CARLOS REIS: “ACHO QUE HÁ UM BOM CONHECIMENTO DO EÇA NA NOSSO VIDA
PÚBLICA”
ENTREVISTAS - Escritores
Escrito por Rogério Mendonça
Segunda, 15 Fevereiro 2010 19:43
A revista LIVROS & LEITURAS foi agora ao encontro de Carlos Reis. Além de reitor da Universidade Aberta e presidente da European Association of Distance Teaching Universities, a principal rede europeia de ensino superior a distância, o professor catedrático é igualmente conhecido pela sua dedicação à obra de Eça de Queirós. Foi aliás o criador da cadeira de Estudos Queirosianos na Universidade de Coimbra. Publicou o seu primeiro livro em 1975: “Estatuto e perspectivas do narrador na ficção de Eça de Queirós”. Carlos Reis tem sido também um grande defensor do Acordo Ortográfico. Livros & Leituras – Se tivesse de aconselhar um amigo relativamente a uma tema para uma tese de mestrado sobre Eça de Queirós, que lhe diria?
Carlos Reis ‐ Para uma tese de mestrado dava‐lhe um tema que não fosse nem demasiado complexo nem que exigisse uma grande margem de inovação porque é isso que é próprio de uma dissertação de mestrado. Sugeria‐lhe o seguinte: uma figura que me fascina muito em Eça, cada vez mais, Carlos Fradique Mendes. O tema, formulava‐o deste modo: Carlos Fradique Mendes como anti‐
personagem, para de facto, fixarmos esta condição desta figura. Não sendo uma personagem de romance no sentido em que o são o Carlos da Maia ou o João da Ega, tem alguma coisa disso sem o
ser por completo. Mas não digo mais nada para que, se alguém quiser fazer a tese, possa desenvolver o tema...
L&L – Os portugueses conhecem bem o Eça? CR – Conhecem bem o Eça do ponto de vista do que ele é no nosso imaginário. Se o leram, é outra questão e portanto o conhecimento é o de um escritor de quem se sabe que é um escritor muito actual; de um escritor que era visto e ainda é visto como vagamente subversivo, crítico e irónico. Acho que há um bom conhecimento do Eça na nossa vida pública em geral.
L&L – O que é que Portugal e os portugueses podem fazer mais para elevar o nome daquele que foi um dos melhores romancistas portugueses de todos os tempos?
CR – Lê‐lo. Não há melhor forma de distinguir um escritor que não seja ler as suas obras, isto para o público em geral. A um outro nível, direi que a elevação do nome de Eça ou de qualquer grande escritor, passa pela boa edição das suas obras e isso infelizmente nem sempre acontece em Portugal.
L&L – “O Crime do Padre Amaro”, recentemente adaptado ao cinema, continua a gerar polémica, principalmente junto dos católicos. A mentalidade de alguns sectores da população estagnou, isto apesar de já terem passado 134 anos desde que Eça publicou o livro?
CR – Talvez tenha estagnado, mas talvez sobretudo relativamente a esta polémica em torno do “Crime do Padre Amaro”. O que está em causa é um mecanismo de defesa natural do ponto de vista da instituição. Eça não quis atacar a Igreja. Ele, aliás, escreveu algures: “eu não ataco a instituição religiosa, ataco os maus padres e não ataco a família, ataco as suas más realizações”. Mas, evidentemente, há sempre uma certa tendência para confundir uma coisa com a outra. A Igreja que o Eça viveu no seu tempo e de que criticou algumas práticas mudou. Felizmente mudou bastante, mas há talvez situações que ainda hoje precisavam do olhar de um Eça. L&L‐ Uma crítica?
CR‐ Sim, uma crítica. Como em tudo, certas posições que a Igreja Católica toma relativamente ao mundo de hoje, por exemplo, o controle da natalidade ou o celibato dos padres. De resto, o celibato dos padres de alguma maneira já era criticado na época do Eça, mas esses temas que se mantêm hoje em cima da mesa, de certeza que Eça voltaria a eles.
L&L – A obra de Eça de Queirós é muito intemporal. Em termos sociais, parece que pouco mudou, isto apesar de já ter passado mais de um século. Acha que se fosse hoje, a sua visão da sociedade portuguesa seria a mesma? CR – Bom, a sociedade Portuguesa mudou bastante e a visão do Eça também mudaria porque aquilo que o caracterizou, uma das coisas que o caracterizaram como grande escritor, foi a capacidade para perceber aqueles aspectos da vida social Portuguesa em que fazia sentido estar atento criticamente. Essa posição, seria – digamos ‐ por homologia a mesma de hoje, mas não há aqui analogias porque entretanto mudaram muitas coisas; embora certos valores e certas atitudes por vezes permaneçam.
Portanto, a visão seria ainda uma visão crítica e interventiva, disso não tenho a mínima duvida. L&L – O ensino a distância é o futuro? CR – O ensino a distância é o futuro e já é o presente e a realidade presente dele é que por exemplo, só na Europa há cerca de 2 milhões de pessoas que dependem para a sua formação do ensino a distância. Pelo que se está a ver agora em Portugal (basta dar atenção ao contrato de confiança que recentemente o governo firmou com as universidades Portuguesas), o ensino a distância tem sido evocado cada vez mais como um regime de ensino que é, na realidade, um lugar de oportunidades educativas muito importante para o nosso país e para as pessoas que querem estudar L&L – Que novidades vai apresentar a Universidade Aberta nos próximos tempos?
CR – Nos próximos tempos e um pouco na decorrência desse contrato de confiança e do programa de desenvolvimento que ele traz consigo, queremos cada vez mais atingir outros públicos, com outros conteúdos e com linguagens sempre renovadas, começando por este aspecto das linguagens renovadas, porque este é um domínio em que as coisas evoluem muito rapidamente. Hoje já não se faz ensino a distância como se fazia há 5 ou 10 anos, e no próximo ano certamente outras ferramentas terão aparecido. É isso que está a fazer dele um ensino já do presente e do futuro. Ele está a ser credibilizado, coisa que no passado era difícil de fazer, pela crescente sofisticação das suas ferramentas. Há uma expressão chave que já entrou no léxico das grandes universidades de ensino a distância dos outros países e mesmo das presenciais, que é aprendizagem ao longo da vida. Isto é, aprender toda a vida coisas novas, responder a desafios novos, ter uma atitude de constante interesse pela aprendizagem e, para isso, o ensino a distância está preparado como nenhum outro. Ele tem de ter a noção de que não se pode trabalhar para os públicos convencionais para o qual trabalham as outras universidades, nem leccionar as mesmas coisas. Tem portanto que se adaptar e ajustar a estas novas solicitações; e é por isso que eu acho que as novidades nos próximos tempos vão estar muito relacionadas com isto. L&L‐ Estamos actuais com o gabinete de ALV (Aprendizagem ao Longo da Vida)?
CR – Sim. Agora é uma unidade de missão, é uma unidade organizacional. E se esta lógica se confirmar, não me espantaria que nos próximos 5 ou 10 anos aquela unidade de missão fosse um dos departamentos da Universidade Aberta. L&L‐ O que o acha da certificação das competências adquiridas ao longo da vida para o ensino superior?
CR ‐ Acho que é uma excelente oportunidade a não desperdiçar. Quero dizer que a certificação das
competências não deve ser utilizada para generalizar más práticas, porque senão desautoriza‐se e descredibiliza‐se. Mas repito: pode ser uma excelente e justa oportunidade. Um exemplo: uma pessoa que foi contabilista numa empresa durante 20 anos, provavelmente se for um profissional sério e competente, não vejo nenhum inconveniente em que num curso superior de contabilidade lhe sejam certificadas competências que ele já tem. Mas entendo também que será um desperdício e uma descredibilização disto se se banalizar a atribuição de competências, e isto é uma coisa que interessa aos dois lados da questão: a quem certifica e a quem é certificado.
L&L – Carlos Reis é também Presidente da EADTU (European Association of Distance Teaching Universities), a principal rede europeia de ensino superior a distância. Há diferenças entre aquilo que fazemos em Portugal e aquilo que se faz noutros países?
CR – Do ponto de vista da filosofia do ensino a distância não há grandes diferenças, e o que esta organização faz precisamente é facultar conhecimento, harmonizar, fazer circular experiências, etc. Do ponto de vista dos procedimentos pedagógicos, também não há grandes diferenças, porque todos mais ou menos vamos acompanhando o que os outros fazem. Há algumas diferenças importantes e isso é aquilo que eu gostaria que mudasse, e parece que há alguns sinais de que vai acontecer: a forma como os poderes públicos e, particularmente, os poderes políticos olham para o ensino a distância e como ajudam a legitimá‐lo. Aí sim, há diferenças importantes. E eu muito gostaria que essas diferenças se esbatessem em Portugal. Conheço casos relativamente à Universidade Aberta holandesa, relativamente à Open University Inglesa, em que é evidente que os poderes públicos e o poder político ajudam, apoiam e favorecem a legitimação daquelas
instituições. Neste aspecto, Portugal pode‐se comparar, relativamente ao potencial que este tipo de ensino encerra, com a Espanha ou com o Reino unido porque nós não somos só a Universidade Aberta portuguesa, nós somos também uma Universidade Aberta em língua portuguesa; e isto evidentemente abre um campo de oportunidades que é facílimo de perceber.
L&L‐ A Universidade Aberta está em 33 países?
CR ‐ É verdade, estamos em 33 países. Mas essa verdade dos 33 países depende mais do acaso das pessoas que estão por lá, do que da nossa política que deveria ser uma causa, um desígnio nacional, de modo a estarmos sobretudo nos países de língua portuguesa. L&L – Que opinião tem dos livros electrónicos? Acha que vão afastar os leitores das obras?
CR – Acho que não. Acho que vão favorecer leituras de outra forma e noutros locais. Não sou das pessoas receosas que têm medo da morte do livro convencional que todos conhecemos e com que fui educado. Acho que os livros electrónicos vão favorecer outro tipo de leitor, que tem acesso mais rápido à informação, que lê noutros locais diferentes de onde lia, que lê noutra posição física até, que vive a leitura de outra forma. Portanto, nesse aspecto, acho que o livro electrónico vai ter (ou já tem) algumas vantagens importantes sem eventualmente cancelar o livro convencional. No fundo, isto é um debate que se coloca sempre. Quando apareceu a televisão, supostamente a rádio desapareceria e não desapareceu. L&L – Como é que tem visto a polémica em redor do Acordo Ortográfico?
CR – Como o resultado de vários factores ou de várias forças e posso evocar três ou quatro. 1ª ‐
Resistência à mudança. A mudança implica algum esforço, alguma aprendizagem e naturalmente isso causa resistência. Não vale a pena dramatizar muito, as pessoa normalmente resistem à mudança. 2ª ‐ Uma relação muito física com a língua, que até considero interessante. Nós resistimos a mudar a ortografia, mas não resistimos muitas vezes a incorporar no nosso léxico palavras novas e isto traz‐nos à questão o Brasil. A pessoa que resiste a escrever “ACTUAL” sem “C” não repara que diz hoje em dia “vou para a fila” e não “vou para a bicha”. A pessoa não resiste a incorporar a palavra, mas resiste a incorporar a ortografia. Porquê? Porque a relação com a ortografia é muito
física, ou seja, eu vejo, eu faço um gesto com a mão, seja com o computador, eu altero aquilo que aprendi na escola. É um pouco como se estivessem a mexer na minha identidade, mas isso é tudo muito relativo e muito psicológico, isso já aconteceu na nossa língua várias vezes. E já houve as mesmas resistências às mudanças em 1911 e 1945. 3ª ‐ A resistência ao Brasil. Há uma imagem muito preconceituosa em relação ao Brasil, como se o Brasil continuasse a ser a colónia. Esta questão das mudanças ortográficas da língua era muito mais fáceis quando as mudanças não implicavam acordo. Em 1911, Portugal nem quis saber do Brasil, e em 1945, Portugal passou bem sem o Brasil. Agora não é assim. Os interlocutores são, não apenas um, mas mais sete países. Já escrevi muitas páginas sobre isso e até já estou um pouco cansado de argumentar nesse sentido. Vejo o assunto como a articulação destas várias resistências e como uma etapa que tem que se passar. Para além daquilo que já está a acontecer, o acordo ortográfico vai acabar por ser incorporado nos nossos hábitos. Posso, desde já, dizer que a partir dos princípios do mês de
Fevereiro o site da Universidade Aberta vai adoptar o Acordo Ortográfico.
L&L‐ É mais difícil de incorporar o Acordo Ortográfico para as gerações de 50, 60 e até de 70, porque para as crianças não será assim tão difícil, uma vez que se pretende aproximar a fonética à escrita.
CR – Sim, perfeitamente. É uma aproximação de facto. E quem está muito preocupado com as crianças, pode‐se despreocupar porque elas vão resolver essa situação muito mais facilmente do que nós.
L&L – Quem foi para si o escritor português de 2009?
CR – Eu por razoes várias até de falta de tempo, não acompanho muito de perto aquilo que se passa na vida literária portuguesa. Vou acompanhando o essencial, e posso‐lhe dar uma resposta um pouco “conservadora” e relativamente óbvia: o escritor português de 2009 foi o José Saramago. Não lhe diria que o livro português foi o “Caim”, mas “Caim” levou a recolocar questões importantes para o fenómeno literário e para a instituição literária. Temos de saber viver com a heterodoxia.
Temos de rejeitar sempre a expressão que foi usada: “o escritor não pode fazer tal coisa”. Deste ponto de vista, acho que o José Saramago foi o escritor Português mais importante de 2009. L&L – E o escritor estrangeiro de 2009?
CR – Bem, dou‐lhe duas respostas. Como também não acompanho muito de perto a produção estrangeira, refiro dois livros. Um que nunca tinha lido, mas que sabia que era um grande livro: “Coração das Trevas” do Joseph Conrad. Para mim, foi ler o livro depois de ver o filme, porque
“Coração das Trevas” é a base de onde partiu esse meu grande filme de culto: “ Apocalypse Now”. Um livro absolutamente admirável.
L&L‐ Melhor que o filme?
CR ‐ Não sei. Precedeu o filme, o que já é bastante. Até porque o filme não é propriamente uma adaptação. Para além disso, faço uma coisa que não é talvez muito ortodoxa, que é falar de um livro que ainda não li. Por aquilo que vi, é certamente um livro fundamental: “2666”, de Roberto Bolaño, um grande escritor chileno que morreu há alguns anos. O livro é póstumo, mas é, pelo que sei, uma espécie de testamento literário do escritor e de uma geração. L&L – Quais são os seus projectos para 2010?
CR – Uma coisa que eu gostava que me acontecesse: concluir a edição crítica d’A Correspondência de Fradique Mendes, em que estou a trabalhar há já algum tempo. Gostava de concluir essa edição
crítica que até está relativamente adiantada. Se eu fizer isso, já me dou por satisfeito.
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