Português Texto narrativo O último Grimm, de Álvaro Magalhães William estava agora parado no cimo de uma corrente de ar ascendente e à sua frente havia uma porta. [...] Empurrou-a e ela não cedeu. Enfiou então os dedos numa das frinchas, puxou-a para si e ela abriu-se. Do lado de lá havia uma sala de uma pequena cabana de madeira. "A casa", pensou. Era aí que ele queria chegar. [...] Do lado de fora da porta da cabana estava escrito a tinta branca, com uma letra incerta: "Casa do Grimm". [...] Ouviu então o ruído de cascos de cavalos e ficou atento. O ruído aumentava e, pouco depois, viu passar na estrada estreita de terra ao fim do jardim um coche puxado por quatro cavalos brancos. Ia a grande velocidade, seguido por duas fadas que riam e lançavam pós luminosos, provocando pequenas explosões coloridas no ar. Ora aí estava algo de extraordinário, o que o fez acreditar que tinha chegado realmente ao Outro Lado. A carruagem dourada levantou uma grossa onda de poeira, e quando ela se dissipou, estava um gato junto à portinhola da entrada para o jardim. Era muito maior do que um gato normal e, vendo melhor, não era um gato normal. Trazia uma jaqueta vermelha com botões dourados e uns calções em cetim castanho seguros por um cinto largo de couro com uma grande fivela dourada. [...] O Gato das Botas, talvez. – Procuro um sapateiro de fadas e duendes - disse ele a olhar em volta. – Não é aqui? William limitou-se a encolher os ombros. Que sabia ele? – Ia jurar que era aqui mesmo – continuou o Gato. – O problema é que as coisas, por aqui, estão sempre a mudar. Um homem pode sair de casa de manhã e não a encontrar no mesmo sítio quando regressa. O Gato reparou na sombra de William. Pisou-a, sem querer, e recuou imediatamente. – Ei lá! Quem é esse? – perguntou. William olhou em volta, à procura de alguém. – Aqui – disse o Gato das Botas a apontar para o chão. – É maior do que tu, e, às vezes, é mais pequeno. – Ah! É apenas a minha sombra. Faz tudo o que eu faço, é obediente. – Uma sombra – repetiu o Gato. – Sempre quis ver uma. É feita de quê? – Sendo uma sombra, acho que é feita de sombra – respondeu William. – Ah! E a sombra, por sua vez, é feita de quê? – De nada, acho eu. – Ah! É por isso que não está lá nada quando lhe tocamos. Nem se consegue agarrar. E anda sempre contigo? – Às vezes não a vejo, mas acho que sim. – Sempre, sempre? – insistiu o Gato. – Sim. Sempre, sempre. – E faz tudo o que tu fazes? – Sim. Tudo. O Gato passou a mão pelos bigodes, desconfiado. – Tenho a impressão de que ela, há pouco, se mexeu antes de ti. Talvez tu sejas apenas a pessoa dela e faças tudo o que ela faz. – Não te fies nisso – disse William a sorrir. O Gato pousou as botas no chão e rodopiou à volta dele. – Mas então tu és um Sombra. Vieste do outro lado. Como chegaste até aqui? – Sou um Grimm. O último. Acabei de chegar e também me sinto estranho. O Gato deu duas voltas em torno do rapaz, a examiná-lo minuciosamente – Um Grimm! – disse por fim. Tens a certeza de que não estás a exagerar? – Nem um bocadinho. www.escolavirtual.pt © Escola Virtual 1/2 Português – Um Grimm! – repetiu o Gato, cada vez mais espantado. – Ao tempo que não se via por cá nenhum... – E tu és o Gato das Botas… – arriscou William. – O Gato sem Botas – retificou o Gato. – Têm as solas gastas e já não são o que eram. Agora são apenas umas botas que me magoam as patas quando calco as pedras bicudas. – Já te conhecia das histórias – disse William – És tal e qual. MAGALHÃES, Álvaro – O último Grimm. 2. ª ed. Porto: Edições Asa, 2007. 978-972-41-5078-9. p. 209-214 [com supressões] www.escolavirtual.pt © Escola Virtual 2/2