemas e questionar certos
posicionamentos governamentais.
Por fim, William Nozaki (O Capitalismo
Patrimonialista no Brasil: da disputa
contra o rentismo empresarial à luta
contra o patrimonialismo familiar dos
empresários) critica o ajuste fiscal seletivo,
que recai apenas sobre a classe trabalhadora. Para ele o ajuste das contas públicas
deveria ser feito “contra o patrimonialismo”.
Nesse sentido, em sua opinião, “as forças
de esquerda falham ao não se debruçar de
forma mais cuidadosa” sobre essa questão
e não “investir contra os ganhos pessoais e
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privados da nossa elite”. Para Nozaki o ajuste
fiscal também deveria priorizar a ampliação
das receitas, o que implica combate à sonegação fiscal, à evasão de divisas e lavagem
de dinheiro; implementação de impostos
sobre heranças, doações e fortunas; e por
maior progressividade no imposto de renda.
Boa leitura!
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Caminhos
para o crescimento
e o emprego
Clemente Ganz Lucio
Diretor Técnico do DIEESE
http://fernandonogueiracosta.wordpress.com
E-mail: [email protected].
“A vida é muito mais misteriosa e preciosa
do que qualquer equação” Edward Frenkel
O dinamismo econômico da última década esteve sustentado, de um lado,
pela demanda externa de commodities
com preços crescentes, e de outro, por
uma bem-sucedida política distributiva,
que aumentou a demanda interna de um
mercado de consumo de massa, a partir
do crescimento do crédito e da retomada
dos investimentos em infraestrutura
econômica e social. Esses fatores ativaram
a produção de bens e serviços, criando
empregos com significativa melhora da
proteção laboral. A demanda se ampliou, a
atividade produtiva respondeu, o emprego
e os salários cresceram.
A J U S T E F I S C A L E Q U E S TÃ O S O C I A L
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CAMINHOS PARA O CRESCIMENTO E O EMPREGO
A continuidade do crescimento econômico, com ampliação de empregos e
salários – transformando essa dinâmica
em desenvolvimento social – requererá o
alçamento de toda a estrutura econômica
para um novo patamar de desenvolvimento
produtivo. Para isso será necessário: (a)
sustentar a continuidade da etapa anterior de ampliação do mercado interno de
consumo de massa, agora assentada no
incremento da produtividade e da capacidade física de produção; (b) articular uma
política de abertura de mercado externo
para a produção industrializada; e (c) recuperar o mercado interno fazendo frente
à importação, que destrói a nossa base
industrial. Em síntese, é preciso ter capacidade de agregar valor por meio de cadeias
de produção que coloquem a base produtiva na fronteira tecnológica que permita
produzir bens e serviços de qualidade,
com capacidade competitiva para disputar
os mercados. Portanto, seria necessário
criar condições macroeconômicas para
que empresas competitivas se lançassem
com sucesso no mercado interno e externo
em igualdade de condições.
Esse movimento visaria, simultaneamente, à expansão da capacidade empresarial em unidades produtivas conectadas
e articuladas com uma estratégia de crescimento pelo investimento e formação
da demanda interna, ampliada a partir
do emprego e crescimento dos salários.
É fundamental a ampliação da capacidade de o Estado produzir bens e serviços
públicos, incrementando a produção pelo
investimento em infraestrutura econômica
e social e redistribuindo parte do produto
geral por meio de políticas públicas
distributivas, segundo o interesse coletivo.
Esse movimento, em parte iniciado em
2011, travou. É ainda necessário esclarecer os motivos pelos quais as iniciativas
nesse sentido não prosperaram. Mas não
vamos investir nessa linha de argumento,
apesar de a considerarmos fundamental.
Vamos partir da necessidade de organizar
e viabilizar, desde já e urgentemente, uma
estratégia de transição acelerada para o
crescimento, orientada para a geração de
emprego, incremento dos salários como
resultado do aumento da produtividade e
da expansão de atividade empresarial de
produção de bens e serviços.
Vamos partir da necessidade
de organizar e viabilizar,
desde já e urgentemente,
uma estratégia de transição
acelerada para o crescimento,
orientada para a geração
de emprego, incremento
dos salários como resultado
do aumento da produtividade
e da expansão de atividade
empresarial de produção
de bens e serviços.
Entendemos que o papel do Estado na mobilização, articulação, coordenação e organização do processo de desenvolvimento
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Foto: Pixalbay / 44833
econômico e produtivo é determinante e
indelegável. O sucesso de uma economia
de mercado depende do equilíbrio entre
a sociedade e a dinâmica de um mercado
regulado pela capacidade do Estado para
promover o crescimento do padrão civilizatório a ser perseguido. O bem-estar,
a qualidade de vida e a sustentabilidade
ambiental são objetivos permanentes, que
dão substância ao sentido, definido em
cada contexto histórico pela capacidade
política de cada sociedade conformar
acordos de produção e de distribuição. A
liberdade, valor inalienável, concretiza-se
socialmente na democracia como forma
coletiva de se fazerem escolhas que materializem esse sentido político e histórico.
É pela política que se pode criar um campo
para tratar dos conflitos e contradições
presentes na sociedade e se buscar a superação ou solução parcial ou provisória,
sempre a partir dos interesses reais, na
perspectiva de se fazerem acordos capazes
de criar uma nova ordem de demanda,
aquela voltada para a vontade coletiva e
o interesse geral. Momentos como este
que vivemos no Brasil de hoje são, dramaticamente, demandantes de capacidade
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CAMINHOS PARA O CRESCIMENTO E O EMPREGO
política capaz de costurar e cimentar
compromissos, que se materializam em
acordos que geram transformações e
promovem, concretamente, o sentido do
desenvolvimento.
Há, no contexto atual e diante das adversidades que se colocam no cenário presente,
a urgente necessidade de se construir a
transição para o crescimento, processada
por meio do diálogo social e do debate
público, em espaços de negociação que
criem compromissos e acordos sobre os
objetivos e estratégias; definam quais os
caminhos e mobilizem as forças sociais
capazes de fazer o aporte de recursos
econômicos, políticos, culturais, materiais
e financeiros.
A estratégia deve viabilizar um movimento
de formação da demanda interna e externa
que anime uma dinâmica de investimento
em inovação produtiva e institucional, por
meio, inclusive, da formação de circuitos
curtos, médios e longos entre produção e
consumo, distribuídos no grande espaço
do território nacional e intencionalmente
orientados para fazer frente a enormes
desigualdades que marcam a sociedade
brasileira. Algumas das frentes de expansão
dessa política de desenvolvimento serão
em seguida destacadas.
v Consideramos que é fundamental aproveitar a atual desvalorização cambial,
sustentando-a por meio de uma política
capaz de fazer frente à tendência de nova
sobreapreciação da moeda, criando e
mantendo um posicionamento de longo
prazo de um câmbio de equilíbrio industrial. Essa política, adotada nos países com
sucesso no desenvolvimento econômico,
deve gerar condições de equidade econômica para que as empresas competitivas
possam desenvolver-se, promovendo o
incremento da produtividade e a agregação
de valor.
Ao mesmo tempo, faz-se necessária uma
política monetária contracíclica, diante
da atual estagnação do crescimento. Isso
requer, de partida, um nível de tolerância
capaz de absorver os choques de preços
e custos, suavizando a política de metas
de inflação. Parte essencial será a articulação de um acordo de reorganização
da dívida pública interna e seu padrão de
remuneração e prazo. Isso comporta um
novo arranjo institucional da taxa Selic,
dos juros de curto e longo prazo estruturados segundo parâmetros internacionais, desmontando a ciranda do rentismo
e gerando incentivo direto à atividade
produtiva, seja pelo crédito à produção,
pela formação de um vigoroso mercado
de capitais ou de outros instrumentos de
incentivo e sustentação do investimento.
Complementarmente, mas de igual importância, será fundamental realizar uma
tarefa não encaminhada desde o Plano
Real, qual seja, retirar a indexação automática dos diferentes contratos e preços
administrados, fatores que insistem em
manter a inércia inflacionária, com fortes
impactos sobre os índices de preços.
O movimento macroeconômico deve
mobilizar-se no sentido estratégico do
desenvolvimento produtivo e industrial,
como elemento estruturante da capacidade
geral de transformação e de incremento da
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produtividade de uma economia que agrega
valor. Nessa perspectiva, é preciso que se
coloque a inovação de processos, produtos
e serviços em todos os setores com base
em ciência e tecnologia que se desenvolve
a partir de uma educação de qualidade. É
preciso aprofundar o investimento público
e privado nos setores estratégicos que
permitam incremento da produtividade,
agregação de valor e formação de escala. E
também aprofundar e aprimorar as políticas de conteúdo local, os programas que
incentivam a exportação.
Parte da estratégia será dar consistência
de longo prazo ao programa de concessões
para diversos setores da infraestrutura e
propor taxas de retorno condizentes com
a realidade econômica brasileira. De outro
lado, a entrada de empresas estrangeiras
no mercado interno deve vir acompanhada
da absorção de tecnologia na estrutura
produtiva nacional.
Há que se aprofundar a política de desenvolvimento produtivo orientado para
micro e pequenas empresas, para a agricultura familiar e a economia popular e
solidária, criando mecanismos específicos
e voltados para a institucionalidade desses
empreendimentos, em termos de crédito,
assistência técnica e formação e acesso
aos mercados locais, regionais, nacionais
e interacionais.
Deve-se observar a dinâmica de incremento da atividade produtiva que as políticas sociais têm em termos de formação
de capacidade cognitiva, de qualidade
de vida, de geração de emprego e renda,
de formação de demanda, inclusive pela
indução das compras públicas.
Do mesmo modo, é necessário observar a
oportunidade de reorganização do espaço
urbano para a qualidade de vida, inclusive
pela aproximação do espaço de moradia ao
espaço de trabalho, pela produção de novas
condições para serviços urbanos e oferta
de igualdade de condições. Há enorme
passivo e déficit social e ambiental a ser
corrigido, que exigirá longa empreitada
de reconstrução desse espaço.
A riqueza presente no extenso território,
a qualidade produtiva do solo, a competência produtiva do setor rural brasileiro,
a complexa biodiversidade, a reserva aquífera, rios e mar, formam um riquíssimo
recurso que pode ser usado para a produção
econômica centrada na sustentabilidade
ambiental, agregando valor estratégico
para o desenvolvimento humano em geral.
Pode-se, portanto, trabalhar na reorganização do espaço rural voltado para uma
produção com preservação ambiental e
integrada por meio de um modal moderno
de transporte, de comunicação e oferta de
serviços disponíveis no meio urbano.
Nessa perspectiva, a reorganização da
capacidade fiscal do Estado deve estar
orientada para sustentar o investimento
em infraestrutura econômica e social.
Há que se desenhar, na medida em que se
retoma o crescimento, uma reforma tributária orientada pela progressividade da
renda e da riqueza, desoneração dos investimentos, dentre outras características.
Na relação entre o setor público e privado,
frente aos graves problemas descobertos
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CAMINHOS PARA O CRESCIMENTO E O EMPREGO
Foto: Pixalbay / TanteTati - Katrin Baustmann
e enfrentados – fruto da ampliação
da capacidade do Estado para debelar
fraudes e corrupção – deve ser gerado um
movimento sólido, institucionalmente
sustentado, para criar novos elementos
para uma governança nas empresas e que
tenha probidade na relação com o Estado.
Recuperar a capacidade de investimento
da Petrobras e articular um plano que
combine acordos de leniência que punam
aqueles que fraudaram, de um lado; e, de
outro, que estabeleça um programa público-privado de preservação da capacidade
de engenharia nacional. Isso requer que
se reorganizem as empresas envolvidas
na Operação Lava-Jato.
Esses elementos, que devem constituir
um plano de transição e formação de uma
estratégia de crescimento, requerem,
essencialmente, capacidade política para
articulá-los. Capacidade política de fazer
boas escolhas, conformar um campo de
entendimento, de visão de futuro e de
compromissos com os custos da transição. As perdas relativas de todos devem
ser suportadas por quem tem maior
capacidade para tal e enfrentadas com
inteligência para encurtar a transição,
antecipando o futuro, com a perspectiva
do crescimento, da geração de melhores
empregos e do incremento dos salários.
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R E V I S T A P O L Í T I C A S O C I A L E D E S E N V O LV I M E N T O 1 8
A aniquilação
da demanda e da oferta
Fabrício Augusto de Oliveira
Doutor em economia pela Unicamp, membro da Plataforma
de Política Social e autor, dentre outros livros, de Política
econômica, estagnação e crise mundial: Brasil, 1980-2010. |
Artigo concluído em 25/02/2015.
Contra os fatos e os números não há argumentos, não cansava de repetir ad nauseam
aos seus alunos o professor Gradgrind,
personagem do livro Tempos Difíceis, de
Charles Dickens, para convencê-los de que
o interesse próprio smithiano só poderia
ser satisfeito se eles estivessem imbuídos
de uma visão racional da vida e dos fatos.
Negar os fatos e suas consequências tem
sido o comportamento da presidente Dilma
Rousseff neste segundo mandato. Políticas
de destruição do tecido econômico transformaram-se em “suaves ajustes” para
recolocar a economia nos trilhos e, mesmo
que letais para as políticas e programas
sociais, necessárias para preservar e dar
continuidade ao objetivo de inclusão social.
A J U S T E F I S C A L E Q U E S TÃ O S O C I A L
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A A N I Q U I L A Ç Ã O D A D E M A N D A E D A O F E R TA
Ainda há quem continue acreditando em
sua fala e também no fato de que não estaria
fazendo mais que um “jogo de cena” com
o mercado, pronta para cometer a deselegância de deixar seu principal convidado
sozinho na pista e aceitar uma contradança com outro parceiro. Ledo engano.
Para o bem da verdade devemos nos ater,
portanto, aos fatos.
O crescimento econômico do Brasil nos
últimos quatro anos foi medíocre, devendo
ficar, na média anual, em torno de 1,6%,
podendo ser de 0% em 2014 ou, não se
pode descartar, registrar até mesmo uma
contração.
As medidas de política econômica já
anunciadas pelo governo constituem o
suprassumo da ortodoxia: contenção de
gastos, restrição e contenção de direitos
trabalhistas, aumento de impostos,
dos juros, dos preços e tarifas de bens e
serviços essenciais para a população, como
os dos combustíveis e energia, combate
sem trégua à inflação, restrição do crédito
dos bancos públicos, encaminhamento
de proposta de abertura de capital da
Caixa Econômica Federal e por aí afora.
De maneira geral, trata-se de medidas que,
inequivocamente, vão derrubar a demanda
global, a qual, bem ou mal, constituía a
única fonte ou força que vinha mantendo
algum oxigênio para a atividade econômica.
De outro lado, nenhuma delas favorece
a economia real. A elevação dos juros
combinada com o aumento dos impostos e
o corte dos gastos, além de enfraquecerem
o consumo, que já vinha progressivamente
perdendo força, torna os investimentos
no setor produtivo ainda menos atrativos,
não somente pelo aumento que provoca no
“custo-Brasil”, mas também porque, além
de maiores incertezas sobre o futuro, atrai
estes recursos para as aplicações financeiras e especulativas. Se a isso adicionarmos a continuidade da crise externa,
e a possibilidade cada vez maior de racionamento de água e de energia, bem como
também as incertezas que tal fato representa para os investimentos e a atividade
econômica, chegamos a um quadro em que
à aniquilação da demanda soma-se agora
também a da oferta.
As medidas de política
econômica já anunciadas
pelo governo constituem
o suprassumo da ortodoxia:
contenção de gastos, restrição
e contenção de direitos
trabalhistas, aumento
de impostos, dos juros,
dos preços e tarifas de bens
e serviços essenciais
para a população, como os
dos combustíveis e energia,
combate sem trégua à inflação,
restrição do crédito dos bancos
públicos, encaminhamento
de proposta de abertura de
capital da Caixa Econômica
Federal e por aí afora.
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Foto: shuraki / Pixalbay
Diferentemente destes dois casos, nenhuma das medidas prejudica o capital financeiro privado. Pelo contrário, de uma
maneira geral, todas o beneficiam, como
a elevação dos juros, a redução do crédito
dos bancos públicos, a reafirmação do
compromisso com o ajuste fiscal e com a
restauração do tripé macroeconômico, de
forma a resgatar a confiança dos agentes
econômicos na política econômica e na
capacidade do Estado de honrar seus
compromissos financeiros, etc. Mesmo
que tal política conduza o país para uma
recessão, possibilidade já reconhecida
mesmo que em ato falho pelo ministro
da Fazenda Joaquim Levy, a ideia que
se transmite para a população é a de ser
necessário um ajuste dessa natureza para
que os investimentos possam retornar, em
algum momento, para a economia, viabilizando a retomada de um crescimento
sustentável. Enfim, a mesma ladainha
que acompanha a justificativa de todos
os ajustes ortodoxos e que, postos em
prática, só provocam recessão, desemprego, aumento das desigualdades e da
miséria de parte da população.
As chances de essa política ortodoxa
agravar as condições da economia brasileira não são pequenas. Elevação dos juros
não afeta os níveis de preços monitorados
(tarifas de energia, transportes, combustíveis, etc.), que são os que mais devem
pressionar a inflação em 2015. Tanto
que as projeções do mercado financeiro
continuam apontando para uma inflação
de 7% no ano, mesmo após convencido,
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A A N I Q U I L A Ç Ã O D A D E M A N D A E D A O F E R TA
pelo Banco Central, de que os juros devem
continuar em trajetória de elevação até que
se garanta sua convergência para o centro
da meta.
Se não afetam estes preços, juros mais altos
são madrastos para as contas externas,
na medida que atraem o capital especulativo, valorizando o câmbio e derrubando as
exportações, já prejudicadas por uma crise
externa prolongada, ao mesmo tempo em
que estimulam as importações, podendo
manter em trajetória ascendente o déficit
em transações correntes, o qual, tendo
atingido 4,17% do PIB, em 2014 aparece
como um dos fatores que podem levar à
perda do grau de investimento da economia
brasileira, diante do aumento da vulnerabilidade externa.
Além disso, com o ajuste fiscal em curso,
num cenário de recessão, com receitas em
declínio e forte contenção dos gastos para
garantir recursos para o pagamento de
juros, dificilmente restarão recursos para
os investimentos públicos, sem os quais o
País não conseguirá avançar na redução
do custo da produção nacional e na criação
de melhores condições para garantir um
crescimento mais equilibrado.
Com tudo isso, poder-se-á ter produzido,
ao final, apenas uma recessão com todas
as suas mazelas, além de se ter recuperado
e recomposto o tripé macroeconômico
para deleite do capital financeiro, mas
com a economia exaurida e sem forças
para permitir ao País se reencontrar, tão
cedo, com um projeto de crescimento
com inclusão.
A política em curso,
que aniquila a demanda
e asfixia a produção e a oferta,
acreditando que apenas
o ajuste das contas públicas
será suficiente para trazer
mais à frente os investimentos,
carece de qualquer bom senso
em matéria de teoria econômica
Não restam dúvidas de que alguns ajustes
eram necessários pelos desarranjos provocados nos pilares centrais da economia
com a desastrada política econômica
implementada entre 2011 e 2014. Estes
deveriam, no entanto, cingir-se a recalibrar
a oferta e a demanda, estimulando os investimentos e realizando reformas importantes para este objetivo, entre as quais a
do sistema tributário, por exemplo. Dessas,
no entanto, não se teve, até o momento,
nenhuma notícia. A política em curso, que
aniquila a demanda e asfixia a produção e a
oferta, acreditando que apenas o ajuste das
contas públicas será suficiente para trazer
mais à frente os investimentos, carece de
qualquer bom senso em matéria de teoria
econômica. Mesmo diante dos fatos econômicos do professor Gradgrind.
S É R I E E S P E C I A L A U S T E R I D A D E E C O N Ô M I C A E Q U E S TÃ O S O C I A L
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R E V I S T A P O L Í T I C A S O C I A L E D E S E N V O LV I M E N T O 1 8
Três cenários possíveis
para o Brasil em 2015:
o bom, o mau e o feio (1)
Economista com doutorado pela Unicamp, pesquisador do
Cecon-IE/Unicamp e professor da Facamp
passar do tempo, a discussão se deslocou da
real necessidade do ajuste para a forma e o
tamanho do ajuste que será implementado.
A pretensa “necessidade” de o país adotar
algum tipo de ajuste fiscal passou a ser o
tema dominante do debate econômico,
colocada como condição necessária (e
algumas vezes suficiente) para a retomada
do crescimento no longo prazo. Com o
Dentro deste debate, diversas contribuições críticas têm sido elaboradas
não apenas por políticos, como também
por economistas e intelectuais que se
debruçam sobre a questão. Do ponto de
vista da receita, as principais críticas em
relação ao atual pacote se dirigem ao fato
de ele concentrar-se em impostos de fácil
Guilherme Santos Mello
A J U S T E F I S C A L E Q U E S TÃ O S O C I A L
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TRÊS CENÁRIOS POSSÍVEIS PARA O BRASIL EM 2015: O BOM, O MAU E O FEIO
arrecadação, mas disfuncionais para o
sistema tributário, tanto do ponto de vista
da competitividade, quanto do ponto de
vista da regressividade (2).
Mais que isso, argumenta-se que a elevação
de tais impostos, dada a estrutura de
mercado oligopolista de boa parte dos
setores afetados, fará com que o ônus da
tributação superior recaia sobre o consumidor, não sobre as empresas. A estratégia
de aumentar a receita pública utilizando-se
destes impostos indiretos e regressivos,
portanto, tem impacto negativo sobre a
atividade, o consumo, a inflação e a distribuição de renda, possuindo efeitos apenas
duvidosos sobre o nível de arrecadação, a
depender do desemprenho da economia
no período.
Do ponto de vista das despesas, as principais
críticas se focam tanto na discricionariedade e linearidade dos contingenciamentos
atuais, que impactaram diretamente o
orçamento do o Ministério da Educação,
por exemplo, setor chave para defender
o conceito de “Pátria Educadora” assumido pelo governo, quanto no fato de
que a maior parte dos cortes ocorrerá
sobre investimentos e gastos sociais, que
possuem multiplicador maior que os gastos
correntes do governo.
Apesar da discussão sobre a forma e o
tamanho do ajuste fiscal permanecer
como foco do debate público, é interessante compreender de antemão o que
significaria, hipoteticamente, a aprovação
e adoção do “pacote fiscal” proposto pelo
ministro Joaquim Levy na forma em
que se apresenta. A possibilidade de sua
aprovação da forma exata como foi enviado
ao Congresso Nacional, apesar de ser baixa
(dado o cenário de fragilidade política
do governo e de insatisfações dentro dos
grupos sociais que apoiam e sustentam
politicamente o governo atualmente), pode
nos servir de guia para compreensão dos
possíveis cenários que o Brasil enfrentará
nos próximos meses, imaginando o sucesso
ou fracasso da estratégia proposta.
Sendo assim, este breve texto busca
traçar três cenários básicos para o caso
de aprovação do pacote fiscal atual: um
positivo (o bom), um negativo (o mau) e
um de fracasso total (o feio). Após discutir
brevemente os três cenários, as conclusões
buscam apontar para as possibilidades de
cada um.
O cenário “bom”: O ajuste dá
certo e o Brasil volta a crescer
O cenário positivo, que é defendido em
sua maioria por integrantes do governo e
alguns economistas do mercado financeiro,
é aquele em que o ajuste fiscal será capaz
não apenas de reduzir o déficit público e a
inflação (no médio prazo), como também
recuperar a confiança dos empresários e
os investimentos, fazendo assim com que
o país retome o caminho do crescimento
ainda em 2015. Este cenário, baseado
implicitamente no que ficou conhecido
no debate econômico como “contração
fiscal expansionista”, depende de uma série
de fatores que se contrapõem à história
recente do Brasil e ao momento atual da
S É R I E E S P E C I A L A U S T E R I D A D E E C O N Ô M I C A E Q U E S TÃ O S O C I A L
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R E V I S T A P O L Í T I C A S O C I A L E D E S E N V O LV I M E N T O 1 8
economia internacional.
Em primeiro lugar, para ter o sucesso
esperado, o ajuste fiscal proposto por
Joaquim Levy deveria ser capaz de realmente reduzir o déficit público, não apenas
atingindo a meta pretendida de superávit
primário, mas também de reduzir o déficit
nominal do país ainda em 2015. Na realidade, ambas as metas apresentam grande
dificuldade para que se as alcancem: a meta
de 1,2% de superávit primário, devido à
queda acentuada nas receitas, dado o já
esperado aprofundamento da recessão
(o cenário base atualmente em voga no
mercado é de queda de 1,5% do PIB, que
se contrapõe às expectativas iniciais do
governo, de crescimento próximo a 0,8%),
ao ponto de partida pior que o esperado (o
governo esperava contar com um superávit
próximo a 0,3% do PIB em 2014, porém o
resultado final foi de déficit de 0,6%, que
deve ser revertido antes de se alcançarem
os 1,2% planejados) e a extrema dificuldade do governo para realizar cortes de
gastos em despesas discricionárias que
não paralisem por completo as obras e
investimentos no país.
Já a dificuldade de cumprir o objetivo de
redução do déficit nominal (próximo a
6,7% do PIB atualmente) se deve ao fato de
que, além de dificilmente alcançar a meta
do primário como já descrito, a conta de
juros deve se elevar em 2015, devido à atual
estratégia do BC de combater a inflação de
preços administrados e a desvalorização
cambial com elevações da Selic. Sendo
assim, o que está sendo questionado é a
viabilidade de se alcançarem as próprias
metas fiscais estabelecidas pelo governo,
sem precisar apelar para uma completa
paralização dos investimentos públicos
no país.
Foto: Fotos Públicas
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TRÊS CENÁRIOS POSSÍVEIS PARA O BRASIL EM 2015: O BOM, O MAU E O FEIO
Em segundo lugar, a capacidade de o ajuste
fiscal reduzir a inflação no médio prazo
parte do pressuposto de que as razões
por detrás da inflação brasileira seguem
relacionadas ao excesso de demanda,
particularmente ao aumento de salários.
Para combater esta inflação, além de encarecer e escassear o crédito, o governo deve
promover uma ligeira recessão econômica,
que afete o mercado de trabalho e assim
abra espaço para a queda do salário e da
renda real, tirando pressão da inflação de
non-tradables, em particular de serviços.
Esta aposta, apesar de teoricamente eficaz,
implica duas dificuldades: o impacto
negativo que a política de preços realista
e os aumentos dos impostos (repassados
para o preço dos produtos dado o poder
de mercado da maior parte dos setores
afetados) está causando deve levar a
inflação para próxima de 10% ainda em
meados de 2015, o que impossibilitaria
que ela feche 2015 dentro do limite da
meta de 6,5%; em segundo lugar, os efeitos
desaceleradores sobre os preços causados
pela recessão podem ser menores que o
esperado pelo governo devido ao reforço
da inércia inflacionária causado em um
cenário de inflação elevada. Neste caso,
apenas uma profunda e prolongada
recessão seriam capazes de alterar as
expectativas dos agentes sobre os preços,
eliminando o efeito de carregamento da
inflação passada diante do cenário profundamente deflacionário apresentado para o
futuro. Além do mais, o atual debate sobre
inflação apresenta profunda ligação com
o patamar da taxa de câmbio, que é uma
variável autônoma sobre os preços que
não pode ter seus efeitos plenamente
controlados pela política fiscal.
Por fim, a hipótese final do cenário “bom”
é que a confiança do empresariado retorne
e, desta maneira, os investimento voltem
a fluir ainda em 2015, que observaria em
seu último trimestre uma retomada do
crescimento econômico. Esta possibilidade, por um acaso, seria central para o
sucesso da meta fiscal, pois já ao final do
ano os impactos recessivos das medidas
ter-se-iam diluído e o aumento da arrecadação poder-se-ia dar em linha com o
aumento das taxas de atividade. A aposta
na retomada da atividade decorre do fato
de que as expectativas dos empresários se
reverteriam, dado um cenário prospectivo benigno para a inflação (e, portanto,
para seus custos e para o crescimento da
demanda) e para as contas públicas (induzindo o empresariado à conclusão de que o
governo não precisaria apelar para novas
medidas contracionistas para ajustar seus
resultados).
O problema desta hipótese decorre do fato
de que, para que ela se concretize, é necessário desconsiderar ao menos três fatores
presentes na realidade atual: o cenário
internacional, que limita a retomada de
investimentos pela via das exportações;
o cenário cambial, que ao desvalorizar o
real aumenta (no curto prazo) os custos
de produção; e a recessão esperada para
a economia, que ao reduzir a renda e o
emprego reduzirá também a expectativa
de demanda doméstica, reduzindo assim as
expectativas de rentabilidade do produtor
nacional. Por fim, deve-se ignorar a própria
hipótese de que o ajuste não seja entregue
no tamanho prometido.
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Foto: Fotos Públicas
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TRÊS CENÁRIOS POSSÍVEIS PARA O BRASIL EM 2015: O BOM, O MAU E O FEIO
O cenário “mau”: o ajuste
fracassa e o Brasil entra
em recessão com inflação
O cenário negativo, vislumbrado por
boa parte dos analistas de mercado e dos
economistas heterodoxos (por razões diferentes), é aquele em que o ajuste fiscal não
consegue ser cumprido em sua plenitude,
além de abrir caminho para um cenário
de inflação elevada e recessão no ano de
2015. Neste cenário, as dificuldades de
natureza política aparecem como impedimento para a aprovação do pacote fiscal
em sua completude, mas não podem ser
ignorados os alertas sobre a inviabilidade
econômica de se alcançarem os resultados
almejados. Nisso, economistas de várias
vertentes tendem a concordar, apesar de
alguns concentrarem seus argumentos na
redução das receitas derivada da recessão,
enquanto outros apontam como problema
central o excesso de rigidezes nos gastos
públicos. Além do fracasso na obtenção
da meta fiscal, a inflação deve acelerar ao
longo do ano, mantendo-se acima do centro
da meta em 2016, devido aos efeitos de
carregamento e indexação dos preços que
serão desenvolvidos ao longo de 2015. Por
fim, em um cenário de fracasso da meta
fiscal e inflação elevada, a confiança empresarial tenderia a não retornar, colocando
o país dentro de um cenário de recessão
que poderá derrubar o PIB entre 1,5% e 2%,
dependendo da análise.
Neste cenário, o mercado de trabalho
aparece como variável chave do ajuste: ao
mesmo tempo em que sua desaceleração é
apontada como componente deflacionário
no médio prazo, também acaba servindo
como componente recessivo no curto prazo.
O efeito de curto prazo deve sobrepor-se em
2015, pois a deflação dos salários deve ser
mais do que compensada pelo aumento dos
preços administrados e daqueles ligados
ao câmbio, em franca deterioração neste
início de ano. A confiança do empresário só
voltaria a se elevar em 2016 ou 2017, quando
os efeitos inflacionários e recessivos do
ajuste já tiverem realizado seu processo
de destruição dos postos de trabalho e
dos mecanismos de inércia inflacionária
(para não falar na destruição de diversas
empresas e indústrias no caminho), possibilitando ao empresariado responder com
mais vigor em um cenário de salários
baixos, insumos mais baratos (dada a
estabilização do câmbio) e déficit público
sob controle.
Visto de uma forma mais geral, o cenário
“mau” pode aparecer de duas formas: como
um prolongamento dos efeitos negativos
também presentes no cenário “bom”, mas
restritos ao curto prazo nessa visão mais
otimista; ou como o início de um processo
de deterioração da economia brasileira,
que apenas não adentraria um cenário de
recessão aberta (chamado aqui de “feio”)
devido ao elevado grau de resiliência que
o mercado de trabalho e a demanda do
consumidor têm demonstrado nos últimos
anos.
O “cenário” feio: Perda do grau
de investimento, recessão
profunda e crise social/política
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O cenário final aqui delineado é aquele
em que a econômica brasileira entra em
profunda derrocada ainda no ano de 2015,
fruto do absoluto fracasso do ajuste fiscal
e da consequente perda do grau de investimento. Neste cenário, algumas tendências
traçadas no cenário “mau” se exacerbam e
ganham dinâmica ainda mais intensa: em
primeiro lugar, o ajuste fiscal não apenas
se mostra insuficiente ou incompleto, mas
absolutamente incapaz de recuperar as
finanças públicas, dado o volume de perda
de arrecadação em decorrência do aprofundamento da recessão. Esta, por sua vez,
não seria moderada nem passageira, mas
profunda e devastadora para o mercado de
trabalho e para o setor produtivo nacional.
A inflação, por fim, ao invés de alcançar seu
pico no meio do ano e depois reverter sua
trajetória altista, pode permanecer alta e
se aproximar dos dois dígitos mesmo ao
final de 2015, devido à dinâmica errática
da taxa de câmbio e à busca pela proteção
da renda nos mecanismos clássicos de
inércia inflacionária.
A chave para se compreender este cenário
encontra-se na hipótese de o Brasil perder,
ainda este ano, o grau de investimento atribuído a ele pelas empresas de classificação
de risco. Os motivos para este fato podem
ser variados, inclusive da esfera política,
já que os critérios de avalição destas
desacreditadas agências são pouco claros
e, muitas vezes, influenciados política
e ideologicamente.
Alguns fatos objetivos, no entanto, podem
ser decisivos para desencadear o eventual
rebaixamento brasileiro: uma recessão
maior do que a esperada (projeção superior
a 2%), que leve as receitas públicas para
patamares extremamente baixos e impossibilite o ajuste fiscal desejado (aumentando
também a relação dívida/PIB de maneira
acelerada); um aumento da inflação acima
do inicialmente planejado (acima de 8,5%),
seja pelos choques de preço administrado,
seja pelo repasse da desvalorização cambial
para os preços; eventos políticos disruptivos, com a proliferação de manifestações populares e o eventual avanço das
“pautas bomba” no Congresso Nacional,
que oneram financeiramente o executivo.
No caso de um rebaixamento se confirmar,
diversos fundos de pensão e investimento
estrangeiros ficariam impossibilitados
de aplicar em títulos da dívida pública
brasileira, causando uma fuga do real que
aprofundaria a desvalorização cambial. O
impacto da desvalorização na inflação, de
difícil contenção por parte das autoridades
monetárias, pode vir a degradar ainda mais
a confiança de consumidores e empresários. O aumento da inflação e dos custos
dos importados impactaria diretamente
nossas empresas, que além de eventuais
problemas de endividamento externo (no
caso daquelas empresas que não estão
devidamente protegidas por operações de
hedge), ver-se-iam obrigadas a comprimir
suas margens de rentabilidade, devido ao
problema estrutural da economia brasileira, de enorme dependência de insumos
estrangeiros.
Os trabalhadores, por sua vez, veriam um
desmantelamento e reversão imediata do
ciclo positivo do mercado de trabalho verificado nos últimos dez anos, com demissões em massa e queda do salário e renda
A J U S T E F I S C A L E Q U E S TÃ O S O C I A L
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TRÊS CENÁRIOS POSSÍVEIS PARA O BRASIL EM 2015: O BOM, O MAU E O FEIO
Foto: Pixalbay / rkit /Rupert Kittinger-Sereinig de Graz
real. Fatores como a crise da Petrobras
e das empreiteiras, que afetam setores
importantes da economia brasileira (como
a construção civil, petróleo e gás, estaleiros
e toda sua cadeia de fornecedores), além
da continuidade da crise hídrica podem
contribuir para aprofundar ainda mais a
crise social e política do país.
O aumento do desemprego, da recessão,
da inflação e do déficit público criaria um
cenário de “tempestade perfeita”, na qual
dificilmente o governo sobreviveria sem
profundas cicatrizes. Para este cenário se
concretizar, uma série de eventos negativos
teriam de ocorrer na sequência, mas certamente o fato central seria a perda do grau
de investimento, que é a única força atualmente capaz de transformar um cenário
ruim, neste cenário terrível.
Conclusões
Conforme o leitor pode ter percebido ao
longo do texto, os três cenários, apesar de
possíveis, apresentam possibilidades diferentes de se tornarem realidade. O cenário
“bom” e o cenário “feio” aparentemente
dependem de uma série de pressupostos
que reduzem significativamente a possibilidade de ocorrerem, sendo o cenário
“mau” o mais provável dentre os três na
atualidade.
Em uma primeira análise, resta a impressão
de que, para o cenário “bom” se concretizar, questões como a deterioração do setor
externo, além dos impactos inflacionário
e recessivo da política econômica atual,
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R E V I S T A P O L Í T I C A S O C I A L E D E S E N V O LV I M E N T O 1 8
devem ser desconsiderados ou minimizados, o que vai de encontro não apenas
à percepção da maior parte dos analistas
de mercado, como também aos primeiros
indicadores econômicos colhidos no início
de 2015.
A aposta na resiliência da economia brasileira parece vincular-se mais ao segundo
cenário que ao primeiro, que necessitaria
não apenas de resistência para se viabilizar,
mas também de uma grande capacidade
de superação e rearticulação quase que
imediata da economia nacional, fato não
verificado nos últimos anos, mesmo na
presença de poderosos estímulos para isso.
Por fim, a possibilidade de ocorrência
do cenário “feio” corresponderia ao total
fracasso do ministro Joaquim Levy e do
governo, de administrar as expectativas da
economia dentro e fora do Brasil, levando
o país a perder seu grau de investimento
ainda em 2015 e colocando por terra qualquer possibilidade de recuperação econômica seja neste ano, seja no próximo. Os
sinais atuais, no entanto, apontam que,
apesar da situação estar-se encaminhando
para o cenário negativo, não há indícios
de que a deterioração econômica seja tão
profunda nem de que a percepção externa
sobre o Brasil tão negativa, a ponto de
justificar o imediato rebaixamento do
Brasil. Ainda parece ser mais prudente
para as agências de classificação de risco,
defensoras do receituário do ajuste fiscal,
que aguardem seus resultados, antes de
decretar o falência da estratégia de ajuste
macroeconômico atual.
cenários exigem resultados ruins no curto
prazo e no mínimo incertos no médio/
longo prazo. Dever-se-ia considerar
imediatamente a possibilidade de reformular a estratégia econômica (ou ao menos
adaptá-la às demandas sociais). O aprisionamento do governo Dilma na estratégia
atual só poderá ser rompido pela força
dos trabalhadores, movimentos sociais e
das esquerdas, que pressionam o governo
a retomar e aperfeiçoar sua estratégia
de desenvolvimento econômico e social.
A ausência destas forças ou a recusa do
governo em alterar sua estratégia atual
traz à tona a possibilidade de ampliação
da crise política e social no futuro. Mais do
que nunca, é preciso adaptar a estratégia às
demandas da realidade social, não apenas
às demandas dos mercados.
NOTAS
1 Versão ampliada do artigo publicado no Brasil Debate
( http://brasildebate.com.br/o-bom-o-mau-e-o-feio-trescenarios-para-o-brasil-em-2015/)
2 Nesta linha crítica, o debate acerca da adoção
de impostos mais altos sobre renda e patrimônio
(incluindo aí o ainda não regulamentado Impostos
sobre Grande Fortunas (IGF) e alterações no imposto
sobre heranças e nas alíquotas superiores do Imposto
de Renda) tomou força, sendo oficialmente alvo
de estudos do Ministério do Planejamento atualmente. Do ponto de vista do governo, os três
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Ajuste fiscal e mercado
de trabalho
Tiago Oliveira
Economista do Dieese. Doutor em Desenvolvimento Econômico,
na Área de Concentração em Economia Social e do Trabalho,
pelo Instituto de Economia da Unicamp.
Os primeiros meses de 2015 se notabilizaram por uma clara reorientação da
política econômica do Governo Dilma. Em
seu primeiro mandato, convém registrar,
o foco esteve direcionado para as medidas
de estímulo à demanda e à atividade
econômica, que nos anos anteriores tinham
sido bastante exitosas na aceleração do
crescimento econômico, no fortalecimento
do mercado interno de consumo de massas,
na melhoria dos principais indicadores
sociais e de mercado de trabalho e no
combate aos efeitos recessivos da crise
internacional do final de 2008.
Entretanto, a partir de 2011, os resultados
econômicos de tais medidas ficaram
muito aquém do esperado: o crescimento
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Foto: Pixalbay / stevepb/ Steve Buissinne
econômico reduziu-se substancialmente,
atingindo, na média dos últimos quatro
anos, um patamar de apenas 1,6%; a
inflação acelerou-se e estabilizou-se em
níveis muito próximos do teto do regime
de metas; a dívida (líquida ou bruta) como
percentual do PIB assinalou um ligeiro
crescimento; enquanto a trajetória positiva
dos indicadores sociais e de mercado de
trabalho arrefeceu, com exceção da taxa
de desemprego, que continuou a declinar,
graças, sobretudo, a uma menor pressão da
oferta sobre o mercado de trabalho.
Foi nesse contexto que as políticas de
estímulo econômico deram lugar, a partir
deste ano, às medidas de ajuste fiscal assentadas em aumentos de impostos, redução
de subsídios e de desoneração fiscais e no
corte dos gastos públicos, incluindo os da
área social.
O objetivo declarado é o de conter o avanço
da dívida pública – sob a ameaça da perda
do grau de investimento dado pelas agências internacionais de classificação de risco
–, controlar a inflação, reativar o “espírito
animal” dos empresários e impulsionar os
investimentos privados, pavimentando a
retomada do crescimento econômico.
Porém, os meios e os fins alegados não
comportam a manutenção, nem tampouco
o aprofundamento, dos avanços sociais
e no mercado de trabalho observados
nos últimos dez anos. De fato, no que
diz respeito ao emprego e à renda, o que
orienta a estratégia em curso de retomada
do crescimento econômico é a crença de
que a taxa de desemprego atual, próxima,
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AJUSTE FISCAL E MERCADO DE TRABALHO
em tese, a uma situação de pleno emprego,
representa um entrave para a competitividade das empresas brasileiras, que se
veriam obrigadas a adiar investimentos
ou a repassarem o aumento de custos para
os preços, nos espaços permitidos pela
acirrada concorrência internacional, em
um contexto de câmbio sobrevalorizado. O
resultado final é, portanto, uma economia
com baixo crescimento econômico e
inflação crescente, afirmam os defensores
das medidas implementadas neste início
de 2015.
Os impactos restritivos do ajuste fiscal
sobre a economia, potencializados pelas
questões hídrica e energética e pela paralisação da cadeia produtiva do petróleo e do
gás, repercutirão no mercado de trabalho
basicamente por meio de dois canais:
primeiro, a desaceleração do crescimento
econômico per se diminuirá a geração de
postos de trabalho, de uma forma geral,
e do emprego formal, em particular; em
segundo lugar, ao criar dificuldades para a
ampliação do rendimento médio real das
famílias e, secundariamente, ao restringir
o acesso às políticas sociais, o ajuste fiscal
e o menor crescimento econômico estimularão o retorno ao mercado de trabalho
de pessoas que até então se encontravam
fora dele, sobretudo, as parcelas mais
jovens e de idade mais avançada, aumentando a necessidade de que se criem novas
ocupações.
A combinação destes dois movimentos
resultará, cedo ou tarde, na ampliação da
taxa de desemprego e em maior precarização do mercado de trabalho, interrompendo uma dinâmica virtuosa que se vinha
sustentando há cerca de uma década, em
que pese a deterioração do quadro econômico doméstico e internacional.
De fato, no que diz respeito
ao emprego e à renda, o que
orienta a estratégia em curso
de retomada do crescimento
econômico é a crença de que
a taxa de desemprego atual,
próxima, em tese, a uma
situação de pleno emprego,
representa um entrave
para a competitividade
das empresas brasileiras,
que se veriam obrigadas a adiar
investimentos ou a repassarem
o aumento de custos para os
preços, nos espaços permitidos
pela acirrada concorrência
internacional, em um contexto
de câmbio sobrevalorizado
A elevação da taxa de desemprego, em
particular, seria vista como bem-vinda
pelos defensores do ajuste fiscal, uma vez
que a posicionaria próxima a um patamar
considerado como não gerador de pressões inflacionárias (definida como NAIRU,
na sigla em inglês), ao tempo que representaria um alívio em termos de pressão
sobre os custos empresariais, edificando as
bases para a retomada dos investimentos
privados e do crescimento econômico.
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R E V I S T A P O L Í T I C A S O C I A L E D E S E N V O LV I M E N T O 1 8
Há pelo menos duas questões merecedoras
de maiores reflexões acerca da estratégia
em curso. Primeiro, de modo geral, o
conceito de pleno emprego diz respeito a
uma situação na qual os recursos produtivos e, portanto, a capacidade de produção
de uma sociedade, são utilizados plenamente e em seu máximo potencial. Com
efeito, a partir desta definição, é difícil
aceitar que uma economia tão desigual
em termos regionais e com elevada heterogeneidade produtiva, que abriga em
segmentos de baixíssima produtividade
um percentual bastante significativo de
sua força de trabalho, possa ser classificada
como em uma situação de pleno emprego
da mão de obra.
Em segundo lugar, convém questionar
como os investimentos privados seriam
alavancados em um contexto de desemprego em elevação, precarização dos
postos de trabalho e rendimento médio
do trabalho em queda, ou seja, de retração
da demanda efetiva, em um momento no
qual os países desenvolvidos enfrentam
enormes dificuldades para reativar as suas
economias.
Concluindo, se há poucas dúvidas de que
o ajuste fiscal trará impactos negativos
sobre o mercado de trabalho, o que de certa
forma é desejado pelos seus idealizadores,
parece pouco crível que a estratégia em
curso abrirá espaços para a retomada
do crescimento. Nesse sentido, a necessária correção de rumos a ser aplicada
na economia brasileira neste momento
deveria privilegiar, pragmaticamente, a
elevação dos investimentos autônomos,
dada a saturação apresentada pelo consumo
de bens duráveis, combinada com a manutenção do câmbio em um patamar competitivo e a utilização de outros instrumentos
de combate à inflação, que mirem a
indexação dos preços ainda presente na
economia brasileira e o comportamento
altista dos preços dos alimentos.
Concluindo, se há poucas
dúvidas de que o ajuste fiscal
trará impactos negativos sobre
o mercado de trabalho, o que
de certa forma é desejado pelos
seus idealizadores, parece pouco
crível que a estratégia em curso
abrirá espaços para a retomada
do crescimento.
Há uma evidente incompatibilidade entre
a estratégia de crescimento proposta e
o atual formato do regime brasileiro de
metas de inflação, que exige recorrentemente taxas de juros elevadas. Afinal, como
reanimar o “espírito animal” dos empresários, quando se tem o mercado financeiro
como uma alternativa de valorização da
riqueza muito mais atraente?
Dessa forma, acredita-se ser possível
minimizar os impactos do ajuste sobre
o mercado de trabalho, elemento fundamental para um padrão de desenvolvimento capaz de aliar, a um só tempo, alto
crescimento econômico e ampliação do
bem-estar social das massas.
A J U S T E F I S C A L E Q U E S TÃ O S O C I A L
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“Modelo social”
(1)
em crise
Lena Lavinas
Professora do IE-UFRJ, pesquisadora sênior do CNPQ
Virada de ano, virada de governo. O
chamado “reequilíbrio fiscal” atinge em
cheio a política social, cujo viés liberalizante entra em marcha acelerada. Se, nos
últimos anos, a estratégia de fomento à
competitividade de uma indústria combalida centrou-se na desoneração tributária
da folha de pagamento, ameaçando o
orçamento da Seguridade Social, crescentemente responsabilidade do trabalho
e menos do capital, agora a linha de tiro
alcança o cerne dos direitos trabalhistas
e previdenciários.
Em um contexto de desaceleração econômica aguda, retração do investimento
público e privado, rápida elevação dos
juros para além de patamares já proibitivos e escassez de novos empregos, alterar
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Pixalbay / PublicDomainPictures
as tatregras do seguro-desemprego e de
outros benefícios como as pensões é dar as
costas ao “modelo social” introduzido pelo
próprio Partido dos Trabalhadores, com
custos não apenas em alta, mas fonte de
grande vulnerabilidade social e financeira
para as famílias brasileiras.
Que “modelo social” foi esse? A grande
arquitetura começa com a criação do
crédito consignado, em 2003, que vai
vincular acesso prioritário a linhas
de crédito com taxas de juros menos
extorsivas, aos funcionários públicos ou
assalariados formalizados. Em 2004, é
estendido aos aposentados e pensionistas
(2). A política social torna-se, em particular no caso dos titulares de benefícios
previdenciários, o colateral que faltava e
que é garantido pelo Estado, para além da
renda do trabalho, esta sim um colateral
relevante. Vale recordar que os salários e
notadamente seu piso, o mínimo, tiveram
ganhos reais importantes, numa trajetória
sustentada de recuperação.
Em paralelo, no mesmo ano, é regulamentado o Bolsa Família, que vem, já
com atraso, expandir a incorporação ao
mercado de milhões de famílias cujo grau
de destituição restringia não apenas oportunidades, senão ameaçava sua existência
e dignidade. Pouco a pouco, ampliam-se
mecanismos de acesso ao crédito de
consumo também aos beneficiários do
grande programa nacional de combate à
pobreza, para incentivar um modelo de
consumo que vem, finalmente, aquecer o
mercado doméstico, dobrando as vendas
no varejo entre 2003-2014 (IBGE, Pesquisa
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“ M O D E L O S O C I A L” E M C R I S E
Mensal de Comércio) e, de tabela, financiando também acesso a bens importados,
que um câmbio sobrevalorizado favorece.
Ou seja, exportando empregos e agravando
nossa balança comercial.
Vale recordar que data também desses
primeiros anos de gestão petista a regulamentação do microcrédito (3). Entre
2003, data de sua criação, e 2007, 90% dos
empréstimos nessa modalidade voltavam-se ao financiamento do consumo
(BACEN, 2011). Esse percentual cai
paulatinamente, a partir de 2013, quando
é estabelecido na lei que 80% da exigibilidade deveriam ser direcionados para o
microcrédito produtivo orientado. Ainda
assim, o consumo ainda constitui 67% da
sua aplicação em dezembro de 2010.
Observa-se, assim, uma estratégia bem
orquestrada de ampliação dos instrumentos de acesso ao mercado creditício,
açambarcando notadamente as classes
de renda que antes eram excluídas desse
mercado.
Finalmente, visando a inclusão financeira
dos beneficiários do Bolsa Família – 15
milhões de famílias - , surge, mais à frente,
em 2008, o Projeto de Inclusão Bancária.
Tentou, sem o sucesso alardeado, levar ao
público-alvo desse programa de combate
à pobreza novos instrumentos e serviços
financeiros. De início, o projeto limitava-se à abertura de contas simplificadas
(convênio MDS+Caixa Econômica, através
do Conta Caixa Fácil), cuja expansão foi
imediata. Rapidamente, porém, habilitaram-se cartões para compra a crédito e
outros serviços e produtos (4) âmbito do
Projeto de Inclusão Bancária. Todavia, a
adesão de cerca de 2 milhões de famílias,
das 13 milhões cadastradas como beneficiárias em 2010, indica que a exclusão
de preços ou de condição, quiçá a própria
autoexclusão, frearam o interesse dos
grupos mais vulneráveis ao mercado
financeiro. Ainda assim, o financiamento
na aquisição de bens de consumo durável
estendeu-se significativamente nos grupos
mais pobres.
Assim, se, em 2001, o crédito correspondia
a 22% do PIB, em dezembro de 2014 ultrapassa 58%. Saliente-se que o crédito à
pessoa física responde por 47% de toda
a oferta de crédito nessa mesma data,
sendo que a rubrica crédito livre (5) (para
consumo em geral, aquisição de veículos,
consignado e não consignado) equivale
a quase 2/3 de todo crédito à pessoa
física. Seu volume triplicou entre 2007
e 2014. A título de ilustração vale indicar
que entre 2003 e 2010, a quantidade de
pessoas físicas clientes do SCR (6) (CPFs
distintos), identificadas com responsabilidade de empréstimos de no mínimo
R$5 mil cresceu 347%, ao passo que a das
que tomaram empréstimo em valor inferior a R$5 mil aumentou 352%. Em outras
palavras, tanto os pequenos tomadores de
crédito quanto os de maior poder aquisitivo
registraram forte expansão, muito acima
do crescimento da população adulta.
Portanto, houve, de fato, um vigoroso
processo de inclusão financeira, para além
da bancarização, esta igualmente incentivada a partir de 2004 com a criação das
contas simplificadas. O Gráfico 1 reflete
tal progressão. Mostra que conta corrente
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GRÁFICO 1: Acesso a itens financeiros por classe de renda, 2005, 2007 e 2010 (% da classe de renda)
e cartão de crédito conhecem expansão
acentuada entre 2005 e 2010 em todas as
classes, mas significativamente naquelas
com renda familiar inferior a três salários
mínimos (D/E).
Os anos Lula e Dilma inovaram por
promover a inclusão creditícia, alimentando, em decorrência, o endividamento
das famílias.
Aí reside justamente o calcanhar de
Aquiles da estratégia integrada política
social-acesso ao mercado financeiro. Sua
face dantesca surge quando se detalha o
custo do crédito. Uma mirada no Gráfico
2 capta a disparidade nas taxas de juros
no âmbito das diversas linhas de crédito
pessoal livre nos anos mais recentes. Todas
elas têm em comum serem, em termos
reais, assustadoramente elevadas, se cotejadas à taxa de inflação (IPCA). A questão é
que agora elas continuam em alta, mirando
a estratosfera.
Neste início de 2015, no lastro dos sucessivos e ininterruptos aumentos da Selic,
Pesquisa do Instituto Data
Popular, divulgada pelo jornal
O Globo em setembro de
2014, indica que a classe C (7),
hoje equivalente à metade
da população brasileira,
e detentora de 58% dos
empréstimos, destina 65%
de sua renda ao pagamento
de serviços e 35%, à compra
de produtos, quando esse
percentual era inverso dez anos
antes. E dentre os serviços,
predominam de longe
os essenciais, como saúde
e educação, que deveriam
ser desmercantilizados,
direitos de cidadania.
o Bacen aponta que os juros cobrados nas
mais distintas modalidades de crédito ao
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“ M O D E L O S O C I A L” E M C R I S E
GRÁFICO 2: Taxas de juros ao consumidor e inflação, 2011-2014 (% a.a.)
consumo acompanham a alta. A Anefac
estima que, em fevereiro de 2015, os juros
cobrados no comércio bateram em 5,1% ao
mês (uma projeção de 87,12% a.a.)!
Ora, segundo o Bacen, o endividamento das
famílias brasileiras com o sistema financeiro nacional compromete hoje 48% de
sua renda, contra 22% no início de 2006.
Isso não seria problema se, depois de se
insuflar o consumo das famílias, motor do
crescimento econômico a partir de 2006,
usando a política social como colateral, o
governo, em meio a uma recessão que bate
à porta, não resolvesse modificar a regra
de acesso ao seguro-desemprego, cortar e
reduzir pensões por morte, e se o sistema
tributário não garfasse, pela sua estrutura
regressiva que incide fortemente sobre o
consumo, pouco mais de metade da renda
bruta das famílias que vivem com menos
de dois salários mínimos mensais. Ah, sem
falar que praticamente metade do valor do
benefício do Bolsa Família, segundo dados
do IPEA, retorna ao governo em razão da
incidência dos tributos indiretos.
Em outras palavras, a renda disponível
da família trabalhadora ou aposentada é
baixa, ainda muito baixa. Mas igualmente
baixa, é a renda dos brasileiros em geral,
dado o nosso quadro de altíssima desigualdade. Segundo o IBGE, o rendimento médio
do trabalho ao longo do ano de 2014 (PME)
situa-se em R$ 2.054,00 mensais. Some-se
à equação o fato de o grosso da política
social ser transferências de renda monetárias, contributivas ou não contributivas,
enquanto a parcela da provisão pública
de serviços e bens que deveriam ser assegurados gratuitamente continua a escassear, empurrando quem busca segurança
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Foto: Pixalbay / iWorksphotography / Gary Ross
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“ M O D E L O S O C I A L” E M C R I S E
e qualidade para o mercado privado,
com preços destorcidos elevadíssimos,
incompatíveis com a renda da população,
e comprometendo parcela significativa
dela. Pesquisa do Instituto Data Popular,
divulgada pelo jornal O Globo em setembro
de 2014, indica que a classe C (7), hoje equivalente à metade da população brasileira, e
detentora de 58% dos empréstimos, destina
65% de sua renda ao pagamento de serviços
e 35%, à compra de produtos, quando esse
percentual era inverso dez anos antes. E
dentre os serviços, predominam de longe
os essenciais, como saúde e educação, que
deveriam ser desmercantilizados, direitos
de cidadania.
alii, 2011). O crédito de consumo em geral é
bem mais sensível à conjuntura econômica
do que o crédito direcionado, por exemplo.
Ou seja, a renda da população brasileira
é sugada por níveis crescentes de endividamento, por tributos indiretos massacrantes (LAVINAS, 2014) e pela aquisição
daquilo que lhe deveria ser provido com
qualidade, na quantidade imposta pelas
contingências e gratuitamente. Ou seja,
serviços públicos como saúde, educação,
segurança, transporte.
A título de ilustração, assinala o TCU que,
em 2013, os gastos com renúncia tributária
e previdenciária foram estimados em R$
218 bilhões, ao passo que saúde e educação
públicas juntas receberam R$ 163 bilhões.
A bom entendedor...
O atraso na realização da POF pelo IBGE
(8) compromete uma análise apurada e
consistente desse quadro que deve deteriorar-se, em virtude do aumento da desocupação. Pesquisa do Bacen sobre inclusão
financeira (2011) estima que, se a taxa de
desemprego em nível nacional cresce 1%,
a probabilidade de inadimplência no que
tange a modalidade crédito de consumo
à pessoa física aumenta em 3 a 4 pontos
percentuais. Portanto, num quadro de
estagnação da atividade econômica de
forma prolongada, o default das famílias
tende a ampliar-se (CORREA, MARINS et
A presidente Dilma não se furtou a enfatizar, em seu mais recente discurso, a
primazia dos programas residuais como o
Bolsa Família, o Minha Casa Minha Vida e
o Mais Médicos, nas metas de seu governo,
em detrimento do sistema de proteção
social como um todo. Este, em 2014, além
de ter perdido o aporte de, aproximadamente, R$ 56 bilhões em favor das desonerações da Seguridade, ainda se ressente do
desvio de – numa estimativa conservadora
– R$ 60 bilhões para engordar a DRU.
A política social tem por finalidade reduzir
vulnerabilidades, prevenir a pobreza, equalizar oportunidades e, sobretudo, desmercantilizar acesso, garantindo direitos. No
Brasil a perversidade é tamanha, que se
usa a política social como colateral para
dar acesso ao sistema financeiro, de forma
a potencializar um consumo represado
por salários relativamente baixos e uma
estrutura de preços relativos caros, com
produtos medíocres, produtividade em
queda e juros em alta. Claro está que nessa
virada de ano, só se pode mesmo celebrar
a performance do Bradesco e do Itaú, cujo
lucro líquido bateu novos recordes.
Não bastasse esse viés liberalizante já
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conhecido, agora se quer cortar o colateral
de acesso, em nome da austeridade. E como
se pagarão as dívidas? Que novo “modelo
social” está sendo gestado para substituir
o que se esgota e que foi falho?
Não menos importante é chamar atenção
para uma dimensão forte de uma estratégia
viciosa, marcadamente neoliberal: se o
nível de endividamento das famílias tende
a aumentar ainda mais rapidamente em
decorrência da forte elevação das taxas de
juro real, a saída da crise e a recuperação
de um novo ciclo de expansão da demanda
evidentemente estarão comprometidas.
O resultado dramático de tal estratégia
é, portanto, de exacerbar a contração da
demanda.
Respeitar e consolidar a grande inovação
institucional que nos veio com a criação
da Seguridade Social em 1988, isso parece
fora do radar. A função da política social é
assegurar níveis crescentes de bem-estar
e não servir primordialmente ao acesso ao
setor financeiro ou à aquisição de serviços
que o Estado furta-se a prover.
“Novos Gastos: Serviços ganham espaço”. Jornal O Globo,
Caderno Economia, p. 17, 29.09.2014.
LAVINAS L. (2014). A Long Way from Tax Justice: the Brazilian
Case. Working Paper 22, Global Labour University, ILO & GLU,
Berlin, April 2014, 41 pages.
LAVINAS L. e FERRAZ C. (2010) “Inclusão financeira, crédito
e desenvolvimento: que papel uma renda básica pode jogar
nesse processo?” Faculdade de Economia e Administração,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 1 de julho 2010.
TCU (2014) Bases de Dados.
NOTAS
1 Esse artigo foi publicado inicialmente no Caderno Aliás, do
jornal O Estado de S.Paulo, no dia 22 de fevereiro de 2015, numa
versão que difere desta aqui, que é maior e mais detalhada.
Agradeço a Ana Carolina Cordilha a elaboração dos gráficos.
2 O empréstimo consignado para trabalhadores regidos pela
CLT foi instituído pela Lei 10.820 de 17 de dezembro de 2003,
já na gestão do governo Lula. Pouco depois, em setembro de
2004, por meio da Lei 10.953, que altera a anterior, tal direito
foi estendido aos aposentados e pensionistas do INSS. Por
conseguinte, o lançamento do crédito consignado favoreceu
inicialmente os funcionários públicos e os trabalhadores regidos
pela CLT. O chamado Empréstimo Pessoal com Desconto em
Folha de Pagamento ganhou rapidamente o varejo bancário
de todo o país nas mãos dos detentores de um emprego
fixo, estável e praticamente sem risco, e do funcionalismo
concursado. Um ano depois, chegou a pensionistas e
aposentados, regulado pelo INSS (LAVINAS e FERRAZ, 2010).
3 Lei 10.735 de 2003.
4 Em tese, estava previsto que os beneficiários do Bolsa
Família fossem contemplados com acesso a crédito imobiliário;
empréstimos em geral; seguro de vida; capitalização e
poupança. Excentuando-se esta última rubrica de serviço, que
atingiu 2,3% das famílias beneficiárias, os demais serviços e
mecanismos de inclusão não ultrapassaram 0,3% das mesmas
até 2010. Logo, a aderência revelou-se muito baixa.
5 A outra rubrica do crédito à pessoa física é o crédito
direcionado, que comporta o crédito rural, imobiliário, o
microcrédito, o BNDES e outros recursos ditos direcionados.
6 Sistema de Informações de Crédito do Banco Central.
7 Renda Familiar Per Capita de até R$ 1,184/mês.
Bibliografia
8 A POF deveria ter ido a campo em 2013-2014. Mas sua
condução foi suspensa e adiada para 2015-16. ANEFAC, março de 2015
http://www.anefac.com.br/uploads
arquivos/2015311153459181.pdf
BACEN (2011) Relatório de Inclusão Financeira, n. 2, Brasília, 186
páginas.
BACEN (2015) Séries Estatísticas
CORREA A.S.; MARINS J.T.M.; NEVES M.B.E.; SILVA A.C.M. (2011)
Credit Default and Business Cycles: an empirical investigation
of Brazilian retail loans. Banco Central do Brasil, Working Paper
Series n. 260, November 2011.
IBGE - várias pesquisas, vários anos: PNAD. PME, Pesquisa
Mensal de Comércio.
A J U S T E F I S C A L E Q U E S TÃ O S O C I A L
38
Medidas provisórias
664 e 665:
a quem servem?
Juliano Musse
Economista, especialista em direito previdenciário. Atualmente
é Técnico do DIEESE. As posições do autor não necessariamente
refletem as posições da entidade à qual está vinculado.
No final de 2014 fomos surpreendidos com
as impositivas Medidas Provisórias (MPs)
664 e 665 que alteram as regras de acesso
ao seguro desemprego (incluindo o seguro-defeso – pescador artesanal), abono
salarial, pensão por morte e invalidez e
auxílio-doença. Mas antes de entrarmos
propriamente no imbróglio das Medidas,
cabe um breve relato, de enfoque orçamentário constitucional, onde estão contidas
rubricas relativas aos benefícios descritos
nas MPs.
Um dos maiores instrumentos de redistribuição da renda desse país, a previdência
social, não pode ser analisada isoladamente, pois compõe, com saúde e assistência, o denominado tripé da Seguridade
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R E V I S T A P O L Í T I C A S O C I A L E D E S E N V O LV I M E N T O 1 8
Social. Assim, o Orçamento da Seguridade
Social, com base constitucional, inclusive
com fontes de financiamento exclusivas,
vem comprovando, em oposição ao que
tem sido difundido por grande parte da
mídia e setores do mercado, que as políticas de aumento real do salário mínimo
e de expansão dos gastos sociais ao longo
dos anos não “quebram” as contas públicas,
nem, muito menos, inviabilizam a previdência, parte da Seguridade.
Em 2013, segundo dados da Associação
dos Auditores da Receita Federal do Brasil
(Anfip) (1), o total de receitas menos as
despesas da Seguridade Social apresentou
resultado positivo de R$ 76,2 bilhões.
Dinheiro mais que suficiente para atender
ao custeio de todos os benefícios previdenciários e sem necessitar, menos ainda com
urgência, de ajustes ortodoxos com intuito
de conter gastos (2) e suprimir direitos
(embora o governo insista em afirmar o
contrário!).
Pois bem, dizer isso é importante, e nunca
é demais, para sempre repassarmos a existência de uma série histórica de superávit
previdenciário, como parte do sistema
de Seguridade Social (embora muitos
insistam em afirmar o contrário!).
Neste artigo, serão descritos brevemente
alguns pontos da MP 664 que trata de
mudanças nas regras de pensão e auxílio-doença e da MP 665 que afeta as regras
do seguro-desemprego, seguro-defeso
(pescador artesanal) e abono. Porém, cabe
afirmar que não é objetivo descrever Ipsis
litteris as mudanças, mas apenas alertar
pontualmente para alguns problemas
ou simplesmente questionar alguns
posicionamentos:
Em 2013, segundo dados
da Associação dos Auditores
da Receita Federal do Brasil
(Anfip) (1), o total de receitas
menos as despesas da
Seguridade Social apresentou
resultado positivo de R$ 76,2
bilhões. Dinheiro mais
que suficiente para atender
ao custeio de todos
os benefícios previdenciários
e sem necessitar, menos ainda
com urgência, de ajustes
ortodoxos com intuito de conter
gastos (2) e suprimir direitos
(embora o governo insista
em afirmar o contrário!).
1.
Primeiro, tratar de temas tão importantes referentes aos direitos dos trabalhadores por meio de MP não é condizente
com um governo popular e democrático.
Um Projeto de Lei, com ampla discussão
entre governo e sociedade, talvez fosse
medida mais acertada.
Essa mesma ideia sob o olhar jurídico ratifica a precipitação dessas MPs: é vedada
a adoção de medida provisória na regulamentação de artigo da Constituição cuja
redação tenha sido alterada por meio de
A J U S T E F I S C A L E Q U E S TÃ O S O C I A L
40
MEDIDAS PROVISÓRIAS 664 E 665: A QUEM SERVEM?
Foto: DasWortgewand / Pixalbay
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emenda promulgada entre 1º de janeiro de
1995 e 11 de setembro de 2001 (Art. 246 da
CF/88), caso do artigo 201 da Carta Magna,
modificado pela EC 20 de 1998 (Reforma
da Previdência). A Constituição não nega
ao governo a prerrogativa de regulamentar
ou mudar os critérios definidos em lei para
a concessão de benefício previdenciário,
mas terá que fazê-lo por projeto de lei e
não por medida provisória;
2.
O artigo 62 da CF/88 afirma que “em
caso de relevância e urgência, o Presidente
da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional”.
Pergunto: onde está a famigerada urgência
para tratar tal medida? Economizar R$ 18
bilhões, diria a ortodoxia, “pois isso faz
parte de um ajuste fiscal, e sem ele os juros
não caem, e corremos o risco de perder o
grau de investimento pelas agências de
classificação de risco, que avaliam se um
país é ou não um bom pagador de dívidas
(...) tudo isso permitirá a retomada do
crescimento” (3). Ora, e mesmo que esse
montante pudesse resolver alguma coisa,
por que essa economia não foi urgente em
outra época? O critério de urgência aqui
não se aplica.
3.
No caso específico do Abono Salarial, há o aumento da carência do tempo
de carteira assinada do trabalhador. Além
disso, modifica a sistemática anterior,
pela qual o benefício era pago na íntegra,
independentemente do tempo trabalhado. Agora, o pagamento do benefício
será proporcional ao tempo trabalhado,
do mesmo modo que ocorre atualmente
com o 13º salário. Talvez fosse interessante
revisitarem a Constituição Cidadã, pois
em seu artigo 239, parágrafo 3º, há clara
menção em “um salário mínimo anual aos
empregados que receberem de seus empregadores, contribuintes do PIS/Pasep, um
valor de até dois salários mínimos”, não
deixando margem a proporcionalidade
como alude a MP. Além disso, cabe dizer
que embora nosso salário mínimo tenha-se
valorizado bem acima da inflação desde
2003, ainda não alcançou um patamar
digno e necessário para atender as necessidades vitais do trabalhador e de sua família
como preconiza o art. 7o, IV, da CF/88,
reforçando a necessidade da existência do
abono. Segundo o Dieese, o salário mínimo
necessário para atender a CF deveria estar
hoje (fev/2015) no valor de R$ 3182,81 (4).
4.
Aumentar de 15 para 30 dias o
período de afastamento do trabalhador
por motivo de saúde a ser custeado pelas
empresas também não soa como boa
medida. Essas terão 30 dias para controlar,
pressionar e “procurar resolver” tudo de
forma privada (resguardando os interesses
empresariais). Ela própria decidirá se o
trabalhador está ou não doente e se tem
ou não direito à licença. Ao fazer isso,
contraria uma função precípua da previdência social, que é assegurar ao trabalhador que o seu direito não dependa de
médico privado, mas sim designado pelo
INSS.
Permitir a privatização das perícias
médicas, principalmente as perícias
acidentárias, que visa a investigar a relação
do nexo de causalidade com o trabalho, é
como “colocar a raposa no galinheiro!”.
Além disso, segundo Previtale (2015) (5),
A J U S T E F I S C A L E Q U E S TÃ O S O C I A L
42
MEDIDAS PROVISÓRIAS 664 E 665: A QUEM SERVEM?
os trabalhadores perdem, pois sabemos
que a Medicina do Trabalho, da forma
como está instrumentalizada pelo capital
por interesses de grupos corporativos não
atende às necessidades dos trabalhadores e
não caminha no sentido da prevenção das
doenças e acidentes do trabalho.
5.
Quanto ao seguro-defeso (pescadores artesanais), uma das mais interessantes experiências da Seguridade Social
brasileira, chega a ser desumano o que
apregoa a MP. O seguro-defeso é uma assistência financeira temporária concedida
ao pescador profissional que exerça sua
atividade de forma artesanal, individual
ou em regime de economia familiar, ainda
que com eventual auxílio de parceiros e
que esteja com suas atividades paralisadas
no período de defeso. Com esse benefício, ao menos parte de seu sustento é
assegurado (em virtude de não poderem
pescar), poupando-o de deixar seus locais
de moradia e trabalho e converter-se em
trabalhador itinerante informal ou mesmo
subempregado.
A MP 665, além de restaurar uma carência
de três anos para o início do recebimento
do seguro, que havia sido abolida em 2003,
coloca o benefício aos cuidados do INSS
e não mais do MTE. Considere-se que o
Ministério do Trabalho já tem funcionários treinados para o atendimento, e tudo
provavelmente terá que começar do zero
sob a nova égide do INSS. Outro agravante
é a exigência de comprovação de compra
e venda. Muitos pescadores artesanais
não têm nota fiscal e têm dificuldade para
contribuir para o INSS por 12 meses, já
que antes o pagamento era anual e sobre a
produção. E quase diariamente o governo
afirma não haver supressão de direitos
com essas MPs.
O curioso é que em momento
algum é mencionado
um grave problema que afeta
negativamente o mercado
de trabalho brasileiro
e o gasto com o SD, que é a
grande rotatividade presente
no nosso mercado de
trabalho. Isso sem contar
a alta rotatividade entre
os trabalhadores formais
terceirizados, que apresentam
uma situação ainda pior
que os não terceirizados.
6.
Nosso seguro-desemprego tem, de
fato, problemas. Segundo Júdice (2015)
(6), encontram-se pendentes na Organização Internacional do Trabalho (OIT)
questionamentos de sua Comissão de
Especialistas em Aplicação de Convenções e Recomendações ao Estado brasileiro
sobre 19 situações de descumprimento ou
informação truncada sobre as convenções
102 (norma mínima de Seguridade Social)
e 168 (proteção contra o desemprego).
Também se pode questionar sua efetividade como instrumento capaz de propiciar
a reinserção do trabalhador no mercado de
trabalho.
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R E V I S T A P O L Í T I C A S O C I A L E D E S E N V O LV I M E N T O 1 8
TABELA 1
TABELA 1: Resultado das Contas do FAT - Simulação da devolução da DRU, 2002-2012 (em milhões de
Resultado das Contas do FAT - simulação da devolução da DRU Brasil, 2002-2012 (em R$ milhões de dez/2012
dez/2012
pelo IGPM)
corrigidos
pelocorrigidos
IGPM)
Ano
1 - Total
(1)
Receita
2 - Total
Despesa
3 - Resultado
econômico FAT
(2-1)
4 - Empréstimo ao
BNDES
5 - Resultado
Financeiro do
FAT (3-4)
7 - Resultado FAT
6 - Devolução da
c/ devolução(2) da
DRU
DRU (5-6)
2002
35.124,1
16.628,6
18.495,5
8.913,3
9.582,2
5.478,3
15.060,5
2003
36.050,5
15.199,1
20.851,5
9.143,1
11.708,4
5.562,7
17.271,1
2004
35.956,8
15.533,2
20.423,6
9.776,3
10.647,3
5.918,0
16.565,3
2005
39.528,0
17.513,3
22.014,7
10.066,7
11.948,0
6.302,0
18.249,9
2006
41.594,1
22.511,0
19.083,1
11.017,0
8.066,1
7.085,0
15.151,1
2007
40.022,9
25.594,3
14.428,6
10.526,5
3.902,1
6.658,1
10.560,2
2008
43.242,1
26.473,7
16.768,3
11.763,6
5.004,7
7.708,1
12.712,8
2009
42.388,4
33.592,8
8.795,6
11.657,6
-2.861,9
7.347,1
4.485,2
2010
45.776,2
34.186,0
11.590,2
13.314,7
-1.724,5
7.010,0
5.285,5
2011
51.554,3
36.737,6
14.816,7
14.303,9
512,8
9.559,9
10.072,7
2012
53.222,4
40.481,2
12.741,2
15.061,3
-2.320,1
4.171,4
1.851,3
Total
464.459,7
284.450,8
180.009,0
125.543,9
54.465,1
72.800,6
127.265,7
Fonte: CGFAT/SPOA/SE/MTE. Rel a tóri os de Ges tão do FAT 2006-2010. NT 043-2012 in Rotati vi da de e pol íti ca s públ i ca s pa ra o merca do de
tra ba l ho. DIEESE. Sã o Pa ul o: DIEESE, 2014.
Nota: (1) Os repa s s es do Tes ouro Na ci ona l fora m excl uídos da Recei ta. Es tes total i za ra m R$ 6,7 bi l hões , de 2008 a 2012
(2) Si mul a çã o
A MP 665, porém, não corrige, e sim agrava
a desproteção aos desempregados, justamente em um momento quando o mercado
de trabalho eleva o número de demissões
face ao baixo crescimento econômico. Para
receber o seguro, era preciso, até então, ter
trabalhado com carteira assinada nos seis
meses imediatamente anteriores ao início
do pagamento. Agora se exige, na primeira
solicitação da vida do trabalhador, emprego
com registro em carteira em pelo menos 18
dos 24 meses imediatamente anteriores ao
pedido. Na segunda, o requisito é de pelo
menos 12 meses com carteira assinada
nos últimos 16. Da terceira em diante,
mantém-se a regra antiga.
O curioso é que em momento algum é
mencionado um grave problema que afeta
negativamente o mercado de trabalho
brasileiro e o gasto com o SD, que é a grande
rotatividade presente no nosso mercado de
trabalho. Isso sem contar a alta rotatividade entre os trabalhadores formais terceirizados, que apresentam uma situação
ainda pior que os não terceirizados.
Um nível mínimo de rotatividade é aceitável em qualquer mercado de trabalho,
mas no Brasil as taxas (labour flows) são
muito elevadas, principalmente se comparadas às de outros países, como os da União
Europeia. A rotatividade no Brasil, por
exemplo, chega a ser quatro vezes superior
à média de rotatividade da UE.
Outro ponto de extrema importância e que
sequer foi tocado na exposição de motivos
dos Ministérios (MF, MPS e MTE) refere-se
à Desvinculação de Recursos da União
A J U S T E F I S C A L E Q U E S TÃ O S O C I A L
44
MEDIDAS PROVISÓRIAS 664 E 665: A QUEM SERVEM?
– DRU. Retirando a DRU do resultado
das contas do FAT (7) (suposta devolução
da DRU) (8), é possível perceber que no
período de 2002 a 2012 foram direcionados
ao Caixa Único do Tesouro cerca de R$ 72,8
bilhões (Tabela 1). Se expandirmos o limite
temporal, desde a criação da DRU em 1994,
na época denominada Fundo Social de
Emergência (FSE), até 2012, foram arrecadados como contribuição do PIS/Pasep
cerca de R$ 558,4 bilhões (corrigidos pelo
IPCA a preços de dez/2012). Desse total,
cerca de R$118,7 bilhões (quase 1/5 do arrecadado) foram desvinculados via DRU para
o Caixa Único. Como receitas do FAT o
montante foi de R$ 439,7 bilhões. Pergunta:
se o objetivo é fazer uma economia de R$
18 bilhões por ano, por que não combater
a rotatividade? Por que não retirar a DRU?
Sem ela, o Fundo apresentaria em suas
contas um resultado bastante positivo,
como mostra a última coluna da Tabela 1.
7.
A pensão por morte, por sua vez,
em virtude da complexidade, requer ainda
discussão mais ampla entre governo e
trabalhadores. Se, por um lado, há que se
reconhecer que existe uma parcela jovem
da população brasileira com condições de
se manter, em face de uma diminuição
repentina do rendimento familiar (caso
do falecimento de um cônjuge) não precisando, portanto, receber pensão vitalícia,
por outro lado, esqueceram-se das reais
condições de vida de muitos brasileiros. A
título de exemplo, tomemos o caso de uma
mulher pobre, presente no mais longínquo
rincão do Brasil, com pouco ou nenhum
estudo, grávida precocemente e que aos
20 anos de idade, já com três filhos, fique
viúva. Como poderá ela manter sua prole
sem a pensão integral? Encontrar emprego
decente e duradouro, com esse perfil,
parece pouco provável. Receber o benefício
por apenas três anos também não resolverá
a vida desta família que, fatalmente, ficará
à mercê de transferências de renda.
A redução no valor das pensões é outra
amostra do descaso com o beneficiário.
Como ficarão as pensionistas, se o que está
na MP coloca 50% para a viúva e 10% para
cada filho (até o máximo de cinco)? E em
outros casos: 60% (esposa somente); 70%
(esposa e filho inválido) e 80% (esposa e
dois filhos menores)? Será que essa viúva,
dona de casa, que pouco ou nunca trabalhou fora do lar, não faz jus à pensão integral para manter-se e cuidar dos filhos?
Pela complexidade não é o caso de prévia
e muita discussão entre governo e classe
trabalhadora?
Para não dizer que há somente espinhos
nas Medidas, vejamos alguns pontos positivos para este tipo de benefício. A MP 664
alterou a Lei n. 8.213/91 para estabelecer
que “não terá direito à pensão por morte o
condenado pela prática de crime doloso de
que tenha resultado a morte do segurado”
(§ 1º do art. 74). Sob essas condições, a
“doce” Suzane Von Richthofen, condenada
por ter participado da morte de seus pais,
não receberia a pensão por morte deixada
por seu genitor durante dois anos, cessada
ao completar 21 anos. O único problema
aqui é que a condenação só ocorre depois
que se esgotam todas as possibilidades
de recurso e, enquanto isso, o assassino
continua a receber o benefício favorecido
pelo princípio do in dubio pro reo.
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Há outro ponto que merece um crédito
parcial. Para ter direito à pensão por morte,
o cônjuge ou companheiro(a) necessita
comprovar o casamento ou o convívio em
união estável com o(a) segurado(a) há mais
de 2 anos. O objetivo da mudança foi o de
evitar fraudes, considerando que, muitas
vezes, pessoas idosas, com enfermidades
graves ou próximas ao óbito, simulam
casamentos ou uniões estáveis somente
com o objetivo de “deixar” a pensão por
morte para alguém (caso das “jovens
viúvas”). Para essa intenção parece não
haver outro remédio, alertando, porém, a
necessidade de se estudar caso a caso. No
entanto, essa regra não deveria ser validada, por exemplo, se comprovada uma
relação conjugal afetiva, ainda mais com
a presença de filhos.
Esses são alguns dos motivos que mostram
a urgência na análise e revisão dessas
Medidas. A afirmação do governo, de que
são necessárias para o equilíbrio fiscal
do país nos próximos anos, para corrigir
as distorções na concessão de benefícios
trabalhistas e previdenciários é totalmente
descabida. Financeiramente não é preciso,
e o superávit da Seguridade confirma isso.
E corrigir distorções do sistema não pode
implicar supressão de conquistas sociais.
e seguro desemprego, Desvinculações
de Recursos, a estrutura dos benefícios
previdenciários. A previdência social, a
Seguridade Social e, principalmente, a
classe trabalhadora são merecedores de
algo melhor do que está posto.
NOTAS
1 Disponível em: http://www.anfip.org.br/publicacoes/20140903125923_Analise-da-Seguridade-Social-2013_03-09-2014_Anlise-da-SS-2013-ntegra.pdf
2 O objetivo do governo é economizar R$ 18 bilhões anuais a
partir deste ano.
3 Discurso proferido pelo Ministro da Fazenda durante Audiência
Pública na Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do Senado
Federal em 30/03/2015.
4 Disponível em http://www.dieese.org.br/analisecestabasica/
salarioMinimo.html
5 PREVITALE, W. A Medida Provisória nº 664 e a Saúde dos
Trabalhadores. In: http://www.contrafcut.org.br/noticias.
asp?CodNoticia=41075
6 JÚDICE, Magalhães. Nunca antes. In: http://www.anovademocracia.com.br/no-144/5746-nunca-antes
7 O Fundo de Amparo ao Trabalhador - FAT é um fundo especial,
de natureza contábil-financeira, vinculado ao Ministério do
Trabalho e Emprego - MTE, destinado ao custeio do Programa
do Seguro-Desemprego, do Abono Salarial e ao financiamento de
Programas de Desenvolvimento Econômico
8 Extraído do livro: Rotatividade e políticas públicas para o
mercado de trabalho. DIEESE. São Paulo: DIEESE, 2014.
9 Ver mais em Nota Técnica Nº 043/2013- CGFAT/SPOA/SE/MTE.
O que se vê até aqui é o desrespeito às instituições democráticas e ao diálogo prévio
com trabalhadores e seus representantes,
verdadeiro retrocesso em matéria de
direitos. São muitos os temas imbricados
e dignos de discussão: rotatividade de mão
de obra, informalidade no mercado de
trabalho, maior integração das políticas de
intermediação de mão de obra, qualificação
A J U S T E F I S C A L E Q U E S TÃ O S O C I A L
46
O capitalismo
patrimonialista
no Brasil:
da disputa contra o rentismo
empresarial à luta contra
o patrimonialismo familiar
dos empresários
William Nozaki
Professor de economia da Fundação Escola de Sociologia
e Política de São Paulo (FESPSP).
Encontros e desencontros
entre demanda e oferta
Nos últimos meses, o debate sobre a política
econômica tem sido polarizado entre, de
um lado, aqueles que defendem incondicionalmente o ajuste fiscal proposto pelo
governo, tratando austeridade como sinônimo de responsabilidade; de outro lado,
entre aqueles que criticam com veemência
as medidas fiscais adotadas, insinuando
tratar-se de uma traição neoliberal, ou de
um estelionato eleitoral, contra o projeto
neodesenvolvimentista. Em meio às
paixões é preciso calma com o andor, pois
a política econômica é menos uma ciência
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R E V I S T A P O L Í T I C A S O C I A L E D E S E N V O LV I M E N T O 1 8
esquemática e mais uma arte sinuosa – a
arte de lidar com passivos econômicos do
passado e correlações de força política do
presente a fim de conjugar ideias e interesses que abram novas possibilidades
de projetos de sociedade para o futuro. O
que está por trás do atual ajuste fiscal é o
próprio esgotamento de um certo modelo
de crescimento econômico.
Como é sabido, os governos Lula e Dilma
promoveram um modelo de crescimento
baseado na elevação do salário mínimo, na
ampliação dos programas de transferência
de renda e na expansão da oferta de crédito.
O resultado foi o crescimento dos mercados
de trabalho e consumo, a melhora na distribuição de renda e a redução da pobreza e
da miséria.
Tal concertação socioeconômica, ao mesmo
tempo em que dinamizou o crescimento
econômico, dele se valeu a fim de acomodar
tanto ganhos de renda dos trabalhadores
assalariados, quanto ganhos de riqueza das
elites mais abastadas e das classes médias
remediadas. Não se reformou estruturalmente o prédio da estratificação social
brasileira, mas se acelerou dentro dele o
elevador da mobilidade social, o que já é
uma transformação bastante impactante
para sociedade tão desigual como a nossa.
Os batalhadores brasileiros passaram a
existir em lugares onde antes não existiam, como em shoppings, aeroportos,
bancos, provocando o desconforto da
elite incivilizada que gosta dos mercados
da distinção e do privilégio. Apesar dos
avanços inequívocos, o modelo de crescimento interno com base no consumo de
massas revelou algumas contradições que
se deixaram ver exatamente na arena da
política econômica.
No último biênio dos governos Lula, em
2009 e 2010, a política econômica brasileira
logrou êxito ao adotar medidas anticíclicas
e expansionistas nos âmbitos monetário,
fiscal e creditício, como forma de proteção
contra os efeitos da crise financeira internacional no país: (i) a redução da taxa de
juros e o aumento da liquidez interna; (ii) a
ampliação dos programas de transferência
de renda, da rede de proteção social e do
investimento público; (iii) as desonerações
tributárias; (iv) o aumento da oferta de
crédito via bancos públicos; e (v) o crescimento do investimento público em habitação. Todos esses vetores contribuíram
para uma rápida recuperação da economia
brasileira; em 2010 o crescimento do PIB
foi de 7,5%.
A ampliação dos mercados de trabalho e
de consumo fez com que a aceleração da
Foto: geralt / Pixalbay
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demanda estimulasse a expansão da oferta,
reabrindo o debate sobre os gargalos estruturais da economia brasileira em energia,
transporte, logística, etc. e repondo as
discussões sobre os impasses macroeconômicos trazidos pelos juros elevados
(quando comparado ao de outros países)
e ao câmbio valorizado (utilizado como
âncora de controle inflacionário e impactando negativamente as exportações).
A agenda em favor da competitividade e
contra a desindustrialização impunha-se
como urgência a ser enfrentada. Por essa
razão, não é por acaso que Lula (patrono
da expansão da demanda e da universalização da sociedade de consumo no Brasil)
tenha alçado para sua sucessão justamente
Dilma Rousseff (especialista em infraestrutura energética, com passagem pelo
Ministério de Minas e Energia e pela Petrobrás, e, como ministra da Casa Civil, a
grande responsável pelo maior programa
de criação de oferta e avanço do investimento público, o Programa de Aceleração
do Crescimento, PAC).
Contradições entre
o industrialismo e o financismo
Sendo assim, o primeiro biênio do governo
Dilma, 2011-2012, foi marcado pela tentativa de reequacionar aquela distorção
econômica, implantando medidas menos
expansionistas, mas sem abandono das
conquistas sociais. Pela primeira vez, em
2011, o petismo tentava administrar uma
desaceleração da economia.
A fim de criar condições para o avanço da
agenda industrialista, o governo procurou
combater os ganhos exorbitantes do
sistema bancário e do mercado de capitais por meio da redução da taxa básica de
juros (a Selic atingiu o patamar de 7,25%
em 2012, o menor nível desde a estabilização monetária). No entanto, isso não foi
o suficiente para recuperar o dinamismo do
crescimento econômico, e o PIB permaneceu em 1,8%. O que houve de errado
nesse percurso?
No capitalismo contemporâneo, as
grandes corporações promoveram a imbricação indissociável entre a lucratividade
produtiva e a rentabilidade financeira.
Toda grande empresa organiza sua estratégia considerando as possibilidades de
ganho a partir tanto da produção quanto
das finanças.
Nesse cenário, a hipótese orientadora da
política econômica mostrou-se problemática. O governo supôs que a redução
dos juros – somada a outras medidas de
ampliação do investimento público e de
concessões e parcerias com a iniciativa
privada – seria suficiente para a retomada
dos grandes investimentos empresariais
produtivos. Com isso subestimou o fato
de que a diminuição da Selic impactaria
negativamente os ganhos financeiros
dessas mesmas empresas que, ao fim e ao
cabo, preferiram utilizar os estímulos ao
investimento concedidos pelo governo, não
para o avanço da produção, mas para cobrir
as perdas com as finanças promovida pela
política monetária do governo.
Tal impasse está na origem das turbulências
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Foto: robinjavier / Pixalbay
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C O N T R A O PAT R I M O N I A L I S M O F A M I L I A R D O S E M P R E S Á R I O S
econômicas por que passou o país no biênio
seguinte, 2013-2014. Para conter a inflação,
implementou-se o controle sobre os preços
administrados, retendo os valores da gasolina e da energia; com vistas a insistir no
esforço de ampliação do investimento
privado, diversos pacotes de desoneração
fiscal foram negociados pontualmente
com setores empresariais; além disso,
o câmbio permaneceu sobrevalorizado,
criando problemas para a balança comercial em um contexto internacional ainda
mais adverso. Mesmo que o valor da dívida
líquida sobre o PIB não tenha aumentado
significativamente, algum ajuste de rota
impunha-se como necessário para a recuperação da trajetória de desenvolvimento
econômico.
Evidentemente, o ajuste proposto pelo
atual ministro da Fazenda comete o erro
elementar do “austericídio”. Ao tratar o
investimento público e o gasto social como
simples despesa a ser contida, aumenta-se
a chance de que a economia seja absorvida
por um ciclo vicioso de retração ainda mais
drástico.
Impasses entre o investimento
e a corrupção
Em alerta com relação aos possíveis
desdobramentos e impactos políticos da
Operação Lava Jato e ciente das dificuldades para a interlocução com o novo
Congresso Nacional eleito, Dilma deve ter
levado em conta no seu cálculo de composição ministerial a necessidade de um
diálogo mais estreito com alguns setores
econômicos importantes, a fim de criar
um clima de melhor expectativa e de mais
confiança para o destravamento do investimento privado. É nessa chave, talvez,
que se possa compreender a nomeação
de Joaquim Levy (Fazenda), Kátia Abreu
(Agricultura, Pecuária e Abastecimento)
e Armando Monteiro (Desenvolvimento,
Indústria e Comércio Exterior), ligados,
respectivamente, à Federação Brasileira
de Bancos (Febraban), Confederação da
Agricultura e Pecuária (CNA) e Confederação Nacional da Indústria (CNI).
Entretanto, o ônus de nomeações contestáveis pela base eleitoral da presidenta não
se converteu imediatamente em bônus na
relação com o empresariado nacional. As
investigações sobre os casos de corrupção
na Petrobrás fragilizaram o governo que se
tornou politicamente titubeante diante da
sanha do PMDB, e vacilante, economicamente, diante do avanço do “lock-out” do
investimento privado.
Os investimentos realizados pela Petrobrás até 2014 ultrapassavam a cifra dos
US$ 40 bilhões, o equivalente a algo
em torno de 12% da Formação Bruta do
Capital. Em 2015, o anúncio da redução de
um terço desse investimento somado ao
rebaixamento da classificação de risco da
empresa tem produzido um efeito negativo
em cadeia: cancelamento de encomendas,
rompimento de contratos e atraso nos pagamentos já podem ser observados nesse
último mês. O impacto no setor privado
é inegável: grandes empresas como OAS,
Camargo Corrêa, Queiroz Galvão, Andrade
Gutierrez, Mendes Júnior, Engevix, têm
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Foto: Paulo Pinto/ Fotos Públicas
encontrado dificuldades para acessar o
financiamento do BNDES e têm sofrido
obstrução para a participação em concorrências públicas, além de experimentarem tanto queda patrimonial quanto de
receita. O impacto desse revés na atividade
econômica e na manutenção do emprego já
começa a ser percebido; a geração de postos
de trabalho na indústria de transformação
e na construção civil é declinante.
O quadro se torna ainda mais complexo
quando se consideram os impactos econômicos oriundos da questão hídrica. A
ausência de planejamento e a irresponsabilidade de gestão que se observam em
casos como o do governo do Estado de São
Paulo só concorrem para piorar o cenário
econômico nacional.
Tal enrosco revela mais do que problemas
na condução da política econômica do
governo federal e explicita impasses da
própria economia política brasileira. Há
na nossa trajetória histórica uma articulação espúria entre Estado e mercado,
contemporaneamente visível na ligação
entre a licitação de grandes obras e o
financiamento de campanhas eleitorais.
A iniciativa privada paga suas benesses,
propinas e afins com recursos públicos; os
potentados eleitorais negociam seus interesses pessoais oferecendo como moeda de
troca as empresas estatais.
No capitalismo patrimonialista brasileiro,
de altíssimos retornos com baixíssimos
riscos, nem a iniciativa privada tem suficiente iniciativa nem o poder público é
de fato público. Fica o dilema: é possível
retomar o crescimento econômico sem
reiterar a corrupção? O capitalismo patrimonialista só pode ser controlado quando
o financiamento empresarial-privado
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C O N T R A O PAT R I M O N I A L I S M O F A M I L I A R D O S E M P R E S Á R I O S
de campanha for proibido. Enquanto a
reforma política não avançar, caminharemos pelo submundo das delações
premiadas e dos acordos de leniência, com
a judicialização da política e a policialização da economia.
Por um reajuste fiscal
progressista e progressivo
Por todos esses motivos, talvez esse fosse
o momento mais adequado para que o
conjunto da sociedade brasileira fosse
convidado a participar de um grande pacto
de ajuste da economia. O país precisa de
mais ajuste, não de menos ajuste. Isso significa que o acerto das contas públicas deveria
ser feito não apenas em favor do rentismo
financeiro, mas, sobretudo, contra o patrimonialismo que impera no país. Do ponto
de vista estrutural, não restam dúvidas de
que os ganhos do sistema financeiro são
exorbitantes. No entanto, é ingênuo travar
uma cruzada contra os bancos e bolsas,
sem uma proposta progressista para esse
conjunto de instituições. Nesse sentido,
as forças de esquerda falham ao não se
debruçar de forma mais cuidadosa sobre
essas questões.
rentismo das empresas seja atacar o patrimonialismo de parte dos nossos empresários. Na subida do ciclo econômico, uma
das instituições mais importantes para
o desenvolvimento nacional é o Tesouro
Nacional; mas na descida do ciclo talvez
uma das instituições fundamentais seja a
Receita Federal.
Nesse sentido, a recomposição do erário
deveria também passar (i) pelo combate
sem tréguas à sonegação fiscal, evasão
de divisas e lavagem de dinheiro; (ii)
pela implementação de impostos sobre
heranças, doações e fortunas; (iii) por
uma maior progressividade no imposto
de renda. O crescimento econômico,
a redução das desigualdades sociais e o
combate à corrupção devem ser partes
articuladas de um mesmo projeto de país.
Dada essa lacuna, nessa conjuntura será
preciso enfrentar o patrimonialismo imperante. Não se trata de culpar o Estado e com
isso organizar argumentos em favor do seu
encolhimento, mas, sim, de investir contra
os ganhos pessoais e privados da nossa elite
(econômica e política). Nesse momento,
talvez mais importante do que afrontar o
S É R I E E S P E C I A L A U S T E R I D A D E E C O N Ô M I C A E Q U E S TÃ O S O C I A L
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