SUMÁRIO
Introdução ............................................................................ 13
A Dança das Fadas...............................................................27
A Câmara Secreta.................................................................29
Noivas Proibidas dos Escravos sem Rosto na
Casa Secreta da Noite do Temível Desejo ...................... 33
O Cascalho da Ladeira da Memória ................................. 47
Hora de Fechar ..................................................................... 51
Virando Wodwo ...................................................................63
Pó Amargo ............................................................................ 65
Os Outros ............................................................................. 85
Garotos Bonzinhos Merecem Favores ...............................89
Meninas Estranhas ..............................................................95
O Dia dos Namorados de Arlequim ................................ 101
Cachinhos ........................................................................... 111
Instruções.............................................................................115
Como Você Acha que Me Sinto? ...................................... 119
Minha Vida......................................................................... 127
Quinze Cartas Pintadas de um Tarô de Vampiro.......... 131
Quem Alimenta e Quem Come........................................ 139
O Crupe do Criador de Doenças ..................................... 149
No Final .............................................................................. 153
Páginas de um Diário Encontrado numa Caixa de Sapatos
Abandonada num Ônibus da Greyhound em Algum
Lugar entre Tulsa, Oklahoma, e Louisville, Kentucky....... 155
O Dia em que os Discos Voadores Chegaram ................ 161
Inventando Aladim ............................................................163
INTRODUÇÃO
“ACHO... QUE PREFIRO ME lembrar de uma vida desperdiçada com
coisas frágeis, a uma vida gasta evitando a dívida moral.” As palavras surgiram num sonho e eu as escrevi quando acordei, sem saber ao certo o que
significavam ou a quem se aplicavam.
Concebido há uns oito anos, meu plano original para este livro de fantasia era criar uma coletânea de contos que eu iria chamar de Essas Pessoas
Devem Saber Quem Somos e Contar que Estivemos Aqui, citando um balão de
um quadrinho da página dominical do Little Nemo (agora você pode encontrar uma linda reprodução em cores da página no livro de Art Spiegelman À
Sombra das Torres Ausentes), e cada história seria contada por um entre vários
narradores evasivos e pouco confiáveis, à medida que cada um explicasse sua
vida, nos contasse quem era e que, certa vez também ele estivera aqui. Uma
dúzia de pessoas, uma dúzia de histórias. Essa era a ideia, mas aí veio a vida
real e a estragou. Comecei a escrever os contos e eles se transformaram no que
deveriam ser: uns, narrados na primeira pessoa, relatavam fragmentos de vidas, e outros eram simplesmente diferentes. Uma história se recusou a tomar
forma até que eu a desse aos meses do ano para ser contada, enquanto outra
fez coisas singelas e eficientes com a sua própria identidade para que, assim,
fosse narrada na terceira pessoa.
Finalmente, comecei a coletar o material deste livro, ponderando como
deveria chamá-lo, uma vez que o título anterior parecia não servir mais. Foi
então que recebi o CD As Smart as We Are, do One Ring Zero, e ouvi o grupo
cantando a frase que eu trouxera do sonho, e me perguntei ao que me referia
com “coisas frágeis”.
NEIL GAIMAN
Parecia um belo título para um livro de contos. Afinal, existem tantas coisas frágeis. Pessoas se despedaçam tão facilmente, sonhos e corações também.
“A DANÇA DAS FADAS”
Não é um grande poema, na verdade, mas muito divertido para ser lido em
voz alta.
“A CÂMARA SECRETA”
Começou com o pedido de duas editoras, a Nancys Kilpatrick e a Holder,
para que eu escrevesse algo “gótico” para a sua antologia Outsiders. Parece-me que a história de Barba Azul e suas variantes é a mais gótica de todas as
histórias, por isso escrevi um poema de Barba Azul ambientado na casa quase
vazia onde eu estava na época. Perturquietante é o que Humpty Dumpty1
chamava de “palavra-valise”, ocupando o território entre perturbador e inquietante.
“NOIVAS PROIBIDAS DOS ESCRAVOS SEM ROSTO NA CASA
SECRETA DA NOITE DO TEMÍVEL DESEJO”
Comecei a escrever essa história a lápis, numa ventosa noite de inverno, na
sala de espera entre as plataformas cinco e seis da estação de trem de East
Croydon. Eu tinha quase 23 anos. Quando terminei, datilografei-a e mostrei
a dois editores que eu conhecia. Um fungou, disse que não fazia seu gênero
e achava, sinceramente, que, na verdade, não fazia o gênero de ninguém, enquanto o outro a leu, pareceu ter pena de mim e a devolveu explicando que
nunca seria publicada porque não passava de um gracejo tolo. Guardei a história, feliz por ter sido poupado do constrangimento público de mais pessoas
a lerem e não gostarem dela.
A história permaneceu não lida, vagando da gaveta para a caixa, depois
para a banheira, para o escritório, depois para o porão, para o sótão, por mais
1
Personagem do folclore inglês que discute semântica com Alice em Alice no País do Espelho, de Lewis Carroll
(1832-1898). (N. T.)
14
COISAS FR ÁGEIS 2
vinte anos, e quando eu pensava nela sentia apenas alívio por jamais ter sido
publicada. Um dia me pediram uma história para uma antologia chamada
Gothic!, lembrei-me do manuscrito no sótão e subi para procurá-lo, para ver
se havia algo nele que eu podia salvar.
Comecei a ler “Noivas Proibidas” e, à medida que lia, eu sorria. Na verdade, concluí, era bem engraçada, e inteligente também; uma historinha boa
– a maioria das partes mais sem graça era do tipo que se encontra no trabalho
de qualquer escritor novato, e todas pareciam fáceis de consertar. Peguei o
computador e escrevi uma nova versão da história, vinte anos depois da primeira, abreviei o título para a sua forma atual e a enviei ao editor. Ao menos
um crítico achou que era um gracejo tolo, mas aquela parecia ser a opinião da
minoria, porque “Noivas Proibidas” foi selecionada por várias antologias de
melhores do ano e eleita o Melhor Conto no Prêmio Locus de 2005.
Não sei ao certo que lição podemos tirar disso. Às vezes você mostra
histórias para as pessoas erradas, e ninguém gosta de tudo. De tempos em
tempos, me pergunto o que mais pode haver nas caixas do sótão.
“GAROTOS BONZINHOS MERECEM FAVORES”, “O CASCALHO
DA LADEIRA DA MEMÓRIA”
Uma história foi inspirada em uma estátua de Lisa Snellings-Clark, de um
homem segurando um contrabaixo, como eu fazia quando criança; a outra
foi escrita para uma antologia de histórias reais de fantasmas. A maioria dos
outros autores conseguiu produzir contos mais satisfatórios do que o meu,
embora o meu tivesse a insatisfatória vantagem de ser totalmente verdadeiro.
Essas histórias foram reunidas pela primeira vez em Adventures in the Dream
Trade, uma miscelânea publicada pela Nesfa Press em 2002, que juntava muitas introduções, fragmentos de textos e afins.
“HORA DE FECHAR”
Michael Chabon editava um livro de histórias de diversos gêneros para demonstrar o quanto histórias são divertidas e ao mesmo tempo angariar fundos para a 826 Valencia, projeto que ajuda crianças a escrever (o livro foi
15
NEIL GAIMAN
publicado com o título de McSweeney’s Mammoth Treasury of Thrilling Tales).
Ele me pediu uma história, e eu perguntei se algum gênero estava faltando.
Estava – ele queria uma história de fantasmas ao estilo de M. R. James.
Portanto, me dispus a escrever uma história de fantasmas tradicional,
mas o conto que resultou daí deve muito mais ao meu amor pelas “histórias
estranhas” de Robert Aickman do que às de James (no entanto, também, resultou numa história de clube, proporcionando assim dois gêneros pelo preço
de um). Foi escolhido por algumas antologias de melhores do ano e ganhou
o Prêmio Locus de Melhor Conto em 2004.
Todos os lugares nesta história são reais, embora eu tenha mudado alguns nomes – por exemplo, o Clube Diógenes era, na verdade, o Clube Troy,
na Hanway Street. Algumas pessoas e fatos também são reais, mais reais do
que se possa imaginar. Enquanto escrevo isto, pergunto-me se aquela casinha
ainda existe ou se a demoliram e construíram outras casas no terreno, mas
confesso que não tenho nenhuma vontade de ir até lá conferir.
“VIRANDO WODWO”
Um wodwo, ou wodwose, era um selvagem da floresta. Este poema foi escrito
para a antologia The Green Man, de Terri Windling e Ellen Datlow.
“PÓ AMARGO”
Escrevi quatro contos em 2002, e desconfio que este seja o melhor deles, embora não tenha ganho nenhum prêmio. Ele foi escrito para a antologia Mojo:
Conjure Stories, da minha amiga Nalo Hopkinson.
“OS OUTROS”
Não me lembro onde ou quando criei esta pequena história de Möbius.2 Lem2
Referência ao formato da história, que lembra o anel de Möbius, ou Moebius, uma forma geométrica com dois
lados, mas apenas uma superfície ininterrupta, criada pelo matemático alemão August Ferdinand Möbius em
1858. (N. T.)
16
COISAS FR ÁGEIS 2
bro que rascunhei a ideia e a primeira linha, e depois me perguntei se era original – será que eu não estava evocando algo que lera quando criança, alguma
história de Fredric Brown ou Henry Kuttner? Parecia ser de outro autor, uma
ideia elegante, inovadora e completa demais, e isso me deixou desconfiado.
Um ano e pouco depois, entediado, num avião, encontrei minha anotação sobre a história e, tendo terminado a revista que estava lendo, simplesmente a escrevi – estava pronta antes que o avião pousasse. Então liguei para
um punhado de amigos cultos e a li para eles, perguntando se parecia familiar, se alguém já a havia lido. Eles disseram que não. Normalmente, escrevo
contos porque alguém pede que eu escreva, mas uma vez na vida eu tinha
um conto pelo qual ninguém estava esperando. Enviei-o para Gordon van
Gelder, da Magazine of Fantasy and Science Fiction, e ele o aceitou e mudou o
título, ao que não me opus. (Eu o havia chamado de “Além-Túmulo”.)
Eu escrevo muito em aviões. Quando comecei Deuses Americanos, escrevi
uma história, num voo para Nova York, que eu tinha certeza que iria se encaixar
em alguma parte da trama do livro, mas não consegui achar nenhum lugar onde
a história quisesse se encaixar. Finalmente, quando o livro ficou pronto e a história não estava nele, eu a transformei num cartão de Natal, enviei-a e esqueci. Alguns anos depois, a Hill House Press, que publica lindíssimas edições limitadas
de meus livros, a enviou para assinantes como cartão de Natal da editora.
Ela nunca teve um título. Vamos chamá-la de
O CARTÓGRAFO
A melhor maneira de descrever um conto é contá-lo. Entende? O modo como
alguém descreve uma história, para si mesmo ou para o mundo, é contando
a história. É um número de equilibrismo e é um sonho. Quanto mais exato o
mapa, mais ele se parece com o território. O mapa mais exato possível seria o
território, e assim seria perfeitamente exato e perfeitamente inútil.
O conto é o mapa que é o território.
Você precisa se lembrar disso.
17
NEIL GAIMAN
Há quase dois mil anos, um imperador da China ficou obcecado com a
ideia de mapear a terra que governava. Ordenou que a China fosse recriada
em miniatura numa ilha que mandou construir, à custa de muito dinheiro
e, incidentalmente, da perda de algumas vidas (porque as águas eram frias e
profundas), num lago nas propriedades imperiais. Nessa ilha, cada montanha
era transformada num morrinho e cada rio no menor fio d’água. O imperador levava meia hora para percorrer o perímetro de sua ilha.
Toda manhã, na luz pálida da madrugada, cem homens remavam e nadavam para a ilha e consertavam e reconstruíam cuidadosamente todos os
detalhes da paisagem que haviam sido danificados pelo clima ou por pássaros selvagens, ou engolidos pelo lago; e removiam e remodelavam quaisquer
terras imperiais que tivessem sido danificadas por enchentes, terremotos ou
avalanches de verdade, para melhor refletir o aspecto do mundo.
O imperador se satisfez com isso durante a maior parte de um ano, até
que notou dentro de si um descontentamento crescente com sua ilha e começou, nos momentos antes de dormir, a planejar outro mapa, com um centésimo do tamanho dos seus domínios. Cada cabana, casa e salão, cada árvore,
colina e animal seriam reproduzidos com um centésimo de sua altura.
Era um plano grandioso, que sobrecarregaria o tesouro imperial até o
limite para ser concretizado. Seriam necessários mais homens do que a mente
pode imaginar, homens para mapear e homens para medir, agrimensores,
recenseadores, pintores; seriam necessários modelistas, ceramistas, construtores e artesãos. Seiscentos sonhadores profissionais teriam de ser convocados
para revelar a natureza das coisas escondidas sob as raízes das árvores, nas
mais recônditas cavernas das montanhas e nas profundezas do mar, porque o
mapa, para ter algum valor, precisaria conter tanto o império visível quanto
o invisível.
Esse era o plano do imperador.
Seu ministro de confiança argumentou com ele, uma noite, enquanto
andavam nos jardins do palácio, sob uma enorme lua dourada.
– Precisais saber, majestade imperial – disse o ministro de confiança –,
que o que pretendeis é...
18
COISAS FR ÁGEIS 2
E então, já sem coragem, calou-se. Uma carpa pálida rompeu a superfície da água, estilhaçando o reflexo da lua dourada em mil fragmentos dançantes, cada um deles uma pequena lua completa, até que as luas se fundiram
num círculo contínuo de luz refletida, dourada, sobre a água da cor do céu
noturno, que era de um violeta tão rico que jamais poderia ser confundido
com o preto.
– Impossível? – perguntou suavemente o imperador. Quanto mais suaves os reis e imperadores, mais perigosos eles são.
– Nada que o imperador deseja pode, concebivelmente, ser impossível
– disse o ministro de confiança. – No entanto, custará caro. Vós secareis o
tesouro imperial para produzir tal mapa. Esvaziareis cidades e fazendas para
liberar a terra onde o mapa ficará. Deixareis em vosso rastro um país o qual
vossos herdeiros serão pobres demais para governar. Como vosso conselheiro,
estaria falhando em meus deveres se não vos avisasse disso.
– Talvez tenhas razão – disse o imperador. – Talvez. Mas se eu te desse
ouvidos e esquecesse o meu mapa, se o deixasse irrealizado, ele assombraria
o meu mundo e a minha mente, e estragaria o sabor da comida sobre minha
língua e do vinho em minha boca.
E então ele parou. Distante nos jardins, ouvia-se o chilrear de um rouxinol. – Mas esse mapa concreto – confidenciou o imperador – ainda é só o
começo. Pois enquanto ele estiver sendo construído, já estarei desejando e
planejando minha obra-prima.
– E o que seria? – perguntou o ministro de confiança timidamente.
– Um mapa – disse o imperador – dos Domínios Imperiais, em que cada
casa será representada por uma casa em tamanho natural, cada montanha
será indicada por uma montanha, cada árvore por uma árvore do mesmo
tamanho e espécie, cada rio por um rio e cada homem por um homem.
O ministro de confiança curvou-se muito sob o luar e voltou ao Palácio Imperial vários passos respeitosos atrás do imperador, imerso em pensamentos.
Está escrito que o imperador morreu dormindo, e isso é verdade, até
onde se sabe, embora se pudesse ressaltar que sua morte não tenha sido to19
NEIL GAIMAN
talmente sem ajuda; e que seu filho mais velho, que assumiu o trono em seu
lugar, tinha pouco interesse por mapas ou cartografia.
A ilha no lago tornou-se um abrigo para pássaros selvagens e todo tipo
de aves aquáticas, sem nenhum homem para espantá-los. Eles demoliram as
pequenas montanhas de barro para construir seus ninhos, e o lago destruiu o
litoral da ilha, e com o tempo ela foi totalmente esquecida, e somente o lago
permaneceu.
O mapa se foi, o cartógrafo também, mas a terra sobreviveu.
“MENINAS ESTRANHAS”
... é, na verdade, um conjunto de doze contos muito curtos, escritos para
acompanhar o CD Strange Little Girls, de Tori Amos. Inspirada por Cindy
Sherman e pelas próprias canções, Tori criou uma persona para cada canção e
eu escrevi uma história para cada persona. Elas nunca foram reunidas antes,
embora tenham sido publicadas no livro da turnê e frases das histórias estejam espalhadas pelo encarte do CD.
“O DIA DOS NAMORADOS DE ARLEQUIM”
Lisa Snellings-Clark é uma escultora e artista cujo trabalho adoro há anos.
Houve um livro chamado Strange Attraction, baseado numa roda-gigante
que Lisa fez; vários autores ótimos escreveram histórias para os passageiros
das gôndolas. Pediram que eu escrevesse uma história inspirada no bilheteiro,
um arlequim risonho.
E eu a escrevi.
Em geral, as histórias não se escrevem sozinhas, mas, no caso desta,
só me lembro realmente de ter inventado a primeira frase. Depois disso, foi
como fazer um ditado, enquanto Arlequim dançava e cambalhotava alegremente em seu Dia dos Namorados.
Arlequim era a figura zombeteira da commedia dell’arte, um trocista invisível, com sua máscara, seu bastão mágico e uma fantasia coberta de losan20
COISAS FR ÁGEIS 2
gos. Ele amava Colombina, e a perseguia através dos espetáculos, enfrentando personagens fixos como o médico e o palhaço, transformando todas as
pessoas que encontrava.
“CACHINHOS”
“Cachinhos Dourados e os Três Ursos” é uma história do poeta Robert Southey. Ou melhor, não é; a versão dele falava de uma velha e dos três ursos. O
formato da história e o que acontece nela estão certos, mas as pessoas sabiam
que a história precisava ser sobre uma menina e não uma velha, e quando a
contavam punham a menina nela.
Naturalmente, contos de fada são transmissíveis. Você pode pegá-los ou
ser infectado por eles. São a moeda que compartilhamos com aqueles que
andaram pelo mundo antes que chegássemos aqui (contar aos meus filhos
histórias que ouvi, por minha vez, de meus pais e avós, me faz sentir parte
de algo especial e peculiar, parte do fluxo contínuo da própria vida). Minha
filha Maddy, que tinha 2 anos quando escrevi isso para ela, tem 11 anos e
ainda compartilhamos histórias, mas agora elas estão na televisão ou em filmes. Lemos os mesmos livros e falamos deles, mas não os leio mais para ela, e
mesmo isso era um substituto insatisfatório para as histórias que eu inventava
e lhe contava.
Acredito que devemos uns aos outros contar histórias. É a coisa mais
próxima de um credo que eu tenho ou – desconfio – algum dia hei de ter.
“INSTRUÇÕES”
Embora eu tenha incluído vários poemas em Fumaça e Espelhos, minha última
antologia, planejei inicialmente que esta coletânea seria apenas de prosa. No
fim, decidi incluir os poemas mesmo assim, sobretudo porque gosto muito
deste. Se você é uma das pessoas que não gostam de poesia, pode se consolar
sabendo que, como esta introdução, elas são de graça. O livro custaria a mesma
coisa sem os poemas e ninguém me paga nada a mais por incluí-los. Às vezes é
legal ter um texto curto para pegar, ler e terminar logo, assim como é interes21
NEIL GAIMAN
sante saber um pouco sobre a criação de uma história, e você não é obrigado a
lê-los, de qualquer forma. (E, embora eu tenha passado semanas de alegre tormento para decidir qual a ordem dos contos na coletânea, qual a melhor forma
e sequência, você pode – e deve – lê-la da maneira que achar melhor.)
Literalmente, um manual de instruções do que fazer quando você se encontrar num conto de fadas.
“COMO VOCÊ ACHA QUE ME SINTO?”
Pediram-me uma história para uma antologia cujo tema era gárgulas e, com
o prazo se esgotando, percebi que me sentia meio sem ideias.
Gárgulas, pensei, eram colocadas sobre igrejas e catedrais para protegê-las. Eu me perguntei se uma gárgula poderia ser colocada sobre outra coisa
para protegê-la. Por exemplo, um coração...
Acabei de relê-la pela primeira vez em oito anos, e fiquei levemente surpreso
com o sexo, mas provavelmente é apenas uma insatisfação geral com a história.
“MINHA VIDA”
Este estranho monólogo foi escrito para acompanhar uma fotografia de um
macaco de meia num livro de duzentas fotografias de macacos de meia chamado, nada surpreendentemente, Sock Monkeys, do fotógrafo Arne Svenson. O macaco de meia da foto que recebi parecia ter vivido uma vida dura,
porém interessante.
Uma velha amiga minha começou a escrever para o Weekly World News,3
e eu me divertia muito inventando notícias para ela. Comecei a me perguntar
se existia, em algum lugar, alguém que tinha uma vida ao estilo do Weekly
World News. Em Sock Monkeys, o texto foi impresso como prosa, mas gosto
mais dele com as quebras de linha. Não tenho dúvidas de que, com álcool
suficiente e um ouvido bem disposto, ele poderia continuar para sempre. (De
vez em quando, as pessoas me escrevem pelo meu site para perguntar se me
3
Tabloide sensacionalista norte-americano que circulou de 1979 a 2007 estampando manchetes fictícias sobre
temas sobrenaturais ou paranormais. (N. T.)
22
COISAS FR ÁGEIS 2
importo que usem este, ou outros textos meus, em testes de interpretação. Eu
não me importo.)
“QUINZE CARTAS PINTADAS DE UM TARÔ DE VAMPIRO”
Ainda faltam sete histórias dos arcanos maiores; prometi ao artista Rick Berry que as escreverei um dia, e então ele poderá pintá-las.
“QUEM ALIMENTA E QUEM COME”
Esta história é um pesadelo que tive aos vinte e poucos anos.
Adoro sonhos. Sei o bastante sobre eles para entender que sua lógica não é
a lógica da narrativa e que raramente você consegue trazer um sonho de volta
como conto; o ouro se transforma em folhas, a seda em teias de aranha, quando
acordamos.
Mesmo assim, existem coisas que podemos trazer de volta dos sonhos:
atmosfera, momentos, pessoas, um tema. Mas esta é a única vez que me lembro
de ter trazido uma história inteira.
Primeiro a escrevi como uma história em quadrinhos, ilustrada pelo multitalentoso Mark Buckingham, mais tarde tentei reimaginá-la como o argumento de um filme de terror pornográfico que eu nunca chegaria a fazer (uma
história chamada Eaten: Scenes from a Moving Picture). Há alguns anos, o editor Steve Jones me perguntou se eu gostaria de ressuscitar um conto meu injustamente esquecido para a sua antologia Keep Out the Night, e eu me lembrei
desta história, arregacei as mangas e comecei a digitar.
O Coprinus comatus é, de fato, um cogumelo maravilhosamente saboroso,
mas se liquefaz mesmo numa substância negra, desagradável, retinta logo depois de colhido, e é por isso que você jamais o encontrará no comércio.
“O CRUPE DO CRIADOR DE DOENÇAS”
Pediram-me que eu escrevesse um artigo num livro de doenças imaginárias
(The Thackery T. Lambshead Pocket Guide to Eccentric and Discredited Diseases,
23
NEIL GAIMAN
editado por Jeff VanderMeer e Mark Roberts). Achei que uma doença imaginária sobre criar doenças imaginárias poderia ser interessante. Eu o escrevi com
a ajuda de um programa de computador há muito esquecido, chamado Babble,
e um empoeirado livro de conselhos para o médico do lar, encadernado em
couro.
“NO FINAL”
Eu estava tentando imaginar o último livro da Bíblia.
E por falar em dar nomes a animais, quero dizer que fiquei muito feliz
ao descobrir que a palavra yeti, em tradução literal, aparentemente significa
“aquela coisa lá”. (– Rápido, bravo guia do Himalaia... o que é aquela coisa lá?
– Yeti.
– Entendi.)
“PÁGINAS DE UM DIÁRIO ENCONTRADO NUMA CAIXA DE
SAPATOS ABANDONADA NUM ÔNIBUS DA GREYHOUND EM
ALGUM LUGAR ENTRE TULSA, OKLAHOMA, E LOUISVILLE,
KENTUCKY”
Este foi escrito para o livro da turnê Scarlet’s Walk, da minha amiga Tori
Amos, há alguns anos, e fiquei muito feliz quando foi escolhido por diversas antologias de “melhores do ano”. É uma história inspirada muito livremente na música de Scarlet’s Walk. Eu queria escrever algo sobre identidade
e as viagens na América, como um pequeno acompanhamento para Deuses
Americanos, onde tudo, incluindo qualquer tipo de resolução, paira fora de
alcance.
“O DIA EM QUE OS DISCOS VOADORES CHEGARAM”
Escrito num quarto de hotel em Nova York, na semana em que gravei o audiolivro do meu romance Stardust – enquanto esperava que um carro viesse
me buscar –, para a editora e poetisa Rain Graves, que havia me pedido uns
24
COISAS FR ÁGEIS 2
poemas para o seu site <www.spiderwords.com>. Fiquei feliz ao descobrir que
funcionava quando lido para uma plateia.
“INVENTANDO ALADIM”
Uma coisa que me intriga (e aqui uso intriga no sentido técnico de me irrita muito, muito mesmo) é ler, como leio de vez em quando, livros eruditos,
acadêmicos sobre histórias populares e contos de fadas que explicam que
ninguém os escreveu e prosseguem salientando que investigar a autoria de
histórias populares é por si só uma falácia; o tipo de livro ou artigo que dá
a impressão de que todas as histórias foram encontradas por acidente ou, na
melhor das hipóteses, reinventadas, e eu penso: “Sim, mas todas começaram
em algum lugar, na cabeça de alguém”. Porque histórias surgem na mente –
não são artefatos ou fenômenos naturais.
Um livro acadêmico que li explicava que qualquer conto de fada em
que um personagem adormece obviamente surgiu como um sonho que foi
relatado, ao acordar, por um tipo primitivo, incapaz de distinguir sonhos da
realidade, e que esse era o ponto de partida para os nossos contos de fadas –
uma teoria que parece cheia de buracos desde o começo, porque as histórias
que sobrevivem e são recontadas têm lógica narrativa, não lógica de sonho.
Histórias são criadas pelas pessoas que as criam. Se elas funcionam, são
recontadas. Esta é a magia.
Scheherazade, como narradora, era uma ficção, bem como sua irmã e
o rei assassino que as duas precisavam aplacar todas as noites. As Mil e Uma
Noites são um conjunto ficcional, compilado de uma variedade de lugares, e a
própria história de Aladim é mais recente, foi incluída nas Noites pelos franceses só há alguns séculos. Que é outro jeito de dizer que quando começou,
certamente não começou como eu descrevo. No entanto... Mesmo assim...
Quero agradecer a todos os editores dos vários volumes nos quais estas histórias apareceram primeiro, e sobretudo a Jennifer Brehl e Jane Morpeth,
minhas editoras nos Estados Unidos e no Reino Unido, por sua ajuda e as25
NEIL GAIMAN
sistência e, particularmente, sua paciência Agradeço ainda à minha agente
literária, a formidável Merrilee Heifetz, e ao seu pessoal no mundo todo.
Enquanto escrevo isto, me ocorre que a peculiaridade da maioria das
coisas que consideramos frágeis é como elas são, na verdade, fortes. Havia
truques que fazíamos com ovos, quando crianças, para demonstrar que eles
são, apesar de não nos darmos conta disso, pequenos salões de mármore capazes de suportar grandes pressões, e muitos dizem que o bater de asas de uma
borboleta no lugar certo pode criar um furacão do outro lado de um oceano.
Corações podem ser partidos, mas o coração é o mais forte dos músculos,
capaz de pulsar durante toda a vida, setenta vezes por minuto, não falhando
quase nunca. Até os sonhos, que são as coisas mais intangíveis e delicadas,
podem se mostrar incrivelmente difíceis de matar.
Histórias, assim como pessoas, borboletas, ovos de aves canoras, corações humanos e sonhos, também são coisas frágeis, feitas de nada mais forte
ou duradouro do que 26 letras e um punhado de sinais de pontuação. Ou
então são palavras no ar, compostas de sonhos e ideias – abstratas, invisíveis,
sumindo no momento em que são pronunciadas –, e o que poderia ser mais
frágil que isso? Mas algumas histórias, pequenas, simples, sobre gente embarcando em aventuras ou realizando maravilhas, contos de milagres e de monstros, perduram mais do que todas as pessoas que as contaram, e algumas
perduram mais do que as próprias terras onde elas foram criadas.
E, ainda que eu não acredite que qualquer história deste livro chegue a
tanto, é legal poder juntá-las e dar-lhes um lar onde possam ser lidas e lembradas. Espero que você aprecie a leitura.
Neil Gaiman
Primeiro dia da primavera de 2006
26
A DANÇA DAS FADAS
SE EU FOSSE JOVEM e o sonho e a morte
fossem distantes como então,
Não partiria minh’alma ao meio,
guardando dela aqui um quinhão
Que tentaria o mundo das fadas
alcançar, mas sempre em vão
Enquanto a outra parte dela
andasse pela escuridão
Até curvar-se e dar três beijos
numa bela fada de maio
Que águias do céu arrancaria, com elas
pregando-me a um raio
E se meu coração fugisse dela,
se se desvencilhasse dela,
Num ninho de estrelas envolto
a fada ainda o traria com ela
Até que dele se cansasse,
quando enfarada o deixaria
Num rio de fogo onde meninos
o acabariam roubando um dia,
O iriam pegar, dele abusar,
puxando-o, deixando-o fino,
NEIL GAIMAN
Partindo-o em quatro fios
p’ra encordoar algum violino.
E todo dia e toda noite
tocariam nele um madrigal
Que todos poria p’ra dançar
de tão estranho e sensual,
E o público rodopiaria,
saltitaria, cantaria em coro
Até que, com o olhar em brasa,
desabaria em rodas de ouro...
Mas isso foi há sessenta anos,
e jovem eu já não mais sou:
Para tocar além do sol
meu coração já alçou voo.
Com mente e olhar cheios de inveja,
admiro as almas isoladas
Que tal vento lunar não sentem,
alheias à Dança das Fadas,
Que não seduzem quem não as ouve,
quem não se atreve a ser tão forte.
Quando era jovem, eu era um tolo. Então
me envolvam em sonho e morte.
28
A CÂMARA SECRETA
NÃO TEMA OS FANTASMAS desta casa; eles
são a menor de suas preocupações.
Pessoalmente, acho os barulhos que eles fazem reconfortantes,
os rangidos e passos no meio da noite,
seus truquezinhos de esconder coisas, ou tirá-las do lugar, acho
meigos, não perturquietantes. Fazem o lugar
se parecer muito mais com um lar.
Habitado.
À parte os fantasmas, nada vive aqui por muito tempo. Nem gatos,
nem ratos, nem moscas, nem sonhos, nem morcegos. Dois dias atrás
vi uma borboleta,
uma monarca, acho, que dançava de quarto em quarto
e pousava nas paredes e esperava perto de mim.
Não há flores nesta casa vazia,
e, temendo que a borboleta morresse de fome,
forcei uma janela até escancará-la,
fiz minhas duas mãos em copas em torno do seu ser farfalhante,
e, sentindo suas asas beijando-me as palmas tão suavemente,
a pus para fora, e a vi voar para longe.
Tenho pouca paciência com as estações aqui, mas
a sua chegada aliviou o frio deste inverno.
Por favor, ande por aí. Explore quanto quiser.
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