Latusa Digital Nº 47 / Ano 8 -­‐ Dezembro de 2011 -­‐ ISSN 2175-­‐1579 O que faz um corpo?
Comentário em torno d’“A pele que habito”
Ana Beatriz Freire
“As pulsões são no corpo, o eco do fato que há um dizer”1
A partir do filme de Almodóvar, “A pele que habito” (2012), propomos pensar o
lugar do corpo na constituição do sujeito para a psicanálise
Se acompanharmos a construção de Almodóvar, podemos interrogar onde se
fixa o gozo na ficção do cientista. Ele tenta fixar o outro como gozo de sua fantasia,
transformando-o em objeto que ele opera em outro corpo, real, simbólica e
imaginariamente. Ou melhor, por meio dessa ficção, uma questão se impõe: como da
fixão de um gozo, podemos decantar o que faz um corpo?
O início do filme angustia o telespectador, não apenas pelo suspense, pelo não
saber, mas, sobretudo, pela assepsia, própria da ciência, de não localizar o sujeito em
sua história e no seu modo de gozo. Diferente de outros filmes de Almodóvar, nesse a
ficção se apresenta, inicialmente, sem sentido, sem o recurso do romance
dramatizado, em pathos da vida cotidiana, em sentimentos de amor, ódio, paixão,
paradoxos que o diretor frequentemente nos conduz com o exagero, humor e ironia a
explodir o dramalhão própria das mulheres a beira de uma crise de nervos.
Nesse último filme, o paradoxo é o próprio protagonista, Dr. Robert Legard
(Antônio Bandeiras), que veste o discurso da ciência. Discurso este que, colocando
um saber pré-estabelecido, pode criar um novo corpo ao bel prazer. Este, delirando
com o saber científico, tem certeza de conseguir encarnar sua ficção. E, assim, tem
certeza de poder operar com o real e, supostamente, por vingança pela violação e
morte de sua filha, assim como por um luto não resolvido de sua mulher, mudar o
sexo, as referências reais, simbólicas e imaginárias, revestindo o corpo de um sujeito,
habitando-o, com outra pele.
A partir de suas fantasias e referências, o cientista, Robert, opera no real do
corpo de sua vítima, Vicente, por meio de uma série de operações, faz do outro objeto
de seu gozo. De repente, nas mãos do cirurgião, Vicente, jovem que se constituiu, na
1
Lacan, J. O Seminário, livro 23: o sinthoma (1975-1976). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
2007, p.18.
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Latusa Digital Nº 47 / Ano 8 -­‐ Dezembro de 2011 -­‐ ISSN 2175-­‐1579 partilha do sexo, a partir da identificação do lado masculino, se vê como objeto de
manipulação, não apenas pelo outro sexo, mas, a partir das intervenções cirúrgicas e
hormonais, transformado em mulher, com todas as insígnias, adereços com os quais o
feminino se reveste. Espelhado na imagem da mulher morta, Gal, que se suicidou por
ter se queimado, carbonizando seu corpo na traição e no gozo interdito com meioirmão de seu marido, o cientista Robert faz da vítima, Vicente, uma imagem do que
para ele seria A mulher ideal, Vera, que não existe, ou só existe na sua ficção, fixão
delirante de seu gozo.
Para constituir essa mulher que não existe, Robert inventa uma pele super
resistente, compondo-a por processo transgênico. A partir de sangue animal, transfere
os gens animais para um ser humano, que, em homenagem a mulher perdida, nomeia
de Gal. A partir dessa pele super resistente a todas as dores, doenças e picadas, ele
consegue transformar Vicente na figura de Vera, A mulher “Verdadeira”, que faz
existir, na sua ficção, a relação sexual, tamponando, nessa ação, o impossível.
O paradoxo do filme retorna no real, pois se a ciência rejeita o sujeito, esse
retorna no real: se a vítima da operação da ciência, que pretende com a sua fixão
fazer do sujeito um objeto-abjeto de seu saber, transformando-o como lhe convém,
esquadrilhando na sua extensão (partes extras partes) a uma outra imagem que não é
a dele, o sujeito rejeitado, foracluído – fora de qualquer referência simbólica, sem
poder recorrer, enclausurado no cativeiro – retorna. Retorna, primeiramente, sem se
reconhecer e tendo como única saída ceder a vida, tenta passar ao ato: tenta fugir,
suicidar-se, ou mesmo matar o outro que o reduziu a objeto (de tortura e manipulação
científicas). Fracassado nessa primeira escolha, ele retorna e sobrevive a tal
experiência limite, na perda completa de todas as suas referências, reconstruindo-se
imaginariamente, simbolicamente e no real: no imaginário, ele retorna adquirindo um
corpo em uma ascese, encontrada como que por acaso, em um programa didático na
TV, pela ioga, pelos exercícios de postura, elasticidade e alongamento. Por meio
dessa disciplina corporal a qual, enclausurado, dedica-se com afinco, o sujeito
consegue construir um vazio idealizado pela busca de si, o que lhe propicia produzir
uma nova amarração, costura de um novo corpo com peças avulsas2 forjadas pelo
Outro.
2
Miller, J-A. Pièces Détachées. Curso de Orientação lacaniana de 2004-2005.
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Latusa Digital Nº 47 / Ano 8 -­‐ Dezembro de 2011 -­‐ ISSN 2175-­‐1579 Concomitantemente, através da escrita e de desenhos, reconstrói seu mundo
literal, fazendo da data marcada na parede, um traço, um S1, um novo significante a
partir do qual pode surgir a articulação com outros significantes, construir um novo
saber. Assim, desenhos e frases são cravadas dia após dia, preenchendo a parede do
quarto asséptico do cativeiro, numa tentativa de localizar, produzir-se como um “novo”
sujeito, uma nova amarração com a pele que deve habitar: “eu respiro”, “o ópio me
ajuda a esquecer” etc.
Ainda como referência de um dizer que enlaça a pulsão e faz eco no corpo, o
personagem se serve do métier de confecção de manequins que exercia na loja da
mãe, e, a partir da referência dos corpos morcelés da arte de Louise Bourgeoise,
ocupa-se com o saber-fazer de pedaços e restos destroçados de Gal e de vestidos
femininos oferecidos pelo doutor para construir esculturas, pedaços de corpo. Aqui, a
reconstrução localiza a libido, pedaço que se destaca do corpo, como letra, escritos
que localizam na linguagem um gozo, condensando-o. O retorno da subjetividade
exige de si um trabalho constante, pois o sujeito tem, para reconstituir-se, de revestir
esse real do corpo, o corpo vivo, agora não reconhecível, essa porção irredutível ao
imaginário e ao simbólico, afetado pela substância gozante3 que só se organiza
posteriormente, ao encarnar novas imagens e produzir novos ideais.
O sujeito, reconstruído no caso dessa ficção, retorna ainda em construção ao
ser surpreendido por um novo pathos, o amor. Amor ou cálculo para se livrar do
Mestre torturador? De qualquer maneira, se optarmos pelo campo do amor, trata-se de
um amor singular, não um amor qualquer, mas amor, a princípio não consentido, que
se deixa, porém, afetar (mesmo se confundindo, hainamoration) pelo torturador. Do
ponto de vista desse novo corpo, enclausurado, sem nenhuma história, sem
significantes que possam fazer eco no corpo. Resta a esse corpo, objeto do Outro,
apegar-se ao único Outro que lhe sobrou como referência, a saber, paradoxalmente,
seu carrasco, aquele mesmo que o apagou como sujeito, fazendo de seu corpo,
experiência, carne revestida, habitada por outra pele. Assujeitado, esse novo sujeito
se faz alienar, primeiramente, ao Outro que se oferece (“você é a única coisa que me
resta”), ama-o como a si mesmo, confundindo a criatura, que se transformou, com o
próprio criador.
3
Lacan, J. O Seminário, livro 20: mais ainda (1972-1973). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
1982, p. 35.
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Latusa Digital Nº 47 / Ano 8 -­‐ Dezembro de 2011 -­‐ ISSN 2175-­‐1579 Quando o Outro, convencido pela prova de seu amor, liberta-o, a primeira
vestimenta que procura é o vestido – objeto perdido de sua história precedente,
quando, ainda homem, morava com sua mãe. No conto “O Espelho”, de Machado de
Assis, o alferes, ao perder suas referências simbólicas na fazenda de sua tia, veste a
farda para reconstruir as insígnias simbólicas e reconstruir a unidade corporal que
estava se desfazendo.
O personagem de “A pele que habito”, Vicente, agora Vera, precisa habitar o
vestido perdido, para se recompor com a nova imagem imposta. Quando homem,
amava Cristina, que trabalhava como vendedora na butique de corte e costura da
mãe. Nessa época, Vicente recusara a experimentar o vestido; este não cabia nele e
mesmo tentado, estava identificado com a escolha heterossexual. Como homem,
amava as mulheres, em especial Cristina, cuja escolha objetal, no entanto, situava-se
como homossexual. Mesmo para agradar esta, ele se recusa a experimentá-lo.
Seduzido, o vestido só servia como objeto de desejo, para a mulher de sua escolha e
não para o seu corpo. Submetido ao sexo imposto, agora, Vera tenta recuperar o
vestido, traço, resíduo da identificação da primeira escolha amorosa. Resta à Vera
tentar construir um novo eu, do que resta, ou parafraseando Freud4, eu como
precipitado de relações objetais, impostamente abandonadas. Quando libertado, vai
procurar, não por acaso, esse vestido outrora desejado.
A anatomia é o destino? Ou o corte de suas identificações imaginárias,
simbólicas e real fizeram um novo destino para um novo corpo? O que é que nos faz
acreditar ter um corpo? Essas são algumas questões que Almodóvar, com sua
genialidade, nos convida a pensar.
O final do filme não é menos irônico, ironia do destino, diria Freud. Não se trata
bem de um happy end, mas agora, com um novo corpo, a pulsão faz eco de um novo
gozo, a partir de um novo dizer, o consentimento de Vera em gozar como objeto do
amor do carrasco. E desse novo lugar, a partir de uma nova enunciação, de um novo
dizer construído a duras penas, fez-se um novo corpo, corpo que consente gozar com
o torturador.
Na cena final, procurando os gadgets para gozar no lugar de mulher de Robert,
a procura de um lubrificante, Vera depara-se com um pedaço de jornal com a notícia
4
Freud, S. “O Eu e o Isso”. Em: Edição da Standard Brasileira das Obras Completas de Freud,
vol. XIX (1923a). Rio de Janeiro: Imago, 1969, p. 42.
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Latusa Digital Nº 47 / Ano 8 -­‐ Dezembro de 2011 -­‐ ISSN 2175-­‐1579 que sua mãe, seu Outro primordial, não desiste de procurá-lo e não se convence de
seu desaparecimento, há seis anos. A partir do vazio resíduo de uma Outra história, o
simbólico se reconstrói para Vera a partir do vazio que Vicente deixou para a mãe e,
como possibilidade de recuperar o lugar que foi para o Outro, no e com o desejo
materno. A partir da falta que deixou no Outro, ele consegue constatar, como no luto, o
eu a partir do enunciado “eu era sua falta”5, e recuperar o lugar do desejo, pele, que
habitava antes desse encontro como objeto. Recuperando-se, apesar da nova imagem
e sexo, não lhe resta senão passar ao ato e sair da referência desse amor para além
do prazer: matando, separa-se como invenção do inventor, e o eu que se tornou (Ich
werden), já construído com pele e peças avulsas, procura, a partir desse ato, recolher
aonde isso era (Wo ES war6).
Como na outra ficção, “Fale comigo”, Almodóvar consegue embaralhar os
valores morais e, eticamente, interrogar o lugar do desejo. Assim, infringindo a lei
universal, para todos, da civilização e dos códigos prescritos pelo discurso do mestre,
que interdita se servir, usar do corpo do outro e não “abusar” de um corpo inerte, que
não pode consentir, o enfermeiro, em “Fale Comigo’, investe, em outra fixão delirante,
no corpo da convalescente com palavras. E, como um meteoro, em seu fantasma
ficcional, entra no seu corpo como um planeta, ““um liliputiano, um pigmeu,
penetrando no corpo gigante”7, a conquistar e gozar desse corpo acamado, inerte,
vivificando-o, libidinalizando-o. Objeto da medicina em uma unidade intensiva de
tratamento, com seu amor singular, seu ato e seu dizer, o enfermeiro restitui-lhe a
vida, deslocando-a do seu anonimato, vivo-morto, e fazendo ecoar algo do que lhe
faltava, a saber, o pulsional na sua articulação com a palavra.
Assim, como em “Fale comigo”, a vida volta a pulsar em um corpo inerte e
restitui um novo circuito, curta-circuitando e acordando o que estava inerte. Em “A pele
que habito”, o desejo refaz o circuito pulsional, ecoando no novo corpo um novo dizer.
No fim, resta uma dúvida própria da ironia do destino da pulsão a paródia própria à la
Almodóvar: será que Vera recupera o amor impossível de Vicente com Cristina, agora
5
Lacan, J. O Seminário, livro 10: a angústia (1962-1963). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p.
156.
6
Cf. Freud, S. “A dissecção da personalidade psíquica”. Em: Edição da Standard Brasileira das
Obras Completas de Freud, Conferência XXXI, vol. XXII (1923b). Rio de Janeiro: Imago, 1969.
7
Vieira, M. A. & Barros, R. do R. Curso livre do Instituto de Clínica Psicanalítica do Rio de
Janeiro, Mães lacanianas, 2011, anotações. O que faz um corpo?
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Latusa Digital Nº 47 / Ano 8 -­‐ Dezembro de 2011 -­‐ ISSN 2175-­‐1579 com outro sexo e semblantes de mulher, apontando a possibilidade do desejo no
campo da impossibilidade da relação sexual?
Referências bibliográficas
Assis, M. “O Espelho”. Em: Obras Completas, Vol. II. Rio De Janeiro: Nova Aguiar, p.
345-352.
Freud, S. “O Eu e o Isso”. Em: Edição da Standard Brasileira das Obras Completas de
Freud, vol. XIX (1923a). Rio de Janeiro: Imago, 1969.
____. “A dissecção da personalidade psíquica”. Em: Edição da Standard Brasileira das
Obras Completas de Freud, Conferência XXXI, vol. XXII (1923b). Rio de Janeiro:
Imago, 1969.
Lacan, J. O Seminário, livro 10: a angústia (1962-1963). Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2005.
____. O Seminário, livro 20: mais ainda (1972-1973). Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1982.
____. O Seminário, livro 23: o sinthoma (1975-1976). Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2007.
Miller, J-A. Pièces Détachées. Curso de Orientação lacaniana de 2004-2005.
Vieira, M. A. & Barros, R. do R. Curso livre do Instituto de Clínica Psicanalítica do Rio
de Janeiro, Mães lacanianas, 2011, anotações. O que faz um corpo?
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